Escritos de Filosofia III

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Escritos de Filosofia III

Linguagem e Cogniccedilatildeo

Escritos de Filosofia III

Linguagem e Cogniccedilatildeo

Organizadores

Marcus Joseacute Alves de Souza

Maxwell Morais de Lima Filho

Diagramaccedilatildeo Marcelo A S Alves

Capa Carole Kuumlmmecke - httpswwwbehancenetCaroleKummecke

Arte de Capa Pedro Lucena

Revisatildeo ortograacutefica Marcus Viniacutecius Matias

Revisatildeo das regras da ABNT Iuri Rocio Franco Rizzi

O padratildeo ortograacutefico e o sistema de citaccedilotildees e referecircncias bibliograacuteficas satildeo prerrogativas de

cada autor Da mesma forma o conteuacutedo de cada capiacutetulo eacute de inteira e exclusiva

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Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP)

SOUZA Marcus Joseacute Alves de LIMA FILHO Maxwell Morais de (Orgs)

Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo [recurso eletrocircnico] Marcus Joseacute Alves de Souza Maxwell Morais de Lima

Filho (Orgs) -- Porto Alegre RS Editora Fi 2019

242 p

ISBN - 978-85-5696-748-0

Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg

1 Filosofia 2 Cogniccedilatildeo 3 Linguagem 4 Loacutegica 5 Mente I Tiacutetulo

CDD 100

Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Filosofia 100

Para Bia Jorginho

Tissi Camu e o Ecossistecircmico Rudaacute

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 11

Marcus Joseacute Alves de Souza

1 14

Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica

Manfredo Arauacutejo de Oliveira

2 40

Encheiriacutedion Capiacutetulo I Traduccedilotildees e Comentaacuterios

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio

3 53

A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva da Filosofia Analiacutetica da Mente

Taacuterik de Athayde Prata

4 69

A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico A Criacutetica de John Searle agraves Principais

Correntes da Filosofia da Mente

Maxwell Morais de Lima Filho

5 98

Da Natureza Humana As Perspectivas Epistemoloacutegicas de Piaget Chomsky e

Foucault

Argus Romero Abreu de Morais

6 116

Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche A Leitura de Guumlnter Abel

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa

7 133

Habermas e o Problema do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira

8 146

Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes para se Pensar a Natureza de Sistemas

Formais Uma Abordagem Wittgensteiniana

Marcos Silva

9 158

Revisitando o Argumento da Linguagem Privada

Marcus Joseacute Alves de Souza

10 172

O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico

Ricardo S Rabenschlag

11 184

A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo

Sagid Salles

12 201

O Leibniz de Deleuze Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido

William de Siqueira Piauiacute

Sobre os Organizadores 242

Apresentaccedilatildeo

Marcus Joseacute Alves de Souza

O empreendimento filosoacutefico eacute uma atividade coletiva especialmente

por seu caraacuteter corretivo estabelecido em debate puacuteblico Eacute claro que haacute

momentos de reflexatildeo solitaacuteria mas mesmo estes satildeo momentos de

organizaccedilatildeo discursiva que visam agrave correccedilatildeo em debate e o debate com

os autores eacute fundamental para o desenvolvimento do empreendimento

filosoacutefico Ao apresentar este novo volume da seacuterie Escritos de Filosofia

Linguagem e Cogniccedilatildeo gostariacuteamos de enfatizar estes dois aspectos

sugeridos no iniacutecio o aspecto coletivo e o corretivo deste trabalho Na

dimensatildeo coletiva este eacute mais um fruto da atividade do Grupo de Pesquisa

Linguagem e Cogniccedilatildeo da Universidade Federal de Alagoas Ele resulta da

continuidade de um trabalho que desde 2014 reuacutene profissionais de

Filosofia de variadas instituiccedilotildees para apresentarem e debaterem suas

pesquisas Num Estado com pouca tradiccedilatildeo em realizaccedilatildeo deste tipo de

atividade a reuniatildeo coletiva para divulgaccedilatildeo de pesquisas eacute uma conquista

que deve ser ressaltada pois fortaleceu o Grupo de Pesquisa e originou

uma linha do receacutem-criado Mestrado Acadecircmico de Filosofia da UFAL

(2018) Mas filoacutesofos se reuacutenem especialmente para apresentar ideias e

debatecirc-las numa perspectiva de autocorreccedilatildeo entre pares Isso vem se

dando nas atividades do Grupo inclusive nos Encontros seis ateacute agora

mas sobretudo atraveacutes desta seacuterie de publicaccedilotildees Aqui o aspecto

corretivo ganha relevo A perspectiva eacute incrementar ainda mais uma

tradiccedilatildeo de publicaccedilotildees que mantenha o debate de ideias vivo

contribuindo para o avanccedilo das discussotildees filosoacuteficas daqueles que

tomarem contato com cada publicaccedilatildeo da seacuterie Escritos de Filosofia

Linguagem e Cogniccedilatildeo Possibilitando assim a acareaccedilatildeo criacutetica dos vaacuterios

12 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

escritos e animando o avanccedilo do conhecimento filosoacutefico num acircmbito da

Filosofia que reuacutene temas relacionados agraves aacutereas de Loacutegica da Filosofia da

Linguagem da Filosofia da Mente e da Epistemologia

Os textos aqui apresentados satildeo resultado do IV Encontro Linguagem

e Cogniccedilatildeo realizado em novembro de 2017 que reuniu mais uma vez

profissionais de vaacuterias instituiccedilotildees (UFAL UFAM UFPI UFS UFC UFPE

UFSJ PUC-Rio UnB dentre outras) no intuito de avanccedilarmos a pesquisa

filosoacutefica nos contextos alagoano e nordestino Como nas outras ediccedilotildees

as temaacuteticas de investigaccedilatildeo estatildeo relacionadas agrave loacutegica agrave linguagem agrave

consciecircncia e ao conhecimento

Eacute importante afirmarmos que para aleacutem de uma possiacutevel

organicidade temaacutetica dos textos este livro eacute resultado tambeacutem de

confluecircncias de amizades construiacutedas pelo interesse filosoacutefico Nisso

nossos Encontros tecircm se mostrado frutiacuteferos ao mostrar a forccedila da

tradiccedilatildeo de associar a ldquoamizade ao saberrdquo

Esta eacute a terceira coletacircnea da seacuterie Escritos de Filosofia Linguagem e

Cogniccedilatildeo mostrando continuidade e esforccedilo em darmos publicidade ao

trabalho de pesquisa realizado Reforccedilando e aprofundando laccedilos teoacutericos

de investigaccedilatildeo este volume eacute composto de 12 capiacutetulos escritos por 14

pesquisadores de 8 instituiccedilotildees (UFAM UFPI UFC UECE UFPE UFAL

UFS e UFSJ) O leitor teraacute oportunidade de refletir e avaliar criticamente

sobre uma diversidade de temas filosoacuteficos Neste ponto eacute interessante

destacar que os temas abarcados vatildeo aleacutem daquilo que ficou conhecido

como ldquoFilosofia Analiacuteticardquo haja vista a salutar heterogeneidade de autores

e abordagens jaacute presente nos outros volumes

O leitor poderaacute pensar a trajetoacuteria histoacuterico-filosoacutefica da conhecida

ldquoreviravolta linguiacutesticardquo e avaliar se efetivamente saiacutemos de um marco

reflexivo da subjetividade para o da linguagem em Filosofia Ler um

trabalho cuidadoso de traduccedilatildeo comentada de um capiacutetulo do Encheiriacutedion

de Epicteto Tomar contato com uma reflexatildeo sobre o conceito de

consciecircncia em Sartre numa perspectiva analiacutetica Compreender a criacutetica

de John Searle agraves principais correntes da Filosofia da Mente Revisitar o

Marcus Joseacute | 13

tema da natureza humana a partir de trecircs autores natildeo-analiacuteticos Piaget

Foucault e Chomsky Rediscutir os temas da consciecircncia da linguagem e

da natureza em Nietzsche a partir da avaliaccedilatildeo de Guumlnter Abel

Aprofundar no conhecimento da temaacutetica da objetividade dentro do

pensamento de Habermas Refletir sobre o conceito de jogo em sistemas

loacutegicos formais Retomar a discussatildeo do argumento da linguagem privada

de Wittgenstein Avaliar aspectos filosoacuteficos do pensamento dos ldquonovos

ateusrdquo Aproximar-se da problemaacutetica da vagueza numa avaliaccedilatildeo criacutetica

da teoria trivalente da vagueza e as dificuldades loacutegico-filosoacuteficas do

estabelecimento da precisatildeo conceitual Analisar de modo criacutetico a

interpretaccedilatildeo que Deleuze faz de Leibniz Enfim o leitor teraacute oportunidade

de pensar temas autores e abordagens variadas neste volume Esperamos

que seja de proveito para conhecimento inicial ou mesmo de

aprofundamento para o leitor experiente em Filosofia e que todos tenham

uma leitura filosoficamente estimulante

Agradecemos aos participantes que gentilmente forneceram os textos

para a composiccedilatildeo deste trabalho coletivo Agradecemos agrave agecircncia de

fomento agrave pesquisa de Alagoas FAPEAL (Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa

do Estado de Alagoas) pelo apoio financeiro ao evento que deu origem a

este volume Ao apoio do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e

Artes (ICHCA) e do Curso de Filosofia da UFAL A todos que contribuem

com as atividades o Grupo de Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo da UFAL Agrave

Editora Fi pela parceria nesta publicaccedilatildeo

Maceioacute setembro de 2019

1

Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta

de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica

Manfredo Arauacutejo de Oliveira 1

A filosofia se encontra hoje diante de um desafio que tem a ver com

a proacutepria forma de sua configuraccedilatildeo enquanto teoria ou seja o desafio da

articulaccedilatildeo de um novo paradigma teoacuterico O ponto de partida desta

situaccedilatildeo foi certamente a reviravolta linguiacutestica ou seja a substituiccedilatildeo no

pensamento de Frege da anaacutelise de sensaccedilotildees representaccedilotildees e juiacutezos pela

anaacutelise das expressotildees linguiacutesticas Quine (1981 p 23) ao fazer um

balanccedilo dos resultados que marcaram positivamente a filosofia do seacuteculo

XX afirmou que o evento decisivo e irreversiacutevel da filosofia depois de

Hume foi a reviravolta linguiacutestica Que significa isto para a filosofia Hoje

haacute pensadores que defendem que ela apenas significou uma radicalizaccedilatildeo

da reviravolta transcendental da filosofia moderna Faremos uma breve

apresentaccedilatildeo da proposta da fenomenologia transcendental no

pensamento de Husserl que levantou a pretensatildeo de articular o paradigma

transcendental da forma mais rigorosa possiacutevel para poder depois mostrar

que a reviravolta linguiacutestica natildeo necessariamente se deve entender como

uma radicalizaccedilatildeo deste paradigma mas articula antes um quadro teoacuterico

propriamente poacutes-transcendental

1 Graduado pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR) Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Gregoriana de Roma (PUG) Doutor em Filosofia pela Ludwig-Maximilian de Munique (LMU) e Professor Emeacuterito da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 15

A Filosofia Transcendental Preacute-Linguiacutestica O Mundo se nos Daacute em

Intuiccedilotildees Puras A Fenomenologia Husserliana

Para Husserl a filosofia exige uma mudanccedila radical de postura o que

revela o caraacuteter ingecircnuo da atitude da postura natural Essa transformaccedilatildeo

radical de postura nos vai mostrar que todos os entes soacute nos podem ser

dados na esfera da subjetividade transcendental atraveacutes de muacuteltiplos

modos de manifestaccedilatildeo que satildeo em princiacutepio variaacuteveis e ilimitados Neste

sentido fenomenologia natildeo eacute simples descriccedilatildeo do que aparece sem que

possa haver uma decisatildeo sobre o que o ente eacute em sua essecircncia e seu ser

mas ela eacute precisamente o esclarecimento dos entes em sua essecircncia em

seu sentido e em seu ser Nesta perspectiva se deve dizer que a questatildeo

central da fenomenologia natildeo eacute o ser mas o sentido embora natildeo seja claro

como Husserl interpreta o sentido De qualquer modo ele sempre tematiza

o sentido e natildeo o ser mesmo (PUNTEL 2011 p 305)

Isto se faz atraveacutes do retorno agraves vivecircncias intencionais nas quais os

sentidos vecircm agrave doaccedilatildeo Dessa forma o tema especiacutefico da fenomenologia

eacute a correlatividade entre as ldquoformas de doaccedilatildeordquo dos objetos e os momentos

intencionais das vivecircncias (dos atos intencionais) em suas inuacutemeras

modificaccedilotildees (TUGENDHAT 1967 p 172)2 Numa palavra fenomenologia

eacute anaacutelise da correlaccedilatildeo entre objeto intencional e ato intencional ou seja

trata-se de determinar a partir da intenccedilatildeo o sentido do ldquointendidordquo

Portanto o que temos eacute sempre um objeto num modo determinado de nos

dar-se natildeo haacute objeto sem a mediaccedilatildeo de seu modo de dar-se Fenocircmeno

eacute entatildeo aqui um correlato intencional da consciecircncia (FINK 1976 p 83)

e a subjetividade eacute o princiacutepio da originariedade (FINK 1976 p 91)

Ser eacute entatildeo ser para a consciecircncia esta eacute a tese baacutesica da filosofia

transcendental e natildeo se pode entender o projeto husserliano de filosofia

sem vinculaacute-lo agrave tradiccedilatildeo do pensamento transcendental de Kant e

sobretudo de Fichte3 no giro reflexivo da filosofia na expressatildeo de

2 A respeito do caminho que vai de Bolzano a Husserl cf PORTA (2003 p 85-106)

3 Essa eacute a tese baacutesica de Siemek Cf SIEMEK (2001 p 190 e ss) Cf OLIVEIRA (1973 p 139-220)

16 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Tugendhat (1976 p 16 e ss) aceita e radicalizada por Husserl Isto significa

dizer que o sentido e o ser de qualquer objeto que conservamos enquanto

idecircntico atraveacutes das diferentes formas de consciecircncia se formam atraveacutes

de nossas accedilotildees sinteacuteticas no como de sua doaccedilatildeo isto eacute nos diferentes

tipos de objetualidade (HABERMAS 1984 p 37) Para a postura

fenomenoloacutegica todos os entes abstratos ou concretos reais ou ideais tecircm

seus modos de doaccedilatildeo (HUSSERL 1963 p 169) Numa palavra tudo se

revela na consciecircncia como objeto constituiacutedo por atos constituintes e

portanto a subjetividade emerge como a fonte uacuteltima de toda doaccedilatildeo de

sentido

Husserl rejeita este meacutetodo regressivo natildeo no sentido da pergunta

pelas condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento objetivo mas no sentido

de que esta pergunta no pensamento de Kant natildeo realiza um retorno agrave

intuiccedilatildeo e neste sentido eacute em uacuteltima anaacutelise uma construccedilatildeo atraveacutes de

deduccedilatildeo Com isto todo o procedimento se radica em suposiccedilotildees natildeo

intuiacutedas o que tem como consequecircncia que desta forma natildeo eacute possiacutevel

atingir a autodoaccedilatildeo da subjetividade em seu ser em si ela eacute apenas

ldquoconstruiacutedardquo num pensamento vazio

O grande ausente no pensamento de Kant eacute precisamente a intuiccedilatildeo

que Husserl denomina o ldquoPrinciacutepio dos Princiacutepiosrdquo entendida como a

fonte originaacuteria a evidecircncia fundante de todo conhecimento (HUSSERL

1950 p 25 e STROumlKER 1987 p 1-34) Desta forma a tese central da

fenomenologia eacute que soacute o retorno aos atos intencionais pode produzir

aquela autodoaccedilatildeo em evidecircncia intuitiva que constitui o cerne da

fenomenologia Assim as coisas mesmas natildeo satildeo objetos no sentido de

uma ldquoposiccedilatildeo transcendente de serrdquo mas o que eacute intuiacutedo na satisfaccedilatildeo de

atos intencionais (GADAMER 1987 p 118)

Um confronto com a tese fundamental da fenomenologia a respeito

da forma suprema do dar-se da realidade a noacutes pode iniciar-se com a

criacutetica articulada por E Tugendhat (1976 p 85-87) conhecido eacute para

Husserl precisamente o que nos eacute imediatamente dado Para Tugendhat

justamente nisto se mostra o caraacuteter unilateral da concepccedilatildeo husserliana

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 17

de conhecimento a funccedilatildeo do conceito para o que eacute sensivelmente preacute-

dado perde importacircncia frente ao papel da intuiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que eacute

significado de tal modo que ascensatildeo no conhecimento significa

exclusivamente maior proximidade da coisa e natildeo igualmente aumento

em diferenciaccedilatildeo e distinccedilatildeo

Este preacute-conceito da fenomenologia ou seja de que a simples

presenccedila garante por si mesma o cumprimento uacuteltimo de uma intenccedilatildeo

significante tem para Tugendhat enormes consequecircncias na concepccedilatildeo

husserliana da filosofia Em primeiro lugar isto eacute decisivo para o modelo

de filosofia transcendental que ele articulou e para a concepccedilatildeo da

consciecircncia pura como o campo absoluto precisamente porque o campo

do que se daacute adequadamente Em segundo lugar para a consequecircncia

metoacutedica de que a anaacutelise fenomenoloacutegica se restringe ao que eacute

simplesmente dado intuitivamente na intuiccedilatildeo originaacuteria (HUSSERL

1950 p 52) A natildeo consideraccedilatildeo da questatildeo da determinaccedilatildeo tem como

resultado que o determinado eacute aceito ingenuamente e natildeo eacute considerado

expressamente mas por outro lado ele eacute o ponto de chegada de um

processo de determinaccedilatildeo que se faz atraveacutes de sua relaccedilatildeo agrave forma de seu

dar-se Isto conduz sempre a uma absolutizaccedilatildeo da experiecircncia em

questatildeo

De fato aqui se situa a questatildeo fundamental de confronto com o

pensamento de Husserl e sua proposta de articular a filosofia enquanto

fenomenologia transcendental mesmo na sua formulaccedilatildeo uacuteltima de

filosofia do mundo vivido como o originariamente dado Trata-se para ele

de atingir a dimensatildeo mais originaacuteria do pensamento enquanto tal e esta

eacute para ele a intuiccedilatildeo que se daacute originariamente e que constitui a fonte de

justificaccedilatildeo de todo conhecimento Isso leva segundo E Fink (1976 p 85)

a uma postura ldquointencionalistardquo na concepccedilatildeo do ser e da verdade

enquanto posiccedilatildeo especiacutefica da fenomenologia enquanto filosofia Na

realidade aqui natildeo se articula propriamente uma justificaccedilatildeo mas se

defende a tese de que se trata em uacuteltima instacircncia de um ver de um

mostrar-se a dimensatildeo originaacuteria se mostra daacute-se

18 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Como diz Habermas (1984 p 47-59) em Husserl a intuiccedilatildeo sensiacutevel

serve de modelo para pensar qualquer outro tipo de intuiccedilatildeo possiacutevel pois

aqui aparece em niacutevel elementar o que constitui a intuiccedilatildeo a autodoaccedilatildeo

de um objeto Sua suposiccedilatildeo fundamental eacute que temos na experiecircncia

sensiacutevel acesso intuitivo a algo dado imediata e evidentemente Para E

Fink (1976 p 84) em Husserl a percepccedilatildeo intuitiva constitui de fato o

modo originaacuterio de autodoaccedilatildeo Sua tese eacute que em Husserl isto natildeo

significa um intuicionismo inimigo do pensamento mas defesa do

ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo e do caraacuteter secundaacuterio do pensamento Habermas

aponta para a dificuldade de defesa desta tese do ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo a

partir inclusive de consideraccedilotildees do proacuteprio Husserl (1964) em sua obra

ldquoErfahrung und Urteilrdquo A razatildeo fundamental eacute que em cada intuiccedilatildeo

originaacuteria jaacute estatildeo presentes determinaccedilotildees categoriais o que para ele

significa que o modelo de uma filosofia da consciecircncia tem que ser

substituiacutedo pelo modelo de uma filosofia enquanto teoria centralizada na

linguagem

Que significa isto para a filosofia Em primeiro lugar que depois da

reviravolta linguiacutestica natildeo podemos mais analisar nossa capacidade de

conhecimento independentemente de nossa capacidade de falar e agir uma

vez que noacutes enquanto sujeitos cognoscentes jaacute sempre nos encontramos

no horizonte de nossas praacuteticas no mundo vivido Linguagem e realidade

estatildeo mutuamente imbricadas de tal modo que toda experiecircncia humana

eacute linguisticamente impregnada Com isto supera-se definitivamente o

ldquomito do dadordquo uma vez que mesmo a experiecircncia sensiacutevel jaacute eacute mediada

linguisticamente de tal modo que ela perde a autoridade epistecircmica

daquela instacircncia que nos daria imediatamente a realidade pura Para

Habermas (1984 p 20) foi meacuterito de W Sellars (2003 p 23 ss) em sua

criacutetica ao empirismo do Ciacuterculo de Viena de ter explicitado esta

consequecircncia da reviravolta linguiacutestica

Isto tem como consequecircncia a eliminaccedilatildeo do primado da

intencionalidade e de sua substituiccedilatildeo pelo primado de uma compreensatildeo

linguiacutestica Neste caso a urgecircncia de uma fundamentaccedilatildeo que eacute central na

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 19

filosofia natildeo pode satisfazer-se atraveacutes de uma consideraccedilatildeo

fenomenoloacutegica da histoacuteria da originaccedilatildeo do mundo vivido mas atraveacutes

da acareaccedilatildeo das pretensotildees de validade que levantamos em nossas

praacuteticas simboacutelicas ordinaacuterias Natildeo intuiccedilatildeo mas argumentos eacute o que pode

justificar a aceitaccedilatildeo ou natildeo das pretensotildees de validade e por conseguinte

eacute neste niacutevel que se situa uma teoria filosoacutefica

Em direccedilatildeo semelhante Apel rearticula a filosofia transcendental

claacutessica a partir do diaacutelogo com as filosofias que saiacuteram da reviravolta

linguiacutestica a filosofia analiacutetica e a filosofia hermenecircutica Para ele essa

reviravolta provocou uma transformaccedilatildeo daquilo que constitui a questatildeo

central desta tradiccedilatildeo de pensamento filosoacutefico ou seja a pergunta pelas

condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido Foi nesse contexto que

Tugendhat (1976 p 16) 4 interpretou a reviravolta linguiacutestica como

radicalizaccedilatildeo do movimento do pensamento que constitui o cerne da

filosofia transcendental que ele denomina de ldquoreviravolta reflexivardquo cujo

cerne consiste em dizer que a filosofia natildeo tem como tarefa o

conhecimento direto dos objetos do mundo mas sua especificidade eacute uma

reflexatildeo sobre como os objetos do mundo enquanto tais nos podem ser

dados

Eacute neste sentido estrito que K-O Apel afirma ser a filosofia da

linguagem a nova ldquofilosofia primeirardquo ou seja natildeo uma filosofia primeira

enquanto pergunta pelo ente enquanto tal ou pela estrutura da

consciecircncia transcendental enquanto fundamento do conhecimento

vaacutelido mas uma filosofia primeira agrave altura da consciecircncia criacutetica alcanccedilada

em nossos dias o que neste contexto significa a consciecircncia da

inevitabilidade da mediaccedilatildeo linguiacutestica de nosso acesso ao mundo

Neste sentido eacute que natildeo haacute como diz J McDowell (2005 p 64)

qualquer experiecircncia originaacuteria que esteja fora da esfera conceitual natildeo

haacute uma fronteira exterior para aleacutem da esfera conceitual como ele diz

comentando Wittgenstein

4 ldquoSie konzipiert ihre Fragestellungen nicht in direkter Thematizierung jeweiliger Gegenstaumlnde sondern in der gleichzeitigen Reflexion darauf wie uns diese Gegenstaumlnde gegeben sein koumlnnenwie sie uns zugaumlnglich werdenrdquo

20 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

natildeo existe lacuna ontoloacutegica entre o tipo de coisa que podemos querer dizer

ou de modo geral entre o tipo de coisa em que podemos pensar e o tipo de

coisa que pode ocorrer Quando algueacutem pensa de modo verdadeiro aquilo em

que ele pensa eacute aquilo que ocorre Como o mundo eacute tudo que ocorre (como ele

proacuteprio escrevera) natildeo haacute lacuna entre o pensamento enquanto tal e o

mundo

Natildeo haacute portanto nenhuma lacuna entre o pensamento enquanto tal

e o mundo mas um jogo reciacuteproco entre conceitos e intuiccedilotildees entre

receptividade e espontaneidade (McDOWELL 2005 p 40) o que poreacutem

natildeo nos impede de falar de uma realidade independente que exerce um

controle racional sobre nosso pensamento Isso natildeo significa contudo que

o mundo seja completamente no espaccedilo de um sistema de conceitos

Precisamos de um trabalho longo e paciente o que implica uma obrigaccedilatildeo

permanente de reflexatildeo O importante aqui eacute afirmaccedilatildeo de que a realidade

natildeo estaacute fora da esfera conceitual e a rejeiccedilatildeo do ldquomito do dadordquo significa

precisamente que natildeo existe uma presenccedila pura originaacuteria fora da esfera

conceitual Eacute isto que McDowell chama de ldquoo caraacuteter indelimitado do

conceitualrdquo

A Posiccedilatildeo da Filosofia-Sistemaacutetico-Estrutural de L B Puntel

A questatildeo do papel exercido pela linguagem na filosofia constitui

certamente para L B Puntel uma questatildeo central partindo-se de uma nova

forma de articular a filosofia e suas questotildees que eacute resultado do que se

convencionou denominar de ldquogiro ou reviravolta linguiacutesticardquo da filosofia

(OLIVEIRA 2015) Natildeo se trata aqui de um novo objeto ou um novo campo

de investigaccedilatildeo para uma teoria filosoacutefica mas da filosofia mesma em sua

configuraccedilatildeo teoacuterica Isto significa dizer que a tematizaccedilatildeo da linguagem

natildeo constitui uma disciplina filosoacutefica nova mas sua consideraccedilatildeo faz

parte da tematizaccedilatildeo dos pressupostos irrenunciaacuteveis da articulaccedilatildeo da

filosofia enquanto uma forma de atividade teoacuterica na vida humana jaacute que

o que estaacute em jogo aqui eacute a instacircncia imprescindiacutevel de articulaccedilatildeo de uma

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 21

teoria filosoacutefica sem ela nada eacute dado a uma teoria filosoacutefica o que seria

dizer que a teoria seria inviaacutevel

A tese baacutesica da reviravolta linguiacutestica eacute de que natildeo eacute mais possiacutevel

pensar a filosofia sem a mediaccedilatildeo da linguagem e isto tem consequecircncias

fundamentais em sua articulaccedilatildeo o que se configura como tese da

centralidade da linguagem na filosofia Na proposta da filosofia

sistemaacutetico-estrutural de Puntel (OLIVEIRA 2014 p 190 ss) esta eacute

elucidada no contexto de uma ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo da revoluccedilatildeo

transcendental que caracteriza o pensamento moderno e desemboca

numa filosofia poacutes-transcendental Que significa propriamente isto

Uma filosofia sistemaacutetico-estrutural na proposta de Puntel (2008 p

97 ss) radica-se na concepccedilatildeo fundamental de que filosofia eacute uma

atividade humana que se distingue de outras atividades em razatildeo de seu

objetivo baacutesico isto eacute a elaboraccedilatildeo e a apresentaccedilatildeo de teorias Teoria eacute a

forma de discurso metoacutedico e rigorosamente ordenado que se compotildee de

sentenccedilas puramente declarativas Nesta posiccedilatildeo em oposiccedilatildeo a vaacuterias

propostas hoje existentes a filosofia eacute concebida como um

empreendimento estritamente teoacuterico Esta ldquoatividaderdquo e seu ldquoprodutordquo

tecircm a ver com o ldquomundordquo compreendido como a totalidade ilimitada dos

ldquoobjetosrdquo ou ldquocamposrdquo ou ldquoacircmbitosrdquo a totalidade do que eacute dado na

linguagem

A uniatildeo desses trecircs fatores baacutesicos nos autoriza a falar da ldquodimensatildeo

expositivardquo como sendo o especiacutefico da atividade filosoacutefica Por esta razatildeo

seu primeiro trabalho consiste precisamente no esclarecimento da

dimensatildeo da teoricidade e da explicitaccedilatildeo do conceito de uma teoria

filosoacutefica pela apresentaccedilatildeo de seus componentes irrenunciaacuteveis Numa

palavra sendo a filosofia uma atividade que se efetiva na esfera da

linguagem tendo assim a linguagem como seu pressuposto primeiro

exige-se para o cumprimento de sua tarefa a tematizaccedilatildeo de seus

pressupostos linguiacutesticos o que eacute uma decorrecircncia da reflexividade que

caracteriza a atividade teoacuterica neste niacutevel de sua efetivaccedilatildeo Isto implica

22 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

dizer que uma filosofia deve comeccedilar pela consideraccedilatildeo de sua mediaccedilatildeo

linguiacutestica

Num sentido programaacutetico Puntel elabora uma quase-definiccedilatildeo de

filosofia que serviraacute de fio condutor para toda a exposiccedilatildeo ldquoa filosofia

sistemaacutetico-estrutural eacute a teoria das estruturas universais (mais gerais) do

universo do discurso [universe of discourse] ilimitadordquo (PUNTEL 2008

p 33) ldquoUniverso do discursordquo pode ser explicitado por conceitos mais

determinados do ponto de vista do conteuacutedo como ldquomundordquo ldquouniversordquo

ldquorealidaderdquo e em uacuteltima instacircncia ldquoserrdquo A dimensatildeo do universo do

discurso eacute o dado abrangente dado eacute compreendido aqui como o

ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila portanto algo linguisticamente articulado

precisamente aquilo que eacute dado para ser compreendido ou explicado pela

filosofia seu objeto sua temaacutetica especiacutefica tudo o que eacute candidato a um

tratamento teoacuterico-filosoacutefico

A pretensatildeo proacutepria de qualquer teoria eacute assim compreender um

dado um setor do mundo ou o mundo enquanto tal no caso de uma teoria

filosoacutefica Desta forma eacute tarefa do filoacutesofo sistemaacutetico-estrutural tentar

integrar numa teoria compreensiva todos estes dados que num primeiro

momento emergem justamente como candidatos agrave compreensatildeo como

candidatos agrave teoria Daiacute porque a formaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica

consiste em trabalhar a interconexatildeo entre a dimensatildeo dos dados e a

dimensatildeo das estruturas isto eacute os componentes irrecusaacuteveis da

linguagem enquanto os pressupostos irrenunciaacuteveis para a compreensatildeo

de qualquer dado de tal forma que as estruturas afinal se revelam como

estruturas dos dados e os dados enquanto incluiacutedos na dimensatildeo das

estruturas

Uma pergunta se revela aqui como fundamental Que eacute entatildeo

compreender Que implica o compreender Esta eacute uma questatildeo que

subjaz a todo empreendimento teoacuterico uma vez que compreender um

determinado X constitui a tarefa especiacutefica de qualquer empreendimento

teoacuterico ldquosendo que ldquocompreenderrdquo neste caso eacute um conceito geral para

ldquoentenderrdquo ldquoexplicarrdquo ldquoarticularrdquo (PUNTEL 2008 p 205) O X por sua

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 23

vez designa a coisa a temaacutetica o objeto do compreender o dado em

questatildeo

Neste contexto um procedimento teoacuterico se revela muito produtivo

as diferentes posiccedilotildees filosoacuteficas (PUNTEL 2008 p 206) podem ser

consideradas a partir de como elas pensam a relaccedilatildeo entre o compreender

e a coisa a ser compreendida A pergunta baacutesica aqui eacute entatildeo se o

compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao

contraacuterio De acordo com a primeira posiccedilatildeo (PUNTEL 1990 p 266 ss)

noacutes natildeo criamos produzimos ou constituiacutemos o mundo efetivo mas antes

o encontramos o mundo efetivo nos eacute preacute-dado Isto significa dizer que

apreendemos a realidade sem conceito sem linguagem5 sem teorias o

que segundo esta posiccedilatildeo se mostra em muitas experiecircncias Assim nesta

perspectiva uma coisa eacute a apreensatildeo da realidade outra a sua

compreensatildeo de tal forma que a verdadeira tarefa de uma atividade teoacuterica

consiste em descobrir o mundo em si mesmo aprendecirc-lo descrevecirc-lo e

explicaacute-lo O mundo portanto situa-se fora do conceitual isto constitui o

cerne do que se denomina de ldquorealismordquo

A posiccedilatildeo contraposta (normalmente denominada pelos realistas de

idealista hoje se fala mais de antirrealismo) procura desvelar a

ingenuidade desta primeira posiccedilatildeo ressaltando a mediaccedilatildeo irrecusaacutevel de

um sistema conceitual em toda atividade teoacuterica assim que admitir uma

realidade inteiramente desprovida de esquemas conceituais se mostra

impossiacutevel Realidade mundo universo soacute tecircm sentido no interior de um

esquema conceitual por noacutes articulado Distinguimos os objetos

justamente atraveacutes da introduccedilatildeo deste ou daquele esquema conceitual Jaacute

sempre estamos em relaccedilatildeo com o mundo pela atividade conceitual de tal

modo que fora desta relaccedilatildeo o mundo eacute simplesmente ininteligiacutevel Desta

forma falar de independecircncia do mundo natildeo significa afirmar que ele se

coloque para aleacutem da esfera conceitual

5 Haacute filoacutesofos que distinguem entre significado linguiacutestico e conteuacutedos mentais Cf Miller (2010 p 208) ldquoFiloacutesofos chamam estados mentais tais como crenccedilas desejos vontades intenccedilotildees esperanccedilas e assim por diante de atitudes proposicionais Podemos dizer que enquanto sentenccedilas possuem significado linguiacutestico atitudes proposicionais possuem conteuacutedo mentalrdquo Cf a respeito Branquinho (2006 p 72-78)

24 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Neste contexto McDowell (2005 p 65) estabelece uma distinccedilatildeo

fundamental

Pensamento pode significar o ato de pensar mas pode significar tambeacutem o

conteuacutedo que eacute pensado ndash aquilo que algueacutem pensa6 Ora se quisermos dar o

devido reconhecimento agrave independecircncia da realidade precisamos de uma

coerccedilatildeo exterior ao pensamento e ao juiacutezo entendidos enquanto exerciacutecios de

espontaneidade Esta coerccedilatildeo natildeo precisa vir de um lugar exterior aos

conteuacutedos pensaacuteveis7

Foram aqui apresentadas duas posiccedilotildees extremas que habitualmente

natildeo se articulam desta forma uma vez que as diferentes propostas

filosoacuteficas satildeo normalmente formas mistas portadoras de elementos de

ambas as posturas o que se pode mostrar mesmo no pensamento de Kant

fundamentalmente marcado pela dicotomia radical entre sujeito e objeto

Putnam empenhou-se em caracterizar com rigor a primeira posiccedilatildeo

Ele defende a partir de 1976 a posiccedilatildeo denominada por ele mesmo de

ldquorealismo internordquo que levanta a pretensatildeo de articular uma posiccedilatildeo

intermediaacuteria entre o que ele chama de ldquorealismo metafiacutesicordquo8 da tradiccedilatildeo

e o ldquorelativismordquo muito difundido em nossos dias A primeira o realismo

metafiacutesico (PUTNAM 1996 p 205) eacute o que Moore e Russell teriam

retomado depois de ter sido recusado pelo idealismo moderno de Kant e

Hegel Putnam (1993 p 213) atribui ao proacuteprio Kant a distinccedilatildeo entre

estes dois tipos de realismo

Outros autores falam simplesmente de ldquorealismordquo ou como eacute caso de

Puntel (PUNTEL 1990 p 269) de ldquorealismo transcendenterdquo Para ele

pode-se distinguir aqui duas variantes a) O realismo transcendente

absoluto que afirma existir um uacutenico sistema conceitual correto

considerando os demais como algo puramente subjetivo 2) O realismo

6 Na perspectiva da filosofia sistemaacutetico-estrutural pensamento proposiccedilatildeo e estado-de-coisas satildeo expressotildees sinocircnimas e constituem o ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila Cf Puntel (2008 p 214-216)

7 McDowell (2005 p 73) tambeacutem afirma o seguinte ldquoO objeto de uma experiecircncia [] eacute entendido como parte do mundo pensaacutevel tomado como um todordquo

8A respeito das raiacutezes teoacutericas do realismo metafiacutesico no pensamento de Putnam cf Engel (1994 p 363-364)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 25

transcendente moderado que admite uma pluralidade de sistemas

conceituais e os interpreta como tambeacutem as teorias como diferentes

aproximaccedilotildees ao uacutenico mundo efetivo

Em nossos dias o realismo metafiacutesico para Putnam constitui a tese

especiacutefica dos materialistas9 Sua tese baacutesica eacute que a fiacutesica constitui uma

configuraccedilatildeo de uma teoria verdadeira e acabada da estrutura do mundo

Putnam admite ter sido precisamente esta sua primeira posiccedilatildeo teoacuterica jaacute

que tambeacutem ele defendeu a tese de que as ciecircncias descrevem e explicam

uma realidade inteiramente independente de noacutes Constituiu um

argumento decisivo para ele neste momento o fato de que a transformaccedilatildeo

de significaccedilatildeo dos termos teoacutericos natildeo demanda que se deixe de falar de

uma uacutenica e mesma realidade o que seria impossiacutevel se ela natildeo se situasse

para aleacutem de nossas teorias

O realismo metafiacutesico se fundamenta entatildeo na crenccedila de que haacute

apenas uma teoria verdadeira capaz de expor exaustivamente a estrutura

do mundo como ele eacute em si mesmo independente de noacutes de nossas

concepccedilotildees a seu respeito Numa palavra o realista metafiacutesico afirma que

podemos falar de coisas e pensar nelas como elas satildeo em si mesmas em

sua constituiccedilatildeo intriacutenseca independentemente de nosso espiacuterito de nossa

linguagem de nossas teorias A razatildeo disto eacute a relaccedilatildeo de correspondecircncia

entre as expressotildees de nossa linguagem e certos tipos de entidades

independentes Nesta perspectiva o mundo eacute entendido enquanto a

totalidade invariaacutevel de objetos independentes de nosso espiacuterito de nossa

linguagem de nossas teorias (PUTNAM 1993 p 156) Hoje se defende a

tese de que estas entidades tecircm nos objetos materiais seu paradigma e de

que a correspondecircncia em tela eacute uma relaccedilatildeo causal

Numa palavra o mundo efetivo nos eacute preacute-dado enquanto plenamente

estruturado em si mesmo (ldquoa ready-made worldrdquo expressatildeo sugerida por

N Goodman) e o objetivo fundamental de toda e qualquer atividade

9 Cf Putnam (1996 p 208) ldquoMetaphysics or the enterprise of describing the ldquofurniture of the worldrdquo the ldquothings in themselvesrdquo apart from our conceptual imposition has been rejected by many analytic philosophers (though not as I remarked by Russell) and by all the leading brands of continental philosophy Today apart from relics it is virtually only materialists (or ldquophysicalistsrdquo as they like to call themselves) who continue the traditional enterpriserdquo

26 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

teoacuterica consiste em apresentar o mundo como ele eacute em si mesmo da

maneira mais fiel possiacutevel Putnam denomina esta posiccedilatildeo de

ldquoexternaliacutesticardquo jaacute que sua postura pressupotildee que noacutes podemos dispor do

ldquoponto de vista de Deusrdquo (ldquoGodacutes-Eye Viewrdquo) que teria condiccedilotildees de

alcanccedilar os dois lados do abismo entre linguagem e mundo de tal modo

que fosse possiacutevel comparar linguagem e mundo e decidir se haacute

correspondecircncia entre os dois

Neste caso tornar-se-ia possiacutevel distinguir claramente entre o que

realmente eacute o caso e o que se julga ser o caso (PUTNAM 1990 p 102) Esta

eacute a razatildeo pela qual uma teoria correspondencial da verdade eacute um elemento

essencial desta posiccedilatildeo uma teoria que segundo ele foi contestada por

Kant (PUTNAM 1990 p 92-93) Putnam (1990 p 85) chama a teoria da

correspondecircncia de ldquoteoria da semelhanccedila de relaccedilatildeordquo precisamente por

ela sustentar que a relaccedilatildeo vigente entre nossas representaccedilotildees e os

objetos externos eacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila

Satildeo vaacuterias as razotildees que levaram Putnam a abandonar esta posiccedilatildeo

Puntel (2008 p 480) enumera as trecircs mais importantes 1) A

compreensatildeo de que a crenccedila de que poderiacuteamos dispor de uma

perspectiva de Deus eacute uma presunccedilatildeo e uma ilusatildeo 2) O realismo

metafiacutesico produz uma consequecircncia inadmissiacutevel uma vez que o abismo

entre linguagem (teoria) e mundo eacute insuperaacutevel para seres finitos natildeo se

pode afastar a possibilidade de que mesmo uma teoria ideal por noacutes

elaborada possa enganar-se em relaccedilatildeo ao mundo e isto eacute certamente

ininteligiacutevel 3) O contato com o uacuteltimo Wittgenstein o levou a considerar

o realismo metafiacutesico uma teoria ingecircnua quanto ao sentido que

simplesmente natildeo se sustenta mais

Na perspectiva pragmaacutetica aberta por Wittgenstein a referecircncia a um

jogo de linguagem eacute essencial o que significa dizer que o significado

linguiacutestico natildeo se esgota na esfera da semacircntica Isto conduz agrave afirmaccedilatildeo

da primazia da dimensatildeo pragmaacutetica na linguagem e consequentemente a

uma articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas de forma inteiramente diferente

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 27

Como diz Zilhatildeo (1993 p 204) para descrever a mudanccedila radical de

perspectiva

[hellip] soacute no interior dos jogos de linguagem correspondentes eacute que

determinadas expressotildees mesmo quando apresentam uma estrutura formal

declarativa adquirem o caraacutecter de ldquopensamentosrdquo e ldquoproposiccedilotildeesrdquo isto eacute a

sua simples aparecircncia formal considerada independentemente do uso que

elas tenham num contexto determinado natildeo nos autoriza a classificaacute-las de

acordo com qualquer categoria

No entanto para Puntel a posiccedilatildeo alternativa articulada por Putnam

o ldquorealismo internordquo que eacute uma versatildeo da posiccedilatildeo antirrealista apesar de

ter um aspecto profundamente correto tem tambeacutem uma dimensatildeo

inaceitaacutevel Certamente a tese de que o mundo (a natureza a realidade o

universo as coisas mesmas) existe ou possa existir em absoluta

independecircncia do espiacuterito respectivamente da linguagem enquanto tal se

autodestroacutei em sua enunciaccedilatildeo portanto natildeo eacute inteligiacutevel e por isto

inaceitaacutevel (PUNTEL 1990 p 271-72) Antes de tudo porque

inteligibilidade implica algo conceitual

Na realidade um tal mundo natildeo passa de um constructo

contraditoacuterio por um lado o mundo eacute aceito como algo independente de

qualquer elemento conceitual por outro lado se fala de mundo relaciona-

se com o mundo o que inclui elementos conceituais em muacuteltiplas formas

linguisticamente expressos A Keller defende a tese de que a palavra em

contraposiccedilatildeo a siacutelabas sem sentido caracteriza-se por ser uma sequecircncia

de sons com significado A partir daqui ele justifica a vinculaccedilatildeo entre

ldquoconceito e linguagemrdquo afirmando que jaacute que natildeo existe significado sem

uma sequecircncia de sons pelo menos pensada natildeo existe conceito sem uma

sequecircncia de sons sem palavra nenhum conceito (KELLER 1979 p93)

Esta tese antirrealista eacute para Puntel correta mas insuficiente porque

ele natildeo mostrou em que sentido exatamente a tese de uma realidade

concebida deste modo seria nua O argumento aqui eacute que questotildees a

respeito da dicotomia entre pensamentoatos

constituintesespiacuteritolinguagem e mundonaturezarealidadecoisa

28 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

mesma natildeo podem ser elucidadas sem a referecircncia clara a uma tese

ontoloacutegica central que eacute o pressuposto de qualquer empreendimento

teoacuterico o que possa ser aquela dimensatildeo que habitualmente se denomina

mundorealidadecoisa mesma ela eacute portadora de qualquer forma de uma

estruturaccedilatildeo imanente fundamental ou seja de uma expressabilidade

plena sem a qual a teoria seria privada de sentido

Puntel (2008 p 482) emprega o termo ldquoexpressabilidaderdquo como uma

espeacutecie de foacutermula abreviada de uma seacuterie de termos como

inteligibilidade conceituabilidade compreensibilidade explicabilidade

articulabilidade etc Portanto se o ser enquanto tal eacute expressaacutevel e eacute isto

que todo empreendimento teoacuterico em princiacutepio pressupotildee sob pena de ou

ser autocontraditoacuterio ou natildeo ter sentido entatildeo a esta universalidade

corresponde uma instacircncia de sua expressatildeo igualmente universal uma

instacircncia expressante a linguagem de modo que parafraseando Gadamer

se pode dizer ldquoo ser que pode ser entendido eacute o universo do discursordquo

(PUNTEL 2008 p 526-527) o que implica uma relaccedilatildeo essencial entre o

ser e a linguagem

Em contraposiccedilatildeo ao realismo metafiacutesico a posiccedilatildeo aqui eacute que a

expressabilidade do mundo pressuposta por nossos empreendimentos

teoacutericos natildeo eacute compreensiacutevel sem uma instacircncia que a exprima ou seja a

tese de um ldquomundo nurdquo sem qualquer relaccedilatildeo a algo como linguagem

espiacuterito conceitualidade etc numa palavra a tese de um mundo

enclausurado em si mesmo eacute uma impossibilidade metafiacutesica e por esta

razatildeo ininteligiacutevel

Quando se afirma [] a ldquoindependecircncia absolutardquo do mundo (do universo

etc) isso daacute a impressatildeo de que se estaacute afirmando algo natildeo inteligiacutevel a saber

um ldquomundo natildeo conceitualizadordquo ldquonatildeo estruturadordquo totalmente

incompreendido e incompreensiacutevel situado fora do alcance do compreensiacutevel

do articulaacutevel etc Esta eacute a aporia em que incorre o realista (metafiacutesico)

(PUNTEL 2008 p 498)

Portanto a linguagem diz o mundo ela eacute a instacircncia intransponiacutevel

da expressabilidade do mundo e por isto seu lugar na filosofia eacute

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 29

absolutamente central Partindo das teses da antropologia do iniacutecio do

seacuteculo XX A Keller apresenta esta problemaacutetica afirmando que o ser

humano enquanto ldquoser biologicamente carenterdquo natildeo estaacute contudo preso

por seus instintos a um meio ambiente especiacutefico mas eacute relacionado ao

mundo em seu todo Ele natildeo conhece contudo esta totalidade

simplesmente atraveacutes de um conjunto desordenado de impressotildees mas a

capta atraveacutes de esquemas aprendidos o que se pode denominar a

ldquoestrutura-enquantordquo porque ele sempre capta algo enquanto algo

determinado isto eacute linguisticamente delimitado Daiacute porque para o ser

humano a linguagem eacute tatildeo vitalmente necessaacuteria como o instinto para o

animal (KELLER 1979 p 121 129)

Em segundo lugar para Puntel Putnam como os antirrealistas em

geral sempre afirma que a realidade (o mundo o universo) se refere a

ldquonosso espiacuteritordquo aldquonossa linguagemrdquo Isto significa dizer que a maneira

como o mundo estaacute estruturadodepende da linguagem em que ele se

expressa e essa linguagem para ele eacute sempre ldquonossa linguagemrdquo Desta

forma nem tudo se pode dizer em cada linguagem trata-se aqui de uma

grandeza limitada Nossas visotildees do mundo satildeo sempre diferentemente

relativas agraves nossas diferentes linguagens Eacute por isto afirma Humboldt

(1903a p 14-15) que soacute atraveacutes da linguagem captamos o mundo seus

objetos propriedades e relaccedilotildees e a linguagem eacute sempre um todo uma

estrutura cujas partes devem ser consideradas em seu papel no todo

Realizamos isso no entanto sempre numa linguagem determinada

de uma forma determinada Cada linguagem efetiva uma transformaccedilatildeo

do mundo em linguagem (HUMBOLDT 1903b p 28) articula uma visatildeo

do mundo (Weltansicht) uma concepccedilatildeo peculiar do mundo e de sua

estrutura10 uma ontologia proacutepria Assim se a cultura engendra a

linguagem a linguagem entatildeo eacute frente ao indiviacuteduo uma potecircncia que

determina seu pensamento e sua experiecircncia configurando sua visatildeo do

mundo Desta forma cada linguagem eacute em si mesma uma individualidade

espiritual (HUMBOLDT 1903b p 151) que delimita o caraacuteter nacional de

10 A respeito das questotildees epistemoloacutegicas que marcam essa posiccedilatildeo cf Kutschera (1975 p 332 e ss)

30 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

tal forma que o ser humano natildeo fala como ele fala simplesmente porque

deseja falar assim mas porque tem que falar assim11 Nele a maneira de

falar eacute um constrangimento de sua natureza intelectual (HUMBOLDT

1903b p 127) Na perspectiva da concepccedilatildeo pragmaacutetica contudo nada haacute

aqui de necessaacuterio

[hellip] nada haacute de necessaacuterio no facto de usarmos os nossos sinais do modo como

os usamos isto eacute em vez de uma forma loacutegica que espelha a forma da

realidade a gramaacutetica eacute algo de arbitraacuterio [hellip] Natildeo se pode assim falar de uma

gramaacutetica errada mas tatildeo soacute de uma desadequaccedilatildeo de uma linguagem ou jogo

de linguagem em funccedilatildeo de determinadas necessidades praacuteticas [hellip] na

linguagem tal como no xadrez se seguirmos outras regras gramaticais

estaremos respectivamente ou a dizer outra coisa qualquer noutro sistema de

regras ou a jogar outro jogo (ZILHAtildeO 1993 p 205-206)

Aqui se manifesta uma conexatildeo muacutetua entre pensamento e palavra

(HUMBOLDT 1903a p 27) pensando a partir da consciecircncia Humboldt

defende o caraacuteter inseparaacutevel da consciecircncia e da linguagem humanas

uma vez que a linguagem eacute o oacutergatildeo que estrutura o pensamento Neste

sentido a linguagem natildeo eacute apenas meio de expressatildeo e comunicaccedilatildeo de

conteuacutedos de pensamento portanto de uma verdade jaacute articulada sem ela

mas antes pensamento e linguagem instituem uma unidade indissoluacutevel

(HUMBOLDT 1903b p 22 ss)12

O grande problema aqui e que toca o cerne das filosofias da

subjetividade inclusive as que fizeram a reviravolta linguiacutestica eacute o

seguinte estas afirmaccedilotildees levam a estabelecer a subjetividade como

instacircncia doadora de sentido a tudo A questatildeo se potildee igualmente numa

filosofia pragmaacutetica jaacute que o elemento central da pragmaacutetica (OLIVEIRA

2012 p 87-106) consiste na consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre linguagem e

falantes ou da linguagem na perspectiva da maneira como os falantes a

usam o que significa que aqui eacute determinante a accedilatildeo dos falantes Nesse

11 Uma tese que foi desenvolvida por Sapir (1929 p 209) ldquoHuman beings do not live in the objective world alone not alone in the world of social activity as ordinarily understood but are very much at the mercy of the particular language which has become the medium of expression for their societyrdquo

12 Cf Sellars (1973 p 82) ldquoThinking at the distinctly human level [hellip] is essentially verbal activityrdquo

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 31

sentido a passagem da subjetividade para a intersubjetividade proposta

como mudanccedila de paradigma na realidade natildeo resulta na superaccedilatildeo do

caraacuteter determinante da subjetividade na filosofia ou seja da postura em

que a subjetividade eacute a instacircncia teoacuterica que determina tudo

Ora noacutes somos entes puramente contingentes entatildeo

inevitavelmente se levanta a questatildeo ldquoComo poderiam entatildeo os lsquoentes

humanosrsquo (mesmo em sua totalidade como quer que esta seja pensada)

ser tomados como lsquoparacircmetrorsquo para o que eacute o mundordquo (PUNTEL 2008

p 482-483) Como nesta postura natildeo se pode falar de forma coerente do

grande mundo uma soluccedilatildeo razoaacutevel poderia ser reduzir a grande

dimensatildeo do mundo ao nosso mundo entendido como nosso mundo

vivido com a consequecircncia de ter que avaliar como sem sentido ou como

ficccedilatildeo tudo aquilo que natildeo for compatiacutevel com este mundo como por

exemplo muito do que eacute elaborado pelas ciecircncias

A implausibilidade desta posiccedilatildeo aponta para a verdadeira questatildeo

neste contexto como entender a linguagem (espiacuterito) a fim de que se

legitime a afirmaccedilatildeo de que natildeo tem sentido falar de um mundo sem

nenhuma relaccedilatildeo a ela Esta eacute a questatildeo irrefutaacutevel em primeiro lugar

para a articulaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica precisamente enquanto uma

atividade teoacuterica Numa palavra trata-se antes de tudo da determinaccedilatildeo

de um criteacuterio universal de teoricidade e justamente de um criteacuterio

linguiacutestico pois a linguagem eacute o primeiro pressuposto de uma teoria que

se compotildee de sentenccedilas especificamente de sentenccedilas teoacutericas em

segundo lugar para o enfrentamento da questatildeo do lugar central atribuiacutedo

agrave subjetividade pela filosofia moderna A resposta a esta questatildeo implica

uma virada no pensamento moderno que vai justificar falar de uma

despontencializaccedilatildeo da subjetividade

A primeira etapa nesta direccedilatildeo consiste para Puntel na diferenciaccedilatildeo

entre duas formas diferentes de compreensatildeo da linguagem Quando

familiarmente nos referimos a signos linguiacutesticos entatildeo o ser humano

com sua histoacuteria obras e contingecircncias se revela seu autor e nesta

32 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

perspectiva haacute razatildeo para falar de ldquonossardquo linguagem uma vez que sem o

ser humano natildeo se pode falar de siacutembolos linguiacutesticos bem determinados

Eacute justamente nesse sentido que A Keller (1979 p 42) entende a

linguagem como um sistema de formas de proferimentos produzido pelo

ser humano que para expressar-se para entender-se para organizar seus

conhecimentos e comunicaacute-los e para defrontar-se de diferentes formas

com a realidade Numa palavra na medida em que a linguagem se

constitui de siacutembolos linguiacutesticos assim compreendidos ela eacute uma

produccedilatildeo histoacuterico-contingente de sujeitos humanos de tal forma que a

referecircncia a estes sujeitos eacute ineliminaacutevel Nisto tecircm razatildeo os pragmaacuteticos

aqui a accedilatildeo humana eacute simplesmente decisiva ldquoisto eacute o modo particular

atraveacutes do qual intervimos na realidaderdquo (ZILHAtildeO 1993 p 207) embora

se deva afirmar tambeacutem como o faz Kutschera que a linguagem eacute natildeo soacute

uma criaccedilatildeo da comunidade e da cultura humanas mas igualmente sua

condiccedilatildeo de possibilidade Nela com uma quantidade finita de expressotildees

e uma quantidade finita de regras gramaticais pode-se comunicar uma

quantidade infinita de informaccedilotildees que possibilitam a forma determinada

de comunicaccedilatildeo que gera a comunidade e a cultura A linguagem eacute assim

a pressuposiccedilatildeo da qualidade especificamente humana de uma

comunidade (KUTSCHERA 1998 p 105 ss)

No entanto a linguagem entendida no sentido maximal ou seja

como linguagem absolutamente universal natildeo eacute um produto humano

mas jaacute estaacute dada com o mundo entendido como ser em seu todo Ela eacute a

instacircncia da expressabilidade universal enquanto esfera correlata agrave

expressabilidade do ser enquanto tal

ldquoexpressabilidaderdquo eacute uma relaccedilatildeo que soacute eacute explicaacutevel e desse modo

compreensiacutevel se tambeacutem seu reverso for reconhecido X eacute expressaacutevel se e

somente se houver um Y que eacute a instacircncia expressante de X [hellip] a

expressabilidade universal do mundo tem como pressuposto ou [hellip] como

implicaccedilatildeo uma instacircncia expressante universal [hellip] uma linguagem

(PUNTEL 2008 p 501)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 33

Isto significa dizer que o relacionamento com a realidade soacute ocorre

linguisticamente Numa palavra a expressabilidade universal implica uma

instacircncia expressante universal uma linguagem universal que

consequentemente tem que ter um caraacuteter diferente da ldquonossardquo

linguagem Neste sentido ela natildeo eacute um produto humano puramente

contingente mas uma estruturalidade imanente ou seja um momento

estrutural do mundo entendido como ser em seu todo e dessa maneira ela

jaacute estaacute dada com o mundo em sentido do todo da realidade Enquanto tal

ela eacute um sistema semioacutetico objetivo (PUNTEL 1990 p 135)

O ser na medida em que eacute expressaacutevel enquanto tal possui uma

relaccedilatildeo imanente essencial com a linguagem que eacute precisamente a

instacircncia correlata a esta expressabilidade universal uma caracteriacutestica

imanente do ser em si mesmo Neste contexto linguagem eacute entendida

como um sistema semioacutetico abstrato que conteacutem uma quantidade

inumeraacutevel de expressotildees Este eacute para Puntel o ldquolocus originariusrdquo da

compreensatildeo da linguagem ou melhor da linguisticidade Ele denomina

por esta razatildeo a linguagem assim entendida como ldquolinguagem originaacuteriardquo

e eacute ela que ocupa a posiccedilatildeo primordial na filosofia

Assim a linguagem enquanto linguisticidade do ser enquanto tal eacute a

linguagem absolutamente universal e designa precisamente o lado inverso

da expressabilidade universal do ser em seu todo Esta linguagem assim

entendida eacute coextensiva ao ser em seu todo pois o mundo (o universo o

ser) em seu todo eacute expressaacutevel o pressuposto ineliminaacutevel de qualquer

passo teoacuterico Nada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser articulado em

forma de linguagem

Neste sentido a expressabilidade eacute um momento estrutural imanente

do mundoe desse modo coextensional com o mundo como o eacute

consequentemente a linguagem Isso significa dizer que todo conteuacutedo

conceitual eacute articulado no seio da linguagem e eacute precisamente nesse

sentido que a linguagem emerge como meio indispensaacutevel da expressatildeo

ou da exposiccedilatildeo no sentido de que conteuacutedos conceituais natildeo existem sem

sua articulaccedilatildeo linguiacutestica

34 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

[hellip] linguagem constitui meio indispensaacutevel da expressatildeo ou exposiccedilatildeo no

seguinte sentido se compreendidos adequada e rigorosamente os assim

chamados ldquoconteuacutedos conceituaisrdquo natildeo existem sem sua articulaccedilatildeo (ou

articulabilidade) linguiacutestica (PUNTEL 2008 p 226)

Eacute nessa oacutetica que tem sentido a afirmaccedilatildeo de Kutschera articulada na

linguagem da semacircntica e da ontologia composicionais natildeo conhecemos

o mundo primeiro no pensamento e depois exprimimos o conhecido na

linguagem mas captamos a realidade os objetos suas diferenccedilas

propriedades e relaccedilotildees em forma linguiacutestica Pensamento e linguagem se

desenvolvem sempre juntos os pensamentos soacute se exprimem em forma

linguiacutestica A linguagem eacute o ldquomeacutediumrdquo do pensamento (KUTSCHERA

1998 p 111) Uma consequecircncia primeira fundamental aqui eacute que eacute na

articulaccedilatildeo linguiacutestica que eacute possiacutevel apreender o que eacute o conteuacutedo

conceitual como ele eacute estruturado

Quando se entende poreacutem linguagem como siacutembolos linguiacutesticos

entra em jogo o ser humano com sua histoacuteria ou seja aqui a linguagem eacute

produccedilatildeo humana e eacute isto que explica a contingecircncia histoacuterica dessas

linguagens13 Ela entatildeo se revela como a pressuposiccedilatildeo na expressatildeo de

V Kutschera (1998 p 113) de todas as nossas produccedilotildees culturais de

nossa autocompreensatildeo de nossa autoconsciecircncia e de nosso pensamento

Mas quando se leva em consideraccedilatildeo a estruturalidade semacircntico-

ontoloacutegica da linguagem entatildeo ela eacute o resultado da expressabilidade da

proacutepria realidade e ldquofalantes e sujeitos satildeo determinados e entendidos a

partir da linguagem e natildeo a linguagem a partir dos falantes ou sujeitosrdquo

(PUNTEL 2008 p 130)

Entendendo assim a linguagem no sentido maximal ou seja como

um sistema semioacutetico composto de uma quantidade infinita natildeo

enumeraacutevel de expressotildees isto eacute quando a linguagem eacute entendida como

13 Cf Zilhatildeo (1993 p 206) ldquoA analogia adequada que nos permite compreender a ligaccedilatildeo que Wittgenstein entendia existir entre linguagem ou pensamento e mundo eacute-nos dada pela consideraccedilatildeo das ferramentas que usamos Se soubermos olhar para elas poderemos ficar a saber tudo o que haacute para saber tanto acerca da lsquoformarsquo do mundo como do comportamento e da vida de quem as usa [hellip]rdquo

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 35

o reverso da expressabilidade do mundo entatildeo a fala sobre o mundo (a

realidade) a partir do interior da linguagem de nenhuma forma implica

sua reduccedilatildeo ao mundo da nossa linguagem e com isto cai tambeacutem por

terra a dicotomia ldquoem si e para noacutesrdquo Uma primeira consequecircncia desta

tese eacute que natildeo pode haver entidades excluiacutedas da dimensatildeo da linguagem

pois isto implicaria que tais entidades natildeo seriam expressaacuteveis Assim a

quantidade de sentenccedilas deve corresponder pelo menos ao nuacutemero de

entidades ou de fatos do mundo

O caraacuteter unilateral da posiccedilatildeo antirrealista se mostra justamente

nareduccedilatildeo da linguagem a uma criaccedilatildeo humana e consequentemente agrave

ldquonossa linguagemrdquo no desconhecimento total da linguagem maximal ou

absolutamente universal Isto significa dizer que falta aqui uma visatildeo para

o ldquotodordquo do fenocircmeno da linguagem e consequentemente a compreensatildeo

de que ldquonossardquo linguagem eacute apenas um segmento de uma linguagem

muito mais abrangente ou seja de um sistema semioacutetico composto de

uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees que eacute o ldquoinversordquo

da expressabilidade universal do ser em seu todo Nesse sentido a

linguagem possui um poder de expressatildeo muitiacutessimo maior do que a

linguagem entendida como sistema semioacutetico de comunicaccedilatildeo

Na consideraccedilatildeo da linguagem maximal a referecircncia agrave subjetividade

se torna simplesmente supeacuterflua uma tese que Apel (1973 p 240 ss) jaacute vecirc

presente na posiccedilatildeo de Wittgenstein Ele defende a tese de que o Tractatus

de Wittgenstein eacute uma filosofia transcendental sem sujeito uma vez que

Wittgenstein identifica o sujeito com a operaccedilatildeo formal constitutiva da

linguagem Com isto a referecircncia ao sujeito se torna supeacuterflua Em

contraposiccedilatildeo a esta posiccedilatildeo Apel defende a tese do caraacuteter irrecusaacutevel

pelo menos implicitamente de uma autorreferecircncia da linguagem a si

mesma que eacute depois da reviravolta linguiacutestica a nova forma de auto-

reflexividade Com isto se daacute a referecircncia a um sujeito individual como

suporte da forma loacutegica a fim de que ela possa exercer sua funccedilatildeo

transcendental Portanto a referecircncia ao sujeito eacute ineliminaacutevel

36 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Puntel (2008 p 129) denomina a linguagem maximal que de

nenhuma forma eacute tematizada pelas diferentes formas de filosofia

antirrealista como a de Apel de originaacuteria ou antes o ldquolocus originariusrdquo

de compreensatildeo da linguagem ldquono sentido de sistema semioacutetico que se

baseia na ideia da expressabilidade universal do mundo (do universo do

ser)rdquo Neste contexto uma observaccedilatildeo eacute absolutamente fundamental

a linguagem filosoacutefica e cientiacutefica infinita natildeo enumeraacutevel natildeo eacute compreendida

como se fosse uma grandeza ldquomanipulaacutevelrdquo ela eacute antes uma espeacutecie de ideia

reguladora ou emolduradora em qualquer caso uma assunccedilatildeo metafiacutesica cuja

funccedilatildeo principal consiste em desempenhar um importante papel explanatoacuterio

(PUNTEL 2008 p 522)

Uma pergunta que emerge neste contexto inevitavelmente eacute o que eacute

mesmo essa linguagem maximal essa linguagem universal Para Puntel

(2008 p 527) se tem que dizer em primeiro lugar que ela por um lado

natildeo existe em lugar algum mas por outro lado existe em toda parte no

sentido de que ldquonada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser lsquoarticulado em

forma de linguagemrsquordquo Ocorre que o falante escolhe um certo ldquosegmentordquo

desta linguagem para se adequar a seus objetivos poreacutem este segmento

de nenhuma forma se identifica simplesmente com a totalidade da

linguagem o que tambeacutem vale para uma linguagem artificial que conteacutem

uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees direcionadas ao

objetivo da exposiccedilatildeo e natildeo da comunicaccedilatildeo Eacute esta a razatildeo porque se fala

aqui de linguagem maximal e ela natildeo soacute constitui o lugar originaacuterio da

compreensatildeo da linguagem mas soacute a partir daqui se pode compreender

adequadamente o que significa propriamente falar de centralidade da

linguagem na filosofia

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2

Encheiriacutedion Capiacutetulo I

Traduccedilotildees e Comentaacuterios

Aldo Dinucci 1

Alfredo Julien 2

Antonio Carlos Tarquiacutenio 3

O Encheiriacutedion termo que em grego significa ldquoadaga punhal arma

portaacutetil ou livro portaacutetil manualrdquo foi composto por Luacutecio Flaacutevio Arriano

de Nicomeacutedia4 tomando por base suas compilaccedilotildees das aulas de Epicteto

Consistindo em um conjunto de apotegmas para que o seguidor do

Estoicismo tenha sempre ao alcance da matildeo os princiacutepios para enfrentar

as dificuldades da vida e vencecirc-las o Encheiriacutedion tornou ceacutelebre o nome

de Epicteto Seguem breves mas importantes traduccedilotildees e comentaacuterios

sobre o primeiro capiacutetulo do Encheiriacutedion de Epicteto A primeira traduccedilatildeo

comentada foi realizada por Aldo Dinucci e Alfredo Julien pesquisadores

que dedicaram alguns anos agrave traduccedilatildeo da obra culminando com uma

ediccedilatildeo em Coimbra da mesma pelos Classica Digitalia A segunda por

Antonio Carlos Tarquiacutenio filoacutesofo radicado em Satildeo Paulo que tem se

dedicado intensamente nas uacuteltimas deacutecadas ao estudo de Epicteto

publicando em 2017 o livro Uma filosofia do desapego a askesis de

desapropriaccedilatildeo epictetiana agrave luz da katharsis do Feacutedon de Platatildeo resultado

1 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

2 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (USP)

3 Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)

4 Ca 86-160

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 41

de suas pesquisas de doutorado sobre o velho de Nicoacutepolis Imediatamente

abaixo temos o texto em grego estabelecido pela primeira vez por Boter

em 1999

[11] Τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ ἡμῖν τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἐφ ἡμῖν μὲν

ὑπόληψις ὁρμή ὄρεξις ἔκκλισις καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα ἡμέτερα ἔργα οὐκ ἐφ

ἡμῖν δὲ τὸ σῶμα ἡ κτῆσις δόξαι ἀρχαὶ καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα οὐχ ἡμέτερα

ἔργα[12]καὶ τὰ μὲν ἐφ ἡμῖν ἐστι φύσει ἐλεύθερα ἀκώλυτα παραπόδιστα

τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀσθενῆ δοῦλα κωλυτά ἀλλότρια[13] μέμνησο οὖν ὅτι

ἐὰν τὰ φύσει δοῦλα ἐλεύθερα οἰηθῇς καὶ τὰ ἀλλότρια ἴδια ἐμποδισθήσῃ

πενθήσεις ταραχθήσῃ μέμψῃ καὶ θεοὺς καὶ ἀνθρώπους ἐὰν δὲ τὸ σὸν

μόνον οἰηθῇς σὸν εἶναι τὸ δὲ ἀλλότριον ὥσπερ ἐστίν ἀλλότριον οὐδείς σε

ἀναγκάσει οὐδέποτε οὐδείς σε κωλύσει οὐ μέμψῃ οὐδένα οὐκ ἐγκαλέσεις

τινί ἄκων πράξεις οὐδὲ ἕν οὐδείς σε βλάψει ἐχθρὸν οὐχ ἕξεις οὐδὲ γὰρ

βλαβερόν τι πείσῃ [14] τηλικούτων οὖν ἐφιέμενος μέμνησο ὅτι οὐ δεῖ

μετρίως κεκινημένον ἅπτεσθαι αὐτῶν ἀλλὰ τὰ μὲν ἀφιέναι παντελῶς τὰ δ

ὑπερτίθεσθαι πρὸς τὸ παρόν ἐὰν δὲ καὶ ταῦτ ἐθέλῃς καὶ ἄρχειν καὶ

πλουτεῖν τυχὸν μὲν οὐδ αὐτῶν τούτων τεύξῃ διὰ τὸ καὶ τῶν προτέρων

ἐφίεσθαι πάντως γε μὴν ἐκείνων ἀποτεύξη δι ὧν μόνων ἐλευθερία καὶ

εὐδαιμονία περιγίνεται [15] εὐθὺς οὖν πάσῃ φαντασίᾳ τραχείᾳ μελέτα

ἐπιλέγειν ὅτι lsquoφαντασία εἶ καὶ οὐ πάντως τὸ φαινόμενονrsquo ἔπειτα ἐξέταζε

αὐτὴν καὶ δοκίμαζε τοῖς κανόσι τούτοις οἷς ἔχεις πρώτῳ δὲ τούτῳ καὶ

μάλιστα πότερον περὶ τὰ ἐφ ἡμῖν ἐστιν ἢ περὶ τὰ οὐκ ἐφ ἡμῖν κἂν περί τι

τῶν οὐκ ἐφ ἡμῖν ᾖ πρόχειρον ἔστω τὸ διότι lsquoοὐδὲν πρὸς ἐμέrsquo

Encheiriacutedion Capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Aldo Dinucci e

Alfredo Julien)

[11] Das coisas existentes algumas satildeo encargos nossos outras natildeo Satildeo

encargos nossos o juiacutezo o impulso o desejo a repulsa ndash em suma tudo quanto

seja accedilatildeo nossa Natildeo satildeo encargos nossos o corpo as posses a reputaccedilatildeo os

cargos puacuteblicos ndash em suma tudo quanto natildeo seja accedilatildeo nossa [12] Por

natureza as coisas que satildeo encargos nossos satildeo livres5 desobstruiacutedas6 sem

5 Eleutheros livre por oposiccedilatildeo a escravo Para Epicteto quem deseja o que natildeo eacute encargo seu necessariamente torna-se escravo pois voluntariamente submete-se aos que podem proporcionar-lhe ou impedir-lhe o acesso agrave coisa desejada (cf Diatribes I 419)

6 Akolytos adjetivo verbal de privaccedilatildeo da accedilatildeo relacionada ao verbo kolyo que significa ldquoafastar desviarrdquo adquirindo o sentido de ldquoimpedirrdquo Bailly (2000) apresenta o substantivo neutro to kolyon com o significado de ldquoobstaacuteculordquo

42 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

entraves7 As que natildeo satildeo encargos nossos satildeo deacutebeis8 escravas obstruiacutedas9

de outrem10 [13] Lembra entatildeo que se pensares11 livres as coisas escravas por

natureza e tuas as de outrem tu te faraacutes entraves12 tu te afligiraacutes13 tu te

inquietaraacutes14 censuraraacutes tanto os deuses como os homens Mas se pensares

teu unicamente o que eacute teu e o que eacute de outrem como o eacute de outrem ningueacutem

jamais te constrangeraacute15 ningueacutem te faraacute obstaacuteculos natildeo censuraraacutes

ningueacutem nem acusaraacutes quem quer que seja de modo algum agiraacutes

constrangido ningueacutem te causaraacute dano natildeo teraacutes inimigos pois natildeo seraacutes

persuadido em relaccedilatildeo a nada nocivo [14] Entatildeo almejando coisas de

tamanha importacircncia lembra que eacute preciso que natildeo te empenhes de modo

comedido mas que abandones completamente algumas coisas e por ora

deixes outras para depois Mas se quiseres aquelas coisas e tambeacutem ter cargos

e ser rico talvez natildeo obtenhas estas duas uacuteltimas por tambeacutem buscar as

primeiras e absolutamente natildeo atingiraacutes aquelas coisas por meio das

quaisunicamente resultam a liberdade e a felicidade16 [15] Entatildeo pratica dizer

prontamente a toda representaccedilatildeo bruta17 ldquoEacutes representaccedilatildeo e de modo

algum lteacutesgt o que se afigurardquo18 Em seguida examina-a e testa-a com essas

mesmas regras que possuis em primeiro lugar e principalmente se eacute sobre

ldquoimpedimentordquo Assim a-kolytos refere-se a algo para o que natildeo haacute impedimento quanto agrave sua obtenccedilatildeo sendo portanto ldquodesimpedidordquo

7 Aparapodistos optamos traduzir o termo por ldquosem entravesrdquo pois trata-se de um adjetivo verbal que nega a accedilatildeo relacionada ao verbo podizo que significa ldquosujeitar os peacutes com travasrdquo referindo-se principalmente a armadilhas para animais Cf o substantivo feminino podistra que pode significar tanto ldquoarmadilha que prende pelos peacutesrdquo (Antologia Palatina 6 107) quanto ldquoteia de aranhardquo (Antologia Palatina 9 372)

8 Asthene privado de forccedila no sentido de ldquoforccedila fiacutesica vigorrdquo

9 Kolytos Cf nota acima sobre akolutos

10 Arriano assim relaciona os adjetivos empregados para qualificar o que eacute encargo nosso e o que natildeo eacute o que eacute encargo nosso eacute livre desobstruiacutedo sem entraves o que natildeo eacute encargo nosso eacute deacutebil escravo de outrem

11 Oio ldquopensarrdquo no sentido de ldquopresumirrdquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute ldquopressentir crer estimarrdquo

12 Empodizo significa literalmente ldquometer os peacutes em uma armadilhardquo

13 Pentheo verbo relacionado ao substantivo to penthos que siginifica ldquodor afliccedilatildeordquo

14 Tarasso significa primariamente ldquoremexerrdquo ldquoagitarrdquo no sentido concreto de preparar um medicamento agitando os ingredientes que o compotildeem

15 Anankazo ldquoforccedilarrdquo ldquoconstrangerrdquo

16 Felicidade traduz eudaimoniacutea No contexto do paganismo grego daimoniacuteos eacute um adjetivo que qualifica tudo o que proveacutem da divindade ou eacute enviado por um deus Associado ao prefixo ldquoeṷrdquo (ldquobemrdquo no sentido de coisas boas) esse vocaacutebulo tem significaccedilatildeo proacutexima agrave de ldquobem-aventuranccedilardquo na acepccedilatildeo cristatilde

17 Trata-se do adjetivo trachys apresentado por Bailly (2000) com o significado de ldquoruderdquo adquirindo diversos sentidos dependendo do substantivo ao qual esteja ligado ldquoAacutesperordquo ao se tratar de uma pedra ldquopedregosordquo ao se referir a um rio ou a um terreno ldquoroucardquo ao qualificar um tipo voz ldquogrosseiro duro cruel violento e irasciacutevelrdquo ao se referir ao comportamento de algueacutem Simpliacutecio (Comentaacuterio ao Encheiriacutedion de Epicteto V 15) observa que tal representaccedilatildeo eacute chamada tracheiacutea (dura bruta) por ser contraacuteria agrave razatildeo tornando ldquoaacutesperardquo a vida Oldfather (2000) e White (1983) traduzem esse adjetivo por ldquoharshrdquo Gourinat (1998) por ldquopeacuteniblerdquo Garciacutea (1995) por ldquobrutardquo

18 Phainoacutemenon ldquoo que estaacute se manifestando ou se mostrandordquo particiacutepio presente meacutedio do verbo phaaino

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 43

coisas que satildeo encargos nossos ou natildeo E caso esteja entre as coisas que natildeo

sejam encargos nossos tem agrave matildeo que ldquoNada eacute para mimrdquo

A expressatildeo ephi hemin que ora traduzimos por ldquosob nosso encargordquo

ou ldquoencargo nossordquo natildeo possui equivalente direto que possa dar conta de

seu significado Literalmente poderiacuteamos traduzi-la por ldquoalgumas coisas

estatildeo sobre noacutes outras natildeordquo Henrique Murachco traduz expressatildeo

semelhante (to epi emoi) por ldquono que estaacute sobre mimrdquo no sentido ldquode

quanto a mimrdquo ldquono que me concernerdquo (2001 p 573) No caso do

Encheiridion de Epicteto a traduccedilatildeo poderia ser ldquoalgumas coisas nos

concernem outras natildeordquo Bailly (2000) citando a mesma expressatildeo

acentua a ideia de dependecircncia e de poder que ela expressa traduzindo-a

por ldquoautant qursquoil est em mon pouvoirrdquo enfatizando assim a ideia de

controle (cf Xenofonte Ciropeacutedia 54 11) A expressatildeo possui imagem

concreta e clara referindo-se a algo que eacute colocado sobre noacutes sustentado

por noacutes pois nos encontramos embaixo fornecendo seu apoio A opccedilatildeo

por ldquoencargo nossordquo acentua a ideia de responsabilidade que temos quanto

a isso que estaacute sobre noacutes (e do que somos a causa primaacuteria)

A expressatildeo eacute diferentemente vertida por diferentes tradutores

Oldfather a traduz por ldquothings under our controlrdquo (2000) White por

ldquowhat is up to usrdquo (1983) Gourinat por ldquochoses qui deacutependent de nousrdquo

(1998)

Como dissemos epi expressa uma relaccedilatildeo de dependecircncia Satildeo

portanto coisas que dependem de noacutes Como Epicteto diraacute na continuaccedilatildeo

do texto eacute preciso que nos concentremos sobre as coisas que estatildeo sob

nosso controle em trecircs sentidos Em relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo (phantasia)

retirando dela todo juiacutezo (hypolepsis) equivocado a partir da

compreensatildeo de que nada que natildeo depende de noacutes eacute por si mesmo um

bem ou um mal Em relaccedilatildeo ao impulso (horme) uma vez cientes de que

produzimos nosso bem e nosso mal eacute preciso moderar os impulsos e

encontrar o modo de agir segundo a natureza Em relaccedilatildeo ao desejo

(orexis) e agrave repulsa (ekklisis) partindo mais uma vez da compreensatildeo de

que nada externo eacute por si soacute um bem ou um mal eacute preciso que o desejo e

44 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

a repulsa se apliquem natildeo mais agraves coisas que natildeo dependem de noacutes

(sendo-nos necessaacuterio desejaacute-las como satildeo) mas agraves coisas que estatildeo sob

nosso controle

Traduzimos por juiacutezo o vocaacutebulo grego hypolepsis que eacute substantivo

relacionado ao verbo hypolambano que expressa a ideia de sucessatildeo e de

substituiccedilatildeo adquirindo os sentidos de ldquoreacuteplica resposta concepccedilatildeo e

pensamentordquo O vocaacutebulo ldquojuiacutezordquo empregado aqui para traduzir essa

noccedilatildeo deve ser entendido como um parecer ou uma opiniatildeo que orienta

nossa conduta diante de um acontecimento que se nos apresenta Vale a

pena ressaltar que no contexto deste capiacutetulo o vocaacutebulo estaacute associado

ao verbo oiocedil traduzido aqui por ldquopensarrdquo No capiacutetulo 20 do Encheiriacutedion

apresenta-se uma associaccedilatildeo clara entre hypolepsis e dogma (opiniatildeo) No

capiacutetulo 5 apresenta-se tambeacutem uma associaccedilatildeo entre dogma (opiniatildeo) e

phantasiacutea (representaccedilatildeo) por meio do verbo phainomai (afigurar-se) Eacute

interessante notar que o juiacutezo nesses exemplos envolve a ponderaccedilatildeo ndash

como a consideraccedilatildeo sobre se algo eacute livre ou escravo - mas tambeacutem

sentimentos relacionados agraves nossas recusas medos e desejos Oldfather

(2000) traduz hypolepsis por ldquoconceptionrdquo White (1993) por ldquoopinionrdquo

Gourinat (1998) por ldquojugementrdquo e Garciacutea (1995) por ldquojuiciordquo

A noccedilatildeo de phantasiacutea que ora traduzimos por representaccedilatildeo eacute de

fundamental importacircncia para a compreensatildeo da filosofia estoica por

relacionar-se tanto a questotildees loacutegicas quanto epistemoloacutegicas e eacuteticas

Embora tanto Cleanto quanto Crisipo considerem a phantasiacutea uma

modificaccedilatildeo da faculdade diretriz eles divergem ao explicar essa mudanccedila

Para Lesses (1998 p 6) Crisipo parece criticar Cleanto por aceitar uma

concepccedilatildeo ingecircnua de representaccedilatildeo mental segundo a qual as phantasiacuteai

perceptivas satildeo coacutepias de qualidades que os objetos representados

possuem (cf Dioacutegenes Laeacutercio 7504) Aleacutem disso Annas (1991 p 74-75)

compreende estar implicado nas observaccedilotildees de Crisipo que as phantasiacuteai

satildeo proposicionais ou articulaacuteveis em forma linguiacutestica Ora quanto agraves

alternativas para traduzirmos o termo phantasiacutea parece-nos que

impressatildeo estaacute mais proacuteximo de Cleanto que de Crisipo pois a metaacutefora

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 45

utilizada por Cleanto para introduzir o conceito em questatildeo eacute justamente

agrave da impressatildeo sobre a cera metaacutefora que eacute criticada por Crisipo por seu

caraacuteter imageacutetico A concepccedilatildeo de Crisipo sobre a phantasiacutea ndash adotada

desde entatildeo pelo Estoicismo ndash eacute que ela tem duas facetas uma sensiacutevel

(pois como dissemos trata-se de uma modificaccedilatildeo da faculdade diretriz)

e outra virtual (pois a essa modificaccedilatildeo eacute afixado um juiacutezo que descreve e

avalia aquilo que efetuou a modificaccedilatildeo) Assim sendo parece-nos que a

palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo (que possui de acordo com o Aureacutelio o sentido

filosoacutefico geral de ldquoconteuacutedo concreto apreendido pelos sentidos pela

imaginaccedilatildeo pela memoacuteria ou pelo pensamentordquo) serve para o nosso

propoacutesito e por ela traduziremos phantasiacutea

Traduzimos por lsquoimpulsorsquo o termo grego horme que eacute substantivo

relacionado ao verbo ornumi (ldquolevantar-serdquo) designando o primeiro bote

de um assalto ou ataque adquirindo os sentidos de elatilde e de impulso Entre

as traduccedilotildees consultadas para este trabalho a uacutenica exceccedilatildeo a ldquoimpulsordquo

como vocaacutebulo para traduzir horme eacute a opccedilatildeo de Oldfather (2000) que

emprega ldquochoicerdquo (ldquoescolhardquo) Horme deve ser entendido no contexto do

pensamento epictetiano como o iacutempeto para a accedilatildeo a tendecircncia para agir

desta ou daquela maneira diante de determinada coisa

Traduzimos por lsquodesejorsquo o termo grego orexis que eacute o nome da accedilatildeo

do verbo orego que apresenta o significado de ldquoestender ou tender na

direccedilatildeo de algordquo (por exemplo estender as matildeos para o ceacuteu ou para pedir

algo a algueacutem) de onde ldquodesejordquo ldquoapetiterdquo Eacute uma palavra difiacutecil para ser

transportada ao contexto cultural presente Embora sua traduccedilatildeo por

ldquodesejordquo seja corrente eacute preciso ter cautela com ela pois natildeo se deve

entender orexis no sentido do emaranhado de pulsotildees originadas em niacutevel

inconsciente que caracteriza a visatildeo moderna da subjetividade humana

Orexis descreve a accedilatildeo de tender em direccedilatildeo a algo Uma forma de

apreender da maneira mais precisa possiacutevel seu significado eacute ter em conta

que orexis se opotildee a ekklisis que expressa o movimento contraacuterio o de

afastar-se Para Epicteto desejamos as coisas que consideramos boas (cf

Diatribes I42-3)

46 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

lsquoRepulsarsquo eacute nossa escolha para traduzir eacutekklisis termo grego que

identifica a accedilatildeo de declinar expressando o movimento contraacuterio de klisis

que significa a accedilatildeo de inclinar-se Eacute empregado para descrever o

movimento da tropa que evita o combate ou para descrever o decliacutenio de

um astro Oldfather (2000) White (1983) e Gourinat (1998) optaram

traduzi-lo por ldquoaversatildeordquo Garciacutea (1998) por ldquorechazordquo No Aureacutelio

ldquoaversatildeordquo apresenta os significados de ldquooacutedio rancor antipatiardquo que natildeo

cabem no presente caso Optamos entatildeo por ldquorepulsardquo para expressar a

ideia de repelir afastar ou evitar algo sem a conotaccedilatildeo de aversatildeo Para

Epicteto repudiamos as coisas que consideramos ruins (cf Diatribes

I42-3)

Encheiriacutedion capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Antonio Carlos

Tarquiacutenio)

(1-1) Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes19 outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute

propriamente nosso20 julgamento de valor21 impulso para agir desejo

aversatildeo - em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa

alccedilada22 o corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos

- em uma palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem

propriamente (1-2) E as coisas que nos competem satildeo por natureza livres

sem impedimentos sem entraves e as que natildeo satildeo fracas escravas

impedidas de outrem (1-3) Lembra entatildeo que se consideras as coisas

escravas por natureza livres e as coisas alheias proacuteprias seraacutes impedido

estaraacutes triste e perturbado censuraraacutes tanto os deuses como tambeacutem os

homens Mas se consideras ser teu somente o teu e o alheio como eacute alheio

ningueacutem te obrigaraacute nem te impediraacute natildeo censuraraacutes a ningueacutem tampouco

acusaraacutes a algueacutem nenhuma accedilatildeo contra vontade ningueacutem te prejudicaraacute

natildeo teraacutes inimigo uma vez que ningueacutem te convenceraacute de algo danoso23 (1-

4) Lembra-te enfim de que aspirando coisas de tal tamanho24 natildeo eacute preciso

19 Satildeo de nossa alccedilada

20 Eacute de nossa competecircncia

21 Aceito a traduccedilatildeo de Pierre Hadot da palavra hypolepsis

22 Natildeo satildeo de nossa competecircncia natildeo satildeo propriamente nossos

23 Ou seja que tenha sofrido algo de danoso Ningueacutem nos convenceraacute de havermos sido prejudicados

24 Isto eacute tatildeo grandes Elevadas

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 47

se mover moderadamente para alcanccedilaacute-las25 mas umas abandonar

completamente e outras abandonar ante o presente para se dedicar depois

Mas se queres tambeacutem essas coisas (isto eacute as elevadas e grandes) e mandar e

enriquecer talvez natildeo obtenhas dessas mesmas (riqueza e autoridade) por

tambeacutem demandares as primeiras (as elevadas e grandes) erraraacutes o alvo

totalmente pelo menos daquelas (coisas) atraveacutes das quais tatildeo somente

dominarias a liberdade e a felicidade (1-5) Enfim exercita-te rapidamente em

acrescentar a toda fantasia26 que ldquoeacutes impressatildeo e de modo algum o que se

mostra (sendo)rdquo A seguir investiga-a e submeta-a a esses cacircnones os quais

tens e em primeiro lugar esse e sobretudo qual dos dois se a respeito das

coisas sobre noacutes ou a respeito das coisas que natildeo estatildeo sobre noacutes e se for algo

a respeito das que natildeo estatildeo sobre noacutes por isso esteja agrave matildeo ldquonada perante

a mimrdquo

O primeiro capiacutetulo do Enquiriacutedio de Epicteto enfeixa ideias preciosas

que auxiliam o acesso agrave compreensatildeo de sua proposta filosoacutefica Nele

encontramos pontos essenciais de sua doutrina de seu ensinamento Se

no seguimento da obra outros temas surgem e encontram em tempo

oportuno explicaccedilatildeo eacute nos seus cinco itens iniciais (1-1 a 1-5 acima) que

vemos traccedilado o panorama de pensamento do filoacutesofo estoico

Desde o iniacutecio do Enquiriacutedio de Epicteto vecirc-se o estabelecimento de

uma linha divisoacuteria que possui como principal objetivo demarcar a zona

do eu - do verdadeiro eu - distinguindo-a da regiatildeo em que se situam as

coisas em relaccedilatildeo estreita com o corpo Eis a afirmativa de Epicteto a este

respeito

Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute

propriamente nosso julgamento de valor impulso para agir desejo aversatildeo

- em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa alccedilada o

25 Tocaacute-las obtecirc-las

26 Optamos por traduzir phantasiacutea por fantasia em vez de usar os habituais termos ldquorepresentaccedilatildeordquo e ldquoimpressatildeordquo que carreiam consigo interpretaccedilotildees tatildeo incompatiacuteveis entre si que para utilizaacute-los se faria necessaacuteria uma elucidaccedilatildeo criacutetica de cada uma delas De acordo com Sexto Empiacuterico a traduccedilatildeo de phantasiacutea para ldquoimpressatildeordquo (typosis) eacute compatiacutevel com o pensamento de Cleantes conforme a metaacutefora com que procura explicar a forma como o mundo exterior atua sobre o hegemocircnico agrave feiccedilatildeo de um sinete sobre a cera Jaacute Crisipo entende a he phantasiacutea ao modo de uma alteraccedilatildeo (heteroiosis) da alma Sexto Empiacuterico M VII 228-230 Doravante citado com a sigla SE

48 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos - em uma

palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem propriamente27

Se pararmos para pensar um pouco nos tempos atuais agrave face dessa

tese epictetiana parece verdadeira loucura sustentar que posses fama

riquezas inclusive nossos corpos natildeo devam ser situados no campo de

nossas preocupaccedilotildees habituais por natildeo nos pertencerem propriamente

Pois essas satildeo coisas que se no passado jaacute se procuravam hoje muito mais

Em contrapartida o desejar o julgar o agir e o evitar natildeo causam

indignaccedilatildeo como fazeres nossos apesar da descoberta nos uacuteltimos seacuteculos

do inconsciente que parece gerar consequecircncias seriacutessimas em torno das

faculdades aniacutemicas do homem

Notemos que o corpo aparece como primeiro na lista das coisas ldquonatildeo

sobre noacutesrdquo e continuaraacute aparecendo principalmente nas Liccedilotildees de

Epicteto28 toda vez que ele se referir agrave distinccedilatildeo essencial em que figura o

campo de responsabilidade especiacutefica humana Vejamos por exemplo este

trecho das Liccedilotildees

Pois o corpo nos eacute estranho seus membros nos satildeo estranhos nossos teres

nos satildeo estranhos Se por conseguinte tu te prendes a alguma dessas coisas

como a alguma coisa pessoal receberaacutes o castigo que merece aquele que deseja

aquilo que lhe eacute estranho29

Se o corpo e seus amigos natildeo nos pertencem propriamente as obras

da alma satildeo nossas30 natildeo soacute como propriedades inalienaacuteveis mas

sobretudo porque satildeo livres desimpedidas e isentas de qualquer

obstaacuteculo como o Enquiriacutedio de Epicteto inicia separando esferas de

27 E I 1

28 Traduzo Epiktetoi diatribai por Liccedilotildees de Epicteto Seratildeo representadas com a sigla L

29 L IV 1 130-131

30 ldquoE as obras da alma satildeo o impulso para agir o impulso de se afastar o desejar o preparar o intentar o assentirrdquo L IV 11 6 O termo ldquoobras da almardquo demonstra que a real distinccedilatildeo eacute entre a psykhe e o corpo Ora as obras da alma satildeo as obras do hegemocircnico ldquoOs estoicos afirmam que o hegemocircnico eacute a parte mais alta da alma aquela que produz as fantasias os assentimentos as sensaccedilotildees as tendecircncias (hormas) e que eles chamam o pensamento (logismos) 847 Aeacutecio IV 21 1-4 = Pseudo-Plutarque 903A12c-10 Crisipo Oeuvre Philosophique Doravante citado com a sigla Chrys OC

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 49

responsabilidade aquilo por que sou responsaacutevel daquilo pelo que natildeo sou

responsaacutevel nem sempre se consegue perceber a questatildeo de fundo por

traacutes da divisatildeo Entretanto quando Epicteto trata do assunto por outro

acircngulo notamos aquilo que estaacute em jogo na separaccedilatildeo a centralizaccedilatildeo da

vida humana nos valores da alma

Em uma declaraccedilatildeo visceral contra Epicuro surpreendemos Epicteto

se perguntando sobre quem no filoacutesofo do Jardim produziu seus escritos

deixou que sua barba crescesse e tambeacutem quem nele afirmou certa vez

viver seus uacuteltimos dias em estado de felicidade E conclui sua indagaccedilatildeo

com a pergunta A carne (sarks) ou a escolha (prohairesis)31 ou seja

se Epicuro escolheu escrever a prohairesis eacute aquele ato espiritual que o

define mesmo que sua filosofia negue isso Na passagem que segue se

clareia por inteira a noccedilatildeo de que o bem humano eacute por excelecircncia e

essencialmente de ordem espiritual Digo ldquoespiritualrdquo no sentido de

indicar o hegemocircnico em uma das suas funccedilotildees primordiais32 mesmo

sabendo se tratar de um pneuma corpoacutereo uma vez que o proacuteprio Epicteto

compara-o ao corpo utilizando termos antiteacuteticos

A divindade eacute uacutetil mas o bem tambeacutem eacute Entatildeo eacute verossiacutemil onde a essecircncia

da divindade laacute tambeacutem a do bem Entatildeo qual eacute a essecircncia da divindade A

carne Natildeo viria a ser Campo Natildeo viria a ser Fama Natildeo viria a ser A mente

a ciecircncia o pensamento correto Logo procura nessas coisas simplesmente a

essecircncia do bem33

Na introduccedilatildeo ao livro Le Manuel drsquoEacutepicteacutete Pierre Hadot se refere agrave

concentraccedilatildeo do eu qual exerciacutecio espiritual que se poderia derivar

diretamente da separaccedilatildeo sugerida por Epicteto Seria a separaccedilatildeo do eu

do natildeo-eu34 e natildeo discordamos

31 L II 23 21

32 O ato de escolher a prohairesis

33 L II 8 1-3

34 Na medida em que se potildee em operaccedilatildeo a distinccedilatildeo entre as coisas dependentes de noacutes e as coisas independentes de noacutes o eu eacute como que recolocado dentro de seus limites porque natildeo avanccedila mais sobre o que natildeo lhe diz respeito O eu reposicionado deixa para fora de si o natildeo-eu ou seja todo um universo de coisas que segundo os estoicos deve ser considerado como indiferente

50 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Distinguir o que depende de noacutes e o que natildeo depende de noacutes a causalidade

interior e a causalidade exterior eacute finalmente distinguir o eu do natildeo-eu Eacute um

exerciacutecio de concentraccedilatildeo e de delimitaccedilatildeo do eu eu natildeo sou os objetos que

me circundam e que por vezes me satildeo caros esta marmita ou este cavalo ou

esta lacircmpada eu natildeo sou pode-se dizer os atributos gramaticais que o

Destino me impotildee rico ou pobre saudaacutevel ou doente senhor ou escravo

poderoso ou miseraacutevel eu natildeo sou os meus membros eu natildeo sou o meu corpo

nem a emoccedilotildees involuntaacuterias que podem emocionaacute-lo35

O que estaacute no cerne da cisatildeo preceituada por Epicteto eacute a fixaccedilatildeo de

um lugar o estabelecimento de um onde para o qual o homem deve se

voltar a fim de concentrar todos os seus esforccedilos Na verdade a

concentraccedilatildeo do eu demarca dois itineraacuterios bem definidos um em que a

parte dirigente da alma36 eacute assentada a tiacutetulo de oficina e outro em que eacute

definida a principal tarefa do homem ou seja o seu ofiacutecio

Oficina e ofiacutecio juntam-se num mesmo caminho espiritual Enquanto

a primeira diz respeito ao princiacutepio diretor da alma ao hegemocircnico como

lugar de trabalho a segunda se define como o proacuteprio trabalho no cuidado

dele

Referecircncias

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EdiUFS 2007

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2008

35 Hadot (2000 p 44-45) Cf L III 24 56 IV 1 129-130

36 Crisipo se refere ao hegemocircnico como o verdadeiro ldquoeurdquo Cf Galeno Sobre as doutrinas de Hipoacutecrates e de Platatildeo II 2 9 1-11 6

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 51

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52 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

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3

A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva

da Filosofia Analiacutetica da Mente

Taacuterik de Athayde Prata 1

Alguns Problemas a Respeito da Consciecircncia

Enquanto escrevo estas palavras estou consciente Isso significa que

estou desperto e assim capaz de interagir com meu ambiente imediato

atraveacutes de percepccedilotildees bem como de accedilotildees Sinto a temperatura desta sala

ao mesmo tempo em que vejo as letras surgindo na tela do computador

enquanto sinto a textura das teclas ao deslizar meus dedos sobre elas

Assim entendida minha consciecircncia eacute algo que diz respeito ao

funcionamento de meu organismo e dessa forma pertence a aqueles que

David Chalmers chamou de ldquoproblemas faacuteceisrdquo (easy problems) isto eacute

problemas que se referem a (i) funccedilotildees de modo que se precisa apenas

buscar o (ii) mecanismo que as desempenha (cf CHALMERS 1995 p

202) De acordo com ele ldquoPara uma explanaccedilatildeo do sono e da vigiacutelia seraacute

suficiente uma adequada explanaccedilatildeo neurofisioloacutegica dos processos

responsaacuteveis pelo comportamento contrastante do organismo nesses

estadosrdquo (CHALMERS 1995 p 201) E a diferenccedila entre sono e vigiacutelia eacute

constitutiva da consciecircncia como uma propriedade de um organismo

Mas se eu enquanto organismo posso ser qualificado como

ldquoconscienterdquo natildeo eacute difiacutecil perceber que haacute um uso plenamente legiacutetimo

desse adjetivo em relaccedilatildeo agrave minha vida psicoloacutegica em seus detalhes mais

1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

54 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

especiacuteficos ou seja em relaccedilatildeo a meus estados eventos e processos

mentais entidades psiacutequicas que podem tambeacutem ser conscientes Minhas

percepccedilotildees (da temperatura da sala das letras na tela da textura das

teclas) minhas intenccedilotildees (de digitar certas palavras de escrever um texto

para um evento acadecircmico) assim como meus pensamentos (p ex a

respeito do tema filosoacutefico da consciecircncia) ou minhas eventuais emoccedilotildees

(como a ansiedade de concluir o texto a tempo) tudo isso satildeo fenocircmenos

mentais que podem ou natildeo se tornar conscientes

Entra aqui em cena a distinccedilatildeo proposta por David Rosenthal entre

(a) consciecircncia de criatura (que seria um tema mais permeaacutevel agrave pesquisa

empiacuterica do funcionamento orgacircnico) e (b) consciecircncia de estado (que

seria um tema mais especiacutefico da investigaccedilatildeo filosoacutefica)2 Eacute interessante

notar que Rosenthal eacute um filoacutesofo que assume uma perspectiva anti-

cartesiana no sentido de recusar a ideia defendida pelo filoacutesofo francecircs

da consciecircncia como a essecircncia da mente3 Para ele natildeo haacute grande

dificuldade para se perceber que diversos estados mentais existem

desprovidos de consciecircncia por exemplo quando ldquosabemos sem que nos

seja dito o que outra pessoa estaacute pensando ou sentindo E algumas vezes

sabemos isso mesmo quando a pessoa na verdade natildeo estaacute ciente [aware]

pelo menos a princiacutepio de ter esses sentimentos e pensamentosrdquo

(ROSENTHAL 1986 p 329)

Uma visatildeo como essa segundo a qual os fenocircmenos mentais satildeo em

si mesmos inconscientes tem para Rosenthal a importante vantagem de

2 ldquoDois assuntos satildeo frequentemente confundidos nas discussotildees sobre a consciecircncia Uma questatildeo eacute o que eacute para um estado mental ser consciente Supondo que nem todos os estados mentais satildeo conscientes noacutes queremos saber como os estados conscientes se diferenciam daqueles que natildeo satildeo E ainda que todos os estados mentais fossem conscientes noacutes ainda perguntariacuteamos em que consiste a sua consciecircncia Denominamos essa a questatildeo da consciecircncia de estado Esse seraacute meu principal tema no texto que segue Mas noacutes natildeo descrevemos apenas estados mentais como sendo conscientes ou natildeo noacutes tambeacutem atribuiacutemos consciecircncia a criaturas Assim existe uma segunda questatildeo a questatildeo sobre o que eacute para uma pessoa ou outra criatura ser consciente ou seja como criaturas conscientes se diferenciam daquelas que natildeo satildeo conscientes Denominamos esta a questatildeo da consciecircncia de criaturardquo (ROSENTHAL 1997 p 729)

3 Descartes caracterizou o pensamento para ele a propriedade essencial do mental como ldquotudo quanto estaacute de tal modo em noacutes que somos imediatamente conscientes [consci]rdquo (DESCARTES 1979 p 169 [AT VII p 160 AT IX p 124]) E em conformidade a isso ele entendeu que ldquonenhum pensamento pode existir em noacutes do qual nos natildeo estejamos conscientes [fit conscia] no exato momento em que ele existe em noacutesrdquo (cf AT VII p 246 AT IX p 190) Os nuacutemeros romanos datildeo as referecircncias nos volumes em latim (volume VII) e em francecircs (volume IX) da ediccedilatildeo completa das obras de Descartes feita por Charles Adam e Paul Tannery (AT)

Taacuterik de Athayde Prata | 55

possibilitar uma explanaccedilatildeo informativa da consciecircncia como uma

propriedade de estados mentais pois se a consciecircncia jaacute caracteriza de

saiacuteda todos os fenocircmenos psiacutequicos como pensava Descartes ldquotoda

tentativa de explanar a consciecircncia formulando condiccedilotildees necessaacuterias e

suficientes para um estado mental ser consciente vatildeo fracassar

automaticamente Se a consciecircncia jaacute estaacute embutida na mentalidade toda

explanaccedilatildeo seraacute natildeo informativardquo (ROSENTHAL 1986 p 330) E eu

acrescentaria que essa perspectiva tem a vantagem adicional de ser

compatiacutevel com os incontaacuteveis e no meu entender muito convincentes

indiacutecios de que a maior parte de nossa vida mental ocorre

independentemente da consciecircncia (cf por exemplo SEARLE 1992 p

164 1997 p 236 2004 p 244-45)

Entretanto esse tipo de perspectiva sobre a consciecircncia que a

considera natildeo essencial para o psiacutequico natildeo foi aceita por importantes

filoacutesofos do seacuteculo passado entre os quais se encontra Jean-Paul Sartre

(1905-1980) um dos mais influentes intelectuais do seacuteculo XX que

produziu uma obra de enorme abrangecircncia se estendendo desde a

escritura em diversos gecircneros literaacuterios passando pela filosofia pelos

textos de cunho poliacutetico4 e que na juventude empreendeu

interessantiacutessimas reflexotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia e os

fundamentos da psicologia5 Em sua mais importante obra anterior a O

ser e o nada (1943) o livro O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da

imaginaccedilatildeo (1940) Sartre (1996 p 36) afirma sem reservas que ldquoa

existecircncia de um fenocircmeno psiacutequico e o sentido que ele tem para a

consciecircncia satildeo uma coisa soacuterdquo o que o leva admitir em nota de rodapeacute que

ldquoessas constataccedilotildees nos obrigam a rejeitar inteiramente a existecircncia de um

inconscienterdquo (SARTRE 1996 p 36 nota no 13)

4 Como afirma Annie Cohen-Solal (2007 p 16) a mais conhecida bioacutegrafa de Sartre ele ldquoabordou todos os domiacutenios da escrita (romance novela filosofia teatro cinema biografia autobiografia ensaio criacutetico reportagem jornaliacutestica canccedilatildeo entre outros)rdquo

5 Em uma entrevista concedida jaacute no final de sua vida Sartre declarou que no iniacutecio de sua carreira filosoacutefica ldquoo que eu chamava de lsquofilosofiarsquo era pura e simplesmente psicologiardquo (COHEN-SOLAL 1986 p 90)

56 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Apesar das diversas passagens de sua obra que atacam a ideia de

inconsciente6 existem inteacuterpretes que questionam se Sartre de fato estava

comprometido com a rejeiccedilatildeo a essa ideia (cf GENNARO 2002 p 299-301)

Mas o fato eacute que ela natildeo eacute (pelo menos agrave primeira vista) compatiacutevel com sua

perspectiva pois de acordo com ele quando a consciecircncia (de algo) e uma

autoconsciecircncia impliacutecita natildeo satildeo concebidas como unificadas somos

confrontados com graves problemas No meu entendimento Sartre parte da

constataccedilatildeo de que introduzir uma dualidade na consciecircncia a torna

incompreensiacutevel pois leva a teorias insustentaacuteveis Em termos sumaacuterios a

dualidade nos deixa diante de um dilema

Ou paramos em um termo qualquer da seacuterie conhecido ndash cognoscente

conhecido ndash cognoscente conhecido pelo cognoscente etc e entatildeo a totalidade

do fenocircmeno cai no desconhecido quer dizer esbarramos sempre com uma

reflexatildeo natildeo consciente de si como derradeiro termo ndash ou entatildeo afirmamos a

necessidade de regressatildeo ao infinito (idea ideae ideae etc) o que eacute absurdo

(SARTRE 1943 p 18-19 SARTRE 1997 p 23)

Se haacute uma dualidade entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a

autoconsciecircncia entatildeo ou (I) esta autoconsciecircncia eacute inconsciente ou (II) a

autoconsciecircncia exige (para se tornar consciente) uma outra consciecircncia a

respeito dela que por sua vez exige outra e assim ad infinitum dois

resultados que parecem insatisfatoacuterios ndash pois uma consciecircncia

inconsciente parece uma contradiccedilatildeo em termos7 e um regresso ao

6 Jaacute em A transcendecircncia do ego (1937) seu primeiro texto escrito sob a influecircncia husserliana ele escreveu ldquoSem mesmo se dar conta os teoacutericos do amor-proacuteprio supotildeem que o refletido eacute anterior original e dissimulado no inconsciente Eacute penoso precisar evidenciar a absurdidade de uma tal hipoacutetese Mesmo se o inconsciente existisse o que nos faria acreditar ser ele o depositaacuterio de espontaneidades da forma refletida A definiccedilatildeo do refletido natildeo eacute a do que eacute colocado por uma consciecircnciardquo (SARTRE 1966 p 40-41 SARTRE 2010 p 198-99)

7 Eacute interessante notar que Franz Brentano um dos mais importantes pensadores da virada do seacuteculo XX (JACQUETTE 2004 p 1) autor que sem duacutevida atraveacutes de sua influecircncia sobre Husserl estaacute na raiz de muitas das concepccedilotildees de Sartre natildeo concordava com a visatildeo de que o inconsciente eacute uma noccedilatildeo contraditoacuteria apesar de Brentano ter sido um ferrenho opositor dessa noccedilatildeo Nas palavras de Brentano ldquoAlgumas pessoas iriam apenas balanccedilar a cabeccedila diante dessa questatildeo Supor uma consciecircncia inconsciente parece a elas absurdo Mesmo eminentes psicoacutelogos como por exemplo Locke e John Stuart Mill consideravam essa ideia uma contradiccedilatildeo direta Mas algueacutem que presta atenccedilatildeo agraves determinaccedilotildees feitas a seguir dificilmente iraacute julgar assim Esse algueacutem reconheceraacute que quem levanta a questatildeo sobre a existecircncia de uma consciecircncia inconsciente natildeo estaacute sendo ridiacuteculo como algueacutem que perguntasse se existe um vermelho natildeo vermelho Uma consciecircncia inconsciente eacute tatildeo pouco uma contraditio in adjecto quanto uma visatildeo natildeo vistardquo (BRENTANO 1924 p 143-4 [102-3])

Taacuterik de Athayde Prata | 57

infinito significa que a consciecircncia permanece natildeo explicada (aleacutem do fato

de que a proacutepria ideia de que haacute um regresso infinito parece insustentaacutevel

ndash de modo que a concepccedilatildeo comprometida com um regresso se mostra

absurda) Eacute interessante notar que essas dificuldades ndash (I) e (II) ndash satildeo

aplicaacuteveis ao tipo de teoria proposta por Rosenthal Ao conceber a

consciecircncia de um estado mental como decorrente do monitoramento

deste estado por um outro estado mental a respeito do primeiro

Rosenthal se expotildee ao perigo do regresso ao infinito e eacute para evitar esse

regresso que ele concebe o estado mental de ordem superior como

inconsciente o que evidentemente o leva a recair no primeiro termo do

dilema apontado por Sartre o pensamento que gera a consciecircncia do

estado mental de niacutevel inferior eacute ele proacuteprio inconsciente8

Devido a essas dificuldades Sartre conclui que ldquoConsciecircncia de si natildeo

eacute dualidade Se quisermos evitar regressatildeo ao infinito tem de ser relaccedilatildeo

imediata e natildeo cognitiva de si a sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24)

Exatamente por isso ele opta por colocar o ldquoderdquo da expressatildeo ldquoconsciecircncia

de sirdquo entre parecircnteses de modo a indicar que essa partiacutecula eacute empregada

por imposiccedilatildeo da gramaacutetica (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25) e natildeo

deve ser entendida como sugerindo uma dualidade entre a lsquoconsciecircnciarsquo e

o lsquosirsquo E a ideia da consciecircncia como uma relaccedilatildeo imediata a si mesma

constitui aquele que Kathleen Wider (1997 p 1) considera ser a alegaccedilatildeo

fundamental de Sartre sobre a consciecircncia a saber a alegaccedilatildeo de que

ldquotoda consciecircncia eacute por sua proacutepria natureza autoconsciecircnciardquo No ensaio

sobre A transcendecircncia do ego Sartre defendera que ldquoo tipo de existecircncia

da consciecircncia implica ser consciecircncia de si E ela toma consciecircncia de si

na exata medida em que eacute consciecircncia de um objeto transcendenterdquo

(SARTRE 1966 p 23-4 2010 p 188) Tomando o exemplo de uma

percepccedilatildeo ndash ou seja nos termos dele uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo ndash

Sartre afirma em O ser e o nada que a consciecircncia de si enquanto uma

8 A respeito da teoria de Rosenthal sobre a consciecircncia de estados mentais Uriah Kriegel afirma ldquoO estado de segunda ordem S2 em virtude do qual [o estado de primeira ordem] S1 eacute consciente eacute ele mesmo um estado inconsciente Assim o fato de que S2 representa o eu natildeo implica que por ter S2 o eu eacute consciente de si mesmo pois S2 natildeo eacute uma representaccedilatildeo consciente do eurdquo (KRIEGEL 2002 p 522-23) Cf tambeacutem Kriegel (2005 p 28)

58 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoconsciecircncia espontacircneardquo da percepccedilatildeo ldquoeacute constitutiva de minha

consciecircncia perceptivardquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24) e tomando o

exemplo da accedilatildeo de contar alguns cigarros afirma que ldquoa consciecircncia natildeo

teacutetica de contar eacute condiccedilatildeo mesma de minha atividade aditivardquo (SARTRE

1943 p 19 1997 p 24)

Mas se a assunccedilatildeo de uma dualidade na consciecircncia nos leva a um

dilema entre duas posiccedilotildees insustentaacuteveis a concepccedilatildeo por assim dizer

unitaacuteria da consciecircncia que a entende como uma unidade indissoluacutevel

entre uma (i) consciecircncia de algo e uma (ii) autoconsciecircncia natildeo estaacute livre

de suas proacuteprias dificuldades A concepccedilatildeo sartriana que vecirc essa

autoconsciecircncia como constitutiva ou como condiccedilatildeo de toda consciecircncia

intencional de objetos parece tornar a consciecircncia um fenocircmeno

misterioso inexplicaacutevel pois natildeo conseguimos formar uma noccedilatildeo clara de

qual seja a sua estrutura jaacute que ldquoa consciecircncia de si que caracteriza toda

consciecircncia de algo parece estar de algum modo misturada a esta

consciecircncia de algo de maneira que natildeo eacute nada faacutecil discerni-lasrdquo (PRATA

2017 p 460) e se essas noccedilotildees natildeo podem ser discernidas natildeo eacute possiacutevel

articular uma explicaccedilatildeo do que seja propriamente a consciecircncia

Consciecircncia Posicional e Consciecircncia Natildeo Posicional

Antes de examinar a dificuldade de explicar a consciecircncia tal como

concebida por Sartre eacute importante compreender uma distinccedilatildeo

importante proposta por ele a distinccedilatildeo entre (i) a consciecircncia posicional

ou teacutetica (cf SARTRE 1966 p 28 2010 p 191) por um lado e (ii) a

consciecircncia natildeo posicional (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou natildeo

teacutetica (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) por outro lado A consciecircncia

posicional eacute aquela que potildee um objeto de determinado modo Por exemplo

uma consciecircncia perceptiva potildee seu objeto como existente jaacute que a

percepccedilatildeo se articula enquanto apreensatildeo de algo que existe previamente

a ela ao passo que uma consciecircncia em imagem potildee seu objeto

(imaginado) de diferentes formas (p ex como ausente ou como

Taacuterik de Athayde Prata | 59

inexistente ndash cf SARTRE 1996 p 26) que pressupotildeem que a consciecircncia

eacute a criadora dessa imagem mental E eacute importante notar que o que cada

consciecircncia potildee eacute um objeto que portanto eacute concebido implicitamente

como algo que transcende a consciecircncia existindo para aleacutem de toda

consciecircncia que se possa ter dele9 Jaacute a consciecircncia natildeo posicional natildeo potildee

um objeto pois ela eacute um tipo especial de relaccedilatildeo que natildeo se volta para algo

contra-posto (ob-jectum) agrave consciecircncia mas eacute uma relaccedilatildeo desta

consciecircncia consigo mesma (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)

A respeito dessa distinccedilatildeo a importante inteacuterprete Kathleen Wider

entende que as duas formas de consciecircncia a posicional e a natildeo posicional

podem ser elucidadas em termos do foco da atenccedilatildeo do sujeito consciente

em cada caso enquanto a consciecircncia posicional implica em uma atenccedilatildeo

focada em um objeto (distinto da proacutepria consciecircncia) a consciecircncia natildeo

posicional apreende aquilo em que o sujeito natildeo concentra a sua atenccedilatildeo

Nas palavras de Wider (1997 p 41)

Por um lado qualquer coisa que cai no campo de ciecircncia [awareness] de

algueacutem e para a qual sua atenccedilatildeo estaacute direcionada eacute um objeto que eacute posto

pela consciecircncia Por isso Sartre chama a consciecircncia desse objeto de

consciecircncia teacutetica ou posicional Por outro lado algueacutem tem apenas uma

consciecircncia natildeo teacutetica ou natildeo posicional de qualquer coisa que cai em seu

campo de ciecircncia mas ao qual ele natildeo estaacute presentemente prestando atenccedilatildeo

Se percebo um objeto ou imagino uma paisagem posiciono essa

referecircncia transcendente agrave minha consciecircncia de determinada maneira ndash

como existente no caso da percepccedilatildeo ou como p ex existente em outro

lugar no caso da imaginaccedilatildeo ndash e minha atenccedilatildeo eacute absorvida por essa

referecircncia transcendente Mas ao mesmo tempo em que minha atenccedilatildeo se

absorve na coisa ndash percebida ou imaginada ndash eu apreendo implicitamente

minha proacutepria consciecircncia perceptiva ou imaginativa pois se percebo

apreendo implicitamente ndash na periferia da atenccedilatildeo ndash minha percepccedilatildeo

9 De acordo com Sartre haacute ldquoalgo de excessivo no mundo das lsquocoisasrsquo a cada instante haacute sempre infinitamente mais do queo que podemos ver para esgotar a riqueza de minha percepccedilatildeo atual seria necessaacuterio um tempo infinitordquo (SARTRE 1996 p 22)

60 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

como passiva ao passo que se imagino apreendo implicitamente minha

imaginaccedilatildeo como criadora (cf PRATA 2016 p 81-82) Essa apreensatildeo

impliacutecita pode ser transformada em uma consciecircncia posicional de

consciecircncia ndash uma consciecircncia posicional da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo

Mas nesse caso estamos diante de uma reflexatildeo ou seja uma consciecircncia

reflexiva (cf abaixo)

A Opacidade da Consciecircncia na Teoria de Sartre

A avaliaccedilatildeo de que a teoria de Sartre natildeo eacute capaz de fornecer uma

explicaccedilatildeo da consciecircncia parece ser confirmada pela maneira como ele

em diversas passagens se refere ao fenocircmeno da consciecircncia atraveacutes de

metaacuteforas o que de fato sugere que ele natildeo dispunha de conceitos claros

sobre a estrutura da consciecircncia Penso que a necessidade do uso de

metaacuteforas surge de uma estrutura conceitual obscura como encontramos

em determinada passagem de O ser e o nada na qual apoacutes afirmar a

autoconsciecircncia ldquonatildeo teacuteticardquo10 como constitutiva de todo ato mental (como

uma operaccedilatildeo de contar) nega que isso implique um ciacuterculo vicioso mas

se exprime em termos relativamente nebulosos

Contudo natildeo haacute esse ciacuterculo vicioso ou se preferirmos eacute da proacutepria natureza

da consciecircncia existir ldquoem ciacuterculordquo O que se pode exprimir assim toda existecircncia

consciente existe como consciecircncia de existir Compreendemos agora porque a

consciecircncia primeira de consciecircncia natildeo eacute posicional eacute uma soacute com [un avec] a

consciecircncia da qual eacute consciecircncia (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)

A autoconsciecircncia eacute una com a consciecircncia de algo a respeito da qual

ela eacute e justamente essa unidade parece tornar o fenocircmeno opaco a uma

explicaccedilatildeo conceitual E logo em seguida ele se exprime em termos que

tornam essa opacidade ainda mais flagrante Nas palavras de Sartre

10 Conforme discutido acima uma consciecircncia ldquonatildeo-teacuteticardquo (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) equivale a uma consciecircncia ldquonatildeo-posicionalrdquo (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou seja trata-se de uma consciecircncia que natildeo potildee seu objeto como algo distinto de si mesma (cf SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)

Taacuterik de Athayde Prata | 61

Natildeo haacute antes uma consciecircncia que recebesse depois [grifado no original] a

afecccedilatildeo ldquoprazerrdquo tal como se colore a aacutegua ndash do mesmo modo como natildeo haacute

antes um prazer (inconsciente ou psicoloacutegico) que recebesse depois a

qualidade de consciente como um feixe de luz Haacute um ser indivisiacutevel

indissoluacutevel [grifo meu] ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas

qualidades como seres menores mas um ser que eacute existecircncia de ponta a ponta

(SARTRE 1943 p 21 1997 p 26)

Aqui ele rejeita a ideia de que a relaccedilatildeo entre a (i) consciecircncia de algo

e a (ii) autoconsciecircncia seja comparaacutevel agrave relaccedilatildeo entre um sujeito e seu

predicado fazendo dela um ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo cuja

compreensatildeo se torna muito difiacutecil Desse modo natildeo parece restar

alternativa para Sartre aleacutem de recorrer a metaacuteforas para exprimir esse

modo de existecircncia peculiar da consciecircncia como quando ele afirma que a

autoconsciecircncia

Natildeo deve ser considerada uma nova consciecircncia mas o uacutenico modo de

existecircncia possiacutevel para uma consciecircncia de alguma coisa Assim como um

objeto extenso estaacute obrigado a existir segundo as trecircs dimensotildees tambeacutem uma

intenccedilatildeo um prazer uma dor natildeo poderiam existir exceto como consciecircncia

imediata de si mesmos (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25 grifado no original)

Neste trecho o modo de existecircncia da consciecircncia (enquanto

essencialmente marcada por uma autoconsciecircncia) eacute simplesmente

comparado a um fato bruto a saber o de que objetos espaciais

necessariamente existem nas trecircs dimensotildees E jaacute anos antes no ensaio

sobre A transcendecircncia do ego ele se expressara em termos semelhantes

ao dizer que o fato de a consciecircncia irrefletida ser consciecircncia de ser

consciecircncia de um objeto eacute ldquoa lei de sua existecircnciardquo (SARTRE 1966 p 24

2010 p 188-89 grifo meu)

Vejamos agora de modo mais detalhado a maneira como Sartre

concebe a consciecircncia atraveacutes de uma segunda distinccedilatildeo fundamental a

distinccedilatildeo entre (arsquo) consciecircncia irrefletida tida por ele como a forma

fundamental e (brsquo) consciecircncia reflexiva tida por ele como derivada

62 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Consciecircncia Irrefletida e Consciecircncia Reflexiva

Para articular adequadamente a relaccedilatildeo entre a consciecircncia e o eu no

esforccedilo de negar a noccedilatildeo husserliana de um eu transcendental Sartre

desenvolveu uma distinccedilatildeo entre (arsquo) a consciecircncia irrefletida (irreacutefleacutechie)

a forma mais fundamental originaacuteria e (brsquo) a consciecircncia reflexiva

(reacuteflexive) derivada da primeira na qual o fenocircmeno do ldquoeurdquo teria sua

origem (cf SARTRE 1966 p 37 2010 p 196) Na consciecircncia reflexiva

temos duas manifestaccedilotildees de consciecircncia11 a consciecircncia reflexionante

(reacutefleacutechissante) e a consciecircncia refletida (reacutefleacutechie) onde uma se debruccedila

sobre a outra colocando esta uacuteltima como seu objeto Entretanto essa

forma de consciecircncia (cindida entre duas manifestaccedilotildees) natildeo poderia ser

a forma mais fundamental pois a consciecircncia reflexionante que faz da

consciecircncia refletida um objeto jaacute eacute uma consciecircncia (mesmo quando essa

consciecircncia reflexionante natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo ulterior o que eacute

sempre possiacutevel ndash cf SARTRE 1966 p 29 2010 p 191) Portanto deve

haver algo nela (assim como tambeacutem nas manifestaccedilotildees de consciecircncia

voltadas para objetos exteriores) que jaacute a torne consciecircncia

Isso leva Sartre a articular sua concepccedilatildeo a respeito da consciecircncia

irrefletida a consciecircncia que natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo que se investe

completamente no visar um objeto para aleacutem dela proacutepria e eacute nesse

contexto que surge a tese basilar da teoria de Sartre a respeito da

consciecircncia (cf WIDER 1997 p 1) que podemos designar como a tese da

autoreferencialidade da consciecircncia irrefletida que pode ser formulada

nos seguintes termos ldquotoda consciecircncia posicional do objeto eacute ao mesmo

tempo consciecircncia natildeo posicional de sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p

24)12 Eacute exatamente por isso que a consciecircncia irrefletida eacute por si mesma

consciecircncia independentemente da reflexatildeo pois a consciecircncia irrefletida

11 Temos aqui um uso de ldquoconsciecircnciardquo que se refere a cada episoacutedio particular de vivecircncia consciente (cf SARTRE 1996 p 13) isto eacute nesse sentido cada episoacutedio de percepccedilatildeo cada episoacutedio de imagem mental cada episoacutedio de emoccedilatildeo eacute uma consciecircncia Esse uso eacute diferente de um outro aceito por sartre um uso mais globalizante no qual ldquoconsciecircnciardquo se refere agrave ldquomocircnada e o conjunto de suas estruturas psiacutequicasrdquo (SARTRE 1996 p 13)

12 Sartre caracteriza a noccedilatildeo de ldquoposicionalrdquo nos seguintes termos ldquoToda consciecircncia eacute posicional na medida em que se transcende para alcanccedilar um objeto e ela esgota-se nessa posiccedilatildeo [position] mesmardquo (SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)

Taacuterik de Athayde Prata | 63

(na medida em que eacute intencional) eacute uma relaccedilatildeo com um objeto

transcendente a ela que eacute simultaneamente uma relaccedilatildeo a si mesma

Para que se possa construir uma compreensatildeo teoacuterica adequada dessa

autoconsciecircncia preacute-reflexiva tal como concebida por Sartre eacute necessaacuterio no

meu modo de entender um modelo no qual os elementos constituintes dessa

autoconsciecircncia possam ser conceitualmente discernidos ao mesmo tempo

em que a sua unidade por assim dizer orgacircnica se mostre de maneira

inteligiacutevel Seguindo uma indicaccedilatildeo do professor Andreacute Leclerc13 me

proponho a investigar o modelo integrativo da consciecircncia articulado por

Uriah Kriegel para verificar se ele pode servir como um modelo adequado

para se compreender a teoria sartriana da consciecircncia (de) si

O Modelo Integrativo de Kriegel

Kriegel articula o seu modelo integrativo na tentativa de naturalizar

aquilo que ele denomina de ldquocaraacuteter subjetivordquo da experiecircncia consciente

visto por ele como um aspecto constituinte daquilo que ele chama de

ldquocaraacuteter fenomenalrdquo dessa experiecircncia Esse caraacuteter fenomenal pensado por

Kriegel corresponde a aquilo que Thomas Nagel (1974 p 436 2005 p 247)

chamou de subjetividade a saber lsquoo modo como eacute vivenciar um estado

mental x para a criatura que o vivenciarsquo Kriegel propotildee analisar esse caraacuteter

fenomenal em dois aspectos constituintes (a) o modo como eacute vivenciar o

estado mental x ndash que ele denomina caraacuteter qualitativo ndash e (b) o fato desse

modo se doar ao sujeito que vivencia esse estado mental ndash que Kriegel

denomina o caraacuteter subjetivo desse estado Na visatildeo de Kriegel (2005 p 24)

ldquoo caraacuteter qualitativo de uma experiecircncia consciente determina qual

experiecircncia consciente ela eacute mas eacute o caraacuteter subjetivo da experiecircncia que

determina se ela eacute de algum modo [at all] uma experiecircncia conscienterdquo

E eacute importante perceber que esse caraacuteter subjetivo se encontra em

uma relaccedilatildeo essencial com o conceito de ciecircncia [awareness] pois na exata

13 Aproveito para agradecer por essa observaccedilatildeo que o professor fez no debate de uma apresentaccedilatildeo que fiz sobre a teoria de Sartre no IX Encontro Interinstitucional de Filosofia em 2015 no Recife

64 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

medida em que uma experiecircncia se doa ndash ou se manifesta ndash ao sujeito

consciente este sujeito tem que estar ciente [aware] dessa experiecircncia (cf

KRIEGEL 2005 p 25)14 Mas Kriegel enfatiza que o modo como o sujeito

estaacute ciente de suas proacuteprias experiecircncias eacute bastante peculiar pois essa

ciecircncia normalmente natildeo estaacute focada na proacutepria experiecircncia mas sim

nos objetos ou estados de coisas extra-psiacutequicos que satildeo o tema dessa

experiecircncia Sendo assim ele se vecirc levado a introduzir uma distinccedilatildeo entre

(I) estar ciente de algo de modo focado e (II) estar ciente disso de modo

perifeacuterico15 A ideia baacutesica eacute do mesmo modo que em uma percepccedilatildeo

visual estamos cientes de maneira focada do objeto que estaacute no centro do

campo visual e estamos cientes de maneira perifeacuterica dos objetos que se

afastam desse centro no que diz respeito agraves nossas proacuteprias experiecircncias

estamos normalmente16 cientes delas de modo perifeacuterico ao mesmo

tempo em que temos uma ciecircncia focada dos objetos extra-psiacutequicos

dessas experiecircncias Como esclarece Kriegel (2005 p 26)

Minha sugestatildeo eacute que nossa ciecircncia de nossas experiecircncias conscientes eacute

normalmente uma forma de tal ciecircncia perifeacuterica natildeo-perceptiva Experiecircncias

conscientes exibem caraacuteter subjetivo em virtude do fato de que sempre que

temos uma experiecircncia consciente noacutes estamos perifericamente cientes de tecirc-la

Ele entende que o problema do caraacuteter subjetivo ldquoeacute o problema de

compreender como um estado mental pode incluir em si uma ciecircncia de si

proacutepriordquo (KRIEGEL 2005 p 30) E para explicar isso ele propotildee um

modelo teoacuterico baseado na integraccedilatildeo de informaccedilotildees que por essa razatildeo

eu denomino um modelo ldquointegrativordquo Para Kriegel a inclusatildeo de uma

ciecircncia de si mesmo no interior do proacuteprio estado mental consciente pode

14 Em um texto bastante conhecido no debate sobre a consciecircncia David Woodruff Smith (1986 p 149) escreveu ldquoum estado mental eacute consciente se o sujeito desse estado estaacute ciente [aware] de sua ocorrecircnciardquo

15Natildeo eacute difiacutecil perceber que essa maneira como Kriegel procura esclarecer o caraacuteter impliacutecito da ciecircncia que temos de nossas experiecircncias coincide com a maneira como Kathleen Wider (1997 p 41) interpreta a distinccedilatildeo sartriana entre consciecircncia posicional e natildeo posicional discutida na seccedilatildeo 2 acima

16A exceccedilatildeo satildeo os casos de reflexatildeo ndash no dizer de Sartre (1966 p 27-28 2010 p 190-91) ndash ou introspecccedilatildeo ndash no dizer de Rosenthal (1986 p 336-37 1997 p 730) caso que satildeo menos comuns do que os de consciecircncia natildeo reflexiva (cf KRIEGEL 2002 p 518 2003 p 105)

Taacuterik de Athayde Prata | 65

ser explicada atraveacutes da presenccedila de um tipo peculiar de conteuacutedo no

estado consciente conteuacutedo que conecta (a) a ciecircncia de um objeto ndash ou

estado de coisas ndash externo agrave mente com (b) a ciecircncia do proacuteprio estado

mental que se direciona a aquele objeto ndash ou estado de coisas ndash tornando-

se entatildeo necessaacuterio explicar como esse conteuacutedo eacute produzido E eacute aiacute que

entra em cena o modelo integrativo Nas palavras de Kriegel (2005 p 46)

A abordagem que pretendo introduzir sugere que esse tipo de conteuacutedo

representacional pode ser produzido simplesmente atraveacutes da integraccedilatildeo da

informaccedilatildeo carregada por o que eram inicialmente estados mentais separados

Quando os conteuacutedos desses estados mentais separados satildeo apropriadamente

integrados surge um (uacutenico) estado mental que possui exatamente o tipo

correto de conteuacutedo representacional

Apoacutes essa sinteacutetica exposiccedilatildeo do modelo de Kriegel somos obrigados

por motivos de espaccedilo a passar diretamente a uma discussatildeo da teoria de

Sartre

Consideraccedilotildees Finais

Se a visatildeo cartesiana da consciecircncia como a essecircncia da mente sofreu

fortes contestaccedilotildees ao longo do seacuteculo XX vimos que a perspectiva

sartriana ndash influenciada por Descartes ndash da autoconsciecircncia (impliacutecita)

como constitutiva de todo estado intencional parece inviabilizar uma

compreensatildeo teoacuterica adequada da consciecircncia Sartre defende uma

unidade essencial entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a autoconsciecircncia

porque a separaccedilatildeo desses elementos levaria a um dilema entre (I) uma

autoconsciecircncia inconsciente e (II) um regresso ao infinito (cf SARTRE

1943 p 18-19 1997 p 23 cf KRIEGEL 2005 p 28) Entretanto essa

visatildeo unitaacuteria tambeacutem eacute problemaacutetica pois torna a consciecircncia algo

inexplicaacutevel deixando a Sartre apenas a opccedilatildeo de recorrer a metaacuteforas ndash

como a do ldquociacuterculordquo e a das ldquotrecircs dimensotildeesrdquo (cf SARTRE 1943 p 20

1997 p 25) ou ainda a da ldquolei de existecircnciardquo (cf SARTRE 1966 p 24

2010 p 188-89) ndash ou entatildeo recorrer a conceitos obscuros ndash como o de um

66 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo (cf SARTRE 1943 p 21 1997 p 26) ndash para

tentar exprimir o que a consciecircncia eacute

Em outras palavras natildeo resta duacutevida de que o terreno em que esse

debate sobre a consciecircncia eacute travado eacute extremamente movediccedilo pois a

exposiccedilatildeo feita acima mostrou que se a visatildeo da consciecircncia como

essencialmente conectada a uma autoconsciecircncia eacute obscura a visatildeo que

separa a consciecircncia de algo da autoconsciecircncia tambeacutem natildeo funciona

pois recai no dilema acima mencionado ndash entre (I) e (II) Eacute aqui que o

modelo de Kriegel se mostra promissor pois a ideia de uma efetiva

integraccedilatildeo de estados mentais que existiam originalmente separados por

um lado nos fornece a distinccedilatildeo entre conceitos ndash o conceito da (i) ciecircncia

[awareness] do objeto por um lado e o conceito da (ii) ciecircncia do proacuteprio

estado mental por outro lado ndash que possibilita a articulaccedilatildeo de uma

explanaccedilatildeo propriamente dita jaacute que a unidade proposta por Sartre

concebida de uma maneira natildeo predicativa17 como vimos parece

inviabilizar qualquer explanaccedilatildeo conceitual E por outro lado a ideia da

integraccedilatildeo real de estados mentais (originalmente distintos) nos fornece

uma unidade diferente daquela que encontramos nos escritos do filoacutesofo

francecircs pois aleacutem de evitar o regresso ao infinito (como faz a unidade

misteriosa de Sartre) ela permanece permeaacutevel a uma explanaccedilatildeo

conceitual tornando-se assim uma opccedilatildeo mais atraente no cenaacuterio das

elaboraccedilotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia

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17 ldquoHaacute um ser indivisiacutevel indissoluacutevel ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas qualidades como seres menoresrdquo (SARTRE 1943 p 21 1997 p 26 grifos meus) Temos aqui uma terminologia ontoloacutegica que pressupotildee o discurso sujeito-predicado (cf IMAGUIRE 2007 p 274)

Taacuterik de Athayde Prata | 67

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68 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

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4

A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico

A Criacutetica de John Searle agraves Principais Correntes

da Filosofia da Mente

Maxwell Morais de Lima Filho 1

Parece muito doce aquela cana

Descasco-a provo-a chupo-ahellip ilusatildeo treda

Augusto dos Anjos

Para Searle (2006 p 7-9) nem eacute verdade que o problema mente-

corpo seja insoluacutevel nem que seja necessaacuterio um projeto de naturalizaccedilatildeo

para atacaacute-lo pois basta reconhecermos que os fenocircmenos mentais satildeo

caracteriacutesticas de niacutevel superior causadas e realizadas no sistema nervoso

para resolvecirc-lo2

O famoso problema mente-corpo fonte de tanta controveacutersia ao longo dos

dois uacuteltimos milecircnios tem uma soluccedilatildeo simples [] Aqui estaacute ela os

fenocircmenos mentais satildeo causados por processos neurofisioloacutegicos no ceacuterebro

e satildeo eles proacuteprios caracteriacutesticas do ceacuterebro

[]

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) e Professor do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

2 Em Intencionalidade Searle (1995 p 21-2) critica tanto os dualistas quanto os fisicalistas por tentarem resolver um problema que sequer existe ldquoOs dualistas que percebem corretamente o papel causal do mental consideram que precisamente por esta razatildeo devem postular uma categoria ontoloacutegica separada Muitos fisicalistas que percebem corretamente que tudo o que temos no cracircnio eacute um ceacuterebro acham que por esta razatildeo devem negar a eficaacutecia causal dos aspectos mentais do ceacuterebro ou mesmo a existecircncia desses aspectos mentais irredutiacuteveis Acredito que ambas as visotildees estejam equivocadas Ambas tentam resolver o problema mente-corpo quando a abordagem correta eacute perceber que tal problema natildeo existe O lsquoproblema mente-corporsquo natildeo eacute um problema mais real que o do lsquoestocircmago-digestatildeorsquordquo

70 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Os dualistas de propriedades pensam que o problema mente-corpo eacute

espantosamente difiacutecil talvez completamente insoluacutevel Os materialistas

concordam que se a intencionalidade e a consciecircncia realmente existem e satildeo

irredutiacuteveis a fenocircmenos fiacutesicos entatildeo de fato haveria um difiacutecil problema

mente-corpo mas eles pretendem ldquonaturalizarrdquo a intencionalidade e talvez

tambeacutem a consciecircncia Por ldquonaturalizaccedilatildeordquo de fenocircmenos mentais eles

entendem a sua reduccedilatildeo a fenocircmenos fiacutesicos

Perpassando as incontaacuteveis divergecircncias teoacutericas entre dualistas e

fisicalistas se encontra um liame terminoloacutegico herdado de Descartes que

contrapotildee o fiacutesico ao mental essa distinccedilatildeo substancial do mundo por sua

vez teria sido uacutetil para superar o aparente conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia

no seacuteculo XVII Sendo assim os assuntos concernentes agrave alma e agrave moral

humanas seriam tratados exclusivamente pela Religiatildeo enquanto os

cientistas se debruccedilariam sobre os mais diversos fenocircmenos naturais ndash

fiacutesicos quiacutemicos bioloacutegicos etc Em realidade natildeo houve uma completa

superaccedilatildeo do conflito como o proacuteprio Searle adverte (2010c) haja vista

que Galileu se retratou perante a Igreja e Descartes se mudou para a mais

tolerante Holanda Interessante notarmos que o filoacutesofo britacircnico Gilbert

Ryle tambeacutem menciona os pensadores italiano e francecircs na origem do erro

categorial presente na doutrina do fantasma na maacutequina Poreacutem no que

se refere ao conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia Ryle (1970 p 18-9) o

restringe agrave esfera pessoal de Descartes que aceitou o mecanicismo

galilaico somente na esfera corpoacuterea

[Q]uando Galileu mostrou que os seus meacutetodos de descoberta cientiacutefica eram

capazes de estabelecer uma teoria mecacircnica que abrangeria todos os

ocupantes do espaccedilo Descartes encontrou em si proacuteprio duas razotildees em

conflito Como homem de gecircnio cientiacutefico natildeo tinha outro remeacutedio senatildeo

sancionar as descobertas da mecacircnica ao passo que como homem religioso e

moral natildeo poderia aceitar como Hobbes aceitou os desencorajantes

corolaacuterios dessas descobertas ou seja que a natureza humana difere apenas

em grau de complexidade do mecanismo de um reloacutegio O mental natildeo poderia

ser uma variedade do mecacircnico

Maxwell Morais de Lima Filho | 71

Eacute justamente contra essa visatildeo que o autor drsquoA Redescoberta da

Mente defende que o passo que devemos dar antes mesmo de iniciar a

investigaccedilatildeo eacute abandonar o dualismo conceitual que estaacute presente nas

concepccedilotildees mais diacutespares do espectro da Filosofia da Mente o dualismo

de substacircncia o dualismo de propriedade o materialismo o monismo o

behaviorismo a teoria da identidade o funcionalismo e a inteligecircncia

artificial forte Se largarmos o dualismo conceitual dissolveremos o falso

dilema que nos faz acreditar que ou defendemos uma concepccedilatildeo dualista

ou uma fisicalista como ostenta Searle (2002a p 15) nesta passagem

Os filoacutesofos analiacuteticos juntamente com o restante da tradiccedilatildeo cartesiana

assumiram de modo caracteriacutestico que ldquomentalrdquo implica ldquonatildeo-materialrdquo ou

ldquoimaterialrdquo e que ldquomaterialrdquo ou ldquofiacutesicordquo implica ldquonatildeo mentalrdquo No entanto

quando se reflete sobre o modo como o ceacuterebro opera tem-se a impressatildeo de

que ambos os pressupostos satildeo obviamente falsos

Feitas essas ressalvas exporemos as criacuteticas que Searle tece agraves

principais correntes da Filosofia da Mente comeccedilando pelo dualismo de

substacircncia Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia rastreamos versotildees dessa

concepccedilatildeo sendo defendidas por pensadores desde a Greacutecia Antiga sendo

Platatildeo o mais insigne entre eles Tambeacutem registramos brevemente que o

dualismo de substacircncia se configurou como uma posiccedilatildeo-padratildeo tanto na

Patriacutestica como na Escolaacutestica e foi defendido por eruditos do porte de

Agostinho e de Tomaacutes de Aquino Em que pesem todos esses antecedentes

a versatildeo do dualismo de substacircncia que eacute levada em consideraccedilatildeo pela

maioria dos filoacutesofos da mente eacute aquela consumada na obra de Reneacute

Descartes Em resumo o filoacutesofo francecircs propunha uma cisatildeo entre o

domiacutenio fiacutesico res extensa (substacircncia material ou fiacutesica) e o domiacutenio

mental res cogitans3 (alma mente ou substacircncia mental) Para

fundamentar a dualidade ontoloacutegica o filoacutesofo francecircs parte do princiacutepio

de distinccedilatildeo para afianccedilar a possibilidade de concebermos claramente que

3 Cottingham (1999 p 26) nos adverte para natildeo nos desencaminharmos pelo significado religioso ou espiritual que foi imputado ao termo ldquoalmardquo tendo em conta que Descartes utiliza os vocaacutebulos ldquolrsquoacircme (ldquoalmardquo) e lrsquoesprit (ldquomenterdquo) mais ou menos indiferentemente simplesmente para se referir ao que quer que seja consciente []rdquo

72 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

a discriminaccedilatildeo e a independecircncia entre corpo e alma decorrem do fato de

eles assim terem sido produzidos por Deus Mas afinal de contas em que

reside a diferenccedila fundamental entre esses dois domiacutenios ontoloacutegicos

Descartes (1996 p 326) responde a esse questionamento afirmando que

a caracteriacutestica crucial dos corpos eacute a extensatildeo e a da alma o pensamento

E embora [] eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente

conjugado todavia jaacute que de um lado tenho uma ideacuteia clara e distinta de mim

mesmo na medida em que sou apenas uma coisa pensante [res cogitans] e

inextensa e que de outro tenho uma ideacuteia distinta do corpo na medida em

que eacute apenas uma coisa extensa [res extensa] e que natildeo pensa eacute certo que este

eu isto eacute minha alma pela qual eu sou o que sou eacute inteira e verdadeiramente

distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele [independecircncia

entre alma e corpo]

Seguindo o raciociacutenio cartesiano ao examinar o meu corpo (ou outro

qualquer como uma mesa por exemplo) constatariacuteamos que ele tem uma

extensatildeo e a partir disso posso falar algo como ldquomeccedilo 174 mrdquo

Conquanto natildeo faria sentido algum aferirmos ao peacute da letra o

comprimento da minha crenccedila na democracia Logo haacute uma diferenciaccedilatildeo

ontoloacutegica entre o meu corpo (coisa fiacutesicasubstacircncia extensa) e a minha

mente (coisa natildeo fiacutesicasubstacircncia pensante) a coisa extensa eacute natildeo

pensante e a coisa pensante eacute natildeo extensa Decorre diretamente dessa

distinccedilatildeo a irredutibilidade e a independecircncia do mental em relaccedilatildeo ao

fiacutesico e entre outras coisas isso significa que natildeo haacute nenhum

impedimento para a persistecircncia de minha alma apoacutes a morte do meu

corpo Para Descartes (2004 p 227)

o corpo humano na medida em que difere dos outros corpos eacute constituiacutedo

por certa configuraccedilatildeo de membros e de outros acidentes desse modo ao

passo que a mente humana natildeo eacute constituiacuteda dessa maneira a partir de

acidentes nenhuns mas eacute pura substacircncia Pois embora todos os seus

acidentes se modifiquem ndash ela entende umas coisas quer outras sente outras

etc ndash nem por isso a proacutepria mente torna-se uma outra Ao passo que o corpo

humano torna-se outro em virtude apenas de que se modifique a figura de

qualquer uma de suas partes Disto se segue que tal corpo morre muito

Maxwell Morais de Lima Filho | 73

facilmente enquanto a mente ou a alma do homem (o que natildeo distingo) eacute

imortal por sua natureza

Jaacute em sua eacutepoca o filoacutesofo francecircs foi criticado por defender a

interaccedilatildeo entre esses dois tipos totalmente diferentes de substacircncia porque

restou inexplicado como algo fiacutesico causaria algo mental e inversamente

como o mental atuaria sobre o fiacutesico Na tentativa de resguardar seu

posicionamento interacionista ele recorreu agrave glacircndula pineal e aos

espiacuteritos animais resguardando agravequela a sede da alma e conferindo a estes

uacuteltimos a funccedilatildeo comunicativa entre as duas substacircncias Todavia

Descartes (1996 p 328-9) nos alerta para natildeo olvidarmos que o contraste

metafiacutesico entre espiacuterito e mateacuteria natildeo impede a sua iacutentima conjunccedilatildeo

como uma totalidade coerente

A natureza me ensina tambeacutem por esses sentimentos de dor fome sede etc

que natildeo somente estou alojado em meu corpo como um piloto em seu navio

mas que aleacutem disso lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo

confundido e misturado que componho com ele um uacutenico todo

Para Cottingham (1989) seria incorreto enquadrar a posiccedilatildeo de

Descartes como um dualismo pois existem atributos humanos que natildeo se

encaixariam nem como modos de extensatildeo nem como modos de

pensamento haja vista que seriam o resultado da uniatildeo de ambos Sendo

assim como os fenocircmenos psicofiacutesicos natildeo se identificariam nem aos

fenocircmenos fiacutesicos (res extensa) nem aos mentais (res cogitans)

estariacuteamos diante de um ldquotrialismo cartesianordquo Para justificar sua linha

de raciociacutenio Cottingham (1989 p 172) menciona uma carta que

Descartes enviou agrave rainha Elizabeth em 1643 na qual o filoacutesofo francecircs

reconhece a existecircncia de ldquotrecircs categorias ou noccedilotildees primitivasrdquo a forma

e o movimento se relacionam agrave extensatildeo a compreensatildeo e a vontade ao

pensamento e as sensaccedilotildees e paixotildees agrave uniatildeo entre o corpo e a alma

Independentemente de qual leitura exegeacutetica prevaleccedila ndash dualismo ou

trialismo ndash o ponto eacute que os expedientes da glacircndula pineal e dos espiacuteritos

animais utilizados por Descartes estatildeo longe de serem satisfatoacuterios Por um

74 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

lado eacute incoerente delimitar a alma na glacircndula pineal porque a res cogitans

eacute uma substacircncia natildeo extensa e portanto sem localizaccedilatildeo espacial por

outro ainda que se considere que os espiacuteritos animais sejam constituiacutedos de

uma substacircncia fiacutesica bastante delicada permanece aberta a questatildeo

original como os espiacuteritos animais que possuem massa e satildeo espacialmente

situados satildeo capazes de interatuar com uma substacircncia imaterial Natildeo

obstante as criacuteticas direcionadas ao dualismo de substacircncia ao longo dos

seacuteculos e o fato de ele ser minoritaacuterio no ambiente acadecircmico atual natildeo

devemos esquecer que essa concepccedilatildeo estaacute intimamente afinada tanto com

o senso comum quanto com o pensamento religioso pois a maioria das

Religiotildees ndash se natildeo todas ndash defende uma separaccedilatildeo entre a alma e o corpo

Para o autor drsquoA Redescoberta da Mente no entanto essa corrente seria

inconciliaacutevel com o arcabouccedilo conceitual proveniente das Ciecircncias da

Natureza segundo o qual as caracteriacutesticas de niacutevel superior se

fundamentam na microestrutura o que nos impede de tratarmos a

consciecircncia como se fosse uma substacircncia distinta ou uma entidade

adicional ao substrato fiacutesico Nesse sentido Searle (2010a p 4-5) assevera

que por ser causada e realizada neurofisiologicamente eacute que a consciecircncia

natildeo passa de uma caracteriacutestica de niacutevel superior do sistema nervoso

O cheiro da flor o som da sinfonia os pensamentos sobre os postulados da

geometria euclidiana ndash tudo eacute causado por processos bioloacutegicos de niacutevel

inferior no ceacuterebro e ateacute onde sabemos os elementos cruciais satildeo os

neurocircnios e as sinapses

[]

Assim eacute possiacutevel resumir da seguinte maneira as duas relaccedilotildees cruciais entre

consciecircncia e ceacuterebro os processos neurocircnicos de niacutevel inferior no ceacuterebro

causam a consciecircncia e a consciecircncia eacute apenas uma caracteriacutestica de niacutevel

superior de um sistema composto de elementos neurocircnicos de niacutevel inferior

Obviamente esse modo de pensar vai de encontro agrave tese central do

dualismo de substacircncia de que a distinccedilatildeo ontoloacutegica4 entre os dois

4 Por motivos distintos o eliminativista Rorty (1994 p 133) tambeacutem critica as categorias cartesianas ldquoEssas assim chamadas categorias ontoloacutegicas [de lsquomentalrsquo e de lsquofiacutesicorsquo] satildeo simplesmente os modos de embalar noccedilotildees deveras heterogecircneas de fontes histoacutericas deveras heterogecircneas que eram convenientes aos propoacutesitos do proacuteprio Descartes

Maxwell Morais de Lima Filho | 75

domiacutenios sustenta que o fiacutesico tem um modo de existecircncia diferente do

mental Portanto ao defender que a consciecircncia eacute uma caracteriacutestica

emergente do sistema nervoso o filoacutesofo estadunidense estaacute propondo

que o acircmbito fiacutesico eacute mais abrangente do que o dualista de substacircncia

poderia supor pois a mentalidade eacute fiacutesica Eacute somente a partir disso que

compreendemos a revisatildeo do adaacutegio cartesiano pretendida por Searle

(2006 p 26) quando afirma que ldquosou um ser pensante portanto sou um

ser fiacutesicordquo Mais do que isso como a consciecircncia emerge da organizaccedilatildeo e

da complexidade fiacutesicas Searle (2010d p 98) tambeacutem discorda do

posicionamento cartesiano de que os animais natildeo humanos satildeo

autocircmatos haja vista que o grau de semelhanccedila5 conosco ndash principalmente

com os primatas ndash leva-nos na direccedilatildeo contraacuteria

Do ponto de vista anatocircmico as semelhanccedilas satildeo grandes demais para que

essa especulaccedilatildeo [da ausecircncia de intencionalidade e de pensamento nos

animais natildeo humanos] pareccedila plausiacutevel ainda que remotamente do ponto de

vista fisioloacutegico como sabemos os mecanismos que produzem a

intencionalidade e o pensamento nos humanos tecircm estreitos paralelos com os

que se verificam em outros animais

Foi com o intuito de fugir das dificuldades que se impotildeem ao

dualismo de substacircncia que alguns filoacutesofos comprometidos com a

irredutibilidade dos fenocircmenos mentais propuseram o dualismo de

propriedade Essa abordagem postula a existecircncia de uma uacutenica

substacircncia a substacircncia fiacutesica (monismo fiacutesico) e de dois tipos de

propriedade mutuamente excludentes as fiacutesicas e as mentais Ao

observarmos uma pessoa qualquer diria o dualista de propriedade

Mas os seus propoacutesitos natildeo satildeo os nossos Os filoacutesofos natildeo devem pensar em seu conglomerado artificial como se fosse uma descoberta de algo preacute-existente ndash uma descoberta que por lsquointuitivarsquo ou lsquoconceitualrsquo ou lsquocategoacutericarsquo estabelece paracircmetros permanentes para a ciecircncia e a filosofiardquo

5 Changeux (1985 p 74) assegura que natildeo haacute diferenccedila significativa entre ldquoas peccedilas e parafusosrdquo que compotildeem por exemplo os ceacuterebros dos ratos e dos homens ldquoTanto ao niacutevel da anatomia macroscoacutepica do coacutertex como da sua arquitectura microscoacutepica natildeo ocorre qualquer brutal reorganizaccedilatildeo lsquoqualitativarsquo que leve do ceacuterebro lsquoanimalrsquo ao ceacuterebro lsquohumanorsquo Deu-se pelo contraacuterio uma evoluccedilatildeo quantitativa e contiacutenua do nuacutemero total de neuroacutenios da diversidade das aacutereas do nuacutemero de possibilidades conexionais entre neuroacutenios e por conseguinte da complexidade das redes de neuroacutenios que constituem a maacutequina cerebralrdquo

76 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

constatamos que o seu corpo ndash cabeccedila pernas braccedilos etc ndash tem um modo

de existecircncia fiacutesico poreacutem se analisarmos o ceacuterebro dela veremos que

aleacutem de possuir propriedades fiacutesicas ndash muitas delas semelhantes agraves que

satildeo encontradas na cabeccedila nas pernas e nos braccedilos ndash tal oacutergatildeo tambeacutem

possui propriedades mentais

Dessa maneira poderiacuteamos afirmar que esse enrugado oacutergatildeo

formado por bilhotildees de ceacutelulas e que pesa um quilo e meio possui

propriedades que se distinguem e natildeo se reduzem a nenhuma dessas

propriedades fiacutesicas Em geral contrapotildeem-se os aspectos subjetivo

qualitativo e privado das propriedades mentais agrave precisatildeo intersubjetiva

com que mensuramos os objetos e propriedades fiacutesicos o acesso direto agrave

dor estaacute restrito ao sujeito que a experiencia mas que ele pese oitenta

quilos eacute um dado objetivo quantitativo e publicamente acessiacutevel a

qualquer um que disponha de uma balanccedila Como explica Pereira (2013)

os filoacutesofos da mente se valem dos termos quale (singular) e qualia6

(plural) para se referir ao caraacuteter subjetivo e qualitativo dos fenocircmenos

mentais que experienciamos quando saboreamos o azedume do

tamarindo vemos a beleza de um flamboyant ouvimos uma bela canccedilatildeo

tocamos na pessoa querida ou cheiramos um bebecirc Abrantes (2005 p

226) nos alerta entretanto que os uacutenicos estados mentais

consensualmente considerados qualia satildeo as sensaccedilotildees Nesse sentido

muitos filoacutesofos negam ndash diferentemente de Searle ndash que haja qualquer

tipo de aspecto qualitativo envolvido na realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo

matemaacutetica como a adiccedilatildeo por exemplo

Para o dualista de propriedade as propriedades mentais satildeo especiais

em dois sentidos em primeiro lugar por conta de sua singularidade

bioloacutegica apesar de os objetos serem constituiacutedos basicamente pelos

6 Por salvaguardar que a consciecircncia eacute qualitativa Searle (2010b p 34) julga como absurda a tentativa daqueles que pretendem apartar o que para ele eacute inseparaacutevel ldquoNatildeo haacute dois problemas separados ndash o problema da consciecircncia e entatildeo um problema subsidiaacuterio o dos qualia O problema da consciecircncia eacute idecircntico ao dos qualia porque os estados conscientes satildeo acima de tudo estados qualitativosrdquo Em outras palavras Searle (2010c p 57-8) considera o termo qualia dispensaacutevel porque todos os fenocircmenos conscientes satildeo qualitativos ldquo[T]al como entendo esses termos qualia eacute somente uma designaccedilatildeo coletiva dos estados conscientes Na medida em que a lsquoconsciecircnciarsquo e os qualia satildeo coextensivos natildeo haacute razatildeo para introduzir um termo especiacuteficordquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 77

mesmos ldquoblocos de construccedilatildeordquo (aacutetomos) somente algumas estruturas

fiacutesicas possuem propriedades mentais a saber ceacuterebros complexos Em

segundo lugar a despeito de dependerem ontologicamente dos sistemas

fiacutesicos que as produzem as propriedades mentais satildeo irredutiacuteveis e

inexplicaacuteveis a partir dos conceitos provenientes das Ciecircncias Naturais

como a Fiacutesica a Quiacutemica e a Biologia

Para mostrar isso o filoacutesofo Frank Jackson (1986 2004) propocircs um

importante experimento de pensamento objetivando sustentar a

irredutibilidade dos qualia Imaginemos que Mary seja uma neurocientista

que sabe tudo acerca dos aspectos fiacutesicos e neurofisioloacutegicos das cores isto

eacute que ela domine o conhecimento sobre as leis oacutepticas das reflectacircncias

de luz bem como da anatomia e da fisiologia das ceacutelulas fotorreceptoras e

do coacutertex visual Natildeo obstante seu profundo conhecimento cientiacutefico ela

vive em um mundo preto e branco e portanto nunca experenciou

visualmente cores que natildeo estas duas Imaginemos ainda que um dia ela

saiu do seu laboratoacuterio alvinegro e percebeu pela primeira vez a cor

vermelha de uma maccedilatilde De acordo com essa linha de pensamento essa

experiecircncia visual traria um novo tipo de conhecimento a Mary a saber a

experiecircncia qualitativa de ver vermelho Ora argumenta Jackson se Mary

possuiacutea todo o conhecimento fiacutesico sobre as cores agrave sua disposiccedilatildeo e

mesmo assim aprende um novo fato cromaacutetico concluiacutemos que a sensaccedilatildeo

de ver vermelho (fato novo) aleacutem de natildeo ser fiacutesica eacute irredutiacutevel

ontologicamente a qualquer tipo de estado ou propriedade material Com

isso Jackson (2004 p 765) quer defender que as propriedades mentais

estatildeo acima e aleacutem da realidade fiacutesica e que se mantecircm intocadas pela

explicaccedilatildeo fiacutesico-bioloacutegica da visatildeo

A conclusatildeo [] eacute que os qualia satildeo deixados de fora da histoacuteria fisicalista E a

forccedila polecircmica do argumento do Conhecimento eacute que eacute tatildeo difiacutecil negar a sua

afirmaccedilatildeo central de que se pode ter toda a informaccedilatildeo fiacutesica sem ter todas as

informaccedilotildees que haacute para ter

78 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Searle (2000) natildeo admite essa diferenciaccedilatildeo e advoga que o mental eacute

fiacutesico por ser bioloacutegico ou seja os fenocircmenos mentais satildeo fenocircmenos

bioloacutegicos tais quais outros processos encontrados no mundo vivo como

a digestatildeo a fotossiacutentese e a mitose Portanto para sermos exitosos na

superaccedilatildeo do dualismo de propriedade devemos rejeitar a terminologia

que exclui a consciecircncia do mundo natural e a trata como se natildeo fosse

bioloacutegica Com o intuito de denunciar o quanto esse sistema de categorias

eacute problemaacutetico ele assevera que o dualista inevitavelmente estaraacute diante

de uma encruzilhada se pressupuser que as propriedades mentais estatildeo

acima e aleacutem das propriedades fiacutesicas Se levarmos em consideraccedilatildeo o

fechamento causal fiacutesico do Universo ndash todo evento fiacutesico possui como

causa suficiente outro evento fiacutesico ndash teriacuteamos como resultado que as

propriedades natildeo fiacutesicas satildeo causalmente ineficazes ou seja o mental

subsistiria como um domiacutenio epifenomecircnico

Nesse cenaacuterio as nossas sensaccedilotildees crenccedilas e desejos seriam

totalmente irrelevantes para o nosso comportamento assim como seria

ilusoacuteria a causaccedilatildeo mental O caminho alternativo eacute igualmente

problemaacutetico porque se comprometeria ndash na contramatildeo do que

pressupotildeem as melhores teorias cientiacuteficas ndash com a tese de que o Universo

natildeo eacute fisicamente fechado Essa conjuntura asseguraria a eficaacutecia causal

do mental em troca de acatarmos a sobreposiccedilatildeo causal de certos eventos

isto eacute comprometer-nos-iacuteamos com a sobredeterminaccedilatildeo causal por

afirmar que um evento fiacutesico F eacute duplamente produzido por um evento

fiacutesico F e por um evento mental M Segundo Searle7 (2014 p 107)

sabemos [] que quando eu levanto meu braccedilo haacute uma histoacuteria a ser contada

no niacutevel de disparos de neurocircnios neurotransmissores e contraccedilotildees

musculares que eacute suficiente para descrever [] o movimento do meu braccedilo

Entatildeo se supusermos que a consciecircncia tambeacutem funciona no movimento do

meu braccedilo entatildeo parece que temos duas histoacuterias causais distintas nenhuma

redutiacutevel agrave outra e para colocar muito brevemente a questatildeo meus

7 Em Lima Filho (2010b) analisamos em detalhes o problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico

Maxwell Morais de Lima Filho | 79

movimentos corporais tecircm muitas causas Noacutes temos [sobredeterminaccedilatildeo]

causal

O autor drsquoA Redescoberta da Mente eacute da opiniatildeo que apesar da

relutacircncia o dualista de propriedade acaba por cair na ldquovelhardquo dualidade

substancial como fica patente no uso de metaacuteforas que insinuam a

separaccedilatildeo entre os fenocircmenos conscientes a consciecircncia se origina do

ceacuterebro mas estaacute acima e aleacutem dos processos cerebrais por ser uma

propriedade emergente Esse modo de pensar nos conduz agrave imagem da

consciecircncia como uma cereja que por estar acima do bolo dele difere

Searle (2014 p 114) enxerga uma inconsistecircncia nessa posiccedilatildeo segundo a

qual a consciecircncia (cereja) eacute uma propriedade que estaacute acima e aleacutem do

ceacuterebro (bolo) afirmando que essa incongruecircncia acaba por minar o

monismo fiacutesico e passa a incidir em alguma versatildeo do dualismo de

substacircncia

A imagem verdadeira se vamos persistir na metaacutefora do bolo eacute que a

consciecircncia eacute o estado em que o bolo (ceacuterebro) estaacute Oficialmente o dualista

de propriedades diz que a consciecircncia eacute uma propriedade do ceacuterebro mas se

vocecirc considerar propriedades incontroversas do ceacuterebro como peso forma

cor solidez etc ningueacutem diz que elas ldquosurgem dordquo [hellip] ou estatildeo ldquoaleacutemrdquo [hellip]

do ceacuterebro e somente num sentido especial algumas delas podem ser descritas

como ldquoemergentesrdquo [hellip] e certamente natildeo como ldquoemergentes dordquo [hellip] ceacuterebro

Uma corrente que se opocircs fortemente ao dualismo foi o behaviorismo

analiacutetico8 Muitos estudiosos consideram como marco da Filosofia da

Mente Contemporacircnea o livro de Gilbert Ryle (1970 p 11) Concept of

Mind publicado originalmente em 1949 que principia resumindo a

posiccedilatildeo a ser combatida o ldquomito de Descartesrdquo ou o ldquodogma do fantasma

na maacutequinardquo

8 Natildeo devemos confundi-lo com a corrente psicoloacutegica associada aos nomes de John Watson Ivan Pavlov e Burrhus Frederic Skinner Como esclarece Blackburn (1997 p 39) em vez de levar em consideraccedilatildeo a introspecccedilatildeo e a subjetividade o behaviorismo psicoloacutegico inicialmente se orientou pela perspectiva metodoloacutegica de mensuraccedilatildeo das causas comportamentais Posteriormente sobretudo com Skinner passou a vigorar o empreendimento de se gerir a accedilatildeo humana por meio de estiacutemulos e reforccedilos

80 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A doutrina oficial que vem principalmente de Descartes eacute qualquer coisa

como isto com as exceccedilotildees duvidosas dos idiotas e das crianccedilas de colo todo

ser humano tem um corpo e um espiacuterito Alguns prefeririam dizer que todo

ser humano eacute simultaneamente corpo e espiacuterito O seu corpo e o seu espiacuterito

estatildeo geralmente reunidos mas depois da morte do corpo o espiacuterito pode

continuar a existir e a funcionar

O intento de Ryle eacute imunizar todos contra o ldquopatoloacutegicordquo legado

cartesiano valendo-se de anaacutelises conceituais com o duplo objetivo de

criticar as operaccedilotildees realizadas pelos defensores da ldquodoutrina oficialrdquo e de

situar o conceito mental no tipo loacutegico adequado Com o intuito de ilustrar

sua argumentaccedilatildeo contra o dualismo ele daacute o seguinte exemplo de erro

categorial Se apoacutes termos apresentado a Reitoria as Unidades

Acadecircmicas as Faculdades o Restaurante Universitaacuterio e os Museus que

compotildeem a nossa instituiccedilatildeo o que responderiacuteamos ao estrangeiro que

persistisse perguntando pela localizaccedilatildeo da Universidade haja vista que

ele afirma ter visto somente os departamentos administrativos as salas de

aula e os aparelhos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica Ora diz Ryle (1970 p 16)

devemos mostrar que o nosso colega se equivoca ao natildeo observar que a

Universidade eacute constituiacuteda pela coordenaccedilatildeo conjunta dos oacutergatildeos

burocraacuteticos espaccedilos didaacuteticos laboratoacuterios etc que ele observou em sua

visita ao campus

O seu erro [do estrangeiro] assenta na suposiccedilatildeo inocente de que era correto

falar da Christ Church da Bodleian Library do Ashmolean Museum e da

Universidade como se a ldquoUniversidaderdquo significasse um membro extra da

classe da qual estas outras unidades satildeo membros Ele estava a situar

erroneamente a Universidade na mesma categoria a que as outras instituiccedilotildees

pertencem

Consoante o behaviorista algo semelhante ocorre quando nos

emocionamos ao ler um poema sentimos dor de dente desejamos um

chocolate ou cremos na Biacuteblia tendo em conta que natildeo estariacuteamos nos

referindo a eventos mentais interiores mas tatildeo somente ao nosso

comportamento seja ele real ou potencial Eacute justamente por esse motivo

Maxwell Morais de Lima Filho | 81

que ele pretende preservar a equivalecircncia semacircntica quando traduz a

crenccedila de Tomeacute no Cristianismo nas seguintes descriccedilotildees

comportamentais

(i) Se lhe oferecerem de presente a Biacuteblia ou o Coratildeo ele optaraacute pelo primeiro

(ii) Se lhe perguntarem em qual livro Deus se revela ele responderaacute que eacute na Biacuteblia

(iii) Se lhe questionarem sobre a autoria dos Dez Mandamentos ele afirmaraacute que

foram escritos por Deus

(iv) Se houver oportunidade ele pregaraacute a mensagem biacuteblica

Uma criacutetica inicial a essa proposta teoacuterica se reflete no repuacutedio de

sermos reduzidos agrave pura e simples mecacircnica comportamental

desconsiderando-se para tal fim a totalidade dos fenocircmenos subjetivos e

qualitativos que constituem a rica vida mental que todos noacutes inclusive os

behavioristas experimentamos Em outras palavras haacute uma distinccedilatildeo de

tipo9 entre a crenccedila cristatilde e a observaccedilatildeo comportamental de Tomeacute Para

ser consistente essa anaacutelise deveria levar em consideraccedilatildeo a

indeterminaccedilatildeo e o nuacutemero potencialmente infinito de vias relacionadas agrave

crenccedila religiosa de Tomeacute e natildeo apenas os quatro condicionais listados

anteriormente

Esse tipo de exame tambeacutem padece de circularidade porque o

behaviorista deve lanccedilar matildeo de hipoacuteteses adicionais natildeo explicitadas para

sustentar que a crenccedila no Cristianismo se traduz comportamentalmente

na inclinaccedilatildeo de ser presenteado por uma Biacuteblia Caso Tomeacute possua dez

traduccedilotildees comentadas da Biacuteblia em diferentes liacutenguas seria provaacutevel que

ele preferisse ganhar o Coratildeo de presente ndash na verdade a lista de regalos

passiacuteveis de corroborar a crenccedila de Tomeacute eacute deveras extensa sendo muito

difiacutecil determinaacute-la precisamente A disposiccedilatildeo comportamental de

preferir a Biacuteblia tambeacutem assume sub-repticiamente que Tomeacute sabe e gosta

de ler o que obviamente natildeo eacute necessaacuterio Por fim querer ganhar uma

9 Searle (2010h p 337) realccedila essa dessemelhanccedila entre os fenocircmenos mentais conscientes e a anaacutelise comportamental a partir desse exemplo da dor gaacutestrica ldquoO fato de sentir essa dor eacute completamente diferente ndash aliaacutes um tipo de fato completamente diferente ndash de quaisquer fatos inclusive condicionais que digam respeito a meu comportamento Ter uma dor de estocircmago eacute uma coisa adotar este ou aquele tipo de comportamento adequado a uma dor de estocircmago eacute algo totalmente diferenterdquo

82 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Biacuteblia soacute faz sentido se Tomeacute acreditar que ela natildeo viraacute com paacuteginas em

branco que ela estaacute redigida em liacutengua compreensiacutevel que sua mensagem

natildeo foi corrompida por editores inescrupulosos etc

A tentativa de se explicar a crenccedila de Tomeacute no Cristianismo

(analysandum) atraveacutes de sua conduta de pregaccedilatildeo evangeacutelica (analysans)

eacute malograda porque o comportamento que pretende esclarecer o estado

psicoloacutegico eacute ele proacuteprio intencional10 Ou seja os movimentos corporais

de pegar a Biacuteblia e sair de porta em porta anunciando que Jesus eacute a nossa

salvaccedilatildeo e a soluccedilatildeo para todos os nossos problemas soacute podem ser

denominados accedilotildees se forem causados por intenccedilotildees que satildeo tatildeo mentais

quanto o que se pretende elucidar a crenccedila de Tomeacute Eacute guiado por linha

de raciociacutenio semelhante que Searle (2010h p 339) afirma que o

behaviorista estaria diante de um dilema pois ou ele considera que o

comportamento eacute intencional ou natildeo por um lado permaneceria o

elemento mental se se admitir que o comportamento eacute intencionalmente

causado por outro caso natildeo se defenda isso

temos de interpretar o comportamento como uma seacuterie de movimentos

corporais descritos tatildeo somente como movimentos corporais e nenhuma

anaacutelise dos enunciados sobre crenccedilas desejos e intenccedilotildees em funccedilatildeo de

enunciados sobre movimentos corporais jamais seraacute suficiente porque os

movimentos ainda natildeo satildeo accedilotildees humanas e a noccedilatildeo de um movimento

corporal em si mesmo eacute insuficiente para qualquer anaacutelise dos estados

mentais

Desse modo o filoacutesofo estadunidense reitera que soacute podemos

acreditar em algo ou desejarmos alguma coisa se tivermos uma Rede

(Network) com diversas crenccedilas e desejos Poreacutem como o conteuacutedo

intencional natildeo eacute autointerpretativo Searle (2010g p 249-50) postula que

a Rede necessita de um Pano de Fundo (Background)11 constituiacutedo por

habilidades preacute-intencionais

10 Consoante Leclerc (2015) Roderick Chisholm defendeu na deacutecada de 50 que eacute impossiacutevel transpormos o ciacuterculo das noccedilotildees intencionais haja vista que a intencionalidade eacute indefiniacutevel a partir de termos natildeo intencionais

11 Vimos que a intransponibilidade do ciacuterculo intencional eacute sustentada por Chisholm porque os termos natildeo intencionais satildeo inuacuteteis para definir a intencionalidade Apesar de reconhecer a importacircncia da Rede Searle (1995

Maxwell Morais de Lima Filho | 83

Todos os fenocircmenos intencionais quer sejam crenccedilas desejos esperanccedilas

medos ou outros pressupotildeem capacidades natildeo intencionais de background

para que possam funcionar Com isso quero dizer que os estados intencionais

somente determinam suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo e portanto somente

funcionam como estados intencionais se for pressuposto um conjunto de

capacidades que nos permitem aplicar os estados intencionais A

intencionalidade natildeo eacute por assim dizer autointerpretante ou autoaplicativa

[hellip] [O] ponto importante dessas habilidades de background eacute que elas

mesmas natildeo satildeo representacionais Natildeo consistem num conjunto de regras

crenccedilas ou outros tipos de representaccedilotildees

Nos anos 50 e 60 do seacuteculo XX pouco apoacutes a proposta behaviorista

de Ryle filoacutesofos como Herbert Feigl Ullin Thomas Place John Jamieson

Carswell Smart e David Malet Armstrong defenderam uma teoria da

identidade mente-ceacuterebro segundo a qual os estados mentais nada mais

satildeo do que estados fiacutesicos que ocorrem no sistema nervoso Portanto

estamos diante de um monismo fiacutesico que identifica ontologicamente o

domiacutenio psicoloacutegico ao neurobioloacutegico como ocorre na identificaccedilatildeo entre

a dor e a descarga de fibras C Em artigo publicado originalmente em 1956

Place (2002) defende a hipoacutetese cientiacutefica de que a consciecircncia eacute um

processo cerebral sem se comprometer com a suposiccedilatildeo adicional de que

a linguagem neurobioloacutegica sirva para descrever os sonhos as fantasias e

as sensaccedilotildees Eacute justamente porque a assunccedilatildeo da identidade mente-

ceacuterebro eacute anaacuteloga agravequela das Ciecircncias Naturais ndash que se reflete por sua

vez na ausecircncia de equivalecircncia semacircntica entre as descriccedilotildees dos

fenocircmenos fiacutesicos e mentais ndash que natildeo seria irracional se Royce afirmasse

p 198) recua um passo ao advogar que o Pano de Fundo preacute-intencional eacute a condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer estado intencional ldquoO Background eacute lsquopreacute-intencionalrsquo no sentido de que embora natildeo seja uma forma ou formas de Intencionalidade eacute natildeo obstante uma precondiccedilatildeo ou um conjunto de precondiccedilotildees de Intencionalidaderdquo Portanto se a definiccedilatildeo de intencionalidade empregada por Searle eacute circular natildeo deixa de ser verdade que ela se explica a partir do Pano de Fundo Ressaltamos que os obstaacuteculos impostos por determinadas praacuteticas humanas situadas podem ser transpostos devido ao compartilhamento de um Background profundo Eis dois exemplos do proacuteprio Searle (2006 p 277) ldquoDiferenccedilas de Backgrounds locais tornam difiacutecil a traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra a generalidade do Background profundo torna-a possiacutevel de qualquer modo Se vocecirc lecirc a descriccedilatildeo de um jantar festivo na casa dos Guermantes em Proust provavelmente deve achar alguns aspectos da descriccedilatildeo enigmaacuteticos Isso tem a ver com diferenccedilas de praacuteticas culturais locais Mas existem certas coisas que vocecirc pode dar por certas Por exemplo os participantes natildeo comem enfiando a comida em seus ouvidosrdquo

84 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que sente dor e que as suas fibras C natildeo disparam haja vista que o

enunciado ldquoRoyce estaacute com dorrdquo natildeo eacute sinocircnimo de ldquoas fibras C de Royce

estatildeo disparandordquo do mesmo modo que natildeo seria um absurdo declarar

que a aacutegua deste copo natildeo eacute composta por H2O

Como Searle defende que os fenocircmenos mentais satildeo causados e

realizados no sistema nervoso ele natildeo veria problema algum em localizaacute-

los espaacutecio-temporalmente nos processos cerebrais subjacentes desde que

levemos em conta que uns e outros satildeo ontologicamente distintos ou seja

que aqueles fenocircmenos possuem caracteriacutesticas intriacutensecas que os tornam

irredutiacuteveis a padrotildees sinaacutepticos estes sim descritiacuteveis a partir do

vocabulaacuterio neurocientiacutefico de terceira pessoa Dito isso vemos o porquecirc

de Searle (2010e p 129-30) criticar a identificaccedilatildeo ontoloacutegica do

fisicalismo redutivo

Assim quando o teoacuterico da identidade nos diz que os estados mentais satildeo

somente estados cerebrais haacute um modo de compreender essa tese que eacute

perfeitamente compatiacutevel com nossa pressuposiccedilatildeo de senso comum sobre o

caraacuteter intriacutenseco e irredutiacutevel da consciecircncia e de outras formas de

intencionalidade [hellip] Mas em geral natildeo eacute isso o que os teoacutericos da identidade

querem dizer Um exame cuidadoso dos textos [hellip] revela que em geral os

teoacutericos da identidade [hellip] acabam por negar a existecircncia das caracteriacutesticas

intrinsecamente mentais do mundo

Outra objeccedilatildeo eacute feita agrave contundente asserccedilatildeo de que os estados

mentais compartilhados por duas pessoas implicam que eles satildeo

necessariamente determinados por processos neurofisioloacutegicos de tipo

idecircntico Assim sendo os mesmos estados fiacutesicos devem ocorrer nos

ceacuterebros de Jacoacute e de Luiz para que eles compartilhem a crenccedila de que

Januaacuterio eacute o maior dos sanfoneiros Ora jaacute que somos cercados por

estruturas bioloacutegicas e por artefatos que satildeo multiplamente realizaacuteveis do

ponto de vista fiacutesico por que o mesmo natildeo ocorreria com os estados

mentais Em outras palavras se olhos asas reloacutegios e cadeiras satildeo

compostos e organizados fisicamente de mais de um modo por que algo

semelhante natildeo se daria com a mentalidade Destarte nada impede que a

Maxwell Morais de Lima Filho | 85

mesma crenccedila na grandiosidade musical de Januaacuterio seja realizada por

padrotildees neurocircnicos de tipo X no velho Jacoacute e de tipo Y em seu filho Searle

(2010h p 344) se vale de outros exemplos para corroborar a tese da

realizaccedilatildeo muacuteltipla do mental e para explicitar o que faz com que dois

estados psicoloacutegicos sejam do mesmo tipo

Assim vocecirc e eu podemos ter cada qual a mesma crenccedila de que estaacute nevando

sem que nossas neurofisiologias sejam necessariamente de tipo idecircntico assim

como meu carro e o seu podem ter cada qual um carburador embora o meu

seja de accedilo e o seu de latatildeo Mas entatildeo o que os estados mentais tecircm em

comum capaz de tornaacute-los de tipo idecircntico Creio que a resposta oacutebvia eacute que

eles satildeo de tipo idecircntico por causa de suas caracteriacutesticas mentais comuns

sejam elas caracteriacutesticas de consciecircncia da intencionalidade ou de ambas ou

ainda outras espeacutecies de caracteriacutesticas mentais

Aliaacutes foi motivado por esse tipo de criacutetica ao fisicalismo redutivo que

surgiu nos anos 60 a teoria funcionalista que talvez ainda hoje seja a

concepccedilatildeo de maior prestiacutegio acadecircmico De acordo com uma de suas

vertentes os fenocircmenos mentais podem ser produzidos artificialmente

pelos chips de siliacutecio de computador o que demonstraria a inexistecircncia de

um viacutenculo necessaacuterio entre ceacuterebros complexos e estados mentais Como

natildeo seriam essencialmente bioloacutegicos o aspecto relevante residiria no

papel funcional envolvido nas relaccedilotildees entre os proacuteprios estados mentais

bem como destes com as informaccedilotildees provenientes do ambiente e que

direcionam o comportamento Essa centralidade do papel funcional estaacute

por traacutes do pressuposto metodoloacutegico do teste de Turing (1950) de que se

uma maacutequina manifesta um comportamento linguiacutestico tatildeo complexo

quanto o do ser humano eacute porque nos eacute similar em inteligecircncia e

mentalidade

Com o fito de atacar esse pressuposto behaviorista do funcionalismo

e para asseverar que toda e qualquer maacutequina de Turing eacute incapaz de

compreender os siacutembolos que manipula Searle12 (1980a) propocircs o

12 Apresentamos o ataque de Searle ao funcionalismo computacional em Lima Filho (2010a)

86 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

experimento de pensamento do quarto chinecircs Em linhas gerais podemos

expor o famoso Gedankenexperiment do seguinte modo confinado em um

quarto Searle passa a receber folhas escritas em chinecircs liacutengua da qual ele

natildeo conhece um soacute ideograma e que eacute incapaz de falar quaisquer palavras

tambeacutem o fornecem um manual com regras escritas em inglecircs que lhe

permite relacionar pelo formato os siacutembolos recebidos com outras folhas

redigidas em chinecircs que ele passa por debaixo da porta Esse processo

ocorre repetidamente ndash recebimento do texto em chinecircs consulta ao

manual e devoluccedilatildeo do siacutembolo correspondente ndash e sem que o filoacutesofo se

aperceba disso o falante de chinecircs julga que estaacute entabulando uma

conversaccedilatildeo porque dele recebeu respostas satisfatoacuterias sobre o seu nome

a sua origem e a sua profissatildeo O ponto nevraacutelgico da argumentaccedilatildeo eacute que

a manipulaccedilatildeo simboacutelica natildeo eacute suficiente para a compreensatildeo semacircntica e

que o maacuteximo alcanccedilaacutevel por um programa de computador eacute a simulaccedilatildeo13

ndash mas natildeo a duplicaccedilatildeo ndash de estados mentais Eis como Searle (1998a p

38-9) posteriormente resume o seu argumento

1 Programas satildeo totalmente sintaacuteticos

2 As mentes tecircm uma capacidade semacircntica

3 A sintaxe natildeo eacute a mesma coisa que a semacircntica nem eacute por si soacute suficiente

para garantir um conteuacutedo semacircntico

Consequentemente programas natildeo satildeo mentes

Para golpear o cognitivismo ndash linha para a qual os processos

cognitivos satildeo inconscientes e computacionais ndash Searle propotildee um

argumento assentado na tese de que a computaccedilatildeo eacute relativa ao

observador e eacute exclusivamente sintaacutetica Consoante Moural (2003)

podemos resumi-lo nessas quatro asserccedilotildees

13 Analogamente Searle (2007 p 66) afirma que um programa computacional simulador da digestatildeo eacute incapaz de decompor fiacutesico-quimicamente um pedaccedilo de pizza ldquo[U]m computador realiza um modelo ou uma simulaccedilatildeo de um processo E a simulaccedilatildeo computacional de uma mente eacute como a simulaccedilatildeo computacional da digestatildeo Eu natildeo sei por qual motivo as pessoas cometem um erro tatildeo bobo Veja se fizermos uma simulaccedilatildeo computacional perfeita da digestatildeo ningueacutem poderia pensar lsquovamos comprar uma pizza e pocirc-la no computadorrsquo Eacute um modelo uma fotografia da digestatildeo Nos mostra que a estrutura formal de funcionamento de fato natildeo digere nada Isso eacute o que ocorre com um computador Um modelo computacional do que eacute apaixonar-se ler um romance ou embriagar-se natildeo se apaixona nem lecirc um romance nem se embriaga de fato Somente faz uma representaccedilatildeo dessas coisasrdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 87

(i) Por definiccedilatildeo computaccedilatildeo consiste em uma manipulaccedilatildeo formal de siacutembolos

(ii) No entanto como nem a sintaxe nem os siacutembolos satildeo definidos em termos fiacutesicos

natildeo podemos consideraacute-los intriacutensecos agrave Fiacutesica

(iii) Como o significado da sintaxe e dos siacutembolos soacute podem ser atribuiacutedos perante

um observador segue-se que o mesmo deva se dar com a computaccedilatildeo

(iv) Consequentemente a possibilidade de realizarmos uma interpretaccedilatildeo

computacional do ceacuterebro natildeo nos autoriza a conjecturar que esse oacutergatildeo seja

intrinsecamente um computador

A distinccedilatildeo capital que permeia esse argumento eacute aquela entre as

caracteriacutesticas que independem e as que dependem do observador14 como

o satildeo respectivamente a massa da moleacutecula de aacutegua e a funccedilatildeo

cronomeacutetrica do reloacutegio Com isso Searle (2002b) faz uma discriminaccedilatildeo

entre estados mentais humanos e aqueles atribuiacutedos ao computador o

estado de consciecircncia de Searle eacute intrinsecamente intencional porque

existe independentemente do que pensemos a seu respeito diversamente

dos estados mentais que outorgamos agrave maacutequina e que possuem uma

intencionalidade relativa ao observador15 Portanto o medo expresso por

14 Para Searle (1998a p 42) as Ciecircncias da Natureza se distinguem das Ciecircncias Sociais pelo estudo dessas caracteriacutesticas ldquoAs ciecircncias naturais lidam com essas propriedades da natureza que satildeo intriacutensecas ou independentes do observador no sentido de sua existecircncia natildeo depender do que pensamos sobre ela Exemplos dessas propriedades satildeo a massa a fotossiacutentese a carga eleacutetrica e a mitose As ciecircncias sociais em geral lidam com propriedades que satildeo dependentes do observador ou relativas ao observador no sentido de que sua existecircncia depende de como os seres humanos tratam usam ou ao menos pensam a respeito delas Exemplos tiacutepicos satildeo o dinheiro a propriedade e o casamentordquo

15 Estamos diante de uma intencionalidade intriacutenseca quando adicionamos mentalmente dois e dois e obtemos quatro jaacute quando expressamos esse caacutelculo pela linguagem falada ou escrita referimo-nos agrave intencionalidade derivada por fim temos tambeacutem a intencionalidade ldquocomo serdquo quando falamos que o gramado ou o carro estatildeo

sedentos Como adverte Searle (2010f p 189-90) a sede do gramado ou do automoacutevel natildeo eacute intencional mas tatildeo somente metafoacuterica ldquoa intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo eacute intencionalidade de modo nenhum Quando afirmo que um sistema tem uma intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo lhe atribuo intencionalidade Estou afirmando apenas que o sistema se comporta como se tivesse intencionalidade embora natildeo a tenha de fatordquo Como a intencionalidade intriacutenseca precede a linguagem poderiacuteamos encontraacute-la em bebecircs humanos e em outras espeacutecies animais Eacute nesse sentido que as carecircncias de aacutegua e de alimento causariam os primordiais desejos de beber e de comer como assinala Searle (2000 p 91-2) ldquoAs formas biologicamente mais primitivas de intencionalidade satildeo as formas de desejo que envolvem necessidades fiacutesicas como a fome e a sede Ambas satildeo intencionais porque ambas satildeo formas de desejo A fome eacute um desejo de comer a sede um desejo de beberrdquo Searle (2012 p 24) vai aleacutem e advoga que esses estados mentais preacute-linguiacutesticos satildeo indissociaacuteveis de suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo ldquoEssas formas preacute-linguiacutesticas de intencionalidade jaacute possuem algumas propriedades loacutegicas cruciais Porque percepccedilotildees intenccedilotildees crenccedilas desejos e assim por diante satildeo formas de intencionalidade elas trazem em si especificamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees de sucesso ou fracasso Por exemplo um animal faminto tem o desejo de comer e patologias agrave parte assim ele tem a capacidade de reconhecer quando esse desejo eacute satisfeito e quando natildeo o eacuterdquo No entanto essa alegada intrinsecalidade dos estados mentais eacute posta em duacutevida por Gauker (2012 p 154) ldquoO fato de que os bebecircs os animais natildeo humanos e os hominiacutedeos preacute-linguiacutesticos possuam estados intencionais se isso fosse um fato natildeo mostraria

88 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Hal 9000 quando David Bowman estava desativando seus processos

superiores natildeo passa de uma fobia metafoacuterica Para Searle (1980a) natildeo haacute

qualquer arbitrariedade no criteacuterio que se funda na intencionalidade

intriacutenseca para diferenciar a mentalidade da decisatildeo de Bowman do pavor

figurado de Hal 9000 se assim o fosse estaria subjugado a nosso bel-

prazer encarar os nossos semelhantes como zumbis e a estiagem como

mental

Os argumentos levantados por Searle de que a sintaxe eacute insuficiente

para a semacircntica e de que ela natildeo eacute intriacutenseca agrave Fiacutesica natildeo raras vezes tem

conduzido agrave interpretaccedilatildeo de que ele seja repulsivo ao projeto de um

ceacuterebro e de uma mente artificiais No entanto essa chave de leitura eacute

injusta porque ambos os argumentos do filoacutesofo estadunidense satildeo

voltados para o programa do computador ndash e natildeo para o hardware

Justamente por se apoiar nas Ciecircncias da Natureza Searle natildeo nega que

uma funccedilatildeo possa ser multiplamente realizada como eacute o caso do voo

executaacutevel bioloacutegica ndash insetos aves e morcegos ndash ou tecnologicamente ndash

balotildees aviotildees helicoacutepteros e foguetes Por mais distintas que sejam as asas

da mosca e as do 14-bis elas compartilham poderes causais que permitem

ao animal e ao aviatildeo sobrepujarem a forccedila da gravidade Ora se a

consciecircncia eacute uma caracteriacutestica sistecircmica do ceacuterebro e desejamos

produzi-la artificialmente basta que dupliquemos os poderes causais

desse oacutergatildeo Nas palavras de Searle (2000 p 56)

Quando digo que o ceacuterebro eacute um oacutergatildeo bioloacutegico e a consciecircncia um processo

bioloacutegico eacute claro que natildeo estou dizendo ou sugerindo que seria impossiacutevel

produzir um ceacuterebro artificial a partir de materiais natildeo bioloacutegicos que tambeacutem

pudessem ser causa da consciecircncia e sustentaacute-la [] O ponto que deve ser

enfatizado eacute que tal ceacuterebro artificial teria de reproduzir as verdadeiras causas

dos ceacuterebros humanos e animais para produzir estados de consciecircncia

internos qualitativos e subjetivos A produccedilatildeo de comportamentos similares

por si soacute natildeo seria suficiente

que a intencionalidade dos estados mentais eacute lsquointriacutensecarsquo em qualquer sentido mas mostraria que a capacidade para pensar com as propriedades semacircnticas natildeo depende da posse de uma linguagem ao contraacuterio de minha hipoacuteteserdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 89

Dessa maneira o autor drsquoA Redescoberta da Mente aceita uma versatildeo

bem mais branda da tese de realizaccedilatildeo muacuteltipla em comparaccedilatildeo com a que

eacute acatada pelos funcionalistas pois nem todo material seria capaz de

efetuar a funccedilatildeo em questatildeo Como Searle (1984) diz abertamente o

ceacuterebro eacute uma maacutequina viva e portanto a sua constituiccedilatildeo bioloacutegica eacute

relevante para a produccedilatildeo e para a realizaccedilatildeo da mente ou seja eacute de nosso

conhecimento que os padrotildees sinaacutepticos satildeo efetivos para a emergecircncia de

estados intencionalmente intriacutensecos Contudo diferentemente do que se

daacute com o voo a nossa atual ignoracircncia sobre os detalhes bioquiacutemicos e

fisioloacutegicos nos impede por enquanto de duplicar os estados mentais em

estruturas natildeo bioloacutegicas

Para fechar o nosso itineraacuterio pela Filosofia da Mente apresentamos

a seguir o fisicalismo eliminativista corrente defendida por Paul

Feyerabend Richard Rorty Patricia e Paul Churchland Diferentemente da

abordagem fisicalista de Feigl Place Smart e Armstrong o eliminativista

rejeita a identificaccedilatildeo entre os fenocircmenos neurofisioloacutegicos e os mentais

haja vista que estes uacuteltimos natildeo passam de ilusatildeo Para defender a tese do

irrealismo do mental e a sua necessaacuteria eliminaccedilatildeo teoacuterica o fisicalista

eliminativo lanccedila matildeo da seguinte analogia histoacuterica no tempo das

Inquisiccedilotildees sustentava-se a necessidade de caccedilar e de queimar na fogueira

a mulher que pactuava com Satanaacutes mas atualmente nenhuma pessoa

sensata admitiria a existecircncia de bruxas Essa mudanccedila de perspectiva se

daacute porque o progresso epistecircmico revelou a falsidade do conceito de bruxa

e o eliminou do arcabouccedilo terminoloacutegico da Ciecircncia como aconteceraacute ndash

alega Paul Churchland (2004 p 79) ndash com os termos da Psicologia

Popular

[N]atildeo podemos esperar que uma explicaccedilatildeo realmente adequada de nossa vida

interior feita pela neurociecircncia revele categorias teoacutericas que correspondam

exatamente agraves categorias do arcabouccedilo de senso comum [posiccedilatildeo anti-

reducionista] Dessa forma devemos esperar que o antigo arcabouccedilo seja

simplesmente eliminado e natildeo reduzido por uma neurociecircncia amadurecida

90 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Consoante Teixeira (2008) a Psicologia Popular eacute a teoria que nos

permite explicar o comportamento humano evocando conceitos como

crenccedila desejo e intenccedilatildeo Desse modo o avanccedilo neurocientiacutefico natildeo

acarretaraacute a reduccedilatildeo da Psicologia Popular pois natildeo haacute uma

correspondecircncia um-a-um entre essas duas aacutereas o que demonstraria a

necessidade de suprimir os termos psicoloacutegicos que representam de modo

distorcido os estados neurofisioloacutegicos e as causas do comportamento Por

conseguinte uma Neurociecircncia16 avanccedilada e precisa propiciaraacute

eliminaccedilotildees teoacutericas como a de algueacutem que mencione a ativaccedilatildeo de suas

fibras C em tal regiatildeo do ceacuterebro no lugar de falar que estaacute com dor como

expotildee Churchland (2004 p 82)

Nossas explicaccedilotildees sobre os comportamentos uns dos outros iratildeo recorrer a

coisas como nossos estados neurofarmacoloacutegicos nossa atividade neural em

aacutereas anatocircmicas especiacuteficas e a outros estados que forem relevantes para a

nova teoria Nossa introspecccedilatildeo individual tambeacutem seraacute transformada e

poderaacute ser profundamente aprimorada em razatildeo de um arcabouccedilo conceitual

mais penetrante e preciso com o qual ela teraacute de trabalhar []

Searle (2006) trata com sarcasmo os eliminativistas ao perguntar se

deveria beliscaacute-los para provar que satildeo conscientes e que sentem dor

advogando que o fato de os estados mentais dependerem ontologicamente

dos processos neurobioloacutegicos natildeo os tornam aparentes ou ilusoacuterios Em

outras palavras por mais que conheccedilamos todos os pormenores

bioquiacutemicos e fisioloacutegicos dos processos cerebrais isso natildeo baniraacute ndash nem

ontoloacutegica nem explicativamente ndash o niacutevel dos fenocircmenos psicoloacutegicos

Estes fenocircmenos inexistiriam se houvesse uma distinccedilatildeo entre a aparecircncia

e a realidade17 mas esse natildeo eacute o caso como pontua Searle (2000 p 59)

16 Rorty (1997 p 158) pinta o hipoteacutetico progresso neurocientiacutefico com essas tintas ldquoNoacutes esperamos que a fisiologia possa algum dia traccedilar um caminho a partir da distribuiccedilatildeo de descargas eleacutetricas em meu ceacuterebro ateacute as interfaces [neuromusculares] em minha garganta e por conseguinte nos viabilizar predizer elocuccedilotildees por sobre a base dos estados cerebraisrdquo

17 Em outro texto Searle (1998c p 224) faz a seguinte comparaccedilatildeo ldquoReduccedilotildees eliminatoacuterias exigem uma distinccedilatildeo entre a realidade e a aparecircncia Por exemplo o Sol parece se pocircr mas na realidade eacute a Terra que realiza o movimento de rotaccedilatildeo Mas vocecirc natildeo pode fazer este movimento para a consciecircncia porque no que diz respeito agrave consciecircncia a realidade eacute a aparecircncia Se conscientemente tenho a impressatildeo de ser consciente entatildeo sou conscienterdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 91

Natildeo podemos fazer uma reduccedilatildeo eliminatoacuteria da consciecircncia porque o padratildeo

das reduccedilotildees eliminatoacuterias eacute mostrar que o fenocircmeno reduzido eacute apenas uma

ilusatildeo No entanto no que diz respeito agrave consciecircncia a existecircncia da ldquoilusatildeordquo eacute

a proacutepria realidade Isso quer dizer que se me parece que estou consciente

entatildeo eu estou Natildeo haacute nada na consciecircncia aleacutem de uma sequumlecircncia de

ldquoaparecircnciasrdquo desse tipo A esse respeito a consciecircncia eacute diferente dos poentes

porque eu posso ter a ilusatildeo de que o sol estaacute se pondo por traacutes das montanhas

quando na verdade ele natildeo estaacute fazendo isso

Dessa maneira os processos neurofisioloacutegicos satildeo capazes de explicar

minuciosamente a causa da dor mas isso natildeo significa deixaacute-la de lado

como um conceito preacute-cientiacutefico muito pelo contraacuterio haja vista que a

sensaccedilatildeo dolorosa possui uma ontologia de primeira pessoa no sentido de

ser experienciada por um sujeito e de possuir um modo de existecircncia

qualitativo que a diferencia dos disparos neurocircnicos que a causam Essa

caracteriacutestica real e ineliminaacutevel da mentalidade eacute expressa por Searle

(1998b p 57-8) ao declarar que

a pura sensaccedilatildeo qualitativa de dor eacute uma propriedade do ceacuterebro bem

diferente das descargas neuronais que causam a dor Logo em se tratando de

descargas neuronais vocecirc pode obter uma reduccedilatildeo causal de dor mas natildeo

uma reduccedilatildeo ontoloacutegica Isto eacute vocecirc pode fornecer uma anaacutelise causal

completa da razatildeo de sentirmos dores mas isso natildeo mostra que as dores natildeo

existam realmente

Fazendo um apanhado geral do que apresentamos constatamos que

o filoacutesofo estadunidense critica severamente todas as principais correntes

recusando igualmente o dualismo a reduccedilatildeo ontoloacutegica e a eliminaccedilatildeo da

Psicologia Popular Para ele a criacutetica ao dualismo acabou jogando o bebecirc

junto com a aacutegua suja do banho pois os fenocircmenos mentais conscientes

foram descartados juntamente com a alma imaterial Eacute como se o pavor

pelo conceito de alma justificasse a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer

92 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

subjetividade18 do seio da natureza O polo oposto tambeacutem eacute desalentador

pois a defesa da mentalidade se faz agraves custas de uma consciecircncia natildeo fiacutesica

Searle (2006 p 23-4) pinta com essas tintas o quadro sinoacuteptico da

Filosofia da Mente

Relutamos em reconhecer qualquer dos fatos consensuais que soam

ldquocartesianosrdquo porque parece que se aceitarmos os fatos teremos de aceitar

toda a metafiacutesica cartesiana Qualquer espeacutecie de mentalismo que reconheccedila

os fatos oacutebvios de nossa existecircncia eacute considerada automaticamente suspeita

[hellip] De um modo talvez mais exasperante ainda eles satildeo auxiliados nesse erro

por aqueles filoacutesofos que de bom grado reconhecem a existecircncia da consciecircncia

e assim fazendo supotildeem estar afirmando a existecircncia de algo natildeo fiacutesico

Ao recusar ambas as posiccedilotildees Searle (2006 p 26-7) pretende articular

uma concepccedilatildeo que natildeo apenas leve em consideraccedilatildeo a subjetividade do

mental mas que a fundamente nas Ciecircncias Naturais deixando de lado

quaisquer ldquoaparatos cartesianosrdquo haja vista que o mental eacute fiacutesico

[O] fato de uma caracteriacutestica ser mental natildeo implica que natildeo seja fiacutesica o fato

de uma caracteriacutestica ser fiacutesica natildeo implica que natildeo seja mental Revisitando

Descartes [] poderiacuteamos dizer natildeo somente ldquopenso logo existordquo e ldquosou um ser

pensanterdquo mas tambeacutem sou um ser pensante portanto sou um ser fiacutesicordquo

[]

Minhas proacuteprias concepccedilotildees natildeo se encaixam em nenhum dos roacutetulos

tradicionais mas para muitos filoacutesofos a ideia de que algueacutem possa defender

um ponto de vista que natildeo se encaixe nessas categorias parece incompreensiacutevel

Pior ainda talvez haacute diversos substantivos e verbos que parecem ter significados

claros como se realmente apresentassem objetos e atividades bem definidos ndash

ldquomenterdquo ldquoegordquo e ldquointrospecccedilatildeordquo satildeo exemplos oacutebvios

A concepccedilatildeo positiva de Searle (1980b p 455) ndash por ele denominada

de naturalismo bioloacutegico ndash surgiu pela primeira vez quando rebateu as

criacuteticas feitas a Mentes Ceacuterebros e Programas no artigo Intencionalidade

Intriacutenseca ocasiatildeo na qual comparou os estados mentais agraves propriedades

18 Para mais informaccedilotildees sobre o importante papel da subjetividade no naturalismo bioloacutegico consultar Lima Filho (2017c)

Maxwell Morais de Lima Filho | 93

de um pneu Na ocasiatildeo seu principal alvo era atacar o funcionalismo

computacional ao apontar as limitaccedilotildees intriacutensecas ao programa de

computador ao mesmo tempo em que destacava a relevacircncia do estofo

bioloacutegico para a mentalidade No entanto tambeacutem vislumbramos nesse

texto o seu repuacutedio ao irrealismo do mental propugnado pelos fisicalistas

redutivos e eliminativos e ao caraacuteter natildeo fiacutesico resguardado pelos dualistas

de substacircncia e de propriedade Natildeo consiste nenhuma surpresa que a

estrateacutegia ofensiva de Searle tenha gerado contra-ataques dos mais

variados vieses dualistas e fisicalistas os quais o impulsionaram em parte

a desenvolver cada vez mais a sua posiccedilatildeo ancorada em dois grandes

compromissos teoacutericos a saber a subjetividade e a biologicidade do

mental Os fenocircmenos mentais ndash ontologicamente subjetivos ndash satildeo

bioloacutegicos tanto na acepccedilatildeo evolutiva quanto na funcional De acordo com

esta uacuteltima os processos neurofisioloacutegicos causam e sustentam a

mentalidade a qual surgiu historicamente devido aos processos evolutivos

que atuaram sobre linhagens animais no decorrer das eras geoloacutegicas19

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19 Expomos a concepccedilatildeo naturalista de Darwin e o pano de fundo cientiacutefico do naturalismo bioloacutegico em Lima Filho (2015a 2015b 2017a e 2017b)

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5

Da Natureza Humana

As Perspectivas Epistemoloacutegicas

de Piaget Chomsky e Foucault

Argus Romero Abreu de Morais 1

Consideraccedilotildees Iniciais

Em 1971 convidados pelo apresentador holandecircs Fons Elders para

um debate televisivo Noam Chomsky e Michel Foucault aceitaram

esclarecer suas perspectivas a respeito dos conceitos de natureza humana

justiccedila e poder (CHOMSKY 2014) Poucos anos apoacutes em 1975 Jean Piaget

e Noam Chomsky se reuniram com renomados pesquisadores do mundo

na Abadia de Royaumont na Franccedila para discutirem as questotildees

vinculadas agrave aquisiccedilatildeo e agrave aprendizagem da linguagem humana

(PIATELLI-PALMARINI 1983)

A nosso ver aproximar tais debates torna-se interessante por

permitir elucidar os pressupostos epistemoloacutegicos de autores acadecircmicos

tatildeo relevantes do seacuteculo XX e com isso demarcar as linhas de tensatildeo entre

seus campos e as escolhas teoacutericas das suas pesquisas Nesse sentido no

presente trabalho Chomsky funciona como uma espeacutecie de elo virtual

entre Foucault e Piaget os quais natildeo produziram um debate particular

Natildeo obstante entendemos que os apontamentos feitos por estes dois

1 Professor colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Cultura Educaccedilatildeo e Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGCELUESB) e poacutes-doutorando no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Teoria Literaacuteria e Criacutetica da Cultura da Universidade Federal de Satildeo Joatildeo del-Rei (PROMELUFSJ) Email argusromeroyahoocombr

Argus Romero Abreu de Morais | 99

uacuteltimos teoacutericos durante a defesa de seus pilares conceituais permitem

contrastaacute-los sendo marcante a distinccedilatildeo entre ambos no que diz respeito

agrave gecircnese do conhecimento humano nos indiviacuteduos por consequecircncia agrave

Histoacuteria das Ciecircncias

Assim pretendemos colocar face a face os vieses da autorregulaccedilatildeo em

Piaget do inatismo da linguagem em Chomsky e de um certo empirismo

histoacuterico em Foucault Evidentemente cada um desses pensadores natildeo soacute

possui uma enorme produccedilatildeo teoacuterica sobre distintos temas acadecircmicos

como tambeacutem apresentou mudanccedilas de perspectiva nas deacutecadas seguintes

Apesar disso entendemos que os fundamentos epistecircmicos das suas aacutereas de

pesquisa natildeo se alteraram significativamente ao longo do tempo garantindo

certa coerecircncia aos seus projetos de estudo

Natildeo eacute nosso intuito portanto em um breve texto dar conta da

amplitude das contribuiccedilotildees desses pensadores seja pela nossa incapacidade

de cumprir com tal propoacutesito seja pelos limites impostos pelo nosso recorte

investigativo o qual prioriza avaliar os argumentos dos trecircs estudiosos em

torno da existecircncia ou natildeo de uma natureza humana Cumpre-nos destacar

que nos vinculamos agrave epistemologia da Anaacutelise do Discurso Francesa (AD) a

qual pressupotildee a determinaccedilatildeo histoacuterica das formaccedilotildees sociais humanas

inclusive a do proacuteprio pensamento Foucault eacute considerado um dos

principais expoentes desse campo de estudos sendo por conseguinte a

partir do seu olhar discursivo que concluiremos o presente escrito tecendo

comentaacuterios criacuteticos aos demais domiacutenios Antes disso apresentaremos a

perspectiva piagetiana em seguida a abordagem chomskyana

A Funccedilatildeo Sensoacuterio-Motora como Fundamento da Formaccedilatildeo da Linguagem2

Eacute verdade que a auto-regulaccedilatildeo eacute em parte inata mas a tiacutetulo mais de

funcionamento do que de estrutura

Jean Piaget

2 Almejando tornar o texto mais fluido colocaremos as citaccedilotildees diretas ndash ipsis litteris ndash que fundamentam os nossos raciociacutenios em notas de rodapeacute Ressaltamos todavia que utilizaremos um nuacutemero expressivo de notas permitindo o acesso do leitor aos argumentos dos proacuteprios debatedoresautores Esperamos com isso possibilitar o esclarecimento e aprofundamento teoacutericos que o tema exige

100 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Segundo Piaget os estudos que definem a aprendizagem humana

pela associaccedilatildeo entre percepccedilotildees dos indiviacuteduos e objetos se mostraram

ineficientes na tentativa de explicar a formaccedilatildeo do conhecimento humano

(criacutetica ao meacutetodo empirista) Para o epistemoacutelogo esse modelo teoacuterico

tem por principal falha natildeo considerar a atividade do sujeito na construccedilatildeo

do proacuteprio conhecimento engendrado por dois processos

interdependentes o processo de assimilaccedilatildeo no qual os indiviacuteduos

assimilariam novos objetos a esquemas previamente conformados nas

suas estruturas cognitivas e no sentido inverso o processo de

acomodaccedilatildeo no qual os antigos esquemas se acomodam de acordo com as

particularidades dos novos objetos produzindo com isso novos esquemas

(PIATELLI-PALMARINI 1983)3

Busca-se assim definir os constructos cognitivos como frutos de

uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o ser e o mundo desconstruindo a

necessidade de um a priori universal inato ndash criacutetica ao Gerativismo ndash em

prol de um pensamento dinacircmicosistecircmico Desse modo a um soacute tempo

Piaget renega o empreendimento empirista segundo o qual o sujeito se

ajusta ao mundo pelas experiecircncias (o sujeito seria uma taacutebula rasa) e

descarta a empreitada gerativista chomskyana na qual a forma do sujeito

eacute preacutevia agrave experiecircncia e agrave forma do mundo (PIATELLI-PALMARINI 1983)4

Consoante Piaget apenas o funcionamento da inteligecircncia humana eacute

hereditaacuterio sendo essa definida como o mecanismo capaz de gerar

3 Ao criticar o Empirismo Behaviorista campo teoacuterico tambeacutem renegado por Chomsky Piaget destaca ldquoNenhum conhecimento se deve somente agraves percepccedilotildees pois estas satildeo sempre dirigidas e enquadradas por esquemas de accedilotildees O conhecimento procede pois da accedilatildeo e toda a accedilatildeo que se repete ou se generaliza por aplicaccedilatildeo a novos objetos gera por isso mesmo um lsquoesquemarsquo ou seja uma espeacutecie de conceito praacutexico A ligaccedilatildeo fundamental constitutiva de todo o conhecimento natildeo eacute portanto uma simples associaccedilatildeo entre objetos mas a assimilaccedilatildeo dos objetos a esquemas desse indiviacuteduo Esse processo prolonga aliaacutes diversas formas de lsquoassimilaccedilotildeesrsquo bioloacutegicas das quais a assimilaccedilatildeo cognitiva eacute um caso particular enquanto processo funcional de integraccedilatildeo Em contrapartida quando os objetos satildeo assimilados aos esquemas de accedilatildeo haacute a obrigaccedilatildeo de uma acomodaccedilatildeo agraves particularidades desses objetos (cf os lsquoaccommodatsrsquo fenotiacutepicos em biologia) e essa acomodaccedilatildeo resulta de dados exteriores logo da experiecircnciardquo (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor)

4No dizer de Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor) ldquoCinquenta anos de experiecircncias ensinaram-nos que natildeo existem conhecimentos resultantes de um simples registro de observaccedilotildees Mas tampouco existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas soacute o funcionamento da inteligecircncia eacute hereditaacuterio e soacute gera estruturas mediante uma organizaccedilatildeo de accedilotildees sucessivas exercidas sobre objetosrdquo

Argus Romero Abreu de Morais | 101

continuamente estruturas conceituais atraveacutes de operaccedilotildees sobre os

objetos A seu ver assim como a Psicanaacutelise de Jung o projeto gerativista

se equivoca ao confundir as estruturas gerais do espiacuterito com a existecircncia

de estruturas inatas base da suposiccedilatildeo da linguagem como faculdade

hereditaacuteria alocada no ceacuterebro humano Segundo aponta eacute possiacutevel a

existecircncia das primeiras sem que haja as segundas

Definida como construtivista a Epistemologia Geneacutetica piagetiana

expotildee aleacutem do argumento da confusatildeo entre universalidade e inatismo

dois motivos principais para negar a hipoacutetese nativista do Gerativismo

primeiro na forma como estaacute posta a Gramaacutetica Universal (GU) supotildee

que a linguagem humana seria resultado de mutaccedilotildees exclusivas agrave espeacutecie

humana sem que consiga contudo dar explicaccedilotildees plausiacuteveis sobre o(s)

porquecirc(s) desse privileacutegio segundo conseguir-se-ia chegar agraves mesmas

conclusotildees de existecircncia de estruturas universais caso se concebesse a

linguagem como produto de um processo de autorregulaccedilatildeo dispensando

com isso os problemas dos universais modulares de Chomsky (PIATELLI-

PALMARINI 1983)

A autorregulaccedilatildeo funciona portanto como o conceito-chave do

Construtivismo na medida em que eacute o mecanismo responsaacutevel tanto pela

construccedilatildeo humana do conhecimento quanto pela organizaccedilatildeo da

realidade natildeo caoacutetica do mundo Ambos tecircm em comum o fato de se

disporem em forma loacutegico-matemaacutetica Ademais diferentemente da

recursividade algoriacutetmica tal como proposta por Chomsky o pensamento

sistecircmico de Piaget sugere que o retorno agraves estruturas cognitivas de base

natildeo ocorre sobre as regras iniciais como se os componentes primeiros

fossem estaacuteveis na relaccedilatildeo entre o ser e o mundo5

5 Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 83) expressa do seguinte modo seu pensamento sistecircmico ldquoA auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio do organismo limita-se em geral e normalmente a conservar um certo estado de equiliacutebrio e em caso de desvio ou de nova formaccedilatildeo a reconduzi-lo ao estado inicial Enquanto que pelo contraacuterio a auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio dos comportamentos impele incessantemente o organismo o sujeito se se trata de comportamento cognitivo para novos avanccedilos O organismo fisioloacutegico natildeo tem razatildeo de espeacutecie alguma para variar [] A conservaccedilatildeo eacute a norma suprema para o equiliacutebrio fisioloacutegico Ao passo que pelo contraacuterio quando se aborda o terreno do comportamento este persegue dois objetivos o primeiro eacute a extensatildeo do meio superar o meio no qual o organismo estaacute atualmente mergulhado por exploraccedilotildees e pesquisas em novos meios e o segundo o reforccedilo dos poderes do organismo sobre o meiordquo

102 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Para Piaget haacute a superaccedilatildeo contiacutenua do modelo antecedente pelos

modelos subsequentes na mente da crianccedila que embora mais complexos

estavam presentes no anterior como possibilidade ndash latente ndash de

existecircncia e que quando concretizados superam o anterior englobando-

o a saber sensoacuterio-motor de 0 a 1824 meses periacuteodo que antecede a

proacutepria linguagem preacute-operatoacuterio de 162 anos a 78 anos periacuteodo

marcado pelo desenvolvimento das representaccedilotildeessiacutembolos o

operatoacuterio-concreto de 78 anos a 1112 anos periacuteodo da construccedilatildeo

loacutegica e por fim operatoacuterio-formal de 1112 anos em diante periacuteodo em

que a crianccedila eacute capaz de raciociacutenios hipoteacutetico-dedutivos (PIATELLI-

PALMARINI 1983)6

Logo todo sistema se torna subsistema de um novo sistema isto eacute uma

subestrutura da nova estrutura organizadora seguindo um movimento em

direccedilatildeo agrave maior complexidade No caso do pensamento humano quanto

mais proacuteximo da organizaccedilatildeo loacutegica do real melhor o sistema recriado pelas

suas estruturas intelectivas Nesse vieacutes supotildee-se que o ceacuterebro humano seja

capaz de reproduzir internamente a mesma complexidade que o mundo

produz de forma dessubjetivada externamente Isto eacute concluiacutedas as etapas

de amadurecimento cognitivo no indiviacuteduo este seria capaz de reproduzir

ainda que inconscientemente o mesmo niacutevel de complexidade das estruturas

do mundo na forma de conhecimento (matemaacutetico por excelecircncia)

(PIATELLI-PALMARINI 1983)7

Destarte conforme o epistemoacutelogo suiacuteccedilo tanto o pensamento

humano como as ideias cientiacuteficas parecem funcionar por meio da

6 No que diz respeitos agraves etapas de maturaccedilatildeo do conhecimento humano Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 40) especifica ldquoEm primeiro lugar um periacuteodo sensoacuterio-motor anterior agrave linguagem vecirc constituir-se uma loacutegica das accedilotildees (relaccedilotildees de ordem concatenaccedilatildeo de esquemas intersecccedilotildees estabelecimentos de correspondecircncia etc) fecunda em descobertas e mesmo invenccedilotildees (objetos permanentes organizaccedilatildeo do espaccedilo causalidade etc) Dos 2 aos 7 anos haacute uma conceptualizaccedilatildeo das accedilotildees logo representaccedilotildees com descoberta de funccedilotildees entre as co-variaccedilotildees de fenocircmenos identidades etc mas ainda sem operaccedilotildees reversiacuteveis nem conservaccedilotildees Estas duas uacuteltimas constituem-se ao niacutevel das operaccedilotildees concretas (7-10 anos) com lsquoagrupamentosrsquo logicamente estruturados mas ainda ligados agrave manipulaccedilatildeo de objetos Finalmente por volta dos 11-12 anos constitui-se uma loacutegica proposicional hipoteacutetico-dedutiva sem combinatoacuterio lsquoconjunto de partesrsquo grupos de quaternidade etcrdquo

7 A respeito da relaccedilatildeo entre conhecimento e realidade Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 81) assevera ldquoRecuso-me terminantemente por minha parte a pensar que as estruturas matemaacutetico-loacutegicas tivessem uma origem aleatoacuteria elas nada tecircm de fortuito natildeo eacute por seleccedilotildees de sobrevivecircncia que puderam constituir-se mas por uma adequaccedilatildeo propriamente dita e detalhada agrave realidaderdquo

Argus Romero Abreu de Morais | 103

acumulaccedilatildeo de saberes No primeiro caso atraveacutes da capacidade loacutegico-

matemaacutetica ndash capacidade racional ndash de interagir com o ambiente os

indiviacuteduos adquirem estruturas de comportamento ou morfoloacutegicas via

fenoacutetipo que ainda desprovidas de hereditariedade passam a modificar o

proacuteprio genoma humano de modo que a mudanccedila nos niacuteveis inferiores

incorre por consequecircncia nos niacuteveis superiores do meio epigeneacutetico Essa

aquisiccedilatildeo de ldquofenocoacutepiasrdquo seria de acordo com Piaget a responsaacutevel por

selecionar as variaccedilotildees ou mutaccedilotildees no proacuteprio genoma passando a serem

hereditaacuterias Isso explicaria no seu dizer o modo pelo qual a proacutepria

linguagem teria evoluiacutedo na espeacutecie humana8

No segundo caso pela forma como a realidade parece se organizar

por leis que em uacuteltima instacircncia seguem a loacutegica matemaacutetica Associada

agrave pureza das formas a praacutetica cientiacutefica seria a principal responsaacutevel por

intermediar a relaccedilatildeo entre o homem e o mundo criando instrumentais

teoacutericos que possam fazer com que aquele compreenda e transforme o seu

habitat Ademais como vimos o processo de desenvolvimento da

linguagem na crianccedila repetiria com alta semelhanccedila a evoluccedilatildeo das

proacuteprias descobertas cientiacuteficas (PIATELLI-PALMARINI 1983)9

Ao sugerir uma oacutetica sistecircmica para a construccedilatildeo do conhecimento

Piaget avanccedila agrave sua maneira na proposta de um sujeito processual

dinacircmico em detrimento da imutabilidade do sujeito cartesiano em

8 O conceito de fenocoacutepia eacute um dos principais vetores do debate Piaget-Chomsky Piaget (apud PIATELLI-

PALMARINI 1983 p 81-2) explica tal categoria da seguinte forma ldquoFenocoacutepia eacute um processo bioloacutegico em que certos comportamentos (eacute sobretudo vaacutelido no domiacutenio dos comportamentos) ou entatildeo uma certa forma ou estrutura morfoloacutegica satildeo primeiramente adquiridos pelo fenoacutetipo mas sem hereditariedade O fenoacutetipo pelo contraacuterio modifica o meio interior e modifica os niacuteveis superiores pelo meio epigeneacutetico e entatildeo as variaccedilotildees ou as mutaccedilotildees que podem produzir-se no genoma seratildeo selecionadas natildeo pelo meio exterior mas por esse meio interior ou epigeneacutetico que vai canalizaacute-las na mesma direccedilatildeo da conduta jaacute adquirida pelo fenoacutetipo por outras palavras haveria uma reconstruccedilatildeo geneacutetica ou gecircnica de uma aquisiccedilatildeo feita pelo fenoacutetipordquo

9 Sobre o tema Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 48) conclui ldquoPara periacuteodos mais vastos da histoacuteria eacute evidente que natildeo se encontra um paralelismo estaacutegio por estaacutegio mas eacute possiacutevel encontrar mecanismos comuns [] Ora deparamo-nos com um processo anaacutelogo [agrave histoacuteria da geometria ocidental] embora em escala reduzida nas crianccedilas as quais comeccedilam naturalmente pelo intrafigural mas descobrem por volta dos 7 anos que para determinar um ponto num plano natildeo basta uma medida sendo precisas duas que estejam dispostas de maneira ortogonal A essa etapa lsquointerfiguralrsquo (necessaacuteria tambeacutem para a construccedilatildeo de horizontais) sucede aquela que podemos denominar lsquotransfiguralrsquo em que as propriedades a descobrir natildeo podem ler-se numa uacutenica figura mas requerem uma deduccedilatildeo e um caacutelculo as curvas mecacircnicas os movimentos relativos etcrdquo

104 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Chomsky10 o qual antecede a experiecircncia Desse modo por um lado sua

perspectiva de geraccedilatildeo da funccedilatildeo simboacutelica da linguagem a partir dos

significantes sensoacuterio-motores ndash associaccedilatildeo de objetos a esquemas de accedilatildeo

ndash o opotildee ao modo pelo qual Chomsky entende o ldquonuacutecleo fixordquo da

linguagem por outro ao prescindir da opacidade do mundo em relaccedilatildeo agrave

linguagem bem como das rupturas e contradiccedilotildees advindas da histoacuteria

contrasta indiretamente sua teoria com a perspectiva do pensamento

sustentada por Foucault

O Algoritmo eacute o Sujeito

Se qualquer coisa fosse possiacutevel entatildeo nada seria possiacutevel

Noam Chomsky

Para Chomsky (1979) o ceacuterebro humano eacute arquitetado por diferentes

subsistemas inatos em interaccedilatildeo limitada os quais decorrem de distintos

processos evolutivos no Homo sapiens A linguagem seria uma dessas

faculdades isto eacute um subsistema da inteligecircncia humana que permite a

interface com o moacutedulo conceptual-intencional (semacircntico-pragmaacutetico) e

o perceptual-articulatoacuterio (sensoacuterio-motor) Sendo a forma da linguagem

restrita evolutivamente agraves formas representacionais possiacuteveis no ceacuterebro

humano pode-se adquirir apenas o que eacute biologicamente previsto11

Nesse vieacutes o empreendimento gerativista se baseia em pelo menos

trecircs hipoacuteteses importantes para as Ciecircncias Cognitivas em particular no

que toca agrave Linguiacutestica (I) a estrutura representacional do pensamento

humano eacute preacutevia a toda experiecircncia do corpo de modo que a linguagem

10 Sobre esse toacutepico Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 45) destaca ldquoMas o que os inatistas parecem esquecer de maneira surpreendente eacute que existe um mecanismo tatildeo geral quanto a hereditariedade e que num sentido ateacute a comanda eacute a auto-regulaccedilatildeo a qual desempenha um papel em todas as escalas desde o genoma e um papel tanto mais importante quanto mais se avizinha dos niacuteveis superiores e do comportamento A auto-regulaccedilatildeo cujas raiacutezes satildeo evidentemente orgacircnicas eacute assim comum aos processos vitais e mentais e suas accedilotildees tecircm aleacutem disso a grande vantagem de ser diretamente controlaacuteveis portanto eacute nessa direccedilatildeo e natildeo na da simples hereditariedade que conveacutem buscar a explicaccedilatildeo bioloacutegica das construccedilotildees cognitivas tanto mais que pelo jogo das regulaccedilotildees de regulaccedilotildees a auto-regulaccedilatildeo eacute por sua proacutepria natureza eminentemente construtivista (e dialeacutetica)rdquo

11 Para aprofundar essas questotildees sugerimos a leitura de Chomsky (2006 2008) e de Berwick e Chomsky (2017) Utilizaremos algumas passagens dessas obras no presente texto

Argus Romero Abreu de Morais | 105

deve ser explicada com relaccedilatildeo agrave heranccedila bioloacutegica da espeacutecie humana (II)

a linguagem humana eacute constituiacuteda por um conjunto de algoritmos ndash regras

de formaccedilatildeo ndash implementados no nosso ceacuterebro os quais fundariam o

ldquoestado inicial S0 geneticamente determinadordquo12 tambeacutem conhecido como

Gramaacutetica Universal (GU) a qual conteacutem os princiacutepios pelos quais pode-

se adquirir uma dada liacutengua natural ndash condicionada agrave experiecircncia humana

ndash ateacute chegar a um ldquoestado estacionaacuteriordquo (steady state) (III) a Linguiacutestica

deve se formalizar de modo a explicar como um indiviacuteduo eacute capaz de gerar

um nuacutemero infinito de frases em sua liacutengua vernaacutecula a partir de um

conjunto limitado de regras sintaacuteticas (infinitude discreta) em vista disso

a teoria chomskyana eacute chamada de Gramaacutetica Gerativa13

Se tanto Chomsky como Piaget parecem concordar com a existecircncia

de um ldquonuacutecleo fixordquo da linguagem o linguista norte-americano se afasta

do bioacutelogo suiacuteccedilo ao responder as duas principais criacuteticas piagetianas ao

seu modelo teoacuterico quais sejam (a) a inexplicabilidade das mutaccedilotildees na

espeacutecie humana responsaacuteveis por lhe dotar dessas estruturas inatas (b) a

consideraccedilatildeo da inteligecircncia sensoacuterio-motora na formaccedilatildeo da inteligecircncia

simboacutelica seria tatildeo eficiente quanto a hipoacutetese do inatismo na explicaccedilatildeo

da formaccedilatildeo desse ldquonuacutecleo fixordquo

12 Consoante Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoO desenvolvimento dessa pessoa (em um ambiente natural) efetua-se a partir do estado inicial S0 geneticamente determinado passa por uma sequecircncia de estados S1 S2 e atinge finalmente um lsquoestado estacionaacuteriorsquo (steady state) S8 o qual soacute parece entatildeo modificar-se de maneira secundaacuteria (digamos por acreacutescimo de vocabulaacuterio novo) O estado estacionaacuterio eacute alcanccedilado numa idade relativamente fixa aparentemente na puberdade ou um pouco antesrdquo

13 De acordo com Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoEle [investigador independente] abordaraacute ou deveria abordar o estudo das estruturas cognitivas como eacute o caso da linguagem humana de uma forma anaacuteloga agravequela como estudaria um oacutergatildeo do corpo ndash o olho ou o coraccedilatildeo por exemplo ndash a fim de determinar (I) as suas caracteriacutesticas num dado indiviacuteduo (II) suas propriedades gerais invariantes de uma espeacutecie agrave outra abstraccedilatildeo feita de todo o deacuteficit flagrante (III) seu lugar num sistema de estruturas desse tipo (IV) o curso do seu desenvolvimento no indiviacuteduo em questatildeo (V) o fundamento geneticamente determinado desse desenvolvimento (VI) os fatores que deram origem a esse oacutergatildeo no decorrer da evoluccedilatildeordquo No que concerne aos aspectos matemaacuteticos dos estudos da mente humana Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 2014 p 16) complementa ldquoEntendo por isso [teoria matemaacutetica da mente] simplesmente uma teoria abstrata articulada com precisatildeo e formulada com clareza que tenha consequecircncias empiacutericas que nos permita saber se a teoria estaacute certa ou errada ou se estaacute no caminho errado ou certo E que ao mesmo tempo tenha as propriedades da ciecircncia matemaacutetica isto eacute as propriedades do rigor e da precisatildeo e uma estrutura que nos permita deduzir conclusotildees a partir de hipoacuteteses e assim por dianterdquo Por fim Berwick e Chomsky (2017 p 108) esclarecem o que entendem por infinitude discreta ldquoDiscreta porque haacute frases de cinco palavras e frases de seis palavras mas nenhuma frase de cinco palavras e meia infinita porque natildeo haacute [virtualmente] uma frase que seja a frase mais longa da liacutenguardquo

106 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A esse respeito Chomsky responde que apesar de haver brechas na

teoria evolutiva no que concerne ao entendimento da seleccedilatildeo natural em

relaccedilatildeo ao corpo humano natildeo haacute outra compreensatildeo possiacutevel para

considerar a constituiccedilatildeo dos seus oacutergatildeos Nesse sentido considera-se que

a estrutura interna dos distintos oacutergatildeos do organismo bem como seu

desenvolvimento e funcionamento satildeo independentes das experiecircncias

ontogeneacuteticas do ser Isso o impede de concordar com a hipoacutetese das

fenocoacutepias a qual sugere que estruturas adquiridas poderiam ser

absorvidas pelo genoma

Como universalizar no desenvolvimento dos indiviacuteduos algo

adquirido Essa eacute uma questatildeo que de acordo com Chomsky natildeo pode

ser resolvida pelo mecanismo construtivo da autorregulaccedilatildeo o qual natildeo

limitaria o nuacutemero de estados possiacuteveis na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro A

soluccedilatildeo seria considerar que a mente se reduz causalmente ao ceacuterebro

Ademais a derivaccedilatildeo do sistema simboacutelico do estaacutegio sensoacuterio-motor na

crianccedila e a sua estabilizaccedilatildeo via processo de autorregulaccedilatildeo seriam

insuficientes para explicar o caraacuteter especiacutefico desse moacutedulo da

linguagem suas regras limites e relaccedilotildees com os demais aparatos da

inteligecircncia humana14

Chomsky (1977) relembra o curioso fato de tanto ele quanto Foucault

terem conseguido aproximar as suas opiniotildees acerca do tema da ldquonatureza

14 No dizer de Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 51) ldquoSe eacute verdade que ignoramos completamente como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias dotaram a espeacutecie humana da capacidade especiacutefica de aprender uma linguagem humana eacute igualmente verdadeiro que tambeacutem ignoramos como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias conduziram ao desenvolvimento das estruturas particulares do olho dos mamiacuteferos ou do coacutertex cerebral Natildeo concluiacutemos portanto

que essas estruturas em sua natureza fundamental no indiviacuteduo que chegou agrave maturidade satildeo determinadas por interaccedilatildeo com o meio ambiente []rdquo Berwick e Chomsky (2017 p 104 Itaacutelico dos autores) detecircm-se exclusivamente sobre o fato de a linguagem humana ser exclusiva agrave nossa espeacutecie e de sua breve existecircncia ser possiacutevel dentro de uma teoria evolucionista que considere aleacutem dos processos seletivos e adaptativos claacutessicos as mutaccedilotildees e os efeitos estocaacutesticos da Biologia Moderna ldquoDe maneira completamente desconhecida nossos antepassados desenvolveram conceitos humanos Em algum momento no passado muito recente ao que parece algum tempo antes de 80 mil anos atraacutes se pudermos julgar a partir de nossos representantes simboacutelicos indiviacuteduos em um pequeno grupo de hominiacutedeos na Aacutefrica Oriental sofreram uma pequena mudanccedila bioloacutegica que favoreceu o surgimento da operaccedilatildeo Merge ndash uma operaccedilatildeo que toma conceitos humanos como aacutetomos computacionais [leacutexico] e produz expressotildees estruturadas que sistematicamente interpretadas pelo sistema conceitual fornecem uma rica linguagem do pensamento [] A inovaccedilatildeo teve vantagens oacutebvias e se disseminou pelo pequeno grupo Em algum estaacutegio posterior a linguagem do pensamento interna estava ligada ao sistema sensoacuterio-motor []rdquo De acordo com essa abordagem a linguagem emerge como ldquoferramentardquo para o pensamento (foco na internalizaccedilatildeo) e natildeo para a comunicaccedilatildeo (foco na externalizaccedilatildeo) garantindo agravequeles que a possuem as vantagens da abstraccedilatildeo inferecircncia interpretaccedilatildeo organizaccedilatildeo da accedilatildeo e do planejamento em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que natildeo a possuem

Argus Romero Abreu de Morais | 107

humanardquo enquanto que o mesmo natildeo ocorreu com relaccedilatildeo agravequele

relacionado ao ldquoaspecto poliacutetico do saberrdquo A seu ver isso pode ser

explicado pela seguinte metaacutefora ldquoQuanto ao conceito de natureza

humana pareceu-me que cavaacutevamos a mesma montanha a partir de

direccedilotildees opostasrdquo (CHOMSKY 1977 p 78-9)

Embora seja difiacutecil supor um consenso entre o pesquisador norte-

americano defensor do inatismo da linguagem e o filoacutesofo francecircs um

dos principais nomes da empreitada filosoacutefica do ldquodescentramento do

sujeitordquo o primeiro supotildee que no fim das contas isso eacute possiacutevel pelo fato

de eles se deterem sobre as mesmas questotildees embora partindo de pontos

diferentes Para Chomsky (1977) a pesquisa cientiacutefica eacute devedora de dois

aspectos 1) as propriedades constituintes do espiacuterito e 2) as condiccedilotildees

sociais e intelectuais que possibilitam a emergecircncia e a consolidaccedilatildeo dos

saberes em um dado periacuteodo histoacuterico Natildeo se trataria de excluir um ou

outro pois ambos estatildeo relacionados Ele se deteria sobre o primeiro

abordando os processos de aquisiccedilatildeo e de desenvolvimento da linguagem

nos indiviacuteduos enquanto Foucault priorizaria a anaacutelise das condiccedilotildees

histoacutericas que possibilitam a conformaccedilatildeo social do conhecimento em

meio agraves relaccedilotildees de saber-poder (CHOMSKY 1977)15

15 Apesar de essa argumentaccedilatildeo parecer dirimir as distinccedilotildees epistemoloacutegicas dos autores via complementaridade o vieacutes chomskyano prioriza sempre os argumentos relacionados agraves estruturas cerebrais humanas em detrimento do vieacutes sociocultural foucaultiano inclusive quando tratam dos paracircmetros de cientificidade na produccedilatildeo do conhecimento humano como nos deixa entrever o seguinte raciociacutenio ldquoOra quando por felicidade acontece de algum aspecto da realidade conter a propriedade de uma das estruturas existentes em nossa mente entatildeo temos um

exemplo do conhecimento Isso quer dizer que afortunadamente a estrutura da nossa mente e a estrutura de algum aspecto da realidade coincidem o bastante para que possamos desenvolver um conhecimento inteligiacutevel Eacute exatamente essa limitaccedilatildeo inicial que existe em nossa mente quanto a certo tipo de conhecimento possiacutevel que proporciona a enorme riqueza e criatividade do conhecimento cientiacuteficordquo (CHOMSKY 2014 p 34) A ldquocoincidecircncia suficienterdquo entre as propriedades da mente e as propriedades do mundo parece curiosamente aproximar Chomsky de Piaget ou pelo menos do que o linguista norte-americano denomina de ldquodoutrinas do referencialismordquo abrindo a nosso ver uma possiacutevel contradiccedilatildeo teoacuterica com as seguintes passagens ldquoOs siacutembolos da linguagem humana e do pensamento satildeo muito diferentes [em relaccedilatildeo ao dos chimpanzeacutes] Seu uso natildeo estaacute automaticamente condicionado por estados emocionais e eles natildeo dependem de objetos independentes da mente ou eventos no mundo externo Para a linguagem e o pensamento ao que parece natildeo haacute uma relaccedilatildeo de referecircncia no sentido de Frege Peirce Tarski Quine e da filosofia contemporacircnea da linguagem e da menterdquo (BERWICK CHOMSKY 2017 p 102 Itaacutelico dos autores) Pouco depois Berwick e Chomsky (2017 p 103 Itaacutelicos dos autores) redefinem a referecircncia como um ldquoideal normativordquo para a ciecircncia ldquoPara a ciecircncia o conceito de referecircncia no sentido teacutecnico eacute um ideal normativo esperamos que os conceitos inventados de foacuteton ou de sintagma verbal se refiram a alguma coisa real dono mundo E eacute claro que o conceito de referecircncia eacute muito bom para o contexto para o qual foi inventado na loacutegica moderna para os sistemas formais em que a relaccedilatildeo de referecircncia eacute estipuladardquo Resta-nos perguntar qual o paracircmetro para

108 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Se Chomsky recorre a Descartes para estabelecer parte dos

fundamentos filosoacuteficos do Gerativismo notadamente no que concerne

ao entendimento da relaccedilatildeo entre sujeito cognoscente e objeto

cognosciacutevel16 pauta-se no corte copeacuternico-galileano da fundaccedilatildeo da ciecircncia

moderna para definir o modelo hipoteacutetico-dedutivo na pesquisa

linguiacutestica17 Logo o problema do conhecimento no sujeito eacute tambeacutem o

problema do que pode ser conhecido no mundo almejando compreender

tanto como as estruturas cognitivas humanas permitem o desvendamento

das estruturas da realidade vivenciada como a melhor forma de organizar

as primeiras no intuito de desenvolver programas investigativos

sistemaacuteticos Esse problema epistemoloacutegico eacute transversal a Piaget

Chomsky e Foucault em suas empreitadas teoacutericas de modo que eacute nesse

ponto em que suas distintas teorias sobre a formaccedilatildeo do ser tocam no

entendimento da Histoacuteria das Ciecircncias englobando a constituiccedilatildeo dos

campos disciplinares a validade das proposiccedilotildees cientiacuteficas e a

transformaccedilatildeo dos seus pressupostos ao longo do tempo

distinguir quais conceitos coincidem com a realidade e quais natildeo Quais os limites do imaginaacuterio humano em relaccedilatildeo ao simboacutelico e ao real

16 Nesse ponto Chomsky (2008 p 28) por vezes se ancora em Descartes Kant e Leibniz aproximando suas contribuiccedilotildees filosoacuteficas daquelas de Franccedilois Jacob e Jacques Monod ndash tambeacutem presentes no debate Piaget-Chomsky ndash para o entendimento da neurofisiologia da linguagem ldquoAcho que Monod estaacute certo ao comentar que lsquoessas descobertas [sobre um sistema analiacutetico primitivo em animais natildeo-humanos] apoiam num sentido novo as teses de Descartes e Kant contrariamente ao empirismo radical que tem dominado a ciecircncia por dois seacuteculos e que lanccedila suspeitas sobre qualquer hipoacutetese que postule a natureza inata das formas de conhecimentorsquo Ateacute onde sabemos os animais aprendem de acordo com um programa determinado geneticamente Natildeo haacute razatildeo para duvidar que isto seja verdade tambeacutem no que se refere lsquoagraves categorias fundamentais do conhecimento humanorsquo []rdquo Sobre o papel da experiecircncia na aprendizagem lembra ldquoQue a experiecircncia seja um requisito para colocar em funcionamento estruturas inatas ou para ativar um sistema de ideias inatas eacute algo admitido de modo bastante expliacutecito por Descartes

Leibniz e outros como parte de teorias que dificilmente podem ser consideradas lsquoempiristasrsquo []rdquo (CHOMSKY 2008 p 32-3) Em outra passagem afirma ldquoA ideia eacute lsquoinato agrave mentersquo no sentido em que Descartes argumentou que lsquoa ideia de um triacircngulo verdadeirorsquo eacute inatardquo (CHOMSKY 2008 p 48)

17 Sobre a importacircncia do corte copeacuternico-galileano para o estabelecimento do meacutetodo cientiacutefico moderno e consequentemente para a formaccedilatildeo de teorias cientiacuteficas Chomsky (2006 p 121) ressalta ldquoO que foi notaacutevel com respeito a Galileu e considerado muito ofensivo na eacutepoca foi que ele rejeitou muitos dados Ele estava disposto a dizer lsquoVejam se os dados refutam a teoria os dados provavelmente estatildeo erradosrsquo E os dados que descartou natildeo eram insignificantes Por exemplo ele defendia a tese de Copeacuternico mas natildeo era capaz de explicar porque os corpos natildeo se desprendiam da Terra se a Terra estaacute girando por que tudo natildeo estaacute solto no espaccedilordquo Em seguida complementa ldquoBem tudo isso eacute parte do que vocecirc poderia chamar de lsquoestilo galileanorsquo dedicaccedilatildeo agrave busca do entendimento natildeo apenas do registro O registro dos fenocircmenos em si eacute insignificante [] [] O reconhecimento de que esse eacute o caminho que a ciecircncia deve seguir se quisermos buscar o entendimento [] eacute um passo bastante grande e que tem muitas partes como a estrateacutegia galileana de descartar fenocircmenos recalcitrantes quando isso implicar um aumento de compreensatildeo a maior preocupaccedilatildeo poacutes-newtoniana com a inteligibilidade das teorias do que com o mundo e assim por dianterdquo (CHOMSKY 2006 p 125-6)

Argus Romero Abreu de Morais | 109

Para Foucault (CHOMSKY 2014) o problema da perspectiva

argumentativa de Chomsky (1977) estaria em natildeo reconhecer o fato de que

os lados da montanha natildeo podem ser separados de forma estanque pondo

o indiviacuteduo-sujeito de um lado e a constituiccedilatildeo histoacuterica do saber de

outro Isso ocasionaria um vieacutes metafiacutesico na explicaccedilatildeo da subjetividade

humana a qual poderia transformar sem ser transformada De certo

modo de tatildeo racionalista o vieacutes chomskyano entraria no campo do

idealismo rompendo com o vieacutes materialista da anaacutelise teoacuterica Tomando

por base esse raciociacutenio perguntamo-nos os domiacutenios histoacutericos do saber

possibilitam a constituiccedilatildeo e a emergecircncia das propriedades constituintes

do espiacuterito em um dado indiviacuteduo Passaremos a essa questatildeo na seccedilatildeo

seguinte

Pensamento e Discurso

E se o intelecto fosse uma estrutura complexa muacuteltipla e natildeo individual natildeo

lsquosujeita ao sujeitorsquo que produzisse resultados autecircnticos

Michel Foucault

O projeto filosoacutefico foucaultiano se interessa pelo entendimento

daquilo que ele chama de saber discursivo de modo a estabelecer uma

perspectiva da Histoacuteria das Ciecircncias ou das Ideias que natildeo se atenha agrave

criatividade centrada no indiviacuteduo no sujeito falante e no cientista assim

como na continuidade cumulativa do conhecimento Destarte o que se

estabelece como verdadeiro em cada periacuteodo histoacuterico depende da

maneira como uma dada sociedade organiza a validade ndash inclusive a

cientificidade ndash de determinados dizeres e por consequecircncia exclui a de

outros criando mecanismos sociais de controle do que se pode ou deve

dizer sobre um dado objeto

Para Foucault a liacutengua como sistema de signos criado socialmente

conforme definida por Saussure (2006) natildeo se reduz ao discurso

possuindo uma ordem simboacutelica proacutepria com sua loacutegica e suas regras

Consoante o linguista suiacuteccedilo a liacutengua seria uma forma sendo equivocado

110 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

consideraacute-la como uma substacircncia visto que como fato social ela

funciona tambeacutem como instituiccedilatildeo estabelecendo normas classificaccedilotildees e

nomenclaturas Ela seria aleacutem disso o principal sistema organizador da

linguagem humana sendo o signo a junccedilatildeo de um conceito (significado) a

uma imagem acuacutestica (significante) ambos psiacutequicos e em relaccedilatildeo

negativa com o mundo em si O valor de um dado signo se daacute por oposiccedilatildeo

aos demais maneira pela qual estabelece suas relaccedilotildees no sistema

linguiacutestico

Segundo Foucault (2008) a liacutengua natildeo se materializa no vaacutecuo pois

para que possa produzir sentido eacute recortada pela funccedilatildeo discursiva um

modo histoacuterico de organizaacute-la em zonas do conhecimento atribuindo-lhe

conceitos isto eacute objetos Liacutengua e discurso se atravessam pela funccedilatildeo

enunciativa18 constituindo os limites da cogniccedilatildeo humana Tratar-se-ia

portanto natildeo do pensamento do sujeito mas do pensaacutevel no sujeito natildeo

do dizer do falante mas do diziacutevel pelo falante os quais necessitam de preacute-

formaccedilotildees do saber histoacuterico para que possam constituir os estados

mentais e as possibilidades de fala nos indiviacuteduos19 Natildeo haacute assim

anterioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem sob pena de o

18 Nesta seccedilatildeo em alguns momentos remeteremos aos raciociacutenios de Foucault (2008) como forma de aprofundar sua perspectiva e instrumentais teoacutericos os quais natildeo satildeo trabalhados precisamente em Chomsky (2014) Sobre a singularidade do enunciado em relaccedilatildeo agraves demais categorias de estudos da linguagem Foucault (2008 p 103 Itaacutelicos nossos) esclarece ldquoUm enunciado natildeo tem diante de si (e numa espeacutecie de conversa) um correlato - ou uma ausecircncia de correlato assim como uma proposiccedilatildeo tem um referente (ou natildeo) ou como um nome proacuteprio designa um indiviacuteduo (ou ningueacutem) Estaacute antes ligado a um lsquoreferencialrsquo que natildeo eacute constituiacutedo de lsquocoisasrsquo de lsquofatosrsquo de lsquorealidadesrsquo ou de lsquoseresrsquo mas de leis de possibilidade de regras de existecircncia para os objetos que aiacute se encontram nomeados designados ou descritos para as relaccedilotildees que aiacute se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar a condiccedilatildeo o campo de emergecircncia a instacircncia de diferenciaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou dos

objetos dos estados de coisas e das relaccedilotildees que satildeo postas em jogo pelo proacuteprio enunciado define as possibilidades de aparecimento e de delimitaccedilatildeo do que daacute agrave frase seu sentido agrave proposiccedilatildeo seu valor de verdaderdquo

19 Sobre o assunto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 23 Itaacutelicos nossos) destaca ldquoQuando estudamos a histoacuteria do conhecimento percebemos que existem duas linhas gerais de anaacutelise de acordo com uma delas deve-se demonstrar como sob que condiccedilotildees e por que razotildees o intelecto se modifica no que diz respeito a suas regras formadoras sem passar por um lsquoinventorrsquo que descobre a verdade e de acordo com a outra deve-se demonstrar como o funcionamento das regras de um intelecto pode produzir num indiviacuteduo conhecimento novo e ineacutedito Aqui meu objetivo junta-se com meacutetodos imperfeitos e de uma forma bem inferior ao projeto do sr Chomsky ao explicar o fato de que algumas poucas regras ou elementos precisos totalidades desconhecidas que nunca foram nem produzidas podem ser elucidadas pelos indiviacuteduos Para resolver este problema o sr Chomsky tem de reintroduzir o dilema do sujeito no campo da anaacutelise gramatical Para resolver um problema anaacutelogo no campo da histoacuteria com o qual me encontro envolvido eacute preciso fazer o oposto de certo modo introduzir o ponto de vista do intelecto de suas regras de seus sistemas de suas transformaccedilotildees de totalidades no jogo do conhecimento individual Tanto em um como no outro caso o problema da criatividade natildeo pode ser resolvido da mesma maneira ou melhor natildeo pode ser formulado nos mesmos termos dada a condiccedilatildeo das disciplinas em cujo interior ele eacute colocadordquo

Argus Romero Abreu de Morais | 111

primeiro funcionar como uma instacircncia imaterial pura sem

temporalidade nem espacialidade

Sendo a linguagem uma produccedilatildeo social anterior ndash externalizada ndash

aos indiviacuteduos (seres orgacircnicos) deve-se considerar que as formas

simboacutelicas satildeo as responsaacuteveis pela instituiccedilatildeo do sujeito (aquele que

concretiza o enunciado) natildeo sendo os primeiros a dizerem o que dizem

natildeo satildeo tambeacutem o locus da gecircnese semacircntica Engajar-se numa situaccedilatildeo

de produccedilatildeo de sentidos eacute necessariamente posicionar-se ndash ou ser

posicionado ndash de acordo com as regras enunciativas vivenciadas e

institucionalizadas em sociedade Os enunciados representam as regras

historicizadas da forma de pensar e natildeo o revelar da intencionalidade e

do conhecimento em si por vezes tidos como a priori universais em

relaccedilatildeo agravequelas20 Logo como emergecircncia das organizaccedilotildees histoacutericas do

pensamento em distintas praacuteticas sociais o sujeito irrompe fragmentado

visto que sua internalidade decorre das descontinuidades dos saberes que

lhe atravessam natildeo sendo possiacutevel encontrar sua essecircncia nem na

interioridade do espiacuterito (FOUCAULT 2008) O sujeito torna-se portanto

uma instacircncia simboacutelica fugidia e clivada uma forma natildeo uma substacircncia

Agora pode-se compreender com mais clareza o motivo pelo qual

Foucault (CHOMSKY 2014) sustenta que a competecircncia natildeo eacute inata assim

como as regras do pensamento humano natildeo satildeo matemaacuteticas As

regularidades se devem aos sistemas enunciativos e estes satildeo submetidos

agraves contradiccedilotildees histoacutericas decorrentes das diversas formas de organizaccedilatildeo

dos homens em sociedade A proacutepria verdade sobre um objeto portanto

20 No que concerne agrave criatividade na linguagem conceito central na abordagem chomskyana Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 27 Itaacutelicos nossos) afirma ldquoO que de fato existe satildeo criaccedilotildees possiacuteveis inovaccedilotildees possiacuteveis Em termos de linguagem ou de conhecimento soacute se pode criar algo novo aplicando determinado nuacutemero de regras que definiratildeo a aceitabilidade ou a gramaticalidade dessas afirmaccedilotildees ou que definiratildeo no caso do conhecimento o caraacuteter cientiacutefico das afirmaccedilotildeesrdquo Em seguida acrescenta ldquoTambeacutem natildeo vejo problema em dizer que essas regras devem permitir que compreendamos aquilo que eacute falado ou pensado por esses indiviacuteduos Mas dizer que essas regulamentaccedilotildees estatildeo conectadas como precondiccedilatildeo da existecircncia agrave mente humana ou [agrave] sua natureza eacute algo difiacutecil de aceitar para mim Parece-me que antes de chegar a esse ponto ndash e seja como for estou me referindo apenas ao conhecimento ndash devemos reinseri-las no acircmbito de outras praacuteticas humanas como a economia a tecnologia a poliacutetica a sociologia que podem servir-lhes como condiccedilotildees de formaccedilatildeo de modelos de lugar de surgimento etc Gostaria de saber por que natildeo se pode descobrir o sistema de regularidade de limitaccedilatildeo ndash que torna a ciecircncia possiacutevel ndash em outro lugar mesmo fora da mente humana nos sistemas sociais nas relaccedilotildees de produccedilatildeo na luta de classes etcrdquo (FOUCAULT apud CHOMSKY 2014 p 36)

112 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

estaria submetida agrave temporalidade da histoacuteria e natildeo a uma descoberta

apesar da histoacuteria Assim em uacuteltima instacircncia a verdade estaria

condicionada agrave historicidade das ideias visto que a veracidade de um dado

referente decorre dos regimes de verdade os quais satildeo criados e

reproduzidos pelos grupos e instituiccedilotildees sociais bem como pelas relaccedilotildees

de forccedila instituiacutedas entre eles em cada sociedade (FOUCAULT 2008)

Para o filoacutesofo a proacutepria noccedilatildeo de ldquonatureza humanardquo natildeo se

configuraria como um conceito cientiacutefico funcionando mais como uma

espeacutecie de ldquoindicador epistemoloacutegicordquo que organiza distintas incursotildees

cientiacuteficas ao longo do seacuteculo XX21 Nesse sentido podemos entender que em

uma abordagem discursiva da relaccedilatildeo pensamentolinguagemmundo a

proacutepria forma deve ceder espaccedilo ao funcionamento22 Isso significa que

Foucault almeja desconstruir a psicologia interna dos sujeitos nos seguintes

termos constituiccedilatildeo social da linguagem (externalismo em oposiccedilatildeo ao

internalismoinatismo) rarr regras de enunciaccedilatildeo histoacutericas rarr

discursividades rarr pensamento rarr fala rarr condiccedilotildees de enunciaccedilatildeo rarr

sujeito do discurso (subjetividade imanente agrave linguagem em oposiccedilatildeo agrave

subjetividade transcendente) rarr praacutetica discursiva (FOUCAULT 2008)

A singularidade de uma produccedilatildeo discursiva decorre do fato de a

liacutengua(gem) por consequecircncia o proacuteprio pensamento soacute se materializar

em uma dada praacutetica constrangida por possibilidades que natildeo satildeo da sua

proacutepria ordem23 A infinidade de possibilidades para a realizaccedilatildeo de um

21 Ao comentar sobre a ldquonatureza humanardquo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 8 Itaacutelicos nossos) pondera ldquoNatildeo foi estudando a natureza humana que os linguistas descobriram as leis da mutaccedilatildeo consonantal que Freud descobriu

os princiacutepios da anaacutelise dos sonhos ou que os antropoacutelogos culturais descobriram as estruturas dos mitos Tenho a impressatildeo de que na histoacuteria do conhecimento a ideia de natureza humana desempenhou principalmente o papel de um indicador epistemoloacutegico [semelhante ao ideal normativo de Berwick e Chomsky (2017)] para designar certos tipos de discurso relacionados ou contraacuterios agrave teologia agrave biologia ou agrave histoacuteria Para mim seria difiacutecil ver nisso um conceito cientiacuteficordquo

22 Sobre esse aspecto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 36) pontua ldquoTalvez a diferenccedila entre o sr Chomsky e eu seja que quando fala de ciecircncia ele provavelmente estaacute pensando na organizaccedilatildeo formal do conhecimento enquanto eu estou falando do conhecimento em si ou seja eu penso no conteuacutedo de diversos conhecimentos que se encontram dispersos numa sociedade especiacutefica que permeiam a sociedade e que se afirmam como o fundamento da educaccedilatildeo das teorias das praacuteticas etcrdquo

23 Segundo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 21 Itaacutelicos nossos) ldquoO que me preocupa eacute a substituiccedilatildeo das transformaccedilotildees do intelecto pela histoacuteria das descobertas do conhecimento Desse modo eu tenho ao menos aparentemente uma atitude completamente diferente da do sr Chomsky a propoacutesito da criatividade porque para mim a questatildeo eacute eliminar o dilema do sujeito cognoscente enquanto para ele a questatildeo eacute permitir que o dilema do sujeito falante reapareccedila Poreacutem se ele o fez reaparecer se ele o descreveu eacute porque tem condiccedilotildees de fazecirc-lo Jaacute faz

Argus Romero Abreu de Morais | 113

enunciado natildeo representa a sua aleatoriedade pois esse gozaria de uma

caracteriacutestica semelhante agrave linguagem em Chomsky tendendo agrave raridade

das suas regras A diferenccedila entre o algoritmo no Gerativismo e a funccedilatildeo

enunciativa na perspectiva discursiva de Foucault eacute que esta uacuteltima se

constitui externamente ao espiacuterito sendo adquirida pelas experiecircncias em

sociedade Essa espeacutecie de empirismo histoacuterico natildeo se associa ao

comportamentalismo skinneriano dado que natildeo se funda na

transparecircncia da relaccedilatildeo entre o sistema perceptual e o mundo e na

consequente abstraccedilatildeo das relaccedilotildees dos objetos pela induccedilatildeo direta A

linguagem eacute opaca ndash indeterminada ndash em sua estrutura fundamental

sendo o sujeito sua consequecircncia

Eacute nesse ponto que Chomsky pode ter visto semelhanccedila entre a sua

abordagem e a de Foucault de modo que o filoacutesofo francecircs natildeo abandona

necessariamente as capacidades da inteligecircncia humana apenas se opotildee agrave

reduccedilatildeo dos conceitos a sistemas loacutegicos a priori no espiacuterito Ambos

parecem concordar que a linguagem funda um limite do possiacutevel no ser

considerando-a como instacircncia que aponta recursivamente para si mesma

e que demarca os estados finitos do dizer e de suas propriedades de

encadeamento diferentemente do sujeito tendencialmente onipotente

piagetiano e de seu ajuste em relaccedilatildeo agraves estruturas loacutegicas do mundo

Por fim podemos concluir que Chomsky e Foucault satildeo

antirreferencialistas na medida em que negam a relaccedilatildeo direta entre

palavra e objeto24 Opotildeem-se contudo na associaccedilatildeo ao estruturalismo

saussureano para o qual a liacutengua eacute uma entidade coletiva fundada em uma

espeacutecie de contrato social e natildeo um objeto bioloacutegico internalizado como

pretende o Gerativismo Em semelhanccedila com Piaget para Foucault

(2008) o sujeito natildeo eacute uma preacute-formaccedilatildeo do espiacuterito pois se constitui na

relaccedilatildeo dinacircmica entre estruturas simboacutelicas natildeo-inatas e experiecircncias em

sociedade embora segundo o estudioso francecircs a gecircnese deva ceder

muito tempo que os linguistas tecircm analisado a linguagem como um sistema que possui valor coletivo [dentre os quais Saussure] O intelecto como uma soma coletiva de regras que possibilitam que tais conhecimentos sejam produzidosem determinado periacuteodo mal foi estudado ateacute agorardquo

24 Ver aparente paradoxo em Chomsky na nota 15

114 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

espaccedilo agrave singularidade os universais semacircnticos agraves contingecircncias o

indiviacuteduo agrave subjetividade e a loacutegica matemaacutetica agrave dinacircmica histoacuterica Em

siacutentese Foucault sustenta que tanto o pensamento humano quanto os

sistemas de pensamento se organizam pela descontinuidade das ideias

frutos da emergecircncia de possiacuteveis histoacutericos e de horizontes de validade

dos conhecimentos25

Consideraccedilotildees Finais

Cada praacutetica teoacuterica constroacutei os seus limites e as suas potencialidades

dentro de um domiacutenio mais vasto dos saberes Tais diaacutelogos natildeo satildeo

desinteressados pois propotildeem construir ou desconstruir pontes do

conhecimento autorizar ou desautorizar o olhar do outro definir enfim

a si e ao outro enquanto campo do saber No que concerne a este trabalho

retomamos os debates entre Piaget Chomsky e Foucault para demonstrar

que a AD natildeo estaacute alheia aos aspectos cognitivos dos sujeitos apenas os

incorpora a uma perspectiva de historicidade radical da linguagem Pode-

25 No dizer de Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 32 Itaacutelicos do autor) ldquoExiste haacute muito tempo a ideia de que as ciecircncias e o conhecimento seguiam certa linha de lsquoprogressorsquo obedecendo ao princiacutepio de lsquocrescimentorsquo e ao princiacutepio de convergecircncia de todos os tipos de saber [] Cada nova versatildeo torna o conhecimento completamente diferente em suas funccedilotildees em sua organizaccedilatildeo em suas relaccedilotildees internas O que se tem aiacute eacute um princiacutepio de divergecircncia muito mais do que de crescimento Eu diria antes que existem muitas maneiras diferentes de tornar possiacuteveis simultaneamente alguns tipos de conhecimento Portanto existe sempre de certo ponto de vista um excesso de informaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos possiacuteveis sistemas em determinado periacuteodo o que faz com que eles sejam conhecidos dentro de seus limites mesmo em sua deficiecircncia o que significa que natildeo se consegue perceber sua criatividade E de outro ponto de vista o do historiador existe um excesso uma proliferaccedilatildeo de sistemas para uma pequena quantidade de informaccedilatildeo daiacute a ideia amplamente difundida de que o que determina o movimento na histoacuteria da

ciecircncia eacute a descoberta de novos fatosrdquo Eacute notoacuteria a proximidade entre a perspectiva foucaultiana de saber descontinuidade e acontecimento discursivo na Histoacuteria das Ciecircncias e aquela de paradigma descontinuidade e revoluccedilatildeo cientiacutefica desenvolvida por Kuhn (1998 [1962] p 20-1) como podemos notar a seguir ldquoPreocupado com o desenvolvimento cientiacutefico o historiador parece entatildeo ter duas tarefas principais De um lado deve determinar quando e por quem cada fato teoria ou lei cientiacutefica contemporacircnea foi descoberta ou inventada De outro lado deve explicar os amontoados de erros mitos e supersticcedilotildees que inibiram a acumulaccedilatildeo mais raacutepida dos elementos constituintes do moderno texto cientiacutefico [] Contudo nos uacuteltimos anos alguns historiadores estatildeo encontrando mais e mais dificuldades para preencher as funccedilotildees que lhe satildeo prescritas pelo conceito de desenvolvimento-por-acumulaccedilatildeo [] Talvez a ciecircncia natildeo se desenvolva pela acumulaccedilatildeo de descobertas e invenccedilotildees individuaisrdquo No capiacutetulo ldquoAs revoluccedilotildees como concepccedilotildees de mundordquo o fiacutesico acrescenta ldquoGuiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direccedilotildees E o que eacute ainda mais importante durante as revoluccedilotildees os cientistas veem coisas novas e diferentes quando empregando instrumentos familiares olham para os mesmos pontos jaacute examinados anteriormente Eacute como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta onde objetos familiares satildeo vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidosrdquo (KUHN 1998 p 145-6)

Argus Romero Abreu de Morais | 115

se com isso demonstrar os limites das abordagens logicizantes da relaccedilatildeo

pensamentolinguagemmundo aspecto transversal ao Construtivismo e

ao Gerativismo No sentido contraacuterio entendemos que a AD deve testar

seus fundamentos teoacutericos a partir da problemaacutetica da aquisiccedilatildeo da

linguagem a qual continuaremos a explorar em trabalhos futuros tendo

por foco avaliar os fundamentos epistemoloacutegicos de uma aquisiccedilatildeo do

discurso

Referecircncias

BERWICK R CHOMSKY N Por que apenas noacutes Linguagem e evoluccedilatildeo Satildeo Paulo

Editora Unesp 2017 [2016]

CHOMSKY N Diaacutelogos com Mitsuo Ronat Satildeo Paulo Cultrix 1977

_____ Sobre o minimalismo In CHOMSKY N Sobre natureza e linguagem Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006 [1999] p 113-200

_____ Problemas do conhecimento e da liberdade Rio de janeiro Record 2008 [1971]

_____ Natureza humana justiccedila vs poder o debate entre Chomsky e Foucault Satildeo

Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014 [1974]

FOUCAULT M A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2008

[1969]

KUHN T A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1998

[1962]

PIATELLI-PALMARINI M (Org) Teorias da linguagem teorias da aprendizagem o

debate entre Jean Piaget amp Noam Chomsky Satildeo Paulo Cultrix Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 1983 [1979]

SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Satildeo Paulo Cultrix 2006 [1916]

6

Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche

A Leitura de Guumlnter Abel

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa 1

O presente texto esboccedila uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento de

Nietzsche e a filosofia da mente no que diz respeito ao tratamento de

algumas questotildees centrais aiacute presentes ndash em particular o problema da

consciecircncia no debate entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo

entre processos fiacutesicos e mentais Para a compreensatildeo de tais questotildees o

pensamento nietzscheano ndash aqui mediado pela interpretaccedilatildeo de Guumlnter

Abel ndash mostra sua relevacircncia e atualidade no sentido de uma superaccedilatildeo

daquela dicotomia

Em ldquoConsciecircncia ndash linguagem ndash natureza a filosofia da mente em

Nietzscherdquo (ABEL 2005 p 1-41)2 Abel parte da anaacutelise de alguns aspectos

da investigaccedilatildeo atual em filosofia da mente para a partir de uma exegese

do corpus nietzscheano3 apontar para sua pertinecircncia e relevacircncia dentro

desse contexto As reflexotildees de Nietzsche acerca dos acircmbitos e das relaccedilotildees

entre consciecircncia natureza e linguagem ndash a limitaccedilatildeo do consciente pelo

natildeo consciente a formaccedilatildeo de conceitos e da memoacuteria a ideia de natureza

como conjunto complexo de forccedilas por exemplo ndash mostram a importacircncia

que essa triacuteade tem para o seu pensamento

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professor adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE)

2 Esse texto foi originalmente publicado nos Nietzsche-Studien 30 (2001) Berlim De Gruyter

3 Em particular trechos da Gaia ciecircncia e Aleacutem de bem e mal bem como fragmentos poacutestumos de 1884 a 1887 contidos em KSA nos vols X XI XII e XIII da ediccedilatildeo criacutetica de G Colli e M Montinari (1999a 1999b 1999c 1999d)

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 117

O foco da anaacutelise de Abel recai sobre o debate ndash renovado na

atualidade apoacutes a chamada ldquoreviravolta linguiacutesticardquo iniciada por

Wittgenstein e a ldquoredescoberta da consciecircnciardquo (ABEL 2005 p 199) pela

filosofia analiacutetica ndash entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo

entre processos fiacutesicos e mentais em particular os processos consciente-

mentais Segundo Abel de uma maneira geral duas posturas antagocircnicas

podem daqui emergir de um lado a tese do materialismo fisicalismo

monista a defender que estados e processos mentais satildeo tatildeo somente

fenocircmenos da mateacuteria de outro a tese do mentalismo dualista que

defende a irredutibilidade daqueles a estes Ambas as posturas no entanto

por suas proacuteprias limitaccedilotildees natildeo poderiam ser superadas uma pela outra

Precisamente pela ldquoarmaccedilatildeo conceitual que implica ou tem como

consequecircncia essa natildeo resoluccedilatildeordquo (ABEL 2005 p 206) ter-se-ia entatildeo um

impasse E soacute uma modificaccedilatildeo na arquitetura mesma dessa armaccedilatildeo

conceitual tornaria possiacutevel um encaminhamento do problema de modo a

indicar as condiccedilotildees sob as quais ele natildeo poderia mais ocorrer

Os elementos de interpretaccedilatildeo apropriados a essa modificaccedilatildeo

poderiam ser encontrados segundo Abel no pensamento nietzscheano A

tese que defende e que aqui procuraremos expor eacute a de que as criacuteticas

realizadas por Nietzsche agrave questatildeo da consciecircncia expondo seus limites

apontam para uma reinterpretaccedilatildeo do fenocircmeno que natildeo se deixa reduzir

a um mero fisicalismo naturalista nem tampouco se deixa levar por uma

hipoacutestase do conceito-modelo ldquoConsciecircnciardquo A triacuteade acima citada seria

nesse sentido natildeo soacute de fundamental importacircncia para a compreensatildeo do

pensamento nietzscheano como por outro lado seu pensamento a esse

respeito ndash ao acentuar o papel da praacutexis interpretativa e das funccedilotildees

simboacutelicas linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas na constituiccedilatildeo da consciecircncia e

da autoconsciecircncia ndash mostra sua relevacircncia no sentido de uma superaccedilatildeo

daquela dicotomia Tais elementos foram reconstruiacutedos pelo autor em seis

seccedilotildees que seratildeo apresentadas a seguir princiacutepio do continuum modelo

do processo organizaccedilatildeo funcional consciecircncia e linguagem

fenomenalismo da experiecircncia interna e consciecircncia e corporeidade

118 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

O Princiacutepio do Continuum

Abel parte da compreensatildeo de que a superaccedilatildeo das dicotomias entre

mentalismo e materialismofisicalismo soacute pode ocorrer a partir de um

modo de ver natildeo dualista E Nietzsche segundo Abel defende tal

concepccedilatildeo a partir do que chama de princiacutepio do continuum o mundo

para Nietzsche constitui-se como um espectro de continuidade que vai do

inorgacircnico passando pelo orgacircnico ateacute as atividades cognitivas e aos

projetos e consecuccedilatildeo das accedilotildees O que significa que por um lado o

homem seria entendido como corporificaccedilatildeo de todas as atividades

ldquointeligentesrdquo que jaacute se encontram no orgacircnico e com as quais o ser

humano seria retraduzido na natureza por outro o ldquocaraacuteter espiritualrdquo

das atividades vivas poderia ser encontrado nas formas de manifestaccedilatildeo

orgacircnica e ateacute para aleacutem destas

Natildeo se trata aqui de uma superaccedilatildeo redutora ou derivativa do modelo

dualista na relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o consciente No modelo do

continuum a consciecircncia desponta como um fenocircmeno gradual que surge

a partir de ldquodiferenciaccedilotildees filogeneacuteticas e ontogeneacuteticas no acircmbito do

orgacircnicordquo (ABEL 2005 p 209) e cujos elementos jaacute se encontram

presentes em animais enquanto o tornar-se consciente e a autoconsciecircncia

somente no homem seriam encontrados Dois pressupostos do princiacutepio

nietzscheanos satildeo aqui delineados em primeiro lugar formas de vida preacute-

conscientes e orgacircnicas devem ser vistas como ldquoprocessos dinacircmicosrdquo jaacute

inteligentes e basilares para a formaccedilatildeo da consciecircncia por outro ldquoestados

mentais conscientesrdquo devem ser distintos dos ldquoinconscientesrdquo sendo este

acircmbito mais amplo e a partir do qual aquele pode ser explicado Em todo

caso por peticcedilatildeo de princiacutepio ldquoa consciecircncia mesma natildeo estaacute em condiccedilatildeo

de indicar uma lsquocausa objetivarsquo para sua proacutepria origemrdquo (ABEL 2005 p

209)

O que seria entatildeo o ldquoeurdquo da consciecircncia ou o lsquoSi mesmorsquo [Selbst] do

corpo humano Dois aspectos devem ser aqui observados por um lado

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 119

como o modelo do continuum abre-se a possibilidade de que esse ldquoeurdquo

ldquoinfluencie num certo sentido os processos orgacircnicosrdquo (ABEL 2005 p

208) ou seja que determinados pensamentos possam ser ldquoincorporadosrdquo

organicamente por outro o sujeito da consciecircncia ndash ou o que Abel chama

de ldquoeu consciente e lsquoindexicalrsquordquo ndash surge como uma delimitaccedilatildeo dentro da

ldquocorrente contiacutenua de acontecimentosrdquo e natildeo mais como uma coisa

individual que precede a consciecircncia de algo O Eu aparece assim como a

ponta de um processo da qual por isso mesmo prescinde o todo restante

Daiacute a formulaccedilatildeo de Nietzsche ldquoPara que em geral consciecircncia se ela eacute

no geral supeacuterfluardquo e agrave qual ele mesmo responde ldquouma rede de ligaccedilatildeo

entre homem e homemrdquo que teve de ldquodesenvolver-se somente enquanto

talrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354)

Modelo do Processo

Enquanto continuum que vai do orgacircnico ao consciente o mundo de

Nietzsche eacute um conjunto de ldquoefeitos cambiantes dinacircmicos altamente

complexos de variadas organizaccedilotildees de forccedilas vivas e inteligentesrdquo (ABEL

2005 p 215) ndash luta e arregimentaccedilatildeo de impulsos cujo pathos se mostra a

ele como vontade de poder [der Wille zur Macht] Os elementos da

natureza nesse sentido natildeo podem mais ser tomados coisas ndash corpos

materiais ocupando posiccedilotildees no espaccedilo-tempo mas ldquoeventosrdquo ou ldquoobjetos-

processordquo (ABEL 2005 p 216)4 Tal concepccedilatildeo certamente traz

consequecircncias natildeo somente para o status do conceito de ldquocoisardquo mas

tambeacutem para a ideia de ldquosujeitordquo A questatildeo que Abel aqui se coloca eacute os

processos devem ainda pressupor um sujeito ou eacute possiacutevel partir de

processos sem sujeito

A ideia de um sujeito da consciecircncia que a represente e organize seus

conteuacutedos parece implicada no momento mesmo em que a consciecircncia

4 Abel salienta aqui a proximidade da concepccedilatildeo nietzscheana com a fiacutesica contemporacircnea (objetos como uma identidade de eventos) e com as pesquisas em filosofia da linguagem (em particular as ideias de Reichenbach e Davidson)

120 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

enquanto consciecircncia-de-algo transitiva designada por meio da

intencionalidade manifesta-se Ocorre que tambeacutem o ldquoeurdquo o sujeito da

consciecircncia soacute se manifesta em virtude do surgimento desta uacuteltima5

Como afirma Nietzsche em Aleacutem do bem e do mal a ideia de um ldquosujeito

lsquoeursquordquo como condiccedilatildeo do predicado ldquopensordquo seria uma ldquofalsificaccedilatildeo dos

fatosrdquo (NIETZSCHE 2005 sect17) Ora com isso dois postulados expostos

na seccedilatildeo anterior comeccedilam a ser esclarecidos

(a) de que o eu (sujeito) que surge no interior da consciecircncia jaacute depende de

uma amaacutelgama de processos sem sujeito e (b) que o estado e fenocircmeno da

consciecircncia repousa genealogicamente jaacute sobre estados mentais [eventos

processos] natildeo conscientes (ABEL 2005 p 218)

Haveria nesse sentido uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a ideia de um

ldquosujeito da consciecircnciardquo e a figura de ldquoprocessos sem sujeitordquo A pergunta

ldquoquem pensardquo deve ser respondida com ldquoalgo pensardquo no sentido de que

esse ldquoalgordquo jaacute natildeo eacute um ldquoeurdquo objeto e representaccedilatildeo mas um processo e

uma interpretaccedilatildeo ndash ou citando Nietzsche ldquouma interpretaccedilatildeo do processo

que natildeo pertence ao processo mesmordquo (NIETZSCHE 2005 sect17) ndash

designada com a palavra indexical ldquoeurdquo funccedilatildeo desse processo Da mesma

forma no plano linguiacutestico as sentenccedilas de processo natildeo seriam mais

vinculadas a um sujeito gramatical (ABEL 2005 p 221)6 A ideia de sujeito

enquanto ldquoindiviacuteduo-coisardquo dissolve-se nesse sentido pelo ldquoretorno do

sujeito da consciecircncia em si mesmo como sua consequecircncia internardquo

(ABEL 2005 p 220) Em seu lugar surgem o indiviacuteduo-evento e o eu-

interpretaccedilatildeo

A suspeita de uma contaminaccedilatildeo categorial [] de que somente indiviacuteduos-

coisa fornecem o modelo de referecircncia parece banida atraveacutes da passagem ao

esquema do evento e uma teoria natildeo dualista natildeo estaacute mais aprisionada ao

5 Veremos adiante (na seccedilatildeo ldquoFenomenalismo da experiecircncia internardquo) que o eu-consciecircncia a perspectiva da primeira pessoa surge no momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a consciecircncia

6 O autor faz aqui atraveacutes de Lichtenberg um paralelo entre a concepccedilatildeo nietzscheana (com o exemplo das expressotildees impessoais) e a criacutetica ao eu-portador feita por Wittgenstein (o do Tractatus assim como o das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas na comparaccedilatildeo entre olho e o campo visual)

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 121

leito de Procrusto do sujeito da consciecircncia Somente um modelo de referecircncia

baseado em indiviacuteduos-evento abre essa possibilidade (ABEL 2005 p 222)

A partir daqui abre-se o caminho para se pensar eventos mentais

conscientes e natildeo conscientes em uma ldquoco-pertenccedila natildeo dualistardquo com

processos orgacircnicos e corporais

Organizaccedilatildeo Funcional

A ideia de processo implicaria tambeacutem uma passagem do modelo de

organismo ao de organizaccedilatildeo Com efeito o orgacircnico em Nietzsche eacute

entendido como uma ldquoestrutura de organizaccedilatildeordquo na qual a consciecircncia o

pensamento consciente e outros processos mentais resultam como

ldquopropriedades e consequecircncias emergentes da co-relaccedilatildeo muacuteltipla e

altamente complexa dos componentes do sistema inteiro que constituem

a organizaccedilatildeo e garantem sua funcionalidaderdquo Aqui natildeo se trata

propriamente de uma relaccedilatildeo entre parte e todo ndash entre particular e

universal mas de uma combinaccedilatildeo de ldquomuacuteltiplas organizaccedilotildees de forccedilas

das partesrdquo cujos efeitos fazem surgir aqueles estados mentais e emergir

a ldquoespiritualidade viva e inteligenterdquo jaacute presente no orgacircnico (ABEL 2005

p 223)

Tambeacutem aqui haveria uma proximidade com a concepccedilatildeo

atualmente defendida e aceita nas pesquisas sobre o ceacuterebro ndash em

particular ao modelo dos ldquomultiple draftsrdquo desenvolvido por Dennett

(1991 cap 5 apud ABEL 2005 p 224) ndash de que estados mentais

conscientes e natildeo conscientes satildeo resultados da organizaccedilatildeo e da

complexa dinacircmica de configuraccedilotildees de neurocircnios ndash o que vale ser aqui

salientado dado que tal modelo vai de encontro agrave concepccedilatildeo cartesiana

centralista da consciecircncia na qual o ceacuterebro teria um centro ndash um ldquoolho

internordquo para as experiecircncias conscientes Por outro lado a proacutepria ideia

de um ldquofluxo da consciecircnciardquo natildeo pode ser vista como uma sequecircncia

unificada mas ao contraacuterio processos de conformaccedilotildees dinacircmicas e

muacuteltiplas combinaccedilotildees das partes do sistema envolvidas

122 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Na concepccedilatildeo nietzscheana diz Abel esse aspecto eacute enfatizado no

sentido da dependecircncia do ldquoperfil funcionalrdquo do orgacircnico em relaccedilatildeo agraves

combinaccedilotildees de suas partes A ldquoorganizaccedilatildeo processualrdquo pode ser

entendida como configuraccedilotildees de forccedilas que preponderam e dominam ndash

ldquoregentesrdquo mas que satildeo ao mesmo tempo ldquodependentes das forccedilas

particulares funcionaisrdquo ndash e forccedilas ldquoregidasrdquo As partes ndash eventos e

processos por sua vez jaacute natildeo podem ser representadas como elementos

atomiacutesticos mas como ldquoconsecuccedilatildeo efetivo-relacional do acontecerrdquo

(ABEL 2005 p 227) Para Nietzsche esse eacute um evento fundamental de

tudo o que eacute efetivo e vivo E eacute nesse sentido que para ele a vida pode ser

definida como ldquolsquouma forma duradoura do processo de afirmaccedilatildeo da forccedila

onde os lutadores crescem de modo desigual entre sirsquordquo (COLLI

MONTINARI 1999b KSA-XI 36 [22])

A centralidade que o aspecto da organizaccedilatildeo funcional ocupa na

concepccedilatildeo nietzscheana permite caracterizaacute-la segundo Abel como um

funcionalismo entendido no sentido de que estados e processos mentais ndash

em particular estados e processos natildeo conscientes exercem papeacuteis

funcionais e referem-se agrave organizaccedilatildeo funcional de um sistema podendo

ser descritos por uma terminologia funcionalista No entanto natildeo seria

possiacutevel aqui uma associaccedilatildeo ao funcionalismo defendido por Putnam

(1975 apud ABEL 2005 p 228) com base em um modelo computacional

de descriccedilatildeo do funcionamento e individuaccedilatildeo de estados mentais Isso

porque entraria na concepccedilatildeo nietzscheana um ldquoelemento de liberdade e

criatividaderdquo que permite ao eu da consciecircncia dispor dos conteuacutedos e

subsumi-los a um ldquotratamento imaginativo ou planejado do agirrdquo

Um uacuteltimo aspecto quanto agrave organizaccedilatildeo funcional em Nietzsche e

na filosofia da mente diz respeito a uma possiacutevel interpretaccedilatildeo

teleoloacutegico-normativa dos papeacuteis funcionais exercidos pelos processos

mentais Na concepccedilatildeo nietzscheana os processos de organizaccedilatildeo de

forccedilas satildeo eventos de autorregulaccedilatildeo e otimizaccedilatildeo das relaccedilotildees de forccedilas

atuando tanto na organizaccedilatildeo como nas partes nela envolvidas Essas

muacuteltiplas combinaccedilotildees soacute posteriormente apareceriam agrave consciecircncia como

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 123

em conformidade a um fim Natildeo haveria nesse sentido nenhuma

teleologia na coisa mesma mas apenas em como ela aparece agrave consciecircncia

ldquoA organizaccedilatildeo e a dinacircmica dos processos complexos de forccedilas se

realizam () de modo ateleoloacutegicordquo (ABEL 2005 p 231) Seria preciso

distinguir entre duas espeacutecies de finalidade seja a ideia de fim entendida

como um motivo ndash uma ldquoteleologia do atuar exoacutegenordquo ou no como uma

consequecircncia ndash uma ldquofuncionalidade e regularidade endoacutegenardquo Nesse

sentido soacute como expressatildeo de um ldquoolhar que observa posteriormenterdquo

uma conformidade a fins seria possiacutevel

Consciecircncia e Linguagem

Os modelos e organizaccedilotildees acima natildeo estariam bem esclarecidos sem

a compreensatildeo de que por detraacutes das representaccedilotildees sobre as quais a

consciecircncia se efetiva estatildeo os signos linguiacutesticos e funccedilotildees gramaticais

que por sua vez exercem-se no contexto de uma praacutexis interpretativa Em

outras palavras na base do fenocircmeno da consciecircncia aparece o

fundamento linguiacutestico-gramatical e interpretativo de todo pensar Para

Nietzsche soacute podemos pensar ldquode forma linguiacutesticardquo (COLLI

MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22]) O ldquopensar racionalrdquo eacute nesse sentido

um ldquointerpretar segundo um esquema que natildeo podemos dispensarrdquo

(COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22])

Para Abel o que assume significaccedilatildeo fundamental nos dias de hoje eacute

que se por um lado a consciecircncia apresenta a linguagem ndash enquanto uso

dos signos (linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticos) por outro na base mesma de

seu surgimento consecuccedilatildeo e desenvolvimento ela revela tambeacutem com a

linguagem o seu caraacuteter puacuteblico e social A consciecircncia (e suas

especificidades) nesse sentido eacute tematizada agora ldquona interseccedilatildeo dos

desenvolvimentos no acircmbito do natural-orgacircnico [] com os processos

nas esferas do social do histoacuterico e do culturalrdquo (ABEL 2005 p 233)

Jaacute em seus primeiros escritos postumamente publicados Nietzsche

aponta para o cerne comunicativo constitutivo da consciecircncia Na forma

124 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

como apresentado em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral o

homem natildeo apreende coisas objetos mas sensaccedilotildees ndash marcas de

excitaccedilotildees externas que satildeo por meio de transposiccedilatildeo metafoacutericas ndash do

objeto em imagem e da imagem em conceito ndash simplificadas

antropomorfizadas e restituiacutedas pela linguagem na forma de signos Por

uma ldquotransposiccedilatildeo artiacutesticardquo entatildeo a linguagem opera uma identificaccedilatildeo

do natildeo idecircntico da qual surge o conceito Mais ainda eacute nessa identificaccedilatildeo

que se constitui o objeto e tambeacutemo sujeito criador como esfera a ele

oposta com o qual natildeo pode ter senatildeo uma ldquorelaccedilatildeo esteacuteticardquo que eacute a sua

proacutepria criaccedilatildeoconstituiccedilatildeo

Tal processo nesse sentido soacute se justifica do ponto de vista de uma

praacutexis social ou seja por uma necessidade de comunicaccedilatildeo e de

ldquoestabilizaccedilatildeo de sistemas sociaisrdquo (ABEL 2005 p 235) A proacutepria

ldquoverdaderdquo nada mais eacute que uma metaacutefora cristalizada e aceita socialmente

isto eacute pelo rebanho Nietzsche ressalta as condiccedilotildees fisioloacutegicas e

histoacutericas do ldquoinstinto (ou impulso) de verdaderdquo que marca nossa

civilizaccedilatildeo e cujo cerne ilusoacuterio e metafoacuterico revela antes uma crenccedila na

verdade como valor incondicional ldquoas verdades satildeo ilusotildees cuja origem

estaacute esquecidardquo (NIETZSCHE 2007 1 30)

Essa compreensatildeo eacute retomada posteriormente em A gaia ciecircncia

Para Nietzsche na constituiccedilatildeo mesma da consciecircncia aparece uma

ldquonecessidade de comunicaccedilatildeordquo que pressupotildee por sua vez uma

ldquocapacidade [entendida como forccedila e arte] de comunicaccedilatildeordquo

[] posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas

sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeo () Consciecircncia eacute na realidade

apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas () o pensar que se torna

consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos ndash pois

apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de

comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia

(NIETZSCHE 2004 sect 354)

O pensar conceitual e a experiecircncia consciente efetivam-se nesse

sentido enquanto ldquosignos de comunicaccedilatildeordquo ou ldquoformaccedilotildees e abreviaccedilotildees

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 125

de signos sobre signosrdquo Segundo Abel a constituiccedilatildeo de um sistema

conceitual ndash pelo qual o eu da consciecircncia se efetiva ndash ocorre no momento

em que ela proacutepria eacute capaz de diferenciar conceitualmente algo de algo e

com essa delimitaccedilatildeo constituir objetos e a si proacutepria como objeto

O caraacuteter interpretativo da consciecircncia no entanto natildeo se restringe

a um aspecto de suas funccedilotildees simboacutelicas mas eacute sua proacutepria condicionante

no sentido de que os processos orgacircnicos mesmos jaacute pressupotildeem um

ldquointerpretar contiacutenuordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 2 [148])

sendo por ele caracterizados A consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo soacute procede

de modo interpretativo em sua consecuccedilatildeo mas tambeacutem jaacute repousa em

processos de interpretaccedilatildeo natildeo conscientesrdquo (ABEL 2005 p 237) sendo

jaacute um resultado dessas relaccedilotildees Daqui se tem como consequecircncia que ela

natildeo pode ser nem causa sui nem finis sui no sentido de que permanece

sem acesso a seu proacuteprio fundamento A tarefa de uma filosofia da mente

nesse sentido consistiria principalmente em destacar o caraacuteter simboacutelico

e principalmente interpretativo subjacente a estados processos e

fenocircmenos da consciecircncia

Sempre haveria no entanto o perigo de a consciecircncia de modo auto-

causal e auto-teleoloacutegico hipostasiar-se a si proacutepria e mascarar o caraacuteter

problemaacutetico de as representaccedilotildees que surgem na consciecircncia estarem agrave

disposiccedilatildeo e poder do eu-consciecircncia como se esta as antecedesse e

pudesse com elas relacionar-se de outro modo Uma suposta

autocertificaccedilatildeo da autoconsciecircncia compensaria a incerteza quanto ao

objeto e ao sujeito que ela representa Eacute a tendecircncia proacutepria agrave consciecircncia

de querer ir aleacutem natildeo soacute do fenomenalismo da experiecircncia exterior como

tambeacutem da interior (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 15 [90]) Esse

ponto seraacute abordado na proacutexima seccedilatildeo

Fenomenalismo da Experiecircncia Interna

Vimos que pela articulaccedilatildeo linguiacutestica a consciecircncia opera uma

simplificaccedilatildeo esquematizaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo (ABEL 2005 p 237) de

126 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

tudo o que ateacute ela chega do mundo exterior Da mesma forma na

experiecircncia interna natildeo deparamos com fatos como sendo algo primaacuterio

mas eles proacuteprios ldquotecircm de ser o resultado de interpretaccedilotildeesrdquo Sensaccedilotildees de

prazer e dor por exemplo bem como aquilo que costumamos chamar de

ldquosentido internordquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 14 [152]) satildeo

para Nietzsche segundo Abel ldquofenocircmenos tardios derivados

interpretados intelectualmente de processos de forccedilas que estatildeo ao fundordquo

(ABEL 2005 p 238-239)

Duas perspectivas aqui se abrem para a caracterizaccedilatildeo

dessefenomenalismo da percepccedilatildeointerior em primeiro lugar a ordem e

cronologia de causa e efeito eacute continuamente invertida de forma que por

meio da memoacuteria das experiecircncias internas passadas a causa eacute imaginada

ndash em adequaccedilatildeo agrave causa real ndash depois de o efeito jaacute ter sucedido Em

segundo lugar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem (conforme exposta

acima) conduz tambeacutem a uma relaccedilatildeo entre fenomenalismo e

perspectivismo de forma que as experiecircncias internas ndash que satildeo uacutenicas e

individuais satildeo pela linguagem traduzidas para a consciecircncia como

estados internos conhecidos delimitados e tangiacuteveis ao indiviacuteduo7

Natildeo podemos assim transgredir o mundo fenomenal Mas isso natildeo

quer dizer que aquilo a que natildeo temos acesso seja o mundo ldquoverdadeirordquo

e sim tatildeo somente o ldquoinformulaacutevel mundo sem forma do caos de

sensaccedilotildeesrdquo ldquouma outra espeacutecie de mundo fenomenal para noacutes

incognosciacutevelrdquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 9 [106]) Haveria

aqui segundo Abel uma forte criacutetica ao princiacutepio mesmo da racionalidade

moderna a autoconsciecircncia cartesiana ndash ou mais precisamente agrave ldquoideia de

uma autocertificaccedilatildeo fundamentalista numa experiecircncia pura preacute-

linguiacutestica preacute-conceitual e independente da interpretaccedilatildeordquo ABEL 2005

p 241) Na base desse fundamentalismo epistemoloacutegico ldquoo ponto de

partida errado ndash como se houvesse lsquofatos da consciecircnciarsquo ndash e nenhum

fenomenalismo na observaccedilatildeo de si mesmordquo Erro que resultaria em seis

7 Processo esse que como vimos natildeo subsiste independentemente de uma praacutexis social

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 127

pressuposiccedilotildees nenhuma delas para Nietzsche (COLLI MONTINARI

1999d KSA XIII 15 [90]) plena de sentido

(1) transparecircncia completa da consciecircncia (2) manutenccedilatildeo da ideia do dado

ao menos para o acircmbito da experiecircncia interna da consciecircncia (3) a

experiecircncia humana eacute independente da linguagem da descriccedilatildeo e por fim ateacute

mesmo da interpretaccedilatildeo (4) o fenomenalismo eacute restrito somente ao mundo

exterior () (5) haacute um ponto de observaccedilatildeo fixo (6) a consciecircncia tem acesso

imediato a seus proacuteprios estados de experiecircncia interna de si (ABEL 2005 p

238-239)

Com ofenomenalismo e perspectivismo da experiecircncia interna entra

em cena o eu-consciecircncia ndash a perspectiva da primeira pessoa que surge no

momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a

consciecircncia Tambeacutem com ele o ldquocaraacuteter subjetivo qualitativo e

fenomenal da vivecircncia conscienterdquo (ABEL 2005 p 241) Tais aspectos satildeo

segundo Abel discutidos na atual filosofia da mente a partir de duas teses

(1) que os aspectos subjetivos qualitativos e fenomenais satildeo fundamentais

para a experiecircncia interna (2) [que] esses aspectos subjetivos qualitativos e

fenomenais ligados agrave perspectiva da vivecircncia na primeira pessoa natildeo podem

ser reduzidos agrave conformidade a leis fiacutesicas [que satildeo] explicadas da perspectiva

neutra da [] intersubjetividade [Esta] no entanto eacute precisamente aquilo

que natildeo somente eacute dado na vivecircncia factual subjetiva qualitativa e fenomenal

mas tambeacutem sistematicamente excluiacuteda (ABEL 2005 p 242)

Consciecircncia e Corporeidade

Apesar de natildeo poder representar ou sequer distanciar-se da rede natildeo

consciente de seus condicionamentos a consciecircncia ndash enquanto eu-

consciecircncia tem no entanto a ldquopossibilidade de abrir-se retroagindo a si

mesma em contraposiccedilatildeo ao complexo de suas condiccedilotildeesrdquo (ABEL 2005

p 244) Transiccedilatildeo essa que segundo Abel pode ser vista como a passagem

de uma consciecircncia autoteleoloacutegica e autocausal para um eu-consciecircncia

que sem perder a autoconsciecircncia eacute o proacuteprio si-mesmo do corpo ndash aquilo

que Nietzsche chama de grande razatildeo Isso implicaria a transiccedilatildeo de uma

128 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoontologia moralrdquo (COLLI MONTINARI 1999b KSA XI 7 [4]) a uma

ldquofilosofia do corpordquo que comeccedila quando a pequena razatildeo se volta sobre si

por sua proacutepria autoconservaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo a seus

condicionamentos O que natildeo deve ser confundido como uma reduccedilatildeo a

um naturalismo ou biologismo ndash nem tampouco de uma ldquoneurofilosofiardquo

como em Churchland (1998) Natildeo se trata na filosofia do corpo de

Nietzsche de organismos corpos e neurocircnios mas do corpo-organizaccedilatildeo

Natildeo haacute aqui um ldquoalgordquo a ser estudado mas uma ldquocombinaccedilatildeo dinacircmica e

altamente complexa de [] inteligecircncias em processordquo (ABEL 2005 p

244) A passagem do eu-consciecircncia ao si-mesmo (o ldquodominador do eurdquo)

eacute nesse sentido a passagem de uma ldquosubjetividade produtorardquo para a

ldquoindividualidade no sentido da organizaccedilatildeo do corpo [Leib] () que cada

um eacute enquanto ser que interpretardquo ABEL 2005 p 246-7) Isto natildeo implica

um retorno da individualidade ao sujeito racional universal mas a

subsunccedilatildeo em uma ldquoindividualidade-corpordquo

Dois aspectos satildeo salientados aqui por Abel em primeiro lugar a

ldquocorporeidade preacute-cognitiva preacute-linguiacutestica e preacute-racional em seus

estados esteacuteticos pode ser vista como o lugar de surgimento dos signos

simbolizadores linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticosrdquo (ABEL 2005 p 247) em

cuja invenccedilatildeo estatildeo envolvidos estados corporais Na abertura do eu-

consciecircncia agrave rede de seus condicionantes revela-se ldquoo caraacuteter dos signos e

da interpretaccedilatildeo em sua posiccedilatildeo fundamentalrdquo (ABEL 2005 p 248) Por

outro lado o modo de consideraccedilatildeo do ldquofio-condutor do corpordquo apresenta-

se como um ldquofenocircmeno mais ricordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII

40 [15]) no sentido de que se situa no interior mesmo da posiccedilatildeo criticista

A posiccedilatildeo da consciecircncia bem como da criacutetica da linguagem eacute nesse

sentido aprofundada Trata-se nas palavras de Nietzsche ldquodo corpo em

todo o desenvolvimento do espiacuterito ele eacute a histoacuteria que se torna sensiacutevel

de que um corpo superior se formardquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X

24 [16]) Em que o mental por outro lado eacute a ldquolinguagem simboacutelica do

corpordquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X 7 [126])

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 129

Criacutetica da Consciecircncia e Criacutetica da Linguagem

Dois aspectos devem ser salientados quanto a este toacutepico por um

lado a importacircncia da consciecircncia e da linguagem nas relaccedilotildees humanas

ndash com o mundo com o outro e consigo ndash e por outro o reconhecimento

de seus limites ndash em uacuteltima instacircncia do limite-corpo que subjaz a ambas

linguagem e consciecircncia

No caso da linguagem os limites parecem ser bastante sutis no

sentido de que ela proacutepria enquanto ldquogramaacuteticardquo atua como preacute-

formadora do pensamento consciente e nesse sentido ldquoo que pode ser

pensado e dito em geral tem de estar jaacute na gramaacutetica de uma linguagemrdquo

(ABEL 2005 p 249) Como afirma Nietzsche em Crepuacutesculo dos iacutedolos

ldquoA lsquorazatildeorsquo na linguagem oh que velha e enganadora senhora Receio que

natildeo nos livremos de Deus porque ainda acreditamos na gramaacuteticardquo

(NIETZSCHE 2006 III sect5) Tais limites que a tornam suscetiacutevel a uma

petrificaccedilatildeo estatildeo precisamente pelo caraacuteter de universalidade das

sentenccedilas e palavras Principalmente quando estas se tornam conceitos

frutos da ldquoidentificaccedilatildeo do natildeo idecircnticordquo (NIETZSCHE 2007 1) e jaacute

distantes de sua ldquovivecircncia original uacutenica e totalmente individualizadardquo Haacute

aqui o risco de se fazer mitologia com o ldquomundo dos signosrdquo e de tornaacute-lo

o ldquoem si das coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 sect21)

Uma superaccedilatildeo no pensamento dos ldquoerrosrdquo da razatildeo petrificados na

linguagem ndash ou em uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo (NIETZSCHE 2006

III sect5) ndash seria no entanto impossiacutevel porque noacutes ldquonecessitamos do errordquo

O problema crucial aqui como aponta Abel eacute que o indiviacuteduo uma

sensaccedilatildeo ou o proacuteprio inefaacutevel jaacute pressupotildeem a linguagem quando satildeo

expressos comunicados Como entatildeo conciliar o caraacuteter individual de uma

sensaccedilatildeo com a pretensatildeo agrave universalidade e o caraacuteter comunicativo e

social da linguagem que a expressa

No acircmbito da consciecircncia por sua vez por intermeacutedio e constituiccedilatildeo

da linguagem tudo perde a individualidade e eacute traduzido para o acircmbito do

universal O que impede um acesso agrave profundidade e deixa agravequela apenas

130 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

um ldquomundo de superfiacutecies e signosrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354) A

consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo pertence propriamente agrave existecircncia

individual do homemrdquo A relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem mostra-se

uma relaccedilatildeo de constituiccedilatildeo universalizaccedilatildeo simplificaccedilatildeo e

superficializaccedilatildeo Os limites se datildeo em que nessa relaccedilatildeo com a iminecircncia

de uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo a consciecircncia corre de vaacuterias formas o

risco de hipostasiar-se a si mesma

Em primeiro lugar na medida em que ela pretende identificar-se com a ampla

situaccedilatildeo total de um homem Entatildeo conforme ela considera seu eu isto eacute o

sujeito como substacircncia ela assumiria como sujeito uma posiccedilatildeo aprioriacutestica

face aos conteuacutedos da consciecircncia Por fim na medida em que o eu isto eacute o

sujeito da consciecircncia vecirc suas determinaccedilotildees das representaccedilotildees da consciecircncia

dos objetos da experiecircncia como determinaccedilotildees ontoloacutegicas Aleacutem disso haacute o

risco de hipoacutestase no sentido de que [] a consciecircncia e a mente tendem a

entenderem a si mesmas de modo autoteleoloacutegico e autocausal como finis sui e

causa sui e que elas jaacute natildeo podem abrir-se desse modo agrave rede abarcante das

condiccedilotildees de sua proacutepria existecircncia (ABEL 2005 p 252)

A criacutetica de Nietzsche em suma natildeo se refere propriamente agrave

consciecircncia ndash erro necessaacuterio ndash nem tampouco tem caraacuteter reducionista

Antes dirige-se ao modelo cartesiano hipostasiado de reflexatildeo da

consciecircncia e da autoconsciecircncia em seus seis erros ou pressuposiccedilotildees

Filosofia Simboacutelica e Interpretativa da Mente

Pode-se formular a advertecircncia articulada na criacutetica da consciecircncia e da

linguagem do seguinte modo natildeo se confunda a circunstacircncia de que noacutes

temos a ver na consciecircncia assim como na autoconsciecircncia com signos e

interpretaccedilotildees com a concepccedilatildeo de que noacutes nos deparariacuteamos com as ldquocoisas

mesmasrdquo ou com as coisas-em-si-mesmas Assumir essa uacuteltima significa

recair no sofisma naturalista da consciecircncia (ABEL 2005 p 253-4)

Do que foi exposto quanto aspectos acima atenccedilatildeo especial deve ser

dada ao caraacuteter simboacutelico e interpretativo ndash semioacutetico ndash dos estados e

processos da consciecircncia da autoconsciecircncia e dos outros processos

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 131

mentais conscientes e natildeo conscientes Consciecircncia eacute consciecircncia de signos

cujos elementos (sintaacuteticos semacircnticos e pragmaacuteticos) natildeo os precedem

mas satildeo eles mesmos constituiacutedos em sua ldquoorientaccedilatildeo a algo ou a outras

pessoasrdquo ndash orientaccedilatildeo que tem o caraacuteter de uma ldquointerpretaccedilatildeo

construcionalrdquo (ABEL 2005 p 253-4) As funccedilotildees da interpretaccedilatildeo

constituem assim o fundamento dos signos Todos os estados processos

e fenocircmenos mentais bem como a comunicaccedilatildeo desses conteuacutedos

realizam-se em e como signos e interpretaccedilotildees O ponto chave nessa

concepccedilatildeo pragmaacutetica simboacutelica e interpretativa diz Abel eacute que ldquonoacutes

temos consciecircncia mente e pensamento natildeo por meio mas por forccedila dos

processos de signos e interpretaccedilotildeesrdquo (ABEL 2005 p 256) A

interpretaccedilatildeo nesse sentido ldquoeacute condiccedilatildeo e natildeo opccedilatildeo para o emprego

bem-logrado dos signosrdquo (ABEL 2005 p 257)

Para o autor a construccedilatildeo nos dias de hoje de uma teoria da

consciecircncia que parta dessa tese ou seja para aleacutem da dicotomia

materialismofisicalismo e mentalismo deve levar em consideraccedilatildeo cinco

aspectos (1) uma postura contra o fisicalismo das funccedilotildees simboacutelicas dos

signos e interpretaccedilotildees (2) a introduccedilatildeo de sistemas e signos e

interpretaccedilotildees natildeo linguiacutesticos e natildeo proposicionais revelando a

insuficiecircncia dos siacutembolos linguiacutesticos e proposicionais como uacutenico meio

de representaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo mentais (3) a consideraccedilatildeo aleacutem de

Nietzsche do pragmatismo de Peirce da teoria geral do siacutembolo de

Goodman e a teoria das formas simboacutelicas de Cassirer (4) a ideia de uma

relaccedilatildeo ou uma ligaccedilatildeo interna entre signos interpretaccedilotildees e

possibilidade de accedilatildeo (5) a consideraccedilatildeo dos valores avaliaccedilotildees e normas

(sentido e dever) no emprego dos signos e nas accedilotildees

Assim o fundamental na concepccedilatildeo de uma filosofia da mente a

partir do pensamento de Nietzsche deve estar na ideia de que os processos

de interpretaccedilatildeo estatildeo implicados desde o iniacutecio tatildeo logo se trate de

submeter o que estaacute na consciecircncia a uma delimitaccedilatildeo ordenaccedilatildeo

classificaccedilatildeo coerecircncia ou comunicaccedilatildeo O orgacircnico mesmo jaacute eacute para

Nietzsche uma interpretaccedilatildeo contiacutenua

132 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Referecircncias

ABEL Guumlnter ldquoConsciecircncia-Linguagem-Natureza ndash A filosofia da mente em Nietzscherdquo In

MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo

Discurso Editorial 2005

_____ ldquoVerdade e interpretaccedilatildeordquo In MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad

Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo Discurso Editorial 2005a

CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia Trad Maria C Cescato Satildeo Paulo UNESP 1998

COLLI G MONTINARI M (orgs) Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe

(KSA v X) Berlim Munique Nova York Walter de Gruyter 1999a

_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XI) Berlim

Munique Nova York Walter de Gruyter 1999b

_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XII) Berlim

Munique Nova York Walter de Gruyter 1999c

_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XIII) Berlim

Munique Nova York Walter de Gruyter 1999d

NIETZSCHE Friedrich W Genealogia da moral (GM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo

Paulo Companhia das Letras 1998

_____ A gaia ciecircncia (FWGC) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2004

_____ Aleacutem de bem e mal (GBBM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia

de Bolso 2005

_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos (GDCI) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2006

_____ Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (WLVM) In Sobre verdade e

mentira Trad e Org Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2007

7

Habermas e o Problema do Mundo Objetivo

em Verdade e Justificaccedilatildeo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira 1

Introduccedilatildeo

O objetivo deste artigo eacute investigar a questatildeo do mundo objetivo a

partir da recente distinccedilatildeo que Habermas realiza entre verdade e

justificaccedilatildeo na obra de mesmo tiacutetulo Eacute preciso entatildeo entendermos o

lugar que o mundo objetivo passa a ter no pensamento habermasiano

sobretudo a partir da diferenccedila entre verdade e justificaccedilatildeo algo outrora

inexistente

Verdade e justificaccedilatildeo de 1999 reuacutene trabalhos escritos entre 1996 e

1998 que retomam o fio de uma reflexatildeo interrompida em Conhecimento

e Interesse (1987) Apesar de a pragmaacutetica da linguagem que Habermas

desenvolveu nos anos 1970 ter feito uso de conceitos como verdade

referecircncia validade objetividade realidade e racionalidade estes natildeo

foram abordados agrave luz da filosofia teoacuterica como em Verdade e justificaccedilatildeo

Habermas (2012) nos tempos da Teoria do agir comunicativo obra

de 1971 definia o sentido de verdade a partir da situaccedilatildeo ideal de fala

atraveacutes dos pressupostos idealizantes de 1) publicidade e total inclusatildeo de

todos os envolvidos 2) distribuiccedilatildeo equitativa dos direitos de

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) com Doutorado Sanduiacuteche pela Ludwig-Maximilian-Universitaumlt (LMU) em Munique Alemanha Poacutes-doutorando pela Universidade Federal do Piauiacute (UFPI) e Bolsista Capes Email julianocordeiro81gmailcom

134 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

comunicaccedilatildeo 3) caraacuteter natildeo violento de uma situaccedilatildeo que admite apenas

a forccedila natildeo coerciva do melhor argumento e 4) a probidade dos

proferimentos de todos os participantes Nesse sentido a verdade

relacionava-se diretamente com o consenso construiacutedo pelos sujeitos

atraveacutes da situaccedilatildeo ideal de fala

Entretanto Habermas em Verdade e justificaccedilatildeo partindo das

criacuteticas que recebeu por igualar o conceito de verdade agrave justificaccedilatildeo ao

longo de seu projeto teoacuterico afirma hoje em dia que a verdade natildeo pode

mais ser assimilada simplesmente agrave situaccedilatildeo ideal de fala agrave justificaccedilatildeo

pragmaacutetica dos sujeitos ldquoDe laacute para caacute percebi que essa assimilaccedilatildeo natildeo

pode dar certo Reformulei o antigo conceito discursivo de verdade que

natildeo eacute errado mas eacute pelo menos incompletordquo (HABERMAS 2004 p 60)

A verdade agora tem a ver com o mundo objetivo que temos

inevitavelmente de pressupor nos atos de fala e nas nossas accedilotildees A

justificaccedilatildeo por sua vez seria um criteacuterio pragmaacutetico relacionado

unicamente aos sujeitos falantes natildeo podendo ser assimilado agrave verdade

como Habermas conceituava antes A verdade por assim dizer relaciona-

se com um pressuposto formal que os sujeitos precisam admitir sob pena

de natildeo falar nem agir no mundo

Poreacutem mesmo com a distinccedilatildeo habermasiana entre os conceitos de

verdade e justificaccedilatildeo continua natildeo estando em questatildeo a representaccedilatildeo

correta da realidade ou a estrutura ontoloacutegica do mundo Eacute impossiacutevel

determinar a significaccedilatildeo das palavras sem uma consideraccedilatildeo do contexto

social em que satildeo usadas porque eacute o uso que decide a significaccedilatildeo das

expressotildees linguiacutesticas caracteriacutestica central do pragmatismo No

Segundo Wittgenstein e tambeacutem em Habermas a ecircnfase eacute dada

sobretudo agrave pragmaacutetica

Como entatildeo entender o novo lugar que o mundo objetivo passou a

ter no pensamento habermasiano haja vista que ele continua a ser criacutetico

da noccedilatildeo representacionista de verdade Como conciliar a tese da

pressuposiccedilatildeo irrecusaacutevel de um mundo objetivo independente de nossas

descriccedilotildees e idecircntico para todos os observadores com a tese baacutesica da

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 135

reviravolta linguiacutestica de que natildeo temos acesso diretamente isto eacute natildeo

linguisticamente mediado a uma realidade ldquonuardquo Eacute o que veremos a

seguir

A Necessaacuteria Diferenccedila entre Verdade e Justificaccedilatildeo

Inicialmente Habermas conceituava a verdade como sinocircnimo de

justificaccedilatildeo Ou seja a verdade era aquilo que os sujeitos estabeleciam

consensualmente nas deliberaccedilotildees Wellmer (apud ALVARENGA 1999)

por exemplo numa criacutetica a Habermas destaca que racionalidade e

verdade natildeo necessariamente coincidem Para ele natildeo podemos afirmar

que havendo consenso racional exista verdade de imediato Nada impede

que no futuro seja considerado falso um consenso atual o que natildeo

implica que agimos irracionalmente A verdade eacute sempre algo maior do

que a racionalidade dos consensos situados Todo consenso encontra-se

sob reserva podendo no futuro ser posto em questatildeo mediante razotildees

Wellmer argumenta referindo-se agrave primeira concepccedilatildeo de verdade

de Habermas que um conceito de verdade como consenso eacute insuficiente

por natildeo abranger o aspecto da correspondecircncia da verdade Seria preciso

esse complemento na teoria discursiva de Habermas Mesmo que se

cumpram as condiccedilotildees ideais de fala tal fato natildeo significa que as razotildees

alegadas no processo deliberativo tenham sido boas Um consenso falso

pode ser racional no sentido de que foi alcanccedilado sob condiccedilotildees formais

de uma situaccedilatildeo ideal

Habermas a partir de tais criacuteticas reformulou sua concepccedilatildeo de

verdade distinguindo verdade de justificaccedilatildeo Ele assume que o consenso

natildeo pode ser considerado como um criteacuterio mas deve ser visto como um

mecanismo de certificaccedilatildeo da verdade Ele relaciona o conceito discursivo

mantido de aceitabilidade racional com um conceito de verdade

pragmaacutetico natildeo epistecircmico sem assimilar a verdade agrave assertibilidade

ideal ou seja agrave justificaccedilatildeo

136 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Inicialmente Habermas (2012) na Teoria do agir comunicativo

apresentou uma teoria consensual da verdade o consenso era o criteacuterio de

verdade O que eacute verdadeiro seria aquilo advindo de um consenso racional

e universal como consequecircncia de um diaacutelogo numa situaccedilatildeo ideal de fala

Entretanto como demonstra Puntel (2013) Habermas viu as dificuldades

dessa concepccedilatildeo uma vez que haacute uma incapacidade de explicar por que

mesmo as asserccedilotildees mais exaustivamente justificadas podem ser falsas

Habermas trabalha atualmente com uma concepccedilatildeo de verdade orientada

realisticamente denominada de realismo epistemoloacutegico pragmaacutetico

Os principais passos de Habermas na apresentaccedilatildeo e explicaccedilatildeo de

sua nova concepccedilatildeo pragmaacutetico-realista da verdade segundo Puntel

(2013) satildeo os seguintes 1) o ponto de partida satildeo pretensotildees de verdade

feitas no mundo da vida 2) a verdade eacute conceitualmente (natildeo

epistemologicamente) desconectada da justificaccedilatildeo a verdade eacute

transcendente agrave justificaccedilatildeo 3) a verdade implica uma referecircncia a um

mundo objetivo independente 4) a verdade articula a conexatildeo entre a

sentenccedilaproposiccedilatildeo qualificada como verdadeira e o mundo

Habermas (2004) explica que argumentos que nos convencem da

verdade de ldquoprdquo podem se revelar falsos em outra situaccedilatildeo epistecircmica Ou

seja por mais que ldquoprdquo seja bem justificado ele pode ainda revelar-se falso

A argumentaccedilatildeo permanece reforccedila ele como o uacutenico meio disponiacutevel

para se certificar da verdade de modo que natildeo haacute outra maneira de

examinar as pretensotildees de validade tornadas problemaacuteticas Entretanto a

justificaccedilatildeo natildeo pode ser validada ainda como verdade Habermas entatildeo

pretende salvar a dimensatildeo do mundo objetivo em sua teoria

relacionando-a com a verdade

Ele estabelece um conceito de verdade em que as pretensotildees de

validade transcendam toda justificaccedilatildeo ldquo() depois da

destranscendentalizaccedilatildeo do sujeito cognoscente continua a existir uma

lacuna entre o que eacute verdadeiro e o que conta como justificado ou

racionalmente aceitaacutevel para noacutesrdquo (HABERMAS 2002 p 44) Habermas

pretende assegurar a diferenccedila entre verdade e aceitabilidade racional

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 137

Contudo tal diferenccedila coloca os sujeitos numa situaccedilatildeo paradoxal De um

lado sem acesso direto agraves condiccedilotildees de verdade eles soacute podem resgatar as

pretensotildees de validade por meio de boas razotildees de outro as melhores

razotildees satildeo tambeacutem faliacuteveis Portanto Habermas defende que o abismo

entre aceitabilidade racional e verdade natildeo pode ser transposto uma vez

que todo acordo alcanccedilado pela justificaccedilatildeo eacute tambeacutem faliacutevel

Habermas (2004) destaca que verdade e falibilidade satildeo dois lados de

uma mesma moeda Ele entende que falta agrave justificaccedilatildeo no sentido por

exemplo de Richard Rorty uma referecircncia aos objetos Nesse sentido as

pretensotildees de validade devem transcender o contexto natildeo se satisfazendo

apenas com a justificaccedilatildeo alcanccedilada O verdadeiro para Habermas deve

ser defendido em todos os contextos possiacuteveis

Segundo ele uma concepccedilatildeo que faccedila justiccedila agrave intuiccedilatildeo realista de um

mundo que existe independentemente de noacutes mesmo sem a

representaccedilatildeo de uma correspondecircncia entre proposiccedilotildees e fatos favorece

o projeto de explicar os aspectos nos quais a verdade e a justificaccedilatildeo ao

mesmo tempo assemelham-se e distinguem-se Em suma a verdade eacute um

conceito que transcende toda justificaccedilatildeo natildeo podendo ser identificada

com o conceito de assertibilidade idealmente justificada

De acordo com Habermas a conexatildeo interna entre verdade e

justificaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo epistemoloacutegica pois natildeo estaacute em jogo a

representaccedilatildeo correta da realidade mas uma praacutexis que natildeo pode vir

abaixo O entendimento muacutetuo natildeo pode funcionar sem que os envolvidos

se refiram a um uacutenico mundo objetivo dentro de um espaccedilo puacuteblico

intersubjetivamente partilhado O conceito discursivo de verdade natildeo eacute

exatamente falso mas insuficiente ele natildeo explica o que nos autoriza a ter

por verdadeiro um enunciado suposto como idealmente justificado Dessa

forma asserccedilotildees bem justificadas podem se revelar falsas porque a

verdade deve transcender qualquer contexto de justificaccedilatildeo

Puntel (2013) destaca uma criacutetica a Habermas apontando-nos uma

dimensatildeo natildeo aprofundada por este Puntel com razatildeo critica Habermas

agrave medida que este rejeita a teoria tradicional da verdade sem oferecer uma

138 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

explanaccedilatildeo miacutenima do que ele chama de conexatildeo ou entrelaccedilamento de

verdade e mundo Sua concepccedilatildeo realista pragmaacutetica permaneceria vaga

Se Habermas acertou por um lado em separar verdade de

justificaccedilatildeo ele simultaneamente tambeacutem criou um novo problema em

sua filosofia O que realmente Habermas chama de mundo objetivo O que

de fato significa verdade em Habermas visto que esta se relaciona com um

mundo objetivo que apenas podemos pressupor mas natildeo tematizar tal

qual uma praacutexis que natildeo pode vir abaixo Que dimensatildeo eacute essa que

transcende a justificaccedilatildeo

O Estatuto do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo de um Novo

Acerto a um Novo Problema

Segundo Cliacutestenes Franccedila (2015) Habermas em Verdade e

justificaccedilatildeo substitui sua outrora teoria da verdade por uma teoria da

justificaccedilatildeo deixando de oferecer-nos uma teoria da verdade genuiacutena

Uma teoria da verdade e uma teoria da justificaccedilatildeo satildeo empreendimentos

teoacutericos distintos A primeira teoria da verdade de Habermas dos tempos

do Agir comunicativo era uma teoria antirrealista pois como vimos antes

a verdade era algo sinocircnimo de justificaccedilatildeo Ela natildeo dependia da

ocorrecircncia no mundo de um estado de coisas tendo a ver com a

legitimaccedilatildeo das pretensotildees de validade dos falantes

Jaacute em Verdade e justificaccedilatildeo a verdade natildeo se circunscreve agrave esfera

do discurso ela sempre o ultrapassa Portanto o maacuteximo que podemos

afirmar sobre a aceitabilidade racional de uma asserccedilatildeo eacute que muito

provavelmente ela eacute verdadeira mas natildeo podemos garantir que isso ocorra

de fato Criteacuterios de autorizaccedilatildeo entretanto satildeo formulados por teorias da

justificaccedilatildeo e natildeo por teorias da verdade Franccedila (2015) levanta a hipoacutetese

de que em Verdade e justificaccedilatildeo Habermas apresenta uma teoria da

justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade Habermas natildeo pode mais

dizer em que a verdade consiste mas apenas indicar o que nossas intuiccedilotildees

pragmaacuteticas realistas nos afirmam que ela seja

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 139

Para Franccedila (2015) agrave luz de Kirkham uma teoria da verdade seria

uma teoria metafiacutesica que buscaria fixar uma definiccedilatildeo do que seja a

verdade Uma teoria metafiacutesica da verdade contudo natildeo procuraria

oferecer mecanismos que nos auxiliassem a determinar quando nos

encontramos de posse de um conhecimento verdadeiro Jaacute uma teoria da

justificaccedilatildeo busca indicar as evidecircncias e garantias que algo deve possuir

para ser considerado como provavelmente verdadeiro Criteacuterios de

autorizaccedilatildeo satildeo formulados por teorias da justificaccedilatildeo e natildeo por teorias

da verdade

Habermas apresentaria em Verdade e justificaccedilatildeo uma teoria da

justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade A incorporaccedilatildeo de aspectos

realistas ao conceito da verdade na pragmaacutetica formal de Habermas

resultou no abandono de se oferecer uma definiccedilatildeo positiva do que eacute a

verdade de fato Como pensar a partir disso o problema do mundo

objetivo

Habermas chega ao mundo objetivo somente atraveacutes de anaacutelises das

accedilotildees e discursos que os falantes e agentes realizam no processo

comunicativo Mas isso natildeo transcende a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo

Segundo Puntel (2013) Habermas sempre privilegia a dimensatildeo

pragmaacutetica em relaccedilatildeo agrave semacircntica embora defenda que satildeo duas

dimensotildees co-originaacuterias

Ele supotildee que o ldquoproacuteprio mundordquo eacute o ldquoproacuteprio mundordquo apenas se

permanecer completamente intocado pela linguagem Habermas separa

fatos de objetos Ele natildeo menciona a perspectiva de que ao identificarmos

os objetos como elementos do ldquoproacuteprio mundordquo noacutes jaacute estamos falando

acerca desses objetos pertencentes ao ldquoproacuteprio mundordquo Aqui haacute como

pano de fundo a claacutessica criacutetica de Hegel a Kant

Se os fatos acerca dos objetos natildeo tecircm um status ontoloacutegico entatildeo somos

confrontados com uma declaraccedilatildeo incorreta Com efeito para que tenha um

significado inteligiacutevel lsquoser acerca de um objetorsquo deve ser entendido como

lsquoalcanccedilarrsquo ou lsquoatingirrsquo ou lsquoconcernirrsquo o proacuteprio objeto eacute algo sem sentido

declarar um fato acerca de um objeto e entatildeo defender que este fato nada tem

a ver com o objeto Se o fato expresso nada tem a ver com o objeto o objeto

140 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

permaneceria em um esplecircndido isolamento desconhecido inarticulado O

processo de aprendizagem que torna possiacutevel a expressatildeo de fatos acerca dos

objetos natildeo teria qualquer sentido (PUNTEL 2013 p 206)

Habermas (2004) por sua vez defende uma concepccedilatildeo nominalista

do mundo o mundo eacute a totalidade de objetos dos quais podemos

estabelecer fatos Segundo Habermas os fatos satildeo o que noacutes declaramos

acerca dos objetos Ele enfatiza que o nominalismo eacute menos suspeito do

que outras posiccedilotildees ontoloacutegicas especialmente as posiccedilotildees que atribuem

um status ontoloacutegico aos fatos De acordo com Puntel (2013) o argumento

de Habermas eacute incoerente visto que se os fatos tecircm uma relaccedilatildeo essencial

com a linguagem o mesmo deve ser dito dos objetos Se os fatos estatildeo

entrelaccedilados com a linguagem porque podem ser expressos o mesmo

ocorre com os objetos haja vista que podem ser referidos a algo

Habermas poreacutem defende que apenas os fatos satildeo tocados pela

linguagem natildeo os objetos

Podemos dizer que haacute um abismo que separa a dimensatildeo pragmaacutetica

da semacircntica em Habermas embora ele sempre argumente que satildeo duas

perspectivas inseparaacuteveis Esse eacute um aspecto a ser criticado no

pensamento de Habermas agrave medida que ele natildeo concilia de fato a

pragmaacutetica e a semacircntica Segundo Manfredo Oliveira (2010) do

pressuposto metodoloacutegico fundamental da razatildeo comunicativa Habermas

deriva uma consequecircncia temaacutetica draacutestica isto eacute a restriccedilatildeo do tema da

filosofia agrave dimensatildeo pragmaacutetica Dessa forma como tambeacutem aponta

Puntel (2013) a abordagem pragmaacutetica habermasiana considera que as

estruturas e praacuteticas da comunicaccedilatildeo satildeo a base uacutenica uacuteltima e decisiva

do pensar filosoacutefico privilegiando a linguagem natural em sua

integralidade

Habermas (2004) em Verdade e justificaccedilatildeo distingue entre as

funccedilotildees expositiva (Darstellung) e comunicativa (Kommunikation) da

linguagem natural afirmando que elas se pressupotildeem mutuamente

aceitando a tese de Michael Dummett Poreacutem Habermas privilegia

claramente a dimensatildeo pragmaacutetica colocando a semacircntica em segundo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 141

plano O resultado eacute que o problema do mundo objetivo em Habermas

natildeo eacute explorado suficientemente em sua teoria aparecendo apenas como

pressuposiccedilatildeo formal

Natildeo haacute uma clareza acerca da relaccedilatildeo entre verdade e mundo

objetivo apesar de este ser determinante na sua nova teoria da verdade

Nesse sentido podemos dizer que haacute um deacuteficit ontoloacutegico em Habermas

pois a ontologia aparece sempre agrave sombra em sua teoria mas nunca como

algo tematizado e sim pressuposto formalmente Ou seja haacute uma

postulaccedilatildeo da dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo propriamente da ontologia que

eacute a teoria dessa dimensatildeo A semacircntica eacute reduzida agrave pragmaacutetica (ou pelo

menos articulada em funccedilatildeo da pragmaacutetica e a ela submetida) referecircncia

central de toda a filosofia de Habermas

Como vimos antes Habermas diz que a justificaccedilatildeo natildeo pode ser mais

um criteacuterio de verdade mas ela continua sendo um mecanismo de

certificaccedilatildeo da verdade De acordo com Puntel poreacutem quando uma

sentenccedila eacute qualificada como verdadeira supotildee-se a correspondecircncia com

algo no mundo levantando-se a questatildeo de como deve ser concebido esse

algo

Se assim eacute ele [Habermas] deveria reconhecer que esta articulaccedilatildeo ou

conexatildeo eacute exprimiacutevel e portanto natildeo somente pode mas deve ser explicitada

ndash caso contraacuterio falar dela seria vazio e autocontraditoacuterio Mas isto eacute algo que

Habermas poderia ou deveria aceitar De fato ele natildeo apresenta qualquer

explicaccedilatildeo relevante da dimensatildeo da conexatildeo ou entrelaccedilamento e isto deve

ser considerado como resultado de sua posiccedilatildeo poacutes-metafiacutesica (PUNTEL

2013 p 198)

Segue-se daiacute que a articulaccedilatildeo teoacuterica da dimensatildeo pressuposta ndash do

entrelaccedilamentoconexatildeo de verdade e mundo ndash natildeo pode ser realizada

pelo discurso pragmaacutetico ou dentro de seu quadro referencial teoacuterico

pragmaacutetico Isso torna claro que a afirmaccedilatildeo de Habermas a respeito de

uma verdade incondicional eacute extremamente restrita Em suma eacute uma

afirmaccedilatildeo dentro do acircmbito da pragmaacutetica que torna Habermas incapaz

de articular uma verdade genuinamente incondicional

142 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Ele fala da importacircncia de se reconhecer a dimensatildeo da validade

incondicionada mas natildeo avanccedila para aleacutem de tal afirmaccedilatildeo Se haacute a

necessidade de separar verdade de justificaccedilatildeo ele teria que aprofundar e

tematizar o que estaacute chamando de verdadee mundo objetivo Ou seja que

algo eacute esse que se encontra para aleacutem da justificaccedilatildeo e que ao mesmo

tempo pode pocircr abaixo as justificaccedilotildees no mesmo instante em que soacute

temos acesso ao mundo objetivo pelas proacuteprias justificaccedilotildees

A mesma criacutetica de Puntel a Habermas pode ser feita a toda a tradiccedilatildeo

transcendental oriunda de Kant Este afirma que a representaccedilatildeo das

coisas como nos satildeo dadas deve regular-se como fenocircmenos e natildeo como

coisas em si Em Kant natildeo eacute possiacutevel no conhecimento a priori

acrescentar aos objetos nada a natildeo ser o que o sujeito pensante toma de si

mesmo Todavia Kant exemplifica que se natildeo eacute possiacutevel conhecermos os

objetos como coisas em si mesmas podemos contudo pensaacute-los

Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa natildeo tanto

com objetos mas com o nosso modo de conhecimento de objetos na medida

em que ele deva ser possiacutevel a priori Um sistema de tais conceitos denominar-

se-ia filosofia transcendental (KANT 1974 p 33)

Habermas segue a mesma perspectiva de Kant postulando a

intersubjetividade destranscendentalizada no lugar do sujeito

transcendental Poreacutem a orientaccedilatildeo continua a mesma quando Habermas

afirma que podemos conhecer apenas os fatos natildeo os objetos do mundo

O mundo em Habermas natildeo nos impotildee sua linguagem ele natildeo fala e soacute

responde em sentido figurado

Habermas elabora uma teoria filosoacutefica centrada na dimensatildeo

comunicativa (pragmaacutetica) Seria a partir dela que outras dimensotildees

poderiam ser compreendidas Percebemos que a dimensatildeo expositiva

(semacircntica) eacute posta em segundo plano Em Habermas o modo como as

coisas do mundo satildeo apreendidas e denominadas se orienta no contato

comunicativo entre pessoas O mundo objetivo para ele soacute eacute conhecido

com base na relaccedilatildeo com o quadro referencial da comunicaccedilatildeo Ele eacute

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 143

apenas considerado de tal modo que a interaccedilatildeo entre pessoas se faccedila

possiacutevel Contudo Habermas natildeo se interroga pela condiccedilatildeo de

inteligibilidade da proacutepria pragmaacutetica sendo sua consideraccedilatildeo do mundo

objetivo algo vago

Conclusatildeo

Habermas como vimos distingue verdade de justificaccedilatildeo

entendendo verdade tal qual demonstra Puntel de alguma maneira no

sentido da teoria da correspondecircncia relacionada ao mundo objetivo Uma

pergunta contudo permanece sem resposta em Habermas o que significa

compreender algo Eacute preciso destacar contra ele que haacute um deacuteficit acerca

de uma consideraccedilatildeo da linguagem em sua dimensatildeo estruturalno que diz

respeito agrave dimensatildeo ontoloacutegica

Se Habermas acerta na proposta de separar a verdade da justificaccedilatildeo

haja vista o problema da universalidade e da objetividade (de um mesmo

mundo para todos) ele ao mesmo tempo natildeo consegue esclarecer como

ocorre a relaccedilatildeo da co-originaridade entre exposiccedilatildeo e comunicaccedilatildeo natildeo

aprofundando o estatuto que o mundo objetivo possui em sua filosofia

teoacuterica Habermas natildeo avanccedila de forma mais profunda acerca de questotildees

ontoloacutegicas exigidas por sua nova posiccedilatildeo realista-pragmaacutetica

Ele ignora ou tenta fazer desaparecer questotildees filosoacuteficas que

tradicionalmente seriam chamadas de metafiacutesicas como a tematizaccedilatildeo do

mundo objetivo A virada radicalmente epistecircmica de toda a filosofia

moderna como no esquema transcendental deslocou o sujeito para o

centro de toda a empresa teoacuterica e desse modo tambeacutem da filosofia Fala-

se como sabemos no acircmbito da modernidade de uma filosofia do sujeito

No caso de Habermas e de seu kantismo pragmaacutetico revirado

linguisticamente podemos falar de uma filosofia centralizada na

intersubjetividade e na pragmaacutetica mas que manteacutem ainda a dicotomia

entre sujeitos e mundo

144 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Em Verdade e justificaccedilatildeo os sujeitos supotildeem em comum um

mundo objetivo como totalidade dos objetos que podem ser tratados e

apreciados Eacute justamente o conceito de fracasso performativo que nos

conduz em Habermas a uma pressuposiccedilatildeo formal de nossas accedilotildees

linguiacutesticas e de nossas intervenccedilotildees no mundo objetivo entendido como

sistema de possiacuteveis referecircncias e possiacuteveis manipulaccedilotildees

Trata-se em Habermas de um postulado que inevitavelmente temos

de fazer caso contraacuterio a fala e a intervenccedilatildeo no mundo se tornariam

impossiacuteveis Os participantes do discurso assumem a mesma

pressuposiccedilatildeo formal de um mundo independente de noacutes de nossas

descriccedilotildees de nossos esquemas conceituais

Nesse sentido em Habermas a referecircncia ao mundo natildeo eacute

apresentada como constituindo uma caracteriacutestica componente da

semacircntica da linguagem mas como um pressuposto acrescentado para

que possamos explicar nossas falas e nossas intervenccedilotildees Habermas fala

de semacircntica apenas como dimensatildeo da linguagem (Darstellung der

Welt) mas nunca a analisa Como ressalta Puntel (2013) as tentativas de

Habermas de abordar questotildees filosoacuteficas centrais sem deixar de ser fiel

ao pensamento poacutes-metafiacutesico conduziram-no a problemas

fundamentais obscuridades incoerecircncias ausecircncias de esclarecimentos e

soluccedilotildees

Referecircncias

ALVARENGA N Verdade contingecircncia e falibilismo a teoria discursiva da verdade de J

Habermas agrave luz das criacuteticas de A Wellmer Siacutentese Belo Horizonte v 26 n 86 p

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Filosofia Belo Horizonte v 40 n 127 p 173-223 2013

8

Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes

para se Pensar a Natureza de Sistemas Formais

Uma Abordagem Wittgensteiniana

Marcos Silva 1

I want to say an education quite different from ours

might also be the foundation for quite different concepts

(Wittgenstein Zettel 387)

Em 1930 segundo algumas conversas documentadas em

Wittgenstein (1984a)2 estava discutindo com alguns membros influentes

do Ciacuterculo de Viena aspectos importantes de sua filosofia Essas

discussotildees pretendiam esclarecer novidades e dificuldades advindas da

revisatildeo e aprofundamento de toacutepicos de seu Tractatus (1984b) Neste

contexto histoacuterico fica claro pela dinacircmica das conversas que Waismann

conduziu as discussotildees para a filosofia da matemaacutetica uma vez que

Wittgenstein estava preparando-o para um painel a tomar lugar em

Koumlnigsberg naquele mesmo ano O painel trataria justamente de

diferentes perspectivas a respeito dos desafios filosoacuteficos concernentes agrave

crise dos fundamentos na matemaacutetica Nesta discussatildeo em Koumlnisberg Von

Neumann representaria o formalismo Carnap o logicismo e Heyting a

escola intuitionista Jaacute Waismann o quarto membro ilustre da mesa de

1 Professor Adjunto do curso de Filosofia da UFAL e bolsista de produtividade do CNPq (2018-2021) Agradeccedilo aos comentaacuterios valiosos de Luiz Henrique da Silva Santos a este trabalho

2 Estas discussotildees foram documentadas por Waismann e organizadas para publicaccedilatildeo por McGuinness em Wittgenstein und Wiener Kreis doravante WWK

Marcos Silva | 147

discussotildees sobre o estado da arte da filosofia da matemaacutetica seria

responsaacutevel por representar a filosofia de Wittgenstein

A literatura secundaacuteria sobre estes toacutepicos de discussatildeo acerca da

natureza da matemaacutetica no WWK de maneira frequente e acertada a meu

ver aborda os comentaacuterios de Wittgenstein como sendo muito criacuteticos em

relaccedilatildeo ao programa de Hilbert A criacutetica tinha como alvo a meta do

programa que consistia na procura por uma prova absoluta para a

consistecircncia da matemaacutetica (Hacker 1986 Engelmann 2013) Segundo

Wittgenstein provocativamente afirma a tentativa de se fornecer uma prova

absoluta da consistecircncia da aritmeacutetica seria anaacuteloga agrave procura por uma

ldquodoenccedila escondidardquo em um corpo funcional (WITTGENSTEIN 1984a p

120) Contudo acredito que o ponto faltante nesta literatura seja a observaccedilatildeo

de que nesta altura Wittgenstein natildeo foi de forma alguma criacutetico de uma

tese central da tradiccedilatildeo formalista Essa tese diz respeito agrave arbitrariedade da

sintaxe Assim como as regras de um jogo as regras da sintaxe de sistemas

formais seriam para formalistas arbitraacuterias ou seja natildeo residiriam na

essecircncia da linguagem da mente ou do mundo Com efeito Wittgenstein

teria afirmado contundentemente nas discussotildees com os membros do

Ciacuterculo de Viena que ldquoa verdade no formalismo eacute que toda sintaxe pode ser

concebida como se fosse um sistema de regras de um jogo (hellip) Eu gostaria

de afirmar que natildeo somente os axiomas da matemaacutetica mas toda a sintaxe eacute

arbitraacuteriardquo (WITTGENSTEIN 1984a p103 minha traduccedilatildeo)

Minha hipoacutetese de trabalho para se entender esta formulaccedilatildeo forte

de Wittgenstein eacute a de que ela ilustra a sua reaccedilatildeo agrave visatildeo de Frege esta

muito criacutetica ao formalismo Esta reaccedilatildeo me parece ser baseada em uma

ainda incipiente aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de jogos para se entender de maneira

geral a natureza das regras da sintaxe e particularmente a proacutepria noccedilatildeo

de sistemas formais Em junho de 1930 Wittgenstein e Waismann estavam

lendo Grundgetsetze II de Frege em Viena como a entrada ldquoo que dizer

em Koumlnigsbergrdquo do WWK nos mostra No Grundgesetze II Frege (1903

sect106-119) defendeu inter alia contra teses formalistas que identificam a

natureza de sistemas formais com jogos que 1) nuacutemeros da aritmeacutetica natildeo

148 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

podem ser reduzidos a meros sinais ou marcas fiacutesicas porque por

exemplo lsquo0rsquo natildeo tem a propriedade de resultar no sinal lsquo1rsquo quando

adicionado ao sinal lsquo1rsquo ou seja sinais fiacutesicos eles mesmos em uma folha

de papel por exemplo natildeo possuem propriedades matemaacuteticas 2) que

uma contradiccedilatildeo um conceito propriamente loacutegico pode somente ocorrer

nas regras do jogo de xadrez e natildeo nas configuraccedilotildees baacutesicas isto eacute em

nenhum arranjo fiacutesico atual de peccedilas (do xadrez) e 3) que eacute impossiacutevel

inferir regras de um sistema formal pela mera inspeccedilatildeo de posiccedilotildees de

alguns sinais assim como seria impossiacutevel inferir as regras de um jogo de

tabuleiro dado a partir da mera disposiccedilatildeo de suas peccedilas

Nesta altura nas discussotildees com Waismann Wittgenstein parece

concordar com todas essas criacuteticas de Frege ao formalismo contudo vale

notar que Wittgenstein (1984a p 105) acusou indiretamente Frege de ter

cometido uma espeacutecie de falaacutecia do falso dilema se loacutegica e matemaacutetica

natildeo satildeo uma questatildeo de mera inspeccedilatildeo de sinais fiacutesicos ou da disposiccedilatildeo

de marcas materiais em um folha de papel por exemplo o significado de

seus sinais natildeo precisam ser fundados em seu Bedeutung ou seja em sua

referecircncia a entidades abstratas como Frege argumentou Wittgenstein

critica o seguinte raciociacutenio Se o significado de sinais em um sistema

formal natildeo pode ser dado pela mera configuraccedilatildeo de suas marcas fiacutesicas

entatildeo o seu significado deveria ser dado pela sua referecircncia a

determinados objetos especiais Wittgenstein parece ter defendido que ou

bem Bedeutung ou bem meramente sinais fiacutesicos natildeo satildeo todas as

alternativas neste horizonte De fato noacutes precisamos de sinais isto eacute de

algumas marcas fiacutesicas organizadas para a elaboraccedilatildeo de sistemas formais

variados mas noacutes precisamos ainda de regras para manipular estes sinais

Como consequecircncia uma compreensatildeo adequada da metaacutefora de jogos

dos formalistas deveria redundar na assimilaccedilatildeo da ideia que noacutes natildeo

precisamos nos engajar com algum Bedeutung transcendente ao jogo ele

mesmo para garantirmos que os sinais de um sistema formal tenham

significado Em outras palavras sinais seriam sim necessaacuterios mas natildeo

suficientes para a constituiccedilatildeo de um sistema formal mas nem por isso

Marcos Silva | 149

deveriacuteamos postular uma referecircncia a coisas fora do sistema ele mesmo

para dotaacute-lo de significado caso compreendamos a natureza das regras

que organizam o sistema e governam a manipulaccedilatildeo dos seus sinais

Eacute importante notar que Wittgenstein depois desta criacutetica

imediatamente comeccedila a usar o vocabulaacuterio que Frege introduziu ao criticar

formalistas a saber sistemas formais como jogos mas natildeo a posiccedilatildeo de

Frege de que a loacutegica deveria representar leis de uma realidade abstrata

Parece que Frege assumiu o vocabulaacuterio formalista como o de regras e

jogos para mostrar em uacuteltima instacircncia seu absurdo ou ao menos sua

implausibilidade para se entender a aritmeacutetica e a loacutegica Acredito que

Wittgenstein assumiu o vocabulaacuterio formalista de Frege mas condenou seu

falso dilema a saber ou bem somente sinais ou bem a necessidade de um

Bedeutung ao mostrar que formalistas fazem um bom ponto ao defenderem

que toda a sintaxe eacute arbitraacuteria como as regras de jogos Wittgenstein

assumiu o vocabulaacuterio formalista de jogos para mostrar que quaisquer

regras sintaacuteticas poderiam ser outras as regras de sistemas formais natildeo

precisam estar ancoradas na realidade mesmo que rejeitemos que natildeo

devem ser redutiacuteveis a meros sinais ou marcas fiacutesicas Nestas discussotildees

documentadas em WWK Wittgenstein natildeo parecia estar preocupado com

nenhuma lei loacutegica da realidade ou do pensamento mas sim com as regras

para manipular sinais que satildeo estipuladas quando noacutes estipulamos um

sistema loacutegico Ao se entender sistemas como jogos deveriacuteamos entendecirc-los

como independentes de uma realizaccedilatildeo material especiacutefica uma vez que o

fato de o rei num jogo de xadrez ser de plaacutestico madeira ou ateacute mesmo uma

bola de papel eacute irrelevante para a constituiccedilatildeo do proacuteprio sistema Os

sistemas formais como jogos deveriam ser compostos de marcas fiacutesicas sim

mas que possam exercer funccedilotildees variadas no sistema sempre determinadas

pelas regras de manipulaccedilatildeo do jogo

Neste periacuteodo histoacuterico no comeccedilo da deacutecada de 1930 a discussatildeo de

Wittgenstein estaacute ainda circunscrita agrave natureza de sistemas formais e natildeo

eacute desenvolvida para um entendimento geral da linguagem ou das

atividades humanas como um todo Wittgenstein eacute um pensador radical

150 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Eacute razoaacutevel defender que o desenvolvimento de sua filosofia madura possa

ser visto como o desenvolvimento proacuteprio das consequecircncias radicais

desta metaacutefora de jogos natildeo somente para entender matemaacutetica e loacutegica

mas para se entender a linguagem a intencionalidade e a normatividade

peculiares de atividades de seres humanos

No que se segue eu gostaria de responder a pergunta acerca do

porquecirc e de como a noccedilatildeo de jogos desenvolvida por Wittgenstein em 1930

(e nāo de jogos de linguagem porque ele natildeo tinha ainda este conceito

nesta eacutepoca) poderia ainda ser relevante para a filosofia da loacutegica Esta

questatildeo fica ainda mais premente ao considerarmos os problemas

contemporacircneos associados agrave emergecircncia de tantos sistemas natildeo-claacutessicos

legiacutetimos e seu desafio agrave natureza da racionalidade

Eu natildeo pretendo apresentar aqui um quadro nem original e nem

exaustivo de caracteriacutesticas filosoficamente importantes de sistemas

formais ao serem vinculadas a natureza de jogos Mas em vez disso eu

espero defender algumas intuiccedilotildees de Wittgenstein no comeccedilo da deacutecada

de 1930 sobre jogos e regras antes mesmo de suas noccedilotildees maduras (e

elusivas) de jogos de linguagem e semelhanccedila de famiacutelia Minhas

preocupaccedilotildees natildeo redundam em avanccedilar e defender todas as ideias

associadas agrave loacutegica como jogos mas restringir minhas ambiccedilotildees a

promover esta visatildeo filosoacutefica como cogente

Eacute importante evidenciar que os primeiros sistemas de ldquodeduccedilatildeo

naturalrdquo como introduzidos por Jaskowski (1934) e Gentzen (1934-35)

foram desenvolvidos na deacutecada de 1930 Nestes sistemas axiomas

foacutermulas bem formadas e pretensamente evidentes de onde se partem as

derivaccedilotildees satildeo substituiacutedos por conjuntos de inferecircncias que definem o

significado do vocabulaacuterio loacutegico de maneira que natildeo faz sentido dizer que

um sistema loacutegico descreve alguma coisa na realidade Embora as

conexotildees entre diferentes abordagens da loacutegica na deacutecada de 1930 e o

embate contemporacircneo entre teoria da prova e teoria de modelos sejam

histoacuterica e conceitualmente importantes seu exame natildeo estaacute no escopo

deste trabalho

Marcos Silva | 151

Com efeito muito mais poderia ser dito a respeito de jogos e seu uso

em abordagens anti-realistas na loacutegica e na epistemologia A teoria de

jogos foi oficialmente apresentada em 1944 mas foi antecipada por Borel

na deacutecada de 1920 Aleacutem disso a analogia com jogo de xadrez foi

frequentemente usada por exemplo por Weyl (1944) para criticar o

formalismo de Hilbert Vale tambeacutem notar que depois da segunda guerra

mundial o loacutegico Paul Lorenzen (1961) desenvolveu uma influente loacutegica

baseada em jogos dialoacutegicos materiais Estes jogos natildeo foram

influenciados por Wittgenstein mas por outras sugestotildees filosoacuteficas de

natureza construtivista Estes exemplos mostram a seminalidade filosoacutefica

e teacutecnica em se aplicar a metaacutefora do jogo agrave loacutegica independentemente de

uma abordagem wittgensteiniana Um projeto de pesquisa mais

abrangente a respeito disto parece ser bem-vindo

No que se segue eu natildeo estou interessado diretamente na exegese da

filosofia de Wittgenstein3 portanto natildeo vou me concentrar em seu

desenvolvimento filosoacutefico Eu proponho em vez disso oferecer uma

abordagem filosoacutefica mais geral sobre a loacutegica que tambeacutem poderia ser uacutetil

para se entender a natureza do vocabulaacuterio loacutegico

De fato a seguir eu seleciono e brevemente discuto algumas

caracteriacutesticas filosoficamente atraentes a respeito de se pensar loacutegica em

termos de regras em jogos isto eacute em tomar loacutegica como um conjunto de

praacuteticas governadas por regras engajadas por agentes racionais A

motivaccedilatildeo principal aqui eacute a respeito de como esta abordagem poderia ser

filosoficamente seminal para se entender loacutegica e racionalidade em um

ambiente de uma grande pluralidade de jogos Em outras palavras eu vou

mostrar como ao aceitarmos a ideia de sistemas loacutegicos como jogos

poderiacuteamos nos prover de ferramentas filosoacuteficas e loacutegicas para se avanccedilar

discussotildees contemporacircneas em filosofia da loacutegica

Um primeiro ponto relevante em se desenvolver a metaacutefora formalista

a respeito de sistemas formais como jogos eacute o anti-representacionismo

3 Estes problemas conceituais e histoacutericos satildeo tatildeo importantes quanto controversos por um nuacutemero grande razotildees Ver Engelmann (2013) para uma apresentaccedilatildeo mais detalhada Algum anacronismo seraacute cometido no presente trabalho

152 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Regras de um jogo natildeo precisam descrever a experiecircncia e nem a realidade

Regras natildeo podem ser falsificadas e nem verificadas pela experiecircncia uma

vez que natildeo satildeo proposiccedilotildees empiacutericas e natildeo descrevem nada

(WITTGENSTEIN 1984b 61222) De fato noacutes testamos nossa experiecircncia

do mundo usando regras como criteacuterio mas a regra ela mesma natildeo pode

ser testada pela experiecircncia como uma proposiccedilatildeo descrevendo-a pode ser

testada Uma distinccedilatildeo deve ser feita aqui por um lado noacutes testamos uma

proposiccedilatildeo a partir da experiecircncia porque a proposiccedilatildeo descreve o que

ocorre falsa ou verdadeiramente por outro lado proposiccedilotildees empiacutericas satildeo

diferentes de regras na medida em que noacutes testamos ou avaliamos a

qualidade de nossas descriccedilotildees usando algumas regras como criteacuterios Os

criteacuterios eles mesmo natildeo satildeo nem verdadeiros nem falsos Criteacuterios podem

contudo ser tomados como adequados ou inadequados para um

determinado contexto ou uso mas eles natildeo podem ser falsificados a partir

da comparaccedilatildeo com a realidade O motivo da recusa ou rejeiccedilatildeo de criteacuterios

para avaliar a qualidade de nossas praacuteticas discursivas satildeo quase sempre

pragmaacuteticas ou seja baseados na sua legitimidade ou adequaccedilatildeo conceitual

em contextos variados de accedilatildeo e natildeo metafiacutesicos

Outro ponto relevante envolvido na abordagem da loacutegica a partir da

noccedilatildeo de jogos eacute a ecircnfase na generalidade ao inveacutes da universalidade do

conhecimento Regras satildeo gerais isto eacute noacutes podemos compreender um

sistema complexo com um nuacutemero pequeno de regras simples e gerais e

estas natildeo satildeo e natildeo precisam ser universais ou seja ser vaacutelidas para o

domiacutenio de todas as coisas Regras satildeo aplicadas a muitos casos por pessoas

diferentes em contextos diferentes e em muitos periacuteodos diferentes Neste

sentido uma regra natildeo eacute conectada com uma situaccedilatildeo particular mas sim

com uma multiplicidade de situaccedilotildees possiacuteveis Noacutes podemos muito bem

entender um sistema complexo em um momento pela compreensatildeo das

regras que governam seu comportamento De fato a partir do entendimento

comum da noccedilatildeo de regras noacutes podemos pensaacute-las como uma foacutermula geral

que pode determinar um nuacutemero infinito de aplicaccedilotildees

Marcos Silva | 153

Ademais como em uma perspectiva funcionalista para o

entendimento do comportamento de sistemas complexos podemos

associar o desenvolvimento da metaacutefora formalista de jogos com uma

reaccedilatildeo criacutetica ao essencialismo uma vez que natildeo precisamos entender a

essecircncia do mundo para entender o funcionamento de sistemas loacutegicos

Por outro lado esta metaacutefora tambeacutem redunda em uma criacutetica ao

fisicalismo uma vez que a base material eacute irrelevante para o entendimento

da constituiccedilatildeo do significado a partir das regras de um dado sistema O

que Wittgenstein defende eacute um desenvolvimento importante da analogia

formalista de sistemas formais com jogos a saber assim como a base

material de um jogo de tabuleiro natildeo define o significado de suas peccedilas os

sinais na folha de papel por exemplo natildeo determinam o significado destas

marcas Satildeo contudo as regras que fixam o significado tanto das peccedilas do

jogo quanto dos sinais em um sistema formal

Vale notar tambeacutem que um jogo ou uma atividade regrada natildeo

precisa nem ter uma justificaccedilatildeo e nem ter uma fundamentaccedilatildeo Hacker

(1986) apresenta esta caracteriacutestica de jogos como a autonomia ou

arbitrariedade da sintaxe Isto significa que noacutes natildeo precisamos pensar ou

entender a essecircncia da linguagem ou do mundo para aprender como jogar

um jogo Jogos sāo auto-contidos o que eacute dito ou feito em um jogo natildeo

precisa ter nenhuma relaccedilatildeo com o que eacute feito num outro jogo Aqui noacutes

podemos ter uma interessante liberaccedilatildeo de restriccedilotildees metafiacutesicas

relacionadas agrave exigecircncia de referecircncia ao mundo para que estruturas

linguiacutesticas tenham significado uma vez que jogos natildeo precisam ser

pensados em relaccedilatildeo a alguma coisa isto eacute eles natildeo precisam ser

comportar de acordo com um fato determinado no mundo

Em se jogando jogos noacutes temos um claro aspecto de Handlung

dentro de sua dinacircmica loacutegica Ou seja para entendermos o que eacute um jogo

noacutes somos obrigados a pensarmos em termos de alguma accedilatildeo passos

(ldquomovesrdquo) operaccedilotildees ou em uma palavra praacuteticas em atividades regradas

(geregelte Handlung) Existe um niacutevel performativo mandataacuterio em jogos

Regras satildeo instruccedilotildees para atividades (jogos) ou para a construccedilatildeo de algo

154 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

por exemplo A ecircnfase filosoacutefica deve estar no procedimento pelo qual ou

a teacutecnica a partir da qual alguma performance eacute desempenhada e natildeo no

conhecimento proposicional a partir do qual o mundo eacute conhecido

verdadeiramente Natildeo eacute acidental que regras com frequecircncia funcionem

como normas para a accedilatildeo uma vez que expressam o que eacute considerado

adequado ou inadequado correto ou incorreto aceitaacutevel ou inaceitaacutevel

legiacutetimo ou ilegiacutetimo Um operador loacutegico neste contexto pode ser

tomado apenas como um procedimento tomado como legiacutetimo pelo qual

manipulamos sinais ou como uma seacuterie de manipulaccedilotildees permitidas que

contribui com o significado para proposiccedilotildees complexas

Nesta visatildeo que enfatiza o elemento humano em sistemas formais

como atividades regradas de seres humanos uma via de compatibilidade

com o pluralismo loacutegico a tese contemporacircnea que defende a

possibilidade de vaacuterios sistemas loacutegicos conflitantes serem legiacutetimos

conjuntamente pode ser pavimentada Ao se manter que sistemas loacutegicos

satildeo jogos noacutes podemos falar de maneira muito natural a respeito de vaacuterios

caacutelculos sem que precisemos nos comprometer com a verdade ou a

falsidade de alguns deles Com efeito caacutelculos natildeo podem ser falsos no

mesmo sentido que uma proposiccedilatildeo empiacuterica pode ser falsa Mesmo a

loacutegica proposicional entendida classicamente natildeo pode ser verdadeira ou

falsa Como eacute defendido aqui um jogo natildeo pode ser nem falso nem

verdadeiro uma vez que natildeo precisa descrever nada

Aleacutem disso vale notar que natildeo haacute nem um jogo sem regra ou seja

num certo sentido natildeo haacute um jogo anaacuterquico nenhuma regra sem jogo

ou uma regra sem o sistema em que ela deva estar situada Em outras

palavras regras satildeo mortas sem um sistema e um sistema sem regras natildeo

eacute realmente um sistema Aqui noacutes temos uma motivaccedilatildeo para introduzir

o que podemos chamar de holismo loacutegico para cada passo (ldquomoverdquo) ou

operaccedilatildeo em uma atividade governada eles devem estar inseridos em um

sistema Analogamente em sistemas formais operaccedilotildees ganham

significado em relaccedilatildeo a muitas outras Como resultado desta visatildeo

Marcos Silva | 155

mudar uma regra formal significa mudar o jogo uma vez que natildeo haacute

mudanccedila local que natildeo impactaria globalmente no sistema formal inteiro

O desenvolvimento da visatildeo formalista inspirada por Wittgenstein

tambeacutem permite as propriedades muito seminais de sistemas formais

como flexibilidade e plasticidade a partir da noccedilatildeo de jogos Em principio

noacutes podemos rejeitaraceitar ou mudar qualquer regraprinciacutepio em um

sistema loacutegico (claro evitando trivializaccedilāo com notado por Da Costa

1958) Em outras palavras operar em um sistema loacutegico eacute um Handlung

com signos governado por regras que satildeo convencionais no sentido que

poderiam ser outras

Consequentemente noacutes podemos rejeitar a visatildeo tiacutepica a respeito da

normatividade oferecida pelo realista monista Se noacutes temos apenas uma

uacutenica loacutegica verdadeira natildeo importando aqui qual e se a loacutegica determinar

as condiccedilotildees de inteligibilidade de nossas praacuteticas e os limites de nossa

racionalidade entatildeo eacute faacutecil transformar a discussatildeo loacutegica em uma discussatildeo

normativa qualquer desvio da supostaloacutegica verdadeira (como qualquer

outra loacutegica com outros princiacutepios) deveria ser tomado como contrassensual

Desvios sob o ponto de vista de um monista satildeo instacircncias de mau raciociacutenio

ou mesmo ilustraccedilotildees de nenhum raciociacutenio ou seja de que nenhum

raciociacutenio foi de fato feito Se noacutes levarmos a noccedilatildeo de jogos devidamente a

seacuterio a resposta para a normatividade da loacutegica fica encapsulada em normas

de accedilatildeo ou em instruccedilotildees para praacuteticas associadas com uma finalidade

particular Eacute evidente que noacutes poderiacuteamos ter outras normas como de fato

outras comunidades tecircm Com efeito existem outras comunidades que

obedecem outras regras uma comunidade de matemaacuteticos de orientaccedilatildeo

intuicionista por exemplo (LOumlF 1996 2013)

Como um uacuteltimo ponto para a relevacircncia filosoacutefica de se pensar

sistemas formais como jogos vale se destacar que regras satildeo puacuteblicas e

natildeo fundamentadas em representaccedilotildees privadas mentais ou em quaisquer

leis da mente Regras devem ser aprendidas em um ambiente social e a

partir de interaccedilotildees sociais Aqui a noccedilatildeo de educaccedilatildeo ou de iniciaccedilatildeo em

uma praacutetica naturalmente ganha importacircncia dentro do escopo da

156 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

discussatildeo em filosofia da loacutegica e da matemaacutetica Esta visatildeo encoraja

consequentemente uma virada antropoloacutegica na abordagem de sistemas

formais uma vez que enfatiza o niacutevel institucional e social na performance

de um jogo A questatildeo natural eacute Quem joga o jogo Quem aplica os

sistemas autocircnomos ao mundo Responder a esta questatildeo propondo um

sujeito metafiacutesico imaterial fora do mundo ou mesmo um

transcendental impondo estruturas a priori as suas representaccedilotildees

parece ser altamente inadequado Uma resposta natural deveria ser que

indiviacuteduos materiais com uma histoacuteria natural e social jogam os jogos ou

performam atividades regradas em uma comunidade de outros

indiviacuteduos Com efeito regras devem ser sempre associadas com uma

forma de vida Um indiviacuteduo radicalmente isolado natildeo pode jogar um jogo

ou seguir uma regra se noacutes aceitarmos as consequecircncias do famoso

argumento contra a linguagem privada de Wittgenstein em suas

Investigaccedilotildees filosoacuteficas Um jogo jogado objetivamente deve poder ser

ensinado para outros indiviacuteduos a partir dos criteacuterios puacuteblicos pelos quais

se corrigem passos inadequados ou ilegiacutetimos em atividades regradas

Com estas observaccedilotildees neste curto ensaio pretendi mostrar como a

noccedilatildeo de jogos pode ainda ser relevante filosoficamente para se entender a

natureza de sistemas formais a partir de uma abordagem wittgensteiniana

usando principalmente os textos compilados como WWK

Referecircncias

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Marcos Silva | 157

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Joachim Schulte and Brian McGuinnessWerkausgabe Band 3 Frankfurt am Main

Suhrkamp 1984a

_____ Tractatus logico-philosophicus Tagebuumlcher 1914-16 philosophische

untersuchungen Werkausgabe Band 1 Frankfurt am Main Suhrkamp 1984b

9

Revisitando o Argumento da Linguagem Privada

Marcus Joseacute Alves de Souza 1

Introduccedilatildeo

Falar de ldquolinguagem privadardquo aponta para um conceito intuitivamente

ou aparentemente contraditoacuterio como pode existir uma linguagem privada

uma vez que a linguagem de um ponto de vista simplista pressupotildee

comunicaccedilatildeo interaccedilatildeo entre falantes Linguagem privada parece um

oxiacutemoro patente Entretanto do ponto de vista teoacuterico a depender de qual

moldura teoacuterica do significado se adere ldquolinguagem privadardquo natildeo eacute algo tatildeo

contraditoacuterio assim Deste modo ao se falar de ldquoargumento da linguagem

privadardquo natildeo se estaacute pensando num argumento que demonstre a

plausibilidade da linguagem privada Na acepccedilatildeo corrente dos estudos sobre

o pensamento de Wittgenstein objeto desta reflexatildeo ldquoargumento da

linguagem privadardquo eacute o argumento mais especificamente os argumentos

que tecircm a linguagem privada como objeto a rigor argumentos contra a

linguagem privada Segundo Hacker (2010 p 616) o que a expressatildeo indica

natildeo satildeo argumentos claros que o filoacutesofo apresenta na verdade satildeo

argumentos de tortuosa interpretaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo presentes nos

paraacutegrafos de 243 a 315 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

A proposta deste artigo eacute modesta Primeiro apresentar um possiacutevel

modo de estruturaccedilatildeo do argumento que tornaria plausiacutevel uma

linguagem privada argumento se de enquadra no acircmbito de uma

1 Professor de Filosofia da UFAL Liacuteder do Grupo Linguagem e Cogniccedilatildeo-UFAL

Marcus Joseacute Alves de Souza | 159

compreensatildeo mental de caraacuteter privatista A seguir indicar trecircs pontos de

ataques contra o argumento extraiacutedos dos paraacutegrafos das Investigaccedilotildees

Filosoacuteficas tentando mostrar falhas nas premissas do argumento

formalizado da plausibilidade da linguagem privada Feito isso encerra-

se o artigo anunciando brevemente alguns elementos desdobrados da

proposta do filoacutesofo para pensar o mental dentro do quadro da

compreensatildeo de linguagem do filoacutesofo

Argumento a Favor da Linguagem Privada

Natildeo eacute claro que Wittgenstein tenha em mente um alvo apenas de ataque

nos trechos indicados como referecircncia do que ficou conhecido como

ldquoargumento da linguagem privadardquo2 todavia eacute possiacutevel determinar que o

filoacutesofo busca atacar certa imagem de privacidade que podemos chamar de

moderna e o modelo de teoria do significado subjacente a tal privacidade

modelo mentalista de significado Nesta imagem existe o mundo da proacutepria

mente e o mundo exterior agrave mente dos objetos materiais e da mente das

outras pessoas O mundo da proacutepria mente eacute privado inicialmente

encapsulado em si e acessiacutevel privadamente de modo direto ao sujeito mental

e de modo indireto por outros sujeitos mentais (outras mentes)

Numa acepccedilatildeo cartesiana a mente eacute uma substacircncia imaterial ligada

ao corpo do portador da mente mas o corpo poderia existir por si proacuteprio

Na mente cartesiana se desenrola os pensamentos sentimentos

sensaccedilotildees Estes satildeo fundamentalmente privados Tal compreensatildeo cria

um problema efetivo quanto ao conhecimento de outras mentes

Tal imagem tambeacutem sobrevive numa acepccedilatildeo empirista mesmo que

o candidato a mente seja algo empiricamente observaacutevel o ceacuterebro Parece

existir uma dificuldade em transpor das operaccedilotildees neuroloacutegicas toda a

gama de manifestaccedilotildees comportamentais e toda a gama de capacidades

2 Eacute possiacutevel perceber que o ataque eacute claro para uma imagem cartesiana de mente bem como o modelo linguagem x designaccedilatildeo no ldquoargumento da linguagem privadardquo mas eacute possiacutevel perceber pelo itineraacuterio reflexivo do filoacutesofo que mesmo uma compreensatildeo empiacuterica mentalista da linguagem ou mesmo o ataque pode se conectar com problemas detectados naquilo que foi o projeto de linguagem fenomenoloacutegica Cf Nielsen 2008 Parte I

160 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

intelectuais disposiccedilotildees etc da nossa espeacutecie e de outras semelhantes o

que faz com que se estabeleccedila uma independecircncia de esferas mental e

fiacutesica (manifestaccedilotildees comportamentais x operaccedilotildees neuronais) que

alimenta a mesma imagem de mente

A compreensatildeo que a mente eacute algo privado e que a linguagem eacute

expressatildeo externa do que estaacute interno eacute a concepccedilatildeo em termos gerais

comum tanto do idealismoracionalismo quanto do

fisicalismoempirismo Isso cria um problema para o conhecimento de

outras mentes sendo que o encaminhamento da soluccedilatildeo se estabeleccedila por

analogia entre minha mente que tenho acesso direto e a mente dos

outros que numa hipoacutetese otimista tenho acesso indireto

Assim um dos alvos talvez o principal dos trechos das Investigaccedilotildees

Filosoacuteficas seja a compreensatildeo privada da mente e associada a esta a

teoria do significado que decorre desta privacidade que daacute condiccedilotildees para

se pensar uma linguagem privada No sect 243 Wittgenstein (1999) daacute as

bases para esta linguagem Natildeo se trata de uma linguagem

circunstancialmente privada algo como monoacutelogos criptografados mas

uma linguagem radicalmente privada A indicaccedilatildeo do filoacutesofo eacute uma

linguagem que diga respeito agraves proacuteprias ocorrecircncias mentais vivecircncias

interiores que seriam nesta moldura radicalmente privadas

Mas seria tambeacutem pensaacutevel uma linguagem na qual algueacutem pudesse para seu

uso proacuteprio anotar ou exprimir suas vivecircncias interiores ndash seus sentimentos

seus estados de espiacuterito ndash Natildeo podemos fazer isso em nossa linguagem

costumeira ndash acho que natildeo As palavras dessa linguagem devem referir-se

agravequilo que apenas o falante pode saber agraves suas sensaccedilotildees imediatas privadas

Um outro pois natildeo pode compreender esta linguagem (WITTGENSTEIN

1999 p 98 sect 243)

Assim aquilo sobre de que a linguagem se compotildee signos regras

referecircncia enfim todos seus elementos seriam privados apenas o criador-

usuaacuterio definiria o significado e apenas ele saberia o significado dos signos

De modo esquemaacutetico o argumento a favor da possibilidade de uma

linguagem privada poderia ser feito assim

Marcus Joseacute Alves de Souza | 161

- ldquoSensaccedilotildees satildeo privadas da mente da pessoa que as temrdquo (premissa 1 = P1)

- ldquoAs sensaccedilotildees satildeo inacessiacuteveis a outras pessoas uma vez que os outros natildeo tecircm

certeza se algueacutem tem ou natildeo uma sensaccedilatildeo particularrdquo (premissa 2 = P2)

- ldquoAlgueacutem pode dar um nome a uma sensaccedilatildeo particular na privacidade de sua mente

e usar este nome e o acerto deste nome nunca seria acessado por ningueacutem a

natildeo ser o usuaacuterio privadordquo (premissa 3 = P3)

- ldquoO significado de um termo nesta linguagem nada mais eacute que a referecircncia de uma

ocorrecircncia mental (sensaccedilatildeo) e seu modo de expressatildeo (signo) sobre uma

sensaccedilatildeo presente ou passada eacute a simples indicaccedilatildeo privada (ostensatildeo) desta

ocorrecircncia mentalrdquo (premissa 4 = P4)

rarr ldquoA linguagem privada eacute possiacutevel seria a linguagem de nossas ocorrecircncias

mentaisrdquo (Conclusatildeo)

Fazendo uma avaliaccedilatildeo inicial dessas premissas se pode estabelecer

sobretudo dentro de uma moldura privatista da mente e uma concepccedilatildeo

mentalista do significado que existe uma certa plausibilidade do argumento

A premissa 1 (P1) parece ser verdadeira as ocorrecircncias mentais as

sensaccedilotildees satildeo privadas ldquoningueacutem sente a minha dorrdquo por exemplo eacute uma

afirmaccedilatildeo claramente verdadeira o que aponta para a verdade da

premissa 1

A premissa 3 (P3) parece ser verdadeira tambeacutem parece ser

plausiacutevel admitir sua verdade Sendo privadas e sendo algo as sensaccedilotildees

podem ser nomeadas como qualquer objeto exterior na linguagem puacuteblica

(mesmo que passe por um processo mental de representaccedilatildeo) Como

apenas o criador e usuaacuterio conhece o termo soacute ele conhece sua associaccedilatildeo

referencial com o objeto e soacute ele conhece o objeto logo eacute possiacutevel admitir

que soacute ele sabe se acertou ou natildeo no uso deste termo

A premissa 4 (P4) tambeacutem pode ser plausiacutevel uma vez que pode se

admitir que o ato de ostensatildeo eacute fundamental para a instanciaccedilatildeo do

significado de um termo eacute possiacutevel admitir que semanticamente o

significado de um termo eacute sua substituiccedilatildeo por ostensatildeo no plano da

linguagem e como os elementos satildeo privados tal mecanismo pode ser

executado privadamente

162 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A premissa 2 (P2) parece ser a problemaacutetica pois parece existir uma

seacuterie de situaccedilotildees que claramente sabemos que uma pessoa tem dor por

exemplo o que aponta para uma implausibilidade da premissa Claro que

existem situaccedilotildees de simulaccedilatildeo de sensaccedilotildees mas seraacute possiacutevel duvidar que

ao enfiar um prego debaixo da unha de uma pessoa ela natildeo tenha dor Os

mais aferrados agrave moldura privatista da mente podem pensar que no maacuteximo

o que posso fazer eacute dado agraves reaccedilotildees da pessoa (comportamento) supor que

ela estaacute tendo dor pois natildeo sinto a dor dela logo natildeo tenho condiccedilotildees de

dizer com certeza que ela tem ou natildeo dor Assim mesmo que se possa pensar

que haacute uma inconfundiacutevel expressatildeo comportamental de dor natildeo existe clara

e confiaacutevel regularidade entre causa e efeito no caso das sensaccedilotildees Por mais

regular que seja a relaccedilatildeo entre enfiar um prego debaixo de uma unha de

algueacutem e este algueacutem gritar chorar se contorcer parece possiacutevel pensar

contra-exemplos desta regularidade algueacutem que fique impassiacutevel por

exemplo Assim parece natildeo existir uma correlaccedilatildeo perfeita entre tiacutepica causa

do comportamento de dor a dor e o comportamento de dor o que torna mais

plausiacutevel a premissa 2

Esta avaliaccedilatildeo preliminar tem como objetivo reforccedilar as bases da

plausibilidade da admissatildeo da linguagem privada P1 aponta para o

aspecto da natureza privada das ocorrecircncias mentais P2 para a dimensatildeo

epistemoloacutegica das ocorrecircncias mentais P3 e P4 para o mecanismo

semacircntico da proposta de linguagem privada

O exemplo recorrente de Wittgenstein eacute o da dor em algumas

ocasiotildees trabalha tambeacutem com o exemplo das cores Natildeo se pretende fugir

desses exemplos pois dado a sua vivacidade e forccedila retoacuterica servem

melhor para esclarecer a questatildeo e desdobrar para outros exemplos

Pontos de Ataque ao Argumento

A seguir tentaremos indicar a partir das reflexotildees de Wittgenstein o

ataque a este argumento na verdade indicando a inadmissibilidade do

argumento proposto para embasar a possibilidade da linguagem privada

Marcus Joseacute Alves de Souza | 163

A Engrenagem Solta

Este ponto de ataque pode ser detectado na sequecircncia dos paraacutegrafos

271 272 279 e 293 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

Eacute uma das metaacuteforas recorrentes de Wittgenstein para explicar a

linguagem a das engrenagens Assim aponta para o fato do significado ser

uma articulaccedilatildeo de uma seacuterie de elementos

Para a formulaccedilatildeo deste ataque os paraacutegrafos apontam para a

ambiguumlidade possiacutevel na denotaccedilatildeo do significado de palavras de cores

Nos paraacutegrafos eacute possiacutevel perceber a alegaccedilatildeo de que cada pessoa processa

seu exemplar de cor na sua mente e que existe a possibilidade de confusatildeo

na denotaccedilatildeo das cores Eacute possiacutevel que eu e parte da humanidade tenham

uma sensaccedilatildeo de vermelho e outra parte tenha outra sensaccedilatildeo cromaacutetica

(WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 272)

Um empirista como Locke admite a mesma situaccedilatildeo mas

sabiamente ele aponta (como Wittgenstein) que eacute uma situaccedilatildeo

inverificaacutevel Ou seja se vocecirc tem um exemplar privado na memoacuteria que

vocecirc chama de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute verde e eu tenho um

exemplar privado que eu chamo de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute azul e

um terceiro chama seu exemplar privado de ldquovermelhordquo e ele na realidade

eacute vermelho Dado a privacidade efetiva natildeo posso verificar os exemplares

privados dos trecircs A questatildeo mais problemaacutetica entra pela porta dos fundos

pela linguagem Para Locke ndash e aqui eacute a oportunidade de expor uma teoria

mentalista standart do significado - os nomes satildeo marcas sensiacuteveis de ideias

armazenadas na memoacuteria assim as palavras estatildeo em associaccedilatildeo com ideias

da mente Se uma palavra natildeo ldquoexecutardquo a mesma ideia armazenada na

mente de duas pessoas ou mais pessoas ela natildeo seraacute significativa

Quando um homem fala com outro o faz para que possa ser entendido e o fim

da fala implica que estes sons como marcas devem tornar conhecidas suas

ideias ao ouvinte Essas palavras entatildeo satildeo as marcas das ideias de quem fala

ningueacutem pode aplicaacute-las como marcas imediatamente a nenhuma outra coisa

164 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

exceto agraves ideias que ele mesmo possui jaacute que isto as tornaria sinais de suas

proacuteprias concepccedilotildees e ao contraacuterio aplicaacute-las a outras ideias faria com que elas

fossem e natildeo fossem ao mesmo tempo sinais de suas ideias e deste modo natildeo

teriam de nenhum modo qualquer significado (LOCKE 1983 p 222)

Assim no uso puacuteblico o desacordo eacute detectaacutevel uma vez que um dos

falantes mostre publicamente o que eacute que ele tem como exemplar de

ldquovermelhordquo do mesmo modo o outro e assim aleacutem de detectar o desacordo

superaacute-lo isso mantendo a moldura mentalista Cores a princiacutepio satildeo

elementos ou aspectos fiacutesicos de objetos fiacutesicosmateriais uma vez que se

tem a vantagem de poder ldquomostrarrdquo exteriormente um exemplar fiacutesico

similar ou idecircntico com a cor para superar a ambiguumlidade Transpor esta

problemaacutetica para o exemplo da dor torna a situaccedilatildeo bem mais problemaacutetica

e complexa Dor eacute uma sensaccedilatildeo sendo privada ningueacutem que natildeo tenha a

experiecircncia da sensaccedilatildeo de dor saberaacute o que significa o signo qualquer que

o designa Se o usuaacuterio e falante do signo dor usa-o para significar X num

momento e noutro para significar Y natildeo haveraacute desacordo nem

possibilidade de verificaccedilatildeo Na verdade seraacute tomado pelo usuaacuterio da

linguagem privada como significando a mesma coisa A mesma situaccedilatildeo

pode ser pensada em uso comum Suponha que algueacutem se queixa de uma

dor sendo privada a sensaccedilatildeo pode variar de pessoa para pessoa se for

diferente de pessoa para pessoa a duacutevida eacute sem sentido pois eacute radicalmente

insuperaacutevel a privacidade o que afeta o uso puacuteblico da palavra ldquodorrdquo como

palavra significativa Tal situaccedilatildeo aponta para a ideia de engrenagem solta

no uso do termo torna-se irrelevante se este algueacutem tem dor ou natildeo para a

significaccedilatildeo do termo em uso privado e para a comunicaccedilatildeo em uso puacuteblico

ldquo[] a roda que se pode mover sem que mais nada se mova natildeo pertence a

maacutequinardquo (WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 271)

A este respeito Wittgenstein (1997 p 427 ndash traduccedilatildeo nossa) diz nas

notas para conferecircncia de filosofia3 ldquoNatildeo eacute um ato oculto nomear um

objeto que possa dar significado a uma palavrardquo

3 Este texto que ficou com o tiacutetulo Conferecircncia Filosoacutefica (MS 166) eacute um conjunto de notas segundo Von Wright de em 1935 ou 1936 denotando uma conferecircncia natildeo realizada pelo filoacutesofo que segundo Anthony Kenny deveria ser realizada em 1941 supostamente para Academia Britacircnica Essas notas dizem respeito agraves reflexotildees de Wittgenstein

Marcus Joseacute Alves de Souza | 165

O que significa essa reflexatildeo para o argumento a favor da linguagem

privada Natildeo eacute um reforccedilo agrave privacidade como uma esfera inexpugnaacutevel

mas para mostrar que eacute irrelevante o objeto referecircncia da sensaccedilatildeo numa

moldura mentalista que na verdade supostamente funciona como

elemento fundamental para a significaccedilatildeo Nisso mesmo sem entrar no

meacuterito de que as sensaccedilotildees satildeo privadas (P1) sendo inacessiacuteveis aos outros

(P2) elas natildeo jogam papel algum para a significaccedilatildeo o que tira a

plausibilidade de P3 Entretanto no uso comum natildeo eacute possiacutevel supor que

estejamos num permanente engano ou mal entendido do significado dos

termos de sensaccedilatildeo evidecircncia que ataca a premissa 2 (P2)

Ausecircncia de Criteacuterio

No sect 258 Wittgenstein (1999) cria uma hipoteacutetica situaccedilatildeo de algueacutem

que quer escrever em um diaacuterio sobre a repeticcedilatildeo de uma sensaccedilatildeo Diz

ele ldquoPara tanto associo-a com o signo lsquoSrsquo e escrevo este signo num

calendaacuterio todos os dias em que tenho a sensaccedilatildeordquo A ideia eacute que faccedilo isso

por uma espeacutecie de ostensatildeo privada concentro-me na sensaccedilatildeo como

um apontar interior e a nomeio A pergunta que surge eacute ldquopara que tal

ritualrdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 100 sect 258) Se ele serve para

estabelecer o significado de ldquoSrdquo deve-se dizer que toda vez que a sensaccedilatildeo

surgir e nomeaacute-la isso se deu porque me recordo da ligaccedilatildeo pois gravei

em mim a associaccedilatildeo de ldquoSrdquo e a sensaccedilatildeo Escreve-se ldquoSrdquo para expressar

minha certeza interior dessa associaccedilatildeo Esta seria uma possiacutevel

justificativa para o ldquoritualrdquo mas ela eacute claramente insuficiente Pensemos

que significa tal situaccedilatildeo Um dos aspectos que mostra a insuficiecircncia eacute o

fato de que pode existir uma falha na instanciaccedilatildeo por erro de memoacuteria

por exemplo Ou seja marco no diaacuterio ldquoSrdquo no dia X quando tenho a

sensaccedilatildeo S no mesmo dia X tenho a mesma sensaccedilatildeo e por familiaridade

interior tenha a certeza de que a sensaccedilatildeo foi a mesma e marco ldquoSrdquo no

sobre a linguagem privada sua implausibilidade Mesmo pouco sistemaacutetico o escrito eacute um grande auxiacutelio para a compreensatildeo e da evoluccedilatildeo do tema no pensamento do filoacutesofo

166 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

calendaacuterio Passados 15 dias tenho a sensaccedilatildeo mas natildeo estou tatildeo certo

fico titubeante tenho duacutevidas de mim para mim se eacute a mesma sensaccedilatildeo

minha memoacuteria natildeo me daacute a certeza que precisaria mas depois de um

pouco mais de introspecccedilatildeo e esforccedilo de lembranccedila a certeza vem e anoto

ldquoSrdquo no calendaacuterio No dia seguinte tenho a sensaccedilatildeo desta vez ela me

pareceu niacutetida e familiar e escrevo sem titubear ldquoSrdquo

A pergunta que surge eacute como se pode sustentar a correccedilatildeo deste uso

denotativo interno Algueacutem mais apegado ao quadro criado atribuiria agrave

sinceridade ou agrave honestidade do ldquousuaacuteriordquo Mas novamente como aferir

tal sinceridade ou honestidade desta associaccedilatildeo Em tese apenas o usuaacuterio

da definiccedilatildeo extensional seria o avaliador de tal sinceridade ou

honestidade Seria algo como ldquoserei sincero com minha honesta

associaccedilatildeordquo ldquoserei sincero comigo mesmo e por isso garanto que natildeo erro

(intencionalmente) ao associar repetidas sensaccedilotildees ao signo lsquoSrsquordquo Mas ser

vocecirc o avalizador de sua sinceridade serum sincero e honesto avalizador

de sua sinceridade e honestidade eacute expressatildeo de um sem sentido de falta

de engrenagem significativa desta situaccedilatildeo E segundo Wittgenstein (1997

p 427-438) nas notas para conferecircncia filosoacutefica se o objeto interno

muda e nossa memoacuteria nos engana o que eacute possiacutevel e usamos a expressatildeo

privada de boa-feacute para significar o objeto usamos a mesma expressatildeo a

cada vez para significar algo distinto Falar de sinceridade honestidade e

boa feacute neste contexto eacute sem sentido exatamente porque boa-feacute

honestidade e sinceridade satildeo conceitos puacuteblicos natildeo faz sentido a natildeo

ser figuradamente e em uso puacuteblico dizer que se eacute honesto consigo

mesmo natildeo existe honestidade ou sinceridade privada Isso marca o

aspecto da falta de criteacuterio de correccedilatildeo desta situaccedilatildeo Aleacutem disso se pode

pensar voltando ao exemplo que se houvesse uma falha na memoacuteria que

criasse a incerteza o usuaacuterio natildeo deveria escrever ldquoSrdquo no dia em que ficou

com duacutevida isso eacute expressatildeo de que seria possiacutevel evitar o erro ou o

engano desde que o usuaacuterio fosse diligente epistemologicamente no

reconhecimento da sensaccedilatildeo e na sua posterior nomeaccedilatildeo Mas a questatildeo

natildeo eacute de capacidade memoriacutestica de reconhecimento A memoacuteria eacute uma

Marcus Joseacute Alves de Souza | 167

habilidade construiacuteda numa linguagem puacuteblica natildeo um ldquobauacuterdquo privado de

vivecircncias acumuladas Neste caso se o ldquousuaacuteriordquo competente ou natildeo em

termos de memoacuteria associar a sensaccedilatildeo ao signo ldquoSrdquo e disser que associou

corretamente seraacute correto Se ele associar incorretamente e disser que

associou corretamente seraacute correto tambeacutem Ou mesmo numa hipoacutetese

de desonestidade se ele natildeo tiver sensaccedilatildeo alguma mas se disser que ldquoSrdquo

significou tal sensaccedilatildeo assim seraacute tido como correto Isso fica claro em

trechos dos sectsect 258 e 259 ldquoCorreto eacute aquilo que sempre me parecer

correto E isto significa apenas que natildeo se pode falar de corretordquo ou ldquoA

balanccedila na qual se pesa as impressotildees natildeo eacute a impressatildeo da balanccedilardquo

(WITTGENSTEIN 1999 p 101 sectsect 258 e 259)

Tal situaccedilatildeo aponta para o fato de que criteacuterio privado de correccedilatildeo

natildeo eacute criteacuterio eacute impressatildeo de criteacuterio Parece haver criteacuterio mas satildeo

impressotildees de criteacuterio natildeo se descrimina nem corrige nada

O interessante eacute que todo o ldquoritualrdquo descrito anteriormente se faz a

semelhanccedila de procedimentos regrados publicamente transpostos par

uma esfera privada numa clara hipostasia de significado

Esta reflexatildeo ataca diretamente a premissas 3 (P3) e 4 (P4) do

argumento em favor da linguagem privada Do mesmo modo que a

inscriccedilatildeo ldquoSrdquo natildeo denota a sensaccedilatildeo necessariamente eacute possiacutevel como

decorrecircncia atacar a premissa 1 (P1) uma vez que se for o caso nem o

usuaacuterioportador da sensaccedilatildeo ldquosaberdquo se a tem isso pela situaccedilatildeo criada

pelo diaacuterio

TransiccedilatildeoDescritibilidade

No modelo cartesiano seria possiacutevel algo como o que Wittgenstein

aventa no sect 257 da crianccedila gecircnio que descobre por si mesma o nome de

uma sensaccedilatildeo ldquolsquoComo seria se os homens natildeo manifestassem suas dores

(natildeo gemessem natildeo fizessem caretas etc) Entatildeo natildeo se poderia ensinar

a uma crianccedila o uso das palavras lsquodor de dentersquo ndash Ora imaginemos que

uma crianccedila seja um gecircnio e descubra por si proacutepria um nome para a

168 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

sensaccedilatildeordquo (WITTGENSTEIN 1999 p 101) Seria uma situaccedilatildeo em que se

aprende o que eacute dor sentindo-a De novo seria algo como ao me

machucar concentro-me na sensaccedilatildeo e imprimo em mim o que eacute ldquodorrdquo

com um signo qualquer Como vimos pela argumentaccedilatildeo anterior falta

criteacuterios para identificar corretamente as minhas proacuteprias dores por

exemplo Mas deixemos isso de lado por enquanto pois no sect 265 haacute um

interessante desdobramento Admitindo a princiacutepio ser possiacutevel

identificar minhas proacuteprias dores corretamente entatildeo rigorosamente eu

natildeo poderia ser capaz de entender proferimentos como ldquoX tem dorrdquo

Podemos supor que descrevo dores a partir da minha proacutepria dor por

introspecccedilatildeo (ostensatildeo interior) mas se eacute assim isso natildeo me permite

ensinar aos outros como descrever a sensaccedilatildeo para uma pessoa particular

a rigor nem a mesma pois isso natildeo foi feito privadamente (Hume jaacute

assinalava que o ldquoeurdquo natildeo eacute objeto de introspecccedilatildeo) Assim quando sinto

dor natildeo eacute meu ego sente dor nem uma parte especial de mim como meu

ceacuterebro Isso eacute claramente uma falaacutecia (falaacutecia do homuacutenculo4) Mas o

ponto aqui eacute o da transcriccedilatildeo de ldquohaacute doresrdquo de ldquoeu tenho doresrdquo uma vez

que satildeo identificadas como sendo a mesma descriccedilatildeo pois natildeo posso sair

de mim dado a privacidade radical das sensaccedilotildees Do mesmo modo ldquoele

tem dorrdquo natildeo significa que eu designei ldquodorrdquo como algo que acontece num

lugar que natildeo seja o da minha privacidade ou seja o corpo ou a mente de

outra pessoa Se o modelo cartesiano estaacute certo ldquodorrdquo eacute um evento

privado captado introspectivamente enquanto ldquodorrdquo no corpo ou na

mente de outrem natildeo eacute algo introspectivamente captaacutevel por mim Assim

falar de dor a partir de mim como ldquodorrdquo de outra pessoa eacute no miacutenimo

uma significaccedilatildeo indevida Natildeo haacute garantia alguma de identidade entre os

significados (WITTGENSTEIN 1999 p 107 sect 292) Sendo assim natildeo

posso descrever dores que sinto em mim como dores que outro sente Em

sect302 Wittgenstein diz ldquoSe precisamos representar-nos a dor dos outros

segundo modelo de nossa proacutepria dor entatildeo isso natildeo eacute coisa faacutecil pois

4 KENNY J P The homunculus fallacy Cf KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein Oxford Blackwell 1984 p 124-136

Marcus Joseacute Alves de Souza | 169

devo representar-me dores que natildeo sinto segundo dores que sintordquo

(WITTGENSTEIN 1999 p 108)

O objetivo deste ponto eacute destacar agraves avessas que o fundamento

privado de constituiccedilatildeo da linguagem eacute implausiacutevel Ele cria uma seacuterie de

dificuldades para o argumento por analogia para conhecimento de outras

mentes numa perspectiva puacuteblica mostra que pela ausecircncia de criteacuterios

para constituiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel estabelecer qualquer descriccedilatildeo sobre algo

que ocorra na mente de outro tal linguagem aleacutem de ser privada deve

ser autocontida o que se mostra sem sentido pois mesmo as

descriccedilotildeesnomeaccedilotildees privadas perdem toda funccedilatildeo como descriccedilatildeo ou

nomeaccedilatildeo Nomear natildeo eacute um ato privado e oculto para que o termo tenha

significado Segundo Wittgenstein nas notas para conferecircncia filosoacutefica

nomear estaacute dentro de uma teacutecnica de uso nomear natildeo eacute espeacutecie de

batismo maacutegico privado ldquonatildeo serve para nada dizer que temos um objeto

privado ante a mente e damos um nomerdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 129

sect 428) Soacute existe nome segundo ele quando haacute uma teacutecnica para usaacute-lo e

esta teacutecnica natildeo pode ser privada Isso atesta agraves avessas que para que as

descriccedilotildeesnomeaccedilotildees sejam significativas devem ser puacuteblicas O que

ataca especialmente a premissa 2 do argumento (P2) as sensaccedilotildees natildeo satildeo

autocontidas indescritiacuteveis e inacessiacuteveis a outrem logo nem sempre terei

duacutevidas sobre se o outro tem ou natildeo determinada sensaccedilatildeo pois para que

a nomeaccedilatildeodescriccedilatildeo qualquer seja significativa ela deve ser puacuteblica o

que aponta para a noccedilatildeo de que se algum termo ou descriccedilatildeo de sensaccedilatildeo

eacute significativo ele se construiu publicamente logo as sensaccedilotildees natildeo satildeo

inacessiacuteveis e natildeo vivemos numa permanente duacutevida sobre se o outro tem

ou natildeo uma sensaccedilatildeo qualquer como dor

Argumento da Linguagem Privada e Filosofia da Mente em

Wittgenstein

Argumento da linguagem privada eacute o esforccedilo de levar ao extremo das

contradiccedilotildees uma concepccedilatildeo privada e representacional de mente que

170 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ganha forccedila ou eacute caudataacuteria de uma concepccedilatildeo referencialista de

significado (objeto ndash representaccedilatildeo ndash signo) Os argumentos apontam para

a perspectiva de fazer uma terapia de tal entendimento de apontar

deficiecircncias conceituais e de buscar suprimi-las com outro registro de

significado e mente

Este novo registro se encontra na concepccedilatildeo de linguagem como uso

como conjunto de accedilotildees puacuteblicas e regradas Nisso emergem conceitos natildeo

referencialistas de linguagem como jogos padrotildees regras criteacuterios

aprendizado e treinamento Tal conjunto de elementos numa avaliaccedilatildeo

panoracircmica dos usos de um termo e seus aparentados faz com que surja

a ldquogramaacuteticardquo de um conceito que abre espaccedilo para o entendimento da

filosofia da mente de Wittgenstein

A proposta de filosofia da mente do filoacutesofo se associa agrave gama de

conceitos surgidos do uso especialmente do uso de verbos intencionais

crer querer conhecer lembrar memorizar imaginar pensar etc cada

um com sua gramaacutetica Sendo assim mente natildeo eacute uma instacircncia

metafiacutesica privada e pneumaacutetica A configuraccedilatildeo dos elementos

conceituais extraiacutedo dos usos dos conceitos mentais traz uma explicaccedilatildeo

de uma seacuterie de fenocircmenos mentais a partir de

Nisso emergem conceitos de explicaccedilatildeo de uma seacuterie de fenocircmenos

mentais como

a) paracircmetros conceituais de definiccedilatildeo de conceitos mentais articulaccedilotildees e

exclusotildees pragmaacuteticas de uso que traccedilam o limite da gramaacutetica dos conceitos

mentais

b) assimetria pronominais de primeira e terceira pessoa como elementos

pragmaacuteticos que explicam a diferenccedila entre o interno e o externo como jogos

de linguagem entre auto e heacutetero descriccedilotildees ou expressotildees caracteriacutesticas de

exteriorizaccedilotildees (primeira pessoa) e afirmaccedilotildees sobre dimensotildees mentais de

outrem (terceira pessoa) diluindo o problema das outras mentes no formato

mentalista Assim interno e externo natildeo satildeo instacircncias metafiacutesicas o externo

natildeo eacute fachada do interno satildeo conceitos que tem um papel fundamental na nossa

imagem de pessoa como um conceito puacuteblico

c) comportamentos caracteriacutesticos associados pragmaticamente como conceitos

mentais

Marcus Joseacute Alves de Souza | 171

Outros aspectos da investigaccedilatildeo de Wittgenstein poderiam ser

levantados e aprofundados mas estes trecircs sumaacuterios elementos apontam

para onde se desenvolve a reflexatildeo do filoacutesofo A proposta aqui foi apenas

apresentar a discussatildeo sobre a plausibilidade da linguagem privada e

apontar elementos da filosofia da mente de Wittgenstein Do mesmo

modo compreender que o argumento contra a linguagem privada eacute de

fundamental importacircncia para o entendimento da filosofia da mente de

Wittgenstein

Referecircncias

HACKER P M S Privative language argument In DANCY J SOSA E STEUP M (eds)

A companion to epistemology 2 ed Oxford Wiley-Blackwell 2010 p 616-621

KENNY J P The homunculus fallacy In KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein

Oxford Blackwell 1984 pp 124-136

LOCKE J Ensaio acerca do entendimento humano Trad Anoar Aiex Satildeo Paulo Nova

Cultural 1983

NIELSEN K S The evolution of the private language argument Hampshire UK

Ashgate Publishing Company 2007

SCHROEDER S Private language and private experience In GLOCK H-J Wittgenstein

a critical reader Oxford Backwell Publishers 2001 p 174-198

WITTGENSTEIN L Ocasiones filosoacuteficas 1912-1951 Trad Angel Garcia Rodrigues

Madrid Ediciones Caacutetedra 1997

______ Investigaccedilotildees filosoacuteficas Trad Joseacute Carlos Bruni Satildeo Paulo Nova Cultural

1999

10

O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico

Ricardo S Rabenschlag 1

No capiacutetulo que publiquei nesta mesma seacuterie de livros que registram

parte da produccedilatildeo acadecircmica do grupo de pesquisa Linguagem e

Cogniccedilatildeo afirmei que seria inuacutetil tentar extrair uma concepccedilatildeo coerente

de ciecircncia a partir da anaacutelise das principais obras publicadas pelos Novos

Ateus Embora minha convicccedilatildeo a este respeito permaneccedila inalterada natildeo

creio ser inuacutetil a tentativa de identificar os principais equiacutevocos

epistemoloacutegicos que este e outros grupos de autodeclarados pensadores

criacuteticos cometem em sua cruzada contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo

Em sua acepccedilatildeo vulgar ter uma atitude criacutetica significa suspender o

juiacutezo acerca de uma ideia a menos que tenhamos argumentos logicamente

vaacutelidos e bem fundados seja para afirmaacute-la seja para negaacute-la

Compreendido dessa forma o pensamento ou a atitude criacutetica se opotildeem

de um lado ao raciociacutenio falacioso e de outro agrave atitude dogmaacutetica Por

que devemos preferir raciociacutenios vaacutelidos agrave raciociacutenios falaciosos eacute algo que

dispensa maiores explicaccedilotildees Com efeito o proacuteprio conceito de falaacutecia jaacute

conteacutem um elemento pejorativo e o mesmo se daacute em relaccedilatildeo agrave atitude

dogmaacutetica compreendida natildeo apenas como indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave

busca de razotildees para se afirmar ou negar certas ideias mas sobretudo

como recusa em fazecirc-lo mesmo quando a afirmaccedilatildeo ou a negaccedilatildeo destas

ideais entra em flagrante contradiccedilatildeo com aquilo que acreditamos com

base em argumentos vaacutelidos e bem fundados

1 Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Ricardo S Rabenschlag | 173

Mas se eacute assim o que poderia haver de errado com o Pensamento

Criacutetico Como jaacute disse natildeo creio que haja nada de errado com a ideia de que

devemos sempre que possiacutevel suspender nosso juiacutezo antes que tenhamos

boas razotildees quer para negar quer para afirmar algo A ressalva eacute importante

porque no acircmbito praacutetico nem sempre podemos nos dar ao luxo de

suspender nosso juiacutezo sobretudo quando as consequecircncias desta indecisatildeo

satildeo moralmente graves O problema com o Pensamento Criacutetico natildeo diz

respeito a esta atitude criacutetica moderada e sim a um conjunto mais ou menos

bem definido de crenccedilas largamente difundidas por autores que se

identificam como pensadores criacuteticos entre eles os principais

representantes do novo ateiacutesmo2 Neste breve capiacutetulo examinarei uma das

maacuteximas mais populares entre os autoproclamados pensadores criacuteticos3

Qualquer um que jaacute tenha passado dos cinquenta anos e que tenha

amor pela ciecircncia se lembra com carinho das noites em que assistiu pela

primeira vez e ao longo de vaacuterias semanas aos treze capiacutetulos da seacuterie

Cosmos apresentada por Carl Sagan Natildeo foi o primeiro programa do tipo

e nem o melhor segundo muitos criacuteticos4 mas sob um aspecto ele foi

uacutenico pois nenhum outro programa de divulgaccedilatildeo cientiacutefica alcanccedilou uma

audiecircncia tatildeo vasta Seja pela beliacutessima trilha sonora pelos efeitos

especiais inovadores ou pelo carisma do seu apresentador a seacuterie Cosmos

foi um marco na divulgaccedilatildeo cientiacutefica audiovisual

Uma das caracteriacutesticas principais da seacuterie Cosmos posteriormente

publicada em forma de livro com o mesmo tiacutetulo e que teve enorme

sucesso de vendas em todo o mundo eacute que ela natildeo visava apenas

2 Estou me referindo aqui aos Quatro Cavaleiros do Natildeo-Apocalipse Richard Dawkins Christopher Hitchens Daniel Dennett e Sam Harris

3 Esta eacute apenas uma pequena parte de um projeto mais amplo cujos resultados pretendo publicar num livro com o mesmo tiacutetulo do presente capiacutetulo

4 Muitos incluindo o autor deste capiacutetulo consideram a seacuterie A Escalada do Homem apresentada por Jacob Bronowski como sendo superior sobretudo em razatildeo do maior escopo profundidade e interdisciplinaridade

174 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

transmitir a moderna visatildeo cientiacutefica do mundo ela buscava tambeacutem

promover o espiacuterito cientiacutefico moderno que tornara possiacutevel aos cientistas

modernos descobrirem tudo aquilo que Carl Sagan nos apresentava de

maneira tatildeo cativante Em outras palavras uma parte substancial do

programa tinha como foco a proacutepria ciecircncia sua histoacuteria seus meacutetodos e

sobretudo a atitude criacutetica que segundo Carl Sagan estaacute na raiz dessa

inovadora e bem-sucedida maneira de buscar respostas para questotildees

fundamentais como a origem da vida a origem do homem e do pequeno

planeta que ele habita e ateacute mesmo a origem do proacuteprio Universo

Na tentativa de explicar para o grande puacuteblico os traccedilos essenciais da

atitude criacutetica que caracterizaria o pensamento cientiacutefico Carl Sagan fez

uso5 do seguinte aformismo que rapidamente foi adotado pelos

autoproclamados pensadores criacuteticos como um princiacutepio metodoloacutegico

essencial a toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica6

Princiacutepio de Sagan alegaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias

extraordinaacuterias7

Embora muitos educadores e divulgadores da ciecircncia entre eles

vaacuterios cientistas e alguns filoacutesofos interpretem o aforismo tornado ceacutelebre

por Carl Sagan como expressando um princiacutepio metodoloacutegico essencial a

toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica vejamos o que a

Epistemologia da Ciecircncia tem a dizer sobre essa suposta peacuterola do

pensamento criacutetico Nunca eacute demais lembrar que a Epistemologia da

Ciecircncia natildeo eacute uma ciecircncia que investiga a proacutepria ciecircncia como satildeo a

Histoacuteria da Ciecircncia e a Sociologia da Ciecircncia e sim uma disciplina filosoacutefica

que estuda a natureza a origem e os limites do conhecimento cientiacutefico

5 O aforismo eacute provavelmente uma adaptaccedilatildeo de uma frase praticamente idecircntica publicada num artigo de 1978 de autoria do socioacutelogo italiano Marcello Truzzi Com efeito em seu artigo ldquoOn the Extraordinary An Attempt at Clarification ele afirma que an extraordinary claim requires extraordinary proof

6 Uma busca raacutepida no Google Scholar revela que o aforismo na versatildeo tornada ceacutelebre por Sagan eacute usado em mais de 1000 publicaccedilotildees acadecircmicas

7 O aformismo orignal em inglecircs ldquoExtraordinary claims requery extraordinary evidencerdquo pode ser traduzido tambeacutem como ldquoAfirmaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias extraordinaacuteriasrdquo

Ricardo S Rabenschlag | 175

Antes de tudo eacute importante deixar claro que embora Carl Sagan

tenha empregado o aforismo para descartar explicaccedilotildees pseudocientiacuteficas

em momento algum ele afirmou que se tratava de um princiacutepio

metodoloacutegico e nem se deu ao trabalho de explicar seu sentido preciso e

a menos que se faccedila isso o tatildeo celebrado aforismo aparenta ser uma

apenas uma consequecircncia ilegiacutetima do fato psicoloacutegico de que em geral eacute

mais difiacutecil convencer algueacutem da verdade de uma crenccedila que contraria

suas expectativas do que da verdade de uma crenccedila que natildeo se contraria

suas expectativas Poderiacuteamos expressar essa compreensatildeo vulgar e

psicologista do Princiacutecio de Sagan do seguinte modo

Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas

requerem evidecircncias mais robustas

A consequecircncia eacute obviamente ilegiacutetima jaacute que da proposiccedilatildeo que

descreve o fato psicoloacutegico de que tendemos a rejeitar aquilo que contraria

nossas expectativas e a aceitar aquilo a que estamos acostumados natildeo se

segue o princiacutepio metodoloacutegico de que devemos ser mais exigentes em

relaccedilatildeo agraves evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que

contrariam nossas expectativas e menos exigentes em relaccedilatildeo agraves

evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que natildeo contrariam

nossas expectativas Mais importante que isso esta interpretaccedilatildeo

independentemente da sua origem natildeo eacute aceitaacutevel uma vez que se de fato

estamos naturalmente precavidos em relaccedilatildeo agraves alegaccedilotildees que

consideramos extraordinaacuterias nesse sentido psicoloacutegico do termo

ldquoextraordinaacuteriordquo o mais correto do ponto de vista metodoloacutegico seria

requerermos evidecircncias mais robustas justamente em relaccedilatildeo agraves

alegaccedilotildees que natildeo consideramos extraodinaacuterias

Outra possiacutevel leitura psicologista do Princiacutepio de Sagan resultaria de

uma interpretaccedilatildeo em que ambas as ocorrecircncias do termo

ldquoextraordinaacuteriasrdquo teriam a mesma acepccedilatildeo psicoloacutegica caso em que ele

assumiria a seguinte forma

176 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas

requerem evidecircncias igualmente contraacuterias as nossas expectativas

Em primeiro lugar cumpre observar que se o caraacuteter surpreendente

de uma evidecircncia for definido pelos seus efeitos isto eacute pelo caraacuteter

surpreendente daquilo que ela evidencia o aforismo natildeo passa de um

truiacutesmo pois nesse caso qualquer evidecircncia em favor de uma alegaccedilatildeo

que contrariasse nossas expectativas seria por definiccedilatildeo uma evidecircncia

contraacuteria as nossas expectativas Mais importante que isso por natildeo se

tratar de uma trivialidade evidecircncias cientiacuteficas possuem um caraacuteter

peculiar que deriva do fato de que as explicaccedilotildees cientiacuteficas operam por

meio de teorias Em razatildeo dessa dependecircncia muacutetua que existe entre as

teorias cientiacuteficas e as evidecircncias cientiacuteficas uma evidecircncia cientiacutefica

nunca deve ser considerada de modo independente Daiacute que mesmo os

eventos mais corriqueiros e ateacute mesmo banais aos olhos do cientista isto

eacute quando examinados a partir de um refencial teoacuterico particular possam

adquirir um significado surpreendente Lembro ainda hoje do espanto que

senti quando li pela primeira vez sobre o Paradoxo da Noite Escura8 Este

famoso paradoxo trata das implicaccedilotildees cosmoloacutegicas da escuridatildeo

noturna Ao menos para a maioria de noacutes eacute difiacutecil encontrar algo mais

banal do que a escuridatildeo noturna9 e no entanto Johannes Kepler

considerou justamente a escuridatildeo da noite como sendo uma evidecircncia da

finitude espacial do Universo

Em linhas gerais o raciociacutenio de Kepler foi o seguinte suponha que

as estrelas estejam distribuiacutedas regularmente e que o Universo seja

espacialmente infinito Para um observador em qualquer ponto deste

espaccedilo infinito haacute uma esfera com centro nele cujo volume aumenta com

o quadrado do seu raio Portanto agrave medida que nos dintanciamos deste

observador hipoteacutetico o nuacutemero de estrelas que intercepta o seu raio de

visatildeo cresce com o quadrado da distacircncia Como resultado natildeo importa

8 Tambeacutem conhecido como Paradoxo de Olbers

9 Os Esquimoacutes sabem muito bem que nem toda noite eacute escura

Ricardo S Rabenschlag | 177

para onde ele olhe haveraacute sempre uma estrela interceptando o seu raio de

visatildeo Portanto se nosso Universo fosse espacialmente infinto e estivesse

repleto de estrelas regularmente distribuiacutedas como defendia Giordano

Bruno o ceacuteu noturno deveria ser tatildeo brilhante quanto a superfiacutecie de uma

estrela meacutedia Como isso natildeo ocorre a conclusatildeo do argumento eacute falsa o

que implica que ao menos uma das premissas do argumento eacute igualmente

falsa ou seja ou o Universo eacute espacialmente infinito ou as estrelas natildeo

estatildeo regularmente distribuiacutedas ou ambos Como a distribuiccedilatildeo das

estrelas se mostrava regular Kepler inferiu que o Universo deveria ser

espacialmente finito mostrando que algo tatildeo coriqueiro como a escuridatildeo

da noite pode ser legitimamente tomado como evidecircncia de uma alegaccedilatildeo

absolutamente extraodinaacuteria10

Este eacute apenas um entre muitos exemplos em que eventos ou fatos

nada extraordinaacuterios serviram de evidecircncia para afirmaccedilotildees

extraordinaacuterias o que mostra claramente a inadequaccedilatildeo desta segunda

interpretaccedilatildeo psicoloacutegica do Princiacutepio de Sagan Outro que me traz boas

recordaccedilotildees eacute o do chuvisco que aparecia nos antigos televisores de tubo

quando as emissoras de TV encerravam a sua programaccedilatildeo diaacuteria e que

hoje sabemos ser causado pela Radiaccedilatildeo Coacutesmica de Fundo que teve

origem no Big Bang Em outras palavras uma evidecircncia de que o Universo

teve iniacutecio haacute bilhotildees de anos numa ldquogrande explosatildeordquo estava agrave vista de

todos sem que ningueacutem suspeitasse

Em resumo interpretado psicologicamente o tatildeo celebrado Princiacutepio

de Sagan ou eacute trivial ou deriva de uma concepccedilatildeo profundamente

equivocada acerca da natureza do conhecimento cientiacutefico moderno Em

ambos os casos o Princiacutepio de Sagan natildeo deve ser considerado vaacutelido e

seu uso como guia para a investigaccedilatildeo cientiacutefica tem consequecircncias

desastrosas para ciecircncia

10 A soluccedilatildeo atualmente aceita para o paradoxo eacute diferente daquela proposta por Kepler Atualmente o paradoxo eacute resolvido com base em duas descobertas a) que o Universo tem uma idade finita e b) a luz tem uma velocidade finita a luz das estrelas mais distantes ainda natildeo teve tempo de chegar ateacute noacutes Portanto o Universo que enxergamos eacute limitado no espaccedilo por ser finito no tempo A escuridatildeo da noite eacute uma prova de que o Universo teve um iniacutecio

178 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Mas natildeo haveria alguma interpretaccedilatildeo ao mesmo tempo natildeo trivial e

natildeo psicologista do Princiacutepio de Sagan No intuito de nos livrarmos de

uma leitura pscicologista da formulaccedilatildeo tornada ceacutelebre por Carl Sagan

poderiacuteamos reformular o Princiacutepio de Sagan como expressando a ideia de

que deve haver uma proporcionalidade entre a forccedila das nossas alegaccedilotildees

e a forccedila das evidecircncias que apresentamos em favor delas Uma maneira

de expressar isso poderia ser a seguinte

Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees extraordinariamente fortes requerem

evidecircncias extraordinariamente fortes

Com base nessa reinterpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan poder-se-ia

alegar por exemplo que acreditar na existecircncia de discos voadores com

base apenas no fato de que algueacutem afirma ter visto um disco voador seria

uma violaccedilatildeo do princiacutepio jaacute que a forccedila da alegaccedilatildeo medida pelo impacto

que ela tem sobre o conhecimento cientiacutefico exigiria evidecircncias mais

robustas como por exemplo a exibiccedilatildeo dos destroccedilos do disco voador que

a pessoa alega ter visto e natildeo o simples relato de uma testemunha

afirmando ter visto um disco metaacutelico voando em baixa altitude No

primeiro caso tudo o que temos eacute o relato do avistamento de um OVNI

(Objeto Voador Natildeo Indentificado) no segundo temos uma evidecircncia

material a saber o proacuteprio objeto avistado o que nos permite uma

avaliccedilatildeo direta e possiacutevel identificaccedilatildeo do objeto que iraacute ou natildeo confirmar

a afirmaccedilatildeo de que o objeto avistado era uma nave alieniacutegena O mais

provaacutevel eacute que a pilha de destroccedilos por mais extraordinaacuteria que pareccedila

aos olhos de um leigo seja imediatamente reconhecida por um especialista

como sendo os restos de um balatildeo meteoroloacutegico ou algum outro aparato

tecnoloacutegico humano como de fato aconteceu no famoso incidente ocorrido

em Roswell Novo Meacutexico em 1947

Mas seraacute que esta reformulaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan tem o mesmo

sentido que os autoproclamados pensadores criacuteticos conferem a sua

Ricardo S Rabenschlag | 179

formulaccedilatildeo original E ainda que a aceitemos como uma traduccedilatildeo razoaacutevel

do Princiacutepio de Sagan o sentido da expressatildeo ldquoextraordinariamete fortesrdquo

que aparece nas expressotildees ldquoalegaccedilotildees extraordinariamente fortesrdquo e

ldquoevidecircncias extraordinariamente fortesrdquo eacute o mesmo em ambos os casos E

ainda que se diga que elas tecircm o mesmo sentido eacute mesmo verdadeiro que

toda alegaccedilatildeo que tem grande impacto em nossa atual visatildeo cientiacutefica do

mundo requer evidecircncias igualmente extraordinaacuterias Natildeo poderia haver

evidecircncias absolutamente conformes agrave visatildeo cientiacutefica do mundo e que natildeo

obstante isso seriam uma soacutelida evidecircncia para alegaccedilotildees extraodinaacuterias

como a finitude espacial do Universo A forccedila de uma evidecircncia eacute medida

pelas suas consequecircncias ou haacute um criteacuterio intriacutenseco como sugere a

comparaccedilatildeo entre evidecircncias testemunhais e materiais Alegaccedilotildees

conformes a nossa visatildeo de mundo podem ser aceitas com base apenas em

testemunhos ao passo que as que contrariam o que acreditamos saber

requerem evidecircncias materiais Nesse uacuteltimo caso que admitimos ser o

mais promissor qual a relevacircncia da forccedila de nossas alegaccedilotildees no que diz

respeito ao tipo de evidecircncia que devemos exigir para aceitaacute-la

Uma vez mais nos vemos em meio a uma dupla confusatildeo De um lado

natildeo temos clareza sobre o significado do enunciado do princiacutepio de outro

natildeo temos uma concepccedilatildeo clara sobre e natureza do conhecimneto

cientiacutefico Visando sanar estes problemas poderiacuteamos interpretar a ideia de

forccedila de uma alegaccedilatildeo ou de uma evidecircncia como uma referecircncia agravequilo que

poderiacuteamos chamar de estatuto epistecircmico de uma proposiccedilatildeo definido

como o grau de confiabilidade de uma proposiccedilatildeo Assim compreendido o

Princiacutepio de Sagan seria um corolaacuterio da ideia de que o estatuto epistecircmico

das premissas de um argumento deve ser igual ao estatuto epistecircmico da

sua conclusatildeo e poderia ser enunciado do seguinte modo

Interpretaccedilatildeo espistecircmica alegaccedilotildees com alto grau de confiabilidade

requerem evidecircncias com alto grau de confiabilidade

Reneacute Descartes certamente concordaria com essa interpretaccedilatildeo do

Princiacutepio de Sagan afinal toda sua filosofia estaacute baseada na ideia de que

180 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

somente evidecircncias indubitaacuteveis podem servir de base para afirmaccedilotildees

indubitaacuteveis11 Natildeo foi outra a razatildeo que o levou numa das passagens mais

memoraacuteveis da histoacuteria da filosofia12 a apresentar o Cogito como a uacutenica

saiacuteda para o que ele chamou de duacutevida hiperboacutelica e tomaacute-lo como o uacutenico

fundamento aceitaacutevel para a filosofia Ainda que Descartes esteja longe de

ser um iacutecone dos ldquopensadores criacuteticosrdquo um projeto fundacionista anaacutelogo

ao cartesiano estaacute na raiz do Positivismo Loacutegico uma das fontes de

inspiraccedilatildeo da grande maioria dos autoproclamados pensadores criacuteticos

Rudolf Carnap o maior expoente desta corrente neopositivista buscou

ancorar todo o conhecimento humano no que ele chamou de enunciados

protocolares descritos por ele como sendo registros em primeira pessoa

de dados sensiacuteveis elementares (sense data) que estariam na base de toda

a experiecircncia humana

O problema com essa interpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan eacute que

embora a nova formulaccedilatildeo do princiacutepio seja mais promissora ela

obviamnete natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo plausiacutevel do Princiacutepio de Sagan jaacute

que o grau de confiabilidade de alegaccedilotildees extraordinaacuterias natildeo eacute alto e sim

extremamente baixo daiacute que a maioria de noacutes esteja naturalmente

precavido contra elas

Uma terceira interpretaccedilatildeo epistecircmica do Princiacutepio de Sagan resulta

de uma leitura indutivista humeana da ideia de estatuto epistecircmico de uma

proposiccedilatildeo A ciecircncia segundo David Hume eacute um empreendimento

essencialmente indutivo e provisoacuterio e sua grandeza reside precisamente

no fato de que a ciecircncia natildeo busca verdades absolutas Do fato de que todo

conhecimento eacute provisoacuterio e por conseguinte dubitaacutevel natildeo se segue

contudo que nossas crenccedilas tenham todas elas o mesmo grau de

confiabilidade Obviamente uma afirmaccedilatildeo que jaacute tenha sido refutada natildeo

eacute nem um pouco confiaacutevel Mas o que dizer das que ainda natildeo foram

refutadas Segundo David Hume o grau de confiabilidade de uma crenccedila

11 No caso do coacutegito a proacutepria afirmaccedilatildeo ou mais precisamente o pensamento que ela expressa eacute evidecircncia da sua veracidade

12 Iniacutecio da Segunda Meditaccedilatildeo das Meditaccedilotildees Metafiacutesicas de Reneacute Descartes

Ricardo S Rabenschlag | 181

eacute proporcional ao nuacutemero de vezes em que ela foi experimentalmente

confirmada Seguindo essa linha de raciociacutenio poder-se-ia interpretar o

Princiacutepio de Sagan como a recomendaccedilatildeo de que afirmaccedilotildees que

contrariem crenccedilas que tenham sobrevivido a inuacutemeras e variadas

tentativas de refutaccedilatildeo e que satildeo nesse sentido extraordinaacuterias devam

ser igualmente submetidas a um longo e variado processo de testes

acumulando assim uma quantidade igualmente extraordinaacuteria de

evidecircncias em seu favor antes de serem consideradas mais confiaacuteveis que

agraves antigas crenccedilas que elas pretendem substituir

Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees que contrariam crenccedilas

corroboradas por uma extraordinaacuteria quantidade de evidecircncias requerem um

nuacutemero igualmente extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis

A longa disputa entre os sistemas ptolomaico e copernicano que

marca o iniacutecio da ciecircncia moderna eacute um bom exemplo de como devemos

ser cautelosos em relaccedilatildeo a afirmaccedilotildees extraordinaacuterias como por

exemplo a afirmaccedilatildeo de que a Terra natildeo estaacute parada no centro do

Universo e sim girando em uma grande velocidade em torno do Sol Tenho

certeza de que a maioria dos Novos Ateus endossaria aliviado esta leitura

indutivista do Princiacutepio de Saganrdquo e natildeo ficaria de modo algum surpreso

se Richard Dawkins acrescentasse de forma desdenhosa a observaccedilatildeo de

que era exatamente isso que ele estava querendo dizer o tempo todo

embora nunca o tivesse feito por achar oacutebvio demais Infelizmente as

coisas natildeo satildeo tatildeo simples quanto parecem a um leigo em Espistemologia

da Ciecircncia como Richard Dawkins Em primeiro lugar mesmo nos casos

mais promissores como o da disputa entre geocentrismo e

heliocentrismo a interpretaccedilatildeo mencionada acima apresenta seacuterios

problemas jaacute que o que pocircs fim a disputa em favor do heliocentrismo natildeo

foi um nuacutemero extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis e sim a criaccedilatildeo da

primeira teoria fiacutesica moderna capaz de explicar de maneira unificada

fenocircmenos corriqueiros como o movimento dos corpos terrestres e o

movimento dos corpos celestes

182 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Uma vez mais o problema aqui eacute o de como evitar a confusatildeo entre

o loacutegico e o psicoloacutegico Natildeo resta duacutevida de que a repeticcedilatildeo de uma mesma

ocorrecircncia aumente nossa confianccedila em relaccedilatildeo ao enunciado universal

que a descreve a questatildeo contudo eacute saber se ela aumenta o nosso

conhecimento e natildeo as nossas expectativas Eacute provaacutevel que um iacutempeto

indutivista esteja na base de parte importante do apoio ao Princiacutepio de

Sagan embora natildeo devamos esquecer que boa parte dos seus apoiadores

em especial os autoproclamados pensadores criacuteticos tem imensa adoraccedilatildeo

pelo racionalismo popperiano e que Karl Popper considerava ilegiacutetima

qualquer tentativa de justificar indutivamente uma crenccedila De qualquer

modo tanto o fundacionismo como o indutivismo satildeo extremamente

problemaacuteticos razatildeo pela qual foram haacute muito tempo descartados e natildeo

haacute hoje muitos especialistas que defendam quer a ideia de um fundamento

inabalaacutevel para as ciecircncias quer a ideia de uma loacutegica indutiva

Pode-se contra-argumentar dizendo que natildeo haacute verdades ou

conhecimento em sentido absoluto que natildeo haacute um mundo ou uma realidade

independente do sujeito que tudo eacute relativo provisoacuterio e incerto e que

portanto uma loacutegica indutiva eacute tatildeo boa quanto uma dedutiva Mas

obviamente que se adotarmos esta estrateacutegia de defesa o problema assume

uma feiccedilatildeo ainda mais sombria pois a menos que ser possa conciliar esta

concepccedilatildeo relativista com a objetividade cientiacutefica natildeo haacute como evitar que o

ceticismo moderado que caracteriza a atitude cientiacutefica se transforme num

ceticismo radical e portanto numa nova e poderosa forma de irracionalismo

Se o Princiacutepio de Sagan eacute assim tatildeo inadequado por que ele eacute

considerado por muitos como uma das regras de ouro do pensamento

criacutetico Como dissemos anteriormente o enunciado do princiacutepio eacute vago

deliberadamente vago a ponto de comportar interpretaccedilotildees muito diferentes

e ateacute mesmo antagocircnicas o que certamente contribui para o seu sucesso Haacute

contudo uma outra razatildeo que julgamos ser ainda mais importante a saber

Ricardo S Rabenschlag | 183

que ele natildeo eacute uma ferramenta cientiacutefica e sim ideoloacutegica Ele natildeo eacute utilizado

por cientistas em suas investigaccedilotildees e sim por ativistas que podem ou natildeo

ser cientistas em sua luta contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo

O combate agraves pseudociecircncias eacute um combate justo e necessaacuterio e a

atitude criacutetica tem um papel fundamental nesse processo natildeo temos

duacutevida quanto a isso Nossa criacutetica natildeo busca desencorajar o combate agraves

pseudociecircncias ela busca apenas mostrar por um lado que a ciecircncia natildeo

estaacute inume ao irriacionalismo e por outro que o irracionalismo na ciecircncia

se manifesta sob a forma de pseudofilosofias e natildeo de pseudociecircncias

Evidentemente esta natildeo eacute uma tarefa faacutecil e este pequeno capiacutetulo natildeo

esgota de forma alguma o assunto Ainda assim espero que esta breve

criacutetica do tatildeo aclamado Princiacutepio de Sagan tenha despertado a atenccedilatildeo dos

leitores para a importacircncia de uma criacutetica do Pensamento Criacutetico13

Referecircncias

CARNAP R The Logical Structure of the World Open Court New York 2003

DAWKINS R The God Delusion Transworld Pub London 2016

DENNETT D Breaking the Spell Penguim London 2007

DESCARTES R Meacuteditations Meacutetaphysiques Nabu Press Paris 2014

HARRIS S The End of Faith WW Norton London 2005

HITCHENS C God Is Not Great Atlantic Books London 2008

HUME D On Miracles Open Court London 1985

POPPER K Conjectures and Refutations Routledge New York 2002

SAGAN C Cosmos Ballantine Books New York 2013

13 Talvez seja o caso de cunharmos a expressatildeo ldquoNovo Pensamento Criacuteticordquo a exemplo do que se fez em relaccedilatildeo aos Novos Ateus seja para reforccedilar o viacutenculo entre as duas correntes seja para diferenciar este Novo Pensamento Criacutetico da Filosofia Criacutetica de Kant No presente texto optamos por usar a expressatildeo empregada na literatura existente

11

A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo

Sagid Salles 1

Introduccedilatildeo

Haacute pelo menos duas coisas que tornam o fenocircmeno da vagueza

interessante Primeiro a vagueza estaacute espalhada por toda a linguagem

natural Uma parte significativa das expressotildees de nossa linguagem satildeo

vagas e podemos encontrar a vagueza em expressotildees de diferentes

categorias loacutegicas como termos singulares predicados e quantificadores

Por razotildees de simplicidade contudo ao longo deste artigo considero

apenas o caso dos predicados vagos Segundo o fenocircmeno da vagueza estaacute

por traacutes de um difiacutecil paradoxo conhecido como Paradoxo Sorites

Atualmente haacute muitas tentativas de explicar esse fenocircmeno e resolver o

Sorites sendo uma delas a Teoria Trivalente da Vagueza Essa teoria eacute

interessante natildeo apenas porque fornece uma explicaccedilatildeo elegante da

vagueza acompanhada de uma soluccedilatildeo engenhosa para o paradoxo em

questatildeo mas tambeacutem porque serve de base para a compreensatildeo de outras

teorias claacutessicas da vagueza Tanto o Gradualismo como o

Supervalorativismo por exemplo incorporam parte significativa de suas

ideias centrais A despeito disso existem alguns seacuterios obstaacuteculos para a

Teoria Trivalente Acredito que o principal deles eacute que ela falha em

satisfazer pelo menos um dos trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria

1 Sagid Salles eacute graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto Mestre e Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da UFRJ com sanduiacuteche realizado em University of Miami Atualmente eacute professor substituto de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (E-mail sagidsallesgmailcom)

Sagid Salles | 185

ideal da vagueza o criteacuterio da precisatildeo Meu objetivo eacute apresentar essa

teoria e mostrar como essa dificuldade surge para ela

O artigo seraacute dividido em quatro seccedilotildees Na primeira apresento o

problema da vagueza ressaltando os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma

teoria ideal o criteacuterio do Sorites o criteacuterio da coerecircncia e o criteacuterio da

precisatildeo Na segunda e terceira apresento respectivamente os aspectos

centrais da Teoria Trivalente e uma das soluccedilotildees da mesma para o Sorites

Por fim defendo que apesar de satisfazer os dois primeiros criteacuterios de

adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente falha com respeito ao criteacuterio da precisatildeo

Vagueza Sorites e os Trecircs Criteacuterios de Adequaccedilatildeo

A palavra ldquovaguezardquo eacute usada cotidianamente em diferentes sentidos

mas o interesse filosoacutefico pela vagueza eacute direcionado a um fenocircmeno

especiacutefico O que mais chama a atenccedilatildeo sobre esse fenocircmeno eacute que ele estaacute

por traacutes do que eacute conhecido como Paradoxo Sorites Esse paradoxo foi

descoberto por Eubulides de Mileto ainda no seacuteculo IV ac mas eacute

argumentaacutevel que somente recentemente (talvez nos uacuteltimos 60 ou 70

anos) ele venha recebendo a atenccedilatildeo que merece Aliaacutes atualmente existe

uma grande variedade de versotildees diferentes do paradoxo (HYDE 2011)

uma delas a versatildeo quantificada seraacute apresentada a seguir

Seja ldquoCrdquo o predicado ldquocarecardquo ldquoardquo um nome arbitraacuterio de pessoas e

deixe os nuacutemeros na direita inferior indicarem o nuacutemero de cabelos que a

tem na cabeccedila Nesse contexto a versatildeo quantificada do Sorites para

ldquocarecardquo pode ser formulada como segue

(SC)

(1) Ca0

(2) foralln (CanrarrCan+1)

_______________

(3) Ca10000

186 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

(SC) parte da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa

com 0 fios de cabelo na cabeccedila eacute careca para a conclusatildeo claramente falsa

de que uma pessoa com 10000 fios de cabelo na cabeccedila tambeacutem eacute careca

A conclusatildeo (3) se segue de (1) e (2) por repetidas aplicaccedilotildees de

Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens

Agora repare que podemos facilmente formular o Sorites na direccedilatildeo

inversa partindo da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa

com 10000 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca para a conclusatildeo

claramente falsa de que uma pessoa com 0 fios tambeacutem natildeo eacute careca

(notSC)

(1) notCa10000

(2)foralln (notCan+1rarrnotCan)

______________

(3) notCa0

A conclusatildeo de (notSC) tambeacutem eacute obtida por repetidas aplicaccedilotildees de

Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens Enquanto argumentos como (SC)

nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute careca argumentos como

(notSC) nos permite mostrar que cada indiviacuteduo natildeo eacute careca Se tomadas

em conjunto os argumentos nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute

careca e natildeo eacute careca ao mesmo tempo Resultado o predicado ldquocarecardquo eacute

incoerente Se isso jaacute nos parece absurdo a coisa fica muito pior quando

lembramos que o mesmo paradoxo pode ser formulado para muitos

outros predicados ldquoaltordquo ldquobaixordquo ldquoricordquo ldquopobrerdquo ldquovivordquo ldquomortordquo

ldquoraacutepidordquo ldquolentordquo ldquomonterdquo etc Em uacuteltima instacircncia aceitar a conclusatildeo

do Sorites implicaria em aceitar que cada um desses predicados eacute

incoerente

A premissa (1) de cada argumento acima eacute claramente verdadeira

enquanto a conclusatildeo se segue de (1) e (2) por regras de inferecircncia que

Sagid Salles | 187

natildeo gostariacuteamos de rejeitar Isso torna (2) a premissa quantificada na

principal suspeita Nesse contexto algueacutem poderia pensar que a soluccedilatildeo

do paradoxo reside na simples negaccedilatildeo da premissa (2) Infelizmente essa

estrateacutegia eacute mais difiacutecil do que parece Suponhamos por exemplo que a

premissa quantificada de (SC) eacute falsa Se esse eacute o caso entatildeo eacute verdade que

notforalln (CanrarrCan+1) Isso eacute logicamente equivalente a Ǝn (Can˄notCan+1) que

diz que haacute um nuacutemero natural n tal que a com n fios de cabelo na cabeccedila

eacute careca e a com n+1 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca O problema eacute

que esse resultado eacute difiacutecil de engolir Para qualquer valor que se atribua a

n a suposiccedilatildeo de que uma pessoa com n fios de cabelo eacute careca e uma

pessoa com n+1 natildeo eacute careca pareceraacute altamente contraintuitiva

O ponto fica mais claro se pensarmos em termos de sequecircncias

Imagine uma sequecircncia como segue

lta0 a1 a2 a5000 a5001 a9998 a9999 a10000gt

Intuitivamente o predicado ldquocarecardquo se aplica a a0 a1 a2 etc e natildeo se

aplica a a10000 a9999 a9998 etc Entretanto natildeo haacute um uacuteltimo caso na

sequecircncia ao qual ldquocarecardquo se aplica seguido por um primeiro caso ao qual

o predicado natildeo se aplica nenhuma linha divisoacuteria eacute traccedilada Se

simplesmente negarmos a premissa quantificada aceitando que Ǝn

(Can˄notCan+1) teremos de assumir que o predicado ldquocarecardquo estabelece

uma linha divisoacuteria desse tipo2 Isso implicaria que ldquocarecardquo eacute um

predicado preciso e portanto natildeo vago O mesmo vale para todos os

predicados vagos Na verdade ser vago e ser preciso satildeo propriedades

incompatiacuteveis de modo que nenhuma expressatildeo linguiacutestica pode ser vaga

e precisa ao mesmo tempo

2 Iago Bozza chamou minha atenccedilatildeo para o fato de que aceitar que Ǝn (CanʌnotCan+1) natildeo implica que haja um par de itens na sequecircncia que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo careca e o primeiro natildeo careca Considere uma analogia com caso dos nuacutemeros naturais Todos podemos aceitar que existe um nuacutemero n tal que n eacute iacutempar e n+1 natildeo eacute iacutempar Disso natildeo se segue que haacute um par de itens adjacentes na sequecircncia dos nuacutemeros naturais que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo iacutempar e o primeiro natildeo iacutempar da mesma Quando falamos que tal divisatildeo entre os carecas e os natildeo carecas se segue de Ǝn (CanʌnotCan+1) estamos adicionalmente assumindo que certas restriccedilotildees oacutebvias para a aplicaccedilatildeo do predicado ldquocarecardquo estatildeo em jogo Sobre tais restriccedilotildees veja-se GraffFara (2000 p 57)

188 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Por fim repare que essa breve apresentaccedilatildeo do Paradoxo Sorites nos

sugere trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria ideal da vagueza Satildeo

eles

a) O criteacuterio do Sorites resolver o Paradoxo Sorites

b) O criteacuterio da coerecircncia natildeo implicar que predicados vagos satildeo incoerentes

c) O criteacuterio da precisatildeo natildeo implicar que predicados vagos satildeo precisos

Ao alegar que (a)-(c) satildeo trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria

ideal da vagueza quero dizer que a falha em satisfazer algum deles deve

ser interpretado como um defeito para qualquer teoria da vagueza Noacutes

queremos uma teoria da vagueza que explique os predicados vagos de

forma a resolver o Sorites mas sem implicar que eles satildeo incoerentes ou

precisos (Uma defesa desses criteacuterios pode ser encontrada em Salles

2016) Eacute dentro desse pano de fundo que a Teoria Trivalente seraacute avaliada

Teoria Trivalente da Vagueza

Por ldquoTeoria Trivalente da Vaguezardquo entendo uma famiacutelia de teorias

que explicam a vagueza em termos de um terceiro valor de verdade ou

uma lacuna entre os dois valores claacutessicos verdadeiro e falso Apesar de

requererem uma loacutegica trivalente nem toda teoria da vagueza que faz uso

dessa loacutegica eacute uma instacircncia da Teoria Trivalente da Vagueza O traccedilo

distintivo dessas teorias eacute colocar o terceiro valorlacuna no centro da

explicaccedilatildeo das expressotildees vagas

A motivaccedilatildeo de base para essa teoria eacute a intuiccedilatildeo dos casos de

fronteira os predicados vagos admitem casos de fronteira casos a respeito

dos quais sua aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara A existecircncia desses casos serve como

um indiacutecio a favor da Teoria Trivalente Considere a frase (1)

Sagid Salles | 189

1 Joatildeo eacute careca

Se Joatildeo tem 0 fios de cabelo em sua cabeccedila entatildeo (1) expressa uma

proposiccedilatildeo verdadeira se Joatildeo tem todo o couro cabeludo coberto por

cabelo entatildeo (1) expressa uma proposiccedilatildeo falsa Mas o que dizer do caso

em que ele tem 85 do couro cabeludo coberto por cabelo (se quiser

pense em uma porcentagem que ache mais favoraacutevel ao exemplo)

Intuitivamente seria incorreto dizer que (1) eacute verdadeira nesse caso assim

como seria incorreto dizer que eacute falsa Uma explicaccedilatildeo para isso eacute que de

fato natildeo eacute verdadeira e de fato natildeo eacute falsa (1) eacute nem verdadeira nem falsa

ou como prefere Tye (1994) indefinida

Haacute duas interpretaccedilotildees de indefinido Pode-se interpretaacute-lo como um

terceiro valor de verdade ou como uma lacuna entre o verdadeiro e o falso

A vantagem de interpretaacute-lo como um terceiro valor eacute que fica mais faacutecil

explicar como (1) pode expressar uma proposiccedilatildeo Afinal proposiccedilotildees satildeo

tradicionalmente concebidas como os portadores dos valores de verdade

Por outro lado ficamos com o difiacutecil problema metafiacutesico de explicar o que

eacute esse terceiro valor o indefinido A vantagem da concepccedilatildeo da lacuna eacute

que natildeo carrega esse problema metafiacutesico pois natildeo aceita um terceiro

valor de verdade A desvantagem eacute que natildeo eacute claro como (1) nesse caso

poderia expressar uma proposiccedilatildeo Tanto quanto for possiacutevel manter-me-

ei neutro quanto ao ponto Para simplificar vou falar em uma frase sendo

indefinida e o leitor pode interpretar isso como significando que expressa

uma proposiccedilatildeo com o valor indefinido ou que falha em expressar uma

proposiccedilatildeo

A pergunta mais importante eacute como o apelo a frases indefinidas nos

leva a uma teoria dos predicados vagos A resposta se revela ao olharmos

para as expressotildees que constituem a frase Tradicionalmente entende-se

que uma frase como (1) eacute verdadeira se o objeto referido por ldquoJoatildeordquo

pertence ao conjunto de coisas selecionado pelo predicado ldquoeacute careca e

falsa de outro modo Nessa imagem o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de um

predicado pode ser dividido em duas partes (i) as coisas agraves quais o

190 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

predicado se aplica a sua extensatildeo positiva (ii) as coisas agraves quais o

predicado natildeo se aplica a sua extensatildeo negativa Cada elemento do

domiacutenio pertenceraacute a um ou a outro Se Joatildeo for um elemento da extensatildeo

positiva de ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute verdadeira se for um elemento da

extensatildeo negativa entatildeo eacute falsa natildeo haacute outra opccedilatildeo De acordo com a

Teoria Trivalente os predicados vagos natildeo se encaixam nessa imagem

O problema eacute que os predicados vagos natildeo dividem o seu domiacutenio em

duas partes Eacute verdade que eles tecircm uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo

negativa Mas fosse essa toda a histoacuteria cada frase como (1) seria

verdadeira ou falsa natildeo havendo espaccedilo para o nem verdadeiro nem falso

ou indefinido Para aleacutem da extensatildeo positiva e a extensatildeo negativa de um

predicado vago existe tambeacutem o que eacute chamado de ldquopenumbrardquo A

penumbra eacute formada pelos casos fronteira do predicado aqueles com

relaccedilatildeo aos quais a aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara Se Joatildeo estaacute na penumbra de

ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute indefinida ou nem verdadeira nem falsa

Pode haver divergecircncia sobre se a explicaccedilatildeo para o fato de que os

predicados vagos admitem penumbra eacute linguiacutestica ou metafiacutesica Tye

assume uma concepccedilatildeo metafiacutesica De acordo com ele satildeo os proacuteprios

conjuntos que satildeo vagos e os predicados satildeo vagos apenas porque os

conjuntos satildeo Nesse sentido o conjunto dos carecas eacute tal que para

algumas pessoas eacute indefinido se elas satildeo ou natildeo elementos do conjunto

(TYE 1994 p 195) Tye gosta de expressar isso dizendo que natildeo haacute uma

questatildeo de fato sobre se essas pessoas satildeo ou natildeo elementos do conjunto

dos carecas Predicados vagos satildeo vagos apenas porque satildeo associados a

conjuntos vagos Haacute tambeacutem aqueles que preferem uma explicaccedilatildeo

linguiacutestica para a penumbra Concepccedilotildees linguiacutesticas geralmente se datildeo

em termos das condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo do predicado Pode-se sustentar que

um predicado admite penumbra devido a alguma caracteriacutestica nas suas

condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo De acordo com Soames (1999 p 163) ndash que no

entanto natildeo defende a Teoria Trivalente da Vagueza ndash os predicados que

admitem penumbra tecircm condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida e

condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida Essas condiccedilotildees satildeo mutuamente

Sagid Salles | 191

exclusivas mas natildeo conjuntamente exaustivas Como as condiccedilotildees satildeo

mutuamente exclusivas se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-

sucedida de ldquocarecardquo entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-

sucedida e se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida

entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida Como natildeo

satildeo conjuntamente exaustivas haacute casos que nem satisfazem as condiccedilotildees

de aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem satisfazem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo

mal-sucedida os casos indefinidos Para criacuteticas agrave proacutepria ideia de um

terceiro valorlacuna veja-se Glanzberg (2009) Para os nossos

propoacutesitos contudo natildeo precisamos ir aleacutem do que jaacute fomos

Em resumo os predicados vagos natildeo cortam seu domiacutenio de

aplicaccedilatildeo apenas em uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo negativa Eles

tambeacutem admitem uma penumbra formada pelos casos fronteira do

predicado Eacute isso que explica o suposto fato de algumas frases contendo

predicados vagos serem nem verdadeiras nem falsas Quando a estaacute na

penumbra de ldquoFrdquo ldquoFardquo eacute indefinida A Teoria Trivalente assume que a

propriedade caracteriacutestica dos predicados vagos eacute encaixar-se na descriccedilatildeo

acima

Teoria Trivalente e a Soluccedilatildeo do Sorites

O modo como a Teoria Trivalente da Vagueza resolve o Paradoxo

Sorites depende dos detalhes de cada versatildeo Mais especificamente

depende do tratamento dado aos conectivosquantificadores e da

concepccedilatildeo de validade adotada A introduccedilatildeo de um terceiro valor ndash ou de

uma lacuna entre os dois valores claacutessicos ndash implica na necessidade de

reformular algumas definiccedilotildees Pode-se adotar uma concepccedilatildeo de validade

que nos permita rejeitar a validade do argumento Sorites mas a soluccedilatildeo

mais simples eacute manter a validade como preservaccedilatildeo de verdade e rejeitar

alguma premissa (KEEFE 2000 p104 e 107) Isto pode ser feito olhando

apenas para os conectivos e quantificadores Existem diferentes

interpretaccedilotildees dos conectivos Primeiro podem ser interpretados

192 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

verofuncionalmente (TYE 1994) ou natildeo verofuncionalmente (RICHARD

2009) Segundo mesmo que adotemos uma das duas haveraacute divergecircncia

sobre qual seraacute a interpretaccedilatildeo correta de cada um Natildeo vou entrar em

qualquer discussatildeo deste tipo aqui No que segue assumo a interpretaccedilatildeo

verofuncional de Tye e apresento a sua soluccedilatildeo do paradoxo

Tye (1994 p 194) adota uma das interpretaccedilotildees propostas por Kleene

(1952 p 332-340) dos conectivos

Natildeo eacute difiacutecil ver a motivaccedilatildeo por traacutes de cada tabela escolhida

Quando as frases componentes da frase mais complexa possuem apenas

valores claacutessicos os conectivos funcionam precisamente como funcionam

na leitura claacutessica ndash esse eacute o chamado ldquorequisito de normalidaderdquo (KEEFE

2000 p 86 MACHINA 1976 p 55) Assim as diferenccedilas relevantes

ocorrem apenas quando uma das frases componentes eacute indefinida

A negaccedilatildeo de uma frase indefinida A eacute ela mesma indefinida Por um

lado se notA fosse verdadeira entatildeo A seria falsa e consequentemente natildeo

seria indefinida Por outro lado se notA fosse falsa entatildeo A seria verdadeira

e portanto natildeo seria indefinida Para que uma disjunccedilatildeo seja verdadeira

A B notA AvB A˄B ArarrB

V V F V V V

V I F V I I

V F F V F F

I V I V I V

I I I I I I

I F I I F I

F V V V F V

F I V I F V

F F V F F V

Sagid Salles | 193

basta que uma disjunta seja verdadeira e para que seja falsa basta que

todas as disjuntas sejam falsas Nos outros casos a disjunccedilatildeo eacute indefinida

Uma conjunccedilatildeo eacute verdadeira se todas conjuntas satildeo verdadeiras falsa se

pelo menos uma conjunta eacute falsa e indefinida nos outros casos A

condicional eacute como se espera um caso problemaacutetico A uacutenica motivaccedilatildeo

notada por Tye eacute que ArarrB deve ser equivalente a notAvB Por fim AharrB

pode ser definido como (ArarrB) ˄ (BrarrA)

O quantificador existencial eacute definido como segue ƎxFx eacute verdadeiro

se tem uma instacircncia verdadeira falsa se todas as suas instacircncias satildeo

falsas e indefinida nos outros casos A intuiccedilatildeo por traacutes da definiccedilatildeo eacute que

uma afirmaccedilatildeo existencial seraacute indefinida quando nenhuma instacircncia for

verdadeira e pelo menos algumas forem indefinitas o mesmo que

ocorreria com a disjunccedilatildeo de todas as instacircncias Fa1vFa2vFa3v Fan O

quantificador universal eacute definido como segue forallxFx eacute verdadeira se todas

as suas instacircncias satildeo verdadeiras falsa se alguma instacircncia eacute falsa e

indefinida nos outros casos A ideia aqui eacute que uma afirmaccedilatildeo universal eacute

indefinida apenas quando nenhuma instacircncia eacute falsa e algumas satildeo

indefinidas o mesmo que ocorreria com a conjunccedilatildeo de todas as instacircncias

Fa1˄Fa2˄Fa3˄Fan

Essa leitura dos conectivos nos leva a alguns resultados

contraintuitivos quanto ao valor de verdade de certas frases Por exemplo

intuitivamente toda frase da forma A˄notA eacute falsa e toda frase da forma

AvnotA eacute verdadeira mas na leitura de Tye ambas as intuiccedilotildees estatildeo

erradas Quando A eacute indefinido tanto A˄notA quanto AvnotA seratildeo

indefinidos Tudo que Tye (1994 p 194) consegue reter de nossas

intuiccedilotildees eacute que nenhuma frase da primeira forma seraacute verdadeira (trata-

se de uma quase-contradiccedilatildeo) e nenhuma da segunda forma seraacute falsa

(trata-se de uma quase-tautologia) Agora imagine que Joatildeo eacute mais alto do

que Marcos mas ambos estatildeo na penumbra de ldquoaltordquo Nossa intuiccedilatildeo eacute que

a condicional ldquoSe Marcos eacute alto entatildeo Joatildeo eacute altordquo eacute verdadeira Na leitura

de Tye dos conectivos contudo a condicional seraacute indefinida Exemplos

do tipo podem ser multiplicados (KEEFE 2000 p 96-97 SANTOS 2015

194 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

p 5-6) Por fim problemas similares aparecem para diferentes

interpretaccedilotildees verofuncionais dos conectivos (WILLIAMSON 1994 cap

4)

Em todo caso o que nos interessa aqui eacute como Tye resolve o Paradoxo

Sorites A sua soluccedilatildeo consiste em rejeitar a premissa quantificada sem

com isso aceitar a sua negaccedilatildeo Na versatildeo para ldquocarecardquo a premissa

quantificada era foralln (CanrarrCan+1) Nenhuma instacircncia dessa premissa seraacute

falsa de modo que ela proacutepria natildeo seraacute falsa Por outro lado algumas

instacircncias seratildeo indefinidas dado que teratildeo antecedente e consequente

indefinidos Lembre-se de acordo com a Teoria Trivalente o predicado

ldquocarecardquo admite uma penumbra um conjunto de casos aos quais a sua

aplicaccedilatildeo eacute indefinida Eacute plausiacutevel supor que para algum n tanto Can

quanto Can+1 seratildeo indefinidas e nesse caso a condicional CanrarrCan+1 seraacute

tambeacutem indefinida Ora uma afirmaccedilatildeo universal com nenhuma instacircncia

falsa e algumas indefinidas eacute ela mesma indefinida Logo a premissa

quantificada eacute indefinida Assim Tye consegue rejeitar a premissa

quantificada sem precisar assumir que ela seja falsa e portanto sem

precisar aceitar a sua negaccedilatildeo

Teoria Trivalente e o Criteacuterio da Precisatildeo

Vimos que uma teoria ideal da vagueza satisfaria trecircs criteacuterios

resolver o Paradoxo Sorites natildeo implicar que os predicados vagos satildeo

incoerentes e natildeo implicar que eles satildeo precisos Na seccedilatildeo anterior vimos

que a Teoria Trivalente fornece uma resposta ao Sorites Aleacutem disso estaacute

claro que ela natildeo implica que os predicados vagos satildeo incoerentes Seu

principal problema eacute com o criteacuterio da precisatildeo

Na concepccedilatildeo tradicional o domiacutenio de um predicado eacute dividido em

uma extensatildeo positiva e uma negativa e todo objeto do domiacutenio estaacute ou

em uma ou na outra Supondo que o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo seja

o domiacutenio das pessoas cada pessoa ou estaacute na extensatildeo positiva ou estaacute

na extensatildeo negativa de ldquocarecardquo Isso implica que uma sequecircncia para

Sagid Salles | 195

ldquocarecardquo seria dividida de modo a haver um nuacutemero n tal que uma pessoa

com n fios eacute careca e uma pessoa com n+1 natildeo eacute O resultado pode ser

representado como segue

Extensatildeo Positiva Extensatildeo negativa

|a0 a1 a2 a3 an | an+1 an+2hellip an+m|

Verdadeiro Falso

Fica evidente que na concepccedilatildeo acima ldquocarecardquo eacute um predicado

preciso Existe um uacuteltimo caso ao qual ldquocarecardquo se aplica e um primeiro

caso ao qual natildeo se aplica A Teoria Trivalente evita isto por meio da

postulaccedilatildeo de uma penumbra entre a extensatildeo positiva e a negativa O

resultado pode ser representado como segue

Ext Positiva Penumbra Ext negativa

|a0 a1 an | an+1an+m | an+m+1 an+m+k|

Verdadeiro Indefinido Falso

Esta imagem no entanto natildeo evita o problema da anterior Eacute

verdade que a Teoria Trivalente eacute capaz de separar os casos nos quais a

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo gera uma verdade dos casos nos quais ela gera uma

falsidade Existe um uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo na sequecircncia an e

existe um primeiro caso negativo an+m+1 Entre eles contudo haacute um

conjunto de casos nos quais a aplicaccedilatildeo gera o valorlacuna indefinido

Chamemos-lhes de ldquocasos indefinidosrdquo Nada disso evita a consequecircncia

de que predicados vagos satildeo precisos Na imagem acima o predicado

ldquocarecardquo continua cortando a sequecircncia de forma ciruacutergica A uacutenica

diferenccedila relevante eacute que ao inveacutes de haver apenas uma fronteira ndash a

fronteira entre os casos positivos e negativos ndash agora haacute duas fronteiras a

fronteira positivoindefinido e a fronteira indefinidonegativo O item an eacute

o uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo seu vizinho imediato an+1 eacute o primeiro

caso indefinido Portanto haacute uma fronteira precisa entre os casos positivos

e os casos indefinidos de ldquocarecardquo O item an+m eacute o uacuteltimo caso indefinido

e seu vizinho imediato an+m+1 eacute o primeiro negativo Portanto haacute tambeacutem

uma fronteira precisa entre os casos indefinidos e os negativos de ldquocarecardquo

196 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Comeccedilamos com uma fronteira e terminamos com duas Ao inveacutes de

ldquocarecardquo cortar o seu domiacutenio cirurgicamente em um ponto corta em dois

A Teoria Trivalente natildeo satisfaz o criteacuterio da precisatildeo

O resultado acima eacute que a Teoria Trivalente implica que os

predicados vagos satildeo de fato precisos Assumindo a intuiccedilatildeo de que ser

preciso e ser vago satildeo propriedades incompatiacuteveis o resultado eacute que as

expressotildees aparentemente vagas natildeo satildeo realmente vagas Isso ainda nos

deixaria com o que chamei de ldquoproblema fundacional da precisatildeordquo

(SALLES 2016 p 163) Se os predicados vagos satildeo precisos entatildeo como a

sua extensatildeo eacute determinada Essa pergunta eacute ainda mais difiacutecil de ser

respondida pela Teoria Trivalente do que pela concepccedilatildeo tradicional

Afinal agora temos de explicar como cada uma das duas fronteiras de

ldquocarecardquo por exemplo eacute determinada Nossos usos desse predicado seriam

refinados o bastante para estabelecer um corte entre os casos

positivoindefinidos e outro entre os indefinidonegativos de ldquocarecardquo

No que segue considero duas respostas disponiacuteveis ao defensor da

Teoria Trivalente A primeira sustenta que o erro do argumento acima eacute

supor que todos os objetos do domiacutenio de aplicaccedilatildeo do predicado ou estatildeo

na extensatildeo positiva ou estatildeo na negativa ou estatildeo na penumbra Natildeo se

trata aqui de aumentar ainda mais o nuacutemero de fronteiras Pelo

contraacuterio o ponto eacute questionar que soacute existam aquelas trecircs opccedilotildees sem

no entanto afirmar que existam mais Essa eacute a estrateacutegia de Tye (1994 p

195) para quem devemos assumir o seguinte

bull Os predicados vagos admitem casos positivos indefinidos e negativos e natildeo

existe uma questatildeo de fato acerca de se esses satildeo ou natildeo os uacutenicos casos

A tese acima natildeo afirma que existem mais do que as trecircs opccedilotildees

consideradas Mas ela impede que suponhamos que existam somente as

trecircs Uma vez que o argumento contra a Teoria Trivalente depende dessa

suposiccedilatildeo ele falha

O argumento de Tye a favor dessa tese eacute como segue Considere a

pergunta existem apenas trecircs opccedilotildees Suponha que sim Nesse caso

Sagid Salles | 197

como vimos o predicado ldquocarecardquo eacute preciso Suponha que natildeo Nesse caso

existe ainda uma quarta opccedilatildeo Pode-se entatildeo perguntar satildeo essas quatro

opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo caiacutemos no mesmo problema de antes e

predicados vagos seratildeo de fato precisos Se natildeo entatildeo precisaremos de

uma quinta opccedilatildeo Satildeo as cinco opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo predicados

vagos satildeo precisos Se natildeo entatildeo precisamos de uma sexta opccedilatildeo e assim

por diante Por um lado natildeo eacute verdade que existam apenas trecircs opccedilotildees

pois isso implica que predicados vagos satildeo precisos Por outro natildeo eacute falso

que existam apenas trecircs opccedilotildees pois isso implica em esquisitices

metafiacutesicas (o proacuteprio quarto valor) ou regresso ao infinito Conclusatildeo

natildeo haacute uma questatildeo de fato sobre se existe ou natildeo uma quarta opccedilatildeo Isso

pode ser expresso dizendo-se que eacute em si mesmo indefinido se ou natildeo

existem apenas trecircs opccedilotildees

Keefe (2000 p 121) apresenta uma objeccedilatildeo que me parece decisiva

contra o argumento acima Podemos explicitar o argumento de Tye como

segue

α Natildeo eacute verdadeiro que existem apenas trecircs opccedilotildees

β Natildeo eacute falso que existem apenas trecircs opccedilotildees

γ Logo eacute indefinido se existem apenas trecircs opccedilotildees

Como (γ) se segue de (α) e (β) Suponha por exemplo que existe

uma quarta opccedilatildeo indefinido Nesse caso o maacuteximo que poderiacuteamos

concluir a partir de (α) e (β) eacute que eacute indefinido ou indefinido que existem

apenas trecircs opccedilotildees De fato para que a inferecircncia de (γ) no argumento

acima seja permitida eacute preciso que haja apenas trecircs opccedilotildees verdadeiro

falso e indefinido Para mostrar que eacute indefinido que existem apenas trecircs

opccedilotildees Tye assume justamente que existem apenas trecircs opccedilotildees No fim

das contas Tye assume aquilo que pretende rejeitar

Mark Richard (2009 p 476) sustenta que o erro do argumento contra

a Teoria Trivalente estaacute em assumir que existe um uacuteltimo caso positivo de

ldquocarecardquo e um primeiro caso indefinido A sua resposta passa pelas noccedilotildees

de penumbra e indefinido Primeiro ele adota uma concepccedilatildeo linguiacutestica do

198 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que eacute para um predicado possuir uma penumbra Seguindo Soames um

predicado possui uma penumbra quando haacute objetos que nem satisfazem as

condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo

mal-sucedida3 Se Joatildeo estaacute na penumbra de ldquocarecardquo entatildeo as condiccedilotildees de

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo nada dizem sobre se ele deve ser incluiacutedo na extensatildeo

positiva ou na extensatildeo negativa desse predicado Como as condiccedilotildees de

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo natildeo determinam em qual lado estaacute Joatildeo eacute indefinido

se (1) eacute verdadeira ou falsa Por outras palavras (1) eacute indefinida (Richard

prefere indeterminada) Segundo indefinido natildeo eacute entendido como um

terceiro valor de verdade Nessa concepccedilatildeo soacute existem dois valores de

verdade mas pode estar indefinido qual deles uma frase tem

Agora o argumento procede como segue Uma vez que an+1estaacute na

penumbra de ldquocarecardquo natildeo estaacute definido se ele eacute careca ou natildeo Mas se natildeo

estaacute definido se an+1 eacute careca ou natildeo entatildeo natildeo podemos assumir que aneacute

o uacuteltimo caso de ldquocarecardquo na sequecircncia Por outro lado tambeacutem natildeo

podemos assumir que an natildeo seja o uacuteltimo item careca da sequecircncia Pois

soacute poderiacuteamos assumir isso se estivesse definido que o proacuteximo item an+1

eacute careca Mas isso tambeacutem estaacute indefinido Portanto natildeo haacute um caso que

possamos justificadamente apontar como sendo o uacuteltimo caso positivo de

ldquocarecardquo Um argumento similar nos permitiria mostrar que tambeacutem natildeo

haacute um que possamos apontar como sendo o primeiro caso negativo de

ldquocarecardquo Tatildeo logo entendemos corretamente no que consiste ser

indefinido se um item eacute ou natildeo careca percebemos que ldquocarecardquo natildeo

estabelece fronteiras e portanto natildeo eacute preciso

Natildeo acredito esse argumento evite a violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo

Mesmo aceitando tudo que foi dito continua sendo o caso de ldquocarecardquo

3 Haacute diferenccedilas entre Soames e Richard no que diz respeito ao mecanismo que faz com que um predicado acabe por ter uma penumbra De acordo com Soames isso ocorre porque o predicado (i) tem condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) essas condiccedilotildees satildeo mutuamente exclusivas mas (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas Richard (2009 p 465-467) pensa que essa definiccedilatildeo natildeo eacute boa o bastante para justificar uma lacuna entre os dois valores claacutessicos de verdade propondo uma pequena modificaccedilatildeo De acordo com ele um predicado ldquoFrdquo tem uma penumbra quando (i) tem um conjunto C de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) tem um conjunto Crsquo de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) C e Crsquo satildeo mutuamente exclusivas e (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas

Sagid Salles | 199

cortar o seu domiacutenio de forma precisa em trecircs partes Retorne agrave imagem

acima da divisatildeo tripartida do domiacutenio de ldquocarecardquo O item an eacute o uacuteltimo

para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo se aplica enquanto an+1 eacute o primeiro

para o qual estaacute indefinido Haacute uma fronteira precisa entre os casos

definidos e os indefinidos de ldquocarecardquo Do mesmo modo an+m eacute o ultimo

caso para o qual estaacute indefinido se ldquocarecardquo se aplica ou natildeo e an+m+1 eacute o

primeiro caso para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo natildeo se aplica Haacute uma

fronteira precisa entre os casos indefinidos e os definidos de ldquonatildeo-carecardquo

Novamente temos duas fronteiras precisas onde deveria haver nenhuma

O proacuteprio Richard reconhece essa objeccedilatildeo e apela a uma soluccedilatildeo

epistecircmica para a mesma (2009 p 476-477) Apesar dos predicados vagos

possuiacuterem fronteiras no sentido acima frequentemente natildeo eacute possiacutevel

para noacutes sabermos onde ela se situa Nesse caso natildeo eacute claro se natildeo seria

mais plausiacutevel rejeitar de uma vez por todas a Teoria Trivalente e aceitar

a Teoria Epistecircmica em seu lugar Seja como for essa soluccedilatildeo aceita a

violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo

Conclusatildeo

A principal conclusatildeo deste texto eacute que embora a Teoria Trivalente

satisfaccedila os criteacuterios do Sorites e da coerecircncia tem claros problemas em

satisfazer o criteacuterio da precisatildeo Em todo caso estou convencido de que

satisfazer a todos os trecircs criteacuterios eacute algo dificiacutelimo e que as outras teorias

tradicionais da vagueza (Gradualismo Supervalorativismo Incoerentismo

Epistemicismo etc) tambeacutem falham em satisfazer pelo menos algum deles

Se isso estiver correto fica em aberto a possibilidade de a Teoria Trivalente

ainda ser a nossa melhor opccedilatildeo Afinal nem sempre a melhor opccedilatildeo de que

dispomos eacute a opccedilatildeo ideal Por outro lado se houver uma teoria que satisfaccedila

conjuntamente a todos os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente

estaraacute em desvantagem quanto a mesma Eu de fato penso que exista tal

teoria mas essa eacute uma histoacuteria para outro momento

200 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Referecircncias

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WILLIAMSON T Vagueness Routledge 1994

12

O Leibniz de Deleuze

Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido1

William de Siqueira Piauiacute 2

Introduccedilatildeo

O que gostariacuteamos ao menos de comeccedilar a fazer em nosso mini-curso

eacute semelhante ao que fez Derrida em ldquoCogito e Histoacuteria da Loucurardquo

(Escritura e diferenccedila de 1967) com o trabalho exegeacutetico realizado por

Foucault quando este havia tentado localizar nas Meditaccedilotildees de Descartes

uma recusa ou exclusatildeo criticaacutevel da loucura tratava-se de mostrar que

um especialista em modernidade naquele momento jaacute autor de As

palavras e as coisas (de 1966) podia natildeo ter compreendido corretamente

o texto cartesiano acusaccedilatildeo grave e que por isso exigia natildeo soacute um novo

trabalho exegeacutetico do texto em questatildeo mas tambeacutem a explicitaccedilatildeo dos

pontos mais importantes e o centro da argumentaccedilatildeo da hipoacutetese

interpretativa a ser criticada3 Assim em termos comparativos o que

pretendemos mostrar eacute quais seriam os pontos principais e mesmo o

1 Texto-aula do minicurso que de iniacutecio tinha o nome O Leibniz de Deleuze problemas de exegese ministrado no IV Encontro Linguagem e Cogniccedilatildeo realizado junto agrave 8ordf Bienal Internacional do Livro de Alagoas em outubro de 2017 texto que com algumas alteraccedilotildees serviu de base para a palestra Deleuze e a noccedilatildeo leibniziana de sujeito apresentada no III Congresso Ibero-americano Leibniz realizado na Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Curitiba em novembro de 2017 palestra que foi um desenvolvimento das hipoacuteteses interpretativas que levantamos no V Encontro do Grupo Subjetividade no Pensamento Contemporacircneo realizado em junho de 2017 na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

2 Professor do Departamento de Filosofia (DFL) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) E-mail piauiuspgmailcom

3 E nos parece que Derrida faz o mesmo com Jean-Pierre Vernant em Khora cf por exemplo 1995 p 7

202 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

centro do trabalho exegeacutetico de Deleuze com relaccedilatildeo a Leibniz mostrar

que mesmo um ldquoespecialistardquo do seu quilate pode natildeo ter compreendido

bem a filosofia leibniziana ao fazer uma apropriaccedilatildeo elogiosa poreacutem

equivocada principalmente dos seus conceitos de mocircnada individual ou

substacircncia particular Deus mundo corpo e principalmente ao defender a

necessidade de certo deslocamento que corroboraria a hipoacutetese que

Leibniz teria ido muito longe naquilo que o francecircs compreendia como

gecircnese estaacutetica ontoloacutegica etapa fundamental de sua Loacutegica do sentido

obra que seraacute nosso principal ponto de partida Do nosso ponto de vista eacute

o que estaacute em jogo principalmente no seguinte trecho de sua 16ordf seacuterie

Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada

mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente

compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia dos

predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo expresso

natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas mocircnadas como

a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos verdade entretanto

que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas [ou seja Deus criou natildeo

exatamente Adatildeo-pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou] e [tambeacutem eacute

verdade] que o expresso natildeo se confunde com sua expressatildeo mas insiste ou

subsiste [] Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na

filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na mocircnada

expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo expresso e

esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo

as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma

loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e

da verdade Leibniz foi muito longe nesta primeira etapa da gecircnese [de um

certo campo transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades

entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentais o indiviacuteduo

constituiacutedo como centro de envolvimento como envolvendo singularidades

em um mundo e sobre seu corpo (DELEUZE 2003 p 114-5 grifo nosso)

Do nosso ponto de vista natildeo eacute necessaacuterio afirmar o deslocamento

defendido por Deleuze que corroboraria a obrigatoriedade do

encadeamento de I a III e natildeo do seu contraacuterio Em nossa opiniatildeo a

apropriaccedilatildeo equivocada da filosofia leibniziana fica mais evidente

William de Siqueira Piauiacute | 203

especialmente em parte do trabalho exegeacutetico que Deleuze faz do Discurso

de metafiacutesica em associaccedilatildeo com a Correspondecircncia de Leibniz e de

Arnauld dos sect408 sect409 e sect414 da Teodiceia na menccedilatildeo natildeo explicitada

de parte do sect47 da quinta carta da Correspondecircncia Leibniz Clarke ndash

que faz a base da noccedilatildeo de coexistecircncia ndash e inclusive no alcance que supocircs

do texto ldquoSobre o meacutetodo da universalidaderdquo ndash o que seraacute mantido em A

dobra ndash ao mencionar um suposto uso geral que Leibniz faria da noccedilatildeo de

ldquosigno ambiacuteguordquo e principalmente para defender que por conta de seu

antigeneralismo o alematildeo forneceria as bases para pensarmos um ldquocampo

transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades

entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentaisrdquo Para noacutes

Deleuze teria criado dado o uso que supocircs dos atributos verbais uma

ficccedilatildeo falsa a la Lorenzo Valha que se sobrepotildee ao que de fato eacute afirmado

no final da Teodiceia ndash talvez por ter decidido parar em seu sect408 ou pela

excessiva importacircncia que conferiu a uma parte de seu sect414 Tudo

apontando para uma aproximaccedilatildeo excessiva entre Leibniz e Newton

inclusive a partir de certa caracterizaccedilatildeo de um mundo expresso feito de

relaccedilotildees diferenciais e de singularidades adjacentes que acabariam por

conduzir a uma dinacircmica sem causa proacutexima

Quanto aos motivos que nos levam a rever a leitura de Deleuze jaacute haacute

tantos anos publicada e criticada temos que dizer que eles satildeo de caraacuteter

regional recentemente em 2015 vimos publicado no Brasil a traduccedilatildeo do

livro de Alain Badiou A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX que

conteacutem um capiacutetulo de tiacutetulo ldquoGilles Deleuze Sobre A dobra Leibniz e o

barrocordquo e a publicaccedilatildeo em 2016 do excelente artigo de Gonzalo

Montenegro ldquoDeleuze em diaacutelogo com Freacutemont tentativas de ler Leibnizrdquo

tais textos deixam claro que ainda haacute muito que problematizar quanto agraves

interpretaccedilotildees de Deleuze mesmo quanto agrave sua afirmaccedilatildeo que

permanecemos leibnizianos e eacute com esse trabalho que gostariacuteamos de

contribuir voltando especialmente ao texto que serviu de base para A

dobra Mesmo natildeo desconsiderando o ldquobrilhantismordquo ou a ldquogenialidaderdquo

da interpretaccedilatildeo do francecircs ndash o que tenta nos mostrar Badiou ndash para que

204 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

o leitor natildeo se engane quanto ao nosso ponto de vista de fundo fazendo

outros caminhos estamos mais de acordo com grande parte das objeccedilotildees

que Freacutemont fez agrave leitura deleuziana especialmente se tomarmos a Loacutegica

do sentido como ponto de partida inclusive consideramos a pertinecircncia

daquelas objeccedilotildees como o motivo mais forte para a obra A dobra ter

demorado vinte anos para ser confeccionada Para noacutes em termos de

comentaacuterio de obra a leitura de Fremoacutent eacute muito mais bem fundamentada

e corresponde mais apropriadamente com o que o texto leibniziano

permitiria concluir principalmente se natildeo aceitarmos o deslocamento

exigido em a Loacutegica do sentido ou se recusamos a inversatildeo do caminho

argumentativo da Monadologia bases da argumentaccedilatildeo defendida em A

dobra de qualquer modo natildeo nos parece que Gonzalo deixa claro com que

interpretaccedilatildeo estaria mais de acordo Eacute por aiacute portanto que caminharaacute

nossa tentativa de problematizar o trabalho interpretativo feito na Loacutegica

do sentido e que em grande medida prepara todo o trabalho realizado em

A dobra Por fim e em termos da leitura de Badiou mesmo que estejamos

de acordo com a opiniatildeo que A dobra eacute ldquoum livro rarordquo ldquoadmiraacutevelrdquo e que

ldquopropotildee-nos uma visatildeo e um pensamento do nosso mundordquo pretendemos

ainda uma vez voltar agraves querelas genealoacutegicas agrave agrimensura dos textos

especialmente daquele que lanccedila as bases da argumentaccedilatildeo defendida em

A dobra quem sabe tal empreitada nos permita recolocar a pergunta o

que vemos como ou pensamos ser o nosso mundo

I Parte ndash Entre Literatura Psicanaacutelise Linguiacutestica e Loacutegica Deleuze

de Loacutegica do Sentido e a Filosofia Contemporacircnea

Como nos diz Pierre Franccedilois Marietti (HUISMAN 2001 p 255) em

geral se costuma distinguir trecircs periacuteodos da filosofia do francecircs Gilles

Deleuze (1925-1995) O primeiro entre 1953 ou 52 e 1968 que

compreenderia a produccedilatildeo de vaacuterios trabalhos sobre filoacutesofos e literatos

o periacuteodo das monografias tais como sobre Hume em Hume sua vida e

sua obra de 1952 e em Empirismo e subjetividade de 1953 sobre

William de Siqueira Piauiacute | 205

Nietzsche em Nietzsche e a filosofia de 1962 ou simplesmente Nietzsche

de 1965 sobre Proust em Proust e os signos de 1964 sobre Bergson em

Bergsonismo de 1966 sobre Espinosa em Espinosa ou o problema da

expressatildeo de 1968 ano que marcaria o final deste periacuteodo O segundo

periacuteodo 1968-1972 teria iniacutecio com as produccedilotildees mais autocircnomas e

propriamente filosoacuteficas de Deleuze tais como os volumosos Diferenccedila e

repeticcedilatildeo de 1968 e Loacutegica do sentido de 1969 Mas eacute preciso dizer que

aquele primeiro tipo de produccedilatildeo caracteriacutestico do primeiro periacuteodo natildeo

seraacute abandonado e seratildeo produzidas dentre outras mais duas obras sobre

Espinosa (em 1970 e 1981) a obra Foucault de 1986 e a famosa A dobra

Leibniz e o Barroco de 1988 (publicado quase 20 anos depois de a Loacutegica

do sentido e que foi o resultado de aulas dadas nos anos 80 86 e 87)

Tambeacutem nesse periacuteodo se intensificaratildeo seus estudos sobre psicanaacutelise e

literatura isto eacute a produccedilatildeo das obras escritas em parceria com o

psicanalista Feacutelix Guattari (1930-1992) tais como O anti-Eacutedipo e mesmo

Kafka por uma literatura menor ambas de 1972 o primeiro estudo

marca o iniacutecio do que se costuma chamar de a grande ruptura que

certamente faz o pano de fundo de obras como O que eacute filosofia jaacute de

1991 e Criacutetica e Cliacutenica de 1997 este uacuteltimo publicado jaacute dois anos depois

da morte de Deleuze

Dito isso e como jaacute o indicamos a obra principal sobre a qual

falaremos neste minicurso seraacute a Loacutegica do sentido praticamente o tema

da nossa III Semana de Filosofia da Linguagem4 obra que foi publicada

em 1969 e que faria parte daquele segundo periacuteodo obra que segundo

Marietti mais que Diferenccedila e repeticcedilatildeo ldquoextrapola em muito os cacircnones

universitaacuterios vigentes na eacutepoca com seu interesse pelas meninasrdquo pelos

poetas ldquoe pelos esquizofrecircnicosrdquo ndash certamente uma referecircncia agrave 13ordf seacuterie

do livro ndash ldquocomrdquo completa ele uma ldquoreflexatildeo profunda sobre a linguagem

e a literaturardquo (HUISMAN 2001 p 255) e acrescentariacuteamos uma reflexatildeo

sobre o estruturalismo e ainda mais especifica sobre a loacutegica a qual

4 Evento ocorrido no DFL-UFS em marccedilo de 2017 e que teve por tema ldquoGilles Deleuze Loacutegica e Sentidordquo onde tambeacutem ministramos um minicurso sobre a Loacutegica do sentido

206 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

acompanharaacute Deleuze certamente ateacute o final de sua vida como o

comprova o capiacutetulo II (Prospectos e Conceitos) da parte II (Filosofia

Ciecircncia Loacutegica e Arte) do livro escrito em parceria com Guattari O que eacute

filosofia

O que extrapola os cacircnones universitaacuterios vigentes certamente natildeo

se associa somente a certas figuras que despertam o interesse de Deleuze

mas o proacuteprio assunto e a forma como ele seraacute exposto ou como nos diz

o proacuteprio tratar-se-aacute da ldquoconstituiccedilatildeo paradoxal da teoria do sentidordquo

teoria que seraacute apresentada em 34 seacuteries (espeacutecie de capiacutetulos) que

receberatildeo mais 2 apecircndices subdivididos em 5 tiacutetulos seacuteries em que

veremos a elaboraccedilatildeo de uma espeacutecie de histoacuteria ldquouma lsquohistoacuteria

embrulhadarsquordquo por fim a obra seraacute apresentada como um ldquoensaio de

romance loacutegico e psicanaliacuteticordquo Falar de loacutegica a partir do gecircnero

romance misturando tal tema com psicanaacutelise e ensaiando compor uma

histoacuteria embrulhada obra em que em muitos de seus capiacutetulos tratam do

tema ldquoparadoxordquo certamente tambeacutem significava extrapolar os cacircnones

universitaacuterios vigentes basta pensarmos em obras sobre loacutegica ou

linguagem como as de Frege (a Conceitografia por exemplo) Russell

(Principia mathematica) Carnap (Da construccedilatildeo loacutegica do mundo)

Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus) Husserl (Investigaccedilotildees

loacutegicas) e mesmo a de Heidegger (Princiacutepios metafiacutesicos da loacutegica) ou

Merleau-Ponty (A prosa do mundo) ou ainda a de Foucault (As palavras

e as coisas uma arqueologia das ciecircncias humanas) e de Derrida

(Gramatologia) para imaginarmos quatildeo grande era aquela extrapolaccedilatildeo

Toda essa extrapolaccedilatildeo ou abandono daquele rigor claacutessico rigor

ainda presente segundo Marietti em Diferenccedila e repeticcedilatildeo jaacute garantiria

um lugar de destaque agrave obra Loacutegica do sentido junto agrave filosofia

contemporacircnea ou dos modernos como quer Badiou o que seraacute

intensificado pela valorizaccedilatildeo de um tipo de filosofia que jaacute tinha aceitado

a ponto de se misturar com elas seja a intromissatildeo da literatura seja a da

psicanaacutelise seja a da linguiacutestica Quanto agrave uacuteltima eacute faacutecil perceber a

importacircncia natildeo costumeiramente afirmada em livros de loacutegica que

William de Siqueira Piauiacute | 207

assumiratildeo as consideraccedilotildees de um Benveniste (de Problemas de

linguiacutestica geral por exemplo) de Jakobson (de dentre outros ldquoO signo

zerordquo) e mesmo que indiretamente de Sausurre (de Curso de linguiacutestica

geral) para a elaboraccedilatildeo das ldquotrecircs relaccedilotildees distintas da proposiccedilatildeo

(designaccedilatildeo ou indicaccedilatildeo manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo) tema da 3ordf seacuterie

Mais do que isto a contribuiccedilatildeo geral da linguiacutestica e estruturalismo seratildeo

enunciadas na 12ordf seacuterie do seguinte modo

Os autores que se costuma atualmente chamar de estruturalistas [tais como

Benveniste e Jakobson] natildeo tecircm talvez outro ponto em comum ndash poreacutem

essencial ndash aleacutem do seguinte o sentido natildeo como aparecircncia mas como efeito

de superfiacutecie e de posiccedilatildeo produzido pela circulaccedilatildeo da casa vazia nas seacuteries

da estrutura [le sens non pas du tout comme apparence mais comme effet de

surface et de position produit par la circulation de la case vide dans les seacuteries

de la structure] ([] significante flutuante valor zero cantonada ou causa

ausente etc) O estruturalismo conscientemente ou natildeo celebra novos

achados de inspiraccedilatildeo estoica ou carrolliana [] (DELEUZE 2003 p 73-4

grifo nosso)

Ora natildeo eacute o elogio de tipo semelhante que veremos em muitos outros

filoacutesofos contemporacircneos Ao menos podemos dizer que eacute o caso

inclusive dito de modo muito semelhante de Derrida em Escritura e

diferenccedila especialmente no capiacutetulo ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo E a noccedilatildeo do

sentido como superfiacutecie certamente marca uma das viradas mais

conscientemente assumidas e feita jaacute no iniacutecio de a Loacutegica do sentido ou

seja na atualidade ou a partir daqueles achados o ldquoProfundo deixou de

ser um elogiordquo (Idem p 16) Eacute preciso pois se aproximar da filosofia da

literatura ou da arte da psicologia ou psicanaacutelise das teorias da linguagem

ou dos estruturalismos que natildeo simulam mais a profundidade e vivem dos

incorporais ou da superfiacutecie Jaacute antecipamos que a obra buscaraacute

justamente tornar mais explicito e de modo talvez mais consciente o que

a literatura produzida por Carroll e a filosofia produzida pelos Estoicos

podem nos inspirar mas voltemos ao que diziacuteamos

208 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Haacute outros dois tipos de produccedilatildeo que jaacute haviam aceitado se

embrulhar na investigaccedilatildeo do sentido associada agrave superfiacutecie Deleuze natildeo

procura em Nietzsche ldquoum profeta da reviravolta nem da superaccedilatildeordquo nem

em Freud ldquoum explorador da profundidade humanardquo pois

Se haacute um autor para o qual a morte de Deus a queda em altura do ideal

asceacutetico natildeo tem nenhuma importacircncia enquanto eacute compensada pelas falsas

profundidades do humano maacute consciecircncia e ressentimento eacute sem duacutevida

Nietzsche [] Natildeo procuramos em Freud um explorador da profundidade

humana e do sentido originaacuterio mas o prodigioso descobridor da maquinaria

do inconsciente[ e vale lembrar que o paradoxo eacute a potecircncia do inconsciente]5

por meio do qual o sentido eacute produzido sempre produzido em funccedilatildeo do natildeo-

senso [] O que haacute de burocraacutetico nestas maacutequinas fantasmas que satildeo os

povos e os poemas [] Basta que nos dissipemos um pouco que saibamos

estar na superfiacutecie que estendamos nossa pele como um tambor para que a

ldquogrande poliacuteticardquo comece [] Fazer circular a casa vazia e fazer falar as

singularidades pre-individuais e natildeo pessoais [faire parler las singulariteacutes preacute-

individuelles non personnelle] [que natildeo satildeo nem da ordem do geral nem da

ordem do individual nem pessoais nem universais] em suma produzir o

sentido eacute a tarefe de hoje (Idem p 75-6)

Nenhuma novidade quanto agrave menccedilatildeo a Nietzsche e Freud geste que

tambeacutem lembraraacute Derrida em ldquoLa diffeacuterancerdquo6 trata-se de autores

fundamentais para pensar filosofia contemporacircnea ao menos a produzida

no continente Mantermo-nos na superfiacutecie naquele algo que insiste em

subsistir deixar de elogiar o profundo compreender ao menos em termos

gerais o que pretendiam os estruturalistas bem como Nietzsche e Freud

fazer comeccedilar a grande poliacutetica (incluiriacuteamos tambeacutem aiacute a justiccedila) e natildeo

apenas relembrar ou comentar mas produzir o sentido satildeo portanto as

tarefas da filosofia contemporacircnea defendida por Deleuze em Loacutegica do

sentido Mas assim como ao seu modo os Estoicos natildeo realizaram tal

tarefa eacute preciso estar atento ao fato que para Deleuze tambeacutem Nietzsche

teria se desviado dela ou como ele mesmo nos dizia

5 Cf op cit p 82

6 Cf Margens da filosofia 1991 p 49

William de Siqueira Piauiacute | 209

Nietzsche esteve primeiramente entre estes [Boehme Schelling etc] disciacutepulo

de Schopenhauer no Nascimento da trageacutedia quando ele faz falar Dioniacutesio

sem fundo opondo-o agrave individuaccedilatildeo divina de Apolo e natildeo menos agrave pessoa

humana de Soacutecrates [] Assim a descoberta de Nietzsche estaacute alhures[ em

outro lugar em outra parte] quando tendo se livrado de Schopenhauer e de

Wagner explora um mundo de singularidades impessoais e preacute-

individuais [un monde de singulariteacutes impersonnelles et preacute-individuelles]

mundo que chama agora de dionisiacuteaco ou da vontade de potecircncia energia livre

e natildeo ligada [] Estranho discurso que devia renovar a filosofia e que

trata o sentido enfim natildeo como predicado [ou] como propriedade mas

como acontecimento [traite le sens enfin non pas comme preacutedicat comme

proprieacuteteacute mais comme eacuteveacutenement] [] Na sua descoberta Nietzsche entreviu

como em um sonho o meio de pisar a [superfiacutecie da] terra de roccedilaacute-la de

danccedilar e de trazer de volta agrave superfiacutecie o que restava dos monstros do fundo e

das figuras do ceacuteu Mas eacute verdade que ele foi tomado por uma ocupaccedilatildeo mais

profunda mais perigosa tambeacutem na sua descoberta ele viu um novo meio de

explorar o fundo [] correndo o risco de ser tragado por essa profundidade

(Idem p 110 grifo nosso)

Em sua avaliaccedilatildeo da filosofia nietzscheana embalado pela renovaccedilatildeo

da filosofia que ela sugeria Deleuze menciona uma espeacutecie de condiccedilatildeo da

tarefa fundamental de sua teoria do sentido ou seja aquele ldquoestranho

discursordquo deve nos conduzir a tratar ldquoo sentido enfim natildeo como

predicadordquo ou ldquocomo propriedade mas como acontecimentordquo para entatildeo

explorarmos ldquoum mundo de singularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo

inspiraccedilatildeo expliacutecita do Nietzsche de Nascimento da trageacutedia mas claro

tambeacutem que a noccedilatildeo freudiana de inconsciente e limite dado seu elemento

paradoxal limite do horizonte de saber (e talvez a grande poliacutetica e a

justiccedila tivessem justamente que assumir tal pressuposto) inclusive recusa

da profundidade das filosofias da intencionalidade satildeo fundamentais aqui

E vale repetir fonte inclusive da estranheza de seu discurso e que parece

ser a principal responsaacutevel pela distacircncia que separa ldquocontinentaisrdquo e

ldquoanaliacuteticosrdquo Nietzsche teria sonhado com o outro aspecto fundamental das

filosofias contemporacircneas que se embaralham com o problema do

significado e sentido o sentido natildeo deve ser tratado como predicado como

210 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

propriedade mas como acontecimento como eacuteveacutenement conceito

fundamental das filosofias e teorias da linguagem contemporacircneas

especialmente as continentais Tambeacutem eacute por causa deste aspecto que se

exigiraacute toda uma nova maneira de pensar a loacutegica do sentido que por isso

mesmo deveraacute ultrapassar aquelas trecircs relaccedilotildees distintas na proposiccedilatildeo

e seraacute especialmente associada agrave primeira a da designaccedilatildeo que Deleuze

formularaacute o problema mais geral de tal loacutegica

[] de que serviria elevarmo-nos da esfera do verdadeiro agrave do sentido se fosse

para encontrar entre o sentido e o natildeo-senso [le sens et non-sens] uma relaccedilatildeo

anaacuteloga agrave do verdadeiro e do falso () A loacutegica dos sentidos vecirc-se

necessariamente determinada a colocar entre sentido e o natildeo-senso um tipo

original de relaccedilatildeo intriacutenseca um modo de co-presenccedila [] (Idem p 71)

Muitos foram os autores que esbarraram neste problema ou seja o

de determinar um novo e original tipo de relaccedilatildeo que permitisse

diferenciar de uma vez por todas os problemas de significaccedilatildeo ou

relacionados diretamente ao verdadeiro e falso dos de sentido e que ao

menos em termo de designaccedilatildeo adotaram ao menos a postura de aceitar

sua complexidade e dificuldade nem perto da radicalidade de um Deleuze

evidentemente foi esse o caso de Bertrand Russell em Significaccedilatildeo e

verdade7 em que afrontou dentre outras a noccedilatildeo de Carnap de sentido-

significado seja como for a descoberta da necessidade de um novo e

original tipo de relaccedilatildeo mais proacutepria ao sentido uma outra dimensatildeo ou

relaccedilatildeo jaacute havia sido descoberta haacute muito tempo ou como lembrava

Deleuze

O sentido eacute a quarta dimensatildeo da proposiccedilatildeo [aleacutem de designaccedilatildeo

manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo] Os estoicos a descobriram com o acontecimento

o sentido eacute o expresso da proposiccedilatildeo este incorporal na superfiacutecie das coisas

entidade complexa irredutiacutevel [que natildeo pode ser simplificada separada do

natildeo-senso] acontecimento puro (eacuteveacutenement pur) que insiste ou subsiste na

proposiccedilatildeo (Idem p 20)

7 Cf tambeacutem DELEUZE 2003 [Loacutegica do sentido] p 18-9

William de Siqueira Piauiacute | 211

E tal descoberta se repetiu na histoacuteria no medievo pelos

nominalistas da escola de Ockham Gregoacuterio de Rimini (1300-1358) e

Nicolas de Autrecourt (1299-1369) e depois pela loacutegica dos objetos

inexistentes de Alexius Meinong (1853-1920) que foi duramente atacada

pelo mesmo Russell E tal dimensatildeo teria sido chamada pelo fenomenoacutelogo

Edmund Husserl (1859-1938) de ldquoexpressatildeordquo quanto a quem e ao que

Deleuze afirmava ldquoHusserl natildeo menos que Meinong reencontra as fontes

vivas de uma inspiraccedilatildeo estoicardquo (Idem p 21) Ateacute certo ponto afinado com

aquela boa nova aquela inspiraccedilatildeo contudo semelhantemente a

Nietzsche Husserl tambeacutem teria sido tragado pelas profundezas neste

caso natildeo soacute por natildeo ter compreendido os atributos como verbos-

acontecimentos e sim como predicados-conceitos (Idem p 100) mas por

ter pecado em sua interpretaccedilatildeo contra uma filosofia propriamente da

expressatildeo supostamente defensora das ldquosingularidades nocircmades

impessoais e preacute-individuaisrdquo (Idem p 113) daiacute que em pleno acordo com

aquela tarefa de uma loacutegica do sentido Deleuze afirmasse

[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida

em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e

sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de

Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como

veremos uma mudanccedila muito importante [] A ideia de singularidades

logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-

individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste

domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)

Como era de se esperar dado a menccedilatildeo ao conceito de mocircnada para

fazer avanccedilar a determinaccedilatildeo daquele domiacutenio e constituir uma nova

noccedilatildeo de tal campo Deleuze trataraacute em seguida na 16ordf seacuterie (a da gecircnese

estaacutetica ontoloacutegica) da Loacutegica do sentido da filosofia de Leibniz Com o

que dissemos ateacute aqui fica evidenciado o quatildeo central seraacute a reavaliaccedilatildeo

da filosofia leibniziana especialmente de seu conceito de mocircnada

individual tendo vista que seraacute justamente ele que permitiraacute a base da

212 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

hipoacutetese ou seja a estruturaccedilatildeo da ldquoideia de singularidades logo de anti-

generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-individuaisrdquo daquelas

ldquosingularidades nocircmades impessoais e preacute-individuaisrdquo isto eacute daquilo

que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do sentido de qualquer

modo a conclusatildeo de tal seacuterie seraacute

Na obra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduo a mocircnada que descobre

o sentido e jaacute presente o natildeo-senso remontando agrave superfiacutecie a partir de um

mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que se envolve nela e lhe impotildee a

dura lei das misturas [jaacute] Silvia e Bruno seriam antes como as pessoas lsquovagasrsquo

que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo

comum a vaacuterios mundos mundo dos homens e mundo das fadas (Idem p

121)

O que novamente atesta o papel central que o conceito leibiziano de

mocircnada desempenha para toda a Loacutegica do sentido inclusive pela

apropriaccedilatildeo que ela faz da obra de Carroll ou seja o conteuacutedo da 16ordf seacuterie

deveraacute servir para voltar a compreender parte daquela boa nova agora

associada mais propriamente agraves obras Aventuras de Alice no paiacutes das

maravilhes Atraveacutes do espelho e o que Alice viu laacute e As aventuras de

Silvia e Bruno de Lewis Carroll que junto com a teoria dos incorporais

dos Estoicos satildeo os grandes temas de a Loacutegica do sentido Assim o que

trataremos a seguir eacute da reconstituiccedilatildeo deleuzeana do conceito de mocircnada

individual

II Parte ndash Interpretaccedilatildeo Deleuziana da Filosofia Leibniziana uma

Ficccedilatildeo Falsa

Como noacutes indicamos eacute jaacute a partir de 1968 que o filoacutesofo francecircs Gilles

Deleuze demonstra seu apreccedilo pela filosofia leibniziana como fica

evidente em alguns momentos da obra Diferenccedila e repeticcedilatildeo mas na

obra que escreve um ano depois Loacutegica do sentido tal seraacute sua

importacircncia que ela se tornaraacute o tema principal de toda uma seacuterie a 16ordf

seacuterie justamente um dos momentos mais cruciais de seu romance ou

William de Siqueira Piauiacute | 213

histoacuteria embrulhada momento em que veremos Deleuze caracterizar as

Alices e Silvia e Bruno de Carroll a partir do suposto8 conceito leibniziano

de pessoa vaga e do de mocircnada individual conceitos que ofereceriam as

bases para pensar aquilo que ele chamou de gecircnese estaacutetica ontoloacutegica de

um certo campo transcendental Satildeo certamente as consideraccedilotildees feitas

aqui que forneceratildeo a direccedilatildeo principal das leituras que Deleuze faraacute de

Leibniz nos trecircs cursos que deu na deacutecada de oitenta (1980 86 e 87) aulas

que receberatildeo o tiacutetulo de Exasperaccedilatildeo da filosofia e que com algumas

poucas mudanccedilas substanciais teratildeo como resultado a obra A dobra

Leibniz e o barroco publicada em 1988 Assim o que pretendemos eacute

problematizar a compreensatildeo dos conceitos leibnizianos que serviriam

para caracterizar os personagens de Carroll tentando apontar alguns dos

problemas da leitura de Deleuze especialmente se levarmos em conta

dentre outros textos a carta que Leibniz escreve a Molanus em 1679 bem

antes do Discurso de metafiacutesica este nosso principal ponto de partida e

o que faz a base do capitulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou diversidaderdquo

dos Novos ensaios (II XXVII) posterior ao Discurso e anterior tanto agrave

Teodiceia quanto agrave Monadologia Com isso esperamos lanccedilar luz sobre

a noccedilatildeo de fato leibniziana de sujeito ou indiviacuteduo e as bases do

deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo deleuziana Vejamos entatildeo como a

filosofia de Leibniz aparece na obra de 1969

Como jaacute o dissemos em Loacutegica do sentido tudo parece comeccedilar

com a criacutetica a Husserl em sua 14ordf seacuterie Deleuze considera que

[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida

em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e

sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de

Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como

veremos uma mudanccedila muito importante9 [] A ideia de singularidades

8 Dizemos ldquosupostordquo tendo em vista que em nossa opiniatildeo Deleuze forccedila demais a oposiccedilatildeo entre o que Leibniz afirmou na correspondecircncia que travou com Arnauld especialmente a nota agrave carta de 13 de maio de 1686 e teria querido dizer nos paraacutegrafos finais da Teodiceia especialmente o sect414 Cf DELEUZE 2003 p 118 [nota 4]

9 A expressatildeo ldquoHaacute contudo como veremos uma mudanccedila muito importanterdquo parece apontar para uma interpretaccedilatildeo diferente da de Husserl e que seraacute parte do motivo de retornar agrave filosofia leibniziana nas seacuteries seguintes diferenccedila

214 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-

individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste

domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)

Segundo Deleuze Husserl teria construiacutedo um campo transcendental

sem atentar para as condiccedilotildees impostas por Sartre em seu famoso artigo de

1937 intitulado ldquoA transcendecircncia do Egordquo e natildeo teria vislumbrado a ideia

de ldquosingularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo que jaacute estariam

suficientemente desenvolvidas na filosofia de Leibniz10 em uma palavra

Husserl teria se mantido kantiano demais11 talvez inclusive por natildeo ter

compreendido uma suposta precedecircncia do mundo com relaccedilatildeo agrave mocircnada

expressiva e a arbitrariedade da aplicaccedilatildeo irrestrita do princiacutepio de inclusatildeo

do predicado no sujeito dito de outra forma por Husserl natildeo ter visto em

Leibniz uma loacutegica do acontecimento ou topologia de superfiacutecie que

permitiria a ldquodeterminaccedilatildeo daquele domiacutenio e de sua potecircncia geneacuteticardquo e

ainda de outra forma por natildeo ter visto nos textos de Leibniz os elementos

para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese segundo a qual as ldquosingularidadesrdquo ou ldquoanti-

generalidadesrdquo devem ser consideradas ldquoimpessoais e preacute-individuaisrdquo

Como era de se esperar dada a associaccedilatildeo ao conceito de mocircnada Deleuze

trataraacute na 16ordf seacuterie (ldquoDa gecircnese estaacutetica ontoloacutegicardquo) da Loacutegica do sentido

da filosofia de Leibniz e como esta permitiria compreender a constituiccedilatildeo de

tal campo e tal ideia e que se tornaraacute a base de sua argumentaccedilatildeo em A

dobra ndash o que fica evidente especialmente em seu capiacutetulo 5 trata-se aqui

de levar adiante aquilo que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do

sentido ou do acontecimento12

Entatildeo nos voltando para a conclusatildeo da 16ordf seacuterie e parte da sua

hipoacutetese geral A primeira pergunta que devemos fazer eacute Qual eacute o

que causou muita estranheza a muitos interpretes de Leibniz Gonzalo deixa claro em seu artigo jaacute mencionado os termos em que se deu a polecircmica entre Fremont e Deleuze

10 Certamente o que permitiraacute a Deleuze terminar A dobra dizendo que permanecemos leibnizianos (DELEUZE 1991 p 208) posicionamento filosoacutefico com o qual esse sim Alain Badiou se potildee em desacordo ao defender a ldquooutra escolha ontoloacutegicardquo (BADIOU 2015 p 39-44)

11 DELEUZE 2003 p 101

12 Idem todo o final da 14ordf seacuterie

William de Siqueira Piauiacute | 215

imperativo do uso das obras de Carroll que marcaria as nuacutepcias da

linguagem e do inconsciente A resposta eacute a contestaccedilatildeo da identidade

pessoal (Idem p 3) Pressuposto que permitia a circulaccedilatildeo da ldquocasa vaziardquo

e o falar das ldquosingularidades pre-individuais e natildeo pessoaisrdquo ldquoque natildeo satildeo

nem da ordem do geral nem da ordem do individual nem pessoais nem

universaisrdquo ldquoem sumardquo o que possibilitaria a produccedilatildeo do sentido Se

deixar arrastar pelos verbos de puro devir natildeo deixar que a noccedilatildeo de

atributo verbal seja confundida e assimilada pela de predicado da loacutegica

formal (claacutessica-aristoteacutelica) dai que evidente e novamente se queremos

tomaacute-lo como ponto de partida tenha de ser arbitraacuterio na filosofia de

Leibniz a inerecircncia do predicado no sujeito (Idem p 115) o que deve levar

agravequeles conceitos de pessoa ou indiviacuteduo que permitiriam comparar Alice

com uma mocircnada e Silvia e Bruno com pessoas vagas Mas seraacute mesmo

arbitraacuterio

Assim e para o que nos interessa em Loacutegica do sentido os pontos

principais e o centro da interpretaccedilatildeo de Deleuze da filosofia leibniziana

estariam na seguinte afirmaccedilatildeo

Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada

mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente

compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia

dos predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo

expresso natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas

mocircnadas como a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos

verdade entretanto que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas (Dieu

creacutee le monde plutocirct que les monades)13 e [tambeacutem eacute verdade] que o expresso

13 Outra traduccedilatildeo possiacutevel dessa afirmaccedilatildeo e que afasta o problema da anterioridade temporal seria ldquoDeus cria o mundo e natildeo (plutocirct que) as mocircnadasrdquo A expressatildeo francesa plutocirct nos arrastaria inclusive para o que parece ser o contraacuterio da anterior ldquoDeus cria o mundo sobretudo (plutocirct) as mocircnadasrdquo Nossa interpretaccedilatildeo vai se basear na afirmaccedilatildeo e nota correspondente o que tambeacutem consideramos ser uma intensificaccedilatildeo feitas em A dobra Leibniz e o barroco ldquoEstas natildeo satildeo as generalidades mas acontecimentos gotas de acontecimento Nem por isso deixam [os acontecimentos as gotas de acontecimento] de ser preacute-individuais uma vez que o mundo eacute virtualmente primeiro em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que o expressam (Deus criou natildeo Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou) O indiviacuteduo nesse sentido eacute atualizaccedilatildeo de singularidades preacute-individuais [Elles nrsquoen sont pas moins preacute-individuelles dans la mesure ougrave le monde est virtuellement premier par rapport aux individus qui lrsquoexpriment (Dieu a creacuteeacute non pas Adam peacutecheur mais le monde ougrave Adam a peacutecheacute) Lrsquoindividu en ce sens est lrsquoactualisation de singulariteacutes preacute-individuelles et nrsquoimplique aucune speacutecification preacutealable Il faut mecircme dire le contraire et constater que la speacutecification suppose elle-mecircme lrsquoindividuation]rdquo (DELEUZE 1991 p 101) Podemos mesmo falar em

216 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

natildeo se confunde com sua expressatildeo mas [partindo de um ponto de vista

estoico] insiste ou subsiste () Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos

predicados na filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na

mocircnada expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo

expresso e esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras

singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que

pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a]

uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdade Leibniz foi muito longe nesta

primeira etapa da gecircnese [ontoloacutegica de um certo campo transcendental

impessoal e preacute-individual ou das singularidades entendidas como

verdadeiros acontecimentos transcendentais14] o indiviacuteduo constituiacutedo

como centro de envolvimento como envolvendo singularidades em um

mundo e sobre seu corpo (Idem p 114-5 grifo nosso)15

Como jaacute indicamos ao falar da associaccedilatildeo de Husserl com os achados

estoicos para aleacutem da noccedilatildeo de sujeito indiviacuteduo ou pessoa o outro tema

cariacutessimo agrave Loacutegica do sentido e que tambeacutem deve ter contribuiacutedo para a

escolha da filosofia leibniziana eacute o de ldquoexpressatildeordquo tema que leva agrave

pergunta Como as mocircnadas expressariam o mundo e qual a ordem de

precedecircncia ou preferecircncia seja com relaccedilatildeo a Deus ao mundo ou aos

corpos De qualquer modo com relaccedilatildeo agrave polecircmica entre ambos natildeo eacute

preciso muito para compreender a insistecircncia de Fremoacutent na reconstruccedilatildeo

anterioridade virtual do mundo em Leibniz Seria isso suficiente para aceitarmos o deslocamento proposto por Deleuze desde a Loacutegica do sentido

14 Cf a p 105 da mesma obra

15 ldquoSrsquoeffectuer crsquoest aussi ecirctre exprimeacute Leibniz soutient une thegravese ceacutelegravebre chaque monade individuelle exprime le monde Mais cette thegravese nrsquoest pas suffisamment comprise tant qursquoon lrsquointerpregravete comme signifiant lrsquoinheacuterence des predicats dans la monade expressive Car il est bien vrai que le monde exprimeacute nrsquoexiste pas hors des monades qui

lrsquoexpriment donc existe dans les monades comme la seacuterie des preacutedicats qui leur sont inheacuterents Il nrsquoest pas moins vrai cependant que Dieu creacutee le monde plutocirct que les monades et que lrsquoexprimeacute ne se confond pas avec son expression mais insiste ou subsiste [nota 1] [] Il est arbitraire de privileacutegier lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la philosophie de Leibniz Car lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la monade expressive suppose drsquoabord la compossibiliteacute du monde exprimeacute et celle-ci agrave son tour suppose la distribution de pures singulariteacutes drsquoapregraves des regravegles de convergence et de divergence qui appartiennent encore agrave une logique du sens et de lrsquoeacuteveacutenement non pas agrave une logique de la preacutedicacion et de la veacuteriteacute Leibniz a eacuteteacute tregraves loin dans cette premiegravere eacutetape de la genegravese lrsquoindividu constitueacute comme centre drsquoenveloppement comme enveloppant des singulariteacutes dans un monde et sur son corps et Adammiddotnon peacutecheur deacutecoule de lrsquoincompossibiliteacute des mondes ougrave Adam pegraveche et ne pegraveche pas Dans chaque monde les monades individuelles expriment toutes les singulariteacutes de ce monde - une infiniteacute - comme dans un murmure ou un eacutevanouissement mais chacune nrsquoenveloppe ou nrsquoexprime laquoclairementraquo qursquoun certain nombre de singulariteacutes celles au voisinage desquelles elle se constitue et qui se combinent avec son corpsrdquo (DELEUZE 1969 p 134-5) Ao que segue o comentaacuterio da nota 1 ldquoTema constante das cartas de Leibniz a Arnauld Deus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou (Theme constant des lettres de Leibniz agrave Arnauld Dieu a creacuteeacute non pas exactament Adam-pecheur mais le monde ouacute Adam peacutecheacute)rdquo

William de Siqueira Piauiacute | 217

dos conceitos leibnizianos de Deus e de indiviacuteduo fica evidente com a

citaccedilatildeo feita acima que esses deveriam fazer a base da argumentaccedilatildeo do

proacuteprio Deleuze que muitas vezes prefere recorrer aos textos esparsos e

de difiacutecil interpretaccedilatildeo em que Leibniz fala de compossibilidade ou

incompossibilidade da universalidade ou generalidade e singularidade ou

especificaccedilatildeo das regras de convergecircncia ou divergecircncia e mesmo do

caacutelculo diferencial e integral mas natildeo tanto aos em que o alematildeo fala

propriamente dos conceitos de substacircncia particular ou mocircnada

individual Todavia natildeo eacute nossa intenccedilatildeo remontar tal embate Assim eacute

nossa pretensatildeo problematizar ainda uma vez a partir dos textos onde

Leibniz de fato trata deles inclusive os associando os assuntos ldquoinerecircncia

do predicado no sujeitordquo ldquoDeusrdquo ldquomocircnada individualrdquo ou ldquosubstacircncia

particularrdquo e ldquoacontecimentordquo tentando remontar o que do nosso ponto

de vista parece ser um dos principais problemas da leitura deleuziana

certa cadeia argumentativa e associaccedilatildeo inevitaacutevel de temas presentes nos

textos leibnizianos

Dito isso em primeiro lugar mesmo que acreditemos que a leitura

que faz Russell da filosofia de Leibniz eacute purista demais com relaccedilatildeo agrave sua

vinculaccedilatildeo agrave loacutegica aristoteacutelica se eacute arbitraacuterio a inerecircncia do predicado no

sujeito com relaccedilatildeo agrave mocircnada individual expressiva ndash que devemos fazer

preceder da noccedilatildeo de uma substacircncia individual16 ndash Deleuze deveria ter se

explicado melhor quanto agrave afirmaccedilatildeo feita no sect8 do Discurso de

metafiacutesica que trata justamente do conceito de Deus e de ldquoem que

consiste uma substacircncia individualrdquo a saber

Ora eacute bem constante que toda predicaccedilatildeo tem algum fundamento verdadeiro

na natureza da coisa e quando uma proposiccedilatildeo natildeo eacute idecircntica isto eacute quando

o predicado natildeo estaacute compreendido expressamente no sujeito eacute preciso que

esteja compreendido nele virtualmente A isto chamam os filoacutesofos in-esse

16 Com relaccedilatildeo ao modo como compreendemos a associaccedilatildeo do conceito de mocircnada humana com o de substacircncia individual indicamos nossos artigos ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo e ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e Infinito em Leibnizrdquo seja como for eacute no sentido do conceito de substacircncia individual ou noccedilatildeo de indiviacuteduo singular ou noccedilatildeo individual completa ou mesmo de pessoa possiacutevel que Deleuze entende o conceito de mocircnada individual ou humana

218 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

dizendo estar o predicado no sujeito Eacute preciso pois o termo do sujeito

conter sempre o do predicado de tal forma que quem entender

perfeitamente a noccedilatildeo do sujeito julgue tambeacutem que o predicado lhe

pertencerdquo (LEIBNIZ 1983 p 124 grifo nosso)

Afirmaccedilatildeo que fundamentaraacute as seguintes consequecircncias

Isto posto podemos dizer que a natureza de uma substacircncia individual ou

de um ser complexo consiste em ter uma noccedilatildeo tatildeo perfeita que seja

suficiente para deduzir de si todos os predicados do sujeito a que se

atribui estaacute noccedilatildeo [] [Daiacute que] Deus vendo a noccedilatildeo individual ou

ecceidade de Alexandre nela vecirc ao mesmo tempo o fundamento e a razatildeo

de todos os predicados que verdadeiramente dele se podem afirmar []

(Idem grifo nosso)

Apesar do deslocamento quanto agrave noccedilatildeo de criaccedilatildeo antes ou depois

de preferecircncia ou natildeo com relaccedilatildeo ao mundo ateacute aqui nada aponta para

uma restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse a natildeo ser a menccedilatildeo ao virtual

(virtuellement) ou seja nada aponta para a restriccedilatildeo do princiacutepio de

inerecircncia do predicado no sujeito especialmente quando se trata de pensar

a natureza de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo individual

completa ou perfeita noccedilatildeo individual ou ecceidade bem como nada

parece apontar para algo que permitisse concluir que ldquoDeus criou natildeo

exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo talvez no

sentido que a qualidade o adjetivo ldquopecadorrdquo o predicado natildeo seria

previa e propriamente ldquoinerenterdquo ao sujeito Adatildeo Restaria pois

compreender o que seria essa visatildeo sem precedecircncia ou preferecircncias e ldquoao

mesmo tempordquo da noccedilatildeo individual ou ecceidade O que quer dizer este

ldquoao mesmo tempordquo esta simultaneidade e como compreender este

fundamento e razatildeo de todos os predicados que verdadeiramente se

podem afirmar de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo

individual completa ou perfeita de um ser complexo (talvez o misteacuterio

mencionado em A dobra) Mas natildeo resta duacutevida que a verdade entra em

jogo aqui jaacute que se trata tambeacutem do fundamento de ldquotoda predicaccedilatildeordquo

por isso mesmo podemos colocar o problema no mesmo registro da

William de Siqueira Piauiacute | 219

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld17 quando o alematildeo afirma jaacute

na carta de 14 de julho de 1686 que semper enim notio praedicati inest

subjecto in propositione vera18 Nesse sentido a questatildeo seria perguntar se

o conhecimento que Deus tem de uma substacircncia individual noccedilatildeo

individual completa ou perfeita um noccedilatildeo individual ou ecceidade eacute certo

ndash infaliacutevel ndash a ponto de dizermos que as proposiccedilotildees formadas com relaccedilatildeo

a elas tecircm de ser ditas verdadeiras ou falsas mas claro que para Leibniz o

conhecimento de Deus eacute infaliacutevel e mesmo que em termos de predicaccedilatildeo

tiveacutessemos que levar a anaacutelise de tais noccedilotildees ao infinito temos de lembrar

que aquele conhecimento tambeacutem compreende o infinito Restaria ainda

perguntar se tal conhecimento se prenderia a uma caracteriacutestica

semelhante a um atributo verbal no sentido deleuzeano ou a um predicado

no sentido claacutessico De qualquer modo no sect31 do Discurso de metafiacutesica

que trata justamente da ldquorazatildeo que fez Deus chamar agrave existecircncia tal pessoa

possiacutevelrdquo tal substacircncia individual noccedilatildeo individual completa ou perfeita

noccedilatildeo individual ou ecceidade possiacuteveis e dos acontecimentos relacionados

a tais pessoas possiacuteveis ao menos parte da questatildeo eacute resolvida com a

seguinte consequecircncia geral

[] creio mais exato e seguro dizer segundo nossos princiacutepios e como jaacute notei

ser forccediloso haver entre os entes possiacuteveis a pessoa de Pedro ou Joatildeo cuja

noccedilatildeo ou ideia conteacutem toda esta seacuterie de graccedilas ordinaacuterias e todo o resto

destes acontecimentos (eacuteveacutenements) com suas circunstacircncias e que entre

uma infinidade de outras pessoas igualmente possiacuteveis agradou a Deus

escolhecirc-la para existir atualmente (actuellement) (Idem p 147 grifo nosso)19

17 Insistindo pois naquele lugar onde esse tema teria sido tatildeo debatido cf DELEUZE 2003 [nota 1] p 114

18 ldquoDe fato [ou manifestamente] na proposiccedilatildeo verdadeira sempre a noccedilatildeo do predicado lsquoinerersquo ao sujeitordquo

19 De pleno acordo com o que Leibniz defende na nota agrave carta de Arnauld com relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma noccedilatildeo vaga de sujeito ldquo[primeira resposta] que minha suposiccedilatildeo natildeo eacute simplesmente que Deus tenha querido criar um Adatildeo cuja noccedilatildeo seja vaga e incompleta mas que Deus quis criar um tal Adatildeo suficientemente determinado para um indiviacuteduo Esta noccedilatildeo individual completa encerra [ou envolve] em minha opiniatildeo relaccedilotildees com toda a serie das coisas o qual deve parecer tanto mais razoaacutevel quanto que o Sr Arnauld me concede aqui o enlace que haacute entre as resoluccedilotildees de Deus a saber que Deus ao resolver-se a criar determinado Adatildeo tem em conta todas as resoluccedilotildees que toma sobre toda a seria do universo agrave maneira de uma pessoa prudente que ao tomar uma resoluccedilatildeo com respeito a um propoacutesito tem em vista em sua totalidade dito propoacutesito jaacute que pode decidir-se melhor quando se resolve sobre todas as partes (que ma supposition nrsquoest paacutes simplement que Dieu a voulu creacuteer un Adam dont la notion soit vague et incomplegravete mais que Dieu a voulu creacuteer un tal Adam assez deacutetermineacute agrave un individu Et cette notion individuelle complete selon moi enveloppe decircs rapport agrave toute la suite des choses ce qui doit paraicirctre

220 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Fica evidente inclusive que mesmo quanto aos acontecimentos

(eacuteveacutenements) todos jaacute com suas circunstacircncias devem ser considerados

incluiacutedos nas ideias das pessoas possiacuteveis ou nas noccedilotildees completas das

pessoas possiacuteveis ou seja nas noccedilotildees das substacircncias individuais ou

particulares noccedilotildees individuais ou ecceidades possiacuteveis Em que sentido

portanto interpretar a afirmaccedilatildeo ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo

pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo Talvez ou no sentido que haacute

uma ruptura no desenvolvimento da filosofia de Leibniz entre o conceito

de substacircncia individual e mocircnada como querem muitos comentadores

ou concedendo que em Leibniz haveria a afirmaccedilatildeo do conceito de pessoa

vaga o que natildeo vemos como corroborar tendo em vista o que eacute afirmado

na nota agrave carta que mencionamos em nota mais acima mas poderia ser

um problema com relaccedilatildeo agrave hipoacutetese interpretativa que o sect414 da

Teodiceia exige uma ldquounidade objetividade muito especialrdquo para ser

compreendido e neste caso voltariacuteamos a uma saiacuteda semelhante agrave

daqueles comentadores Mas se nos mantemos na eacutepoca do Discurso

certamente podemos dizer que aquela consequecircncia seraacute seguida da

explicaccedilatildeo que parte dos princiacutepios fundamentais que guiam a

argumentaccedilatildeo de Leibniz satildeo 1) o da perfeiccedilatildeo ou completude das

operaccedilotildees de Deus e 2) o da noccedilatildeo individual completa ou perfeita (uma

noccedilatildeo natildeo vaga e natildeo incompleta) que encerra in-esse todos os

acontecimentos com todas as suas circunstacircncias Ateacute este momento o do

Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld

portanto nada parece apontar para o acontecimento ou gota de

acontecimento no sentido deleuziano mesmo que o revolucionaacuterio artigo

drsquoautant plus raisonnable que M Arnauld mrsquoaccorde ici la liaison qursquoil y a entre les reacutesolutions de Dieu savoir que Dieu prenant la reacutesolutions de creacuteer un tel Adam a eacutegard agrave toutes lecircs reacutesolutions qursquoil prend touchand toute la suiacutete de lrsquouniverse agrave peu pregraves comme une persone sage qui prend une reacutesolutions agrave lrsquoegard drsquoune partie de son dessein lrsquoa tout entier em vue et se reacutesoudra drsquoautant mieux si elle pourra se reacutesoudre drsquoautant mieux si elle pourrra se resoudre sur toutes lecircs parties agrave la fois)rdquo (LEIBNIZ 1900 p 182) Cf tambeacutem DELEUZE 2003 p 118 [e tambeacutem a nota 4] Vale lembrar que a questatildeo da escolha entre uma infinidade de pessoas possiacuteveis leva o problema do conhecimento do infinito natildeo mais para uma anaacutelise infinita de uma noccedilatildeo e sim para a de uma infinidade de noccedilotildees uma multidatildeo ou conjunto infinitos nesse sentido agrave de compossibilidade e incompossibilidade quanto ao que pensamos sobre a ligaccedilatildeo desse detalhe com o labirinto da liberdade gostariacuteamos de indicar novamente nosso artigo ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibnizrdquo

William de Siqueira Piauiacute | 221

sobre ldquoUm novo meacutetodo para os maacuteximos e miacutenimos assim como para as

tangentes que natildeo para ante quantidades fracionaacuterias ou irracionais e eacute

um gecircnero singular de caacutelculo para estes problemasrdquo jaacute esteja pronto

comprovadamente desde 1684 Na verdade cremos que a melhor

estrateacutegia para pensar uma topologia da superfiacutecie em Leibniz a partir de

1684 seria reconstituir sua noccedilatildeo de funccedilatildeo e se voltar para a sua

dinacircmica20 mas se distanciando de sua noccedilatildeo de mocircnada humana e

afirmando inclusive diferenccedilas importantes entre o conceito de substacircncia

individual do Discurso e o de mocircnada na Monadologia

De qualquer modo e em sentido contraacuterio agora a noccedilatildeo de pessoa

defendida no Discurso parece ser um desenvolvimento da de pessoa

espiritual que Leibniz defendia jaacute na carta a Molanus de 167921 justamente

contra a moral Estoica ndash o que deveria ter chamado a atenccedilatildeo do jovem

Deleuze ndash e a de Descartes e natildeo eacute diferente da utilizada na

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld portanto ambas as seacuteries de

cartas estariam em pleno acordo com o Discurso Mais que isso do nosso

ponto de vista trava-se desde a carta a Molanus daquilo que permitiraacute

compreender a peculiaridade e novidade do fatum christianum do iniacutecio

da Teodiceia novamente contra o fatum stoiumlcum vale lembrar Aleacutem

disso a noccedilatildeo individual completa ou perfeita eacute reafirmada nos Novos

ensaios justamente no capiacutetulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou

diversidaderdquo ndash capiacutetulo curiosamente natildeo analisado por Deleuze seja em

Loacutegica do sentido seja em A dobra ndash onde jaacute aparece o conceito de

mocircnada que a partir dali assimilaraacute grande parte das caracteriacutesticas do

conceito de noccedilatildeo individual completa ou perfeita capiacutetulo que deveria ter

sido interpretado por Deleuze ou ao menos mencionado dado que tanto

em A dobra e mais ainda em Loacutegica do sentido se tratava do problema

da identidade pessoal Assim ateacute por conta da boa nova que representaria

a obra carrolliana quanto agrave dissoluccedilatildeo da identidade pessoal nos parece

20 Quanto ao que pensamos sobre o conceito leibniziano de funccedilatildeo associado ao de continuidade e histoacuteria gostariacuteamos de indicar nosso artigo ldquoLeibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologiardquo

21 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartesrdquo

222 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que teria faltado um agrupamento mais cuidadoso dos textos a partir do

tema geral da noccedilatildeo individual completa ou perfeita De qualquer modo

ateacute esse momento o do Discurso ou em torno dos Novos ensaios e com

relaccedilatildeo seja ao conceito de mocircnada humana individual seja o de noccedilatildeo

individual completa natildeo vemos a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos alcanccedilados com o

artigo de 1684 ou que nos obrigue a leitura do texto ldquoSobre o meacutetodo da

universalidaderdquo de conforme Couturat o mais tardar 167422 o que parece

deixar sem fundamento o deslocamento exigido por Deleuze ao menos em

a Loacutegica do sentido A partir de quais textos que tratem propriamente do

problema do sujeito indiviacuteduo e mocircnada humana com as associaccedilotildees que

mencionamos acima fundamentariacuteamos aquela exigecircncia de recusarmos

o princiacutepio inesse e a de estarmos obrigados a apelar para as regras de

divergecircncia e convergecircncia ou para outro tipo de singularidade

Arriscariacuteamos dizer que por conta do todo da obra apenas os sect6 que

menciona a noccedilatildeo de funccedilatildeo e sect17 a sect22 que trabalham o conceito de

forccedila e causalidade final do Discurso poderiam fornecer algum

fundamento para tal deslocamento mas todo o resto da obra seria prova

suficiente que a adoccedilatildeo de tais regras em nada invalida o princiacutepio inesse

principalmente se as questotildees tiverem a ver com a tentativa de pensar a

noccedilatildeo completa de indiviacuteduo ou aquele conceito de mocircnada humana

defendido nos Novos ensaios e mesmo os conceitos de acontecimento e

suas circunstacircncias ou o conteuacutedo do intelecto divino23

Dito assim voltando ainda uma vez ao Discurso de metafiacutesica o

sect14 que trata das perspectivas do universo que Deus decide criar e que

corresponderiam ao que acontece agraves substacircncias individuais ndash talvez

daquilo que sem nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de Leibniz permitiria falar

da aplicaccedilatildeo das regras de convergecircncia e divergecircncia ou ao novo meacutetodo

para os maacuteximos e miacutenimos ndash natildeo deixa duacutevidas quanto agrave noccedilatildeo de

22 Anterior agrave carta a Molanus portanto

23 Vale lembrar o tiacutetulo que recebeu o sect6 do Discurso ldquoDeus nada faz fora de ordem e nem eacute possiacutevel forjar acontecimentos (eacuteveacutenements) que natildeo sejam regularesrdquo Neste caso os outros paraacutegrafos que mencionamos encaminham a pergunta que talvez impediria aquele deslocamento Com relaccedilatildeo ao conteuacutedo do intelecto divino o que faz o fundamento ou substacircncia da continuidade da mudanccedila Problema que no nosso entender eacute o principal que aparece jaacute desde o iniacutecio da Monadologia cf sect8 e que exige a noccedilatildeo de mocircnada individual fechada

William de Siqueira Piauiacute | 223

acontecimento e emprego irrestrito do princiacutepio da inclusatildeo do predicado

no sujeito com relaccedilatildeo agraves ideias de pessoas ou noccedilotildees completas ali

Leibniz afirmava

De certo modo e no bom sentido embora afastado do usual poder-se-aacute dizer

que nunca uma substacircncia particular atua (agit) sobre uma outra substacircncia

particular e tampouco padece se os eventos24 de cada um satildeo considerados

apenas como consequecircncia de sua simples ideia ou noccedilatildeo completa pois

esta ideia [ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular] encerra jaacute

todos os predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime

(exprime) todo o universo Com efeito nada pode acontecer-nos (arriver)

aleacutem de pensamentos e percepccedilotildees e todos os nossos futuros pensamentos e

percepccedilotildees natildeo passam de consequecircncias embora contingentes

(contingentes) dos nossos pensamentos e percepccedilotildees anteriores de tal modo

que se eu fosse capaz de considerar distintamente tudo quanto nesta hora

me acontece ou aparece nessa percepccedilatildeo poderia ver tudo quanto me

aconteceraacute e apareceraacute sempre o que natildeo falharia e aconteceria da mesma

maneira embora tudo quanto existisse fora de mim fosse destruiacutedo desde que

restasse Deus e eu (LEIBNIZ 1983 p 129-30)

A ideia ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular encerra jaacute

todos os predicados ou acontecimentos e exprime todo o universo E

exprime jaacute enquanto ideia ou noccedilatildeo completa todo o universo Claro que

um grande problema eacute compreender aquela contingecircncia mas natildeo no

esqueccedilamos da intensificaccedilatildeo que vem a seguir ldquodesde que restasse

apenas eu e Deusrdquo Apesar da necessidade de problematizar quatildeo longe

vai a impossibilidade de distinccedilatildeo completa dos nossos pensamentos e

percepccedilotildees certamente associada agrave necessidade de uma anaacutelise infinita

para a compreensatildeo total ou perfeita de uma noccedilatildeo individual o que pode

apontar para aquela contingecircncia em nenhum momento da Carta a

Molanus do Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz

e de Anauld vimos Leibniz afirmar a precedecircncia ou preferecircncia do

mundo e mesmo dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de pessoas

24 Aqui podemos ter um problema de traduccedilatildeo de fato soacute mais agrave frente surgiraacute no original francecircs a palavra lsquoeventorsquo ou lsquoacontecimentorsquo ou seja eacuteveacutenement

224 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

especialmente no sentido que haveria singularidades que precederiam as

individualidades o que justificaria a necessidade de recorrermos agraves suas

noccedilotildees de compossibilidade e incompossibilidade ou agraves regras de

convergecircncia e de divergecircncia Parece-nos que a afirmaccedilatildeo ldquoesta ideiardquo ou

noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular ldquoencerra jaacute todos os

predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime

(exprime) todo o universordquo vai justamente no sentido contraacuterio ao

pretendido por Deleuze De qualquer modo o problema da significaccedilatildeo do

conceito de expressatildeo seu campo semacircntico parece nos obrigar a passar

para a regiatildeo dos possiacuteveis e vai mais no sentido das noccedilotildees completas

para o universo do que o contraacuterio Assim eacute preciso atentar para o fato

que ao menos aqui ldquopredicadordquo ldquoacontecimentordquo e ldquoexpressatildeordquo satildeo

colocados no mesmo registro daquelas ideias e nada aponta para uma

restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse ou para a anterioridade ou preferecircncia do

mundo com relaccedilatildeo agraves ideias ou noccedilotildees completas de substacircncias

particulares ou mocircnadas individuais De qualquer modo e essa eacute nossa

opiniatildeo os paraacutegrafos finais da Teodiceia e a uacuteltima carta que Leibniz

escreveu a Samuel Clarke parecem ser decisivos Primeiro

Vocecirc vecirc [afirma a deusa Palas Atena] que meu pai [Juacutepiter] natildeo fez Sextus

mau ele [Sextus] o foi [mau] desde toda a eternidade ele o foi sempre

livremente [meu pai] soacute fez lhe consentir a existecircncia que sua sabedoria

natildeo podia recusar ao mundo em que ele estaacute compreendido ele o fez

passar da regiatildeo dos possiacuteveis para a dos seres atuais (LEIBNIZ 2013

[Teodiceia] sect416 p 415 grifo nosso)

Aqui eacute afirmada a necessidade de uma determinada pessoa possiacutevel

dever estar compreendida em um determinado mundo possiacutevel25 que

Deus ou na histoacuteria que termina a Teodiceia Juacutepiter faz ou consente vir

agrave existecircncia suposto ser o melhor dos mundos possiacuteveis ldquopassar da regiatildeo

dos possiacuteveis para a dos seres atuaisrdquo e certamente podiacuteamos pensar tal

25 A partir da perfeiccedilatildeo das operaccedilotildees do intelecto divino Leibniz natildeo soacute natildeo defende que haacute pessoas possiacuteveis vagas mas tambeacutem natildeo haacute propriamente falando mundos possiacuteveis vagos

William de Siqueira Piauiacute | 225

necessidade nos valendo da noccedilatildeo de compossibilidade e

incompossibilidade mas natildeo nos adiantemos Eacute preciso voltar ao que diz

o texto e lembrar que Juacutepiter apenas consentiu a existecircncia a Sextus

existecircncia que eacute precedida portanto de uma noccedilatildeo completa individual

que faz parte do conteuacutedo do intelecto divino e que se relaciona com as

perfeiccedilotildees de suas operaccedilotildees daiacute sua eternidade perfeiccedilatildeo ou completude

(em oposiccedilatildeo a vago) e precedecircncia com relaccedilatildeo agrave existecircncia isto eacute agrave

posterior atualizaccedilatildeo Em que sentido portanto interpretar a afirmaccedilatildeo

ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo

pecourdquo Contra parte da interpretaccedilatildeo de Deleuze pois Apolo-Juacutepiter natildeo

criou Sextus mau ou fez a inclusatildeo de tal predicado ou atributo verbal a

partir de uma seacuterie universo ou mundo determinado de singularidades

adjacentes preacute-individuais natildeo eacute nesse sentido que o mundo precede ou

tem preferecircncia com relaccedilatildeo a Sextus De todo modo e no mesmo sentido

das trecircs obras que mencionamos mais acima nem o Deus cristatildeo criou

Adatildeo pecador nem Juacutepiter criou o Sextus violador (de Lucreacutecia)26 eles o

foram de modo completo e perfeito desde sempre e seus acontecimentos

com todas as circunstacircncia estavam registrados no livro dos destinos ou

das verdades eternas no palaacutecio dos destinos ou na regiatildeo dos possiacuteveis

no mesmo ldquolugarrdquo em que Leibniz diz muitas vezes deveriacuteamos ldquobuscarrdquo

os mundos possiacuteveis as seacuteries que corresponderiam aos universos etc

Deus ou Juacutepiter os teriam visto como ideias ou noccedilotildees completas e sem

precedecircncia de tempo ou preferecircncia moral ao mesmo tempo e antes do

decreto da criaccedilatildeo Justamente o que permite dizer do diabo que ldquoporque

estava escrito no livro das verdades eternas que conteacutem tambeacutem os

possiacuteveis antes de todo o decreto de Deus que essa criatura [o diabo] se

dirigiria livremente para o mal se ela fosse criadardquo (Idem p 329)27

26 A partir disso perguntariacuteamos O Deus leibniziano a partir de sua ciecircncia de simples inteligecircncia natildeo vecirc desde sempre na ideia da natureza das criaturas livres Adatildeo e Sextus que elas satildeo pecadoras e violadoras (ou preguiccedilosa) Se sim natildeo fica claro de fato o que faz a base da necessidade daquele deslocamento e termos de supor uma noccedilatildeo leibniziana de acontecimento a partir de singularidades adjacentes

27 Eis o motivo porque Derrida achou necessaacuterio criticar em ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo (Escritura e diferenccedila) de 1967 as noccedilotildees leibnizianas de livro e histoacuteria criticar a noccedilatildeo de repeticcedilatildeo associada aos destinos depositados no palaacutecio dos destinos (Teodiceia sect414) ou no livro dos destinos (Teodiceia sect275) Certamente o que faria eco agrave recusa por parte de Badiou quanto agrave inclusatildeo de Mallarmeacute em A dobra E talvez aqui possamos pensar que tendo em vista que

226 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Somente assim Jupiacuteter natildeo se torna o culpado do destino de Sextus e natildeo

nos perdemos nessa regiatildeo do labirinto da liberdade Seja como for a

partir de seu conhecimento infinito e infaliacutevel Deus criou fez vir agrave

existecircncia exatamente Adatildeo pecador e de um soacute golpe o mundo em que

ele pecaraacute

Natildeo vemos outra maneira de interpretar o final da Teodiceia a natildeo

ser que queiramos e contra o que estabelece a filosofia leibniziana nos

perder no labirinto da liberdade e necessidade Daiacute que natildeo vemos como

corroborar aquela divisatildeo em seleccedilotildees28 que faz a base da hipoacutetese

interpretativa formulada no segundo momento da nota 4 da 16ordf seacuterie de

Loacutegica do sentido e que nos obrigaria aceitar aquele deslocamento e

ordem de dependecircncia Seraacute mesmo que precisamos pensar ldquouma unidade

objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo

de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo

infinitordquo base daquela necessidade de deslocamento e ordem de

dependecircncia que nos levaria para muito longe do que afirmava a nota agrave

carta a Arnauld de 13 de maio de 1686 que jaacute mencionamos em nota para

compreender os paraacutegrafos finais da Teodiceia

Deleuze natildeo menciona Derrida em a Loacutegica do sentido publicada um ano apoacutes Escritura e diferenccedila ou em A dobra a menccedilatildeo a Husserl e a inclusatildeo de Mallarmeacute podem ser indicadoras de sua oposiccedilatildeo agravequela interpretaccedilatildeo De qualquer modo tanto Derrida quanto Badiou recusam ou recusariam a opiniatildeo que permanecemos leibnizianos especialmente se queremos fazer Mallarmeacute estar de acordo conosco Se o leitor quiser entender melhor o que estamos tentando dizer aqui teraacute de cruzar nossos artigos ldquoLeibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agrave teoria tradicional da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegadardquo e ldquoDerrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeordquo e se perguntar se Leibniz natildeo tem de ser colocado naquele momento preacute Mallarmeacute e Goumldel em que se acreditava na completude sistecircmica da linguagem

28 Nos referimos agrave seguinte afirmaccedilatildeo ldquo[I momento] Distinguimos pois trecircs seleccedilotildees (seacutelections) conforme ao tema

leibniziano uma que define um mundo por convergecircncia uma outra que define neste mundo indiviacuteduos completos uma outra enfim que define elementos incompletos ou entes ambiacuteguos comuns a vaacuterios mundos e aos indiviacuteduos correspondentes [II momento] Sobre esta terceira seleccedilatildeo ou sobre Adatildeo lsquovagorsquo constituiacutedo por um pequeno nuacutemero de predicados (ser o primeiro homem etc) que devem ser completados diferentemente em diferentes mundos cf Leibniz lsquoObservaccedilotildees sobre a carta de M Arnauldrsquo [que citamos na nota 15] [] Eacute verdade que neste texto Adatildeo vago natildeo tecircm existecircncia por si mesmo vale somente com relaccedilatildeo ao nosso entendimento finito seus predicados natildeo satildeo mais que generalidades Mas ao contraacuterio no texto ceacutelebre da Teodiceia (sectsect414-416) os diferentes Sextus nos mundos diversos tecircm uma unidade objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo infinito Muito cedo Leibniz havia elaborado uma teoria dos lsquosignos ambiacuteguosrsquo em relaccedilatildeo com os pontos singulares tomando por exemplo as seccedilotildees cocircnicas [les diffeacuterents Sextus dans les mondes diverses ont une uniteacute objective tregraves speacuteciale qui repose sur 1a nature ambigueuml de la notion de singulariteacute et sur la cateacutegorie de problegraveme du point de vue drsquoun calcul infini Tregraves tocirct Leibniz avait eacutelaboreacute une theacuteorie des lsquosignes ambigusrsquo en rapport avec les points singuliers prenant pour exemple les sections coniques] cf lsquoDo meacutetodo da universalidadersquo (Opuacutesculos Couturat [p 97-144])rdquo (DELEUZE 2003 p 118 grifo nosso)

William de Siqueira Piauiacute | 227

Dito isso nos parece que o que faltou a Deleuze foi buscar

compreender melhor as noccedilotildees de ideia e representaccedilatildeo associadas agrave de

noccedilatildeo completa de um individuo singular tanto no Discurso e

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld quanto nos paraacutegrafos finais

da Teodiceia e como o uso indistinto que ele proacuteprio faz do filosofema o

comprova pouco importa os detalhes do desenvolvimento do conceito de

mocircnada humana individual Mas isso se pareceria muito com a criacutetica que

fez Derrida a Foucault e que jaacute mencionamos no iniacutecio Eacute como se Deleuze

tivesse ficado parado na parte da ficccedilatildeo em que Lorenzo Valla fala de um

querer ainda indeterminado uma singularidade preacute-individual apenas

que permitiria bifurcaccedilatildeo e soacute posterior inclusatildeo base de sua gecircnese

estaacutetica ontoloacutegica como um pecar ainda indeterminado um verbo-

atributo que permitiria falar em inclusatildeo do que ainda natildeo estava

totalmente ldquodeterminadordquo natildeo exatamente determinado o em bifurcaccedilatildeo

base daquela ldquounidade objetiva muito especialrdquo a partir de um mundo de

singularidades adjacentes um mundo regido por uma espeacutecie de siacutentese

disjuntiva que permitiria falar em ldquonatureza ambiacutegua da noccedilatildeo de

singularidaderdquo e em ldquocategoria do ponto de vista de um caacutelculo infinitordquo e

permitiria pensar indiviacuteduos possiacuteveis lsquovagosrsquo constituiacutedos ldquopor um

pequeno nuacutemero de predicados que devem ser completados

diferentemente em diferentes mundosrdquo mas tivesse se esquecido que

trata-se para Leibniz de uma ficccedilatildeo falsa que teria desconsiderado o

segundo aspecto do tipo de conhecimento que Apolo-Juacutepiter-Palas-Atena

teria ou seja soacute teria considerado algo semelhante agrave ciecircncia divina de

visatildeo (que vecirc as existecircncias o mundo ou os corpos) e esquecido a ciecircncia

da simples inteligecircncia (que vecirc todos os possiacuteveis sem precedecircncia ou

preferecircncia) neste caso justamente contra ao que advertia o proacuteprio

Leibniz a saber a ciecircncia da simples inteligecircncia eacute ldquoonde eacute preciso

procurar a fonte de todas as coisasrdquo (Idem p 416 [sect417]) tanto dos

mundos ou seacuteries universo quanto dos indiviacuteduos possiacuteveis

Segundo de qualquer modo pouco antes de morrer Leibniz afirmava

para Samuel Clarke

228 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

[sect6] Mas nem essa presciecircncia nem essa preordenaccedilatildeo atentam contra a

liberdade De fato Deus levado pela suprema razatildeo [que pode ser comparada

agrave suprema perfeiccedilatildeo do sect31 do Discurso de metafiacutesica] a fazer a escolha

entre muitas sequecircncias [ou seacuteries] de coisas ou mundos possiacuteveis daquele

em que as criaturas livres tomassem tais e tais resoluccedilotildees ainda que natildeo sem

seu concurso tornou assim todo acontecimento certo e determinado uma vez

por todas (tout eacuteveacutenement certain et determine une fois pour toutes) [] esse

simples decreto da escolha natildeo muda mas apenas atualiza as suas naturezas

[as das criaturas livres] vistas por ele em suas ideias (LEIBNIZ 1983 [Quinta

carta] p 194)29

Tanto Arnauld quanto o teoacutelogo Clarke teriam se incomodado com o

mesmo Novamente tendo em vista que a criaccedilatildeo do mundo eacute uma

atualizaccedilatildeo das naturezas das criaturas livres que foram vistas por Deus

em suas ideias e que eacute a partir do conhecimento preacutevio presciecircncia ou

ciecircncia da simples inteligecircncia de ldquotodasrdquo as resoluccedilotildees que elas tomaratildeo

que podemos falar em pontos de vistas de um mundo que as compreende

e que seraacute atualizado junto com elas tendo em vista tudo isso natildeo haacute

motivo para falar em precedecircncia de mundo que resulte em singularidades

preacute-individuais ou que Deus cria ou vecirc primeiro o mundo onde Adatildeo eacute

pecador que levaria a crer que Deus natildeo vecirc ou cria um Adatildeo exatamente

pecador Ou seja nada aponta para uma ldquounidade objetiva muito especialrdquo

que nos obrigaria a diferenciar a noccedilatildeo de individuo possiacutevel com relaccedilatildeo

ao Adatildeo da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld ou do Discurso

da com relaccedilatildeo aos Sextus dos paraacutegrafos finais da Teodiceia Se levarmos

a seacuterio as obras que mencionamos ateacute aqui e principalmente a histoacuteria

contada ao final da Teodiceia mesmo os mundos possiacuteveis tecircm como

conteuacutedo as noccedilotildees completas ou perfeitas de pessoas possiacuteveis e natildeo haacute

por que falar em anterioridade ou preferecircncia do mundo com relaccedilatildeo ao

seu conteuacutedo

29 Mais ny cette prescience ny cette preordination ne derogent point agrave la liberteacute Car Dieu porte par la supremo raison agrave choisir plusieurs suites des choses ou mondes possibiles celuy ougrave les creatures libres prendroient telles ou telles resolutions quoyque non sans son concours a rendu par lagrave tout evenement certain et determine une fois pour toutes sans deroger por lagrave a liberte de ces creatures ce simple decret du choix ne changeant point mais actualisant seulement leur natures libres quirsquoil y voyoit dans ses ideacutees

William de Siqueira Piauiacute | 229

Agora fica claro que ateacute o final da sua vida Leibniz defendeu natildeo soacute

uma noccedilatildeo de pessoa espiritual (previamente conhecida) daiacute de mocircnada

humana individual que de modo nenhum se assemelha agrave noccedilatildeo de uma

pessoa vaga mas tambeacutem de acontecimento (previamente conhecido e

ordenado) que de modo nenhum se assemelha agrave ideia de caos ou que

lembre siacutenteses disjuntivas portanto ambas nada tecircm a ver com as boas

novas que Deleuze viu seja nas trecircs obras de Carroll seja na filosofia dos

Estoicos Na verdade se obedecemos seja agrave ordem de argumentaccedilatildeo do

Discurso seja agrave da Monadologia quem ilumina a noccedilatildeo de

acontecimento mudanccedila ou movimento eacute a de substacircncia individual ou

mocircnada e natildeo o contraacuterio aleacutem disso o que permite compreender o

conhecimento preacutevio que o deus leibniziano teria do mundo a ser

efetivado daiacute criado depende do que ele considerava ser a ciecircncia de

simples inteligecircncia e natildeo de visatildeo

Do nosso ponto de vista o que dissemos ateacute aqui jaacute nos impediria de

aceitar a natildeo ser com muitas ressalvas e natildeo vemos qualquer vantagem

nisso o deslocamento exigido por Deleuze seja na 16ordf seacuterie de Loacutegica do

sentido seja no capiacutetulo ldquoIndividuaccedilatildeo e especificaccedilatildeordquo de A dobra ou

seja inclusive por que natildeo vimos motivo para aceitar a defesa daquela

ldquounidade objetiva muito especialrdquo nos uacuteltimos paraacutegrafos da Teodiceia os

textos que mencionamos parecem fornecer prova suficiente que natildeo eacute

necessaacuterio nos encaminhar para as noccedilotildees de compossibilidade ou

incompossibilidade e regra de convergecircncia ou divergecircncia se queremos

compreender adequadamente o que Leibniz entendia por pessoa ou

indiviacuteduo possiacutevel associado a acontecimento e que seria muito diferente

do que o tinha visto Husserl Ao inveacutes de comeccedilarmos por aceitar tal

deslocamento preferimos nos perguntar Mas quais entatildeo seriam as

principais fontes do deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo de Deleuze ou

da peculiaridade daquela unidade objetiva Nossa hipoacutetese eacute que a Loacutegica

do sentido e mesmo A dobra Leibniz e o barroco estariam associados agrave

excessiva importacircncia que ele deu agrave seguinte parte do sect414 da Teodiceia

230 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

E quando as condiccedilotildees natildeo estiverem determinadas o bastante haveraacute tanto

quanto se quiser de tais mundos diferentes entre si que responderatildeo

diferentemente agrave mesma questatildeo de tantas maneiras quanto eacute possiacutevel Vocecirc

aprendeu geometria quando era ainda jovem como todos os gregos bastante

elevados Vocecirc sabe entatildeo que quando as condiccedilotildees de um assunto que se

pergunta natildeo o determinam o bastante e que haacute uma infinidade deles e ao

menos esse lugar que frequentemente eacute uma linha seraacute determinado Desse

modo vocecirc pode afigurar uma sequecircncia regrada de mundos que conteratildeo

todos ou somente o caso de que se trata e nisso variaratildeo as circunstacircncias e

as consequecircncias Mas se vocecirc coloca um caso que natildeo difere do mundo

atual exceto numa uacutenica coisa definida e na sua sequecircncia um certo

mundo determinado lhe corresponderaacute esses mundos estatildeo aqui [no

palaacutecio dos destinos] quero dizer em ideias (LEIBNIZ 2103 p 413 grifo

nosso)

Novamente os mundos enquanto ideias estatildeo naquele ambiente

regido pela ciecircncia de simples inteligecircncia Mas talvez tenhamos aqui o

uacutenico caso em que uma variedade de mundos eacute posta antes dos indiviacuteduos

possiacuteveis ou da determinaccedilatildeo completa dos acontecimentos com suas

circunstacircncias e permitiria falar em uma unidade objetiva especial

entretanto eacute preciso lembrar que trata-se de uma suposiccedilatildeo em que ldquoas

condiccedilotildees natildeo estejam determinadasrdquo exatamente com o mesmo sentido

de suposiccedilatildeo da menccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pessoa vaga da nota agrave carta de Arnauld

ndash que jaacute mencionamos tantas vezes de qualquer modo tal suposiccedilatildeo deve

ser compreendida com a ajuda de noccedilotildees tiradas de uma geometria que jaacute

era conhecida dos gregos30 e no miacutenimo natildeo justifica simplesmente o

apelo ou passagem para uma topologia de superfiacutecie ou para a defesa da

tese que em Leibniz podemos encontrar a defesa da noccedilatildeo completa ou

perfeita de uma substacircncia particular a partir da de singularidade

subjacente ou de uma unidade objetiva especial Todavia e em primeiro

lugar tambeacutem eacute preciso lembrar o que vem logo em seguida e que

grifamos no texto acima justamente o que permite a consequecircncia e

30 Vejam que aqui o proacuteprio Leibniz natildeo faz qualquer referecircncia agraves novidades que havia descoberto em matemaacutetica seja com relaccedilatildeo ao infinito agraves singularidades ou aos signos ambiacuteguos o que ele faz ou daacute a entender em outros momentos da Teodiceia ele prefere tendo em vista a eacutepoca em que viveria o personagem Teodoro se referir ao que jaacute era conhecido a partir da geometria dos gregos

William de Siqueira Piauiacute | 231

comparaccedilatildeo que viratildeo a seguir ou seja neste palaacutecio dos destinos Palas

Atena diz que mostraraacute a Teodoro ldquoonde (ougrave) ele [Sextus] se encontraraacuterdquo

ao que se seguira a advertecircncia ldquonatildeo completamente o mesmo Sextus que

vocecirc viu isto natildeo pode ser pois ele leva sempre consigo aquilo que ele

seraacute mas outros Sextus semelhantesrdquo mas tambeacutem totalmente

determinados ldquoque teratildeo o que vocecirc jaacute conhece do verdadeiro Sextusrdquo

Tudo segue no sentido de que haacute presciecircncia das ldquosequecircncias [ou seacuteries]

de coisas ou mundos possiacuteveisrdquo nos quais tais ou tais ldquocriaturas livres

tomassem tais e tais resoluccedilotildeesrdquo Claro que aquele ldquoonderdquo se refere a um

lugar que deve ser pensado no plano das ideias e aqui sim poderiacuteamos

utilizar a topologia leibniziana (Caracteriacutestica Geomeacutetrica ou Analysis

situs) ou a doutrina do espaccedilo e tempo relacionais para compreender o

que seria a noccedilatildeo individual completa e perfeita de um tal Sextus Seja

como for jaacute podemos dizer que tal ou tais Sextus nada tecircm a ver com o

Fang de ldquoO jardim de caminhos que se birfurcamrdquo31 de Borges daiacute de Silvia

e Bruno ou das Alices de Carroll ou seja apesar de estar de acordo que

Leibniz eacute um antigeneralista quando se trata das noccedilotildees completas ou

perfeitas isso natildeo traz a consequecircncia que por isso ele teria de defender a

constituiccedilatildeo de indiviacuteduos a partir de singularidades adjacentes A natildeo

necessidade da consequecircncia pode ser pensada natildeo soacute a partir do que de

fato lemos no sect414 da Teodiceia mas ainda mais explicitamente nos dois

momentos do sect9 do Discurso eacute verdade que ali Leibniz se mostra um

antigeneralista e nesse sentido um antitomista mas tambeacutem eacute verdade

que manteacutem a noccedilatildeo tomista das inteligecircncias separadas para a

compreensatildeo adequada do que ele havia defendido no sect8 da mesma obra

a saber quod ibi omne individuum sit specie infima Concordamos que

para pensar a noccedilatildeo leibniziana de espeacutecie a partir dessa antigeneralidade

eacute preciso opor a noccedilatildeo matemaacutetica de espeacutecie agrave noccedilatildeo fiacutesica de espeacutecie

mas novamente isso natildeo eacute razatildeo suficiente para recusar o que ele mesmo

afirma no sect9 e que faz o fundo de grande parte da oposiccedilatildeo dele ao

nominalismo de um Locke nos Novos ensaios E quanto ao que Leibniz

31 Cf BORGES 2005 [Ficciones] p 80

232 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

diz da existecircncia das espeacutecies no sentido matemaacutetico prefeririacuteamos

interpretaacute-la a partir do embate que ele teve com Newton quanto agrave

realidade e materialidade dos objetos matemaacuteticos que pode ser

depreendida do que eacute afirmado em Sobre o peso ndash a gravitaccedilatildeo ndash e

equiliacutebrio dos fluidos (De gravitatione et aequipondio fluidorum)32

Cremos que para o alematildeo as figuras matemaacuteticas natildeo precisam existir

para que falemos em verdade ou em movimentos em acordo com elas a

verdade de tais objetos eacute de outra ordem satildeo verdades eternas que

tambeacutem mas diferentemente das noccedilotildees de indiviacuteduos fazem o conteuacutedo

do intelecto divino Mas isso natildeo eacute o fundamental aqui

De qualquer forma parece-nos que foi justamente a excessiva

importacircncia que Deleuze conferiu a aquela parte tendo sido separada de

seu final consequecircncia e comparaccedilatildeo que conduziu Deleuze ao final do

texto ldquoSobre o meacutetodo universalrdquo33 o que seraacute mantido e de certa forma

intensificado em A dobra o que mais uma vez seraacute chamado para

fundamentar a exigecircncia de parte daquele deslocamento isto eacute o

pensamento generalista de Leibniz conduziria diretamente agrave exigecircncia do

uso geral das regras de convergecircncia e divergecircncia ndash e mesmo a um caacutelculo

do infinito ou agrave noccedilatildeo de signo ambiacuteguo ndash para as singularidades

adjacentes e o consequente delas para as noccedilotildees de compossibilidade e

incompossibilidade34

Do nosso ponto de vista talvez associada a essa importacircncia

exagerada e por que natildeo interpretaccedilatildeo equivocada outro problema talvez

ainda mais grave de exegese parece ter tido origem no lugar de parada que

Deleuze fez ou permite que faccedilamos no iniacutecio do sect47 da Quinta carta a

Clarke texto que de fato soacute pode ser interpretado a partir de parte da

32 Para um comeccedilo de conversa indicariacuteamos o nosso artigo ldquoQuerela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo agrave filosofia modernardquo

33 Cf LEIBNIZ 1903 [Opuscules et fragments ineacutedits de Leibniz] p 145

34 Vale relembrar a ordem de dependecircncia das suposiccedilotildees ldquoEacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na filosofia de Leibniz Pois (III) a inerecircncia de predicados na mocircnada expressiva supotildee primeiro (II) a compossibilidade do mundo expresso e esta por sua vez supotildee (I) a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdaderdquo (DELEUZE 2003 p 115)

William de Siqueira Piauiacute | 233

topologia leibniziana e da doutrina do espaccedilo e tempo relacionais quer

dizer ele teria parado justamente no modo como os homens

semelhantemente a Newton pensam a noccedilatildeo de movimento (daiacute mudanccedila

referente aos corpos por consequecircncia acontecimento) situaccedilatildeo e

possiacutevel teria parado e pensado a noccedilatildeo de indiviacuteduo apenas a partir de

uma topologia posicional que desconsidera justamente a necessidade de os

acidentes natildeo passearem fora das mocircnadas Neste caso Deleuze teria

esquecido de separar e mesmo teria invertido a importacircncia as duas

partes do texto ou seja a que comeccedila com ldquoEis como os homens chegam

a formar a noccedilatildeo de espaccedilordquo e a que comeccedila com ldquoE eacute bom considerar aqui

a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa

o lugarrdquo que continua com ldquodois sujeitos diferentesrdquo ldquonatildeo poderiam ter

precisamenterdquo de modo completamente determinado ldquoa mesma situaccedilatildeo

individual natildeo podendo um mesmo acidente individual encontrar-se em

dois sujeitos nem passar de sujeito para sujeitordquo Onde pois colocar o

Fang de Borges se natildeo queremos ir contra a doutrina leibniziana do espaccedilo

e tempo relacionais ou fazer esquecer a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo

de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugar ou que um mesmo acidente

individual natildeo pode encontrar-se em dois sujeitos Trata-se de retomada

explicita do sect7 da Monadologia que deve ser compreendida a partir de

uma noccedilatildeo de mocircnada fechada e natildeo vemos outro jeito do princiacutepio do

predicado inerente ao sujeito ou de predicados acontecimento (sentido

claacutessico) dados de uma vez por todas e natildeo atributos verbais que se

associem a uma espeacutecie de siacutentese disjuntiva ou exijam uma unidade

objetiva muito especial

Uma interpretaccedilatildeo atenta agrave inversatildeo necessaacuteria teria permitido a

Deleuze compreender o motivo da afirmaccedilatildeo de Leibniz no sect61 da

Monadologia segundo a qual os corpos les composeacutes apenas simbolizam

(symbolisent) no sentido que apenas ldquoconcordam comrdquo e que remeteria

ao convencionalismo no sentido que sozinhos careceriam de fundamento

defendido no sect1 do De interpretatione de Aristoacuteteles os fenocircmenos bem

234 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

fundados apenas simbolizam os simples35 e natildeo o contraacuterio o que mais

uma vez parece colocar Deleuze em dificuldades se se pretende afirmar a

precedecircncia do mundo ou dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees completas de

indiviacuteduos ou agrave necessidade de recorrer agraves singularidades adjacentes

E aqui do nosso ponto de vista chegamos ao ponto central do

deslocamento exigido por Deleuze desde a Loacutegica do sentido ele toma

seu pleno sentido somente se invertermos o plano argumentativo da

Monadologia ou seja se recusamos o caminho sinteacutetico do simples para

o composto dito de outro modo se pensarmos o conceito de mocircnada a

partir de uma matemaacutetica uma topologia que utilizariacuteamos para dar

conta das mudanccedilas que ocorreriam no plano dos corpos mas sem

individuaccedilatildeo preacutevia isto eacute a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos corpos viria em

primeiro lugar e comporia a seacuterie universo mas isso eacute inverter a ordem

de importacircncia entre a metafiacutesica e dinacircmica ndash ir contra o que diz o sect18

do Discurso ndash e eacute preciso estar muito atento para natildeo defender sem o

saber uma distinccedilatildeo que funciona muito bem no plano dos corpos mas

que eacute solo nuacutemero com relaccedilatildeo ao que de fato resolve o problema da

mudanccedila dito de outro modo tal inversatildeo desconsideraria justamente o

fundamento da ldquorelaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo

A proacutepria ordem dos capiacutetulos de A dobra evidenciaria tal inversatildeo as

consideraccedilotildees sobre as redobras na mateacuteria vecircm antes das sobre as dobras

nas almas e seu capiacutetulo 5 estaacute repleto de consideraccedilotildees que tomam o

corpo ou o mundo antes daquilo que faz o fundamento ldquoda relaccedilatildeo de

situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo

35 ldquoEt les composeacutes symbolisent en cela avec le simplesrdquo (LEIBNIZ 2004 p 235) Mais natildeo eacute o exato contraacuterio que defendiam os estoicos nesse sentido invertendo o valor da ldquoexpressatildeordquo do expresso do lekton Seria estranho que algueacutem que defendeu muitas vezes tanto o fato que os estoicos foram os criadores da filosofia da linguagem quanto que sua diferenciaccedilatildeo e dependecircncia entre lekton e corpo eram baacutesicas para a loacutegica do sentido e do acontecimento defendesse o contraacuterio mas aqui mantemos a suposiccedilatildeo de uma mudanccedila de ponto de vista que parece ter ocorrido por volta da elaboraccedilatildeo de Mil platocircs e que ficaria mais evidente nos capiacutetulos de tiacutetulo ldquoPostulados da linguiacutesticardquo e ldquoSobre alguns regimes de signosrdquo ou seja a partir de 1980 o conceito de palavra de ordem (le mot drsquoordre) o registro do lekton passa a assumir o mesmo valor causal que os corpos mais forccedila ainda para o plano da expressatildeo Marca inconteste da ldquogenialidaderdquo do francecircs teriacuteamos permanecido ainda mais leibnizianos ndash um Leibniz deleuzeano natildeo nos esqueccedilamos ndash a partir da deacutecada de 80 portanto talvez o principal motivo que levou Deleuze a voltar aos textos de Leibniz e intensificar os pontos principais da 16ordf seacuterie de a Loacutegica do sentido

William de Siqueira Piauiacute | 235

Do nosso ponto de vista tal inversatildeo que consideramos ser o

fundamento real da exigecircncia daquele deslocamento eacute o problema mais

grave da interpretaccedilatildeo que Deleuze faz da filosofia leibniziana ela teria

desconsiderado a resposta que Leibniz teria dado a um outro problema

levantado por Newton em De gravitatione et aequipondio fluidorum

mas que se associava agrave caracterizaccedilatildeo cartesiana do movimento e que fica

explicito no uso da expressatildeo affectiones locorum ou the properties of

places por parte do inglecircs Problema que para Leibniz tem de ser

resolvido para que possamos falar em mudanccedila ou movimento real Isso

nos permite formular um questionamento para a interpretaccedilatildeo geral

empreendida por Deleuze seja em A dobra seja em Loacutegica do sentido

Como diferenciar a noccedilatildeo newtoniana de individuaccedilatildeo (solo numero) da

leibniziana se nos mantemos apenas nas affectiones locorum36 Vale

lembrar que a filosofia natural de Newton e sua matemaacutetica tambeacutem

permitem singularidades adjacentes Com as agravantes Como o

equacionou Leibniz natildeo eacute justamente por seu fechamento que o conceito

de mocircnada resolve o problema cartesiano do movimento Dito de outro

modo Como o conceito de mocircnada baseado em singularidades adjacentes

tatildeo semelhante ao de vizinhanccedila imediata resolveria o problema da causa

proacutexima do movimento Assim cremos que a leitura de Deleuze aproxima

perigosamente Leibniz de Newton sem ter respondido suficientemente agrave

pergunta geral Por que a preferecircncia pelo alematildeo se em termos de

descoberta e grande parte do tipo de uso que ambos fizeram do caacutelculo

diferencial e integral de uma geometria de posiccedilatildeo e mesmo das regras de

convergecircncia e divergecircncia nada impediria de ver tambeacutem na filosofia do

inglecircs uma topologia de superfiacutecies37 E terminariacuteamos com as

provocaccedilotildees oacutebvias Permanecemos leibnizianos ou newtonianos

36 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect47 da uacuteltima carta a Clarkerdquo ou ldquoLeibniz y el papel de la imaginacioacuten en la geacutenesis de la nocioacuten de espacio newtonianordquo

37 Referimo-nos ao que eacute defendido entre outros no excelente livro De Newton y los newtonianos entre Descartes e Berkeley de Laura Benitez Grobet e Joseacute A Robles Garciacutea cf Bibliografia De qualquer modo o que estamos tentando dizer aqui agravaria ainda mais tais questionamentos desde que a hipoacutetese defendida por Benitez Grobet e Robles Garciacutea eacute a de que Newton precisava de um outro modelo de predicaccedilatildeo que natildeo a aristoteacutelica e por que natildeo da recusa do princiacutepio in-esse para levar a cabo sua filosofia natural e nesse sentido vale lembrar as muitas vezes em que Leibniz pergunta a Clarke que papel em termos de predicaccedilatildeo aristoteacutelica em termos de sujeito predicado

236 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Conclusatildeo

Do nosso ponto de vista em primeiro lugar a tese ceacutelebre de Leibniz

segundo a qual cada mocircnada individual exprime o mundo pode e deve ser

compreendida a partir do princiacutepio de inerecircncia do predicado no sujeito

obviamente um grande desafio para o inteacuterprete em segundo lugar natildeo

eacute verdade que para Leibniz Deus criou o mundo antes das ou de

preferecircncia agraves mocircnadas ao menos natildeo no sentido que haveria de fato

inclusatildeo posterior de algum acidente (enquanto predicado um adjetivo)

natildeo jaacute preacute-vista nas noccedilotildees completas de indiviacuteduos ou pessoas ou mesmo

na seacuterie possiacutevel de um mundo em terceiro lugar se aquela precedecircncia

ou preferecircncia for pensada em termos de compossibilidade e

incompossibilidade ndash que oferecesse alguma alternativa para o princiacutepio

de contradiccedilatildeo ndash eacute preciso lembrar que o entendimento divino eacute fora da

ordem do tempo e mais uma vez natildeo podemos falar em precedecircncia ou

preferecircncia de partes de suas operaccedilotildees e por fim natildeo vemos como as

regras de convergecircncia e divergecircncia nos ajudariam ou seria necessaacuterio

recorrer a elas para corroborar a interpretaccedilatildeo de Deleuze se aquela

precedecircncia ou preferecircncia natildeo se viu confirmada Assim natildeo vemos

motivos para aceitar a necessidade do deslocamento que Deleuze pretende

impor desde a Loacutegica do sentido Vale lembrar que nossa oposiccedilatildeo nada

tem a ver com o uso do caacutelculo diferencial e integral e as regras de

convergecircncia e divergecircncia para pensar o conceito de mocircnada ldquofechadardquo

e mesmo de uma topologia de superfiacutecie jaacute mostramos em outro lugar38 o

como a matemaacutetica criada por Leibniz pode ajudar a pensar um conceito

de mocircnada humana individual fechada e de seacuterie universo fechado em

e acidente desempenharia o tempo e espaccedilo absolutos de Newton Sendo que o sect47 da quinta resposta que deu a Clarke deve ser considerado justamente natildeo soacute como uma tentativa de se manter fiel aacute metafiacutesica que fundamenta a loacutegica aristoteacutelica e o inicio da Monadologia mas tambeacutem sem perder de vista seja os princiacutepios de sua topologia (Caracteriacutestica Geometrica ou Analysis situs) seja de sua doutrina do espaccedilo e tempo relacionais

38 Cf nossos artigos ldquoMatemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e Integral e o processo psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeordquo e ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo

William de Siqueira Piauiacute | 237

pleno acordo com sua metafiacutesica e sua dinacircmica em uma palavra em

pleno acordo com a histoacuteria contada ao final da Teodiceia

Por fim se na ldquoobra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduordquo

ldquoque descobre o sentido e jaacute pressente o natildeo-senso remontando agrave

superfiacutecie a partir de um mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que

se envolve nela e lhe impotildee a dura lei das misturasrdquo ela nada tem a ver

com o conceito leibniziano de mocircnada humana individual ou substacircncia

particular e se novamente na ldquoobra de Carrollrdquo ldquoSilvia e Bruno seriam

antes como as pessoas lsquovagasrsquo que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila

ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo comum a vaacuterios mundos mundo dos

homens e mundo das fadasrdquo a proacutepria referecircncia agrave noccedilatildeo lsquopessoa vagarsquo

deveria ser prova suficiente que natildeo podem ser melhor compreendidas a

partir das noccedilotildees leibnizianas de mocircnada humana individual ou

substacircncia particular Mas natildeo eacute justamente porque queremos estar com

Carroll ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de sujeito ou contestaccedilatildeo da

identidade pessoal ndash e Mallarmeacute ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de

livro ou texto ndash que natildeo somos leibnizianos e nem mesmo newtonianos

E aqui deixamos algo mais que a simples discordacircncia entre os ldquofiloacutesofosrdquo

Badiou e Deleuze

Referecircncias39

BADIOU Alain A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX Trad Antonio Teixeira e

Gilson Iannini Belo Horizonte MG Autecircntica 2015

BENITEZ GROBET Laura e GARCIacuteA Joseacute A Robles De Newton y loacutes newtonianos entre

Descartes e Berkeley Argentina Universidad Nacional de Quilmes 2006

BORGES Jorge Luis O jardim de caminhos que se bifurcam In _____ Ficccedilotildees Trad

Carlos Nejar Satildeo Paulo Ed Globo 1989

39 Tendo em vista que se tratava inicialmente de um minicurso cremos ser justificativa suficiente para oferecermos uma Bibliografia ao inveacutes de apenas referecircncias bibliograacuteficas

238 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

_____ El jardiacuten de senderos que se bifurcan In _____ Ficiones Buenos Aires Emeceacute

Editores 2005

CARROLL Lewis (Charles Lutwidge Dodgson) As aventuras de Alice no paiacutes das

maravilhas e Atraveacutes do espelho e o que Alice encontrou laacute Trad Sebastiatildeo

Uchoa Leite Satildeo Paulo Ed Summus 1980

_____ Algumas aventuras de Siacutelvia e Bruno Trad Seacutergio Medeiros Satildeo Paulo

Iluminuras 1997

_____ Complete Works Nova York Vintage Books 1976

_____ Diaries Londres Cassell 1953

_____ The selected letters Londres Macmillan 1989

DELEUZE Gilles A dobra Leibniz e o barroco Trad Luiz B L Orlandi Campinas SP

Papirus 1991

_____ Loacutegica do sentido Trad Luiz Roberto Salinas Fortes Satildeo Paulo Ed Perspectiva

2003

_____ Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro

Graal 2006

_____ Exasperacioacuten de la filosofiacutea el Leibniz de Deleuze Trad equipe editorial Cactus

Buenos Aires Ed Cactus 2006

_____ Conversaccedilotildees Trad Peter Paacutel Pelbart Rio de Janeiro Ed 34 2013

DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia Trad Luiz

B L Orlandi Rio de Janeiro Ed 34 2011

DERRIDA Jacques ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo In _____ A escritura e a diferenccedila Trad

Maria Beatriz Marques Nizza da Silva et al Satildeo Paulo Ed Perspectiva 2014

HUISMAN Denis Dicionaacuterio de filoacutesofos Trad Claudia Berlinder et al Satildeo Paulo Martins

Fontes 2001

William de Siqueira Piauiacute | 239

HUSSERL Edmund Meditaccedilotildees cartesiana introduccedilatildeo agrave fenomenologia Trad Frank de

Oliveira Satildeo Paulo Ed Madras 2001

LEIBNIZ G W Opuscule et fragments ineacutedits de Leibniz Organizado por Louis

Couturat Paris Alcan 1903

_____ Correspondance Leibniz-Clarke (Org Andreacute Robinet) Paris Presses

Universitaires de France (PUF) 1957

_____ The Leibniz-Clarke correspondence with extracts from Newtonrsquos ldquoPrincipiardquo and

ldquoOpticsrdquo Org H G Alexander Manchester Manchester University Press 1956

_____ Die philosophischen Schriften (GP IV Letter to Molanus (p 297-303) On God

and Soul (1679) e GP V Nouveaux essais Hildesheim Olms 1960

_____ Mathematische Schriften (GM) Hildesheim Olms 1962

_____ Anaacutelisis infinitesimal Trad Teresa Martin Santos Madri Tecnos 1987

_____ Sobre a anaacutelise da situaccedilatildeo Trad Homero Santiago Cadernos de filosofiacutea alematilde

n 5 p 64-75 1999

_____ La caracteacuteristica geacuteomeacutetrique Trad Marc Parmentier Paris J Vrin 1995

_____ Discurso de metafiacutesica Monadologia Correspondecircncia com Clarke Trad

Marilena de Souza Chauiacute e Carlos Lopes de Mattos Satildeo Paulo Ed Abril Cultural

1983

_____ Discurso de metafiacutesica e outros textos Trad Marilena Chauiacute e Alexandre da Cruz

Bonilha Satildeo Paulo Ed Martins Fontes 2004

_____ Discours de metaphysique suivi de Monadologia et autres textes Estabelecido

apresentado e com notas de Michel Fichant Paris Gallimard 2004

_____ La monadologiacutea Trad Virginia Naughton Buenos Aires Quadrata 2005

_____ Novos ensaios Trad Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Abril Cultural 1984

_____ Nouveaux essais Paris Flamarion 1990

240 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

_____ Correspondencia con Arnauld Trad Vicente P Quintero Buenos Aires Ed

Losada 2004

_____ Correspondance de Leibniz et drsquoArnauld In _____ Œuvres philosophiques de

Leibniz aos cuidados de Paul Janet) Paris Alcan 1900

_____ Observaccedilotildees quanto ao livro sobre a origem do mal publicado haacute pouco na

Inglaterra (sectsect 18-22) [Leibniz e a metafiacutesica das diferenccedilas qualitativas dos

possiacuteveis] Theoria revista eletrocircnica de filosofia v 4 n 11 p 151-60 2012

_____ Ensaios de Teodiceia Trad William de Siqueira Piauiacute e Juliana Cecci Silva Satildeo

Paulo Ed Estaccedilatildeo Liberdade 2013

_____ Essais de theacuteodiceacutee Paris Flamarion 1969

_____ Escritos Filosoacuteficos Org Ezequiel Olaso Buenos Aires Ed Charcas 1982

PIAUIacute William de Siqueira Leibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da

criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartes Prometeus ano 10 n 22 p 49-64 2017

_____ Derrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeo

Prometeus ano 10 n 24 p 178-93 2017

_____ Leibniz y el papel de la imaginacioacuten em la geacutenesis de la nocioacuten de espacio

newtoniano Imaginacioacuten y conocimiento de Descartes a Freud NASR Zuraya

Monroy e RODRIacuteGUEZ-SALAZAR Luis Mauriacutecio Meacutexico Ed Corinter e Ed Gedisa

p 33-49 2016

_____ Leibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologia Prometeus ano 9 n 19 p 100-26

2016

_____ Querela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo aacute filosofia

moderna Kalagatos v 11 n 21 p 523-49 2014

_____ Leibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect 47 da uacuteltima carta a Clarke

Prometeus ano 6 n 11 p 9-34 2013

_____ Noccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibniz Cadernos de

histoacuteria e filosofia da ciecircncia v 21 n 1 p 257-87 2011

William de Siqueira Piauiacute | 241

_____ Matemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e integral e o processo

psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeo Theoria ndash Revista eletrocircnica de Filosofia Pouso

Alegre v 5 p 1-16 2010

_____ Leibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeo Aacutegora filosoacutefica

Pernambuco Universidade Catoacutelica ano 6 n 1 p 117-36 2006

PIAUIacute William de Siqueira e CECCI SILVA Juliana Leibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agraves

teorias tradicionais da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegada O

Mutum revista de literatura e pensamento (Dossiecirc Literatura escrever o pensar)

Org por Piero Eyben Brasiacutelia UnB n 1 v 1 p 183-203 2013

SARTRE Jean-Paul A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica

Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Cadernos

espinosanos n 22 2010 p 183-228

_____ A transcendecircncia do ego esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica Trad Joatildeo

Batista Kreuch Petroacutepolis RJ Ed Vozes 2013

Sobre os Organizadores

Natural de Brasiacutelia Marcus Joseacute Alves de

Souza eacute Doutor em Filosofia pela

Universidade Federal da Paraiacuteba

Professor do Instituto de Ciecircncias

Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes e do

Mestrado em Filosofia da Universidade

Federal de Alagoas Liacuteder do Grupo de

Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo

Potiguar de Mossoroacute Maxwell Morais de

Lima Filho eacute Doutor em Filosofia pela

Universidade Federal do Cearaacute e

Professor do Instituto de Ciecircncias

Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes da

Universidade Federal de Alagoas desde

2011

A Editora Fi eacute especializada na editoraccedilatildeo publicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo de pesquisa

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Escritos de Filosofia III

Linguagem e Cogniccedilatildeo

Organizadores

Marcus Joseacute Alves de Souza

Maxwell Morais de Lima Filho

Diagramaccedilatildeo Marcelo A S Alves

Capa Carole Kuumlmmecke - httpswwwbehancenetCaroleKummecke

Arte de Capa Pedro Lucena

Revisatildeo ortograacutefica Marcus Viniacutecius Matias

Revisatildeo das regras da ABNT Iuri Rocio Franco Rizzi

O padratildeo ortograacutefico e o sistema de citaccedilotildees e referecircncias bibliograacuteficas satildeo prerrogativas de

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SOUZA Marcus Joseacute Alves de LIMA FILHO Maxwell Morais de (Orgs)

Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo [recurso eletrocircnico] Marcus Joseacute Alves de Souza Maxwell Morais de Lima

Filho (Orgs) -- Porto Alegre RS Editora Fi 2019

242 p

ISBN - 978-85-5696-748-0

Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg

1 Filosofia 2 Cogniccedilatildeo 3 Linguagem 4 Loacutegica 5 Mente I Tiacutetulo

CDD 100

Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Filosofia 100

Para Bia Jorginho

Tissi Camu e o Ecossistecircmico Rudaacute

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 11

Marcus Joseacute Alves de Souza

1 14

Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica

Manfredo Arauacutejo de Oliveira

2 40

Encheiriacutedion Capiacutetulo I Traduccedilotildees e Comentaacuterios

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio

3 53

A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva da Filosofia Analiacutetica da Mente

Taacuterik de Athayde Prata

4 69

A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico A Criacutetica de John Searle agraves Principais

Correntes da Filosofia da Mente

Maxwell Morais de Lima Filho

5 98

Da Natureza Humana As Perspectivas Epistemoloacutegicas de Piaget Chomsky e

Foucault

Argus Romero Abreu de Morais

6 116

Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche A Leitura de Guumlnter Abel

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa

7 133

Habermas e o Problema do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira

8 146

Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes para se Pensar a Natureza de Sistemas

Formais Uma Abordagem Wittgensteiniana

Marcos Silva

9 158

Revisitando o Argumento da Linguagem Privada

Marcus Joseacute Alves de Souza

10 172

O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico

Ricardo S Rabenschlag

11 184

A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo

Sagid Salles

12 201

O Leibniz de Deleuze Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido

William de Siqueira Piauiacute

Sobre os Organizadores 242

Apresentaccedilatildeo

Marcus Joseacute Alves de Souza

O empreendimento filosoacutefico eacute uma atividade coletiva especialmente

por seu caraacuteter corretivo estabelecido em debate puacuteblico Eacute claro que haacute

momentos de reflexatildeo solitaacuteria mas mesmo estes satildeo momentos de

organizaccedilatildeo discursiva que visam agrave correccedilatildeo em debate e o debate com

os autores eacute fundamental para o desenvolvimento do empreendimento

filosoacutefico Ao apresentar este novo volume da seacuterie Escritos de Filosofia

Linguagem e Cogniccedilatildeo gostariacuteamos de enfatizar estes dois aspectos

sugeridos no iniacutecio o aspecto coletivo e o corretivo deste trabalho Na

dimensatildeo coletiva este eacute mais um fruto da atividade do Grupo de Pesquisa

Linguagem e Cogniccedilatildeo da Universidade Federal de Alagoas Ele resulta da

continuidade de um trabalho que desde 2014 reuacutene profissionais de

Filosofia de variadas instituiccedilotildees para apresentarem e debaterem suas

pesquisas Num Estado com pouca tradiccedilatildeo em realizaccedilatildeo deste tipo de

atividade a reuniatildeo coletiva para divulgaccedilatildeo de pesquisas eacute uma conquista

que deve ser ressaltada pois fortaleceu o Grupo de Pesquisa e originou

uma linha do receacutem-criado Mestrado Acadecircmico de Filosofia da UFAL

(2018) Mas filoacutesofos se reuacutenem especialmente para apresentar ideias e

debatecirc-las numa perspectiva de autocorreccedilatildeo entre pares Isso vem se

dando nas atividades do Grupo inclusive nos Encontros seis ateacute agora

mas sobretudo atraveacutes desta seacuterie de publicaccedilotildees Aqui o aspecto

corretivo ganha relevo A perspectiva eacute incrementar ainda mais uma

tradiccedilatildeo de publicaccedilotildees que mantenha o debate de ideias vivo

contribuindo para o avanccedilo das discussotildees filosoacuteficas daqueles que

tomarem contato com cada publicaccedilatildeo da seacuterie Escritos de Filosofia

Linguagem e Cogniccedilatildeo Possibilitando assim a acareaccedilatildeo criacutetica dos vaacuterios

12 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

escritos e animando o avanccedilo do conhecimento filosoacutefico num acircmbito da

Filosofia que reuacutene temas relacionados agraves aacutereas de Loacutegica da Filosofia da

Linguagem da Filosofia da Mente e da Epistemologia

Os textos aqui apresentados satildeo resultado do IV Encontro Linguagem

e Cogniccedilatildeo realizado em novembro de 2017 que reuniu mais uma vez

profissionais de vaacuterias instituiccedilotildees (UFAL UFAM UFPI UFS UFC UFPE

UFSJ PUC-Rio UnB dentre outras) no intuito de avanccedilarmos a pesquisa

filosoacutefica nos contextos alagoano e nordestino Como nas outras ediccedilotildees

as temaacuteticas de investigaccedilatildeo estatildeo relacionadas agrave loacutegica agrave linguagem agrave

consciecircncia e ao conhecimento

Eacute importante afirmarmos que para aleacutem de uma possiacutevel

organicidade temaacutetica dos textos este livro eacute resultado tambeacutem de

confluecircncias de amizades construiacutedas pelo interesse filosoacutefico Nisso

nossos Encontros tecircm se mostrado frutiacuteferos ao mostrar a forccedila da

tradiccedilatildeo de associar a ldquoamizade ao saberrdquo

Esta eacute a terceira coletacircnea da seacuterie Escritos de Filosofia Linguagem e

Cogniccedilatildeo mostrando continuidade e esforccedilo em darmos publicidade ao

trabalho de pesquisa realizado Reforccedilando e aprofundando laccedilos teoacutericos

de investigaccedilatildeo este volume eacute composto de 12 capiacutetulos escritos por 14

pesquisadores de 8 instituiccedilotildees (UFAM UFPI UFC UECE UFPE UFAL

UFS e UFSJ) O leitor teraacute oportunidade de refletir e avaliar criticamente

sobre uma diversidade de temas filosoacuteficos Neste ponto eacute interessante

destacar que os temas abarcados vatildeo aleacutem daquilo que ficou conhecido

como ldquoFilosofia Analiacuteticardquo haja vista a salutar heterogeneidade de autores

e abordagens jaacute presente nos outros volumes

O leitor poderaacute pensar a trajetoacuteria histoacuterico-filosoacutefica da conhecida

ldquoreviravolta linguiacutesticardquo e avaliar se efetivamente saiacutemos de um marco

reflexivo da subjetividade para o da linguagem em Filosofia Ler um

trabalho cuidadoso de traduccedilatildeo comentada de um capiacutetulo do Encheiriacutedion

de Epicteto Tomar contato com uma reflexatildeo sobre o conceito de

consciecircncia em Sartre numa perspectiva analiacutetica Compreender a criacutetica

de John Searle agraves principais correntes da Filosofia da Mente Revisitar o

Marcus Joseacute | 13

tema da natureza humana a partir de trecircs autores natildeo-analiacuteticos Piaget

Foucault e Chomsky Rediscutir os temas da consciecircncia da linguagem e

da natureza em Nietzsche a partir da avaliaccedilatildeo de Guumlnter Abel

Aprofundar no conhecimento da temaacutetica da objetividade dentro do

pensamento de Habermas Refletir sobre o conceito de jogo em sistemas

loacutegicos formais Retomar a discussatildeo do argumento da linguagem privada

de Wittgenstein Avaliar aspectos filosoacuteficos do pensamento dos ldquonovos

ateusrdquo Aproximar-se da problemaacutetica da vagueza numa avaliaccedilatildeo criacutetica

da teoria trivalente da vagueza e as dificuldades loacutegico-filosoacuteficas do

estabelecimento da precisatildeo conceitual Analisar de modo criacutetico a

interpretaccedilatildeo que Deleuze faz de Leibniz Enfim o leitor teraacute oportunidade

de pensar temas autores e abordagens variadas neste volume Esperamos

que seja de proveito para conhecimento inicial ou mesmo de

aprofundamento para o leitor experiente em Filosofia e que todos tenham

uma leitura filosoficamente estimulante

Agradecemos aos participantes que gentilmente forneceram os textos

para a composiccedilatildeo deste trabalho coletivo Agradecemos agrave agecircncia de

fomento agrave pesquisa de Alagoas FAPEAL (Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa

do Estado de Alagoas) pelo apoio financeiro ao evento que deu origem a

este volume Ao apoio do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e

Artes (ICHCA) e do Curso de Filosofia da UFAL A todos que contribuem

com as atividades o Grupo de Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo da UFAL Agrave

Editora Fi pela parceria nesta publicaccedilatildeo

Maceioacute setembro de 2019

1

Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta

de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica

Manfredo Arauacutejo de Oliveira 1

A filosofia se encontra hoje diante de um desafio que tem a ver com

a proacutepria forma de sua configuraccedilatildeo enquanto teoria ou seja o desafio da

articulaccedilatildeo de um novo paradigma teoacuterico O ponto de partida desta

situaccedilatildeo foi certamente a reviravolta linguiacutestica ou seja a substituiccedilatildeo no

pensamento de Frege da anaacutelise de sensaccedilotildees representaccedilotildees e juiacutezos pela

anaacutelise das expressotildees linguiacutesticas Quine (1981 p 23) ao fazer um

balanccedilo dos resultados que marcaram positivamente a filosofia do seacuteculo

XX afirmou que o evento decisivo e irreversiacutevel da filosofia depois de

Hume foi a reviravolta linguiacutestica Que significa isto para a filosofia Hoje

haacute pensadores que defendem que ela apenas significou uma radicalizaccedilatildeo

da reviravolta transcendental da filosofia moderna Faremos uma breve

apresentaccedilatildeo da proposta da fenomenologia transcendental no

pensamento de Husserl que levantou a pretensatildeo de articular o paradigma

transcendental da forma mais rigorosa possiacutevel para poder depois mostrar

que a reviravolta linguiacutestica natildeo necessariamente se deve entender como

uma radicalizaccedilatildeo deste paradigma mas articula antes um quadro teoacuterico

propriamente poacutes-transcendental

1 Graduado pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR) Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Gregoriana de Roma (PUG) Doutor em Filosofia pela Ludwig-Maximilian de Munique (LMU) e Professor Emeacuterito da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 15

A Filosofia Transcendental Preacute-Linguiacutestica O Mundo se nos Daacute em

Intuiccedilotildees Puras A Fenomenologia Husserliana

Para Husserl a filosofia exige uma mudanccedila radical de postura o que

revela o caraacuteter ingecircnuo da atitude da postura natural Essa transformaccedilatildeo

radical de postura nos vai mostrar que todos os entes soacute nos podem ser

dados na esfera da subjetividade transcendental atraveacutes de muacuteltiplos

modos de manifestaccedilatildeo que satildeo em princiacutepio variaacuteveis e ilimitados Neste

sentido fenomenologia natildeo eacute simples descriccedilatildeo do que aparece sem que

possa haver uma decisatildeo sobre o que o ente eacute em sua essecircncia e seu ser

mas ela eacute precisamente o esclarecimento dos entes em sua essecircncia em

seu sentido e em seu ser Nesta perspectiva se deve dizer que a questatildeo

central da fenomenologia natildeo eacute o ser mas o sentido embora natildeo seja claro

como Husserl interpreta o sentido De qualquer modo ele sempre tematiza

o sentido e natildeo o ser mesmo (PUNTEL 2011 p 305)

Isto se faz atraveacutes do retorno agraves vivecircncias intencionais nas quais os

sentidos vecircm agrave doaccedilatildeo Dessa forma o tema especiacutefico da fenomenologia

eacute a correlatividade entre as ldquoformas de doaccedilatildeordquo dos objetos e os momentos

intencionais das vivecircncias (dos atos intencionais) em suas inuacutemeras

modificaccedilotildees (TUGENDHAT 1967 p 172)2 Numa palavra fenomenologia

eacute anaacutelise da correlaccedilatildeo entre objeto intencional e ato intencional ou seja

trata-se de determinar a partir da intenccedilatildeo o sentido do ldquointendidordquo

Portanto o que temos eacute sempre um objeto num modo determinado de nos

dar-se natildeo haacute objeto sem a mediaccedilatildeo de seu modo de dar-se Fenocircmeno

eacute entatildeo aqui um correlato intencional da consciecircncia (FINK 1976 p 83)

e a subjetividade eacute o princiacutepio da originariedade (FINK 1976 p 91)

Ser eacute entatildeo ser para a consciecircncia esta eacute a tese baacutesica da filosofia

transcendental e natildeo se pode entender o projeto husserliano de filosofia

sem vinculaacute-lo agrave tradiccedilatildeo do pensamento transcendental de Kant e

sobretudo de Fichte3 no giro reflexivo da filosofia na expressatildeo de

2 A respeito do caminho que vai de Bolzano a Husserl cf PORTA (2003 p 85-106)

3 Essa eacute a tese baacutesica de Siemek Cf SIEMEK (2001 p 190 e ss) Cf OLIVEIRA (1973 p 139-220)

16 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Tugendhat (1976 p 16 e ss) aceita e radicalizada por Husserl Isto significa

dizer que o sentido e o ser de qualquer objeto que conservamos enquanto

idecircntico atraveacutes das diferentes formas de consciecircncia se formam atraveacutes

de nossas accedilotildees sinteacuteticas no como de sua doaccedilatildeo isto eacute nos diferentes

tipos de objetualidade (HABERMAS 1984 p 37) Para a postura

fenomenoloacutegica todos os entes abstratos ou concretos reais ou ideais tecircm

seus modos de doaccedilatildeo (HUSSERL 1963 p 169) Numa palavra tudo se

revela na consciecircncia como objeto constituiacutedo por atos constituintes e

portanto a subjetividade emerge como a fonte uacuteltima de toda doaccedilatildeo de

sentido

Husserl rejeita este meacutetodo regressivo natildeo no sentido da pergunta

pelas condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento objetivo mas no sentido

de que esta pergunta no pensamento de Kant natildeo realiza um retorno agrave

intuiccedilatildeo e neste sentido eacute em uacuteltima anaacutelise uma construccedilatildeo atraveacutes de

deduccedilatildeo Com isto todo o procedimento se radica em suposiccedilotildees natildeo

intuiacutedas o que tem como consequecircncia que desta forma natildeo eacute possiacutevel

atingir a autodoaccedilatildeo da subjetividade em seu ser em si ela eacute apenas

ldquoconstruiacutedardquo num pensamento vazio

O grande ausente no pensamento de Kant eacute precisamente a intuiccedilatildeo

que Husserl denomina o ldquoPrinciacutepio dos Princiacutepiosrdquo entendida como a

fonte originaacuteria a evidecircncia fundante de todo conhecimento (HUSSERL

1950 p 25 e STROumlKER 1987 p 1-34) Desta forma a tese central da

fenomenologia eacute que soacute o retorno aos atos intencionais pode produzir

aquela autodoaccedilatildeo em evidecircncia intuitiva que constitui o cerne da

fenomenologia Assim as coisas mesmas natildeo satildeo objetos no sentido de

uma ldquoposiccedilatildeo transcendente de serrdquo mas o que eacute intuiacutedo na satisfaccedilatildeo de

atos intencionais (GADAMER 1987 p 118)

Um confronto com a tese fundamental da fenomenologia a respeito

da forma suprema do dar-se da realidade a noacutes pode iniciar-se com a

criacutetica articulada por E Tugendhat (1976 p 85-87) conhecido eacute para

Husserl precisamente o que nos eacute imediatamente dado Para Tugendhat

justamente nisto se mostra o caraacuteter unilateral da concepccedilatildeo husserliana

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 17

de conhecimento a funccedilatildeo do conceito para o que eacute sensivelmente preacute-

dado perde importacircncia frente ao papel da intuiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que eacute

significado de tal modo que ascensatildeo no conhecimento significa

exclusivamente maior proximidade da coisa e natildeo igualmente aumento

em diferenciaccedilatildeo e distinccedilatildeo

Este preacute-conceito da fenomenologia ou seja de que a simples

presenccedila garante por si mesma o cumprimento uacuteltimo de uma intenccedilatildeo

significante tem para Tugendhat enormes consequecircncias na concepccedilatildeo

husserliana da filosofia Em primeiro lugar isto eacute decisivo para o modelo

de filosofia transcendental que ele articulou e para a concepccedilatildeo da

consciecircncia pura como o campo absoluto precisamente porque o campo

do que se daacute adequadamente Em segundo lugar para a consequecircncia

metoacutedica de que a anaacutelise fenomenoloacutegica se restringe ao que eacute

simplesmente dado intuitivamente na intuiccedilatildeo originaacuteria (HUSSERL

1950 p 52) A natildeo consideraccedilatildeo da questatildeo da determinaccedilatildeo tem como

resultado que o determinado eacute aceito ingenuamente e natildeo eacute considerado

expressamente mas por outro lado ele eacute o ponto de chegada de um

processo de determinaccedilatildeo que se faz atraveacutes de sua relaccedilatildeo agrave forma de seu

dar-se Isto conduz sempre a uma absolutizaccedilatildeo da experiecircncia em

questatildeo

De fato aqui se situa a questatildeo fundamental de confronto com o

pensamento de Husserl e sua proposta de articular a filosofia enquanto

fenomenologia transcendental mesmo na sua formulaccedilatildeo uacuteltima de

filosofia do mundo vivido como o originariamente dado Trata-se para ele

de atingir a dimensatildeo mais originaacuteria do pensamento enquanto tal e esta

eacute para ele a intuiccedilatildeo que se daacute originariamente e que constitui a fonte de

justificaccedilatildeo de todo conhecimento Isso leva segundo E Fink (1976 p 85)

a uma postura ldquointencionalistardquo na concepccedilatildeo do ser e da verdade

enquanto posiccedilatildeo especiacutefica da fenomenologia enquanto filosofia Na

realidade aqui natildeo se articula propriamente uma justificaccedilatildeo mas se

defende a tese de que se trata em uacuteltima instacircncia de um ver de um

mostrar-se a dimensatildeo originaacuteria se mostra daacute-se

18 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Como diz Habermas (1984 p 47-59) em Husserl a intuiccedilatildeo sensiacutevel

serve de modelo para pensar qualquer outro tipo de intuiccedilatildeo possiacutevel pois

aqui aparece em niacutevel elementar o que constitui a intuiccedilatildeo a autodoaccedilatildeo

de um objeto Sua suposiccedilatildeo fundamental eacute que temos na experiecircncia

sensiacutevel acesso intuitivo a algo dado imediata e evidentemente Para E

Fink (1976 p 84) em Husserl a percepccedilatildeo intuitiva constitui de fato o

modo originaacuterio de autodoaccedilatildeo Sua tese eacute que em Husserl isto natildeo

significa um intuicionismo inimigo do pensamento mas defesa do

ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo e do caraacuteter secundaacuterio do pensamento Habermas

aponta para a dificuldade de defesa desta tese do ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo a

partir inclusive de consideraccedilotildees do proacuteprio Husserl (1964) em sua obra

ldquoErfahrung und Urteilrdquo A razatildeo fundamental eacute que em cada intuiccedilatildeo

originaacuteria jaacute estatildeo presentes determinaccedilotildees categoriais o que para ele

significa que o modelo de uma filosofia da consciecircncia tem que ser

substituiacutedo pelo modelo de uma filosofia enquanto teoria centralizada na

linguagem

Que significa isto para a filosofia Em primeiro lugar que depois da

reviravolta linguiacutestica natildeo podemos mais analisar nossa capacidade de

conhecimento independentemente de nossa capacidade de falar e agir uma

vez que noacutes enquanto sujeitos cognoscentes jaacute sempre nos encontramos

no horizonte de nossas praacuteticas no mundo vivido Linguagem e realidade

estatildeo mutuamente imbricadas de tal modo que toda experiecircncia humana

eacute linguisticamente impregnada Com isto supera-se definitivamente o

ldquomito do dadordquo uma vez que mesmo a experiecircncia sensiacutevel jaacute eacute mediada

linguisticamente de tal modo que ela perde a autoridade epistecircmica

daquela instacircncia que nos daria imediatamente a realidade pura Para

Habermas (1984 p 20) foi meacuterito de W Sellars (2003 p 23 ss) em sua

criacutetica ao empirismo do Ciacuterculo de Viena de ter explicitado esta

consequecircncia da reviravolta linguiacutestica

Isto tem como consequecircncia a eliminaccedilatildeo do primado da

intencionalidade e de sua substituiccedilatildeo pelo primado de uma compreensatildeo

linguiacutestica Neste caso a urgecircncia de uma fundamentaccedilatildeo que eacute central na

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 19

filosofia natildeo pode satisfazer-se atraveacutes de uma consideraccedilatildeo

fenomenoloacutegica da histoacuteria da originaccedilatildeo do mundo vivido mas atraveacutes

da acareaccedilatildeo das pretensotildees de validade que levantamos em nossas

praacuteticas simboacutelicas ordinaacuterias Natildeo intuiccedilatildeo mas argumentos eacute o que pode

justificar a aceitaccedilatildeo ou natildeo das pretensotildees de validade e por conseguinte

eacute neste niacutevel que se situa uma teoria filosoacutefica

Em direccedilatildeo semelhante Apel rearticula a filosofia transcendental

claacutessica a partir do diaacutelogo com as filosofias que saiacuteram da reviravolta

linguiacutestica a filosofia analiacutetica e a filosofia hermenecircutica Para ele essa

reviravolta provocou uma transformaccedilatildeo daquilo que constitui a questatildeo

central desta tradiccedilatildeo de pensamento filosoacutefico ou seja a pergunta pelas

condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido Foi nesse contexto que

Tugendhat (1976 p 16) 4 interpretou a reviravolta linguiacutestica como

radicalizaccedilatildeo do movimento do pensamento que constitui o cerne da

filosofia transcendental que ele denomina de ldquoreviravolta reflexivardquo cujo

cerne consiste em dizer que a filosofia natildeo tem como tarefa o

conhecimento direto dos objetos do mundo mas sua especificidade eacute uma

reflexatildeo sobre como os objetos do mundo enquanto tais nos podem ser

dados

Eacute neste sentido estrito que K-O Apel afirma ser a filosofia da

linguagem a nova ldquofilosofia primeirardquo ou seja natildeo uma filosofia primeira

enquanto pergunta pelo ente enquanto tal ou pela estrutura da

consciecircncia transcendental enquanto fundamento do conhecimento

vaacutelido mas uma filosofia primeira agrave altura da consciecircncia criacutetica alcanccedilada

em nossos dias o que neste contexto significa a consciecircncia da

inevitabilidade da mediaccedilatildeo linguiacutestica de nosso acesso ao mundo

Neste sentido eacute que natildeo haacute como diz J McDowell (2005 p 64)

qualquer experiecircncia originaacuteria que esteja fora da esfera conceitual natildeo

haacute uma fronteira exterior para aleacutem da esfera conceitual como ele diz

comentando Wittgenstein

4 ldquoSie konzipiert ihre Fragestellungen nicht in direkter Thematizierung jeweiliger Gegenstaumlnde sondern in der gleichzeitigen Reflexion darauf wie uns diese Gegenstaumlnde gegeben sein koumlnnenwie sie uns zugaumlnglich werdenrdquo

20 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

natildeo existe lacuna ontoloacutegica entre o tipo de coisa que podemos querer dizer

ou de modo geral entre o tipo de coisa em que podemos pensar e o tipo de

coisa que pode ocorrer Quando algueacutem pensa de modo verdadeiro aquilo em

que ele pensa eacute aquilo que ocorre Como o mundo eacute tudo que ocorre (como ele

proacuteprio escrevera) natildeo haacute lacuna entre o pensamento enquanto tal e o

mundo

Natildeo haacute portanto nenhuma lacuna entre o pensamento enquanto tal

e o mundo mas um jogo reciacuteproco entre conceitos e intuiccedilotildees entre

receptividade e espontaneidade (McDOWELL 2005 p 40) o que poreacutem

natildeo nos impede de falar de uma realidade independente que exerce um

controle racional sobre nosso pensamento Isso natildeo significa contudo que

o mundo seja completamente no espaccedilo de um sistema de conceitos

Precisamos de um trabalho longo e paciente o que implica uma obrigaccedilatildeo

permanente de reflexatildeo O importante aqui eacute afirmaccedilatildeo de que a realidade

natildeo estaacute fora da esfera conceitual e a rejeiccedilatildeo do ldquomito do dadordquo significa

precisamente que natildeo existe uma presenccedila pura originaacuteria fora da esfera

conceitual Eacute isto que McDowell chama de ldquoo caraacuteter indelimitado do

conceitualrdquo

A Posiccedilatildeo da Filosofia-Sistemaacutetico-Estrutural de L B Puntel

A questatildeo do papel exercido pela linguagem na filosofia constitui

certamente para L B Puntel uma questatildeo central partindo-se de uma nova

forma de articular a filosofia e suas questotildees que eacute resultado do que se

convencionou denominar de ldquogiro ou reviravolta linguiacutesticardquo da filosofia

(OLIVEIRA 2015) Natildeo se trata aqui de um novo objeto ou um novo campo

de investigaccedilatildeo para uma teoria filosoacutefica mas da filosofia mesma em sua

configuraccedilatildeo teoacuterica Isto significa dizer que a tematizaccedilatildeo da linguagem

natildeo constitui uma disciplina filosoacutefica nova mas sua consideraccedilatildeo faz

parte da tematizaccedilatildeo dos pressupostos irrenunciaacuteveis da articulaccedilatildeo da

filosofia enquanto uma forma de atividade teoacuterica na vida humana jaacute que

o que estaacute em jogo aqui eacute a instacircncia imprescindiacutevel de articulaccedilatildeo de uma

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 21

teoria filosoacutefica sem ela nada eacute dado a uma teoria filosoacutefica o que seria

dizer que a teoria seria inviaacutevel

A tese baacutesica da reviravolta linguiacutestica eacute de que natildeo eacute mais possiacutevel

pensar a filosofia sem a mediaccedilatildeo da linguagem e isto tem consequecircncias

fundamentais em sua articulaccedilatildeo o que se configura como tese da

centralidade da linguagem na filosofia Na proposta da filosofia

sistemaacutetico-estrutural de Puntel (OLIVEIRA 2014 p 190 ss) esta eacute

elucidada no contexto de uma ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo da revoluccedilatildeo

transcendental que caracteriza o pensamento moderno e desemboca

numa filosofia poacutes-transcendental Que significa propriamente isto

Uma filosofia sistemaacutetico-estrutural na proposta de Puntel (2008 p

97 ss) radica-se na concepccedilatildeo fundamental de que filosofia eacute uma

atividade humana que se distingue de outras atividades em razatildeo de seu

objetivo baacutesico isto eacute a elaboraccedilatildeo e a apresentaccedilatildeo de teorias Teoria eacute a

forma de discurso metoacutedico e rigorosamente ordenado que se compotildee de

sentenccedilas puramente declarativas Nesta posiccedilatildeo em oposiccedilatildeo a vaacuterias

propostas hoje existentes a filosofia eacute concebida como um

empreendimento estritamente teoacuterico Esta ldquoatividaderdquo e seu ldquoprodutordquo

tecircm a ver com o ldquomundordquo compreendido como a totalidade ilimitada dos

ldquoobjetosrdquo ou ldquocamposrdquo ou ldquoacircmbitosrdquo a totalidade do que eacute dado na

linguagem

A uniatildeo desses trecircs fatores baacutesicos nos autoriza a falar da ldquodimensatildeo

expositivardquo como sendo o especiacutefico da atividade filosoacutefica Por esta razatildeo

seu primeiro trabalho consiste precisamente no esclarecimento da

dimensatildeo da teoricidade e da explicitaccedilatildeo do conceito de uma teoria

filosoacutefica pela apresentaccedilatildeo de seus componentes irrenunciaacuteveis Numa

palavra sendo a filosofia uma atividade que se efetiva na esfera da

linguagem tendo assim a linguagem como seu pressuposto primeiro

exige-se para o cumprimento de sua tarefa a tematizaccedilatildeo de seus

pressupostos linguiacutesticos o que eacute uma decorrecircncia da reflexividade que

caracteriza a atividade teoacuterica neste niacutevel de sua efetivaccedilatildeo Isto implica

22 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

dizer que uma filosofia deve comeccedilar pela consideraccedilatildeo de sua mediaccedilatildeo

linguiacutestica

Num sentido programaacutetico Puntel elabora uma quase-definiccedilatildeo de

filosofia que serviraacute de fio condutor para toda a exposiccedilatildeo ldquoa filosofia

sistemaacutetico-estrutural eacute a teoria das estruturas universais (mais gerais) do

universo do discurso [universe of discourse] ilimitadordquo (PUNTEL 2008

p 33) ldquoUniverso do discursordquo pode ser explicitado por conceitos mais

determinados do ponto de vista do conteuacutedo como ldquomundordquo ldquouniversordquo

ldquorealidaderdquo e em uacuteltima instacircncia ldquoserrdquo A dimensatildeo do universo do

discurso eacute o dado abrangente dado eacute compreendido aqui como o

ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila portanto algo linguisticamente articulado

precisamente aquilo que eacute dado para ser compreendido ou explicado pela

filosofia seu objeto sua temaacutetica especiacutefica tudo o que eacute candidato a um

tratamento teoacuterico-filosoacutefico

A pretensatildeo proacutepria de qualquer teoria eacute assim compreender um

dado um setor do mundo ou o mundo enquanto tal no caso de uma teoria

filosoacutefica Desta forma eacute tarefa do filoacutesofo sistemaacutetico-estrutural tentar

integrar numa teoria compreensiva todos estes dados que num primeiro

momento emergem justamente como candidatos agrave compreensatildeo como

candidatos agrave teoria Daiacute porque a formaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica

consiste em trabalhar a interconexatildeo entre a dimensatildeo dos dados e a

dimensatildeo das estruturas isto eacute os componentes irrecusaacuteveis da

linguagem enquanto os pressupostos irrenunciaacuteveis para a compreensatildeo

de qualquer dado de tal forma que as estruturas afinal se revelam como

estruturas dos dados e os dados enquanto incluiacutedos na dimensatildeo das

estruturas

Uma pergunta se revela aqui como fundamental Que eacute entatildeo

compreender Que implica o compreender Esta eacute uma questatildeo que

subjaz a todo empreendimento teoacuterico uma vez que compreender um

determinado X constitui a tarefa especiacutefica de qualquer empreendimento

teoacuterico ldquosendo que ldquocompreenderrdquo neste caso eacute um conceito geral para

ldquoentenderrdquo ldquoexplicarrdquo ldquoarticularrdquo (PUNTEL 2008 p 205) O X por sua

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 23

vez designa a coisa a temaacutetica o objeto do compreender o dado em

questatildeo

Neste contexto um procedimento teoacuterico se revela muito produtivo

as diferentes posiccedilotildees filosoacuteficas (PUNTEL 2008 p 206) podem ser

consideradas a partir de como elas pensam a relaccedilatildeo entre o compreender

e a coisa a ser compreendida A pergunta baacutesica aqui eacute entatildeo se o

compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao

contraacuterio De acordo com a primeira posiccedilatildeo (PUNTEL 1990 p 266 ss)

noacutes natildeo criamos produzimos ou constituiacutemos o mundo efetivo mas antes

o encontramos o mundo efetivo nos eacute preacute-dado Isto significa dizer que

apreendemos a realidade sem conceito sem linguagem5 sem teorias o

que segundo esta posiccedilatildeo se mostra em muitas experiecircncias Assim nesta

perspectiva uma coisa eacute a apreensatildeo da realidade outra a sua

compreensatildeo de tal forma que a verdadeira tarefa de uma atividade teoacuterica

consiste em descobrir o mundo em si mesmo aprendecirc-lo descrevecirc-lo e

explicaacute-lo O mundo portanto situa-se fora do conceitual isto constitui o

cerne do que se denomina de ldquorealismordquo

A posiccedilatildeo contraposta (normalmente denominada pelos realistas de

idealista hoje se fala mais de antirrealismo) procura desvelar a

ingenuidade desta primeira posiccedilatildeo ressaltando a mediaccedilatildeo irrecusaacutevel de

um sistema conceitual em toda atividade teoacuterica assim que admitir uma

realidade inteiramente desprovida de esquemas conceituais se mostra

impossiacutevel Realidade mundo universo soacute tecircm sentido no interior de um

esquema conceitual por noacutes articulado Distinguimos os objetos

justamente atraveacutes da introduccedilatildeo deste ou daquele esquema conceitual Jaacute

sempre estamos em relaccedilatildeo com o mundo pela atividade conceitual de tal

modo que fora desta relaccedilatildeo o mundo eacute simplesmente ininteligiacutevel Desta

forma falar de independecircncia do mundo natildeo significa afirmar que ele se

coloque para aleacutem da esfera conceitual

5 Haacute filoacutesofos que distinguem entre significado linguiacutestico e conteuacutedos mentais Cf Miller (2010 p 208) ldquoFiloacutesofos chamam estados mentais tais como crenccedilas desejos vontades intenccedilotildees esperanccedilas e assim por diante de atitudes proposicionais Podemos dizer que enquanto sentenccedilas possuem significado linguiacutestico atitudes proposicionais possuem conteuacutedo mentalrdquo Cf a respeito Branquinho (2006 p 72-78)

24 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Neste contexto McDowell (2005 p 65) estabelece uma distinccedilatildeo

fundamental

Pensamento pode significar o ato de pensar mas pode significar tambeacutem o

conteuacutedo que eacute pensado ndash aquilo que algueacutem pensa6 Ora se quisermos dar o

devido reconhecimento agrave independecircncia da realidade precisamos de uma

coerccedilatildeo exterior ao pensamento e ao juiacutezo entendidos enquanto exerciacutecios de

espontaneidade Esta coerccedilatildeo natildeo precisa vir de um lugar exterior aos

conteuacutedos pensaacuteveis7

Foram aqui apresentadas duas posiccedilotildees extremas que habitualmente

natildeo se articulam desta forma uma vez que as diferentes propostas

filosoacuteficas satildeo normalmente formas mistas portadoras de elementos de

ambas as posturas o que se pode mostrar mesmo no pensamento de Kant

fundamentalmente marcado pela dicotomia radical entre sujeito e objeto

Putnam empenhou-se em caracterizar com rigor a primeira posiccedilatildeo

Ele defende a partir de 1976 a posiccedilatildeo denominada por ele mesmo de

ldquorealismo internordquo que levanta a pretensatildeo de articular uma posiccedilatildeo

intermediaacuteria entre o que ele chama de ldquorealismo metafiacutesicordquo8 da tradiccedilatildeo

e o ldquorelativismordquo muito difundido em nossos dias A primeira o realismo

metafiacutesico (PUTNAM 1996 p 205) eacute o que Moore e Russell teriam

retomado depois de ter sido recusado pelo idealismo moderno de Kant e

Hegel Putnam (1993 p 213) atribui ao proacuteprio Kant a distinccedilatildeo entre

estes dois tipos de realismo

Outros autores falam simplesmente de ldquorealismordquo ou como eacute caso de

Puntel (PUNTEL 1990 p 269) de ldquorealismo transcendenterdquo Para ele

pode-se distinguir aqui duas variantes a) O realismo transcendente

absoluto que afirma existir um uacutenico sistema conceitual correto

considerando os demais como algo puramente subjetivo 2) O realismo

6 Na perspectiva da filosofia sistemaacutetico-estrutural pensamento proposiccedilatildeo e estado-de-coisas satildeo expressotildees sinocircnimas e constituem o ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila Cf Puntel (2008 p 214-216)

7 McDowell (2005 p 73) tambeacutem afirma o seguinte ldquoO objeto de uma experiecircncia [] eacute entendido como parte do mundo pensaacutevel tomado como um todordquo

8A respeito das raiacutezes teoacutericas do realismo metafiacutesico no pensamento de Putnam cf Engel (1994 p 363-364)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 25

transcendente moderado que admite uma pluralidade de sistemas

conceituais e os interpreta como tambeacutem as teorias como diferentes

aproximaccedilotildees ao uacutenico mundo efetivo

Em nossos dias o realismo metafiacutesico para Putnam constitui a tese

especiacutefica dos materialistas9 Sua tese baacutesica eacute que a fiacutesica constitui uma

configuraccedilatildeo de uma teoria verdadeira e acabada da estrutura do mundo

Putnam admite ter sido precisamente esta sua primeira posiccedilatildeo teoacuterica jaacute

que tambeacutem ele defendeu a tese de que as ciecircncias descrevem e explicam

uma realidade inteiramente independente de noacutes Constituiu um

argumento decisivo para ele neste momento o fato de que a transformaccedilatildeo

de significaccedilatildeo dos termos teoacutericos natildeo demanda que se deixe de falar de

uma uacutenica e mesma realidade o que seria impossiacutevel se ela natildeo se situasse

para aleacutem de nossas teorias

O realismo metafiacutesico se fundamenta entatildeo na crenccedila de que haacute

apenas uma teoria verdadeira capaz de expor exaustivamente a estrutura

do mundo como ele eacute em si mesmo independente de noacutes de nossas

concepccedilotildees a seu respeito Numa palavra o realista metafiacutesico afirma que

podemos falar de coisas e pensar nelas como elas satildeo em si mesmas em

sua constituiccedilatildeo intriacutenseca independentemente de nosso espiacuterito de nossa

linguagem de nossas teorias A razatildeo disto eacute a relaccedilatildeo de correspondecircncia

entre as expressotildees de nossa linguagem e certos tipos de entidades

independentes Nesta perspectiva o mundo eacute entendido enquanto a

totalidade invariaacutevel de objetos independentes de nosso espiacuterito de nossa

linguagem de nossas teorias (PUTNAM 1993 p 156) Hoje se defende a

tese de que estas entidades tecircm nos objetos materiais seu paradigma e de

que a correspondecircncia em tela eacute uma relaccedilatildeo causal

Numa palavra o mundo efetivo nos eacute preacute-dado enquanto plenamente

estruturado em si mesmo (ldquoa ready-made worldrdquo expressatildeo sugerida por

N Goodman) e o objetivo fundamental de toda e qualquer atividade

9 Cf Putnam (1996 p 208) ldquoMetaphysics or the enterprise of describing the ldquofurniture of the worldrdquo the ldquothings in themselvesrdquo apart from our conceptual imposition has been rejected by many analytic philosophers (though not as I remarked by Russell) and by all the leading brands of continental philosophy Today apart from relics it is virtually only materialists (or ldquophysicalistsrdquo as they like to call themselves) who continue the traditional enterpriserdquo

26 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

teoacuterica consiste em apresentar o mundo como ele eacute em si mesmo da

maneira mais fiel possiacutevel Putnam denomina esta posiccedilatildeo de

ldquoexternaliacutesticardquo jaacute que sua postura pressupotildee que noacutes podemos dispor do

ldquoponto de vista de Deusrdquo (ldquoGodacutes-Eye Viewrdquo) que teria condiccedilotildees de

alcanccedilar os dois lados do abismo entre linguagem e mundo de tal modo

que fosse possiacutevel comparar linguagem e mundo e decidir se haacute

correspondecircncia entre os dois

Neste caso tornar-se-ia possiacutevel distinguir claramente entre o que

realmente eacute o caso e o que se julga ser o caso (PUTNAM 1990 p 102) Esta

eacute a razatildeo pela qual uma teoria correspondencial da verdade eacute um elemento

essencial desta posiccedilatildeo uma teoria que segundo ele foi contestada por

Kant (PUTNAM 1990 p 92-93) Putnam (1990 p 85) chama a teoria da

correspondecircncia de ldquoteoria da semelhanccedila de relaccedilatildeordquo precisamente por

ela sustentar que a relaccedilatildeo vigente entre nossas representaccedilotildees e os

objetos externos eacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila

Satildeo vaacuterias as razotildees que levaram Putnam a abandonar esta posiccedilatildeo

Puntel (2008 p 480) enumera as trecircs mais importantes 1) A

compreensatildeo de que a crenccedila de que poderiacuteamos dispor de uma

perspectiva de Deus eacute uma presunccedilatildeo e uma ilusatildeo 2) O realismo

metafiacutesico produz uma consequecircncia inadmissiacutevel uma vez que o abismo

entre linguagem (teoria) e mundo eacute insuperaacutevel para seres finitos natildeo se

pode afastar a possibilidade de que mesmo uma teoria ideal por noacutes

elaborada possa enganar-se em relaccedilatildeo ao mundo e isto eacute certamente

ininteligiacutevel 3) O contato com o uacuteltimo Wittgenstein o levou a considerar

o realismo metafiacutesico uma teoria ingecircnua quanto ao sentido que

simplesmente natildeo se sustenta mais

Na perspectiva pragmaacutetica aberta por Wittgenstein a referecircncia a um

jogo de linguagem eacute essencial o que significa dizer que o significado

linguiacutestico natildeo se esgota na esfera da semacircntica Isto conduz agrave afirmaccedilatildeo

da primazia da dimensatildeo pragmaacutetica na linguagem e consequentemente a

uma articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas de forma inteiramente diferente

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 27

Como diz Zilhatildeo (1993 p 204) para descrever a mudanccedila radical de

perspectiva

[hellip] soacute no interior dos jogos de linguagem correspondentes eacute que

determinadas expressotildees mesmo quando apresentam uma estrutura formal

declarativa adquirem o caraacutecter de ldquopensamentosrdquo e ldquoproposiccedilotildeesrdquo isto eacute a

sua simples aparecircncia formal considerada independentemente do uso que

elas tenham num contexto determinado natildeo nos autoriza a classificaacute-las de

acordo com qualquer categoria

No entanto para Puntel a posiccedilatildeo alternativa articulada por Putnam

o ldquorealismo internordquo que eacute uma versatildeo da posiccedilatildeo antirrealista apesar de

ter um aspecto profundamente correto tem tambeacutem uma dimensatildeo

inaceitaacutevel Certamente a tese de que o mundo (a natureza a realidade o

universo as coisas mesmas) existe ou possa existir em absoluta

independecircncia do espiacuterito respectivamente da linguagem enquanto tal se

autodestroacutei em sua enunciaccedilatildeo portanto natildeo eacute inteligiacutevel e por isto

inaceitaacutevel (PUNTEL 1990 p 271-72) Antes de tudo porque

inteligibilidade implica algo conceitual

Na realidade um tal mundo natildeo passa de um constructo

contraditoacuterio por um lado o mundo eacute aceito como algo independente de

qualquer elemento conceitual por outro lado se fala de mundo relaciona-

se com o mundo o que inclui elementos conceituais em muacuteltiplas formas

linguisticamente expressos A Keller defende a tese de que a palavra em

contraposiccedilatildeo a siacutelabas sem sentido caracteriza-se por ser uma sequecircncia

de sons com significado A partir daqui ele justifica a vinculaccedilatildeo entre

ldquoconceito e linguagemrdquo afirmando que jaacute que natildeo existe significado sem

uma sequecircncia de sons pelo menos pensada natildeo existe conceito sem uma

sequecircncia de sons sem palavra nenhum conceito (KELLER 1979 p93)

Esta tese antirrealista eacute para Puntel correta mas insuficiente porque

ele natildeo mostrou em que sentido exatamente a tese de uma realidade

concebida deste modo seria nua O argumento aqui eacute que questotildees a

respeito da dicotomia entre pensamentoatos

constituintesespiacuteritolinguagem e mundonaturezarealidadecoisa

28 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

mesma natildeo podem ser elucidadas sem a referecircncia clara a uma tese

ontoloacutegica central que eacute o pressuposto de qualquer empreendimento

teoacuterico o que possa ser aquela dimensatildeo que habitualmente se denomina

mundorealidadecoisa mesma ela eacute portadora de qualquer forma de uma

estruturaccedilatildeo imanente fundamental ou seja de uma expressabilidade

plena sem a qual a teoria seria privada de sentido

Puntel (2008 p 482) emprega o termo ldquoexpressabilidaderdquo como uma

espeacutecie de foacutermula abreviada de uma seacuterie de termos como

inteligibilidade conceituabilidade compreensibilidade explicabilidade

articulabilidade etc Portanto se o ser enquanto tal eacute expressaacutevel e eacute isto

que todo empreendimento teoacuterico em princiacutepio pressupotildee sob pena de ou

ser autocontraditoacuterio ou natildeo ter sentido entatildeo a esta universalidade

corresponde uma instacircncia de sua expressatildeo igualmente universal uma

instacircncia expressante a linguagem de modo que parafraseando Gadamer

se pode dizer ldquoo ser que pode ser entendido eacute o universo do discursordquo

(PUNTEL 2008 p 526-527) o que implica uma relaccedilatildeo essencial entre o

ser e a linguagem

Em contraposiccedilatildeo ao realismo metafiacutesico a posiccedilatildeo aqui eacute que a

expressabilidade do mundo pressuposta por nossos empreendimentos

teoacutericos natildeo eacute compreensiacutevel sem uma instacircncia que a exprima ou seja a

tese de um ldquomundo nurdquo sem qualquer relaccedilatildeo a algo como linguagem

espiacuterito conceitualidade etc numa palavra a tese de um mundo

enclausurado em si mesmo eacute uma impossibilidade metafiacutesica e por esta

razatildeo ininteligiacutevel

Quando se afirma [] a ldquoindependecircncia absolutardquo do mundo (do universo

etc) isso daacute a impressatildeo de que se estaacute afirmando algo natildeo inteligiacutevel a saber

um ldquomundo natildeo conceitualizadordquo ldquonatildeo estruturadordquo totalmente

incompreendido e incompreensiacutevel situado fora do alcance do compreensiacutevel

do articulaacutevel etc Esta eacute a aporia em que incorre o realista (metafiacutesico)

(PUNTEL 2008 p 498)

Portanto a linguagem diz o mundo ela eacute a instacircncia intransponiacutevel

da expressabilidade do mundo e por isto seu lugar na filosofia eacute

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 29

absolutamente central Partindo das teses da antropologia do iniacutecio do

seacuteculo XX A Keller apresenta esta problemaacutetica afirmando que o ser

humano enquanto ldquoser biologicamente carenterdquo natildeo estaacute contudo preso

por seus instintos a um meio ambiente especiacutefico mas eacute relacionado ao

mundo em seu todo Ele natildeo conhece contudo esta totalidade

simplesmente atraveacutes de um conjunto desordenado de impressotildees mas a

capta atraveacutes de esquemas aprendidos o que se pode denominar a

ldquoestrutura-enquantordquo porque ele sempre capta algo enquanto algo

determinado isto eacute linguisticamente delimitado Daiacute porque para o ser

humano a linguagem eacute tatildeo vitalmente necessaacuteria como o instinto para o

animal (KELLER 1979 p 121 129)

Em segundo lugar para Puntel Putnam como os antirrealistas em

geral sempre afirma que a realidade (o mundo o universo) se refere a

ldquonosso espiacuteritordquo aldquonossa linguagemrdquo Isto significa dizer que a maneira

como o mundo estaacute estruturadodepende da linguagem em que ele se

expressa e essa linguagem para ele eacute sempre ldquonossa linguagemrdquo Desta

forma nem tudo se pode dizer em cada linguagem trata-se aqui de uma

grandeza limitada Nossas visotildees do mundo satildeo sempre diferentemente

relativas agraves nossas diferentes linguagens Eacute por isto afirma Humboldt

(1903a p 14-15) que soacute atraveacutes da linguagem captamos o mundo seus

objetos propriedades e relaccedilotildees e a linguagem eacute sempre um todo uma

estrutura cujas partes devem ser consideradas em seu papel no todo

Realizamos isso no entanto sempre numa linguagem determinada

de uma forma determinada Cada linguagem efetiva uma transformaccedilatildeo

do mundo em linguagem (HUMBOLDT 1903b p 28) articula uma visatildeo

do mundo (Weltansicht) uma concepccedilatildeo peculiar do mundo e de sua

estrutura10 uma ontologia proacutepria Assim se a cultura engendra a

linguagem a linguagem entatildeo eacute frente ao indiviacuteduo uma potecircncia que

determina seu pensamento e sua experiecircncia configurando sua visatildeo do

mundo Desta forma cada linguagem eacute em si mesma uma individualidade

espiritual (HUMBOLDT 1903b p 151) que delimita o caraacuteter nacional de

10 A respeito das questotildees epistemoloacutegicas que marcam essa posiccedilatildeo cf Kutschera (1975 p 332 e ss)

30 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

tal forma que o ser humano natildeo fala como ele fala simplesmente porque

deseja falar assim mas porque tem que falar assim11 Nele a maneira de

falar eacute um constrangimento de sua natureza intelectual (HUMBOLDT

1903b p 127) Na perspectiva da concepccedilatildeo pragmaacutetica contudo nada haacute

aqui de necessaacuterio

[hellip] nada haacute de necessaacuterio no facto de usarmos os nossos sinais do modo como

os usamos isto eacute em vez de uma forma loacutegica que espelha a forma da

realidade a gramaacutetica eacute algo de arbitraacuterio [hellip] Natildeo se pode assim falar de uma

gramaacutetica errada mas tatildeo soacute de uma desadequaccedilatildeo de uma linguagem ou jogo

de linguagem em funccedilatildeo de determinadas necessidades praacuteticas [hellip] na

linguagem tal como no xadrez se seguirmos outras regras gramaticais

estaremos respectivamente ou a dizer outra coisa qualquer noutro sistema de

regras ou a jogar outro jogo (ZILHAtildeO 1993 p 205-206)

Aqui se manifesta uma conexatildeo muacutetua entre pensamento e palavra

(HUMBOLDT 1903a p 27) pensando a partir da consciecircncia Humboldt

defende o caraacuteter inseparaacutevel da consciecircncia e da linguagem humanas

uma vez que a linguagem eacute o oacutergatildeo que estrutura o pensamento Neste

sentido a linguagem natildeo eacute apenas meio de expressatildeo e comunicaccedilatildeo de

conteuacutedos de pensamento portanto de uma verdade jaacute articulada sem ela

mas antes pensamento e linguagem instituem uma unidade indissoluacutevel

(HUMBOLDT 1903b p 22 ss)12

O grande problema aqui e que toca o cerne das filosofias da

subjetividade inclusive as que fizeram a reviravolta linguiacutestica eacute o

seguinte estas afirmaccedilotildees levam a estabelecer a subjetividade como

instacircncia doadora de sentido a tudo A questatildeo se potildee igualmente numa

filosofia pragmaacutetica jaacute que o elemento central da pragmaacutetica (OLIVEIRA

2012 p 87-106) consiste na consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre linguagem e

falantes ou da linguagem na perspectiva da maneira como os falantes a

usam o que significa que aqui eacute determinante a accedilatildeo dos falantes Nesse

11 Uma tese que foi desenvolvida por Sapir (1929 p 209) ldquoHuman beings do not live in the objective world alone not alone in the world of social activity as ordinarily understood but are very much at the mercy of the particular language which has become the medium of expression for their societyrdquo

12 Cf Sellars (1973 p 82) ldquoThinking at the distinctly human level [hellip] is essentially verbal activityrdquo

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 31

sentido a passagem da subjetividade para a intersubjetividade proposta

como mudanccedila de paradigma na realidade natildeo resulta na superaccedilatildeo do

caraacuteter determinante da subjetividade na filosofia ou seja da postura em

que a subjetividade eacute a instacircncia teoacuterica que determina tudo

Ora noacutes somos entes puramente contingentes entatildeo

inevitavelmente se levanta a questatildeo ldquoComo poderiam entatildeo os lsquoentes

humanosrsquo (mesmo em sua totalidade como quer que esta seja pensada)

ser tomados como lsquoparacircmetrorsquo para o que eacute o mundordquo (PUNTEL 2008

p 482-483) Como nesta postura natildeo se pode falar de forma coerente do

grande mundo uma soluccedilatildeo razoaacutevel poderia ser reduzir a grande

dimensatildeo do mundo ao nosso mundo entendido como nosso mundo

vivido com a consequecircncia de ter que avaliar como sem sentido ou como

ficccedilatildeo tudo aquilo que natildeo for compatiacutevel com este mundo como por

exemplo muito do que eacute elaborado pelas ciecircncias

A implausibilidade desta posiccedilatildeo aponta para a verdadeira questatildeo

neste contexto como entender a linguagem (espiacuterito) a fim de que se

legitime a afirmaccedilatildeo de que natildeo tem sentido falar de um mundo sem

nenhuma relaccedilatildeo a ela Esta eacute a questatildeo irrefutaacutevel em primeiro lugar

para a articulaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica precisamente enquanto uma

atividade teoacuterica Numa palavra trata-se antes de tudo da determinaccedilatildeo

de um criteacuterio universal de teoricidade e justamente de um criteacuterio

linguiacutestico pois a linguagem eacute o primeiro pressuposto de uma teoria que

se compotildee de sentenccedilas especificamente de sentenccedilas teoacutericas em

segundo lugar para o enfrentamento da questatildeo do lugar central atribuiacutedo

agrave subjetividade pela filosofia moderna A resposta a esta questatildeo implica

uma virada no pensamento moderno que vai justificar falar de uma

despontencializaccedilatildeo da subjetividade

A primeira etapa nesta direccedilatildeo consiste para Puntel na diferenciaccedilatildeo

entre duas formas diferentes de compreensatildeo da linguagem Quando

familiarmente nos referimos a signos linguiacutesticos entatildeo o ser humano

com sua histoacuteria obras e contingecircncias se revela seu autor e nesta

32 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

perspectiva haacute razatildeo para falar de ldquonossardquo linguagem uma vez que sem o

ser humano natildeo se pode falar de siacutembolos linguiacutesticos bem determinados

Eacute justamente nesse sentido que A Keller (1979 p 42) entende a

linguagem como um sistema de formas de proferimentos produzido pelo

ser humano que para expressar-se para entender-se para organizar seus

conhecimentos e comunicaacute-los e para defrontar-se de diferentes formas

com a realidade Numa palavra na medida em que a linguagem se

constitui de siacutembolos linguiacutesticos assim compreendidos ela eacute uma

produccedilatildeo histoacuterico-contingente de sujeitos humanos de tal forma que a

referecircncia a estes sujeitos eacute ineliminaacutevel Nisto tecircm razatildeo os pragmaacuteticos

aqui a accedilatildeo humana eacute simplesmente decisiva ldquoisto eacute o modo particular

atraveacutes do qual intervimos na realidaderdquo (ZILHAtildeO 1993 p 207) embora

se deva afirmar tambeacutem como o faz Kutschera que a linguagem eacute natildeo soacute

uma criaccedilatildeo da comunidade e da cultura humanas mas igualmente sua

condiccedilatildeo de possibilidade Nela com uma quantidade finita de expressotildees

e uma quantidade finita de regras gramaticais pode-se comunicar uma

quantidade infinita de informaccedilotildees que possibilitam a forma determinada

de comunicaccedilatildeo que gera a comunidade e a cultura A linguagem eacute assim

a pressuposiccedilatildeo da qualidade especificamente humana de uma

comunidade (KUTSCHERA 1998 p 105 ss)

No entanto a linguagem entendida no sentido maximal ou seja

como linguagem absolutamente universal natildeo eacute um produto humano

mas jaacute estaacute dada com o mundo entendido como ser em seu todo Ela eacute a

instacircncia da expressabilidade universal enquanto esfera correlata agrave

expressabilidade do ser enquanto tal

ldquoexpressabilidaderdquo eacute uma relaccedilatildeo que soacute eacute explicaacutevel e desse modo

compreensiacutevel se tambeacutem seu reverso for reconhecido X eacute expressaacutevel se e

somente se houver um Y que eacute a instacircncia expressante de X [hellip] a

expressabilidade universal do mundo tem como pressuposto ou [hellip] como

implicaccedilatildeo uma instacircncia expressante universal [hellip] uma linguagem

(PUNTEL 2008 p 501)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 33

Isto significa dizer que o relacionamento com a realidade soacute ocorre

linguisticamente Numa palavra a expressabilidade universal implica uma

instacircncia expressante universal uma linguagem universal que

consequentemente tem que ter um caraacuteter diferente da ldquonossardquo

linguagem Neste sentido ela natildeo eacute um produto humano puramente

contingente mas uma estruturalidade imanente ou seja um momento

estrutural do mundo entendido como ser em seu todo e dessa maneira ela

jaacute estaacute dada com o mundo em sentido do todo da realidade Enquanto tal

ela eacute um sistema semioacutetico objetivo (PUNTEL 1990 p 135)

O ser na medida em que eacute expressaacutevel enquanto tal possui uma

relaccedilatildeo imanente essencial com a linguagem que eacute precisamente a

instacircncia correlata a esta expressabilidade universal uma caracteriacutestica

imanente do ser em si mesmo Neste contexto linguagem eacute entendida

como um sistema semioacutetico abstrato que conteacutem uma quantidade

inumeraacutevel de expressotildees Este eacute para Puntel o ldquolocus originariusrdquo da

compreensatildeo da linguagem ou melhor da linguisticidade Ele denomina

por esta razatildeo a linguagem assim entendida como ldquolinguagem originaacuteriardquo

e eacute ela que ocupa a posiccedilatildeo primordial na filosofia

Assim a linguagem enquanto linguisticidade do ser enquanto tal eacute a

linguagem absolutamente universal e designa precisamente o lado inverso

da expressabilidade universal do ser em seu todo Esta linguagem assim

entendida eacute coextensiva ao ser em seu todo pois o mundo (o universo o

ser) em seu todo eacute expressaacutevel o pressuposto ineliminaacutevel de qualquer

passo teoacuterico Nada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser articulado em

forma de linguagem

Neste sentido a expressabilidade eacute um momento estrutural imanente

do mundoe desse modo coextensional com o mundo como o eacute

consequentemente a linguagem Isso significa dizer que todo conteuacutedo

conceitual eacute articulado no seio da linguagem e eacute precisamente nesse

sentido que a linguagem emerge como meio indispensaacutevel da expressatildeo

ou da exposiccedilatildeo no sentido de que conteuacutedos conceituais natildeo existem sem

sua articulaccedilatildeo linguiacutestica

34 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

[hellip] linguagem constitui meio indispensaacutevel da expressatildeo ou exposiccedilatildeo no

seguinte sentido se compreendidos adequada e rigorosamente os assim

chamados ldquoconteuacutedos conceituaisrdquo natildeo existem sem sua articulaccedilatildeo (ou

articulabilidade) linguiacutestica (PUNTEL 2008 p 226)

Eacute nessa oacutetica que tem sentido a afirmaccedilatildeo de Kutschera articulada na

linguagem da semacircntica e da ontologia composicionais natildeo conhecemos

o mundo primeiro no pensamento e depois exprimimos o conhecido na

linguagem mas captamos a realidade os objetos suas diferenccedilas

propriedades e relaccedilotildees em forma linguiacutestica Pensamento e linguagem se

desenvolvem sempre juntos os pensamentos soacute se exprimem em forma

linguiacutestica A linguagem eacute o ldquomeacutediumrdquo do pensamento (KUTSCHERA

1998 p 111) Uma consequecircncia primeira fundamental aqui eacute que eacute na

articulaccedilatildeo linguiacutestica que eacute possiacutevel apreender o que eacute o conteuacutedo

conceitual como ele eacute estruturado

Quando se entende poreacutem linguagem como siacutembolos linguiacutesticos

entra em jogo o ser humano com sua histoacuteria ou seja aqui a linguagem eacute

produccedilatildeo humana e eacute isto que explica a contingecircncia histoacuterica dessas

linguagens13 Ela entatildeo se revela como a pressuposiccedilatildeo na expressatildeo de

V Kutschera (1998 p 113) de todas as nossas produccedilotildees culturais de

nossa autocompreensatildeo de nossa autoconsciecircncia e de nosso pensamento

Mas quando se leva em consideraccedilatildeo a estruturalidade semacircntico-

ontoloacutegica da linguagem entatildeo ela eacute o resultado da expressabilidade da

proacutepria realidade e ldquofalantes e sujeitos satildeo determinados e entendidos a

partir da linguagem e natildeo a linguagem a partir dos falantes ou sujeitosrdquo

(PUNTEL 2008 p 130)

Entendendo assim a linguagem no sentido maximal ou seja como

um sistema semioacutetico composto de uma quantidade infinita natildeo

enumeraacutevel de expressotildees isto eacute quando a linguagem eacute entendida como

13 Cf Zilhatildeo (1993 p 206) ldquoA analogia adequada que nos permite compreender a ligaccedilatildeo que Wittgenstein entendia existir entre linguagem ou pensamento e mundo eacute-nos dada pela consideraccedilatildeo das ferramentas que usamos Se soubermos olhar para elas poderemos ficar a saber tudo o que haacute para saber tanto acerca da lsquoformarsquo do mundo como do comportamento e da vida de quem as usa [hellip]rdquo

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 35

o reverso da expressabilidade do mundo entatildeo a fala sobre o mundo (a

realidade) a partir do interior da linguagem de nenhuma forma implica

sua reduccedilatildeo ao mundo da nossa linguagem e com isto cai tambeacutem por

terra a dicotomia ldquoem si e para noacutesrdquo Uma primeira consequecircncia desta

tese eacute que natildeo pode haver entidades excluiacutedas da dimensatildeo da linguagem

pois isto implicaria que tais entidades natildeo seriam expressaacuteveis Assim a

quantidade de sentenccedilas deve corresponder pelo menos ao nuacutemero de

entidades ou de fatos do mundo

O caraacuteter unilateral da posiccedilatildeo antirrealista se mostra justamente

nareduccedilatildeo da linguagem a uma criaccedilatildeo humana e consequentemente agrave

ldquonossa linguagemrdquo no desconhecimento total da linguagem maximal ou

absolutamente universal Isto significa dizer que falta aqui uma visatildeo para

o ldquotodordquo do fenocircmeno da linguagem e consequentemente a compreensatildeo

de que ldquonossardquo linguagem eacute apenas um segmento de uma linguagem

muito mais abrangente ou seja de um sistema semioacutetico composto de

uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees que eacute o ldquoinversordquo

da expressabilidade universal do ser em seu todo Nesse sentido a

linguagem possui um poder de expressatildeo muitiacutessimo maior do que a

linguagem entendida como sistema semioacutetico de comunicaccedilatildeo

Na consideraccedilatildeo da linguagem maximal a referecircncia agrave subjetividade

se torna simplesmente supeacuterflua uma tese que Apel (1973 p 240 ss) jaacute vecirc

presente na posiccedilatildeo de Wittgenstein Ele defende a tese de que o Tractatus

de Wittgenstein eacute uma filosofia transcendental sem sujeito uma vez que

Wittgenstein identifica o sujeito com a operaccedilatildeo formal constitutiva da

linguagem Com isto a referecircncia ao sujeito se torna supeacuterflua Em

contraposiccedilatildeo a esta posiccedilatildeo Apel defende a tese do caraacuteter irrecusaacutevel

pelo menos implicitamente de uma autorreferecircncia da linguagem a si

mesma que eacute depois da reviravolta linguiacutestica a nova forma de auto-

reflexividade Com isto se daacute a referecircncia a um sujeito individual como

suporte da forma loacutegica a fim de que ela possa exercer sua funccedilatildeo

transcendental Portanto a referecircncia ao sujeito eacute ineliminaacutevel

36 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Puntel (2008 p 129) denomina a linguagem maximal que de

nenhuma forma eacute tematizada pelas diferentes formas de filosofia

antirrealista como a de Apel de originaacuteria ou antes o ldquolocus originariusrdquo

de compreensatildeo da linguagem ldquono sentido de sistema semioacutetico que se

baseia na ideia da expressabilidade universal do mundo (do universo do

ser)rdquo Neste contexto uma observaccedilatildeo eacute absolutamente fundamental

a linguagem filosoacutefica e cientiacutefica infinita natildeo enumeraacutevel natildeo eacute compreendida

como se fosse uma grandeza ldquomanipulaacutevelrdquo ela eacute antes uma espeacutecie de ideia

reguladora ou emolduradora em qualquer caso uma assunccedilatildeo metafiacutesica cuja

funccedilatildeo principal consiste em desempenhar um importante papel explanatoacuterio

(PUNTEL 2008 p 522)

Uma pergunta que emerge neste contexto inevitavelmente eacute o que eacute

mesmo essa linguagem maximal essa linguagem universal Para Puntel

(2008 p 527) se tem que dizer em primeiro lugar que ela por um lado

natildeo existe em lugar algum mas por outro lado existe em toda parte no

sentido de que ldquonada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser lsquoarticulado em

forma de linguagemrsquordquo Ocorre que o falante escolhe um certo ldquosegmentordquo

desta linguagem para se adequar a seus objetivos poreacutem este segmento

de nenhuma forma se identifica simplesmente com a totalidade da

linguagem o que tambeacutem vale para uma linguagem artificial que conteacutem

uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees direcionadas ao

objetivo da exposiccedilatildeo e natildeo da comunicaccedilatildeo Eacute esta a razatildeo porque se fala

aqui de linguagem maximal e ela natildeo soacute constitui o lugar originaacuterio da

compreensatildeo da linguagem mas soacute a partir daqui se pode compreender

adequadamente o que significa propriamente falar de centralidade da

linguagem na filosofia

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2

Encheiriacutedion Capiacutetulo I

Traduccedilotildees e Comentaacuterios

Aldo Dinucci 1

Alfredo Julien 2

Antonio Carlos Tarquiacutenio 3

O Encheiriacutedion termo que em grego significa ldquoadaga punhal arma

portaacutetil ou livro portaacutetil manualrdquo foi composto por Luacutecio Flaacutevio Arriano

de Nicomeacutedia4 tomando por base suas compilaccedilotildees das aulas de Epicteto

Consistindo em um conjunto de apotegmas para que o seguidor do

Estoicismo tenha sempre ao alcance da matildeo os princiacutepios para enfrentar

as dificuldades da vida e vencecirc-las o Encheiriacutedion tornou ceacutelebre o nome

de Epicteto Seguem breves mas importantes traduccedilotildees e comentaacuterios

sobre o primeiro capiacutetulo do Encheiriacutedion de Epicteto A primeira traduccedilatildeo

comentada foi realizada por Aldo Dinucci e Alfredo Julien pesquisadores

que dedicaram alguns anos agrave traduccedilatildeo da obra culminando com uma

ediccedilatildeo em Coimbra da mesma pelos Classica Digitalia A segunda por

Antonio Carlos Tarquiacutenio filoacutesofo radicado em Satildeo Paulo que tem se

dedicado intensamente nas uacuteltimas deacutecadas ao estudo de Epicteto

publicando em 2017 o livro Uma filosofia do desapego a askesis de

desapropriaccedilatildeo epictetiana agrave luz da katharsis do Feacutedon de Platatildeo resultado

1 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

2 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (USP)

3 Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)

4 Ca 86-160

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 41

de suas pesquisas de doutorado sobre o velho de Nicoacutepolis Imediatamente

abaixo temos o texto em grego estabelecido pela primeira vez por Boter

em 1999

[11] Τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ ἡμῖν τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἐφ ἡμῖν μὲν

ὑπόληψις ὁρμή ὄρεξις ἔκκλισις καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα ἡμέτερα ἔργα οὐκ ἐφ

ἡμῖν δὲ τὸ σῶμα ἡ κτῆσις δόξαι ἀρχαὶ καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα οὐχ ἡμέτερα

ἔργα[12]καὶ τὰ μὲν ἐφ ἡμῖν ἐστι φύσει ἐλεύθερα ἀκώλυτα παραπόδιστα

τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀσθενῆ δοῦλα κωλυτά ἀλλότρια[13] μέμνησο οὖν ὅτι

ἐὰν τὰ φύσει δοῦλα ἐλεύθερα οἰηθῇς καὶ τὰ ἀλλότρια ἴδια ἐμποδισθήσῃ

πενθήσεις ταραχθήσῃ μέμψῃ καὶ θεοὺς καὶ ἀνθρώπους ἐὰν δὲ τὸ σὸν

μόνον οἰηθῇς σὸν εἶναι τὸ δὲ ἀλλότριον ὥσπερ ἐστίν ἀλλότριον οὐδείς σε

ἀναγκάσει οὐδέποτε οὐδείς σε κωλύσει οὐ μέμψῃ οὐδένα οὐκ ἐγκαλέσεις

τινί ἄκων πράξεις οὐδὲ ἕν οὐδείς σε βλάψει ἐχθρὸν οὐχ ἕξεις οὐδὲ γὰρ

βλαβερόν τι πείσῃ [14] τηλικούτων οὖν ἐφιέμενος μέμνησο ὅτι οὐ δεῖ

μετρίως κεκινημένον ἅπτεσθαι αὐτῶν ἀλλὰ τὰ μὲν ἀφιέναι παντελῶς τὰ δ

ὑπερτίθεσθαι πρὸς τὸ παρόν ἐὰν δὲ καὶ ταῦτ ἐθέλῃς καὶ ἄρχειν καὶ

πλουτεῖν τυχὸν μὲν οὐδ αὐτῶν τούτων τεύξῃ διὰ τὸ καὶ τῶν προτέρων

ἐφίεσθαι πάντως γε μὴν ἐκείνων ἀποτεύξη δι ὧν μόνων ἐλευθερία καὶ

εὐδαιμονία περιγίνεται [15] εὐθὺς οὖν πάσῃ φαντασίᾳ τραχείᾳ μελέτα

ἐπιλέγειν ὅτι lsquoφαντασία εἶ καὶ οὐ πάντως τὸ φαινόμενονrsquo ἔπειτα ἐξέταζε

αὐτὴν καὶ δοκίμαζε τοῖς κανόσι τούτοις οἷς ἔχεις πρώτῳ δὲ τούτῳ καὶ

μάλιστα πότερον περὶ τὰ ἐφ ἡμῖν ἐστιν ἢ περὶ τὰ οὐκ ἐφ ἡμῖν κἂν περί τι

τῶν οὐκ ἐφ ἡμῖν ᾖ πρόχειρον ἔστω τὸ διότι lsquoοὐδὲν πρὸς ἐμέrsquo

Encheiriacutedion Capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Aldo Dinucci e

Alfredo Julien)

[11] Das coisas existentes algumas satildeo encargos nossos outras natildeo Satildeo

encargos nossos o juiacutezo o impulso o desejo a repulsa ndash em suma tudo quanto

seja accedilatildeo nossa Natildeo satildeo encargos nossos o corpo as posses a reputaccedilatildeo os

cargos puacuteblicos ndash em suma tudo quanto natildeo seja accedilatildeo nossa [12] Por

natureza as coisas que satildeo encargos nossos satildeo livres5 desobstruiacutedas6 sem

5 Eleutheros livre por oposiccedilatildeo a escravo Para Epicteto quem deseja o que natildeo eacute encargo seu necessariamente torna-se escravo pois voluntariamente submete-se aos que podem proporcionar-lhe ou impedir-lhe o acesso agrave coisa desejada (cf Diatribes I 419)

6 Akolytos adjetivo verbal de privaccedilatildeo da accedilatildeo relacionada ao verbo kolyo que significa ldquoafastar desviarrdquo adquirindo o sentido de ldquoimpedirrdquo Bailly (2000) apresenta o substantivo neutro to kolyon com o significado de ldquoobstaacuteculordquo

42 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

entraves7 As que natildeo satildeo encargos nossos satildeo deacutebeis8 escravas obstruiacutedas9

de outrem10 [13] Lembra entatildeo que se pensares11 livres as coisas escravas por

natureza e tuas as de outrem tu te faraacutes entraves12 tu te afligiraacutes13 tu te

inquietaraacutes14 censuraraacutes tanto os deuses como os homens Mas se pensares

teu unicamente o que eacute teu e o que eacute de outrem como o eacute de outrem ningueacutem

jamais te constrangeraacute15 ningueacutem te faraacute obstaacuteculos natildeo censuraraacutes

ningueacutem nem acusaraacutes quem quer que seja de modo algum agiraacutes

constrangido ningueacutem te causaraacute dano natildeo teraacutes inimigos pois natildeo seraacutes

persuadido em relaccedilatildeo a nada nocivo [14] Entatildeo almejando coisas de

tamanha importacircncia lembra que eacute preciso que natildeo te empenhes de modo

comedido mas que abandones completamente algumas coisas e por ora

deixes outras para depois Mas se quiseres aquelas coisas e tambeacutem ter cargos

e ser rico talvez natildeo obtenhas estas duas uacuteltimas por tambeacutem buscar as

primeiras e absolutamente natildeo atingiraacutes aquelas coisas por meio das

quaisunicamente resultam a liberdade e a felicidade16 [15] Entatildeo pratica dizer

prontamente a toda representaccedilatildeo bruta17 ldquoEacutes representaccedilatildeo e de modo

algum lteacutesgt o que se afigurardquo18 Em seguida examina-a e testa-a com essas

mesmas regras que possuis em primeiro lugar e principalmente se eacute sobre

ldquoimpedimentordquo Assim a-kolytos refere-se a algo para o que natildeo haacute impedimento quanto agrave sua obtenccedilatildeo sendo portanto ldquodesimpedidordquo

7 Aparapodistos optamos traduzir o termo por ldquosem entravesrdquo pois trata-se de um adjetivo verbal que nega a accedilatildeo relacionada ao verbo podizo que significa ldquosujeitar os peacutes com travasrdquo referindo-se principalmente a armadilhas para animais Cf o substantivo feminino podistra que pode significar tanto ldquoarmadilha que prende pelos peacutesrdquo (Antologia Palatina 6 107) quanto ldquoteia de aranhardquo (Antologia Palatina 9 372)

8 Asthene privado de forccedila no sentido de ldquoforccedila fiacutesica vigorrdquo

9 Kolytos Cf nota acima sobre akolutos

10 Arriano assim relaciona os adjetivos empregados para qualificar o que eacute encargo nosso e o que natildeo eacute o que eacute encargo nosso eacute livre desobstruiacutedo sem entraves o que natildeo eacute encargo nosso eacute deacutebil escravo de outrem

11 Oio ldquopensarrdquo no sentido de ldquopresumirrdquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute ldquopressentir crer estimarrdquo

12 Empodizo significa literalmente ldquometer os peacutes em uma armadilhardquo

13 Pentheo verbo relacionado ao substantivo to penthos que siginifica ldquodor afliccedilatildeordquo

14 Tarasso significa primariamente ldquoremexerrdquo ldquoagitarrdquo no sentido concreto de preparar um medicamento agitando os ingredientes que o compotildeem

15 Anankazo ldquoforccedilarrdquo ldquoconstrangerrdquo

16 Felicidade traduz eudaimoniacutea No contexto do paganismo grego daimoniacuteos eacute um adjetivo que qualifica tudo o que proveacutem da divindade ou eacute enviado por um deus Associado ao prefixo ldquoeṷrdquo (ldquobemrdquo no sentido de coisas boas) esse vocaacutebulo tem significaccedilatildeo proacutexima agrave de ldquobem-aventuranccedilardquo na acepccedilatildeo cristatilde

17 Trata-se do adjetivo trachys apresentado por Bailly (2000) com o significado de ldquoruderdquo adquirindo diversos sentidos dependendo do substantivo ao qual esteja ligado ldquoAacutesperordquo ao se tratar de uma pedra ldquopedregosordquo ao se referir a um rio ou a um terreno ldquoroucardquo ao qualificar um tipo voz ldquogrosseiro duro cruel violento e irasciacutevelrdquo ao se referir ao comportamento de algueacutem Simpliacutecio (Comentaacuterio ao Encheiriacutedion de Epicteto V 15) observa que tal representaccedilatildeo eacute chamada tracheiacutea (dura bruta) por ser contraacuteria agrave razatildeo tornando ldquoaacutesperardquo a vida Oldfather (2000) e White (1983) traduzem esse adjetivo por ldquoharshrdquo Gourinat (1998) por ldquopeacuteniblerdquo Garciacutea (1995) por ldquobrutardquo

18 Phainoacutemenon ldquoo que estaacute se manifestando ou se mostrandordquo particiacutepio presente meacutedio do verbo phaaino

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 43

coisas que satildeo encargos nossos ou natildeo E caso esteja entre as coisas que natildeo

sejam encargos nossos tem agrave matildeo que ldquoNada eacute para mimrdquo

A expressatildeo ephi hemin que ora traduzimos por ldquosob nosso encargordquo

ou ldquoencargo nossordquo natildeo possui equivalente direto que possa dar conta de

seu significado Literalmente poderiacuteamos traduzi-la por ldquoalgumas coisas

estatildeo sobre noacutes outras natildeordquo Henrique Murachco traduz expressatildeo

semelhante (to epi emoi) por ldquono que estaacute sobre mimrdquo no sentido ldquode

quanto a mimrdquo ldquono que me concernerdquo (2001 p 573) No caso do

Encheiridion de Epicteto a traduccedilatildeo poderia ser ldquoalgumas coisas nos

concernem outras natildeordquo Bailly (2000) citando a mesma expressatildeo

acentua a ideia de dependecircncia e de poder que ela expressa traduzindo-a

por ldquoautant qursquoil est em mon pouvoirrdquo enfatizando assim a ideia de

controle (cf Xenofonte Ciropeacutedia 54 11) A expressatildeo possui imagem

concreta e clara referindo-se a algo que eacute colocado sobre noacutes sustentado

por noacutes pois nos encontramos embaixo fornecendo seu apoio A opccedilatildeo

por ldquoencargo nossordquo acentua a ideia de responsabilidade que temos quanto

a isso que estaacute sobre noacutes (e do que somos a causa primaacuteria)

A expressatildeo eacute diferentemente vertida por diferentes tradutores

Oldfather a traduz por ldquothings under our controlrdquo (2000) White por

ldquowhat is up to usrdquo (1983) Gourinat por ldquochoses qui deacutependent de nousrdquo

(1998)

Como dissemos epi expressa uma relaccedilatildeo de dependecircncia Satildeo

portanto coisas que dependem de noacutes Como Epicteto diraacute na continuaccedilatildeo

do texto eacute preciso que nos concentremos sobre as coisas que estatildeo sob

nosso controle em trecircs sentidos Em relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo (phantasia)

retirando dela todo juiacutezo (hypolepsis) equivocado a partir da

compreensatildeo de que nada que natildeo depende de noacutes eacute por si mesmo um

bem ou um mal Em relaccedilatildeo ao impulso (horme) uma vez cientes de que

produzimos nosso bem e nosso mal eacute preciso moderar os impulsos e

encontrar o modo de agir segundo a natureza Em relaccedilatildeo ao desejo

(orexis) e agrave repulsa (ekklisis) partindo mais uma vez da compreensatildeo de

que nada externo eacute por si soacute um bem ou um mal eacute preciso que o desejo e

44 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

a repulsa se apliquem natildeo mais agraves coisas que natildeo dependem de noacutes

(sendo-nos necessaacuterio desejaacute-las como satildeo) mas agraves coisas que estatildeo sob

nosso controle

Traduzimos por juiacutezo o vocaacutebulo grego hypolepsis que eacute substantivo

relacionado ao verbo hypolambano que expressa a ideia de sucessatildeo e de

substituiccedilatildeo adquirindo os sentidos de ldquoreacuteplica resposta concepccedilatildeo e

pensamentordquo O vocaacutebulo ldquojuiacutezordquo empregado aqui para traduzir essa

noccedilatildeo deve ser entendido como um parecer ou uma opiniatildeo que orienta

nossa conduta diante de um acontecimento que se nos apresenta Vale a

pena ressaltar que no contexto deste capiacutetulo o vocaacutebulo estaacute associado

ao verbo oiocedil traduzido aqui por ldquopensarrdquo No capiacutetulo 20 do Encheiriacutedion

apresenta-se uma associaccedilatildeo clara entre hypolepsis e dogma (opiniatildeo) No

capiacutetulo 5 apresenta-se tambeacutem uma associaccedilatildeo entre dogma (opiniatildeo) e

phantasiacutea (representaccedilatildeo) por meio do verbo phainomai (afigurar-se) Eacute

interessante notar que o juiacutezo nesses exemplos envolve a ponderaccedilatildeo ndash

como a consideraccedilatildeo sobre se algo eacute livre ou escravo - mas tambeacutem

sentimentos relacionados agraves nossas recusas medos e desejos Oldfather

(2000) traduz hypolepsis por ldquoconceptionrdquo White (1993) por ldquoopinionrdquo

Gourinat (1998) por ldquojugementrdquo e Garciacutea (1995) por ldquojuiciordquo

A noccedilatildeo de phantasiacutea que ora traduzimos por representaccedilatildeo eacute de

fundamental importacircncia para a compreensatildeo da filosofia estoica por

relacionar-se tanto a questotildees loacutegicas quanto epistemoloacutegicas e eacuteticas

Embora tanto Cleanto quanto Crisipo considerem a phantasiacutea uma

modificaccedilatildeo da faculdade diretriz eles divergem ao explicar essa mudanccedila

Para Lesses (1998 p 6) Crisipo parece criticar Cleanto por aceitar uma

concepccedilatildeo ingecircnua de representaccedilatildeo mental segundo a qual as phantasiacuteai

perceptivas satildeo coacutepias de qualidades que os objetos representados

possuem (cf Dioacutegenes Laeacutercio 7504) Aleacutem disso Annas (1991 p 74-75)

compreende estar implicado nas observaccedilotildees de Crisipo que as phantasiacuteai

satildeo proposicionais ou articulaacuteveis em forma linguiacutestica Ora quanto agraves

alternativas para traduzirmos o termo phantasiacutea parece-nos que

impressatildeo estaacute mais proacuteximo de Cleanto que de Crisipo pois a metaacutefora

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 45

utilizada por Cleanto para introduzir o conceito em questatildeo eacute justamente

agrave da impressatildeo sobre a cera metaacutefora que eacute criticada por Crisipo por seu

caraacuteter imageacutetico A concepccedilatildeo de Crisipo sobre a phantasiacutea ndash adotada

desde entatildeo pelo Estoicismo ndash eacute que ela tem duas facetas uma sensiacutevel

(pois como dissemos trata-se de uma modificaccedilatildeo da faculdade diretriz)

e outra virtual (pois a essa modificaccedilatildeo eacute afixado um juiacutezo que descreve e

avalia aquilo que efetuou a modificaccedilatildeo) Assim sendo parece-nos que a

palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo (que possui de acordo com o Aureacutelio o sentido

filosoacutefico geral de ldquoconteuacutedo concreto apreendido pelos sentidos pela

imaginaccedilatildeo pela memoacuteria ou pelo pensamentordquo) serve para o nosso

propoacutesito e por ela traduziremos phantasiacutea

Traduzimos por lsquoimpulsorsquo o termo grego horme que eacute substantivo

relacionado ao verbo ornumi (ldquolevantar-serdquo) designando o primeiro bote

de um assalto ou ataque adquirindo os sentidos de elatilde e de impulso Entre

as traduccedilotildees consultadas para este trabalho a uacutenica exceccedilatildeo a ldquoimpulsordquo

como vocaacutebulo para traduzir horme eacute a opccedilatildeo de Oldfather (2000) que

emprega ldquochoicerdquo (ldquoescolhardquo) Horme deve ser entendido no contexto do

pensamento epictetiano como o iacutempeto para a accedilatildeo a tendecircncia para agir

desta ou daquela maneira diante de determinada coisa

Traduzimos por lsquodesejorsquo o termo grego orexis que eacute o nome da accedilatildeo

do verbo orego que apresenta o significado de ldquoestender ou tender na

direccedilatildeo de algordquo (por exemplo estender as matildeos para o ceacuteu ou para pedir

algo a algueacutem) de onde ldquodesejordquo ldquoapetiterdquo Eacute uma palavra difiacutecil para ser

transportada ao contexto cultural presente Embora sua traduccedilatildeo por

ldquodesejordquo seja corrente eacute preciso ter cautela com ela pois natildeo se deve

entender orexis no sentido do emaranhado de pulsotildees originadas em niacutevel

inconsciente que caracteriza a visatildeo moderna da subjetividade humana

Orexis descreve a accedilatildeo de tender em direccedilatildeo a algo Uma forma de

apreender da maneira mais precisa possiacutevel seu significado eacute ter em conta

que orexis se opotildee a ekklisis que expressa o movimento contraacuterio o de

afastar-se Para Epicteto desejamos as coisas que consideramos boas (cf

Diatribes I42-3)

46 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

lsquoRepulsarsquo eacute nossa escolha para traduzir eacutekklisis termo grego que

identifica a accedilatildeo de declinar expressando o movimento contraacuterio de klisis

que significa a accedilatildeo de inclinar-se Eacute empregado para descrever o

movimento da tropa que evita o combate ou para descrever o decliacutenio de

um astro Oldfather (2000) White (1983) e Gourinat (1998) optaram

traduzi-lo por ldquoaversatildeordquo Garciacutea (1998) por ldquorechazordquo No Aureacutelio

ldquoaversatildeordquo apresenta os significados de ldquooacutedio rancor antipatiardquo que natildeo

cabem no presente caso Optamos entatildeo por ldquorepulsardquo para expressar a

ideia de repelir afastar ou evitar algo sem a conotaccedilatildeo de aversatildeo Para

Epicteto repudiamos as coisas que consideramos ruins (cf Diatribes

I42-3)

Encheiriacutedion capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Antonio Carlos

Tarquiacutenio)

(1-1) Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes19 outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute

propriamente nosso20 julgamento de valor21 impulso para agir desejo

aversatildeo - em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa

alccedilada22 o corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos

- em uma palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem

propriamente (1-2) E as coisas que nos competem satildeo por natureza livres

sem impedimentos sem entraves e as que natildeo satildeo fracas escravas

impedidas de outrem (1-3) Lembra entatildeo que se consideras as coisas

escravas por natureza livres e as coisas alheias proacuteprias seraacutes impedido

estaraacutes triste e perturbado censuraraacutes tanto os deuses como tambeacutem os

homens Mas se consideras ser teu somente o teu e o alheio como eacute alheio

ningueacutem te obrigaraacute nem te impediraacute natildeo censuraraacutes a ningueacutem tampouco

acusaraacutes a algueacutem nenhuma accedilatildeo contra vontade ningueacutem te prejudicaraacute

natildeo teraacutes inimigo uma vez que ningueacutem te convenceraacute de algo danoso23 (1-

4) Lembra-te enfim de que aspirando coisas de tal tamanho24 natildeo eacute preciso

19 Satildeo de nossa alccedilada

20 Eacute de nossa competecircncia

21 Aceito a traduccedilatildeo de Pierre Hadot da palavra hypolepsis

22 Natildeo satildeo de nossa competecircncia natildeo satildeo propriamente nossos

23 Ou seja que tenha sofrido algo de danoso Ningueacutem nos convenceraacute de havermos sido prejudicados

24 Isto eacute tatildeo grandes Elevadas

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 47

se mover moderadamente para alcanccedilaacute-las25 mas umas abandonar

completamente e outras abandonar ante o presente para se dedicar depois

Mas se queres tambeacutem essas coisas (isto eacute as elevadas e grandes) e mandar e

enriquecer talvez natildeo obtenhas dessas mesmas (riqueza e autoridade) por

tambeacutem demandares as primeiras (as elevadas e grandes) erraraacutes o alvo

totalmente pelo menos daquelas (coisas) atraveacutes das quais tatildeo somente

dominarias a liberdade e a felicidade (1-5) Enfim exercita-te rapidamente em

acrescentar a toda fantasia26 que ldquoeacutes impressatildeo e de modo algum o que se

mostra (sendo)rdquo A seguir investiga-a e submeta-a a esses cacircnones os quais

tens e em primeiro lugar esse e sobretudo qual dos dois se a respeito das

coisas sobre noacutes ou a respeito das coisas que natildeo estatildeo sobre noacutes e se for algo

a respeito das que natildeo estatildeo sobre noacutes por isso esteja agrave matildeo ldquonada perante

a mimrdquo

O primeiro capiacutetulo do Enquiriacutedio de Epicteto enfeixa ideias preciosas

que auxiliam o acesso agrave compreensatildeo de sua proposta filosoacutefica Nele

encontramos pontos essenciais de sua doutrina de seu ensinamento Se

no seguimento da obra outros temas surgem e encontram em tempo

oportuno explicaccedilatildeo eacute nos seus cinco itens iniciais (1-1 a 1-5 acima) que

vemos traccedilado o panorama de pensamento do filoacutesofo estoico

Desde o iniacutecio do Enquiriacutedio de Epicteto vecirc-se o estabelecimento de

uma linha divisoacuteria que possui como principal objetivo demarcar a zona

do eu - do verdadeiro eu - distinguindo-a da regiatildeo em que se situam as

coisas em relaccedilatildeo estreita com o corpo Eis a afirmativa de Epicteto a este

respeito

Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute

propriamente nosso julgamento de valor impulso para agir desejo aversatildeo

- em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa alccedilada o

25 Tocaacute-las obtecirc-las

26 Optamos por traduzir phantasiacutea por fantasia em vez de usar os habituais termos ldquorepresentaccedilatildeordquo e ldquoimpressatildeordquo que carreiam consigo interpretaccedilotildees tatildeo incompatiacuteveis entre si que para utilizaacute-los se faria necessaacuteria uma elucidaccedilatildeo criacutetica de cada uma delas De acordo com Sexto Empiacuterico a traduccedilatildeo de phantasiacutea para ldquoimpressatildeordquo (typosis) eacute compatiacutevel com o pensamento de Cleantes conforme a metaacutefora com que procura explicar a forma como o mundo exterior atua sobre o hegemocircnico agrave feiccedilatildeo de um sinete sobre a cera Jaacute Crisipo entende a he phantasiacutea ao modo de uma alteraccedilatildeo (heteroiosis) da alma Sexto Empiacuterico M VII 228-230 Doravante citado com a sigla SE

48 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos - em uma

palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem propriamente27

Se pararmos para pensar um pouco nos tempos atuais agrave face dessa

tese epictetiana parece verdadeira loucura sustentar que posses fama

riquezas inclusive nossos corpos natildeo devam ser situados no campo de

nossas preocupaccedilotildees habituais por natildeo nos pertencerem propriamente

Pois essas satildeo coisas que se no passado jaacute se procuravam hoje muito mais

Em contrapartida o desejar o julgar o agir e o evitar natildeo causam

indignaccedilatildeo como fazeres nossos apesar da descoberta nos uacuteltimos seacuteculos

do inconsciente que parece gerar consequecircncias seriacutessimas em torno das

faculdades aniacutemicas do homem

Notemos que o corpo aparece como primeiro na lista das coisas ldquonatildeo

sobre noacutesrdquo e continuaraacute aparecendo principalmente nas Liccedilotildees de

Epicteto28 toda vez que ele se referir agrave distinccedilatildeo essencial em que figura o

campo de responsabilidade especiacutefica humana Vejamos por exemplo este

trecho das Liccedilotildees

Pois o corpo nos eacute estranho seus membros nos satildeo estranhos nossos teres

nos satildeo estranhos Se por conseguinte tu te prendes a alguma dessas coisas

como a alguma coisa pessoal receberaacutes o castigo que merece aquele que deseja

aquilo que lhe eacute estranho29

Se o corpo e seus amigos natildeo nos pertencem propriamente as obras

da alma satildeo nossas30 natildeo soacute como propriedades inalienaacuteveis mas

sobretudo porque satildeo livres desimpedidas e isentas de qualquer

obstaacuteculo como o Enquiriacutedio de Epicteto inicia separando esferas de

27 E I 1

28 Traduzo Epiktetoi diatribai por Liccedilotildees de Epicteto Seratildeo representadas com a sigla L

29 L IV 1 130-131

30 ldquoE as obras da alma satildeo o impulso para agir o impulso de se afastar o desejar o preparar o intentar o assentirrdquo L IV 11 6 O termo ldquoobras da almardquo demonstra que a real distinccedilatildeo eacute entre a psykhe e o corpo Ora as obras da alma satildeo as obras do hegemocircnico ldquoOs estoicos afirmam que o hegemocircnico eacute a parte mais alta da alma aquela que produz as fantasias os assentimentos as sensaccedilotildees as tendecircncias (hormas) e que eles chamam o pensamento (logismos) 847 Aeacutecio IV 21 1-4 = Pseudo-Plutarque 903A12c-10 Crisipo Oeuvre Philosophique Doravante citado com a sigla Chrys OC

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 49

responsabilidade aquilo por que sou responsaacutevel daquilo pelo que natildeo sou

responsaacutevel nem sempre se consegue perceber a questatildeo de fundo por

traacutes da divisatildeo Entretanto quando Epicteto trata do assunto por outro

acircngulo notamos aquilo que estaacute em jogo na separaccedilatildeo a centralizaccedilatildeo da

vida humana nos valores da alma

Em uma declaraccedilatildeo visceral contra Epicuro surpreendemos Epicteto

se perguntando sobre quem no filoacutesofo do Jardim produziu seus escritos

deixou que sua barba crescesse e tambeacutem quem nele afirmou certa vez

viver seus uacuteltimos dias em estado de felicidade E conclui sua indagaccedilatildeo

com a pergunta A carne (sarks) ou a escolha (prohairesis)31 ou seja

se Epicuro escolheu escrever a prohairesis eacute aquele ato espiritual que o

define mesmo que sua filosofia negue isso Na passagem que segue se

clareia por inteira a noccedilatildeo de que o bem humano eacute por excelecircncia e

essencialmente de ordem espiritual Digo ldquoespiritualrdquo no sentido de

indicar o hegemocircnico em uma das suas funccedilotildees primordiais32 mesmo

sabendo se tratar de um pneuma corpoacutereo uma vez que o proacuteprio Epicteto

compara-o ao corpo utilizando termos antiteacuteticos

A divindade eacute uacutetil mas o bem tambeacutem eacute Entatildeo eacute verossiacutemil onde a essecircncia

da divindade laacute tambeacutem a do bem Entatildeo qual eacute a essecircncia da divindade A

carne Natildeo viria a ser Campo Natildeo viria a ser Fama Natildeo viria a ser A mente

a ciecircncia o pensamento correto Logo procura nessas coisas simplesmente a

essecircncia do bem33

Na introduccedilatildeo ao livro Le Manuel drsquoEacutepicteacutete Pierre Hadot se refere agrave

concentraccedilatildeo do eu qual exerciacutecio espiritual que se poderia derivar

diretamente da separaccedilatildeo sugerida por Epicteto Seria a separaccedilatildeo do eu

do natildeo-eu34 e natildeo discordamos

31 L II 23 21

32 O ato de escolher a prohairesis

33 L II 8 1-3

34 Na medida em que se potildee em operaccedilatildeo a distinccedilatildeo entre as coisas dependentes de noacutes e as coisas independentes de noacutes o eu eacute como que recolocado dentro de seus limites porque natildeo avanccedila mais sobre o que natildeo lhe diz respeito O eu reposicionado deixa para fora de si o natildeo-eu ou seja todo um universo de coisas que segundo os estoicos deve ser considerado como indiferente

50 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Distinguir o que depende de noacutes e o que natildeo depende de noacutes a causalidade

interior e a causalidade exterior eacute finalmente distinguir o eu do natildeo-eu Eacute um

exerciacutecio de concentraccedilatildeo e de delimitaccedilatildeo do eu eu natildeo sou os objetos que

me circundam e que por vezes me satildeo caros esta marmita ou este cavalo ou

esta lacircmpada eu natildeo sou pode-se dizer os atributos gramaticais que o

Destino me impotildee rico ou pobre saudaacutevel ou doente senhor ou escravo

poderoso ou miseraacutevel eu natildeo sou os meus membros eu natildeo sou o meu corpo

nem a emoccedilotildees involuntaacuterias que podem emocionaacute-lo35

O que estaacute no cerne da cisatildeo preceituada por Epicteto eacute a fixaccedilatildeo de

um lugar o estabelecimento de um onde para o qual o homem deve se

voltar a fim de concentrar todos os seus esforccedilos Na verdade a

concentraccedilatildeo do eu demarca dois itineraacuterios bem definidos um em que a

parte dirigente da alma36 eacute assentada a tiacutetulo de oficina e outro em que eacute

definida a principal tarefa do homem ou seja o seu ofiacutecio

Oficina e ofiacutecio juntam-se num mesmo caminho espiritual Enquanto

a primeira diz respeito ao princiacutepio diretor da alma ao hegemocircnico como

lugar de trabalho a segunda se define como o proacuteprio trabalho no cuidado

dele

Referecircncias

ANNAS J Hellenistic philosophy of mind Berkeley University of California Press 1991

BAILLY A Le grand dictionnaire grecfranccedilais Paris Hachette 2000

DINUCCI A O manual de Epicteto aforismos da sabedoria estoica Satildeo Cristoacutevatildeo

EdiUFS 2007

DINUCCI A JULIEN A Epicteto testemunhos e fragmentos Satildeo Cristoacutevatildeo EdiUFS

2008

35 Hadot (2000 p 44-45) Cf L III 24 56 IV 1 129-130

36 Crisipo se refere ao hegemocircnico como o verdadeiro ldquoeurdquo Cf Galeno Sobre as doutrinas de Hipoacutecrates e de Platatildeo II 2 9 1-11 6

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 51

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3

A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva

da Filosofia Analiacutetica da Mente

Taacuterik de Athayde Prata 1

Alguns Problemas a Respeito da Consciecircncia

Enquanto escrevo estas palavras estou consciente Isso significa que

estou desperto e assim capaz de interagir com meu ambiente imediato

atraveacutes de percepccedilotildees bem como de accedilotildees Sinto a temperatura desta sala

ao mesmo tempo em que vejo as letras surgindo na tela do computador

enquanto sinto a textura das teclas ao deslizar meus dedos sobre elas

Assim entendida minha consciecircncia eacute algo que diz respeito ao

funcionamento de meu organismo e dessa forma pertence a aqueles que

David Chalmers chamou de ldquoproblemas faacuteceisrdquo (easy problems) isto eacute

problemas que se referem a (i) funccedilotildees de modo que se precisa apenas

buscar o (ii) mecanismo que as desempenha (cf CHALMERS 1995 p

202) De acordo com ele ldquoPara uma explanaccedilatildeo do sono e da vigiacutelia seraacute

suficiente uma adequada explanaccedilatildeo neurofisioloacutegica dos processos

responsaacuteveis pelo comportamento contrastante do organismo nesses

estadosrdquo (CHALMERS 1995 p 201) E a diferenccedila entre sono e vigiacutelia eacute

constitutiva da consciecircncia como uma propriedade de um organismo

Mas se eu enquanto organismo posso ser qualificado como

ldquoconscienterdquo natildeo eacute difiacutecil perceber que haacute um uso plenamente legiacutetimo

desse adjetivo em relaccedilatildeo agrave minha vida psicoloacutegica em seus detalhes mais

1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

54 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

especiacuteficos ou seja em relaccedilatildeo a meus estados eventos e processos

mentais entidades psiacutequicas que podem tambeacutem ser conscientes Minhas

percepccedilotildees (da temperatura da sala das letras na tela da textura das

teclas) minhas intenccedilotildees (de digitar certas palavras de escrever um texto

para um evento acadecircmico) assim como meus pensamentos (p ex a

respeito do tema filosoacutefico da consciecircncia) ou minhas eventuais emoccedilotildees

(como a ansiedade de concluir o texto a tempo) tudo isso satildeo fenocircmenos

mentais que podem ou natildeo se tornar conscientes

Entra aqui em cena a distinccedilatildeo proposta por David Rosenthal entre

(a) consciecircncia de criatura (que seria um tema mais permeaacutevel agrave pesquisa

empiacuterica do funcionamento orgacircnico) e (b) consciecircncia de estado (que

seria um tema mais especiacutefico da investigaccedilatildeo filosoacutefica)2 Eacute interessante

notar que Rosenthal eacute um filoacutesofo que assume uma perspectiva anti-

cartesiana no sentido de recusar a ideia defendida pelo filoacutesofo francecircs

da consciecircncia como a essecircncia da mente3 Para ele natildeo haacute grande

dificuldade para se perceber que diversos estados mentais existem

desprovidos de consciecircncia por exemplo quando ldquosabemos sem que nos

seja dito o que outra pessoa estaacute pensando ou sentindo E algumas vezes

sabemos isso mesmo quando a pessoa na verdade natildeo estaacute ciente [aware]

pelo menos a princiacutepio de ter esses sentimentos e pensamentosrdquo

(ROSENTHAL 1986 p 329)

Uma visatildeo como essa segundo a qual os fenocircmenos mentais satildeo em

si mesmos inconscientes tem para Rosenthal a importante vantagem de

2 ldquoDois assuntos satildeo frequentemente confundidos nas discussotildees sobre a consciecircncia Uma questatildeo eacute o que eacute para um estado mental ser consciente Supondo que nem todos os estados mentais satildeo conscientes noacutes queremos saber como os estados conscientes se diferenciam daqueles que natildeo satildeo E ainda que todos os estados mentais fossem conscientes noacutes ainda perguntariacuteamos em que consiste a sua consciecircncia Denominamos essa a questatildeo da consciecircncia de estado Esse seraacute meu principal tema no texto que segue Mas noacutes natildeo descrevemos apenas estados mentais como sendo conscientes ou natildeo noacutes tambeacutem atribuiacutemos consciecircncia a criaturas Assim existe uma segunda questatildeo a questatildeo sobre o que eacute para uma pessoa ou outra criatura ser consciente ou seja como criaturas conscientes se diferenciam daquelas que natildeo satildeo conscientes Denominamos esta a questatildeo da consciecircncia de criaturardquo (ROSENTHAL 1997 p 729)

3 Descartes caracterizou o pensamento para ele a propriedade essencial do mental como ldquotudo quanto estaacute de tal modo em noacutes que somos imediatamente conscientes [consci]rdquo (DESCARTES 1979 p 169 [AT VII p 160 AT IX p 124]) E em conformidade a isso ele entendeu que ldquonenhum pensamento pode existir em noacutes do qual nos natildeo estejamos conscientes [fit conscia] no exato momento em que ele existe em noacutesrdquo (cf AT VII p 246 AT IX p 190) Os nuacutemeros romanos datildeo as referecircncias nos volumes em latim (volume VII) e em francecircs (volume IX) da ediccedilatildeo completa das obras de Descartes feita por Charles Adam e Paul Tannery (AT)

Taacuterik de Athayde Prata | 55

possibilitar uma explanaccedilatildeo informativa da consciecircncia como uma

propriedade de estados mentais pois se a consciecircncia jaacute caracteriza de

saiacuteda todos os fenocircmenos psiacutequicos como pensava Descartes ldquotoda

tentativa de explanar a consciecircncia formulando condiccedilotildees necessaacuterias e

suficientes para um estado mental ser consciente vatildeo fracassar

automaticamente Se a consciecircncia jaacute estaacute embutida na mentalidade toda

explanaccedilatildeo seraacute natildeo informativardquo (ROSENTHAL 1986 p 330) E eu

acrescentaria que essa perspectiva tem a vantagem adicional de ser

compatiacutevel com os incontaacuteveis e no meu entender muito convincentes

indiacutecios de que a maior parte de nossa vida mental ocorre

independentemente da consciecircncia (cf por exemplo SEARLE 1992 p

164 1997 p 236 2004 p 244-45)

Entretanto esse tipo de perspectiva sobre a consciecircncia que a

considera natildeo essencial para o psiacutequico natildeo foi aceita por importantes

filoacutesofos do seacuteculo passado entre os quais se encontra Jean-Paul Sartre

(1905-1980) um dos mais influentes intelectuais do seacuteculo XX que

produziu uma obra de enorme abrangecircncia se estendendo desde a

escritura em diversos gecircneros literaacuterios passando pela filosofia pelos

textos de cunho poliacutetico4 e que na juventude empreendeu

interessantiacutessimas reflexotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia e os

fundamentos da psicologia5 Em sua mais importante obra anterior a O

ser e o nada (1943) o livro O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da

imaginaccedilatildeo (1940) Sartre (1996 p 36) afirma sem reservas que ldquoa

existecircncia de um fenocircmeno psiacutequico e o sentido que ele tem para a

consciecircncia satildeo uma coisa soacuterdquo o que o leva admitir em nota de rodapeacute que

ldquoessas constataccedilotildees nos obrigam a rejeitar inteiramente a existecircncia de um

inconscienterdquo (SARTRE 1996 p 36 nota no 13)

4 Como afirma Annie Cohen-Solal (2007 p 16) a mais conhecida bioacutegrafa de Sartre ele ldquoabordou todos os domiacutenios da escrita (romance novela filosofia teatro cinema biografia autobiografia ensaio criacutetico reportagem jornaliacutestica canccedilatildeo entre outros)rdquo

5 Em uma entrevista concedida jaacute no final de sua vida Sartre declarou que no iniacutecio de sua carreira filosoacutefica ldquoo que eu chamava de lsquofilosofiarsquo era pura e simplesmente psicologiardquo (COHEN-SOLAL 1986 p 90)

56 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Apesar das diversas passagens de sua obra que atacam a ideia de

inconsciente6 existem inteacuterpretes que questionam se Sartre de fato estava

comprometido com a rejeiccedilatildeo a essa ideia (cf GENNARO 2002 p 299-301)

Mas o fato eacute que ela natildeo eacute (pelo menos agrave primeira vista) compatiacutevel com sua

perspectiva pois de acordo com ele quando a consciecircncia (de algo) e uma

autoconsciecircncia impliacutecita natildeo satildeo concebidas como unificadas somos

confrontados com graves problemas No meu entendimento Sartre parte da

constataccedilatildeo de que introduzir uma dualidade na consciecircncia a torna

incompreensiacutevel pois leva a teorias insustentaacuteveis Em termos sumaacuterios a

dualidade nos deixa diante de um dilema

Ou paramos em um termo qualquer da seacuterie conhecido ndash cognoscente

conhecido ndash cognoscente conhecido pelo cognoscente etc e entatildeo a totalidade

do fenocircmeno cai no desconhecido quer dizer esbarramos sempre com uma

reflexatildeo natildeo consciente de si como derradeiro termo ndash ou entatildeo afirmamos a

necessidade de regressatildeo ao infinito (idea ideae ideae etc) o que eacute absurdo

(SARTRE 1943 p 18-19 SARTRE 1997 p 23)

Se haacute uma dualidade entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a

autoconsciecircncia entatildeo ou (I) esta autoconsciecircncia eacute inconsciente ou (II) a

autoconsciecircncia exige (para se tornar consciente) uma outra consciecircncia a

respeito dela que por sua vez exige outra e assim ad infinitum dois

resultados que parecem insatisfatoacuterios ndash pois uma consciecircncia

inconsciente parece uma contradiccedilatildeo em termos7 e um regresso ao

6 Jaacute em A transcendecircncia do ego (1937) seu primeiro texto escrito sob a influecircncia husserliana ele escreveu ldquoSem mesmo se dar conta os teoacutericos do amor-proacuteprio supotildeem que o refletido eacute anterior original e dissimulado no inconsciente Eacute penoso precisar evidenciar a absurdidade de uma tal hipoacutetese Mesmo se o inconsciente existisse o que nos faria acreditar ser ele o depositaacuterio de espontaneidades da forma refletida A definiccedilatildeo do refletido natildeo eacute a do que eacute colocado por uma consciecircnciardquo (SARTRE 1966 p 40-41 SARTRE 2010 p 198-99)

7 Eacute interessante notar que Franz Brentano um dos mais importantes pensadores da virada do seacuteculo XX (JACQUETTE 2004 p 1) autor que sem duacutevida atraveacutes de sua influecircncia sobre Husserl estaacute na raiz de muitas das concepccedilotildees de Sartre natildeo concordava com a visatildeo de que o inconsciente eacute uma noccedilatildeo contraditoacuteria apesar de Brentano ter sido um ferrenho opositor dessa noccedilatildeo Nas palavras de Brentano ldquoAlgumas pessoas iriam apenas balanccedilar a cabeccedila diante dessa questatildeo Supor uma consciecircncia inconsciente parece a elas absurdo Mesmo eminentes psicoacutelogos como por exemplo Locke e John Stuart Mill consideravam essa ideia uma contradiccedilatildeo direta Mas algueacutem que presta atenccedilatildeo agraves determinaccedilotildees feitas a seguir dificilmente iraacute julgar assim Esse algueacutem reconheceraacute que quem levanta a questatildeo sobre a existecircncia de uma consciecircncia inconsciente natildeo estaacute sendo ridiacuteculo como algueacutem que perguntasse se existe um vermelho natildeo vermelho Uma consciecircncia inconsciente eacute tatildeo pouco uma contraditio in adjecto quanto uma visatildeo natildeo vistardquo (BRENTANO 1924 p 143-4 [102-3])

Taacuterik de Athayde Prata | 57

infinito significa que a consciecircncia permanece natildeo explicada (aleacutem do fato

de que a proacutepria ideia de que haacute um regresso infinito parece insustentaacutevel

ndash de modo que a concepccedilatildeo comprometida com um regresso se mostra

absurda) Eacute interessante notar que essas dificuldades ndash (I) e (II) ndash satildeo

aplicaacuteveis ao tipo de teoria proposta por Rosenthal Ao conceber a

consciecircncia de um estado mental como decorrente do monitoramento

deste estado por um outro estado mental a respeito do primeiro

Rosenthal se expotildee ao perigo do regresso ao infinito e eacute para evitar esse

regresso que ele concebe o estado mental de ordem superior como

inconsciente o que evidentemente o leva a recair no primeiro termo do

dilema apontado por Sartre o pensamento que gera a consciecircncia do

estado mental de niacutevel inferior eacute ele proacuteprio inconsciente8

Devido a essas dificuldades Sartre conclui que ldquoConsciecircncia de si natildeo

eacute dualidade Se quisermos evitar regressatildeo ao infinito tem de ser relaccedilatildeo

imediata e natildeo cognitiva de si a sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24)

Exatamente por isso ele opta por colocar o ldquoderdquo da expressatildeo ldquoconsciecircncia

de sirdquo entre parecircnteses de modo a indicar que essa partiacutecula eacute empregada

por imposiccedilatildeo da gramaacutetica (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25) e natildeo

deve ser entendida como sugerindo uma dualidade entre a lsquoconsciecircnciarsquo e

o lsquosirsquo E a ideia da consciecircncia como uma relaccedilatildeo imediata a si mesma

constitui aquele que Kathleen Wider (1997 p 1) considera ser a alegaccedilatildeo

fundamental de Sartre sobre a consciecircncia a saber a alegaccedilatildeo de que

ldquotoda consciecircncia eacute por sua proacutepria natureza autoconsciecircnciardquo No ensaio

sobre A transcendecircncia do ego Sartre defendera que ldquoo tipo de existecircncia

da consciecircncia implica ser consciecircncia de si E ela toma consciecircncia de si

na exata medida em que eacute consciecircncia de um objeto transcendenterdquo

(SARTRE 1966 p 23-4 2010 p 188) Tomando o exemplo de uma

percepccedilatildeo ndash ou seja nos termos dele uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo ndash

Sartre afirma em O ser e o nada que a consciecircncia de si enquanto uma

8 A respeito da teoria de Rosenthal sobre a consciecircncia de estados mentais Uriah Kriegel afirma ldquoO estado de segunda ordem S2 em virtude do qual [o estado de primeira ordem] S1 eacute consciente eacute ele mesmo um estado inconsciente Assim o fato de que S2 representa o eu natildeo implica que por ter S2 o eu eacute consciente de si mesmo pois S2 natildeo eacute uma representaccedilatildeo consciente do eurdquo (KRIEGEL 2002 p 522-23) Cf tambeacutem Kriegel (2005 p 28)

58 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoconsciecircncia espontacircneardquo da percepccedilatildeo ldquoeacute constitutiva de minha

consciecircncia perceptivardquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24) e tomando o

exemplo da accedilatildeo de contar alguns cigarros afirma que ldquoa consciecircncia natildeo

teacutetica de contar eacute condiccedilatildeo mesma de minha atividade aditivardquo (SARTRE

1943 p 19 1997 p 24)

Mas se a assunccedilatildeo de uma dualidade na consciecircncia nos leva a um

dilema entre duas posiccedilotildees insustentaacuteveis a concepccedilatildeo por assim dizer

unitaacuteria da consciecircncia que a entende como uma unidade indissoluacutevel

entre uma (i) consciecircncia de algo e uma (ii) autoconsciecircncia natildeo estaacute livre

de suas proacuteprias dificuldades A concepccedilatildeo sartriana que vecirc essa

autoconsciecircncia como constitutiva ou como condiccedilatildeo de toda consciecircncia

intencional de objetos parece tornar a consciecircncia um fenocircmeno

misterioso inexplicaacutevel pois natildeo conseguimos formar uma noccedilatildeo clara de

qual seja a sua estrutura jaacute que ldquoa consciecircncia de si que caracteriza toda

consciecircncia de algo parece estar de algum modo misturada a esta

consciecircncia de algo de maneira que natildeo eacute nada faacutecil discerni-lasrdquo (PRATA

2017 p 460) e se essas noccedilotildees natildeo podem ser discernidas natildeo eacute possiacutevel

articular uma explicaccedilatildeo do que seja propriamente a consciecircncia

Consciecircncia Posicional e Consciecircncia Natildeo Posicional

Antes de examinar a dificuldade de explicar a consciecircncia tal como

concebida por Sartre eacute importante compreender uma distinccedilatildeo

importante proposta por ele a distinccedilatildeo entre (i) a consciecircncia posicional

ou teacutetica (cf SARTRE 1966 p 28 2010 p 191) por um lado e (ii) a

consciecircncia natildeo posicional (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou natildeo

teacutetica (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) por outro lado A consciecircncia

posicional eacute aquela que potildee um objeto de determinado modo Por exemplo

uma consciecircncia perceptiva potildee seu objeto como existente jaacute que a

percepccedilatildeo se articula enquanto apreensatildeo de algo que existe previamente

a ela ao passo que uma consciecircncia em imagem potildee seu objeto

(imaginado) de diferentes formas (p ex como ausente ou como

Taacuterik de Athayde Prata | 59

inexistente ndash cf SARTRE 1996 p 26) que pressupotildeem que a consciecircncia

eacute a criadora dessa imagem mental E eacute importante notar que o que cada

consciecircncia potildee eacute um objeto que portanto eacute concebido implicitamente

como algo que transcende a consciecircncia existindo para aleacutem de toda

consciecircncia que se possa ter dele9 Jaacute a consciecircncia natildeo posicional natildeo potildee

um objeto pois ela eacute um tipo especial de relaccedilatildeo que natildeo se volta para algo

contra-posto (ob-jectum) agrave consciecircncia mas eacute uma relaccedilatildeo desta

consciecircncia consigo mesma (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)

A respeito dessa distinccedilatildeo a importante inteacuterprete Kathleen Wider

entende que as duas formas de consciecircncia a posicional e a natildeo posicional

podem ser elucidadas em termos do foco da atenccedilatildeo do sujeito consciente

em cada caso enquanto a consciecircncia posicional implica em uma atenccedilatildeo

focada em um objeto (distinto da proacutepria consciecircncia) a consciecircncia natildeo

posicional apreende aquilo em que o sujeito natildeo concentra a sua atenccedilatildeo

Nas palavras de Wider (1997 p 41)

Por um lado qualquer coisa que cai no campo de ciecircncia [awareness] de

algueacutem e para a qual sua atenccedilatildeo estaacute direcionada eacute um objeto que eacute posto

pela consciecircncia Por isso Sartre chama a consciecircncia desse objeto de

consciecircncia teacutetica ou posicional Por outro lado algueacutem tem apenas uma

consciecircncia natildeo teacutetica ou natildeo posicional de qualquer coisa que cai em seu

campo de ciecircncia mas ao qual ele natildeo estaacute presentemente prestando atenccedilatildeo

Se percebo um objeto ou imagino uma paisagem posiciono essa

referecircncia transcendente agrave minha consciecircncia de determinada maneira ndash

como existente no caso da percepccedilatildeo ou como p ex existente em outro

lugar no caso da imaginaccedilatildeo ndash e minha atenccedilatildeo eacute absorvida por essa

referecircncia transcendente Mas ao mesmo tempo em que minha atenccedilatildeo se

absorve na coisa ndash percebida ou imaginada ndash eu apreendo implicitamente

minha proacutepria consciecircncia perceptiva ou imaginativa pois se percebo

apreendo implicitamente ndash na periferia da atenccedilatildeo ndash minha percepccedilatildeo

9 De acordo com Sartre haacute ldquoalgo de excessivo no mundo das lsquocoisasrsquo a cada instante haacute sempre infinitamente mais do queo que podemos ver para esgotar a riqueza de minha percepccedilatildeo atual seria necessaacuterio um tempo infinitordquo (SARTRE 1996 p 22)

60 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

como passiva ao passo que se imagino apreendo implicitamente minha

imaginaccedilatildeo como criadora (cf PRATA 2016 p 81-82) Essa apreensatildeo

impliacutecita pode ser transformada em uma consciecircncia posicional de

consciecircncia ndash uma consciecircncia posicional da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo

Mas nesse caso estamos diante de uma reflexatildeo ou seja uma consciecircncia

reflexiva (cf abaixo)

A Opacidade da Consciecircncia na Teoria de Sartre

A avaliaccedilatildeo de que a teoria de Sartre natildeo eacute capaz de fornecer uma

explicaccedilatildeo da consciecircncia parece ser confirmada pela maneira como ele

em diversas passagens se refere ao fenocircmeno da consciecircncia atraveacutes de

metaacuteforas o que de fato sugere que ele natildeo dispunha de conceitos claros

sobre a estrutura da consciecircncia Penso que a necessidade do uso de

metaacuteforas surge de uma estrutura conceitual obscura como encontramos

em determinada passagem de O ser e o nada na qual apoacutes afirmar a

autoconsciecircncia ldquonatildeo teacuteticardquo10 como constitutiva de todo ato mental (como

uma operaccedilatildeo de contar) nega que isso implique um ciacuterculo vicioso mas

se exprime em termos relativamente nebulosos

Contudo natildeo haacute esse ciacuterculo vicioso ou se preferirmos eacute da proacutepria natureza

da consciecircncia existir ldquoem ciacuterculordquo O que se pode exprimir assim toda existecircncia

consciente existe como consciecircncia de existir Compreendemos agora porque a

consciecircncia primeira de consciecircncia natildeo eacute posicional eacute uma soacute com [un avec] a

consciecircncia da qual eacute consciecircncia (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)

A autoconsciecircncia eacute una com a consciecircncia de algo a respeito da qual

ela eacute e justamente essa unidade parece tornar o fenocircmeno opaco a uma

explicaccedilatildeo conceitual E logo em seguida ele se exprime em termos que

tornam essa opacidade ainda mais flagrante Nas palavras de Sartre

10 Conforme discutido acima uma consciecircncia ldquonatildeo-teacuteticardquo (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) equivale a uma consciecircncia ldquonatildeo-posicionalrdquo (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou seja trata-se de uma consciecircncia que natildeo potildee seu objeto como algo distinto de si mesma (cf SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)

Taacuterik de Athayde Prata | 61

Natildeo haacute antes uma consciecircncia que recebesse depois [grifado no original] a

afecccedilatildeo ldquoprazerrdquo tal como se colore a aacutegua ndash do mesmo modo como natildeo haacute

antes um prazer (inconsciente ou psicoloacutegico) que recebesse depois a

qualidade de consciente como um feixe de luz Haacute um ser indivisiacutevel

indissoluacutevel [grifo meu] ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas

qualidades como seres menores mas um ser que eacute existecircncia de ponta a ponta

(SARTRE 1943 p 21 1997 p 26)

Aqui ele rejeita a ideia de que a relaccedilatildeo entre a (i) consciecircncia de algo

e a (ii) autoconsciecircncia seja comparaacutevel agrave relaccedilatildeo entre um sujeito e seu

predicado fazendo dela um ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo cuja

compreensatildeo se torna muito difiacutecil Desse modo natildeo parece restar

alternativa para Sartre aleacutem de recorrer a metaacuteforas para exprimir esse

modo de existecircncia peculiar da consciecircncia como quando ele afirma que a

autoconsciecircncia

Natildeo deve ser considerada uma nova consciecircncia mas o uacutenico modo de

existecircncia possiacutevel para uma consciecircncia de alguma coisa Assim como um

objeto extenso estaacute obrigado a existir segundo as trecircs dimensotildees tambeacutem uma

intenccedilatildeo um prazer uma dor natildeo poderiam existir exceto como consciecircncia

imediata de si mesmos (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25 grifado no original)

Neste trecho o modo de existecircncia da consciecircncia (enquanto

essencialmente marcada por uma autoconsciecircncia) eacute simplesmente

comparado a um fato bruto a saber o de que objetos espaciais

necessariamente existem nas trecircs dimensotildees E jaacute anos antes no ensaio

sobre A transcendecircncia do ego ele se expressara em termos semelhantes

ao dizer que o fato de a consciecircncia irrefletida ser consciecircncia de ser

consciecircncia de um objeto eacute ldquoa lei de sua existecircnciardquo (SARTRE 1966 p 24

2010 p 188-89 grifo meu)

Vejamos agora de modo mais detalhado a maneira como Sartre

concebe a consciecircncia atraveacutes de uma segunda distinccedilatildeo fundamental a

distinccedilatildeo entre (arsquo) consciecircncia irrefletida tida por ele como a forma

fundamental e (brsquo) consciecircncia reflexiva tida por ele como derivada

62 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Consciecircncia Irrefletida e Consciecircncia Reflexiva

Para articular adequadamente a relaccedilatildeo entre a consciecircncia e o eu no

esforccedilo de negar a noccedilatildeo husserliana de um eu transcendental Sartre

desenvolveu uma distinccedilatildeo entre (arsquo) a consciecircncia irrefletida (irreacutefleacutechie)

a forma mais fundamental originaacuteria e (brsquo) a consciecircncia reflexiva

(reacuteflexive) derivada da primeira na qual o fenocircmeno do ldquoeurdquo teria sua

origem (cf SARTRE 1966 p 37 2010 p 196) Na consciecircncia reflexiva

temos duas manifestaccedilotildees de consciecircncia11 a consciecircncia reflexionante

(reacutefleacutechissante) e a consciecircncia refletida (reacutefleacutechie) onde uma se debruccedila

sobre a outra colocando esta uacuteltima como seu objeto Entretanto essa

forma de consciecircncia (cindida entre duas manifestaccedilotildees) natildeo poderia ser

a forma mais fundamental pois a consciecircncia reflexionante que faz da

consciecircncia refletida um objeto jaacute eacute uma consciecircncia (mesmo quando essa

consciecircncia reflexionante natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo ulterior o que eacute

sempre possiacutevel ndash cf SARTRE 1966 p 29 2010 p 191) Portanto deve

haver algo nela (assim como tambeacutem nas manifestaccedilotildees de consciecircncia

voltadas para objetos exteriores) que jaacute a torne consciecircncia

Isso leva Sartre a articular sua concepccedilatildeo a respeito da consciecircncia

irrefletida a consciecircncia que natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo que se investe

completamente no visar um objeto para aleacutem dela proacutepria e eacute nesse

contexto que surge a tese basilar da teoria de Sartre a respeito da

consciecircncia (cf WIDER 1997 p 1) que podemos designar como a tese da

autoreferencialidade da consciecircncia irrefletida que pode ser formulada

nos seguintes termos ldquotoda consciecircncia posicional do objeto eacute ao mesmo

tempo consciecircncia natildeo posicional de sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p

24)12 Eacute exatamente por isso que a consciecircncia irrefletida eacute por si mesma

consciecircncia independentemente da reflexatildeo pois a consciecircncia irrefletida

11 Temos aqui um uso de ldquoconsciecircnciardquo que se refere a cada episoacutedio particular de vivecircncia consciente (cf SARTRE 1996 p 13) isto eacute nesse sentido cada episoacutedio de percepccedilatildeo cada episoacutedio de imagem mental cada episoacutedio de emoccedilatildeo eacute uma consciecircncia Esse uso eacute diferente de um outro aceito por sartre um uso mais globalizante no qual ldquoconsciecircnciardquo se refere agrave ldquomocircnada e o conjunto de suas estruturas psiacutequicasrdquo (SARTRE 1996 p 13)

12 Sartre caracteriza a noccedilatildeo de ldquoposicionalrdquo nos seguintes termos ldquoToda consciecircncia eacute posicional na medida em que se transcende para alcanccedilar um objeto e ela esgota-se nessa posiccedilatildeo [position] mesmardquo (SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)

Taacuterik de Athayde Prata | 63

(na medida em que eacute intencional) eacute uma relaccedilatildeo com um objeto

transcendente a ela que eacute simultaneamente uma relaccedilatildeo a si mesma

Para que se possa construir uma compreensatildeo teoacuterica adequada dessa

autoconsciecircncia preacute-reflexiva tal como concebida por Sartre eacute necessaacuterio no

meu modo de entender um modelo no qual os elementos constituintes dessa

autoconsciecircncia possam ser conceitualmente discernidos ao mesmo tempo

em que a sua unidade por assim dizer orgacircnica se mostre de maneira

inteligiacutevel Seguindo uma indicaccedilatildeo do professor Andreacute Leclerc13 me

proponho a investigar o modelo integrativo da consciecircncia articulado por

Uriah Kriegel para verificar se ele pode servir como um modelo adequado

para se compreender a teoria sartriana da consciecircncia (de) si

O Modelo Integrativo de Kriegel

Kriegel articula o seu modelo integrativo na tentativa de naturalizar

aquilo que ele denomina de ldquocaraacuteter subjetivordquo da experiecircncia consciente

visto por ele como um aspecto constituinte daquilo que ele chama de

ldquocaraacuteter fenomenalrdquo dessa experiecircncia Esse caraacuteter fenomenal pensado por

Kriegel corresponde a aquilo que Thomas Nagel (1974 p 436 2005 p 247)

chamou de subjetividade a saber lsquoo modo como eacute vivenciar um estado

mental x para a criatura que o vivenciarsquo Kriegel propotildee analisar esse caraacuteter

fenomenal em dois aspectos constituintes (a) o modo como eacute vivenciar o

estado mental x ndash que ele denomina caraacuteter qualitativo ndash e (b) o fato desse

modo se doar ao sujeito que vivencia esse estado mental ndash que Kriegel

denomina o caraacuteter subjetivo desse estado Na visatildeo de Kriegel (2005 p 24)

ldquoo caraacuteter qualitativo de uma experiecircncia consciente determina qual

experiecircncia consciente ela eacute mas eacute o caraacuteter subjetivo da experiecircncia que

determina se ela eacute de algum modo [at all] uma experiecircncia conscienterdquo

E eacute importante perceber que esse caraacuteter subjetivo se encontra em

uma relaccedilatildeo essencial com o conceito de ciecircncia [awareness] pois na exata

13 Aproveito para agradecer por essa observaccedilatildeo que o professor fez no debate de uma apresentaccedilatildeo que fiz sobre a teoria de Sartre no IX Encontro Interinstitucional de Filosofia em 2015 no Recife

64 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

medida em que uma experiecircncia se doa ndash ou se manifesta ndash ao sujeito

consciente este sujeito tem que estar ciente [aware] dessa experiecircncia (cf

KRIEGEL 2005 p 25)14 Mas Kriegel enfatiza que o modo como o sujeito

estaacute ciente de suas proacuteprias experiecircncias eacute bastante peculiar pois essa

ciecircncia normalmente natildeo estaacute focada na proacutepria experiecircncia mas sim

nos objetos ou estados de coisas extra-psiacutequicos que satildeo o tema dessa

experiecircncia Sendo assim ele se vecirc levado a introduzir uma distinccedilatildeo entre

(I) estar ciente de algo de modo focado e (II) estar ciente disso de modo

perifeacuterico15 A ideia baacutesica eacute do mesmo modo que em uma percepccedilatildeo

visual estamos cientes de maneira focada do objeto que estaacute no centro do

campo visual e estamos cientes de maneira perifeacuterica dos objetos que se

afastam desse centro no que diz respeito agraves nossas proacuteprias experiecircncias

estamos normalmente16 cientes delas de modo perifeacuterico ao mesmo

tempo em que temos uma ciecircncia focada dos objetos extra-psiacutequicos

dessas experiecircncias Como esclarece Kriegel (2005 p 26)

Minha sugestatildeo eacute que nossa ciecircncia de nossas experiecircncias conscientes eacute

normalmente uma forma de tal ciecircncia perifeacuterica natildeo-perceptiva Experiecircncias

conscientes exibem caraacuteter subjetivo em virtude do fato de que sempre que

temos uma experiecircncia consciente noacutes estamos perifericamente cientes de tecirc-la

Ele entende que o problema do caraacuteter subjetivo ldquoeacute o problema de

compreender como um estado mental pode incluir em si uma ciecircncia de si

proacutepriordquo (KRIEGEL 2005 p 30) E para explicar isso ele propotildee um

modelo teoacuterico baseado na integraccedilatildeo de informaccedilotildees que por essa razatildeo

eu denomino um modelo ldquointegrativordquo Para Kriegel a inclusatildeo de uma

ciecircncia de si mesmo no interior do proacuteprio estado mental consciente pode

14 Em um texto bastante conhecido no debate sobre a consciecircncia David Woodruff Smith (1986 p 149) escreveu ldquoum estado mental eacute consciente se o sujeito desse estado estaacute ciente [aware] de sua ocorrecircnciardquo

15Natildeo eacute difiacutecil perceber que essa maneira como Kriegel procura esclarecer o caraacuteter impliacutecito da ciecircncia que temos de nossas experiecircncias coincide com a maneira como Kathleen Wider (1997 p 41) interpreta a distinccedilatildeo sartriana entre consciecircncia posicional e natildeo posicional discutida na seccedilatildeo 2 acima

16A exceccedilatildeo satildeo os casos de reflexatildeo ndash no dizer de Sartre (1966 p 27-28 2010 p 190-91) ndash ou introspecccedilatildeo ndash no dizer de Rosenthal (1986 p 336-37 1997 p 730) caso que satildeo menos comuns do que os de consciecircncia natildeo reflexiva (cf KRIEGEL 2002 p 518 2003 p 105)

Taacuterik de Athayde Prata | 65

ser explicada atraveacutes da presenccedila de um tipo peculiar de conteuacutedo no

estado consciente conteuacutedo que conecta (a) a ciecircncia de um objeto ndash ou

estado de coisas ndash externo agrave mente com (b) a ciecircncia do proacuteprio estado

mental que se direciona a aquele objeto ndash ou estado de coisas ndash tornando-

se entatildeo necessaacuterio explicar como esse conteuacutedo eacute produzido E eacute aiacute que

entra em cena o modelo integrativo Nas palavras de Kriegel (2005 p 46)

A abordagem que pretendo introduzir sugere que esse tipo de conteuacutedo

representacional pode ser produzido simplesmente atraveacutes da integraccedilatildeo da

informaccedilatildeo carregada por o que eram inicialmente estados mentais separados

Quando os conteuacutedos desses estados mentais separados satildeo apropriadamente

integrados surge um (uacutenico) estado mental que possui exatamente o tipo

correto de conteuacutedo representacional

Apoacutes essa sinteacutetica exposiccedilatildeo do modelo de Kriegel somos obrigados

por motivos de espaccedilo a passar diretamente a uma discussatildeo da teoria de

Sartre

Consideraccedilotildees Finais

Se a visatildeo cartesiana da consciecircncia como a essecircncia da mente sofreu

fortes contestaccedilotildees ao longo do seacuteculo XX vimos que a perspectiva

sartriana ndash influenciada por Descartes ndash da autoconsciecircncia (impliacutecita)

como constitutiva de todo estado intencional parece inviabilizar uma

compreensatildeo teoacuterica adequada da consciecircncia Sartre defende uma

unidade essencial entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a autoconsciecircncia

porque a separaccedilatildeo desses elementos levaria a um dilema entre (I) uma

autoconsciecircncia inconsciente e (II) um regresso ao infinito (cf SARTRE

1943 p 18-19 1997 p 23 cf KRIEGEL 2005 p 28) Entretanto essa

visatildeo unitaacuteria tambeacutem eacute problemaacutetica pois torna a consciecircncia algo

inexplicaacutevel deixando a Sartre apenas a opccedilatildeo de recorrer a metaacuteforas ndash

como a do ldquociacuterculordquo e a das ldquotrecircs dimensotildeesrdquo (cf SARTRE 1943 p 20

1997 p 25) ou ainda a da ldquolei de existecircnciardquo (cf SARTRE 1966 p 24

2010 p 188-89) ndash ou entatildeo recorrer a conceitos obscuros ndash como o de um

66 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo (cf SARTRE 1943 p 21 1997 p 26) ndash para

tentar exprimir o que a consciecircncia eacute

Em outras palavras natildeo resta duacutevida de que o terreno em que esse

debate sobre a consciecircncia eacute travado eacute extremamente movediccedilo pois a

exposiccedilatildeo feita acima mostrou que se a visatildeo da consciecircncia como

essencialmente conectada a uma autoconsciecircncia eacute obscura a visatildeo que

separa a consciecircncia de algo da autoconsciecircncia tambeacutem natildeo funciona

pois recai no dilema acima mencionado ndash entre (I) e (II) Eacute aqui que o

modelo de Kriegel se mostra promissor pois a ideia de uma efetiva

integraccedilatildeo de estados mentais que existiam originalmente separados por

um lado nos fornece a distinccedilatildeo entre conceitos ndash o conceito da (i) ciecircncia

[awareness] do objeto por um lado e o conceito da (ii) ciecircncia do proacuteprio

estado mental por outro lado ndash que possibilita a articulaccedilatildeo de uma

explanaccedilatildeo propriamente dita jaacute que a unidade proposta por Sartre

concebida de uma maneira natildeo predicativa17 como vimos parece

inviabilizar qualquer explanaccedilatildeo conceitual E por outro lado a ideia da

integraccedilatildeo real de estados mentais (originalmente distintos) nos fornece

uma unidade diferente daquela que encontramos nos escritos do filoacutesofo

francecircs pois aleacutem de evitar o regresso ao infinito (como faz a unidade

misteriosa de Sartre) ela permanece permeaacutevel a uma explanaccedilatildeo

conceitual tornando-se assim uma opccedilatildeo mais atraente no cenaacuterio das

elaboraccedilotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia

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17 ldquoHaacute um ser indivisiacutevel indissoluacutevel ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas qualidades como seres menoresrdquo (SARTRE 1943 p 21 1997 p 26 grifos meus) Temos aqui uma terminologia ontoloacutegica que pressupotildee o discurso sujeito-predicado (cf IMAGUIRE 2007 p 274)

Taacuterik de Athayde Prata | 67

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68 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

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4

A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico

A Criacutetica de John Searle agraves Principais Correntes

da Filosofia da Mente

Maxwell Morais de Lima Filho 1

Parece muito doce aquela cana

Descasco-a provo-a chupo-ahellip ilusatildeo treda

Augusto dos Anjos

Para Searle (2006 p 7-9) nem eacute verdade que o problema mente-

corpo seja insoluacutevel nem que seja necessaacuterio um projeto de naturalizaccedilatildeo

para atacaacute-lo pois basta reconhecermos que os fenocircmenos mentais satildeo

caracteriacutesticas de niacutevel superior causadas e realizadas no sistema nervoso

para resolvecirc-lo2

O famoso problema mente-corpo fonte de tanta controveacutersia ao longo dos

dois uacuteltimos milecircnios tem uma soluccedilatildeo simples [] Aqui estaacute ela os

fenocircmenos mentais satildeo causados por processos neurofisioloacutegicos no ceacuterebro

e satildeo eles proacuteprios caracteriacutesticas do ceacuterebro

[]

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) e Professor do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

2 Em Intencionalidade Searle (1995 p 21-2) critica tanto os dualistas quanto os fisicalistas por tentarem resolver um problema que sequer existe ldquoOs dualistas que percebem corretamente o papel causal do mental consideram que precisamente por esta razatildeo devem postular uma categoria ontoloacutegica separada Muitos fisicalistas que percebem corretamente que tudo o que temos no cracircnio eacute um ceacuterebro acham que por esta razatildeo devem negar a eficaacutecia causal dos aspectos mentais do ceacuterebro ou mesmo a existecircncia desses aspectos mentais irredutiacuteveis Acredito que ambas as visotildees estejam equivocadas Ambas tentam resolver o problema mente-corpo quando a abordagem correta eacute perceber que tal problema natildeo existe O lsquoproblema mente-corporsquo natildeo eacute um problema mais real que o do lsquoestocircmago-digestatildeorsquordquo

70 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Os dualistas de propriedades pensam que o problema mente-corpo eacute

espantosamente difiacutecil talvez completamente insoluacutevel Os materialistas

concordam que se a intencionalidade e a consciecircncia realmente existem e satildeo

irredutiacuteveis a fenocircmenos fiacutesicos entatildeo de fato haveria um difiacutecil problema

mente-corpo mas eles pretendem ldquonaturalizarrdquo a intencionalidade e talvez

tambeacutem a consciecircncia Por ldquonaturalizaccedilatildeordquo de fenocircmenos mentais eles

entendem a sua reduccedilatildeo a fenocircmenos fiacutesicos

Perpassando as incontaacuteveis divergecircncias teoacutericas entre dualistas e

fisicalistas se encontra um liame terminoloacutegico herdado de Descartes que

contrapotildee o fiacutesico ao mental essa distinccedilatildeo substancial do mundo por sua

vez teria sido uacutetil para superar o aparente conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia

no seacuteculo XVII Sendo assim os assuntos concernentes agrave alma e agrave moral

humanas seriam tratados exclusivamente pela Religiatildeo enquanto os

cientistas se debruccedilariam sobre os mais diversos fenocircmenos naturais ndash

fiacutesicos quiacutemicos bioloacutegicos etc Em realidade natildeo houve uma completa

superaccedilatildeo do conflito como o proacuteprio Searle adverte (2010c) haja vista

que Galileu se retratou perante a Igreja e Descartes se mudou para a mais

tolerante Holanda Interessante notarmos que o filoacutesofo britacircnico Gilbert

Ryle tambeacutem menciona os pensadores italiano e francecircs na origem do erro

categorial presente na doutrina do fantasma na maacutequina Poreacutem no que

se refere ao conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia Ryle (1970 p 18-9) o

restringe agrave esfera pessoal de Descartes que aceitou o mecanicismo

galilaico somente na esfera corpoacuterea

[Q]uando Galileu mostrou que os seus meacutetodos de descoberta cientiacutefica eram

capazes de estabelecer uma teoria mecacircnica que abrangeria todos os

ocupantes do espaccedilo Descartes encontrou em si proacuteprio duas razotildees em

conflito Como homem de gecircnio cientiacutefico natildeo tinha outro remeacutedio senatildeo

sancionar as descobertas da mecacircnica ao passo que como homem religioso e

moral natildeo poderia aceitar como Hobbes aceitou os desencorajantes

corolaacuterios dessas descobertas ou seja que a natureza humana difere apenas

em grau de complexidade do mecanismo de um reloacutegio O mental natildeo poderia

ser uma variedade do mecacircnico

Maxwell Morais de Lima Filho | 71

Eacute justamente contra essa visatildeo que o autor drsquoA Redescoberta da

Mente defende que o passo que devemos dar antes mesmo de iniciar a

investigaccedilatildeo eacute abandonar o dualismo conceitual que estaacute presente nas

concepccedilotildees mais diacutespares do espectro da Filosofia da Mente o dualismo

de substacircncia o dualismo de propriedade o materialismo o monismo o

behaviorismo a teoria da identidade o funcionalismo e a inteligecircncia

artificial forte Se largarmos o dualismo conceitual dissolveremos o falso

dilema que nos faz acreditar que ou defendemos uma concepccedilatildeo dualista

ou uma fisicalista como ostenta Searle (2002a p 15) nesta passagem

Os filoacutesofos analiacuteticos juntamente com o restante da tradiccedilatildeo cartesiana

assumiram de modo caracteriacutestico que ldquomentalrdquo implica ldquonatildeo-materialrdquo ou

ldquoimaterialrdquo e que ldquomaterialrdquo ou ldquofiacutesicordquo implica ldquonatildeo mentalrdquo No entanto

quando se reflete sobre o modo como o ceacuterebro opera tem-se a impressatildeo de

que ambos os pressupostos satildeo obviamente falsos

Feitas essas ressalvas exporemos as criacuteticas que Searle tece agraves

principais correntes da Filosofia da Mente comeccedilando pelo dualismo de

substacircncia Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia rastreamos versotildees dessa

concepccedilatildeo sendo defendidas por pensadores desde a Greacutecia Antiga sendo

Platatildeo o mais insigne entre eles Tambeacutem registramos brevemente que o

dualismo de substacircncia se configurou como uma posiccedilatildeo-padratildeo tanto na

Patriacutestica como na Escolaacutestica e foi defendido por eruditos do porte de

Agostinho e de Tomaacutes de Aquino Em que pesem todos esses antecedentes

a versatildeo do dualismo de substacircncia que eacute levada em consideraccedilatildeo pela

maioria dos filoacutesofos da mente eacute aquela consumada na obra de Reneacute

Descartes Em resumo o filoacutesofo francecircs propunha uma cisatildeo entre o

domiacutenio fiacutesico res extensa (substacircncia material ou fiacutesica) e o domiacutenio

mental res cogitans3 (alma mente ou substacircncia mental) Para

fundamentar a dualidade ontoloacutegica o filoacutesofo francecircs parte do princiacutepio

de distinccedilatildeo para afianccedilar a possibilidade de concebermos claramente que

3 Cottingham (1999 p 26) nos adverte para natildeo nos desencaminharmos pelo significado religioso ou espiritual que foi imputado ao termo ldquoalmardquo tendo em conta que Descartes utiliza os vocaacutebulos ldquolrsquoacircme (ldquoalmardquo) e lrsquoesprit (ldquomenterdquo) mais ou menos indiferentemente simplesmente para se referir ao que quer que seja consciente []rdquo

72 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

a discriminaccedilatildeo e a independecircncia entre corpo e alma decorrem do fato de

eles assim terem sido produzidos por Deus Mas afinal de contas em que

reside a diferenccedila fundamental entre esses dois domiacutenios ontoloacutegicos

Descartes (1996 p 326) responde a esse questionamento afirmando que

a caracteriacutestica crucial dos corpos eacute a extensatildeo e a da alma o pensamento

E embora [] eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente

conjugado todavia jaacute que de um lado tenho uma ideacuteia clara e distinta de mim

mesmo na medida em que sou apenas uma coisa pensante [res cogitans] e

inextensa e que de outro tenho uma ideacuteia distinta do corpo na medida em

que eacute apenas uma coisa extensa [res extensa] e que natildeo pensa eacute certo que este

eu isto eacute minha alma pela qual eu sou o que sou eacute inteira e verdadeiramente

distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele [independecircncia

entre alma e corpo]

Seguindo o raciociacutenio cartesiano ao examinar o meu corpo (ou outro

qualquer como uma mesa por exemplo) constatariacuteamos que ele tem uma

extensatildeo e a partir disso posso falar algo como ldquomeccedilo 174 mrdquo

Conquanto natildeo faria sentido algum aferirmos ao peacute da letra o

comprimento da minha crenccedila na democracia Logo haacute uma diferenciaccedilatildeo

ontoloacutegica entre o meu corpo (coisa fiacutesicasubstacircncia extensa) e a minha

mente (coisa natildeo fiacutesicasubstacircncia pensante) a coisa extensa eacute natildeo

pensante e a coisa pensante eacute natildeo extensa Decorre diretamente dessa

distinccedilatildeo a irredutibilidade e a independecircncia do mental em relaccedilatildeo ao

fiacutesico e entre outras coisas isso significa que natildeo haacute nenhum

impedimento para a persistecircncia de minha alma apoacutes a morte do meu

corpo Para Descartes (2004 p 227)

o corpo humano na medida em que difere dos outros corpos eacute constituiacutedo

por certa configuraccedilatildeo de membros e de outros acidentes desse modo ao

passo que a mente humana natildeo eacute constituiacuteda dessa maneira a partir de

acidentes nenhuns mas eacute pura substacircncia Pois embora todos os seus

acidentes se modifiquem ndash ela entende umas coisas quer outras sente outras

etc ndash nem por isso a proacutepria mente torna-se uma outra Ao passo que o corpo

humano torna-se outro em virtude apenas de que se modifique a figura de

qualquer uma de suas partes Disto se segue que tal corpo morre muito

Maxwell Morais de Lima Filho | 73

facilmente enquanto a mente ou a alma do homem (o que natildeo distingo) eacute

imortal por sua natureza

Jaacute em sua eacutepoca o filoacutesofo francecircs foi criticado por defender a

interaccedilatildeo entre esses dois tipos totalmente diferentes de substacircncia porque

restou inexplicado como algo fiacutesico causaria algo mental e inversamente

como o mental atuaria sobre o fiacutesico Na tentativa de resguardar seu

posicionamento interacionista ele recorreu agrave glacircndula pineal e aos

espiacuteritos animais resguardando agravequela a sede da alma e conferindo a estes

uacuteltimos a funccedilatildeo comunicativa entre as duas substacircncias Todavia

Descartes (1996 p 328-9) nos alerta para natildeo olvidarmos que o contraste

metafiacutesico entre espiacuterito e mateacuteria natildeo impede a sua iacutentima conjunccedilatildeo

como uma totalidade coerente

A natureza me ensina tambeacutem por esses sentimentos de dor fome sede etc

que natildeo somente estou alojado em meu corpo como um piloto em seu navio

mas que aleacutem disso lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo

confundido e misturado que componho com ele um uacutenico todo

Para Cottingham (1989) seria incorreto enquadrar a posiccedilatildeo de

Descartes como um dualismo pois existem atributos humanos que natildeo se

encaixariam nem como modos de extensatildeo nem como modos de

pensamento haja vista que seriam o resultado da uniatildeo de ambos Sendo

assim como os fenocircmenos psicofiacutesicos natildeo se identificariam nem aos

fenocircmenos fiacutesicos (res extensa) nem aos mentais (res cogitans)

estariacuteamos diante de um ldquotrialismo cartesianordquo Para justificar sua linha

de raciociacutenio Cottingham (1989 p 172) menciona uma carta que

Descartes enviou agrave rainha Elizabeth em 1643 na qual o filoacutesofo francecircs

reconhece a existecircncia de ldquotrecircs categorias ou noccedilotildees primitivasrdquo a forma

e o movimento se relacionam agrave extensatildeo a compreensatildeo e a vontade ao

pensamento e as sensaccedilotildees e paixotildees agrave uniatildeo entre o corpo e a alma

Independentemente de qual leitura exegeacutetica prevaleccedila ndash dualismo ou

trialismo ndash o ponto eacute que os expedientes da glacircndula pineal e dos espiacuteritos

animais utilizados por Descartes estatildeo longe de serem satisfatoacuterios Por um

74 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

lado eacute incoerente delimitar a alma na glacircndula pineal porque a res cogitans

eacute uma substacircncia natildeo extensa e portanto sem localizaccedilatildeo espacial por

outro ainda que se considere que os espiacuteritos animais sejam constituiacutedos de

uma substacircncia fiacutesica bastante delicada permanece aberta a questatildeo

original como os espiacuteritos animais que possuem massa e satildeo espacialmente

situados satildeo capazes de interatuar com uma substacircncia imaterial Natildeo

obstante as criacuteticas direcionadas ao dualismo de substacircncia ao longo dos

seacuteculos e o fato de ele ser minoritaacuterio no ambiente acadecircmico atual natildeo

devemos esquecer que essa concepccedilatildeo estaacute intimamente afinada tanto com

o senso comum quanto com o pensamento religioso pois a maioria das

Religiotildees ndash se natildeo todas ndash defende uma separaccedilatildeo entre a alma e o corpo

Para o autor drsquoA Redescoberta da Mente no entanto essa corrente seria

inconciliaacutevel com o arcabouccedilo conceitual proveniente das Ciecircncias da

Natureza segundo o qual as caracteriacutesticas de niacutevel superior se

fundamentam na microestrutura o que nos impede de tratarmos a

consciecircncia como se fosse uma substacircncia distinta ou uma entidade

adicional ao substrato fiacutesico Nesse sentido Searle (2010a p 4-5) assevera

que por ser causada e realizada neurofisiologicamente eacute que a consciecircncia

natildeo passa de uma caracteriacutestica de niacutevel superior do sistema nervoso

O cheiro da flor o som da sinfonia os pensamentos sobre os postulados da

geometria euclidiana ndash tudo eacute causado por processos bioloacutegicos de niacutevel

inferior no ceacuterebro e ateacute onde sabemos os elementos cruciais satildeo os

neurocircnios e as sinapses

[]

Assim eacute possiacutevel resumir da seguinte maneira as duas relaccedilotildees cruciais entre

consciecircncia e ceacuterebro os processos neurocircnicos de niacutevel inferior no ceacuterebro

causam a consciecircncia e a consciecircncia eacute apenas uma caracteriacutestica de niacutevel

superior de um sistema composto de elementos neurocircnicos de niacutevel inferior

Obviamente esse modo de pensar vai de encontro agrave tese central do

dualismo de substacircncia de que a distinccedilatildeo ontoloacutegica4 entre os dois

4 Por motivos distintos o eliminativista Rorty (1994 p 133) tambeacutem critica as categorias cartesianas ldquoEssas assim chamadas categorias ontoloacutegicas [de lsquomentalrsquo e de lsquofiacutesicorsquo] satildeo simplesmente os modos de embalar noccedilotildees deveras heterogecircneas de fontes histoacutericas deveras heterogecircneas que eram convenientes aos propoacutesitos do proacuteprio Descartes

Maxwell Morais de Lima Filho | 75

domiacutenios sustenta que o fiacutesico tem um modo de existecircncia diferente do

mental Portanto ao defender que a consciecircncia eacute uma caracteriacutestica

emergente do sistema nervoso o filoacutesofo estadunidense estaacute propondo

que o acircmbito fiacutesico eacute mais abrangente do que o dualista de substacircncia

poderia supor pois a mentalidade eacute fiacutesica Eacute somente a partir disso que

compreendemos a revisatildeo do adaacutegio cartesiano pretendida por Searle

(2006 p 26) quando afirma que ldquosou um ser pensante portanto sou um

ser fiacutesicordquo Mais do que isso como a consciecircncia emerge da organizaccedilatildeo e

da complexidade fiacutesicas Searle (2010d p 98) tambeacutem discorda do

posicionamento cartesiano de que os animais natildeo humanos satildeo

autocircmatos haja vista que o grau de semelhanccedila5 conosco ndash principalmente

com os primatas ndash leva-nos na direccedilatildeo contraacuteria

Do ponto de vista anatocircmico as semelhanccedilas satildeo grandes demais para que

essa especulaccedilatildeo [da ausecircncia de intencionalidade e de pensamento nos

animais natildeo humanos] pareccedila plausiacutevel ainda que remotamente do ponto de

vista fisioloacutegico como sabemos os mecanismos que produzem a

intencionalidade e o pensamento nos humanos tecircm estreitos paralelos com os

que se verificam em outros animais

Foi com o intuito de fugir das dificuldades que se impotildeem ao

dualismo de substacircncia que alguns filoacutesofos comprometidos com a

irredutibilidade dos fenocircmenos mentais propuseram o dualismo de

propriedade Essa abordagem postula a existecircncia de uma uacutenica

substacircncia a substacircncia fiacutesica (monismo fiacutesico) e de dois tipos de

propriedade mutuamente excludentes as fiacutesicas e as mentais Ao

observarmos uma pessoa qualquer diria o dualista de propriedade

Mas os seus propoacutesitos natildeo satildeo os nossos Os filoacutesofos natildeo devem pensar em seu conglomerado artificial como se fosse uma descoberta de algo preacute-existente ndash uma descoberta que por lsquointuitivarsquo ou lsquoconceitualrsquo ou lsquocategoacutericarsquo estabelece paracircmetros permanentes para a ciecircncia e a filosofiardquo

5 Changeux (1985 p 74) assegura que natildeo haacute diferenccedila significativa entre ldquoas peccedilas e parafusosrdquo que compotildeem por exemplo os ceacuterebros dos ratos e dos homens ldquoTanto ao niacutevel da anatomia macroscoacutepica do coacutertex como da sua arquitectura microscoacutepica natildeo ocorre qualquer brutal reorganizaccedilatildeo lsquoqualitativarsquo que leve do ceacuterebro lsquoanimalrsquo ao ceacuterebro lsquohumanorsquo Deu-se pelo contraacuterio uma evoluccedilatildeo quantitativa e contiacutenua do nuacutemero total de neuroacutenios da diversidade das aacutereas do nuacutemero de possibilidades conexionais entre neuroacutenios e por conseguinte da complexidade das redes de neuroacutenios que constituem a maacutequina cerebralrdquo

76 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

constatamos que o seu corpo ndash cabeccedila pernas braccedilos etc ndash tem um modo

de existecircncia fiacutesico poreacutem se analisarmos o ceacuterebro dela veremos que

aleacutem de possuir propriedades fiacutesicas ndash muitas delas semelhantes agraves que

satildeo encontradas na cabeccedila nas pernas e nos braccedilos ndash tal oacutergatildeo tambeacutem

possui propriedades mentais

Dessa maneira poderiacuteamos afirmar que esse enrugado oacutergatildeo

formado por bilhotildees de ceacutelulas e que pesa um quilo e meio possui

propriedades que se distinguem e natildeo se reduzem a nenhuma dessas

propriedades fiacutesicas Em geral contrapotildeem-se os aspectos subjetivo

qualitativo e privado das propriedades mentais agrave precisatildeo intersubjetiva

com que mensuramos os objetos e propriedades fiacutesicos o acesso direto agrave

dor estaacute restrito ao sujeito que a experiencia mas que ele pese oitenta

quilos eacute um dado objetivo quantitativo e publicamente acessiacutevel a

qualquer um que disponha de uma balanccedila Como explica Pereira (2013)

os filoacutesofos da mente se valem dos termos quale (singular) e qualia6

(plural) para se referir ao caraacuteter subjetivo e qualitativo dos fenocircmenos

mentais que experienciamos quando saboreamos o azedume do

tamarindo vemos a beleza de um flamboyant ouvimos uma bela canccedilatildeo

tocamos na pessoa querida ou cheiramos um bebecirc Abrantes (2005 p

226) nos alerta entretanto que os uacutenicos estados mentais

consensualmente considerados qualia satildeo as sensaccedilotildees Nesse sentido

muitos filoacutesofos negam ndash diferentemente de Searle ndash que haja qualquer

tipo de aspecto qualitativo envolvido na realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo

matemaacutetica como a adiccedilatildeo por exemplo

Para o dualista de propriedade as propriedades mentais satildeo especiais

em dois sentidos em primeiro lugar por conta de sua singularidade

bioloacutegica apesar de os objetos serem constituiacutedos basicamente pelos

6 Por salvaguardar que a consciecircncia eacute qualitativa Searle (2010b p 34) julga como absurda a tentativa daqueles que pretendem apartar o que para ele eacute inseparaacutevel ldquoNatildeo haacute dois problemas separados ndash o problema da consciecircncia e entatildeo um problema subsidiaacuterio o dos qualia O problema da consciecircncia eacute idecircntico ao dos qualia porque os estados conscientes satildeo acima de tudo estados qualitativosrdquo Em outras palavras Searle (2010c p 57-8) considera o termo qualia dispensaacutevel porque todos os fenocircmenos conscientes satildeo qualitativos ldquo[T]al como entendo esses termos qualia eacute somente uma designaccedilatildeo coletiva dos estados conscientes Na medida em que a lsquoconsciecircnciarsquo e os qualia satildeo coextensivos natildeo haacute razatildeo para introduzir um termo especiacuteficordquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 77

mesmos ldquoblocos de construccedilatildeordquo (aacutetomos) somente algumas estruturas

fiacutesicas possuem propriedades mentais a saber ceacuterebros complexos Em

segundo lugar a despeito de dependerem ontologicamente dos sistemas

fiacutesicos que as produzem as propriedades mentais satildeo irredutiacuteveis e

inexplicaacuteveis a partir dos conceitos provenientes das Ciecircncias Naturais

como a Fiacutesica a Quiacutemica e a Biologia

Para mostrar isso o filoacutesofo Frank Jackson (1986 2004) propocircs um

importante experimento de pensamento objetivando sustentar a

irredutibilidade dos qualia Imaginemos que Mary seja uma neurocientista

que sabe tudo acerca dos aspectos fiacutesicos e neurofisioloacutegicos das cores isto

eacute que ela domine o conhecimento sobre as leis oacutepticas das reflectacircncias

de luz bem como da anatomia e da fisiologia das ceacutelulas fotorreceptoras e

do coacutertex visual Natildeo obstante seu profundo conhecimento cientiacutefico ela

vive em um mundo preto e branco e portanto nunca experenciou

visualmente cores que natildeo estas duas Imaginemos ainda que um dia ela

saiu do seu laboratoacuterio alvinegro e percebeu pela primeira vez a cor

vermelha de uma maccedilatilde De acordo com essa linha de pensamento essa

experiecircncia visual traria um novo tipo de conhecimento a Mary a saber a

experiecircncia qualitativa de ver vermelho Ora argumenta Jackson se Mary

possuiacutea todo o conhecimento fiacutesico sobre as cores agrave sua disposiccedilatildeo e

mesmo assim aprende um novo fato cromaacutetico concluiacutemos que a sensaccedilatildeo

de ver vermelho (fato novo) aleacutem de natildeo ser fiacutesica eacute irredutiacutevel

ontologicamente a qualquer tipo de estado ou propriedade material Com

isso Jackson (2004 p 765) quer defender que as propriedades mentais

estatildeo acima e aleacutem da realidade fiacutesica e que se mantecircm intocadas pela

explicaccedilatildeo fiacutesico-bioloacutegica da visatildeo

A conclusatildeo [] eacute que os qualia satildeo deixados de fora da histoacuteria fisicalista E a

forccedila polecircmica do argumento do Conhecimento eacute que eacute tatildeo difiacutecil negar a sua

afirmaccedilatildeo central de que se pode ter toda a informaccedilatildeo fiacutesica sem ter todas as

informaccedilotildees que haacute para ter

78 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Searle (2000) natildeo admite essa diferenciaccedilatildeo e advoga que o mental eacute

fiacutesico por ser bioloacutegico ou seja os fenocircmenos mentais satildeo fenocircmenos

bioloacutegicos tais quais outros processos encontrados no mundo vivo como

a digestatildeo a fotossiacutentese e a mitose Portanto para sermos exitosos na

superaccedilatildeo do dualismo de propriedade devemos rejeitar a terminologia

que exclui a consciecircncia do mundo natural e a trata como se natildeo fosse

bioloacutegica Com o intuito de denunciar o quanto esse sistema de categorias

eacute problemaacutetico ele assevera que o dualista inevitavelmente estaraacute diante

de uma encruzilhada se pressupuser que as propriedades mentais estatildeo

acima e aleacutem das propriedades fiacutesicas Se levarmos em consideraccedilatildeo o

fechamento causal fiacutesico do Universo ndash todo evento fiacutesico possui como

causa suficiente outro evento fiacutesico ndash teriacuteamos como resultado que as

propriedades natildeo fiacutesicas satildeo causalmente ineficazes ou seja o mental

subsistiria como um domiacutenio epifenomecircnico

Nesse cenaacuterio as nossas sensaccedilotildees crenccedilas e desejos seriam

totalmente irrelevantes para o nosso comportamento assim como seria

ilusoacuteria a causaccedilatildeo mental O caminho alternativo eacute igualmente

problemaacutetico porque se comprometeria ndash na contramatildeo do que

pressupotildeem as melhores teorias cientiacuteficas ndash com a tese de que o Universo

natildeo eacute fisicamente fechado Essa conjuntura asseguraria a eficaacutecia causal

do mental em troca de acatarmos a sobreposiccedilatildeo causal de certos eventos

isto eacute comprometer-nos-iacuteamos com a sobredeterminaccedilatildeo causal por

afirmar que um evento fiacutesico F eacute duplamente produzido por um evento

fiacutesico F e por um evento mental M Segundo Searle7 (2014 p 107)

sabemos [] que quando eu levanto meu braccedilo haacute uma histoacuteria a ser contada

no niacutevel de disparos de neurocircnios neurotransmissores e contraccedilotildees

musculares que eacute suficiente para descrever [] o movimento do meu braccedilo

Entatildeo se supusermos que a consciecircncia tambeacutem funciona no movimento do

meu braccedilo entatildeo parece que temos duas histoacuterias causais distintas nenhuma

redutiacutevel agrave outra e para colocar muito brevemente a questatildeo meus

7 Em Lima Filho (2010b) analisamos em detalhes o problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico

Maxwell Morais de Lima Filho | 79

movimentos corporais tecircm muitas causas Noacutes temos [sobredeterminaccedilatildeo]

causal

O autor drsquoA Redescoberta da Mente eacute da opiniatildeo que apesar da

relutacircncia o dualista de propriedade acaba por cair na ldquovelhardquo dualidade

substancial como fica patente no uso de metaacuteforas que insinuam a

separaccedilatildeo entre os fenocircmenos conscientes a consciecircncia se origina do

ceacuterebro mas estaacute acima e aleacutem dos processos cerebrais por ser uma

propriedade emergente Esse modo de pensar nos conduz agrave imagem da

consciecircncia como uma cereja que por estar acima do bolo dele difere

Searle (2014 p 114) enxerga uma inconsistecircncia nessa posiccedilatildeo segundo a

qual a consciecircncia (cereja) eacute uma propriedade que estaacute acima e aleacutem do

ceacuterebro (bolo) afirmando que essa incongruecircncia acaba por minar o

monismo fiacutesico e passa a incidir em alguma versatildeo do dualismo de

substacircncia

A imagem verdadeira se vamos persistir na metaacutefora do bolo eacute que a

consciecircncia eacute o estado em que o bolo (ceacuterebro) estaacute Oficialmente o dualista

de propriedades diz que a consciecircncia eacute uma propriedade do ceacuterebro mas se

vocecirc considerar propriedades incontroversas do ceacuterebro como peso forma

cor solidez etc ningueacutem diz que elas ldquosurgem dordquo [hellip] ou estatildeo ldquoaleacutemrdquo [hellip]

do ceacuterebro e somente num sentido especial algumas delas podem ser descritas

como ldquoemergentesrdquo [hellip] e certamente natildeo como ldquoemergentes dordquo [hellip] ceacuterebro

Uma corrente que se opocircs fortemente ao dualismo foi o behaviorismo

analiacutetico8 Muitos estudiosos consideram como marco da Filosofia da

Mente Contemporacircnea o livro de Gilbert Ryle (1970 p 11) Concept of

Mind publicado originalmente em 1949 que principia resumindo a

posiccedilatildeo a ser combatida o ldquomito de Descartesrdquo ou o ldquodogma do fantasma

na maacutequinardquo

8 Natildeo devemos confundi-lo com a corrente psicoloacutegica associada aos nomes de John Watson Ivan Pavlov e Burrhus Frederic Skinner Como esclarece Blackburn (1997 p 39) em vez de levar em consideraccedilatildeo a introspecccedilatildeo e a subjetividade o behaviorismo psicoloacutegico inicialmente se orientou pela perspectiva metodoloacutegica de mensuraccedilatildeo das causas comportamentais Posteriormente sobretudo com Skinner passou a vigorar o empreendimento de se gerir a accedilatildeo humana por meio de estiacutemulos e reforccedilos

80 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A doutrina oficial que vem principalmente de Descartes eacute qualquer coisa

como isto com as exceccedilotildees duvidosas dos idiotas e das crianccedilas de colo todo

ser humano tem um corpo e um espiacuterito Alguns prefeririam dizer que todo

ser humano eacute simultaneamente corpo e espiacuterito O seu corpo e o seu espiacuterito

estatildeo geralmente reunidos mas depois da morte do corpo o espiacuterito pode

continuar a existir e a funcionar

O intento de Ryle eacute imunizar todos contra o ldquopatoloacutegicordquo legado

cartesiano valendo-se de anaacutelises conceituais com o duplo objetivo de

criticar as operaccedilotildees realizadas pelos defensores da ldquodoutrina oficialrdquo e de

situar o conceito mental no tipo loacutegico adequado Com o intuito de ilustrar

sua argumentaccedilatildeo contra o dualismo ele daacute o seguinte exemplo de erro

categorial Se apoacutes termos apresentado a Reitoria as Unidades

Acadecircmicas as Faculdades o Restaurante Universitaacuterio e os Museus que

compotildeem a nossa instituiccedilatildeo o que responderiacuteamos ao estrangeiro que

persistisse perguntando pela localizaccedilatildeo da Universidade haja vista que

ele afirma ter visto somente os departamentos administrativos as salas de

aula e os aparelhos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica Ora diz Ryle (1970 p 16)

devemos mostrar que o nosso colega se equivoca ao natildeo observar que a

Universidade eacute constituiacuteda pela coordenaccedilatildeo conjunta dos oacutergatildeos

burocraacuteticos espaccedilos didaacuteticos laboratoacuterios etc que ele observou em sua

visita ao campus

O seu erro [do estrangeiro] assenta na suposiccedilatildeo inocente de que era correto

falar da Christ Church da Bodleian Library do Ashmolean Museum e da

Universidade como se a ldquoUniversidaderdquo significasse um membro extra da

classe da qual estas outras unidades satildeo membros Ele estava a situar

erroneamente a Universidade na mesma categoria a que as outras instituiccedilotildees

pertencem

Consoante o behaviorista algo semelhante ocorre quando nos

emocionamos ao ler um poema sentimos dor de dente desejamos um

chocolate ou cremos na Biacuteblia tendo em conta que natildeo estariacuteamos nos

referindo a eventos mentais interiores mas tatildeo somente ao nosso

comportamento seja ele real ou potencial Eacute justamente por esse motivo

Maxwell Morais de Lima Filho | 81

que ele pretende preservar a equivalecircncia semacircntica quando traduz a

crenccedila de Tomeacute no Cristianismo nas seguintes descriccedilotildees

comportamentais

(i) Se lhe oferecerem de presente a Biacuteblia ou o Coratildeo ele optaraacute pelo primeiro

(ii) Se lhe perguntarem em qual livro Deus se revela ele responderaacute que eacute na Biacuteblia

(iii) Se lhe questionarem sobre a autoria dos Dez Mandamentos ele afirmaraacute que

foram escritos por Deus

(iv) Se houver oportunidade ele pregaraacute a mensagem biacuteblica

Uma criacutetica inicial a essa proposta teoacuterica se reflete no repuacutedio de

sermos reduzidos agrave pura e simples mecacircnica comportamental

desconsiderando-se para tal fim a totalidade dos fenocircmenos subjetivos e

qualitativos que constituem a rica vida mental que todos noacutes inclusive os

behavioristas experimentamos Em outras palavras haacute uma distinccedilatildeo de

tipo9 entre a crenccedila cristatilde e a observaccedilatildeo comportamental de Tomeacute Para

ser consistente essa anaacutelise deveria levar em consideraccedilatildeo a

indeterminaccedilatildeo e o nuacutemero potencialmente infinito de vias relacionadas agrave

crenccedila religiosa de Tomeacute e natildeo apenas os quatro condicionais listados

anteriormente

Esse tipo de exame tambeacutem padece de circularidade porque o

behaviorista deve lanccedilar matildeo de hipoacuteteses adicionais natildeo explicitadas para

sustentar que a crenccedila no Cristianismo se traduz comportamentalmente

na inclinaccedilatildeo de ser presenteado por uma Biacuteblia Caso Tomeacute possua dez

traduccedilotildees comentadas da Biacuteblia em diferentes liacutenguas seria provaacutevel que

ele preferisse ganhar o Coratildeo de presente ndash na verdade a lista de regalos

passiacuteveis de corroborar a crenccedila de Tomeacute eacute deveras extensa sendo muito

difiacutecil determinaacute-la precisamente A disposiccedilatildeo comportamental de

preferir a Biacuteblia tambeacutem assume sub-repticiamente que Tomeacute sabe e gosta

de ler o que obviamente natildeo eacute necessaacuterio Por fim querer ganhar uma

9 Searle (2010h p 337) realccedila essa dessemelhanccedila entre os fenocircmenos mentais conscientes e a anaacutelise comportamental a partir desse exemplo da dor gaacutestrica ldquoO fato de sentir essa dor eacute completamente diferente ndash aliaacutes um tipo de fato completamente diferente ndash de quaisquer fatos inclusive condicionais que digam respeito a meu comportamento Ter uma dor de estocircmago eacute uma coisa adotar este ou aquele tipo de comportamento adequado a uma dor de estocircmago eacute algo totalmente diferenterdquo

82 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Biacuteblia soacute faz sentido se Tomeacute acreditar que ela natildeo viraacute com paacuteginas em

branco que ela estaacute redigida em liacutengua compreensiacutevel que sua mensagem

natildeo foi corrompida por editores inescrupulosos etc

A tentativa de se explicar a crenccedila de Tomeacute no Cristianismo

(analysandum) atraveacutes de sua conduta de pregaccedilatildeo evangeacutelica (analysans)

eacute malograda porque o comportamento que pretende esclarecer o estado

psicoloacutegico eacute ele proacuteprio intencional10 Ou seja os movimentos corporais

de pegar a Biacuteblia e sair de porta em porta anunciando que Jesus eacute a nossa

salvaccedilatildeo e a soluccedilatildeo para todos os nossos problemas soacute podem ser

denominados accedilotildees se forem causados por intenccedilotildees que satildeo tatildeo mentais

quanto o que se pretende elucidar a crenccedila de Tomeacute Eacute guiado por linha

de raciociacutenio semelhante que Searle (2010h p 339) afirma que o

behaviorista estaria diante de um dilema pois ou ele considera que o

comportamento eacute intencional ou natildeo por um lado permaneceria o

elemento mental se se admitir que o comportamento eacute intencionalmente

causado por outro caso natildeo se defenda isso

temos de interpretar o comportamento como uma seacuterie de movimentos

corporais descritos tatildeo somente como movimentos corporais e nenhuma

anaacutelise dos enunciados sobre crenccedilas desejos e intenccedilotildees em funccedilatildeo de

enunciados sobre movimentos corporais jamais seraacute suficiente porque os

movimentos ainda natildeo satildeo accedilotildees humanas e a noccedilatildeo de um movimento

corporal em si mesmo eacute insuficiente para qualquer anaacutelise dos estados

mentais

Desse modo o filoacutesofo estadunidense reitera que soacute podemos

acreditar em algo ou desejarmos alguma coisa se tivermos uma Rede

(Network) com diversas crenccedilas e desejos Poreacutem como o conteuacutedo

intencional natildeo eacute autointerpretativo Searle (2010g p 249-50) postula que

a Rede necessita de um Pano de Fundo (Background)11 constituiacutedo por

habilidades preacute-intencionais

10 Consoante Leclerc (2015) Roderick Chisholm defendeu na deacutecada de 50 que eacute impossiacutevel transpormos o ciacuterculo das noccedilotildees intencionais haja vista que a intencionalidade eacute indefiniacutevel a partir de termos natildeo intencionais

11 Vimos que a intransponibilidade do ciacuterculo intencional eacute sustentada por Chisholm porque os termos natildeo intencionais satildeo inuacuteteis para definir a intencionalidade Apesar de reconhecer a importacircncia da Rede Searle (1995

Maxwell Morais de Lima Filho | 83

Todos os fenocircmenos intencionais quer sejam crenccedilas desejos esperanccedilas

medos ou outros pressupotildeem capacidades natildeo intencionais de background

para que possam funcionar Com isso quero dizer que os estados intencionais

somente determinam suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo e portanto somente

funcionam como estados intencionais se for pressuposto um conjunto de

capacidades que nos permitem aplicar os estados intencionais A

intencionalidade natildeo eacute por assim dizer autointerpretante ou autoaplicativa

[hellip] [O] ponto importante dessas habilidades de background eacute que elas

mesmas natildeo satildeo representacionais Natildeo consistem num conjunto de regras

crenccedilas ou outros tipos de representaccedilotildees

Nos anos 50 e 60 do seacuteculo XX pouco apoacutes a proposta behaviorista

de Ryle filoacutesofos como Herbert Feigl Ullin Thomas Place John Jamieson

Carswell Smart e David Malet Armstrong defenderam uma teoria da

identidade mente-ceacuterebro segundo a qual os estados mentais nada mais

satildeo do que estados fiacutesicos que ocorrem no sistema nervoso Portanto

estamos diante de um monismo fiacutesico que identifica ontologicamente o

domiacutenio psicoloacutegico ao neurobioloacutegico como ocorre na identificaccedilatildeo entre

a dor e a descarga de fibras C Em artigo publicado originalmente em 1956

Place (2002) defende a hipoacutetese cientiacutefica de que a consciecircncia eacute um

processo cerebral sem se comprometer com a suposiccedilatildeo adicional de que

a linguagem neurobioloacutegica sirva para descrever os sonhos as fantasias e

as sensaccedilotildees Eacute justamente porque a assunccedilatildeo da identidade mente-

ceacuterebro eacute anaacuteloga agravequela das Ciecircncias Naturais ndash que se reflete por sua

vez na ausecircncia de equivalecircncia semacircntica entre as descriccedilotildees dos

fenocircmenos fiacutesicos e mentais ndash que natildeo seria irracional se Royce afirmasse

p 198) recua um passo ao advogar que o Pano de Fundo preacute-intencional eacute a condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer estado intencional ldquoO Background eacute lsquopreacute-intencionalrsquo no sentido de que embora natildeo seja uma forma ou formas de Intencionalidade eacute natildeo obstante uma precondiccedilatildeo ou um conjunto de precondiccedilotildees de Intencionalidaderdquo Portanto se a definiccedilatildeo de intencionalidade empregada por Searle eacute circular natildeo deixa de ser verdade que ela se explica a partir do Pano de Fundo Ressaltamos que os obstaacuteculos impostos por determinadas praacuteticas humanas situadas podem ser transpostos devido ao compartilhamento de um Background profundo Eis dois exemplos do proacuteprio Searle (2006 p 277) ldquoDiferenccedilas de Backgrounds locais tornam difiacutecil a traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra a generalidade do Background profundo torna-a possiacutevel de qualquer modo Se vocecirc lecirc a descriccedilatildeo de um jantar festivo na casa dos Guermantes em Proust provavelmente deve achar alguns aspectos da descriccedilatildeo enigmaacuteticos Isso tem a ver com diferenccedilas de praacuteticas culturais locais Mas existem certas coisas que vocecirc pode dar por certas Por exemplo os participantes natildeo comem enfiando a comida em seus ouvidosrdquo

84 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que sente dor e que as suas fibras C natildeo disparam haja vista que o

enunciado ldquoRoyce estaacute com dorrdquo natildeo eacute sinocircnimo de ldquoas fibras C de Royce

estatildeo disparandordquo do mesmo modo que natildeo seria um absurdo declarar

que a aacutegua deste copo natildeo eacute composta por H2O

Como Searle defende que os fenocircmenos mentais satildeo causados e

realizados no sistema nervoso ele natildeo veria problema algum em localizaacute-

los espaacutecio-temporalmente nos processos cerebrais subjacentes desde que

levemos em conta que uns e outros satildeo ontologicamente distintos ou seja

que aqueles fenocircmenos possuem caracteriacutesticas intriacutensecas que os tornam

irredutiacuteveis a padrotildees sinaacutepticos estes sim descritiacuteveis a partir do

vocabulaacuterio neurocientiacutefico de terceira pessoa Dito isso vemos o porquecirc

de Searle (2010e p 129-30) criticar a identificaccedilatildeo ontoloacutegica do

fisicalismo redutivo

Assim quando o teoacuterico da identidade nos diz que os estados mentais satildeo

somente estados cerebrais haacute um modo de compreender essa tese que eacute

perfeitamente compatiacutevel com nossa pressuposiccedilatildeo de senso comum sobre o

caraacuteter intriacutenseco e irredutiacutevel da consciecircncia e de outras formas de

intencionalidade [hellip] Mas em geral natildeo eacute isso o que os teoacutericos da identidade

querem dizer Um exame cuidadoso dos textos [hellip] revela que em geral os

teoacutericos da identidade [hellip] acabam por negar a existecircncia das caracteriacutesticas

intrinsecamente mentais do mundo

Outra objeccedilatildeo eacute feita agrave contundente asserccedilatildeo de que os estados

mentais compartilhados por duas pessoas implicam que eles satildeo

necessariamente determinados por processos neurofisioloacutegicos de tipo

idecircntico Assim sendo os mesmos estados fiacutesicos devem ocorrer nos

ceacuterebros de Jacoacute e de Luiz para que eles compartilhem a crenccedila de que

Januaacuterio eacute o maior dos sanfoneiros Ora jaacute que somos cercados por

estruturas bioloacutegicas e por artefatos que satildeo multiplamente realizaacuteveis do

ponto de vista fiacutesico por que o mesmo natildeo ocorreria com os estados

mentais Em outras palavras se olhos asas reloacutegios e cadeiras satildeo

compostos e organizados fisicamente de mais de um modo por que algo

semelhante natildeo se daria com a mentalidade Destarte nada impede que a

Maxwell Morais de Lima Filho | 85

mesma crenccedila na grandiosidade musical de Januaacuterio seja realizada por

padrotildees neurocircnicos de tipo X no velho Jacoacute e de tipo Y em seu filho Searle

(2010h p 344) se vale de outros exemplos para corroborar a tese da

realizaccedilatildeo muacuteltipla do mental e para explicitar o que faz com que dois

estados psicoloacutegicos sejam do mesmo tipo

Assim vocecirc e eu podemos ter cada qual a mesma crenccedila de que estaacute nevando

sem que nossas neurofisiologias sejam necessariamente de tipo idecircntico assim

como meu carro e o seu podem ter cada qual um carburador embora o meu

seja de accedilo e o seu de latatildeo Mas entatildeo o que os estados mentais tecircm em

comum capaz de tornaacute-los de tipo idecircntico Creio que a resposta oacutebvia eacute que

eles satildeo de tipo idecircntico por causa de suas caracteriacutesticas mentais comuns

sejam elas caracteriacutesticas de consciecircncia da intencionalidade ou de ambas ou

ainda outras espeacutecies de caracteriacutesticas mentais

Aliaacutes foi motivado por esse tipo de criacutetica ao fisicalismo redutivo que

surgiu nos anos 60 a teoria funcionalista que talvez ainda hoje seja a

concepccedilatildeo de maior prestiacutegio acadecircmico De acordo com uma de suas

vertentes os fenocircmenos mentais podem ser produzidos artificialmente

pelos chips de siliacutecio de computador o que demonstraria a inexistecircncia de

um viacutenculo necessaacuterio entre ceacuterebros complexos e estados mentais Como

natildeo seriam essencialmente bioloacutegicos o aspecto relevante residiria no

papel funcional envolvido nas relaccedilotildees entre os proacuteprios estados mentais

bem como destes com as informaccedilotildees provenientes do ambiente e que

direcionam o comportamento Essa centralidade do papel funcional estaacute

por traacutes do pressuposto metodoloacutegico do teste de Turing (1950) de que se

uma maacutequina manifesta um comportamento linguiacutestico tatildeo complexo

quanto o do ser humano eacute porque nos eacute similar em inteligecircncia e

mentalidade

Com o fito de atacar esse pressuposto behaviorista do funcionalismo

e para asseverar que toda e qualquer maacutequina de Turing eacute incapaz de

compreender os siacutembolos que manipula Searle12 (1980a) propocircs o

12 Apresentamos o ataque de Searle ao funcionalismo computacional em Lima Filho (2010a)

86 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

experimento de pensamento do quarto chinecircs Em linhas gerais podemos

expor o famoso Gedankenexperiment do seguinte modo confinado em um

quarto Searle passa a receber folhas escritas em chinecircs liacutengua da qual ele

natildeo conhece um soacute ideograma e que eacute incapaz de falar quaisquer palavras

tambeacutem o fornecem um manual com regras escritas em inglecircs que lhe

permite relacionar pelo formato os siacutembolos recebidos com outras folhas

redigidas em chinecircs que ele passa por debaixo da porta Esse processo

ocorre repetidamente ndash recebimento do texto em chinecircs consulta ao

manual e devoluccedilatildeo do siacutembolo correspondente ndash e sem que o filoacutesofo se

aperceba disso o falante de chinecircs julga que estaacute entabulando uma

conversaccedilatildeo porque dele recebeu respostas satisfatoacuterias sobre o seu nome

a sua origem e a sua profissatildeo O ponto nevraacutelgico da argumentaccedilatildeo eacute que

a manipulaccedilatildeo simboacutelica natildeo eacute suficiente para a compreensatildeo semacircntica e

que o maacuteximo alcanccedilaacutevel por um programa de computador eacute a simulaccedilatildeo13

ndash mas natildeo a duplicaccedilatildeo ndash de estados mentais Eis como Searle (1998a p

38-9) posteriormente resume o seu argumento

1 Programas satildeo totalmente sintaacuteticos

2 As mentes tecircm uma capacidade semacircntica

3 A sintaxe natildeo eacute a mesma coisa que a semacircntica nem eacute por si soacute suficiente

para garantir um conteuacutedo semacircntico

Consequentemente programas natildeo satildeo mentes

Para golpear o cognitivismo ndash linha para a qual os processos

cognitivos satildeo inconscientes e computacionais ndash Searle propotildee um

argumento assentado na tese de que a computaccedilatildeo eacute relativa ao

observador e eacute exclusivamente sintaacutetica Consoante Moural (2003)

podemos resumi-lo nessas quatro asserccedilotildees

13 Analogamente Searle (2007 p 66) afirma que um programa computacional simulador da digestatildeo eacute incapaz de decompor fiacutesico-quimicamente um pedaccedilo de pizza ldquo[U]m computador realiza um modelo ou uma simulaccedilatildeo de um processo E a simulaccedilatildeo computacional de uma mente eacute como a simulaccedilatildeo computacional da digestatildeo Eu natildeo sei por qual motivo as pessoas cometem um erro tatildeo bobo Veja se fizermos uma simulaccedilatildeo computacional perfeita da digestatildeo ningueacutem poderia pensar lsquovamos comprar uma pizza e pocirc-la no computadorrsquo Eacute um modelo uma fotografia da digestatildeo Nos mostra que a estrutura formal de funcionamento de fato natildeo digere nada Isso eacute o que ocorre com um computador Um modelo computacional do que eacute apaixonar-se ler um romance ou embriagar-se natildeo se apaixona nem lecirc um romance nem se embriaga de fato Somente faz uma representaccedilatildeo dessas coisasrdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 87

(i) Por definiccedilatildeo computaccedilatildeo consiste em uma manipulaccedilatildeo formal de siacutembolos

(ii) No entanto como nem a sintaxe nem os siacutembolos satildeo definidos em termos fiacutesicos

natildeo podemos consideraacute-los intriacutensecos agrave Fiacutesica

(iii) Como o significado da sintaxe e dos siacutembolos soacute podem ser atribuiacutedos perante

um observador segue-se que o mesmo deva se dar com a computaccedilatildeo

(iv) Consequentemente a possibilidade de realizarmos uma interpretaccedilatildeo

computacional do ceacuterebro natildeo nos autoriza a conjecturar que esse oacutergatildeo seja

intrinsecamente um computador

A distinccedilatildeo capital que permeia esse argumento eacute aquela entre as

caracteriacutesticas que independem e as que dependem do observador14 como

o satildeo respectivamente a massa da moleacutecula de aacutegua e a funccedilatildeo

cronomeacutetrica do reloacutegio Com isso Searle (2002b) faz uma discriminaccedilatildeo

entre estados mentais humanos e aqueles atribuiacutedos ao computador o

estado de consciecircncia de Searle eacute intrinsecamente intencional porque

existe independentemente do que pensemos a seu respeito diversamente

dos estados mentais que outorgamos agrave maacutequina e que possuem uma

intencionalidade relativa ao observador15 Portanto o medo expresso por

14 Para Searle (1998a p 42) as Ciecircncias da Natureza se distinguem das Ciecircncias Sociais pelo estudo dessas caracteriacutesticas ldquoAs ciecircncias naturais lidam com essas propriedades da natureza que satildeo intriacutensecas ou independentes do observador no sentido de sua existecircncia natildeo depender do que pensamos sobre ela Exemplos dessas propriedades satildeo a massa a fotossiacutentese a carga eleacutetrica e a mitose As ciecircncias sociais em geral lidam com propriedades que satildeo dependentes do observador ou relativas ao observador no sentido de que sua existecircncia depende de como os seres humanos tratam usam ou ao menos pensam a respeito delas Exemplos tiacutepicos satildeo o dinheiro a propriedade e o casamentordquo

15 Estamos diante de uma intencionalidade intriacutenseca quando adicionamos mentalmente dois e dois e obtemos quatro jaacute quando expressamos esse caacutelculo pela linguagem falada ou escrita referimo-nos agrave intencionalidade derivada por fim temos tambeacutem a intencionalidade ldquocomo serdquo quando falamos que o gramado ou o carro estatildeo

sedentos Como adverte Searle (2010f p 189-90) a sede do gramado ou do automoacutevel natildeo eacute intencional mas tatildeo somente metafoacuterica ldquoa intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo eacute intencionalidade de modo nenhum Quando afirmo que um sistema tem uma intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo lhe atribuo intencionalidade Estou afirmando apenas que o sistema se comporta como se tivesse intencionalidade embora natildeo a tenha de fatordquo Como a intencionalidade intriacutenseca precede a linguagem poderiacuteamos encontraacute-la em bebecircs humanos e em outras espeacutecies animais Eacute nesse sentido que as carecircncias de aacutegua e de alimento causariam os primordiais desejos de beber e de comer como assinala Searle (2000 p 91-2) ldquoAs formas biologicamente mais primitivas de intencionalidade satildeo as formas de desejo que envolvem necessidades fiacutesicas como a fome e a sede Ambas satildeo intencionais porque ambas satildeo formas de desejo A fome eacute um desejo de comer a sede um desejo de beberrdquo Searle (2012 p 24) vai aleacutem e advoga que esses estados mentais preacute-linguiacutesticos satildeo indissociaacuteveis de suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo ldquoEssas formas preacute-linguiacutesticas de intencionalidade jaacute possuem algumas propriedades loacutegicas cruciais Porque percepccedilotildees intenccedilotildees crenccedilas desejos e assim por diante satildeo formas de intencionalidade elas trazem em si especificamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees de sucesso ou fracasso Por exemplo um animal faminto tem o desejo de comer e patologias agrave parte assim ele tem a capacidade de reconhecer quando esse desejo eacute satisfeito e quando natildeo o eacuterdquo No entanto essa alegada intrinsecalidade dos estados mentais eacute posta em duacutevida por Gauker (2012 p 154) ldquoO fato de que os bebecircs os animais natildeo humanos e os hominiacutedeos preacute-linguiacutesticos possuam estados intencionais se isso fosse um fato natildeo mostraria

88 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Hal 9000 quando David Bowman estava desativando seus processos

superiores natildeo passa de uma fobia metafoacuterica Para Searle (1980a) natildeo haacute

qualquer arbitrariedade no criteacuterio que se funda na intencionalidade

intriacutenseca para diferenciar a mentalidade da decisatildeo de Bowman do pavor

figurado de Hal 9000 se assim o fosse estaria subjugado a nosso bel-

prazer encarar os nossos semelhantes como zumbis e a estiagem como

mental

Os argumentos levantados por Searle de que a sintaxe eacute insuficiente

para a semacircntica e de que ela natildeo eacute intriacutenseca agrave Fiacutesica natildeo raras vezes tem

conduzido agrave interpretaccedilatildeo de que ele seja repulsivo ao projeto de um

ceacuterebro e de uma mente artificiais No entanto essa chave de leitura eacute

injusta porque ambos os argumentos do filoacutesofo estadunidense satildeo

voltados para o programa do computador ndash e natildeo para o hardware

Justamente por se apoiar nas Ciecircncias da Natureza Searle natildeo nega que

uma funccedilatildeo possa ser multiplamente realizada como eacute o caso do voo

executaacutevel bioloacutegica ndash insetos aves e morcegos ndash ou tecnologicamente ndash

balotildees aviotildees helicoacutepteros e foguetes Por mais distintas que sejam as asas

da mosca e as do 14-bis elas compartilham poderes causais que permitem

ao animal e ao aviatildeo sobrepujarem a forccedila da gravidade Ora se a

consciecircncia eacute uma caracteriacutestica sistecircmica do ceacuterebro e desejamos

produzi-la artificialmente basta que dupliquemos os poderes causais

desse oacutergatildeo Nas palavras de Searle (2000 p 56)

Quando digo que o ceacuterebro eacute um oacutergatildeo bioloacutegico e a consciecircncia um processo

bioloacutegico eacute claro que natildeo estou dizendo ou sugerindo que seria impossiacutevel

produzir um ceacuterebro artificial a partir de materiais natildeo bioloacutegicos que tambeacutem

pudessem ser causa da consciecircncia e sustentaacute-la [] O ponto que deve ser

enfatizado eacute que tal ceacuterebro artificial teria de reproduzir as verdadeiras causas

dos ceacuterebros humanos e animais para produzir estados de consciecircncia

internos qualitativos e subjetivos A produccedilatildeo de comportamentos similares

por si soacute natildeo seria suficiente

que a intencionalidade dos estados mentais eacute lsquointriacutensecarsquo em qualquer sentido mas mostraria que a capacidade para pensar com as propriedades semacircnticas natildeo depende da posse de uma linguagem ao contraacuterio de minha hipoacuteteserdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 89

Dessa maneira o autor drsquoA Redescoberta da Mente aceita uma versatildeo

bem mais branda da tese de realizaccedilatildeo muacuteltipla em comparaccedilatildeo com a que

eacute acatada pelos funcionalistas pois nem todo material seria capaz de

efetuar a funccedilatildeo em questatildeo Como Searle (1984) diz abertamente o

ceacuterebro eacute uma maacutequina viva e portanto a sua constituiccedilatildeo bioloacutegica eacute

relevante para a produccedilatildeo e para a realizaccedilatildeo da mente ou seja eacute de nosso

conhecimento que os padrotildees sinaacutepticos satildeo efetivos para a emergecircncia de

estados intencionalmente intriacutensecos Contudo diferentemente do que se

daacute com o voo a nossa atual ignoracircncia sobre os detalhes bioquiacutemicos e

fisioloacutegicos nos impede por enquanto de duplicar os estados mentais em

estruturas natildeo bioloacutegicas

Para fechar o nosso itineraacuterio pela Filosofia da Mente apresentamos

a seguir o fisicalismo eliminativista corrente defendida por Paul

Feyerabend Richard Rorty Patricia e Paul Churchland Diferentemente da

abordagem fisicalista de Feigl Place Smart e Armstrong o eliminativista

rejeita a identificaccedilatildeo entre os fenocircmenos neurofisioloacutegicos e os mentais

haja vista que estes uacuteltimos natildeo passam de ilusatildeo Para defender a tese do

irrealismo do mental e a sua necessaacuteria eliminaccedilatildeo teoacuterica o fisicalista

eliminativo lanccedila matildeo da seguinte analogia histoacuterica no tempo das

Inquisiccedilotildees sustentava-se a necessidade de caccedilar e de queimar na fogueira

a mulher que pactuava com Satanaacutes mas atualmente nenhuma pessoa

sensata admitiria a existecircncia de bruxas Essa mudanccedila de perspectiva se

daacute porque o progresso epistecircmico revelou a falsidade do conceito de bruxa

e o eliminou do arcabouccedilo terminoloacutegico da Ciecircncia como aconteceraacute ndash

alega Paul Churchland (2004 p 79) ndash com os termos da Psicologia

Popular

[N]atildeo podemos esperar que uma explicaccedilatildeo realmente adequada de nossa vida

interior feita pela neurociecircncia revele categorias teoacutericas que correspondam

exatamente agraves categorias do arcabouccedilo de senso comum [posiccedilatildeo anti-

reducionista] Dessa forma devemos esperar que o antigo arcabouccedilo seja

simplesmente eliminado e natildeo reduzido por uma neurociecircncia amadurecida

90 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Consoante Teixeira (2008) a Psicologia Popular eacute a teoria que nos

permite explicar o comportamento humano evocando conceitos como

crenccedila desejo e intenccedilatildeo Desse modo o avanccedilo neurocientiacutefico natildeo

acarretaraacute a reduccedilatildeo da Psicologia Popular pois natildeo haacute uma

correspondecircncia um-a-um entre essas duas aacutereas o que demonstraria a

necessidade de suprimir os termos psicoloacutegicos que representam de modo

distorcido os estados neurofisioloacutegicos e as causas do comportamento Por

conseguinte uma Neurociecircncia16 avanccedilada e precisa propiciaraacute

eliminaccedilotildees teoacutericas como a de algueacutem que mencione a ativaccedilatildeo de suas

fibras C em tal regiatildeo do ceacuterebro no lugar de falar que estaacute com dor como

expotildee Churchland (2004 p 82)

Nossas explicaccedilotildees sobre os comportamentos uns dos outros iratildeo recorrer a

coisas como nossos estados neurofarmacoloacutegicos nossa atividade neural em

aacutereas anatocircmicas especiacuteficas e a outros estados que forem relevantes para a

nova teoria Nossa introspecccedilatildeo individual tambeacutem seraacute transformada e

poderaacute ser profundamente aprimorada em razatildeo de um arcabouccedilo conceitual

mais penetrante e preciso com o qual ela teraacute de trabalhar []

Searle (2006) trata com sarcasmo os eliminativistas ao perguntar se

deveria beliscaacute-los para provar que satildeo conscientes e que sentem dor

advogando que o fato de os estados mentais dependerem ontologicamente

dos processos neurobioloacutegicos natildeo os tornam aparentes ou ilusoacuterios Em

outras palavras por mais que conheccedilamos todos os pormenores

bioquiacutemicos e fisioloacutegicos dos processos cerebrais isso natildeo baniraacute ndash nem

ontoloacutegica nem explicativamente ndash o niacutevel dos fenocircmenos psicoloacutegicos

Estes fenocircmenos inexistiriam se houvesse uma distinccedilatildeo entre a aparecircncia

e a realidade17 mas esse natildeo eacute o caso como pontua Searle (2000 p 59)

16 Rorty (1997 p 158) pinta o hipoteacutetico progresso neurocientiacutefico com essas tintas ldquoNoacutes esperamos que a fisiologia possa algum dia traccedilar um caminho a partir da distribuiccedilatildeo de descargas eleacutetricas em meu ceacuterebro ateacute as interfaces [neuromusculares] em minha garganta e por conseguinte nos viabilizar predizer elocuccedilotildees por sobre a base dos estados cerebraisrdquo

17 Em outro texto Searle (1998c p 224) faz a seguinte comparaccedilatildeo ldquoReduccedilotildees eliminatoacuterias exigem uma distinccedilatildeo entre a realidade e a aparecircncia Por exemplo o Sol parece se pocircr mas na realidade eacute a Terra que realiza o movimento de rotaccedilatildeo Mas vocecirc natildeo pode fazer este movimento para a consciecircncia porque no que diz respeito agrave consciecircncia a realidade eacute a aparecircncia Se conscientemente tenho a impressatildeo de ser consciente entatildeo sou conscienterdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 91

Natildeo podemos fazer uma reduccedilatildeo eliminatoacuteria da consciecircncia porque o padratildeo

das reduccedilotildees eliminatoacuterias eacute mostrar que o fenocircmeno reduzido eacute apenas uma

ilusatildeo No entanto no que diz respeito agrave consciecircncia a existecircncia da ldquoilusatildeordquo eacute

a proacutepria realidade Isso quer dizer que se me parece que estou consciente

entatildeo eu estou Natildeo haacute nada na consciecircncia aleacutem de uma sequumlecircncia de

ldquoaparecircnciasrdquo desse tipo A esse respeito a consciecircncia eacute diferente dos poentes

porque eu posso ter a ilusatildeo de que o sol estaacute se pondo por traacutes das montanhas

quando na verdade ele natildeo estaacute fazendo isso

Dessa maneira os processos neurofisioloacutegicos satildeo capazes de explicar

minuciosamente a causa da dor mas isso natildeo significa deixaacute-la de lado

como um conceito preacute-cientiacutefico muito pelo contraacuterio haja vista que a

sensaccedilatildeo dolorosa possui uma ontologia de primeira pessoa no sentido de

ser experienciada por um sujeito e de possuir um modo de existecircncia

qualitativo que a diferencia dos disparos neurocircnicos que a causam Essa

caracteriacutestica real e ineliminaacutevel da mentalidade eacute expressa por Searle

(1998b p 57-8) ao declarar que

a pura sensaccedilatildeo qualitativa de dor eacute uma propriedade do ceacuterebro bem

diferente das descargas neuronais que causam a dor Logo em se tratando de

descargas neuronais vocecirc pode obter uma reduccedilatildeo causal de dor mas natildeo

uma reduccedilatildeo ontoloacutegica Isto eacute vocecirc pode fornecer uma anaacutelise causal

completa da razatildeo de sentirmos dores mas isso natildeo mostra que as dores natildeo

existam realmente

Fazendo um apanhado geral do que apresentamos constatamos que

o filoacutesofo estadunidense critica severamente todas as principais correntes

recusando igualmente o dualismo a reduccedilatildeo ontoloacutegica e a eliminaccedilatildeo da

Psicologia Popular Para ele a criacutetica ao dualismo acabou jogando o bebecirc

junto com a aacutegua suja do banho pois os fenocircmenos mentais conscientes

foram descartados juntamente com a alma imaterial Eacute como se o pavor

pelo conceito de alma justificasse a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer

92 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

subjetividade18 do seio da natureza O polo oposto tambeacutem eacute desalentador

pois a defesa da mentalidade se faz agraves custas de uma consciecircncia natildeo fiacutesica

Searle (2006 p 23-4) pinta com essas tintas o quadro sinoacuteptico da

Filosofia da Mente

Relutamos em reconhecer qualquer dos fatos consensuais que soam

ldquocartesianosrdquo porque parece que se aceitarmos os fatos teremos de aceitar

toda a metafiacutesica cartesiana Qualquer espeacutecie de mentalismo que reconheccedila

os fatos oacutebvios de nossa existecircncia eacute considerada automaticamente suspeita

[hellip] De um modo talvez mais exasperante ainda eles satildeo auxiliados nesse erro

por aqueles filoacutesofos que de bom grado reconhecem a existecircncia da consciecircncia

e assim fazendo supotildeem estar afirmando a existecircncia de algo natildeo fiacutesico

Ao recusar ambas as posiccedilotildees Searle (2006 p 26-7) pretende articular

uma concepccedilatildeo que natildeo apenas leve em consideraccedilatildeo a subjetividade do

mental mas que a fundamente nas Ciecircncias Naturais deixando de lado

quaisquer ldquoaparatos cartesianosrdquo haja vista que o mental eacute fiacutesico

[O] fato de uma caracteriacutestica ser mental natildeo implica que natildeo seja fiacutesica o fato

de uma caracteriacutestica ser fiacutesica natildeo implica que natildeo seja mental Revisitando

Descartes [] poderiacuteamos dizer natildeo somente ldquopenso logo existordquo e ldquosou um ser

pensanterdquo mas tambeacutem sou um ser pensante portanto sou um ser fiacutesicordquo

[]

Minhas proacuteprias concepccedilotildees natildeo se encaixam em nenhum dos roacutetulos

tradicionais mas para muitos filoacutesofos a ideia de que algueacutem possa defender

um ponto de vista que natildeo se encaixe nessas categorias parece incompreensiacutevel

Pior ainda talvez haacute diversos substantivos e verbos que parecem ter significados

claros como se realmente apresentassem objetos e atividades bem definidos ndash

ldquomenterdquo ldquoegordquo e ldquointrospecccedilatildeordquo satildeo exemplos oacutebvios

A concepccedilatildeo positiva de Searle (1980b p 455) ndash por ele denominada

de naturalismo bioloacutegico ndash surgiu pela primeira vez quando rebateu as

criacuteticas feitas a Mentes Ceacuterebros e Programas no artigo Intencionalidade

Intriacutenseca ocasiatildeo na qual comparou os estados mentais agraves propriedades

18 Para mais informaccedilotildees sobre o importante papel da subjetividade no naturalismo bioloacutegico consultar Lima Filho (2017c)

Maxwell Morais de Lima Filho | 93

de um pneu Na ocasiatildeo seu principal alvo era atacar o funcionalismo

computacional ao apontar as limitaccedilotildees intriacutensecas ao programa de

computador ao mesmo tempo em que destacava a relevacircncia do estofo

bioloacutegico para a mentalidade No entanto tambeacutem vislumbramos nesse

texto o seu repuacutedio ao irrealismo do mental propugnado pelos fisicalistas

redutivos e eliminativos e ao caraacuteter natildeo fiacutesico resguardado pelos dualistas

de substacircncia e de propriedade Natildeo consiste nenhuma surpresa que a

estrateacutegia ofensiva de Searle tenha gerado contra-ataques dos mais

variados vieses dualistas e fisicalistas os quais o impulsionaram em parte

a desenvolver cada vez mais a sua posiccedilatildeo ancorada em dois grandes

compromissos teoacutericos a saber a subjetividade e a biologicidade do

mental Os fenocircmenos mentais ndash ontologicamente subjetivos ndash satildeo

bioloacutegicos tanto na acepccedilatildeo evolutiva quanto na funcional De acordo com

esta uacuteltima os processos neurofisioloacutegicos causam e sustentam a

mentalidade a qual surgiu historicamente devido aos processos evolutivos

que atuaram sobre linhagens animais no decorrer das eras geoloacutegicas19

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Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010d p 93-119

_____ A intencionalidade e seu lugar na natureza In _____ Consciecircncia e linguagem

Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010e p 121-42

_____ A explicaccedilatildeo da cogniccedilatildeo In _____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio

Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010f p 171-210

_____ A intencionalidade individual e os fenocircmenos sociais na teoria dos atos de fala In

_____ Consciecircncia e linguagem Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo

Martins Fontes 2010g p 231-53

_____ A filosofia analiacutetica e os fenocircmenos mentais In _____ Consciecircncia e linguagem

Traduccedilatildeo de Pliacutenio Junqueira Smith Satildeo Paulo Martins Fontes 2010h p 335-73

_____ O que eacute a linguagem algumas observaccedilotildees preliminares In TSOHATZIDIS Savas

(Org) A filosofia da linguagem de John Searle forccedila significaccedilatildeo e mente Traduccedilatildeo

de Luiz Henrique de Arauacutejo Dutra Satildeo Paulo Editora UNESP 2012 p 17-51

_____ Por que eu natildeo sou um dualista de propriedades Traduccedilatildeo de Joseacute Renato Freitas

Recircgo amp Juliana de Orione Arraes Fagundes Filosofando Revista de Filosofia da

UESB Vitoacuteria da Conquista n 2 juldez p 104-14 2014

TEIXEIRA Joatildeo de Fernandes A mente segundo Dennett Satildeo Paulo Perspectiva 2008

TURING Alan Computing machinery and intelligence Mind v 59 n 236 p 433-60 1950

5

Da Natureza Humana

As Perspectivas Epistemoloacutegicas

de Piaget Chomsky e Foucault

Argus Romero Abreu de Morais 1

Consideraccedilotildees Iniciais

Em 1971 convidados pelo apresentador holandecircs Fons Elders para

um debate televisivo Noam Chomsky e Michel Foucault aceitaram

esclarecer suas perspectivas a respeito dos conceitos de natureza humana

justiccedila e poder (CHOMSKY 2014) Poucos anos apoacutes em 1975 Jean Piaget

e Noam Chomsky se reuniram com renomados pesquisadores do mundo

na Abadia de Royaumont na Franccedila para discutirem as questotildees

vinculadas agrave aquisiccedilatildeo e agrave aprendizagem da linguagem humana

(PIATELLI-PALMARINI 1983)

A nosso ver aproximar tais debates torna-se interessante por

permitir elucidar os pressupostos epistemoloacutegicos de autores acadecircmicos

tatildeo relevantes do seacuteculo XX e com isso demarcar as linhas de tensatildeo entre

seus campos e as escolhas teoacutericas das suas pesquisas Nesse sentido no

presente trabalho Chomsky funciona como uma espeacutecie de elo virtual

entre Foucault e Piaget os quais natildeo produziram um debate particular

Natildeo obstante entendemos que os apontamentos feitos por estes dois

1 Professor colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Cultura Educaccedilatildeo e Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGCELUESB) e poacutes-doutorando no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Teoria Literaacuteria e Criacutetica da Cultura da Universidade Federal de Satildeo Joatildeo del-Rei (PROMELUFSJ) Email argusromeroyahoocombr

Argus Romero Abreu de Morais | 99

uacuteltimos teoacutericos durante a defesa de seus pilares conceituais permitem

contrastaacute-los sendo marcante a distinccedilatildeo entre ambos no que diz respeito

agrave gecircnese do conhecimento humano nos indiviacuteduos por consequecircncia agrave

Histoacuteria das Ciecircncias

Assim pretendemos colocar face a face os vieses da autorregulaccedilatildeo em

Piaget do inatismo da linguagem em Chomsky e de um certo empirismo

histoacuterico em Foucault Evidentemente cada um desses pensadores natildeo soacute

possui uma enorme produccedilatildeo teoacuterica sobre distintos temas acadecircmicos

como tambeacutem apresentou mudanccedilas de perspectiva nas deacutecadas seguintes

Apesar disso entendemos que os fundamentos epistecircmicos das suas aacutereas de

pesquisa natildeo se alteraram significativamente ao longo do tempo garantindo

certa coerecircncia aos seus projetos de estudo

Natildeo eacute nosso intuito portanto em um breve texto dar conta da

amplitude das contribuiccedilotildees desses pensadores seja pela nossa incapacidade

de cumprir com tal propoacutesito seja pelos limites impostos pelo nosso recorte

investigativo o qual prioriza avaliar os argumentos dos trecircs estudiosos em

torno da existecircncia ou natildeo de uma natureza humana Cumpre-nos destacar

que nos vinculamos agrave epistemologia da Anaacutelise do Discurso Francesa (AD) a

qual pressupotildee a determinaccedilatildeo histoacuterica das formaccedilotildees sociais humanas

inclusive a do proacuteprio pensamento Foucault eacute considerado um dos

principais expoentes desse campo de estudos sendo por conseguinte a

partir do seu olhar discursivo que concluiremos o presente escrito tecendo

comentaacuterios criacuteticos aos demais domiacutenios Antes disso apresentaremos a

perspectiva piagetiana em seguida a abordagem chomskyana

A Funccedilatildeo Sensoacuterio-Motora como Fundamento da Formaccedilatildeo da Linguagem2

Eacute verdade que a auto-regulaccedilatildeo eacute em parte inata mas a tiacutetulo mais de

funcionamento do que de estrutura

Jean Piaget

2 Almejando tornar o texto mais fluido colocaremos as citaccedilotildees diretas ndash ipsis litteris ndash que fundamentam os nossos raciociacutenios em notas de rodapeacute Ressaltamos todavia que utilizaremos um nuacutemero expressivo de notas permitindo o acesso do leitor aos argumentos dos proacuteprios debatedoresautores Esperamos com isso possibilitar o esclarecimento e aprofundamento teoacutericos que o tema exige

100 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Segundo Piaget os estudos que definem a aprendizagem humana

pela associaccedilatildeo entre percepccedilotildees dos indiviacuteduos e objetos se mostraram

ineficientes na tentativa de explicar a formaccedilatildeo do conhecimento humano

(criacutetica ao meacutetodo empirista) Para o epistemoacutelogo esse modelo teoacuterico

tem por principal falha natildeo considerar a atividade do sujeito na construccedilatildeo

do proacuteprio conhecimento engendrado por dois processos

interdependentes o processo de assimilaccedilatildeo no qual os indiviacuteduos

assimilariam novos objetos a esquemas previamente conformados nas

suas estruturas cognitivas e no sentido inverso o processo de

acomodaccedilatildeo no qual os antigos esquemas se acomodam de acordo com as

particularidades dos novos objetos produzindo com isso novos esquemas

(PIATELLI-PALMARINI 1983)3

Busca-se assim definir os constructos cognitivos como frutos de

uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o ser e o mundo desconstruindo a

necessidade de um a priori universal inato ndash criacutetica ao Gerativismo ndash em

prol de um pensamento dinacircmicosistecircmico Desse modo a um soacute tempo

Piaget renega o empreendimento empirista segundo o qual o sujeito se

ajusta ao mundo pelas experiecircncias (o sujeito seria uma taacutebula rasa) e

descarta a empreitada gerativista chomskyana na qual a forma do sujeito

eacute preacutevia agrave experiecircncia e agrave forma do mundo (PIATELLI-PALMARINI 1983)4

Consoante Piaget apenas o funcionamento da inteligecircncia humana eacute

hereditaacuterio sendo essa definida como o mecanismo capaz de gerar

3 Ao criticar o Empirismo Behaviorista campo teoacuterico tambeacutem renegado por Chomsky Piaget destaca ldquoNenhum conhecimento se deve somente agraves percepccedilotildees pois estas satildeo sempre dirigidas e enquadradas por esquemas de accedilotildees O conhecimento procede pois da accedilatildeo e toda a accedilatildeo que se repete ou se generaliza por aplicaccedilatildeo a novos objetos gera por isso mesmo um lsquoesquemarsquo ou seja uma espeacutecie de conceito praacutexico A ligaccedilatildeo fundamental constitutiva de todo o conhecimento natildeo eacute portanto uma simples associaccedilatildeo entre objetos mas a assimilaccedilatildeo dos objetos a esquemas desse indiviacuteduo Esse processo prolonga aliaacutes diversas formas de lsquoassimilaccedilotildeesrsquo bioloacutegicas das quais a assimilaccedilatildeo cognitiva eacute um caso particular enquanto processo funcional de integraccedilatildeo Em contrapartida quando os objetos satildeo assimilados aos esquemas de accedilatildeo haacute a obrigaccedilatildeo de uma acomodaccedilatildeo agraves particularidades desses objetos (cf os lsquoaccommodatsrsquo fenotiacutepicos em biologia) e essa acomodaccedilatildeo resulta de dados exteriores logo da experiecircnciardquo (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor)

4No dizer de Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor) ldquoCinquenta anos de experiecircncias ensinaram-nos que natildeo existem conhecimentos resultantes de um simples registro de observaccedilotildees Mas tampouco existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas soacute o funcionamento da inteligecircncia eacute hereditaacuterio e soacute gera estruturas mediante uma organizaccedilatildeo de accedilotildees sucessivas exercidas sobre objetosrdquo

Argus Romero Abreu de Morais | 101

continuamente estruturas conceituais atraveacutes de operaccedilotildees sobre os

objetos A seu ver assim como a Psicanaacutelise de Jung o projeto gerativista

se equivoca ao confundir as estruturas gerais do espiacuterito com a existecircncia

de estruturas inatas base da suposiccedilatildeo da linguagem como faculdade

hereditaacuteria alocada no ceacuterebro humano Segundo aponta eacute possiacutevel a

existecircncia das primeiras sem que haja as segundas

Definida como construtivista a Epistemologia Geneacutetica piagetiana

expotildee aleacutem do argumento da confusatildeo entre universalidade e inatismo

dois motivos principais para negar a hipoacutetese nativista do Gerativismo

primeiro na forma como estaacute posta a Gramaacutetica Universal (GU) supotildee

que a linguagem humana seria resultado de mutaccedilotildees exclusivas agrave espeacutecie

humana sem que consiga contudo dar explicaccedilotildees plausiacuteveis sobre o(s)

porquecirc(s) desse privileacutegio segundo conseguir-se-ia chegar agraves mesmas

conclusotildees de existecircncia de estruturas universais caso se concebesse a

linguagem como produto de um processo de autorregulaccedilatildeo dispensando

com isso os problemas dos universais modulares de Chomsky (PIATELLI-

PALMARINI 1983)

A autorregulaccedilatildeo funciona portanto como o conceito-chave do

Construtivismo na medida em que eacute o mecanismo responsaacutevel tanto pela

construccedilatildeo humana do conhecimento quanto pela organizaccedilatildeo da

realidade natildeo caoacutetica do mundo Ambos tecircm em comum o fato de se

disporem em forma loacutegico-matemaacutetica Ademais diferentemente da

recursividade algoriacutetmica tal como proposta por Chomsky o pensamento

sistecircmico de Piaget sugere que o retorno agraves estruturas cognitivas de base

natildeo ocorre sobre as regras iniciais como se os componentes primeiros

fossem estaacuteveis na relaccedilatildeo entre o ser e o mundo5

5 Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 83) expressa do seguinte modo seu pensamento sistecircmico ldquoA auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio do organismo limita-se em geral e normalmente a conservar um certo estado de equiliacutebrio e em caso de desvio ou de nova formaccedilatildeo a reconduzi-lo ao estado inicial Enquanto que pelo contraacuterio a auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio dos comportamentos impele incessantemente o organismo o sujeito se se trata de comportamento cognitivo para novos avanccedilos O organismo fisioloacutegico natildeo tem razatildeo de espeacutecie alguma para variar [] A conservaccedilatildeo eacute a norma suprema para o equiliacutebrio fisioloacutegico Ao passo que pelo contraacuterio quando se aborda o terreno do comportamento este persegue dois objetivos o primeiro eacute a extensatildeo do meio superar o meio no qual o organismo estaacute atualmente mergulhado por exploraccedilotildees e pesquisas em novos meios e o segundo o reforccedilo dos poderes do organismo sobre o meiordquo

102 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Para Piaget haacute a superaccedilatildeo contiacutenua do modelo antecedente pelos

modelos subsequentes na mente da crianccedila que embora mais complexos

estavam presentes no anterior como possibilidade ndash latente ndash de

existecircncia e que quando concretizados superam o anterior englobando-

o a saber sensoacuterio-motor de 0 a 1824 meses periacuteodo que antecede a

proacutepria linguagem preacute-operatoacuterio de 162 anos a 78 anos periacuteodo

marcado pelo desenvolvimento das representaccedilotildeessiacutembolos o

operatoacuterio-concreto de 78 anos a 1112 anos periacuteodo da construccedilatildeo

loacutegica e por fim operatoacuterio-formal de 1112 anos em diante periacuteodo em

que a crianccedila eacute capaz de raciociacutenios hipoteacutetico-dedutivos (PIATELLI-

PALMARINI 1983)6

Logo todo sistema se torna subsistema de um novo sistema isto eacute uma

subestrutura da nova estrutura organizadora seguindo um movimento em

direccedilatildeo agrave maior complexidade No caso do pensamento humano quanto

mais proacuteximo da organizaccedilatildeo loacutegica do real melhor o sistema recriado pelas

suas estruturas intelectivas Nesse vieacutes supotildee-se que o ceacuterebro humano seja

capaz de reproduzir internamente a mesma complexidade que o mundo

produz de forma dessubjetivada externamente Isto eacute concluiacutedas as etapas

de amadurecimento cognitivo no indiviacuteduo este seria capaz de reproduzir

ainda que inconscientemente o mesmo niacutevel de complexidade das estruturas

do mundo na forma de conhecimento (matemaacutetico por excelecircncia)

(PIATELLI-PALMARINI 1983)7

Destarte conforme o epistemoacutelogo suiacuteccedilo tanto o pensamento

humano como as ideias cientiacuteficas parecem funcionar por meio da

6 No que diz respeitos agraves etapas de maturaccedilatildeo do conhecimento humano Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 40) especifica ldquoEm primeiro lugar um periacuteodo sensoacuterio-motor anterior agrave linguagem vecirc constituir-se uma loacutegica das accedilotildees (relaccedilotildees de ordem concatenaccedilatildeo de esquemas intersecccedilotildees estabelecimentos de correspondecircncia etc) fecunda em descobertas e mesmo invenccedilotildees (objetos permanentes organizaccedilatildeo do espaccedilo causalidade etc) Dos 2 aos 7 anos haacute uma conceptualizaccedilatildeo das accedilotildees logo representaccedilotildees com descoberta de funccedilotildees entre as co-variaccedilotildees de fenocircmenos identidades etc mas ainda sem operaccedilotildees reversiacuteveis nem conservaccedilotildees Estas duas uacuteltimas constituem-se ao niacutevel das operaccedilotildees concretas (7-10 anos) com lsquoagrupamentosrsquo logicamente estruturados mas ainda ligados agrave manipulaccedilatildeo de objetos Finalmente por volta dos 11-12 anos constitui-se uma loacutegica proposicional hipoteacutetico-dedutiva sem combinatoacuterio lsquoconjunto de partesrsquo grupos de quaternidade etcrdquo

7 A respeito da relaccedilatildeo entre conhecimento e realidade Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 81) assevera ldquoRecuso-me terminantemente por minha parte a pensar que as estruturas matemaacutetico-loacutegicas tivessem uma origem aleatoacuteria elas nada tecircm de fortuito natildeo eacute por seleccedilotildees de sobrevivecircncia que puderam constituir-se mas por uma adequaccedilatildeo propriamente dita e detalhada agrave realidaderdquo

Argus Romero Abreu de Morais | 103

acumulaccedilatildeo de saberes No primeiro caso atraveacutes da capacidade loacutegico-

matemaacutetica ndash capacidade racional ndash de interagir com o ambiente os

indiviacuteduos adquirem estruturas de comportamento ou morfoloacutegicas via

fenoacutetipo que ainda desprovidas de hereditariedade passam a modificar o

proacuteprio genoma humano de modo que a mudanccedila nos niacuteveis inferiores

incorre por consequecircncia nos niacuteveis superiores do meio epigeneacutetico Essa

aquisiccedilatildeo de ldquofenocoacutepiasrdquo seria de acordo com Piaget a responsaacutevel por

selecionar as variaccedilotildees ou mutaccedilotildees no proacuteprio genoma passando a serem

hereditaacuterias Isso explicaria no seu dizer o modo pelo qual a proacutepria

linguagem teria evoluiacutedo na espeacutecie humana8

No segundo caso pela forma como a realidade parece se organizar

por leis que em uacuteltima instacircncia seguem a loacutegica matemaacutetica Associada

agrave pureza das formas a praacutetica cientiacutefica seria a principal responsaacutevel por

intermediar a relaccedilatildeo entre o homem e o mundo criando instrumentais

teoacutericos que possam fazer com que aquele compreenda e transforme o seu

habitat Ademais como vimos o processo de desenvolvimento da

linguagem na crianccedila repetiria com alta semelhanccedila a evoluccedilatildeo das

proacuteprias descobertas cientiacuteficas (PIATELLI-PALMARINI 1983)9

Ao sugerir uma oacutetica sistecircmica para a construccedilatildeo do conhecimento

Piaget avanccedila agrave sua maneira na proposta de um sujeito processual

dinacircmico em detrimento da imutabilidade do sujeito cartesiano em

8 O conceito de fenocoacutepia eacute um dos principais vetores do debate Piaget-Chomsky Piaget (apud PIATELLI-

PALMARINI 1983 p 81-2) explica tal categoria da seguinte forma ldquoFenocoacutepia eacute um processo bioloacutegico em que certos comportamentos (eacute sobretudo vaacutelido no domiacutenio dos comportamentos) ou entatildeo uma certa forma ou estrutura morfoloacutegica satildeo primeiramente adquiridos pelo fenoacutetipo mas sem hereditariedade O fenoacutetipo pelo contraacuterio modifica o meio interior e modifica os niacuteveis superiores pelo meio epigeneacutetico e entatildeo as variaccedilotildees ou as mutaccedilotildees que podem produzir-se no genoma seratildeo selecionadas natildeo pelo meio exterior mas por esse meio interior ou epigeneacutetico que vai canalizaacute-las na mesma direccedilatildeo da conduta jaacute adquirida pelo fenoacutetipo por outras palavras haveria uma reconstruccedilatildeo geneacutetica ou gecircnica de uma aquisiccedilatildeo feita pelo fenoacutetipordquo

9 Sobre o tema Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 48) conclui ldquoPara periacuteodos mais vastos da histoacuteria eacute evidente que natildeo se encontra um paralelismo estaacutegio por estaacutegio mas eacute possiacutevel encontrar mecanismos comuns [] Ora deparamo-nos com um processo anaacutelogo [agrave histoacuteria da geometria ocidental] embora em escala reduzida nas crianccedilas as quais comeccedilam naturalmente pelo intrafigural mas descobrem por volta dos 7 anos que para determinar um ponto num plano natildeo basta uma medida sendo precisas duas que estejam dispostas de maneira ortogonal A essa etapa lsquointerfiguralrsquo (necessaacuteria tambeacutem para a construccedilatildeo de horizontais) sucede aquela que podemos denominar lsquotransfiguralrsquo em que as propriedades a descobrir natildeo podem ler-se numa uacutenica figura mas requerem uma deduccedilatildeo e um caacutelculo as curvas mecacircnicas os movimentos relativos etcrdquo

104 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Chomsky10 o qual antecede a experiecircncia Desse modo por um lado sua

perspectiva de geraccedilatildeo da funccedilatildeo simboacutelica da linguagem a partir dos

significantes sensoacuterio-motores ndash associaccedilatildeo de objetos a esquemas de accedilatildeo

ndash o opotildee ao modo pelo qual Chomsky entende o ldquonuacutecleo fixordquo da

linguagem por outro ao prescindir da opacidade do mundo em relaccedilatildeo agrave

linguagem bem como das rupturas e contradiccedilotildees advindas da histoacuteria

contrasta indiretamente sua teoria com a perspectiva do pensamento

sustentada por Foucault

O Algoritmo eacute o Sujeito

Se qualquer coisa fosse possiacutevel entatildeo nada seria possiacutevel

Noam Chomsky

Para Chomsky (1979) o ceacuterebro humano eacute arquitetado por diferentes

subsistemas inatos em interaccedilatildeo limitada os quais decorrem de distintos

processos evolutivos no Homo sapiens A linguagem seria uma dessas

faculdades isto eacute um subsistema da inteligecircncia humana que permite a

interface com o moacutedulo conceptual-intencional (semacircntico-pragmaacutetico) e

o perceptual-articulatoacuterio (sensoacuterio-motor) Sendo a forma da linguagem

restrita evolutivamente agraves formas representacionais possiacuteveis no ceacuterebro

humano pode-se adquirir apenas o que eacute biologicamente previsto11

Nesse vieacutes o empreendimento gerativista se baseia em pelo menos

trecircs hipoacuteteses importantes para as Ciecircncias Cognitivas em particular no

que toca agrave Linguiacutestica (I) a estrutura representacional do pensamento

humano eacute preacutevia a toda experiecircncia do corpo de modo que a linguagem

10 Sobre esse toacutepico Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 45) destaca ldquoMas o que os inatistas parecem esquecer de maneira surpreendente eacute que existe um mecanismo tatildeo geral quanto a hereditariedade e que num sentido ateacute a comanda eacute a auto-regulaccedilatildeo a qual desempenha um papel em todas as escalas desde o genoma e um papel tanto mais importante quanto mais se avizinha dos niacuteveis superiores e do comportamento A auto-regulaccedilatildeo cujas raiacutezes satildeo evidentemente orgacircnicas eacute assim comum aos processos vitais e mentais e suas accedilotildees tecircm aleacutem disso a grande vantagem de ser diretamente controlaacuteveis portanto eacute nessa direccedilatildeo e natildeo na da simples hereditariedade que conveacutem buscar a explicaccedilatildeo bioloacutegica das construccedilotildees cognitivas tanto mais que pelo jogo das regulaccedilotildees de regulaccedilotildees a auto-regulaccedilatildeo eacute por sua proacutepria natureza eminentemente construtivista (e dialeacutetica)rdquo

11 Para aprofundar essas questotildees sugerimos a leitura de Chomsky (2006 2008) e de Berwick e Chomsky (2017) Utilizaremos algumas passagens dessas obras no presente texto

Argus Romero Abreu de Morais | 105

deve ser explicada com relaccedilatildeo agrave heranccedila bioloacutegica da espeacutecie humana (II)

a linguagem humana eacute constituiacuteda por um conjunto de algoritmos ndash regras

de formaccedilatildeo ndash implementados no nosso ceacuterebro os quais fundariam o

ldquoestado inicial S0 geneticamente determinadordquo12 tambeacutem conhecido como

Gramaacutetica Universal (GU) a qual conteacutem os princiacutepios pelos quais pode-

se adquirir uma dada liacutengua natural ndash condicionada agrave experiecircncia humana

ndash ateacute chegar a um ldquoestado estacionaacuteriordquo (steady state) (III) a Linguiacutestica

deve se formalizar de modo a explicar como um indiviacuteduo eacute capaz de gerar

um nuacutemero infinito de frases em sua liacutengua vernaacutecula a partir de um

conjunto limitado de regras sintaacuteticas (infinitude discreta) em vista disso

a teoria chomskyana eacute chamada de Gramaacutetica Gerativa13

Se tanto Chomsky como Piaget parecem concordar com a existecircncia

de um ldquonuacutecleo fixordquo da linguagem o linguista norte-americano se afasta

do bioacutelogo suiacuteccedilo ao responder as duas principais criacuteticas piagetianas ao

seu modelo teoacuterico quais sejam (a) a inexplicabilidade das mutaccedilotildees na

espeacutecie humana responsaacuteveis por lhe dotar dessas estruturas inatas (b) a

consideraccedilatildeo da inteligecircncia sensoacuterio-motora na formaccedilatildeo da inteligecircncia

simboacutelica seria tatildeo eficiente quanto a hipoacutetese do inatismo na explicaccedilatildeo

da formaccedilatildeo desse ldquonuacutecleo fixordquo

12 Consoante Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoO desenvolvimento dessa pessoa (em um ambiente natural) efetua-se a partir do estado inicial S0 geneticamente determinado passa por uma sequecircncia de estados S1 S2 e atinge finalmente um lsquoestado estacionaacuteriorsquo (steady state) S8 o qual soacute parece entatildeo modificar-se de maneira secundaacuteria (digamos por acreacutescimo de vocabulaacuterio novo) O estado estacionaacuterio eacute alcanccedilado numa idade relativamente fixa aparentemente na puberdade ou um pouco antesrdquo

13 De acordo com Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoEle [investigador independente] abordaraacute ou deveria abordar o estudo das estruturas cognitivas como eacute o caso da linguagem humana de uma forma anaacuteloga agravequela como estudaria um oacutergatildeo do corpo ndash o olho ou o coraccedilatildeo por exemplo ndash a fim de determinar (I) as suas caracteriacutesticas num dado indiviacuteduo (II) suas propriedades gerais invariantes de uma espeacutecie agrave outra abstraccedilatildeo feita de todo o deacuteficit flagrante (III) seu lugar num sistema de estruturas desse tipo (IV) o curso do seu desenvolvimento no indiviacuteduo em questatildeo (V) o fundamento geneticamente determinado desse desenvolvimento (VI) os fatores que deram origem a esse oacutergatildeo no decorrer da evoluccedilatildeordquo No que concerne aos aspectos matemaacuteticos dos estudos da mente humana Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 2014 p 16) complementa ldquoEntendo por isso [teoria matemaacutetica da mente] simplesmente uma teoria abstrata articulada com precisatildeo e formulada com clareza que tenha consequecircncias empiacutericas que nos permita saber se a teoria estaacute certa ou errada ou se estaacute no caminho errado ou certo E que ao mesmo tempo tenha as propriedades da ciecircncia matemaacutetica isto eacute as propriedades do rigor e da precisatildeo e uma estrutura que nos permita deduzir conclusotildees a partir de hipoacuteteses e assim por dianterdquo Por fim Berwick e Chomsky (2017 p 108) esclarecem o que entendem por infinitude discreta ldquoDiscreta porque haacute frases de cinco palavras e frases de seis palavras mas nenhuma frase de cinco palavras e meia infinita porque natildeo haacute [virtualmente] uma frase que seja a frase mais longa da liacutenguardquo

106 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A esse respeito Chomsky responde que apesar de haver brechas na

teoria evolutiva no que concerne ao entendimento da seleccedilatildeo natural em

relaccedilatildeo ao corpo humano natildeo haacute outra compreensatildeo possiacutevel para

considerar a constituiccedilatildeo dos seus oacutergatildeos Nesse sentido considera-se que

a estrutura interna dos distintos oacutergatildeos do organismo bem como seu

desenvolvimento e funcionamento satildeo independentes das experiecircncias

ontogeneacuteticas do ser Isso o impede de concordar com a hipoacutetese das

fenocoacutepias a qual sugere que estruturas adquiridas poderiam ser

absorvidas pelo genoma

Como universalizar no desenvolvimento dos indiviacuteduos algo

adquirido Essa eacute uma questatildeo que de acordo com Chomsky natildeo pode

ser resolvida pelo mecanismo construtivo da autorregulaccedilatildeo o qual natildeo

limitaria o nuacutemero de estados possiacuteveis na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro A

soluccedilatildeo seria considerar que a mente se reduz causalmente ao ceacuterebro

Ademais a derivaccedilatildeo do sistema simboacutelico do estaacutegio sensoacuterio-motor na

crianccedila e a sua estabilizaccedilatildeo via processo de autorregulaccedilatildeo seriam

insuficientes para explicar o caraacuteter especiacutefico desse moacutedulo da

linguagem suas regras limites e relaccedilotildees com os demais aparatos da

inteligecircncia humana14

Chomsky (1977) relembra o curioso fato de tanto ele quanto Foucault

terem conseguido aproximar as suas opiniotildees acerca do tema da ldquonatureza

14 No dizer de Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 51) ldquoSe eacute verdade que ignoramos completamente como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias dotaram a espeacutecie humana da capacidade especiacutefica de aprender uma linguagem humana eacute igualmente verdadeiro que tambeacutem ignoramos como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias conduziram ao desenvolvimento das estruturas particulares do olho dos mamiacuteferos ou do coacutertex cerebral Natildeo concluiacutemos portanto

que essas estruturas em sua natureza fundamental no indiviacuteduo que chegou agrave maturidade satildeo determinadas por interaccedilatildeo com o meio ambiente []rdquo Berwick e Chomsky (2017 p 104 Itaacutelico dos autores) detecircm-se exclusivamente sobre o fato de a linguagem humana ser exclusiva agrave nossa espeacutecie e de sua breve existecircncia ser possiacutevel dentro de uma teoria evolucionista que considere aleacutem dos processos seletivos e adaptativos claacutessicos as mutaccedilotildees e os efeitos estocaacutesticos da Biologia Moderna ldquoDe maneira completamente desconhecida nossos antepassados desenvolveram conceitos humanos Em algum momento no passado muito recente ao que parece algum tempo antes de 80 mil anos atraacutes se pudermos julgar a partir de nossos representantes simboacutelicos indiviacuteduos em um pequeno grupo de hominiacutedeos na Aacutefrica Oriental sofreram uma pequena mudanccedila bioloacutegica que favoreceu o surgimento da operaccedilatildeo Merge ndash uma operaccedilatildeo que toma conceitos humanos como aacutetomos computacionais [leacutexico] e produz expressotildees estruturadas que sistematicamente interpretadas pelo sistema conceitual fornecem uma rica linguagem do pensamento [] A inovaccedilatildeo teve vantagens oacutebvias e se disseminou pelo pequeno grupo Em algum estaacutegio posterior a linguagem do pensamento interna estava ligada ao sistema sensoacuterio-motor []rdquo De acordo com essa abordagem a linguagem emerge como ldquoferramentardquo para o pensamento (foco na internalizaccedilatildeo) e natildeo para a comunicaccedilatildeo (foco na externalizaccedilatildeo) garantindo agravequeles que a possuem as vantagens da abstraccedilatildeo inferecircncia interpretaccedilatildeo organizaccedilatildeo da accedilatildeo e do planejamento em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que natildeo a possuem

Argus Romero Abreu de Morais | 107

humanardquo enquanto que o mesmo natildeo ocorreu com relaccedilatildeo agravequele

relacionado ao ldquoaspecto poliacutetico do saberrdquo A seu ver isso pode ser

explicado pela seguinte metaacutefora ldquoQuanto ao conceito de natureza

humana pareceu-me que cavaacutevamos a mesma montanha a partir de

direccedilotildees opostasrdquo (CHOMSKY 1977 p 78-9)

Embora seja difiacutecil supor um consenso entre o pesquisador norte-

americano defensor do inatismo da linguagem e o filoacutesofo francecircs um

dos principais nomes da empreitada filosoacutefica do ldquodescentramento do

sujeitordquo o primeiro supotildee que no fim das contas isso eacute possiacutevel pelo fato

de eles se deterem sobre as mesmas questotildees embora partindo de pontos

diferentes Para Chomsky (1977) a pesquisa cientiacutefica eacute devedora de dois

aspectos 1) as propriedades constituintes do espiacuterito e 2) as condiccedilotildees

sociais e intelectuais que possibilitam a emergecircncia e a consolidaccedilatildeo dos

saberes em um dado periacuteodo histoacuterico Natildeo se trataria de excluir um ou

outro pois ambos estatildeo relacionados Ele se deteria sobre o primeiro

abordando os processos de aquisiccedilatildeo e de desenvolvimento da linguagem

nos indiviacuteduos enquanto Foucault priorizaria a anaacutelise das condiccedilotildees

histoacutericas que possibilitam a conformaccedilatildeo social do conhecimento em

meio agraves relaccedilotildees de saber-poder (CHOMSKY 1977)15

15 Apesar de essa argumentaccedilatildeo parecer dirimir as distinccedilotildees epistemoloacutegicas dos autores via complementaridade o vieacutes chomskyano prioriza sempre os argumentos relacionados agraves estruturas cerebrais humanas em detrimento do vieacutes sociocultural foucaultiano inclusive quando tratam dos paracircmetros de cientificidade na produccedilatildeo do conhecimento humano como nos deixa entrever o seguinte raciociacutenio ldquoOra quando por felicidade acontece de algum aspecto da realidade conter a propriedade de uma das estruturas existentes em nossa mente entatildeo temos um

exemplo do conhecimento Isso quer dizer que afortunadamente a estrutura da nossa mente e a estrutura de algum aspecto da realidade coincidem o bastante para que possamos desenvolver um conhecimento inteligiacutevel Eacute exatamente essa limitaccedilatildeo inicial que existe em nossa mente quanto a certo tipo de conhecimento possiacutevel que proporciona a enorme riqueza e criatividade do conhecimento cientiacuteficordquo (CHOMSKY 2014 p 34) A ldquocoincidecircncia suficienterdquo entre as propriedades da mente e as propriedades do mundo parece curiosamente aproximar Chomsky de Piaget ou pelo menos do que o linguista norte-americano denomina de ldquodoutrinas do referencialismordquo abrindo a nosso ver uma possiacutevel contradiccedilatildeo teoacuterica com as seguintes passagens ldquoOs siacutembolos da linguagem humana e do pensamento satildeo muito diferentes [em relaccedilatildeo ao dos chimpanzeacutes] Seu uso natildeo estaacute automaticamente condicionado por estados emocionais e eles natildeo dependem de objetos independentes da mente ou eventos no mundo externo Para a linguagem e o pensamento ao que parece natildeo haacute uma relaccedilatildeo de referecircncia no sentido de Frege Peirce Tarski Quine e da filosofia contemporacircnea da linguagem e da menterdquo (BERWICK CHOMSKY 2017 p 102 Itaacutelico dos autores) Pouco depois Berwick e Chomsky (2017 p 103 Itaacutelicos dos autores) redefinem a referecircncia como um ldquoideal normativordquo para a ciecircncia ldquoPara a ciecircncia o conceito de referecircncia no sentido teacutecnico eacute um ideal normativo esperamos que os conceitos inventados de foacuteton ou de sintagma verbal se refiram a alguma coisa real dono mundo E eacute claro que o conceito de referecircncia eacute muito bom para o contexto para o qual foi inventado na loacutegica moderna para os sistemas formais em que a relaccedilatildeo de referecircncia eacute estipuladardquo Resta-nos perguntar qual o paracircmetro para

108 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Se Chomsky recorre a Descartes para estabelecer parte dos

fundamentos filosoacuteficos do Gerativismo notadamente no que concerne

ao entendimento da relaccedilatildeo entre sujeito cognoscente e objeto

cognosciacutevel16 pauta-se no corte copeacuternico-galileano da fundaccedilatildeo da ciecircncia

moderna para definir o modelo hipoteacutetico-dedutivo na pesquisa

linguiacutestica17 Logo o problema do conhecimento no sujeito eacute tambeacutem o

problema do que pode ser conhecido no mundo almejando compreender

tanto como as estruturas cognitivas humanas permitem o desvendamento

das estruturas da realidade vivenciada como a melhor forma de organizar

as primeiras no intuito de desenvolver programas investigativos

sistemaacuteticos Esse problema epistemoloacutegico eacute transversal a Piaget

Chomsky e Foucault em suas empreitadas teoacutericas de modo que eacute nesse

ponto em que suas distintas teorias sobre a formaccedilatildeo do ser tocam no

entendimento da Histoacuteria das Ciecircncias englobando a constituiccedilatildeo dos

campos disciplinares a validade das proposiccedilotildees cientiacuteficas e a

transformaccedilatildeo dos seus pressupostos ao longo do tempo

distinguir quais conceitos coincidem com a realidade e quais natildeo Quais os limites do imaginaacuterio humano em relaccedilatildeo ao simboacutelico e ao real

16 Nesse ponto Chomsky (2008 p 28) por vezes se ancora em Descartes Kant e Leibniz aproximando suas contribuiccedilotildees filosoacuteficas daquelas de Franccedilois Jacob e Jacques Monod ndash tambeacutem presentes no debate Piaget-Chomsky ndash para o entendimento da neurofisiologia da linguagem ldquoAcho que Monod estaacute certo ao comentar que lsquoessas descobertas [sobre um sistema analiacutetico primitivo em animais natildeo-humanos] apoiam num sentido novo as teses de Descartes e Kant contrariamente ao empirismo radical que tem dominado a ciecircncia por dois seacuteculos e que lanccedila suspeitas sobre qualquer hipoacutetese que postule a natureza inata das formas de conhecimentorsquo Ateacute onde sabemos os animais aprendem de acordo com um programa determinado geneticamente Natildeo haacute razatildeo para duvidar que isto seja verdade tambeacutem no que se refere lsquoagraves categorias fundamentais do conhecimento humanorsquo []rdquo Sobre o papel da experiecircncia na aprendizagem lembra ldquoQue a experiecircncia seja um requisito para colocar em funcionamento estruturas inatas ou para ativar um sistema de ideias inatas eacute algo admitido de modo bastante expliacutecito por Descartes

Leibniz e outros como parte de teorias que dificilmente podem ser consideradas lsquoempiristasrsquo []rdquo (CHOMSKY 2008 p 32-3) Em outra passagem afirma ldquoA ideia eacute lsquoinato agrave mentersquo no sentido em que Descartes argumentou que lsquoa ideia de um triacircngulo verdadeirorsquo eacute inatardquo (CHOMSKY 2008 p 48)

17 Sobre a importacircncia do corte copeacuternico-galileano para o estabelecimento do meacutetodo cientiacutefico moderno e consequentemente para a formaccedilatildeo de teorias cientiacuteficas Chomsky (2006 p 121) ressalta ldquoO que foi notaacutevel com respeito a Galileu e considerado muito ofensivo na eacutepoca foi que ele rejeitou muitos dados Ele estava disposto a dizer lsquoVejam se os dados refutam a teoria os dados provavelmente estatildeo erradosrsquo E os dados que descartou natildeo eram insignificantes Por exemplo ele defendia a tese de Copeacuternico mas natildeo era capaz de explicar porque os corpos natildeo se desprendiam da Terra se a Terra estaacute girando por que tudo natildeo estaacute solto no espaccedilordquo Em seguida complementa ldquoBem tudo isso eacute parte do que vocecirc poderia chamar de lsquoestilo galileanorsquo dedicaccedilatildeo agrave busca do entendimento natildeo apenas do registro O registro dos fenocircmenos em si eacute insignificante [] [] O reconhecimento de que esse eacute o caminho que a ciecircncia deve seguir se quisermos buscar o entendimento [] eacute um passo bastante grande e que tem muitas partes como a estrateacutegia galileana de descartar fenocircmenos recalcitrantes quando isso implicar um aumento de compreensatildeo a maior preocupaccedilatildeo poacutes-newtoniana com a inteligibilidade das teorias do que com o mundo e assim por dianterdquo (CHOMSKY 2006 p 125-6)

Argus Romero Abreu de Morais | 109

Para Foucault (CHOMSKY 2014) o problema da perspectiva

argumentativa de Chomsky (1977) estaria em natildeo reconhecer o fato de que

os lados da montanha natildeo podem ser separados de forma estanque pondo

o indiviacuteduo-sujeito de um lado e a constituiccedilatildeo histoacuterica do saber de

outro Isso ocasionaria um vieacutes metafiacutesico na explicaccedilatildeo da subjetividade

humana a qual poderia transformar sem ser transformada De certo

modo de tatildeo racionalista o vieacutes chomskyano entraria no campo do

idealismo rompendo com o vieacutes materialista da anaacutelise teoacuterica Tomando

por base esse raciociacutenio perguntamo-nos os domiacutenios histoacutericos do saber

possibilitam a constituiccedilatildeo e a emergecircncia das propriedades constituintes

do espiacuterito em um dado indiviacuteduo Passaremos a essa questatildeo na seccedilatildeo

seguinte

Pensamento e Discurso

E se o intelecto fosse uma estrutura complexa muacuteltipla e natildeo individual natildeo

lsquosujeita ao sujeitorsquo que produzisse resultados autecircnticos

Michel Foucault

O projeto filosoacutefico foucaultiano se interessa pelo entendimento

daquilo que ele chama de saber discursivo de modo a estabelecer uma

perspectiva da Histoacuteria das Ciecircncias ou das Ideias que natildeo se atenha agrave

criatividade centrada no indiviacuteduo no sujeito falante e no cientista assim

como na continuidade cumulativa do conhecimento Destarte o que se

estabelece como verdadeiro em cada periacuteodo histoacuterico depende da

maneira como uma dada sociedade organiza a validade ndash inclusive a

cientificidade ndash de determinados dizeres e por consequecircncia exclui a de

outros criando mecanismos sociais de controle do que se pode ou deve

dizer sobre um dado objeto

Para Foucault a liacutengua como sistema de signos criado socialmente

conforme definida por Saussure (2006) natildeo se reduz ao discurso

possuindo uma ordem simboacutelica proacutepria com sua loacutegica e suas regras

Consoante o linguista suiacuteccedilo a liacutengua seria uma forma sendo equivocado

110 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

consideraacute-la como uma substacircncia visto que como fato social ela

funciona tambeacutem como instituiccedilatildeo estabelecendo normas classificaccedilotildees e

nomenclaturas Ela seria aleacutem disso o principal sistema organizador da

linguagem humana sendo o signo a junccedilatildeo de um conceito (significado) a

uma imagem acuacutestica (significante) ambos psiacutequicos e em relaccedilatildeo

negativa com o mundo em si O valor de um dado signo se daacute por oposiccedilatildeo

aos demais maneira pela qual estabelece suas relaccedilotildees no sistema

linguiacutestico

Segundo Foucault (2008) a liacutengua natildeo se materializa no vaacutecuo pois

para que possa produzir sentido eacute recortada pela funccedilatildeo discursiva um

modo histoacuterico de organizaacute-la em zonas do conhecimento atribuindo-lhe

conceitos isto eacute objetos Liacutengua e discurso se atravessam pela funccedilatildeo

enunciativa18 constituindo os limites da cogniccedilatildeo humana Tratar-se-ia

portanto natildeo do pensamento do sujeito mas do pensaacutevel no sujeito natildeo

do dizer do falante mas do diziacutevel pelo falante os quais necessitam de preacute-

formaccedilotildees do saber histoacuterico para que possam constituir os estados

mentais e as possibilidades de fala nos indiviacuteduos19 Natildeo haacute assim

anterioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem sob pena de o

18 Nesta seccedilatildeo em alguns momentos remeteremos aos raciociacutenios de Foucault (2008) como forma de aprofundar sua perspectiva e instrumentais teoacutericos os quais natildeo satildeo trabalhados precisamente em Chomsky (2014) Sobre a singularidade do enunciado em relaccedilatildeo agraves demais categorias de estudos da linguagem Foucault (2008 p 103 Itaacutelicos nossos) esclarece ldquoUm enunciado natildeo tem diante de si (e numa espeacutecie de conversa) um correlato - ou uma ausecircncia de correlato assim como uma proposiccedilatildeo tem um referente (ou natildeo) ou como um nome proacuteprio designa um indiviacuteduo (ou ningueacutem) Estaacute antes ligado a um lsquoreferencialrsquo que natildeo eacute constituiacutedo de lsquocoisasrsquo de lsquofatosrsquo de lsquorealidadesrsquo ou de lsquoseresrsquo mas de leis de possibilidade de regras de existecircncia para os objetos que aiacute se encontram nomeados designados ou descritos para as relaccedilotildees que aiacute se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar a condiccedilatildeo o campo de emergecircncia a instacircncia de diferenciaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou dos

objetos dos estados de coisas e das relaccedilotildees que satildeo postas em jogo pelo proacuteprio enunciado define as possibilidades de aparecimento e de delimitaccedilatildeo do que daacute agrave frase seu sentido agrave proposiccedilatildeo seu valor de verdaderdquo

19 Sobre o assunto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 23 Itaacutelicos nossos) destaca ldquoQuando estudamos a histoacuteria do conhecimento percebemos que existem duas linhas gerais de anaacutelise de acordo com uma delas deve-se demonstrar como sob que condiccedilotildees e por que razotildees o intelecto se modifica no que diz respeito a suas regras formadoras sem passar por um lsquoinventorrsquo que descobre a verdade e de acordo com a outra deve-se demonstrar como o funcionamento das regras de um intelecto pode produzir num indiviacuteduo conhecimento novo e ineacutedito Aqui meu objetivo junta-se com meacutetodos imperfeitos e de uma forma bem inferior ao projeto do sr Chomsky ao explicar o fato de que algumas poucas regras ou elementos precisos totalidades desconhecidas que nunca foram nem produzidas podem ser elucidadas pelos indiviacuteduos Para resolver este problema o sr Chomsky tem de reintroduzir o dilema do sujeito no campo da anaacutelise gramatical Para resolver um problema anaacutelogo no campo da histoacuteria com o qual me encontro envolvido eacute preciso fazer o oposto de certo modo introduzir o ponto de vista do intelecto de suas regras de seus sistemas de suas transformaccedilotildees de totalidades no jogo do conhecimento individual Tanto em um como no outro caso o problema da criatividade natildeo pode ser resolvido da mesma maneira ou melhor natildeo pode ser formulado nos mesmos termos dada a condiccedilatildeo das disciplinas em cujo interior ele eacute colocadordquo

Argus Romero Abreu de Morais | 111

primeiro funcionar como uma instacircncia imaterial pura sem

temporalidade nem espacialidade

Sendo a linguagem uma produccedilatildeo social anterior ndash externalizada ndash

aos indiviacuteduos (seres orgacircnicos) deve-se considerar que as formas

simboacutelicas satildeo as responsaacuteveis pela instituiccedilatildeo do sujeito (aquele que

concretiza o enunciado) natildeo sendo os primeiros a dizerem o que dizem

natildeo satildeo tambeacutem o locus da gecircnese semacircntica Engajar-se numa situaccedilatildeo

de produccedilatildeo de sentidos eacute necessariamente posicionar-se ndash ou ser

posicionado ndash de acordo com as regras enunciativas vivenciadas e

institucionalizadas em sociedade Os enunciados representam as regras

historicizadas da forma de pensar e natildeo o revelar da intencionalidade e

do conhecimento em si por vezes tidos como a priori universais em

relaccedilatildeo agravequelas20 Logo como emergecircncia das organizaccedilotildees histoacutericas do

pensamento em distintas praacuteticas sociais o sujeito irrompe fragmentado

visto que sua internalidade decorre das descontinuidades dos saberes que

lhe atravessam natildeo sendo possiacutevel encontrar sua essecircncia nem na

interioridade do espiacuterito (FOUCAULT 2008) O sujeito torna-se portanto

uma instacircncia simboacutelica fugidia e clivada uma forma natildeo uma substacircncia

Agora pode-se compreender com mais clareza o motivo pelo qual

Foucault (CHOMSKY 2014) sustenta que a competecircncia natildeo eacute inata assim

como as regras do pensamento humano natildeo satildeo matemaacuteticas As

regularidades se devem aos sistemas enunciativos e estes satildeo submetidos

agraves contradiccedilotildees histoacutericas decorrentes das diversas formas de organizaccedilatildeo

dos homens em sociedade A proacutepria verdade sobre um objeto portanto

20 No que concerne agrave criatividade na linguagem conceito central na abordagem chomskyana Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 27 Itaacutelicos nossos) afirma ldquoO que de fato existe satildeo criaccedilotildees possiacuteveis inovaccedilotildees possiacuteveis Em termos de linguagem ou de conhecimento soacute se pode criar algo novo aplicando determinado nuacutemero de regras que definiratildeo a aceitabilidade ou a gramaticalidade dessas afirmaccedilotildees ou que definiratildeo no caso do conhecimento o caraacuteter cientiacutefico das afirmaccedilotildeesrdquo Em seguida acrescenta ldquoTambeacutem natildeo vejo problema em dizer que essas regras devem permitir que compreendamos aquilo que eacute falado ou pensado por esses indiviacuteduos Mas dizer que essas regulamentaccedilotildees estatildeo conectadas como precondiccedilatildeo da existecircncia agrave mente humana ou [agrave] sua natureza eacute algo difiacutecil de aceitar para mim Parece-me que antes de chegar a esse ponto ndash e seja como for estou me referindo apenas ao conhecimento ndash devemos reinseri-las no acircmbito de outras praacuteticas humanas como a economia a tecnologia a poliacutetica a sociologia que podem servir-lhes como condiccedilotildees de formaccedilatildeo de modelos de lugar de surgimento etc Gostaria de saber por que natildeo se pode descobrir o sistema de regularidade de limitaccedilatildeo ndash que torna a ciecircncia possiacutevel ndash em outro lugar mesmo fora da mente humana nos sistemas sociais nas relaccedilotildees de produccedilatildeo na luta de classes etcrdquo (FOUCAULT apud CHOMSKY 2014 p 36)

112 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

estaria submetida agrave temporalidade da histoacuteria e natildeo a uma descoberta

apesar da histoacuteria Assim em uacuteltima instacircncia a verdade estaria

condicionada agrave historicidade das ideias visto que a veracidade de um dado

referente decorre dos regimes de verdade os quais satildeo criados e

reproduzidos pelos grupos e instituiccedilotildees sociais bem como pelas relaccedilotildees

de forccedila instituiacutedas entre eles em cada sociedade (FOUCAULT 2008)

Para o filoacutesofo a proacutepria noccedilatildeo de ldquonatureza humanardquo natildeo se

configuraria como um conceito cientiacutefico funcionando mais como uma

espeacutecie de ldquoindicador epistemoloacutegicordquo que organiza distintas incursotildees

cientiacuteficas ao longo do seacuteculo XX21 Nesse sentido podemos entender que em

uma abordagem discursiva da relaccedilatildeo pensamentolinguagemmundo a

proacutepria forma deve ceder espaccedilo ao funcionamento22 Isso significa que

Foucault almeja desconstruir a psicologia interna dos sujeitos nos seguintes

termos constituiccedilatildeo social da linguagem (externalismo em oposiccedilatildeo ao

internalismoinatismo) rarr regras de enunciaccedilatildeo histoacutericas rarr

discursividades rarr pensamento rarr fala rarr condiccedilotildees de enunciaccedilatildeo rarr

sujeito do discurso (subjetividade imanente agrave linguagem em oposiccedilatildeo agrave

subjetividade transcendente) rarr praacutetica discursiva (FOUCAULT 2008)

A singularidade de uma produccedilatildeo discursiva decorre do fato de a

liacutengua(gem) por consequecircncia o proacuteprio pensamento soacute se materializar

em uma dada praacutetica constrangida por possibilidades que natildeo satildeo da sua

proacutepria ordem23 A infinidade de possibilidades para a realizaccedilatildeo de um

21 Ao comentar sobre a ldquonatureza humanardquo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 8 Itaacutelicos nossos) pondera ldquoNatildeo foi estudando a natureza humana que os linguistas descobriram as leis da mutaccedilatildeo consonantal que Freud descobriu

os princiacutepios da anaacutelise dos sonhos ou que os antropoacutelogos culturais descobriram as estruturas dos mitos Tenho a impressatildeo de que na histoacuteria do conhecimento a ideia de natureza humana desempenhou principalmente o papel de um indicador epistemoloacutegico [semelhante ao ideal normativo de Berwick e Chomsky (2017)] para designar certos tipos de discurso relacionados ou contraacuterios agrave teologia agrave biologia ou agrave histoacuteria Para mim seria difiacutecil ver nisso um conceito cientiacuteficordquo

22 Sobre esse aspecto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 36) pontua ldquoTalvez a diferenccedila entre o sr Chomsky e eu seja que quando fala de ciecircncia ele provavelmente estaacute pensando na organizaccedilatildeo formal do conhecimento enquanto eu estou falando do conhecimento em si ou seja eu penso no conteuacutedo de diversos conhecimentos que se encontram dispersos numa sociedade especiacutefica que permeiam a sociedade e que se afirmam como o fundamento da educaccedilatildeo das teorias das praacuteticas etcrdquo

23 Segundo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 21 Itaacutelicos nossos) ldquoO que me preocupa eacute a substituiccedilatildeo das transformaccedilotildees do intelecto pela histoacuteria das descobertas do conhecimento Desse modo eu tenho ao menos aparentemente uma atitude completamente diferente da do sr Chomsky a propoacutesito da criatividade porque para mim a questatildeo eacute eliminar o dilema do sujeito cognoscente enquanto para ele a questatildeo eacute permitir que o dilema do sujeito falante reapareccedila Poreacutem se ele o fez reaparecer se ele o descreveu eacute porque tem condiccedilotildees de fazecirc-lo Jaacute faz

Argus Romero Abreu de Morais | 113

enunciado natildeo representa a sua aleatoriedade pois esse gozaria de uma

caracteriacutestica semelhante agrave linguagem em Chomsky tendendo agrave raridade

das suas regras A diferenccedila entre o algoritmo no Gerativismo e a funccedilatildeo

enunciativa na perspectiva discursiva de Foucault eacute que esta uacuteltima se

constitui externamente ao espiacuterito sendo adquirida pelas experiecircncias em

sociedade Essa espeacutecie de empirismo histoacuterico natildeo se associa ao

comportamentalismo skinneriano dado que natildeo se funda na

transparecircncia da relaccedilatildeo entre o sistema perceptual e o mundo e na

consequente abstraccedilatildeo das relaccedilotildees dos objetos pela induccedilatildeo direta A

linguagem eacute opaca ndash indeterminada ndash em sua estrutura fundamental

sendo o sujeito sua consequecircncia

Eacute nesse ponto que Chomsky pode ter visto semelhanccedila entre a sua

abordagem e a de Foucault de modo que o filoacutesofo francecircs natildeo abandona

necessariamente as capacidades da inteligecircncia humana apenas se opotildee agrave

reduccedilatildeo dos conceitos a sistemas loacutegicos a priori no espiacuterito Ambos

parecem concordar que a linguagem funda um limite do possiacutevel no ser

considerando-a como instacircncia que aponta recursivamente para si mesma

e que demarca os estados finitos do dizer e de suas propriedades de

encadeamento diferentemente do sujeito tendencialmente onipotente

piagetiano e de seu ajuste em relaccedilatildeo agraves estruturas loacutegicas do mundo

Por fim podemos concluir que Chomsky e Foucault satildeo

antirreferencialistas na medida em que negam a relaccedilatildeo direta entre

palavra e objeto24 Opotildeem-se contudo na associaccedilatildeo ao estruturalismo

saussureano para o qual a liacutengua eacute uma entidade coletiva fundada em uma

espeacutecie de contrato social e natildeo um objeto bioloacutegico internalizado como

pretende o Gerativismo Em semelhanccedila com Piaget para Foucault

(2008) o sujeito natildeo eacute uma preacute-formaccedilatildeo do espiacuterito pois se constitui na

relaccedilatildeo dinacircmica entre estruturas simboacutelicas natildeo-inatas e experiecircncias em

sociedade embora segundo o estudioso francecircs a gecircnese deva ceder

muito tempo que os linguistas tecircm analisado a linguagem como um sistema que possui valor coletivo [dentre os quais Saussure] O intelecto como uma soma coletiva de regras que possibilitam que tais conhecimentos sejam produzidosem determinado periacuteodo mal foi estudado ateacute agorardquo

24 Ver aparente paradoxo em Chomsky na nota 15

114 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

espaccedilo agrave singularidade os universais semacircnticos agraves contingecircncias o

indiviacuteduo agrave subjetividade e a loacutegica matemaacutetica agrave dinacircmica histoacuterica Em

siacutentese Foucault sustenta que tanto o pensamento humano quanto os

sistemas de pensamento se organizam pela descontinuidade das ideias

frutos da emergecircncia de possiacuteveis histoacutericos e de horizontes de validade

dos conhecimentos25

Consideraccedilotildees Finais

Cada praacutetica teoacuterica constroacutei os seus limites e as suas potencialidades

dentro de um domiacutenio mais vasto dos saberes Tais diaacutelogos natildeo satildeo

desinteressados pois propotildeem construir ou desconstruir pontes do

conhecimento autorizar ou desautorizar o olhar do outro definir enfim

a si e ao outro enquanto campo do saber No que concerne a este trabalho

retomamos os debates entre Piaget Chomsky e Foucault para demonstrar

que a AD natildeo estaacute alheia aos aspectos cognitivos dos sujeitos apenas os

incorpora a uma perspectiva de historicidade radical da linguagem Pode-

25 No dizer de Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 32 Itaacutelicos do autor) ldquoExiste haacute muito tempo a ideia de que as ciecircncias e o conhecimento seguiam certa linha de lsquoprogressorsquo obedecendo ao princiacutepio de lsquocrescimentorsquo e ao princiacutepio de convergecircncia de todos os tipos de saber [] Cada nova versatildeo torna o conhecimento completamente diferente em suas funccedilotildees em sua organizaccedilatildeo em suas relaccedilotildees internas O que se tem aiacute eacute um princiacutepio de divergecircncia muito mais do que de crescimento Eu diria antes que existem muitas maneiras diferentes de tornar possiacuteveis simultaneamente alguns tipos de conhecimento Portanto existe sempre de certo ponto de vista um excesso de informaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos possiacuteveis sistemas em determinado periacuteodo o que faz com que eles sejam conhecidos dentro de seus limites mesmo em sua deficiecircncia o que significa que natildeo se consegue perceber sua criatividade E de outro ponto de vista o do historiador existe um excesso uma proliferaccedilatildeo de sistemas para uma pequena quantidade de informaccedilatildeo daiacute a ideia amplamente difundida de que o que determina o movimento na histoacuteria da

ciecircncia eacute a descoberta de novos fatosrdquo Eacute notoacuteria a proximidade entre a perspectiva foucaultiana de saber descontinuidade e acontecimento discursivo na Histoacuteria das Ciecircncias e aquela de paradigma descontinuidade e revoluccedilatildeo cientiacutefica desenvolvida por Kuhn (1998 [1962] p 20-1) como podemos notar a seguir ldquoPreocupado com o desenvolvimento cientiacutefico o historiador parece entatildeo ter duas tarefas principais De um lado deve determinar quando e por quem cada fato teoria ou lei cientiacutefica contemporacircnea foi descoberta ou inventada De outro lado deve explicar os amontoados de erros mitos e supersticcedilotildees que inibiram a acumulaccedilatildeo mais raacutepida dos elementos constituintes do moderno texto cientiacutefico [] Contudo nos uacuteltimos anos alguns historiadores estatildeo encontrando mais e mais dificuldades para preencher as funccedilotildees que lhe satildeo prescritas pelo conceito de desenvolvimento-por-acumulaccedilatildeo [] Talvez a ciecircncia natildeo se desenvolva pela acumulaccedilatildeo de descobertas e invenccedilotildees individuaisrdquo No capiacutetulo ldquoAs revoluccedilotildees como concepccedilotildees de mundordquo o fiacutesico acrescenta ldquoGuiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direccedilotildees E o que eacute ainda mais importante durante as revoluccedilotildees os cientistas veem coisas novas e diferentes quando empregando instrumentos familiares olham para os mesmos pontos jaacute examinados anteriormente Eacute como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta onde objetos familiares satildeo vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidosrdquo (KUHN 1998 p 145-6)

Argus Romero Abreu de Morais | 115

se com isso demonstrar os limites das abordagens logicizantes da relaccedilatildeo

pensamentolinguagemmundo aspecto transversal ao Construtivismo e

ao Gerativismo No sentido contraacuterio entendemos que a AD deve testar

seus fundamentos teoacutericos a partir da problemaacutetica da aquisiccedilatildeo da

linguagem a qual continuaremos a explorar em trabalhos futuros tendo

por foco avaliar os fundamentos epistemoloacutegicos de uma aquisiccedilatildeo do

discurso

Referecircncias

BERWICK R CHOMSKY N Por que apenas noacutes Linguagem e evoluccedilatildeo Satildeo Paulo

Editora Unesp 2017 [2016]

CHOMSKY N Diaacutelogos com Mitsuo Ronat Satildeo Paulo Cultrix 1977

_____ Sobre o minimalismo In CHOMSKY N Sobre natureza e linguagem Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006 [1999] p 113-200

_____ Problemas do conhecimento e da liberdade Rio de janeiro Record 2008 [1971]

_____ Natureza humana justiccedila vs poder o debate entre Chomsky e Foucault Satildeo

Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014 [1974]

FOUCAULT M A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2008

[1969]

KUHN T A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1998

[1962]

PIATELLI-PALMARINI M (Org) Teorias da linguagem teorias da aprendizagem o

debate entre Jean Piaget amp Noam Chomsky Satildeo Paulo Cultrix Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 1983 [1979]

SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Satildeo Paulo Cultrix 2006 [1916]

6

Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche

A Leitura de Guumlnter Abel

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa 1

O presente texto esboccedila uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento de

Nietzsche e a filosofia da mente no que diz respeito ao tratamento de

algumas questotildees centrais aiacute presentes ndash em particular o problema da

consciecircncia no debate entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo

entre processos fiacutesicos e mentais Para a compreensatildeo de tais questotildees o

pensamento nietzscheano ndash aqui mediado pela interpretaccedilatildeo de Guumlnter

Abel ndash mostra sua relevacircncia e atualidade no sentido de uma superaccedilatildeo

daquela dicotomia

Em ldquoConsciecircncia ndash linguagem ndash natureza a filosofia da mente em

Nietzscherdquo (ABEL 2005 p 1-41)2 Abel parte da anaacutelise de alguns aspectos

da investigaccedilatildeo atual em filosofia da mente para a partir de uma exegese

do corpus nietzscheano3 apontar para sua pertinecircncia e relevacircncia dentro

desse contexto As reflexotildees de Nietzsche acerca dos acircmbitos e das relaccedilotildees

entre consciecircncia natureza e linguagem ndash a limitaccedilatildeo do consciente pelo

natildeo consciente a formaccedilatildeo de conceitos e da memoacuteria a ideia de natureza

como conjunto complexo de forccedilas por exemplo ndash mostram a importacircncia

que essa triacuteade tem para o seu pensamento

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professor adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE)

2 Esse texto foi originalmente publicado nos Nietzsche-Studien 30 (2001) Berlim De Gruyter

3 Em particular trechos da Gaia ciecircncia e Aleacutem de bem e mal bem como fragmentos poacutestumos de 1884 a 1887 contidos em KSA nos vols X XI XII e XIII da ediccedilatildeo criacutetica de G Colli e M Montinari (1999a 1999b 1999c 1999d)

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 117

O foco da anaacutelise de Abel recai sobre o debate ndash renovado na

atualidade apoacutes a chamada ldquoreviravolta linguiacutesticardquo iniciada por

Wittgenstein e a ldquoredescoberta da consciecircnciardquo (ABEL 2005 p 199) pela

filosofia analiacutetica ndash entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo

entre processos fiacutesicos e mentais em particular os processos consciente-

mentais Segundo Abel de uma maneira geral duas posturas antagocircnicas

podem daqui emergir de um lado a tese do materialismo fisicalismo

monista a defender que estados e processos mentais satildeo tatildeo somente

fenocircmenos da mateacuteria de outro a tese do mentalismo dualista que

defende a irredutibilidade daqueles a estes Ambas as posturas no entanto

por suas proacuteprias limitaccedilotildees natildeo poderiam ser superadas uma pela outra

Precisamente pela ldquoarmaccedilatildeo conceitual que implica ou tem como

consequecircncia essa natildeo resoluccedilatildeordquo (ABEL 2005 p 206) ter-se-ia entatildeo um

impasse E soacute uma modificaccedilatildeo na arquitetura mesma dessa armaccedilatildeo

conceitual tornaria possiacutevel um encaminhamento do problema de modo a

indicar as condiccedilotildees sob as quais ele natildeo poderia mais ocorrer

Os elementos de interpretaccedilatildeo apropriados a essa modificaccedilatildeo

poderiam ser encontrados segundo Abel no pensamento nietzscheano A

tese que defende e que aqui procuraremos expor eacute a de que as criacuteticas

realizadas por Nietzsche agrave questatildeo da consciecircncia expondo seus limites

apontam para uma reinterpretaccedilatildeo do fenocircmeno que natildeo se deixa reduzir

a um mero fisicalismo naturalista nem tampouco se deixa levar por uma

hipoacutestase do conceito-modelo ldquoConsciecircnciardquo A triacuteade acima citada seria

nesse sentido natildeo soacute de fundamental importacircncia para a compreensatildeo do

pensamento nietzscheano como por outro lado seu pensamento a esse

respeito ndash ao acentuar o papel da praacutexis interpretativa e das funccedilotildees

simboacutelicas linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas na constituiccedilatildeo da consciecircncia e

da autoconsciecircncia ndash mostra sua relevacircncia no sentido de uma superaccedilatildeo

daquela dicotomia Tais elementos foram reconstruiacutedos pelo autor em seis

seccedilotildees que seratildeo apresentadas a seguir princiacutepio do continuum modelo

do processo organizaccedilatildeo funcional consciecircncia e linguagem

fenomenalismo da experiecircncia interna e consciecircncia e corporeidade

118 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

O Princiacutepio do Continuum

Abel parte da compreensatildeo de que a superaccedilatildeo das dicotomias entre

mentalismo e materialismofisicalismo soacute pode ocorrer a partir de um

modo de ver natildeo dualista E Nietzsche segundo Abel defende tal

concepccedilatildeo a partir do que chama de princiacutepio do continuum o mundo

para Nietzsche constitui-se como um espectro de continuidade que vai do

inorgacircnico passando pelo orgacircnico ateacute as atividades cognitivas e aos

projetos e consecuccedilatildeo das accedilotildees O que significa que por um lado o

homem seria entendido como corporificaccedilatildeo de todas as atividades

ldquointeligentesrdquo que jaacute se encontram no orgacircnico e com as quais o ser

humano seria retraduzido na natureza por outro o ldquocaraacuteter espiritualrdquo

das atividades vivas poderia ser encontrado nas formas de manifestaccedilatildeo

orgacircnica e ateacute para aleacutem destas

Natildeo se trata aqui de uma superaccedilatildeo redutora ou derivativa do modelo

dualista na relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o consciente No modelo do

continuum a consciecircncia desponta como um fenocircmeno gradual que surge

a partir de ldquodiferenciaccedilotildees filogeneacuteticas e ontogeneacuteticas no acircmbito do

orgacircnicordquo (ABEL 2005 p 209) e cujos elementos jaacute se encontram

presentes em animais enquanto o tornar-se consciente e a autoconsciecircncia

somente no homem seriam encontrados Dois pressupostos do princiacutepio

nietzscheanos satildeo aqui delineados em primeiro lugar formas de vida preacute-

conscientes e orgacircnicas devem ser vistas como ldquoprocessos dinacircmicosrdquo jaacute

inteligentes e basilares para a formaccedilatildeo da consciecircncia por outro ldquoestados

mentais conscientesrdquo devem ser distintos dos ldquoinconscientesrdquo sendo este

acircmbito mais amplo e a partir do qual aquele pode ser explicado Em todo

caso por peticcedilatildeo de princiacutepio ldquoa consciecircncia mesma natildeo estaacute em condiccedilatildeo

de indicar uma lsquocausa objetivarsquo para sua proacutepria origemrdquo (ABEL 2005 p

209)

O que seria entatildeo o ldquoeurdquo da consciecircncia ou o lsquoSi mesmorsquo [Selbst] do

corpo humano Dois aspectos devem ser aqui observados por um lado

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 119

como o modelo do continuum abre-se a possibilidade de que esse ldquoeurdquo

ldquoinfluencie num certo sentido os processos orgacircnicosrdquo (ABEL 2005 p

208) ou seja que determinados pensamentos possam ser ldquoincorporadosrdquo

organicamente por outro o sujeito da consciecircncia ndash ou o que Abel chama

de ldquoeu consciente e lsquoindexicalrsquordquo ndash surge como uma delimitaccedilatildeo dentro da

ldquocorrente contiacutenua de acontecimentosrdquo e natildeo mais como uma coisa

individual que precede a consciecircncia de algo O Eu aparece assim como a

ponta de um processo da qual por isso mesmo prescinde o todo restante

Daiacute a formulaccedilatildeo de Nietzsche ldquoPara que em geral consciecircncia se ela eacute

no geral supeacuterfluardquo e agrave qual ele mesmo responde ldquouma rede de ligaccedilatildeo

entre homem e homemrdquo que teve de ldquodesenvolver-se somente enquanto

talrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354)

Modelo do Processo

Enquanto continuum que vai do orgacircnico ao consciente o mundo de

Nietzsche eacute um conjunto de ldquoefeitos cambiantes dinacircmicos altamente

complexos de variadas organizaccedilotildees de forccedilas vivas e inteligentesrdquo (ABEL

2005 p 215) ndash luta e arregimentaccedilatildeo de impulsos cujo pathos se mostra a

ele como vontade de poder [der Wille zur Macht] Os elementos da

natureza nesse sentido natildeo podem mais ser tomados coisas ndash corpos

materiais ocupando posiccedilotildees no espaccedilo-tempo mas ldquoeventosrdquo ou ldquoobjetos-

processordquo (ABEL 2005 p 216)4 Tal concepccedilatildeo certamente traz

consequecircncias natildeo somente para o status do conceito de ldquocoisardquo mas

tambeacutem para a ideia de ldquosujeitordquo A questatildeo que Abel aqui se coloca eacute os

processos devem ainda pressupor um sujeito ou eacute possiacutevel partir de

processos sem sujeito

A ideia de um sujeito da consciecircncia que a represente e organize seus

conteuacutedos parece implicada no momento mesmo em que a consciecircncia

4 Abel salienta aqui a proximidade da concepccedilatildeo nietzscheana com a fiacutesica contemporacircnea (objetos como uma identidade de eventos) e com as pesquisas em filosofia da linguagem (em particular as ideias de Reichenbach e Davidson)

120 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

enquanto consciecircncia-de-algo transitiva designada por meio da

intencionalidade manifesta-se Ocorre que tambeacutem o ldquoeurdquo o sujeito da

consciecircncia soacute se manifesta em virtude do surgimento desta uacuteltima5

Como afirma Nietzsche em Aleacutem do bem e do mal a ideia de um ldquosujeito

lsquoeursquordquo como condiccedilatildeo do predicado ldquopensordquo seria uma ldquofalsificaccedilatildeo dos

fatosrdquo (NIETZSCHE 2005 sect17) Ora com isso dois postulados expostos

na seccedilatildeo anterior comeccedilam a ser esclarecidos

(a) de que o eu (sujeito) que surge no interior da consciecircncia jaacute depende de

uma amaacutelgama de processos sem sujeito e (b) que o estado e fenocircmeno da

consciecircncia repousa genealogicamente jaacute sobre estados mentais [eventos

processos] natildeo conscientes (ABEL 2005 p 218)

Haveria nesse sentido uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a ideia de um

ldquosujeito da consciecircnciardquo e a figura de ldquoprocessos sem sujeitordquo A pergunta

ldquoquem pensardquo deve ser respondida com ldquoalgo pensardquo no sentido de que

esse ldquoalgordquo jaacute natildeo eacute um ldquoeurdquo objeto e representaccedilatildeo mas um processo e

uma interpretaccedilatildeo ndash ou citando Nietzsche ldquouma interpretaccedilatildeo do processo

que natildeo pertence ao processo mesmordquo (NIETZSCHE 2005 sect17) ndash

designada com a palavra indexical ldquoeurdquo funccedilatildeo desse processo Da mesma

forma no plano linguiacutestico as sentenccedilas de processo natildeo seriam mais

vinculadas a um sujeito gramatical (ABEL 2005 p 221)6 A ideia de sujeito

enquanto ldquoindiviacuteduo-coisardquo dissolve-se nesse sentido pelo ldquoretorno do

sujeito da consciecircncia em si mesmo como sua consequecircncia internardquo

(ABEL 2005 p 220) Em seu lugar surgem o indiviacuteduo-evento e o eu-

interpretaccedilatildeo

A suspeita de uma contaminaccedilatildeo categorial [] de que somente indiviacuteduos-

coisa fornecem o modelo de referecircncia parece banida atraveacutes da passagem ao

esquema do evento e uma teoria natildeo dualista natildeo estaacute mais aprisionada ao

5 Veremos adiante (na seccedilatildeo ldquoFenomenalismo da experiecircncia internardquo) que o eu-consciecircncia a perspectiva da primeira pessoa surge no momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a consciecircncia

6 O autor faz aqui atraveacutes de Lichtenberg um paralelo entre a concepccedilatildeo nietzscheana (com o exemplo das expressotildees impessoais) e a criacutetica ao eu-portador feita por Wittgenstein (o do Tractatus assim como o das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas na comparaccedilatildeo entre olho e o campo visual)

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 121

leito de Procrusto do sujeito da consciecircncia Somente um modelo de referecircncia

baseado em indiviacuteduos-evento abre essa possibilidade (ABEL 2005 p 222)

A partir daqui abre-se o caminho para se pensar eventos mentais

conscientes e natildeo conscientes em uma ldquoco-pertenccedila natildeo dualistardquo com

processos orgacircnicos e corporais

Organizaccedilatildeo Funcional

A ideia de processo implicaria tambeacutem uma passagem do modelo de

organismo ao de organizaccedilatildeo Com efeito o orgacircnico em Nietzsche eacute

entendido como uma ldquoestrutura de organizaccedilatildeordquo na qual a consciecircncia o

pensamento consciente e outros processos mentais resultam como

ldquopropriedades e consequecircncias emergentes da co-relaccedilatildeo muacuteltipla e

altamente complexa dos componentes do sistema inteiro que constituem

a organizaccedilatildeo e garantem sua funcionalidaderdquo Aqui natildeo se trata

propriamente de uma relaccedilatildeo entre parte e todo ndash entre particular e

universal mas de uma combinaccedilatildeo de ldquomuacuteltiplas organizaccedilotildees de forccedilas

das partesrdquo cujos efeitos fazem surgir aqueles estados mentais e emergir

a ldquoespiritualidade viva e inteligenterdquo jaacute presente no orgacircnico (ABEL 2005

p 223)

Tambeacutem aqui haveria uma proximidade com a concepccedilatildeo

atualmente defendida e aceita nas pesquisas sobre o ceacuterebro ndash em

particular ao modelo dos ldquomultiple draftsrdquo desenvolvido por Dennett

(1991 cap 5 apud ABEL 2005 p 224) ndash de que estados mentais

conscientes e natildeo conscientes satildeo resultados da organizaccedilatildeo e da

complexa dinacircmica de configuraccedilotildees de neurocircnios ndash o que vale ser aqui

salientado dado que tal modelo vai de encontro agrave concepccedilatildeo cartesiana

centralista da consciecircncia na qual o ceacuterebro teria um centro ndash um ldquoolho

internordquo para as experiecircncias conscientes Por outro lado a proacutepria ideia

de um ldquofluxo da consciecircnciardquo natildeo pode ser vista como uma sequecircncia

unificada mas ao contraacuterio processos de conformaccedilotildees dinacircmicas e

muacuteltiplas combinaccedilotildees das partes do sistema envolvidas

122 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Na concepccedilatildeo nietzscheana diz Abel esse aspecto eacute enfatizado no

sentido da dependecircncia do ldquoperfil funcionalrdquo do orgacircnico em relaccedilatildeo agraves

combinaccedilotildees de suas partes A ldquoorganizaccedilatildeo processualrdquo pode ser

entendida como configuraccedilotildees de forccedilas que preponderam e dominam ndash

ldquoregentesrdquo mas que satildeo ao mesmo tempo ldquodependentes das forccedilas

particulares funcionaisrdquo ndash e forccedilas ldquoregidasrdquo As partes ndash eventos e

processos por sua vez jaacute natildeo podem ser representadas como elementos

atomiacutesticos mas como ldquoconsecuccedilatildeo efetivo-relacional do acontecerrdquo

(ABEL 2005 p 227) Para Nietzsche esse eacute um evento fundamental de

tudo o que eacute efetivo e vivo E eacute nesse sentido que para ele a vida pode ser

definida como ldquolsquouma forma duradoura do processo de afirmaccedilatildeo da forccedila

onde os lutadores crescem de modo desigual entre sirsquordquo (COLLI

MONTINARI 1999b KSA-XI 36 [22])

A centralidade que o aspecto da organizaccedilatildeo funcional ocupa na

concepccedilatildeo nietzscheana permite caracterizaacute-la segundo Abel como um

funcionalismo entendido no sentido de que estados e processos mentais ndash

em particular estados e processos natildeo conscientes exercem papeacuteis

funcionais e referem-se agrave organizaccedilatildeo funcional de um sistema podendo

ser descritos por uma terminologia funcionalista No entanto natildeo seria

possiacutevel aqui uma associaccedilatildeo ao funcionalismo defendido por Putnam

(1975 apud ABEL 2005 p 228) com base em um modelo computacional

de descriccedilatildeo do funcionamento e individuaccedilatildeo de estados mentais Isso

porque entraria na concepccedilatildeo nietzscheana um ldquoelemento de liberdade e

criatividaderdquo que permite ao eu da consciecircncia dispor dos conteuacutedos e

subsumi-los a um ldquotratamento imaginativo ou planejado do agirrdquo

Um uacuteltimo aspecto quanto agrave organizaccedilatildeo funcional em Nietzsche e

na filosofia da mente diz respeito a uma possiacutevel interpretaccedilatildeo

teleoloacutegico-normativa dos papeacuteis funcionais exercidos pelos processos

mentais Na concepccedilatildeo nietzscheana os processos de organizaccedilatildeo de

forccedilas satildeo eventos de autorregulaccedilatildeo e otimizaccedilatildeo das relaccedilotildees de forccedilas

atuando tanto na organizaccedilatildeo como nas partes nela envolvidas Essas

muacuteltiplas combinaccedilotildees soacute posteriormente apareceriam agrave consciecircncia como

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 123

em conformidade a um fim Natildeo haveria nesse sentido nenhuma

teleologia na coisa mesma mas apenas em como ela aparece agrave consciecircncia

ldquoA organizaccedilatildeo e a dinacircmica dos processos complexos de forccedilas se

realizam () de modo ateleoloacutegicordquo (ABEL 2005 p 231) Seria preciso

distinguir entre duas espeacutecies de finalidade seja a ideia de fim entendida

como um motivo ndash uma ldquoteleologia do atuar exoacutegenordquo ou no como uma

consequecircncia ndash uma ldquofuncionalidade e regularidade endoacutegenardquo Nesse

sentido soacute como expressatildeo de um ldquoolhar que observa posteriormenterdquo

uma conformidade a fins seria possiacutevel

Consciecircncia e Linguagem

Os modelos e organizaccedilotildees acima natildeo estariam bem esclarecidos sem

a compreensatildeo de que por detraacutes das representaccedilotildees sobre as quais a

consciecircncia se efetiva estatildeo os signos linguiacutesticos e funccedilotildees gramaticais

que por sua vez exercem-se no contexto de uma praacutexis interpretativa Em

outras palavras na base do fenocircmeno da consciecircncia aparece o

fundamento linguiacutestico-gramatical e interpretativo de todo pensar Para

Nietzsche soacute podemos pensar ldquode forma linguiacutesticardquo (COLLI

MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22]) O ldquopensar racionalrdquo eacute nesse sentido

um ldquointerpretar segundo um esquema que natildeo podemos dispensarrdquo

(COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22])

Para Abel o que assume significaccedilatildeo fundamental nos dias de hoje eacute

que se por um lado a consciecircncia apresenta a linguagem ndash enquanto uso

dos signos (linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticos) por outro na base mesma de

seu surgimento consecuccedilatildeo e desenvolvimento ela revela tambeacutem com a

linguagem o seu caraacuteter puacuteblico e social A consciecircncia (e suas

especificidades) nesse sentido eacute tematizada agora ldquona interseccedilatildeo dos

desenvolvimentos no acircmbito do natural-orgacircnico [] com os processos

nas esferas do social do histoacuterico e do culturalrdquo (ABEL 2005 p 233)

Jaacute em seus primeiros escritos postumamente publicados Nietzsche

aponta para o cerne comunicativo constitutivo da consciecircncia Na forma

124 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

como apresentado em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral o

homem natildeo apreende coisas objetos mas sensaccedilotildees ndash marcas de

excitaccedilotildees externas que satildeo por meio de transposiccedilatildeo metafoacutericas ndash do

objeto em imagem e da imagem em conceito ndash simplificadas

antropomorfizadas e restituiacutedas pela linguagem na forma de signos Por

uma ldquotransposiccedilatildeo artiacutesticardquo entatildeo a linguagem opera uma identificaccedilatildeo

do natildeo idecircntico da qual surge o conceito Mais ainda eacute nessa identificaccedilatildeo

que se constitui o objeto e tambeacutemo sujeito criador como esfera a ele

oposta com o qual natildeo pode ter senatildeo uma ldquorelaccedilatildeo esteacuteticardquo que eacute a sua

proacutepria criaccedilatildeoconstituiccedilatildeo

Tal processo nesse sentido soacute se justifica do ponto de vista de uma

praacutexis social ou seja por uma necessidade de comunicaccedilatildeo e de

ldquoestabilizaccedilatildeo de sistemas sociaisrdquo (ABEL 2005 p 235) A proacutepria

ldquoverdaderdquo nada mais eacute que uma metaacutefora cristalizada e aceita socialmente

isto eacute pelo rebanho Nietzsche ressalta as condiccedilotildees fisioloacutegicas e

histoacutericas do ldquoinstinto (ou impulso) de verdaderdquo que marca nossa

civilizaccedilatildeo e cujo cerne ilusoacuterio e metafoacuterico revela antes uma crenccedila na

verdade como valor incondicional ldquoas verdades satildeo ilusotildees cuja origem

estaacute esquecidardquo (NIETZSCHE 2007 1 30)

Essa compreensatildeo eacute retomada posteriormente em A gaia ciecircncia

Para Nietzsche na constituiccedilatildeo mesma da consciecircncia aparece uma

ldquonecessidade de comunicaccedilatildeordquo que pressupotildee por sua vez uma

ldquocapacidade [entendida como forccedila e arte] de comunicaccedilatildeordquo

[] posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas

sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeo () Consciecircncia eacute na realidade

apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas () o pensar que se torna

consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos ndash pois

apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de

comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia

(NIETZSCHE 2004 sect 354)

O pensar conceitual e a experiecircncia consciente efetivam-se nesse

sentido enquanto ldquosignos de comunicaccedilatildeordquo ou ldquoformaccedilotildees e abreviaccedilotildees

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 125

de signos sobre signosrdquo Segundo Abel a constituiccedilatildeo de um sistema

conceitual ndash pelo qual o eu da consciecircncia se efetiva ndash ocorre no momento

em que ela proacutepria eacute capaz de diferenciar conceitualmente algo de algo e

com essa delimitaccedilatildeo constituir objetos e a si proacutepria como objeto

O caraacuteter interpretativo da consciecircncia no entanto natildeo se restringe

a um aspecto de suas funccedilotildees simboacutelicas mas eacute sua proacutepria condicionante

no sentido de que os processos orgacircnicos mesmos jaacute pressupotildeem um

ldquointerpretar contiacutenuordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 2 [148])

sendo por ele caracterizados A consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo soacute procede

de modo interpretativo em sua consecuccedilatildeo mas tambeacutem jaacute repousa em

processos de interpretaccedilatildeo natildeo conscientesrdquo (ABEL 2005 p 237) sendo

jaacute um resultado dessas relaccedilotildees Daqui se tem como consequecircncia que ela

natildeo pode ser nem causa sui nem finis sui no sentido de que permanece

sem acesso a seu proacuteprio fundamento A tarefa de uma filosofia da mente

nesse sentido consistiria principalmente em destacar o caraacuteter simboacutelico

e principalmente interpretativo subjacente a estados processos e

fenocircmenos da consciecircncia

Sempre haveria no entanto o perigo de a consciecircncia de modo auto-

causal e auto-teleoloacutegico hipostasiar-se a si proacutepria e mascarar o caraacuteter

problemaacutetico de as representaccedilotildees que surgem na consciecircncia estarem agrave

disposiccedilatildeo e poder do eu-consciecircncia como se esta as antecedesse e

pudesse com elas relacionar-se de outro modo Uma suposta

autocertificaccedilatildeo da autoconsciecircncia compensaria a incerteza quanto ao

objeto e ao sujeito que ela representa Eacute a tendecircncia proacutepria agrave consciecircncia

de querer ir aleacutem natildeo soacute do fenomenalismo da experiecircncia exterior como

tambeacutem da interior (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 15 [90]) Esse

ponto seraacute abordado na proacutexima seccedilatildeo

Fenomenalismo da Experiecircncia Interna

Vimos que pela articulaccedilatildeo linguiacutestica a consciecircncia opera uma

simplificaccedilatildeo esquematizaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo (ABEL 2005 p 237) de

126 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

tudo o que ateacute ela chega do mundo exterior Da mesma forma na

experiecircncia interna natildeo deparamos com fatos como sendo algo primaacuterio

mas eles proacuteprios ldquotecircm de ser o resultado de interpretaccedilotildeesrdquo Sensaccedilotildees de

prazer e dor por exemplo bem como aquilo que costumamos chamar de

ldquosentido internordquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 14 [152]) satildeo

para Nietzsche segundo Abel ldquofenocircmenos tardios derivados

interpretados intelectualmente de processos de forccedilas que estatildeo ao fundordquo

(ABEL 2005 p 238-239)

Duas perspectivas aqui se abrem para a caracterizaccedilatildeo

dessefenomenalismo da percepccedilatildeointerior em primeiro lugar a ordem e

cronologia de causa e efeito eacute continuamente invertida de forma que por

meio da memoacuteria das experiecircncias internas passadas a causa eacute imaginada

ndash em adequaccedilatildeo agrave causa real ndash depois de o efeito jaacute ter sucedido Em

segundo lugar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem (conforme exposta

acima) conduz tambeacutem a uma relaccedilatildeo entre fenomenalismo e

perspectivismo de forma que as experiecircncias internas ndash que satildeo uacutenicas e

individuais satildeo pela linguagem traduzidas para a consciecircncia como

estados internos conhecidos delimitados e tangiacuteveis ao indiviacuteduo7

Natildeo podemos assim transgredir o mundo fenomenal Mas isso natildeo

quer dizer que aquilo a que natildeo temos acesso seja o mundo ldquoverdadeirordquo

e sim tatildeo somente o ldquoinformulaacutevel mundo sem forma do caos de

sensaccedilotildeesrdquo ldquouma outra espeacutecie de mundo fenomenal para noacutes

incognosciacutevelrdquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 9 [106]) Haveria

aqui segundo Abel uma forte criacutetica ao princiacutepio mesmo da racionalidade

moderna a autoconsciecircncia cartesiana ndash ou mais precisamente agrave ldquoideia de

uma autocertificaccedilatildeo fundamentalista numa experiecircncia pura preacute-

linguiacutestica preacute-conceitual e independente da interpretaccedilatildeordquo ABEL 2005

p 241) Na base desse fundamentalismo epistemoloacutegico ldquoo ponto de

partida errado ndash como se houvesse lsquofatos da consciecircnciarsquo ndash e nenhum

fenomenalismo na observaccedilatildeo de si mesmordquo Erro que resultaria em seis

7 Processo esse que como vimos natildeo subsiste independentemente de uma praacutexis social

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 127

pressuposiccedilotildees nenhuma delas para Nietzsche (COLLI MONTINARI

1999d KSA XIII 15 [90]) plena de sentido

(1) transparecircncia completa da consciecircncia (2) manutenccedilatildeo da ideia do dado

ao menos para o acircmbito da experiecircncia interna da consciecircncia (3) a

experiecircncia humana eacute independente da linguagem da descriccedilatildeo e por fim ateacute

mesmo da interpretaccedilatildeo (4) o fenomenalismo eacute restrito somente ao mundo

exterior () (5) haacute um ponto de observaccedilatildeo fixo (6) a consciecircncia tem acesso

imediato a seus proacuteprios estados de experiecircncia interna de si (ABEL 2005 p

238-239)

Com ofenomenalismo e perspectivismo da experiecircncia interna entra

em cena o eu-consciecircncia ndash a perspectiva da primeira pessoa que surge no

momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a

consciecircncia Tambeacutem com ele o ldquocaraacuteter subjetivo qualitativo e

fenomenal da vivecircncia conscienterdquo (ABEL 2005 p 241) Tais aspectos satildeo

segundo Abel discutidos na atual filosofia da mente a partir de duas teses

(1) que os aspectos subjetivos qualitativos e fenomenais satildeo fundamentais

para a experiecircncia interna (2) [que] esses aspectos subjetivos qualitativos e

fenomenais ligados agrave perspectiva da vivecircncia na primeira pessoa natildeo podem

ser reduzidos agrave conformidade a leis fiacutesicas [que satildeo] explicadas da perspectiva

neutra da [] intersubjetividade [Esta] no entanto eacute precisamente aquilo

que natildeo somente eacute dado na vivecircncia factual subjetiva qualitativa e fenomenal

mas tambeacutem sistematicamente excluiacuteda (ABEL 2005 p 242)

Consciecircncia e Corporeidade

Apesar de natildeo poder representar ou sequer distanciar-se da rede natildeo

consciente de seus condicionamentos a consciecircncia ndash enquanto eu-

consciecircncia tem no entanto a ldquopossibilidade de abrir-se retroagindo a si

mesma em contraposiccedilatildeo ao complexo de suas condiccedilotildeesrdquo (ABEL 2005

p 244) Transiccedilatildeo essa que segundo Abel pode ser vista como a passagem

de uma consciecircncia autoteleoloacutegica e autocausal para um eu-consciecircncia

que sem perder a autoconsciecircncia eacute o proacuteprio si-mesmo do corpo ndash aquilo

que Nietzsche chama de grande razatildeo Isso implicaria a transiccedilatildeo de uma

128 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoontologia moralrdquo (COLLI MONTINARI 1999b KSA XI 7 [4]) a uma

ldquofilosofia do corpordquo que comeccedila quando a pequena razatildeo se volta sobre si

por sua proacutepria autoconservaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo a seus

condicionamentos O que natildeo deve ser confundido como uma reduccedilatildeo a

um naturalismo ou biologismo ndash nem tampouco de uma ldquoneurofilosofiardquo

como em Churchland (1998) Natildeo se trata na filosofia do corpo de

Nietzsche de organismos corpos e neurocircnios mas do corpo-organizaccedilatildeo

Natildeo haacute aqui um ldquoalgordquo a ser estudado mas uma ldquocombinaccedilatildeo dinacircmica e

altamente complexa de [] inteligecircncias em processordquo (ABEL 2005 p

244) A passagem do eu-consciecircncia ao si-mesmo (o ldquodominador do eurdquo)

eacute nesse sentido a passagem de uma ldquosubjetividade produtorardquo para a

ldquoindividualidade no sentido da organizaccedilatildeo do corpo [Leib] () que cada

um eacute enquanto ser que interpretardquo ABEL 2005 p 246-7) Isto natildeo implica

um retorno da individualidade ao sujeito racional universal mas a

subsunccedilatildeo em uma ldquoindividualidade-corpordquo

Dois aspectos satildeo salientados aqui por Abel em primeiro lugar a

ldquocorporeidade preacute-cognitiva preacute-linguiacutestica e preacute-racional em seus

estados esteacuteticos pode ser vista como o lugar de surgimento dos signos

simbolizadores linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticosrdquo (ABEL 2005 p 247) em

cuja invenccedilatildeo estatildeo envolvidos estados corporais Na abertura do eu-

consciecircncia agrave rede de seus condicionantes revela-se ldquoo caraacuteter dos signos e

da interpretaccedilatildeo em sua posiccedilatildeo fundamentalrdquo (ABEL 2005 p 248) Por

outro lado o modo de consideraccedilatildeo do ldquofio-condutor do corpordquo apresenta-

se como um ldquofenocircmeno mais ricordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII

40 [15]) no sentido de que se situa no interior mesmo da posiccedilatildeo criticista

A posiccedilatildeo da consciecircncia bem como da criacutetica da linguagem eacute nesse

sentido aprofundada Trata-se nas palavras de Nietzsche ldquodo corpo em

todo o desenvolvimento do espiacuterito ele eacute a histoacuteria que se torna sensiacutevel

de que um corpo superior se formardquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X

24 [16]) Em que o mental por outro lado eacute a ldquolinguagem simboacutelica do

corpordquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X 7 [126])

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 129

Criacutetica da Consciecircncia e Criacutetica da Linguagem

Dois aspectos devem ser salientados quanto a este toacutepico por um

lado a importacircncia da consciecircncia e da linguagem nas relaccedilotildees humanas

ndash com o mundo com o outro e consigo ndash e por outro o reconhecimento

de seus limites ndash em uacuteltima instacircncia do limite-corpo que subjaz a ambas

linguagem e consciecircncia

No caso da linguagem os limites parecem ser bastante sutis no

sentido de que ela proacutepria enquanto ldquogramaacuteticardquo atua como preacute-

formadora do pensamento consciente e nesse sentido ldquoo que pode ser

pensado e dito em geral tem de estar jaacute na gramaacutetica de uma linguagemrdquo

(ABEL 2005 p 249) Como afirma Nietzsche em Crepuacutesculo dos iacutedolos

ldquoA lsquorazatildeorsquo na linguagem oh que velha e enganadora senhora Receio que

natildeo nos livremos de Deus porque ainda acreditamos na gramaacuteticardquo

(NIETZSCHE 2006 III sect5) Tais limites que a tornam suscetiacutevel a uma

petrificaccedilatildeo estatildeo precisamente pelo caraacuteter de universalidade das

sentenccedilas e palavras Principalmente quando estas se tornam conceitos

frutos da ldquoidentificaccedilatildeo do natildeo idecircnticordquo (NIETZSCHE 2007 1) e jaacute

distantes de sua ldquovivecircncia original uacutenica e totalmente individualizadardquo Haacute

aqui o risco de se fazer mitologia com o ldquomundo dos signosrdquo e de tornaacute-lo

o ldquoem si das coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 sect21)

Uma superaccedilatildeo no pensamento dos ldquoerrosrdquo da razatildeo petrificados na

linguagem ndash ou em uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo (NIETZSCHE 2006

III sect5) ndash seria no entanto impossiacutevel porque noacutes ldquonecessitamos do errordquo

O problema crucial aqui como aponta Abel eacute que o indiviacuteduo uma

sensaccedilatildeo ou o proacuteprio inefaacutevel jaacute pressupotildeem a linguagem quando satildeo

expressos comunicados Como entatildeo conciliar o caraacuteter individual de uma

sensaccedilatildeo com a pretensatildeo agrave universalidade e o caraacuteter comunicativo e

social da linguagem que a expressa

No acircmbito da consciecircncia por sua vez por intermeacutedio e constituiccedilatildeo

da linguagem tudo perde a individualidade e eacute traduzido para o acircmbito do

universal O que impede um acesso agrave profundidade e deixa agravequela apenas

130 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

um ldquomundo de superfiacutecies e signosrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354) A

consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo pertence propriamente agrave existecircncia

individual do homemrdquo A relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem mostra-se

uma relaccedilatildeo de constituiccedilatildeo universalizaccedilatildeo simplificaccedilatildeo e

superficializaccedilatildeo Os limites se datildeo em que nessa relaccedilatildeo com a iminecircncia

de uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo a consciecircncia corre de vaacuterias formas o

risco de hipostasiar-se a si mesma

Em primeiro lugar na medida em que ela pretende identificar-se com a ampla

situaccedilatildeo total de um homem Entatildeo conforme ela considera seu eu isto eacute o

sujeito como substacircncia ela assumiria como sujeito uma posiccedilatildeo aprioriacutestica

face aos conteuacutedos da consciecircncia Por fim na medida em que o eu isto eacute o

sujeito da consciecircncia vecirc suas determinaccedilotildees das representaccedilotildees da consciecircncia

dos objetos da experiecircncia como determinaccedilotildees ontoloacutegicas Aleacutem disso haacute o

risco de hipoacutestase no sentido de que [] a consciecircncia e a mente tendem a

entenderem a si mesmas de modo autoteleoloacutegico e autocausal como finis sui e

causa sui e que elas jaacute natildeo podem abrir-se desse modo agrave rede abarcante das

condiccedilotildees de sua proacutepria existecircncia (ABEL 2005 p 252)

A criacutetica de Nietzsche em suma natildeo se refere propriamente agrave

consciecircncia ndash erro necessaacuterio ndash nem tampouco tem caraacuteter reducionista

Antes dirige-se ao modelo cartesiano hipostasiado de reflexatildeo da

consciecircncia e da autoconsciecircncia em seus seis erros ou pressuposiccedilotildees

Filosofia Simboacutelica e Interpretativa da Mente

Pode-se formular a advertecircncia articulada na criacutetica da consciecircncia e da

linguagem do seguinte modo natildeo se confunda a circunstacircncia de que noacutes

temos a ver na consciecircncia assim como na autoconsciecircncia com signos e

interpretaccedilotildees com a concepccedilatildeo de que noacutes nos deparariacuteamos com as ldquocoisas

mesmasrdquo ou com as coisas-em-si-mesmas Assumir essa uacuteltima significa

recair no sofisma naturalista da consciecircncia (ABEL 2005 p 253-4)

Do que foi exposto quanto aspectos acima atenccedilatildeo especial deve ser

dada ao caraacuteter simboacutelico e interpretativo ndash semioacutetico ndash dos estados e

processos da consciecircncia da autoconsciecircncia e dos outros processos

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 131

mentais conscientes e natildeo conscientes Consciecircncia eacute consciecircncia de signos

cujos elementos (sintaacuteticos semacircnticos e pragmaacuteticos) natildeo os precedem

mas satildeo eles mesmos constituiacutedos em sua ldquoorientaccedilatildeo a algo ou a outras

pessoasrdquo ndash orientaccedilatildeo que tem o caraacuteter de uma ldquointerpretaccedilatildeo

construcionalrdquo (ABEL 2005 p 253-4) As funccedilotildees da interpretaccedilatildeo

constituem assim o fundamento dos signos Todos os estados processos

e fenocircmenos mentais bem como a comunicaccedilatildeo desses conteuacutedos

realizam-se em e como signos e interpretaccedilotildees O ponto chave nessa

concepccedilatildeo pragmaacutetica simboacutelica e interpretativa diz Abel eacute que ldquonoacutes

temos consciecircncia mente e pensamento natildeo por meio mas por forccedila dos

processos de signos e interpretaccedilotildeesrdquo (ABEL 2005 p 256) A

interpretaccedilatildeo nesse sentido ldquoeacute condiccedilatildeo e natildeo opccedilatildeo para o emprego

bem-logrado dos signosrdquo (ABEL 2005 p 257)

Para o autor a construccedilatildeo nos dias de hoje de uma teoria da

consciecircncia que parta dessa tese ou seja para aleacutem da dicotomia

materialismofisicalismo e mentalismo deve levar em consideraccedilatildeo cinco

aspectos (1) uma postura contra o fisicalismo das funccedilotildees simboacutelicas dos

signos e interpretaccedilotildees (2) a introduccedilatildeo de sistemas e signos e

interpretaccedilotildees natildeo linguiacutesticos e natildeo proposicionais revelando a

insuficiecircncia dos siacutembolos linguiacutesticos e proposicionais como uacutenico meio

de representaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo mentais (3) a consideraccedilatildeo aleacutem de

Nietzsche do pragmatismo de Peirce da teoria geral do siacutembolo de

Goodman e a teoria das formas simboacutelicas de Cassirer (4) a ideia de uma

relaccedilatildeo ou uma ligaccedilatildeo interna entre signos interpretaccedilotildees e

possibilidade de accedilatildeo (5) a consideraccedilatildeo dos valores avaliaccedilotildees e normas

(sentido e dever) no emprego dos signos e nas accedilotildees

Assim o fundamental na concepccedilatildeo de uma filosofia da mente a

partir do pensamento de Nietzsche deve estar na ideia de que os processos

de interpretaccedilatildeo estatildeo implicados desde o iniacutecio tatildeo logo se trate de

submeter o que estaacute na consciecircncia a uma delimitaccedilatildeo ordenaccedilatildeo

classificaccedilatildeo coerecircncia ou comunicaccedilatildeo O orgacircnico mesmo jaacute eacute para

Nietzsche uma interpretaccedilatildeo contiacutenua

132 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Referecircncias

ABEL Guumlnter ldquoConsciecircncia-Linguagem-Natureza ndash A filosofia da mente em Nietzscherdquo In

MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo

Discurso Editorial 2005

_____ ldquoVerdade e interpretaccedilatildeordquo In MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad

Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo Discurso Editorial 2005a

CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia Trad Maria C Cescato Satildeo Paulo UNESP 1998

COLLI G MONTINARI M (orgs) Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe

(KSA v X) Berlim Munique Nova York Walter de Gruyter 1999a

_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XI) Berlim

Munique Nova York Walter de Gruyter 1999b

_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XII) Berlim

Munique Nova York Walter de Gruyter 1999c

_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XIII) Berlim

Munique Nova York Walter de Gruyter 1999d

NIETZSCHE Friedrich W Genealogia da moral (GM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo

Paulo Companhia das Letras 1998

_____ A gaia ciecircncia (FWGC) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2004

_____ Aleacutem de bem e mal (GBBM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia

de Bolso 2005

_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos (GDCI) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2006

_____ Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (WLVM) In Sobre verdade e

mentira Trad e Org Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2007

7

Habermas e o Problema do Mundo Objetivo

em Verdade e Justificaccedilatildeo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira 1

Introduccedilatildeo

O objetivo deste artigo eacute investigar a questatildeo do mundo objetivo a

partir da recente distinccedilatildeo que Habermas realiza entre verdade e

justificaccedilatildeo na obra de mesmo tiacutetulo Eacute preciso entatildeo entendermos o

lugar que o mundo objetivo passa a ter no pensamento habermasiano

sobretudo a partir da diferenccedila entre verdade e justificaccedilatildeo algo outrora

inexistente

Verdade e justificaccedilatildeo de 1999 reuacutene trabalhos escritos entre 1996 e

1998 que retomam o fio de uma reflexatildeo interrompida em Conhecimento

e Interesse (1987) Apesar de a pragmaacutetica da linguagem que Habermas

desenvolveu nos anos 1970 ter feito uso de conceitos como verdade

referecircncia validade objetividade realidade e racionalidade estes natildeo

foram abordados agrave luz da filosofia teoacuterica como em Verdade e justificaccedilatildeo

Habermas (2012) nos tempos da Teoria do agir comunicativo obra

de 1971 definia o sentido de verdade a partir da situaccedilatildeo ideal de fala

atraveacutes dos pressupostos idealizantes de 1) publicidade e total inclusatildeo de

todos os envolvidos 2) distribuiccedilatildeo equitativa dos direitos de

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) com Doutorado Sanduiacuteche pela Ludwig-Maximilian-Universitaumlt (LMU) em Munique Alemanha Poacutes-doutorando pela Universidade Federal do Piauiacute (UFPI) e Bolsista Capes Email julianocordeiro81gmailcom

134 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

comunicaccedilatildeo 3) caraacuteter natildeo violento de uma situaccedilatildeo que admite apenas

a forccedila natildeo coerciva do melhor argumento e 4) a probidade dos

proferimentos de todos os participantes Nesse sentido a verdade

relacionava-se diretamente com o consenso construiacutedo pelos sujeitos

atraveacutes da situaccedilatildeo ideal de fala

Entretanto Habermas em Verdade e justificaccedilatildeo partindo das

criacuteticas que recebeu por igualar o conceito de verdade agrave justificaccedilatildeo ao

longo de seu projeto teoacuterico afirma hoje em dia que a verdade natildeo pode

mais ser assimilada simplesmente agrave situaccedilatildeo ideal de fala agrave justificaccedilatildeo

pragmaacutetica dos sujeitos ldquoDe laacute para caacute percebi que essa assimilaccedilatildeo natildeo

pode dar certo Reformulei o antigo conceito discursivo de verdade que

natildeo eacute errado mas eacute pelo menos incompletordquo (HABERMAS 2004 p 60)

A verdade agora tem a ver com o mundo objetivo que temos

inevitavelmente de pressupor nos atos de fala e nas nossas accedilotildees A

justificaccedilatildeo por sua vez seria um criteacuterio pragmaacutetico relacionado

unicamente aos sujeitos falantes natildeo podendo ser assimilado agrave verdade

como Habermas conceituava antes A verdade por assim dizer relaciona-

se com um pressuposto formal que os sujeitos precisam admitir sob pena

de natildeo falar nem agir no mundo

Poreacutem mesmo com a distinccedilatildeo habermasiana entre os conceitos de

verdade e justificaccedilatildeo continua natildeo estando em questatildeo a representaccedilatildeo

correta da realidade ou a estrutura ontoloacutegica do mundo Eacute impossiacutevel

determinar a significaccedilatildeo das palavras sem uma consideraccedilatildeo do contexto

social em que satildeo usadas porque eacute o uso que decide a significaccedilatildeo das

expressotildees linguiacutesticas caracteriacutestica central do pragmatismo No

Segundo Wittgenstein e tambeacutem em Habermas a ecircnfase eacute dada

sobretudo agrave pragmaacutetica

Como entatildeo entender o novo lugar que o mundo objetivo passou a

ter no pensamento habermasiano haja vista que ele continua a ser criacutetico

da noccedilatildeo representacionista de verdade Como conciliar a tese da

pressuposiccedilatildeo irrecusaacutevel de um mundo objetivo independente de nossas

descriccedilotildees e idecircntico para todos os observadores com a tese baacutesica da

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 135

reviravolta linguiacutestica de que natildeo temos acesso diretamente isto eacute natildeo

linguisticamente mediado a uma realidade ldquonuardquo Eacute o que veremos a

seguir

A Necessaacuteria Diferenccedila entre Verdade e Justificaccedilatildeo

Inicialmente Habermas conceituava a verdade como sinocircnimo de

justificaccedilatildeo Ou seja a verdade era aquilo que os sujeitos estabeleciam

consensualmente nas deliberaccedilotildees Wellmer (apud ALVARENGA 1999)

por exemplo numa criacutetica a Habermas destaca que racionalidade e

verdade natildeo necessariamente coincidem Para ele natildeo podemos afirmar

que havendo consenso racional exista verdade de imediato Nada impede

que no futuro seja considerado falso um consenso atual o que natildeo

implica que agimos irracionalmente A verdade eacute sempre algo maior do

que a racionalidade dos consensos situados Todo consenso encontra-se

sob reserva podendo no futuro ser posto em questatildeo mediante razotildees

Wellmer argumenta referindo-se agrave primeira concepccedilatildeo de verdade

de Habermas que um conceito de verdade como consenso eacute insuficiente

por natildeo abranger o aspecto da correspondecircncia da verdade Seria preciso

esse complemento na teoria discursiva de Habermas Mesmo que se

cumpram as condiccedilotildees ideais de fala tal fato natildeo significa que as razotildees

alegadas no processo deliberativo tenham sido boas Um consenso falso

pode ser racional no sentido de que foi alcanccedilado sob condiccedilotildees formais

de uma situaccedilatildeo ideal

Habermas a partir de tais criacuteticas reformulou sua concepccedilatildeo de

verdade distinguindo verdade de justificaccedilatildeo Ele assume que o consenso

natildeo pode ser considerado como um criteacuterio mas deve ser visto como um

mecanismo de certificaccedilatildeo da verdade Ele relaciona o conceito discursivo

mantido de aceitabilidade racional com um conceito de verdade

pragmaacutetico natildeo epistecircmico sem assimilar a verdade agrave assertibilidade

ideal ou seja agrave justificaccedilatildeo

136 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Inicialmente Habermas (2012) na Teoria do agir comunicativo

apresentou uma teoria consensual da verdade o consenso era o criteacuterio de

verdade O que eacute verdadeiro seria aquilo advindo de um consenso racional

e universal como consequecircncia de um diaacutelogo numa situaccedilatildeo ideal de fala

Entretanto como demonstra Puntel (2013) Habermas viu as dificuldades

dessa concepccedilatildeo uma vez que haacute uma incapacidade de explicar por que

mesmo as asserccedilotildees mais exaustivamente justificadas podem ser falsas

Habermas trabalha atualmente com uma concepccedilatildeo de verdade orientada

realisticamente denominada de realismo epistemoloacutegico pragmaacutetico

Os principais passos de Habermas na apresentaccedilatildeo e explicaccedilatildeo de

sua nova concepccedilatildeo pragmaacutetico-realista da verdade segundo Puntel

(2013) satildeo os seguintes 1) o ponto de partida satildeo pretensotildees de verdade

feitas no mundo da vida 2) a verdade eacute conceitualmente (natildeo

epistemologicamente) desconectada da justificaccedilatildeo a verdade eacute

transcendente agrave justificaccedilatildeo 3) a verdade implica uma referecircncia a um

mundo objetivo independente 4) a verdade articula a conexatildeo entre a

sentenccedilaproposiccedilatildeo qualificada como verdadeira e o mundo

Habermas (2004) explica que argumentos que nos convencem da

verdade de ldquoprdquo podem se revelar falsos em outra situaccedilatildeo epistecircmica Ou

seja por mais que ldquoprdquo seja bem justificado ele pode ainda revelar-se falso

A argumentaccedilatildeo permanece reforccedila ele como o uacutenico meio disponiacutevel

para se certificar da verdade de modo que natildeo haacute outra maneira de

examinar as pretensotildees de validade tornadas problemaacuteticas Entretanto a

justificaccedilatildeo natildeo pode ser validada ainda como verdade Habermas entatildeo

pretende salvar a dimensatildeo do mundo objetivo em sua teoria

relacionando-a com a verdade

Ele estabelece um conceito de verdade em que as pretensotildees de

validade transcendam toda justificaccedilatildeo ldquo() depois da

destranscendentalizaccedilatildeo do sujeito cognoscente continua a existir uma

lacuna entre o que eacute verdadeiro e o que conta como justificado ou

racionalmente aceitaacutevel para noacutesrdquo (HABERMAS 2002 p 44) Habermas

pretende assegurar a diferenccedila entre verdade e aceitabilidade racional

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 137

Contudo tal diferenccedila coloca os sujeitos numa situaccedilatildeo paradoxal De um

lado sem acesso direto agraves condiccedilotildees de verdade eles soacute podem resgatar as

pretensotildees de validade por meio de boas razotildees de outro as melhores

razotildees satildeo tambeacutem faliacuteveis Portanto Habermas defende que o abismo

entre aceitabilidade racional e verdade natildeo pode ser transposto uma vez

que todo acordo alcanccedilado pela justificaccedilatildeo eacute tambeacutem faliacutevel

Habermas (2004) destaca que verdade e falibilidade satildeo dois lados de

uma mesma moeda Ele entende que falta agrave justificaccedilatildeo no sentido por

exemplo de Richard Rorty uma referecircncia aos objetos Nesse sentido as

pretensotildees de validade devem transcender o contexto natildeo se satisfazendo

apenas com a justificaccedilatildeo alcanccedilada O verdadeiro para Habermas deve

ser defendido em todos os contextos possiacuteveis

Segundo ele uma concepccedilatildeo que faccedila justiccedila agrave intuiccedilatildeo realista de um

mundo que existe independentemente de noacutes mesmo sem a

representaccedilatildeo de uma correspondecircncia entre proposiccedilotildees e fatos favorece

o projeto de explicar os aspectos nos quais a verdade e a justificaccedilatildeo ao

mesmo tempo assemelham-se e distinguem-se Em suma a verdade eacute um

conceito que transcende toda justificaccedilatildeo natildeo podendo ser identificada

com o conceito de assertibilidade idealmente justificada

De acordo com Habermas a conexatildeo interna entre verdade e

justificaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo epistemoloacutegica pois natildeo estaacute em jogo a

representaccedilatildeo correta da realidade mas uma praacutexis que natildeo pode vir

abaixo O entendimento muacutetuo natildeo pode funcionar sem que os envolvidos

se refiram a um uacutenico mundo objetivo dentro de um espaccedilo puacuteblico

intersubjetivamente partilhado O conceito discursivo de verdade natildeo eacute

exatamente falso mas insuficiente ele natildeo explica o que nos autoriza a ter

por verdadeiro um enunciado suposto como idealmente justificado Dessa

forma asserccedilotildees bem justificadas podem se revelar falsas porque a

verdade deve transcender qualquer contexto de justificaccedilatildeo

Puntel (2013) destaca uma criacutetica a Habermas apontando-nos uma

dimensatildeo natildeo aprofundada por este Puntel com razatildeo critica Habermas

agrave medida que este rejeita a teoria tradicional da verdade sem oferecer uma

138 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

explanaccedilatildeo miacutenima do que ele chama de conexatildeo ou entrelaccedilamento de

verdade e mundo Sua concepccedilatildeo realista pragmaacutetica permaneceria vaga

Se Habermas acertou por um lado em separar verdade de

justificaccedilatildeo ele simultaneamente tambeacutem criou um novo problema em

sua filosofia O que realmente Habermas chama de mundo objetivo O que

de fato significa verdade em Habermas visto que esta se relaciona com um

mundo objetivo que apenas podemos pressupor mas natildeo tematizar tal

qual uma praacutexis que natildeo pode vir abaixo Que dimensatildeo eacute essa que

transcende a justificaccedilatildeo

O Estatuto do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo de um Novo

Acerto a um Novo Problema

Segundo Cliacutestenes Franccedila (2015) Habermas em Verdade e

justificaccedilatildeo substitui sua outrora teoria da verdade por uma teoria da

justificaccedilatildeo deixando de oferecer-nos uma teoria da verdade genuiacutena

Uma teoria da verdade e uma teoria da justificaccedilatildeo satildeo empreendimentos

teoacutericos distintos A primeira teoria da verdade de Habermas dos tempos

do Agir comunicativo era uma teoria antirrealista pois como vimos antes

a verdade era algo sinocircnimo de justificaccedilatildeo Ela natildeo dependia da

ocorrecircncia no mundo de um estado de coisas tendo a ver com a

legitimaccedilatildeo das pretensotildees de validade dos falantes

Jaacute em Verdade e justificaccedilatildeo a verdade natildeo se circunscreve agrave esfera

do discurso ela sempre o ultrapassa Portanto o maacuteximo que podemos

afirmar sobre a aceitabilidade racional de uma asserccedilatildeo eacute que muito

provavelmente ela eacute verdadeira mas natildeo podemos garantir que isso ocorra

de fato Criteacuterios de autorizaccedilatildeo entretanto satildeo formulados por teorias da

justificaccedilatildeo e natildeo por teorias da verdade Franccedila (2015) levanta a hipoacutetese

de que em Verdade e justificaccedilatildeo Habermas apresenta uma teoria da

justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade Habermas natildeo pode mais

dizer em que a verdade consiste mas apenas indicar o que nossas intuiccedilotildees

pragmaacuteticas realistas nos afirmam que ela seja

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 139

Para Franccedila (2015) agrave luz de Kirkham uma teoria da verdade seria

uma teoria metafiacutesica que buscaria fixar uma definiccedilatildeo do que seja a

verdade Uma teoria metafiacutesica da verdade contudo natildeo procuraria

oferecer mecanismos que nos auxiliassem a determinar quando nos

encontramos de posse de um conhecimento verdadeiro Jaacute uma teoria da

justificaccedilatildeo busca indicar as evidecircncias e garantias que algo deve possuir

para ser considerado como provavelmente verdadeiro Criteacuterios de

autorizaccedilatildeo satildeo formulados por teorias da justificaccedilatildeo e natildeo por teorias

da verdade

Habermas apresentaria em Verdade e justificaccedilatildeo uma teoria da

justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade A incorporaccedilatildeo de aspectos

realistas ao conceito da verdade na pragmaacutetica formal de Habermas

resultou no abandono de se oferecer uma definiccedilatildeo positiva do que eacute a

verdade de fato Como pensar a partir disso o problema do mundo

objetivo

Habermas chega ao mundo objetivo somente atraveacutes de anaacutelises das

accedilotildees e discursos que os falantes e agentes realizam no processo

comunicativo Mas isso natildeo transcende a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo

Segundo Puntel (2013) Habermas sempre privilegia a dimensatildeo

pragmaacutetica em relaccedilatildeo agrave semacircntica embora defenda que satildeo duas

dimensotildees co-originaacuterias

Ele supotildee que o ldquoproacuteprio mundordquo eacute o ldquoproacuteprio mundordquo apenas se

permanecer completamente intocado pela linguagem Habermas separa

fatos de objetos Ele natildeo menciona a perspectiva de que ao identificarmos

os objetos como elementos do ldquoproacuteprio mundordquo noacutes jaacute estamos falando

acerca desses objetos pertencentes ao ldquoproacuteprio mundordquo Aqui haacute como

pano de fundo a claacutessica criacutetica de Hegel a Kant

Se os fatos acerca dos objetos natildeo tecircm um status ontoloacutegico entatildeo somos

confrontados com uma declaraccedilatildeo incorreta Com efeito para que tenha um

significado inteligiacutevel lsquoser acerca de um objetorsquo deve ser entendido como

lsquoalcanccedilarrsquo ou lsquoatingirrsquo ou lsquoconcernirrsquo o proacuteprio objeto eacute algo sem sentido

declarar um fato acerca de um objeto e entatildeo defender que este fato nada tem

a ver com o objeto Se o fato expresso nada tem a ver com o objeto o objeto

140 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

permaneceria em um esplecircndido isolamento desconhecido inarticulado O

processo de aprendizagem que torna possiacutevel a expressatildeo de fatos acerca dos

objetos natildeo teria qualquer sentido (PUNTEL 2013 p 206)

Habermas (2004) por sua vez defende uma concepccedilatildeo nominalista

do mundo o mundo eacute a totalidade de objetos dos quais podemos

estabelecer fatos Segundo Habermas os fatos satildeo o que noacutes declaramos

acerca dos objetos Ele enfatiza que o nominalismo eacute menos suspeito do

que outras posiccedilotildees ontoloacutegicas especialmente as posiccedilotildees que atribuem

um status ontoloacutegico aos fatos De acordo com Puntel (2013) o argumento

de Habermas eacute incoerente visto que se os fatos tecircm uma relaccedilatildeo essencial

com a linguagem o mesmo deve ser dito dos objetos Se os fatos estatildeo

entrelaccedilados com a linguagem porque podem ser expressos o mesmo

ocorre com os objetos haja vista que podem ser referidos a algo

Habermas poreacutem defende que apenas os fatos satildeo tocados pela

linguagem natildeo os objetos

Podemos dizer que haacute um abismo que separa a dimensatildeo pragmaacutetica

da semacircntica em Habermas embora ele sempre argumente que satildeo duas

perspectivas inseparaacuteveis Esse eacute um aspecto a ser criticado no

pensamento de Habermas agrave medida que ele natildeo concilia de fato a

pragmaacutetica e a semacircntica Segundo Manfredo Oliveira (2010) do

pressuposto metodoloacutegico fundamental da razatildeo comunicativa Habermas

deriva uma consequecircncia temaacutetica draacutestica isto eacute a restriccedilatildeo do tema da

filosofia agrave dimensatildeo pragmaacutetica Dessa forma como tambeacutem aponta

Puntel (2013) a abordagem pragmaacutetica habermasiana considera que as

estruturas e praacuteticas da comunicaccedilatildeo satildeo a base uacutenica uacuteltima e decisiva

do pensar filosoacutefico privilegiando a linguagem natural em sua

integralidade

Habermas (2004) em Verdade e justificaccedilatildeo distingue entre as

funccedilotildees expositiva (Darstellung) e comunicativa (Kommunikation) da

linguagem natural afirmando que elas se pressupotildeem mutuamente

aceitando a tese de Michael Dummett Poreacutem Habermas privilegia

claramente a dimensatildeo pragmaacutetica colocando a semacircntica em segundo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 141

plano O resultado eacute que o problema do mundo objetivo em Habermas

natildeo eacute explorado suficientemente em sua teoria aparecendo apenas como

pressuposiccedilatildeo formal

Natildeo haacute uma clareza acerca da relaccedilatildeo entre verdade e mundo

objetivo apesar de este ser determinante na sua nova teoria da verdade

Nesse sentido podemos dizer que haacute um deacuteficit ontoloacutegico em Habermas

pois a ontologia aparece sempre agrave sombra em sua teoria mas nunca como

algo tematizado e sim pressuposto formalmente Ou seja haacute uma

postulaccedilatildeo da dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo propriamente da ontologia que

eacute a teoria dessa dimensatildeo A semacircntica eacute reduzida agrave pragmaacutetica (ou pelo

menos articulada em funccedilatildeo da pragmaacutetica e a ela submetida) referecircncia

central de toda a filosofia de Habermas

Como vimos antes Habermas diz que a justificaccedilatildeo natildeo pode ser mais

um criteacuterio de verdade mas ela continua sendo um mecanismo de

certificaccedilatildeo da verdade De acordo com Puntel poreacutem quando uma

sentenccedila eacute qualificada como verdadeira supotildee-se a correspondecircncia com

algo no mundo levantando-se a questatildeo de como deve ser concebido esse

algo

Se assim eacute ele [Habermas] deveria reconhecer que esta articulaccedilatildeo ou

conexatildeo eacute exprimiacutevel e portanto natildeo somente pode mas deve ser explicitada

ndash caso contraacuterio falar dela seria vazio e autocontraditoacuterio Mas isto eacute algo que

Habermas poderia ou deveria aceitar De fato ele natildeo apresenta qualquer

explicaccedilatildeo relevante da dimensatildeo da conexatildeo ou entrelaccedilamento e isto deve

ser considerado como resultado de sua posiccedilatildeo poacutes-metafiacutesica (PUNTEL

2013 p 198)

Segue-se daiacute que a articulaccedilatildeo teoacuterica da dimensatildeo pressuposta ndash do

entrelaccedilamentoconexatildeo de verdade e mundo ndash natildeo pode ser realizada

pelo discurso pragmaacutetico ou dentro de seu quadro referencial teoacuterico

pragmaacutetico Isso torna claro que a afirmaccedilatildeo de Habermas a respeito de

uma verdade incondicional eacute extremamente restrita Em suma eacute uma

afirmaccedilatildeo dentro do acircmbito da pragmaacutetica que torna Habermas incapaz

de articular uma verdade genuinamente incondicional

142 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Ele fala da importacircncia de se reconhecer a dimensatildeo da validade

incondicionada mas natildeo avanccedila para aleacutem de tal afirmaccedilatildeo Se haacute a

necessidade de separar verdade de justificaccedilatildeo ele teria que aprofundar e

tematizar o que estaacute chamando de verdadee mundo objetivo Ou seja que

algo eacute esse que se encontra para aleacutem da justificaccedilatildeo e que ao mesmo

tempo pode pocircr abaixo as justificaccedilotildees no mesmo instante em que soacute

temos acesso ao mundo objetivo pelas proacuteprias justificaccedilotildees

A mesma criacutetica de Puntel a Habermas pode ser feita a toda a tradiccedilatildeo

transcendental oriunda de Kant Este afirma que a representaccedilatildeo das

coisas como nos satildeo dadas deve regular-se como fenocircmenos e natildeo como

coisas em si Em Kant natildeo eacute possiacutevel no conhecimento a priori

acrescentar aos objetos nada a natildeo ser o que o sujeito pensante toma de si

mesmo Todavia Kant exemplifica que se natildeo eacute possiacutevel conhecermos os

objetos como coisas em si mesmas podemos contudo pensaacute-los

Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa natildeo tanto

com objetos mas com o nosso modo de conhecimento de objetos na medida

em que ele deva ser possiacutevel a priori Um sistema de tais conceitos denominar-

se-ia filosofia transcendental (KANT 1974 p 33)

Habermas segue a mesma perspectiva de Kant postulando a

intersubjetividade destranscendentalizada no lugar do sujeito

transcendental Poreacutem a orientaccedilatildeo continua a mesma quando Habermas

afirma que podemos conhecer apenas os fatos natildeo os objetos do mundo

O mundo em Habermas natildeo nos impotildee sua linguagem ele natildeo fala e soacute

responde em sentido figurado

Habermas elabora uma teoria filosoacutefica centrada na dimensatildeo

comunicativa (pragmaacutetica) Seria a partir dela que outras dimensotildees

poderiam ser compreendidas Percebemos que a dimensatildeo expositiva

(semacircntica) eacute posta em segundo plano Em Habermas o modo como as

coisas do mundo satildeo apreendidas e denominadas se orienta no contato

comunicativo entre pessoas O mundo objetivo para ele soacute eacute conhecido

com base na relaccedilatildeo com o quadro referencial da comunicaccedilatildeo Ele eacute

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 143

apenas considerado de tal modo que a interaccedilatildeo entre pessoas se faccedila

possiacutevel Contudo Habermas natildeo se interroga pela condiccedilatildeo de

inteligibilidade da proacutepria pragmaacutetica sendo sua consideraccedilatildeo do mundo

objetivo algo vago

Conclusatildeo

Habermas como vimos distingue verdade de justificaccedilatildeo

entendendo verdade tal qual demonstra Puntel de alguma maneira no

sentido da teoria da correspondecircncia relacionada ao mundo objetivo Uma

pergunta contudo permanece sem resposta em Habermas o que significa

compreender algo Eacute preciso destacar contra ele que haacute um deacuteficit acerca

de uma consideraccedilatildeo da linguagem em sua dimensatildeo estruturalno que diz

respeito agrave dimensatildeo ontoloacutegica

Se Habermas acerta na proposta de separar a verdade da justificaccedilatildeo

haja vista o problema da universalidade e da objetividade (de um mesmo

mundo para todos) ele ao mesmo tempo natildeo consegue esclarecer como

ocorre a relaccedilatildeo da co-originaridade entre exposiccedilatildeo e comunicaccedilatildeo natildeo

aprofundando o estatuto que o mundo objetivo possui em sua filosofia

teoacuterica Habermas natildeo avanccedila de forma mais profunda acerca de questotildees

ontoloacutegicas exigidas por sua nova posiccedilatildeo realista-pragmaacutetica

Ele ignora ou tenta fazer desaparecer questotildees filosoacuteficas que

tradicionalmente seriam chamadas de metafiacutesicas como a tematizaccedilatildeo do

mundo objetivo A virada radicalmente epistecircmica de toda a filosofia

moderna como no esquema transcendental deslocou o sujeito para o

centro de toda a empresa teoacuterica e desse modo tambeacutem da filosofia Fala-

se como sabemos no acircmbito da modernidade de uma filosofia do sujeito

No caso de Habermas e de seu kantismo pragmaacutetico revirado

linguisticamente podemos falar de uma filosofia centralizada na

intersubjetividade e na pragmaacutetica mas que manteacutem ainda a dicotomia

entre sujeitos e mundo

144 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Em Verdade e justificaccedilatildeo os sujeitos supotildeem em comum um

mundo objetivo como totalidade dos objetos que podem ser tratados e

apreciados Eacute justamente o conceito de fracasso performativo que nos

conduz em Habermas a uma pressuposiccedilatildeo formal de nossas accedilotildees

linguiacutesticas e de nossas intervenccedilotildees no mundo objetivo entendido como

sistema de possiacuteveis referecircncias e possiacuteveis manipulaccedilotildees

Trata-se em Habermas de um postulado que inevitavelmente temos

de fazer caso contraacuterio a fala e a intervenccedilatildeo no mundo se tornariam

impossiacuteveis Os participantes do discurso assumem a mesma

pressuposiccedilatildeo formal de um mundo independente de noacutes de nossas

descriccedilotildees de nossos esquemas conceituais

Nesse sentido em Habermas a referecircncia ao mundo natildeo eacute

apresentada como constituindo uma caracteriacutestica componente da

semacircntica da linguagem mas como um pressuposto acrescentado para

que possamos explicar nossas falas e nossas intervenccedilotildees Habermas fala

de semacircntica apenas como dimensatildeo da linguagem (Darstellung der

Welt) mas nunca a analisa Como ressalta Puntel (2013) as tentativas de

Habermas de abordar questotildees filosoacuteficas centrais sem deixar de ser fiel

ao pensamento poacutes-metafiacutesico conduziram-no a problemas

fundamentais obscuridades incoerecircncias ausecircncias de esclarecimentos e

soluccedilotildees

Referecircncias

ALVARENGA N Verdade contingecircncia e falibilismo a teoria discursiva da verdade de J

Habermas agrave luz das criacuteticas de A Wellmer Siacutentese Belo Horizonte v 26 n 86 p

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FRANCcedilA C A problemaacutetica incorporaccedilatildeo do realismo na pragmaacutetica-formal de Juumlrgen

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Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 145

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PUNTEL L O pensamento poacutes-metafiacutesico de Habermas uma criacutetica Siacutentese Revista de

Filosofia Belo Horizonte v 40 n 127 p 173-223 2013

8

Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes

para se Pensar a Natureza de Sistemas Formais

Uma Abordagem Wittgensteiniana

Marcos Silva 1

I want to say an education quite different from ours

might also be the foundation for quite different concepts

(Wittgenstein Zettel 387)

Em 1930 segundo algumas conversas documentadas em

Wittgenstein (1984a)2 estava discutindo com alguns membros influentes

do Ciacuterculo de Viena aspectos importantes de sua filosofia Essas

discussotildees pretendiam esclarecer novidades e dificuldades advindas da

revisatildeo e aprofundamento de toacutepicos de seu Tractatus (1984b) Neste

contexto histoacuterico fica claro pela dinacircmica das conversas que Waismann

conduziu as discussotildees para a filosofia da matemaacutetica uma vez que

Wittgenstein estava preparando-o para um painel a tomar lugar em

Koumlnigsberg naquele mesmo ano O painel trataria justamente de

diferentes perspectivas a respeito dos desafios filosoacuteficos concernentes agrave

crise dos fundamentos na matemaacutetica Nesta discussatildeo em Koumlnisberg Von

Neumann representaria o formalismo Carnap o logicismo e Heyting a

escola intuitionista Jaacute Waismann o quarto membro ilustre da mesa de

1 Professor Adjunto do curso de Filosofia da UFAL e bolsista de produtividade do CNPq (2018-2021) Agradeccedilo aos comentaacuterios valiosos de Luiz Henrique da Silva Santos a este trabalho

2 Estas discussotildees foram documentadas por Waismann e organizadas para publicaccedilatildeo por McGuinness em Wittgenstein und Wiener Kreis doravante WWK

Marcos Silva | 147

discussotildees sobre o estado da arte da filosofia da matemaacutetica seria

responsaacutevel por representar a filosofia de Wittgenstein

A literatura secundaacuteria sobre estes toacutepicos de discussatildeo acerca da

natureza da matemaacutetica no WWK de maneira frequente e acertada a meu

ver aborda os comentaacuterios de Wittgenstein como sendo muito criacuteticos em

relaccedilatildeo ao programa de Hilbert A criacutetica tinha como alvo a meta do

programa que consistia na procura por uma prova absoluta para a

consistecircncia da matemaacutetica (Hacker 1986 Engelmann 2013) Segundo

Wittgenstein provocativamente afirma a tentativa de se fornecer uma prova

absoluta da consistecircncia da aritmeacutetica seria anaacuteloga agrave procura por uma

ldquodoenccedila escondidardquo em um corpo funcional (WITTGENSTEIN 1984a p

120) Contudo acredito que o ponto faltante nesta literatura seja a observaccedilatildeo

de que nesta altura Wittgenstein natildeo foi de forma alguma criacutetico de uma

tese central da tradiccedilatildeo formalista Essa tese diz respeito agrave arbitrariedade da

sintaxe Assim como as regras de um jogo as regras da sintaxe de sistemas

formais seriam para formalistas arbitraacuterias ou seja natildeo residiriam na

essecircncia da linguagem da mente ou do mundo Com efeito Wittgenstein

teria afirmado contundentemente nas discussotildees com os membros do

Ciacuterculo de Viena que ldquoa verdade no formalismo eacute que toda sintaxe pode ser

concebida como se fosse um sistema de regras de um jogo (hellip) Eu gostaria

de afirmar que natildeo somente os axiomas da matemaacutetica mas toda a sintaxe eacute

arbitraacuteriardquo (WITTGENSTEIN 1984a p103 minha traduccedilatildeo)

Minha hipoacutetese de trabalho para se entender esta formulaccedilatildeo forte

de Wittgenstein eacute a de que ela ilustra a sua reaccedilatildeo agrave visatildeo de Frege esta

muito criacutetica ao formalismo Esta reaccedilatildeo me parece ser baseada em uma

ainda incipiente aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de jogos para se entender de maneira

geral a natureza das regras da sintaxe e particularmente a proacutepria noccedilatildeo

de sistemas formais Em junho de 1930 Wittgenstein e Waismann estavam

lendo Grundgetsetze II de Frege em Viena como a entrada ldquoo que dizer

em Koumlnigsbergrdquo do WWK nos mostra No Grundgesetze II Frege (1903

sect106-119) defendeu inter alia contra teses formalistas que identificam a

natureza de sistemas formais com jogos que 1) nuacutemeros da aritmeacutetica natildeo

148 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

podem ser reduzidos a meros sinais ou marcas fiacutesicas porque por

exemplo lsquo0rsquo natildeo tem a propriedade de resultar no sinal lsquo1rsquo quando

adicionado ao sinal lsquo1rsquo ou seja sinais fiacutesicos eles mesmos em uma folha

de papel por exemplo natildeo possuem propriedades matemaacuteticas 2) que

uma contradiccedilatildeo um conceito propriamente loacutegico pode somente ocorrer

nas regras do jogo de xadrez e natildeo nas configuraccedilotildees baacutesicas isto eacute em

nenhum arranjo fiacutesico atual de peccedilas (do xadrez) e 3) que eacute impossiacutevel

inferir regras de um sistema formal pela mera inspeccedilatildeo de posiccedilotildees de

alguns sinais assim como seria impossiacutevel inferir as regras de um jogo de

tabuleiro dado a partir da mera disposiccedilatildeo de suas peccedilas

Nesta altura nas discussotildees com Waismann Wittgenstein parece

concordar com todas essas criacuteticas de Frege ao formalismo contudo vale

notar que Wittgenstein (1984a p 105) acusou indiretamente Frege de ter

cometido uma espeacutecie de falaacutecia do falso dilema se loacutegica e matemaacutetica

natildeo satildeo uma questatildeo de mera inspeccedilatildeo de sinais fiacutesicos ou da disposiccedilatildeo

de marcas materiais em um folha de papel por exemplo o significado de

seus sinais natildeo precisam ser fundados em seu Bedeutung ou seja em sua

referecircncia a entidades abstratas como Frege argumentou Wittgenstein

critica o seguinte raciociacutenio Se o significado de sinais em um sistema

formal natildeo pode ser dado pela mera configuraccedilatildeo de suas marcas fiacutesicas

entatildeo o seu significado deveria ser dado pela sua referecircncia a

determinados objetos especiais Wittgenstein parece ter defendido que ou

bem Bedeutung ou bem meramente sinais fiacutesicos natildeo satildeo todas as

alternativas neste horizonte De fato noacutes precisamos de sinais isto eacute de

algumas marcas fiacutesicas organizadas para a elaboraccedilatildeo de sistemas formais

variados mas noacutes precisamos ainda de regras para manipular estes sinais

Como consequecircncia uma compreensatildeo adequada da metaacutefora de jogos

dos formalistas deveria redundar na assimilaccedilatildeo da ideia que noacutes natildeo

precisamos nos engajar com algum Bedeutung transcendente ao jogo ele

mesmo para garantirmos que os sinais de um sistema formal tenham

significado Em outras palavras sinais seriam sim necessaacuterios mas natildeo

suficientes para a constituiccedilatildeo de um sistema formal mas nem por isso

Marcos Silva | 149

deveriacuteamos postular uma referecircncia a coisas fora do sistema ele mesmo

para dotaacute-lo de significado caso compreendamos a natureza das regras

que organizam o sistema e governam a manipulaccedilatildeo dos seus sinais

Eacute importante notar que Wittgenstein depois desta criacutetica

imediatamente comeccedila a usar o vocabulaacuterio que Frege introduziu ao criticar

formalistas a saber sistemas formais como jogos mas natildeo a posiccedilatildeo de

Frege de que a loacutegica deveria representar leis de uma realidade abstrata

Parece que Frege assumiu o vocabulaacuterio formalista como o de regras e

jogos para mostrar em uacuteltima instacircncia seu absurdo ou ao menos sua

implausibilidade para se entender a aritmeacutetica e a loacutegica Acredito que

Wittgenstein assumiu o vocabulaacuterio formalista de Frege mas condenou seu

falso dilema a saber ou bem somente sinais ou bem a necessidade de um

Bedeutung ao mostrar que formalistas fazem um bom ponto ao defenderem

que toda a sintaxe eacute arbitraacuteria como as regras de jogos Wittgenstein

assumiu o vocabulaacuterio formalista de jogos para mostrar que quaisquer

regras sintaacuteticas poderiam ser outras as regras de sistemas formais natildeo

precisam estar ancoradas na realidade mesmo que rejeitemos que natildeo

devem ser redutiacuteveis a meros sinais ou marcas fiacutesicas Nestas discussotildees

documentadas em WWK Wittgenstein natildeo parecia estar preocupado com

nenhuma lei loacutegica da realidade ou do pensamento mas sim com as regras

para manipular sinais que satildeo estipuladas quando noacutes estipulamos um

sistema loacutegico Ao se entender sistemas como jogos deveriacuteamos entendecirc-los

como independentes de uma realizaccedilatildeo material especiacutefica uma vez que o

fato de o rei num jogo de xadrez ser de plaacutestico madeira ou ateacute mesmo uma

bola de papel eacute irrelevante para a constituiccedilatildeo do proacuteprio sistema Os

sistemas formais como jogos deveriam ser compostos de marcas fiacutesicas sim

mas que possam exercer funccedilotildees variadas no sistema sempre determinadas

pelas regras de manipulaccedilatildeo do jogo

Neste periacuteodo histoacuterico no comeccedilo da deacutecada de 1930 a discussatildeo de

Wittgenstein estaacute ainda circunscrita agrave natureza de sistemas formais e natildeo

eacute desenvolvida para um entendimento geral da linguagem ou das

atividades humanas como um todo Wittgenstein eacute um pensador radical

150 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Eacute razoaacutevel defender que o desenvolvimento de sua filosofia madura possa

ser visto como o desenvolvimento proacuteprio das consequecircncias radicais

desta metaacutefora de jogos natildeo somente para entender matemaacutetica e loacutegica

mas para se entender a linguagem a intencionalidade e a normatividade

peculiares de atividades de seres humanos

No que se segue eu gostaria de responder a pergunta acerca do

porquecirc e de como a noccedilatildeo de jogos desenvolvida por Wittgenstein em 1930

(e nāo de jogos de linguagem porque ele natildeo tinha ainda este conceito

nesta eacutepoca) poderia ainda ser relevante para a filosofia da loacutegica Esta

questatildeo fica ainda mais premente ao considerarmos os problemas

contemporacircneos associados agrave emergecircncia de tantos sistemas natildeo-claacutessicos

legiacutetimos e seu desafio agrave natureza da racionalidade

Eu natildeo pretendo apresentar aqui um quadro nem original e nem

exaustivo de caracteriacutesticas filosoficamente importantes de sistemas

formais ao serem vinculadas a natureza de jogos Mas em vez disso eu

espero defender algumas intuiccedilotildees de Wittgenstein no comeccedilo da deacutecada

de 1930 sobre jogos e regras antes mesmo de suas noccedilotildees maduras (e

elusivas) de jogos de linguagem e semelhanccedila de famiacutelia Minhas

preocupaccedilotildees natildeo redundam em avanccedilar e defender todas as ideias

associadas agrave loacutegica como jogos mas restringir minhas ambiccedilotildees a

promover esta visatildeo filosoacutefica como cogente

Eacute importante evidenciar que os primeiros sistemas de ldquodeduccedilatildeo

naturalrdquo como introduzidos por Jaskowski (1934) e Gentzen (1934-35)

foram desenvolvidos na deacutecada de 1930 Nestes sistemas axiomas

foacutermulas bem formadas e pretensamente evidentes de onde se partem as

derivaccedilotildees satildeo substituiacutedos por conjuntos de inferecircncias que definem o

significado do vocabulaacuterio loacutegico de maneira que natildeo faz sentido dizer que

um sistema loacutegico descreve alguma coisa na realidade Embora as

conexotildees entre diferentes abordagens da loacutegica na deacutecada de 1930 e o

embate contemporacircneo entre teoria da prova e teoria de modelos sejam

histoacuterica e conceitualmente importantes seu exame natildeo estaacute no escopo

deste trabalho

Marcos Silva | 151

Com efeito muito mais poderia ser dito a respeito de jogos e seu uso

em abordagens anti-realistas na loacutegica e na epistemologia A teoria de

jogos foi oficialmente apresentada em 1944 mas foi antecipada por Borel

na deacutecada de 1920 Aleacutem disso a analogia com jogo de xadrez foi

frequentemente usada por exemplo por Weyl (1944) para criticar o

formalismo de Hilbert Vale tambeacutem notar que depois da segunda guerra

mundial o loacutegico Paul Lorenzen (1961) desenvolveu uma influente loacutegica

baseada em jogos dialoacutegicos materiais Estes jogos natildeo foram

influenciados por Wittgenstein mas por outras sugestotildees filosoacuteficas de

natureza construtivista Estes exemplos mostram a seminalidade filosoacutefica

e teacutecnica em se aplicar a metaacutefora do jogo agrave loacutegica independentemente de

uma abordagem wittgensteiniana Um projeto de pesquisa mais

abrangente a respeito disto parece ser bem-vindo

No que se segue eu natildeo estou interessado diretamente na exegese da

filosofia de Wittgenstein3 portanto natildeo vou me concentrar em seu

desenvolvimento filosoacutefico Eu proponho em vez disso oferecer uma

abordagem filosoacutefica mais geral sobre a loacutegica que tambeacutem poderia ser uacutetil

para se entender a natureza do vocabulaacuterio loacutegico

De fato a seguir eu seleciono e brevemente discuto algumas

caracteriacutesticas filosoficamente atraentes a respeito de se pensar loacutegica em

termos de regras em jogos isto eacute em tomar loacutegica como um conjunto de

praacuteticas governadas por regras engajadas por agentes racionais A

motivaccedilatildeo principal aqui eacute a respeito de como esta abordagem poderia ser

filosoficamente seminal para se entender loacutegica e racionalidade em um

ambiente de uma grande pluralidade de jogos Em outras palavras eu vou

mostrar como ao aceitarmos a ideia de sistemas loacutegicos como jogos

poderiacuteamos nos prover de ferramentas filosoacuteficas e loacutegicas para se avanccedilar

discussotildees contemporacircneas em filosofia da loacutegica

Um primeiro ponto relevante em se desenvolver a metaacutefora formalista

a respeito de sistemas formais como jogos eacute o anti-representacionismo

3 Estes problemas conceituais e histoacutericos satildeo tatildeo importantes quanto controversos por um nuacutemero grande razotildees Ver Engelmann (2013) para uma apresentaccedilatildeo mais detalhada Algum anacronismo seraacute cometido no presente trabalho

152 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Regras de um jogo natildeo precisam descrever a experiecircncia e nem a realidade

Regras natildeo podem ser falsificadas e nem verificadas pela experiecircncia uma

vez que natildeo satildeo proposiccedilotildees empiacutericas e natildeo descrevem nada

(WITTGENSTEIN 1984b 61222) De fato noacutes testamos nossa experiecircncia

do mundo usando regras como criteacuterio mas a regra ela mesma natildeo pode

ser testada pela experiecircncia como uma proposiccedilatildeo descrevendo-a pode ser

testada Uma distinccedilatildeo deve ser feita aqui por um lado noacutes testamos uma

proposiccedilatildeo a partir da experiecircncia porque a proposiccedilatildeo descreve o que

ocorre falsa ou verdadeiramente por outro lado proposiccedilotildees empiacutericas satildeo

diferentes de regras na medida em que noacutes testamos ou avaliamos a

qualidade de nossas descriccedilotildees usando algumas regras como criteacuterios Os

criteacuterios eles mesmo natildeo satildeo nem verdadeiros nem falsos Criteacuterios podem

contudo ser tomados como adequados ou inadequados para um

determinado contexto ou uso mas eles natildeo podem ser falsificados a partir

da comparaccedilatildeo com a realidade O motivo da recusa ou rejeiccedilatildeo de criteacuterios

para avaliar a qualidade de nossas praacuteticas discursivas satildeo quase sempre

pragmaacuteticas ou seja baseados na sua legitimidade ou adequaccedilatildeo conceitual

em contextos variados de accedilatildeo e natildeo metafiacutesicos

Outro ponto relevante envolvido na abordagem da loacutegica a partir da

noccedilatildeo de jogos eacute a ecircnfase na generalidade ao inveacutes da universalidade do

conhecimento Regras satildeo gerais isto eacute noacutes podemos compreender um

sistema complexo com um nuacutemero pequeno de regras simples e gerais e

estas natildeo satildeo e natildeo precisam ser universais ou seja ser vaacutelidas para o

domiacutenio de todas as coisas Regras satildeo aplicadas a muitos casos por pessoas

diferentes em contextos diferentes e em muitos periacuteodos diferentes Neste

sentido uma regra natildeo eacute conectada com uma situaccedilatildeo particular mas sim

com uma multiplicidade de situaccedilotildees possiacuteveis Noacutes podemos muito bem

entender um sistema complexo em um momento pela compreensatildeo das

regras que governam seu comportamento De fato a partir do entendimento

comum da noccedilatildeo de regras noacutes podemos pensaacute-las como uma foacutermula geral

que pode determinar um nuacutemero infinito de aplicaccedilotildees

Marcos Silva | 153

Ademais como em uma perspectiva funcionalista para o

entendimento do comportamento de sistemas complexos podemos

associar o desenvolvimento da metaacutefora formalista de jogos com uma

reaccedilatildeo criacutetica ao essencialismo uma vez que natildeo precisamos entender a

essecircncia do mundo para entender o funcionamento de sistemas loacutegicos

Por outro lado esta metaacutefora tambeacutem redunda em uma criacutetica ao

fisicalismo uma vez que a base material eacute irrelevante para o entendimento

da constituiccedilatildeo do significado a partir das regras de um dado sistema O

que Wittgenstein defende eacute um desenvolvimento importante da analogia

formalista de sistemas formais com jogos a saber assim como a base

material de um jogo de tabuleiro natildeo define o significado de suas peccedilas os

sinais na folha de papel por exemplo natildeo determinam o significado destas

marcas Satildeo contudo as regras que fixam o significado tanto das peccedilas do

jogo quanto dos sinais em um sistema formal

Vale notar tambeacutem que um jogo ou uma atividade regrada natildeo

precisa nem ter uma justificaccedilatildeo e nem ter uma fundamentaccedilatildeo Hacker

(1986) apresenta esta caracteriacutestica de jogos como a autonomia ou

arbitrariedade da sintaxe Isto significa que noacutes natildeo precisamos pensar ou

entender a essecircncia da linguagem ou do mundo para aprender como jogar

um jogo Jogos sāo auto-contidos o que eacute dito ou feito em um jogo natildeo

precisa ter nenhuma relaccedilatildeo com o que eacute feito num outro jogo Aqui noacutes

podemos ter uma interessante liberaccedilatildeo de restriccedilotildees metafiacutesicas

relacionadas agrave exigecircncia de referecircncia ao mundo para que estruturas

linguiacutesticas tenham significado uma vez que jogos natildeo precisam ser

pensados em relaccedilatildeo a alguma coisa isto eacute eles natildeo precisam ser

comportar de acordo com um fato determinado no mundo

Em se jogando jogos noacutes temos um claro aspecto de Handlung

dentro de sua dinacircmica loacutegica Ou seja para entendermos o que eacute um jogo

noacutes somos obrigados a pensarmos em termos de alguma accedilatildeo passos

(ldquomovesrdquo) operaccedilotildees ou em uma palavra praacuteticas em atividades regradas

(geregelte Handlung) Existe um niacutevel performativo mandataacuterio em jogos

Regras satildeo instruccedilotildees para atividades (jogos) ou para a construccedilatildeo de algo

154 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

por exemplo A ecircnfase filosoacutefica deve estar no procedimento pelo qual ou

a teacutecnica a partir da qual alguma performance eacute desempenhada e natildeo no

conhecimento proposicional a partir do qual o mundo eacute conhecido

verdadeiramente Natildeo eacute acidental que regras com frequecircncia funcionem

como normas para a accedilatildeo uma vez que expressam o que eacute considerado

adequado ou inadequado correto ou incorreto aceitaacutevel ou inaceitaacutevel

legiacutetimo ou ilegiacutetimo Um operador loacutegico neste contexto pode ser

tomado apenas como um procedimento tomado como legiacutetimo pelo qual

manipulamos sinais ou como uma seacuterie de manipulaccedilotildees permitidas que

contribui com o significado para proposiccedilotildees complexas

Nesta visatildeo que enfatiza o elemento humano em sistemas formais

como atividades regradas de seres humanos uma via de compatibilidade

com o pluralismo loacutegico a tese contemporacircnea que defende a

possibilidade de vaacuterios sistemas loacutegicos conflitantes serem legiacutetimos

conjuntamente pode ser pavimentada Ao se manter que sistemas loacutegicos

satildeo jogos noacutes podemos falar de maneira muito natural a respeito de vaacuterios

caacutelculos sem que precisemos nos comprometer com a verdade ou a

falsidade de alguns deles Com efeito caacutelculos natildeo podem ser falsos no

mesmo sentido que uma proposiccedilatildeo empiacuterica pode ser falsa Mesmo a

loacutegica proposicional entendida classicamente natildeo pode ser verdadeira ou

falsa Como eacute defendido aqui um jogo natildeo pode ser nem falso nem

verdadeiro uma vez que natildeo precisa descrever nada

Aleacutem disso vale notar que natildeo haacute nem um jogo sem regra ou seja

num certo sentido natildeo haacute um jogo anaacuterquico nenhuma regra sem jogo

ou uma regra sem o sistema em que ela deva estar situada Em outras

palavras regras satildeo mortas sem um sistema e um sistema sem regras natildeo

eacute realmente um sistema Aqui noacutes temos uma motivaccedilatildeo para introduzir

o que podemos chamar de holismo loacutegico para cada passo (ldquomoverdquo) ou

operaccedilatildeo em uma atividade governada eles devem estar inseridos em um

sistema Analogamente em sistemas formais operaccedilotildees ganham

significado em relaccedilatildeo a muitas outras Como resultado desta visatildeo

Marcos Silva | 155

mudar uma regra formal significa mudar o jogo uma vez que natildeo haacute

mudanccedila local que natildeo impactaria globalmente no sistema formal inteiro

O desenvolvimento da visatildeo formalista inspirada por Wittgenstein

tambeacutem permite as propriedades muito seminais de sistemas formais

como flexibilidade e plasticidade a partir da noccedilatildeo de jogos Em principio

noacutes podemos rejeitaraceitar ou mudar qualquer regraprinciacutepio em um

sistema loacutegico (claro evitando trivializaccedilāo com notado por Da Costa

1958) Em outras palavras operar em um sistema loacutegico eacute um Handlung

com signos governado por regras que satildeo convencionais no sentido que

poderiam ser outras

Consequentemente noacutes podemos rejeitar a visatildeo tiacutepica a respeito da

normatividade oferecida pelo realista monista Se noacutes temos apenas uma

uacutenica loacutegica verdadeira natildeo importando aqui qual e se a loacutegica determinar

as condiccedilotildees de inteligibilidade de nossas praacuteticas e os limites de nossa

racionalidade entatildeo eacute faacutecil transformar a discussatildeo loacutegica em uma discussatildeo

normativa qualquer desvio da supostaloacutegica verdadeira (como qualquer

outra loacutegica com outros princiacutepios) deveria ser tomado como contrassensual

Desvios sob o ponto de vista de um monista satildeo instacircncias de mau raciociacutenio

ou mesmo ilustraccedilotildees de nenhum raciociacutenio ou seja de que nenhum

raciociacutenio foi de fato feito Se noacutes levarmos a noccedilatildeo de jogos devidamente a

seacuterio a resposta para a normatividade da loacutegica fica encapsulada em normas

de accedilatildeo ou em instruccedilotildees para praacuteticas associadas com uma finalidade

particular Eacute evidente que noacutes poderiacuteamos ter outras normas como de fato

outras comunidades tecircm Com efeito existem outras comunidades que

obedecem outras regras uma comunidade de matemaacuteticos de orientaccedilatildeo

intuicionista por exemplo (LOumlF 1996 2013)

Como um uacuteltimo ponto para a relevacircncia filosoacutefica de se pensar

sistemas formais como jogos vale se destacar que regras satildeo puacuteblicas e

natildeo fundamentadas em representaccedilotildees privadas mentais ou em quaisquer

leis da mente Regras devem ser aprendidas em um ambiente social e a

partir de interaccedilotildees sociais Aqui a noccedilatildeo de educaccedilatildeo ou de iniciaccedilatildeo em

uma praacutetica naturalmente ganha importacircncia dentro do escopo da

156 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

discussatildeo em filosofia da loacutegica e da matemaacutetica Esta visatildeo encoraja

consequentemente uma virada antropoloacutegica na abordagem de sistemas

formais uma vez que enfatiza o niacutevel institucional e social na performance

de um jogo A questatildeo natural eacute Quem joga o jogo Quem aplica os

sistemas autocircnomos ao mundo Responder a esta questatildeo propondo um

sujeito metafiacutesico imaterial fora do mundo ou mesmo um

transcendental impondo estruturas a priori as suas representaccedilotildees

parece ser altamente inadequado Uma resposta natural deveria ser que

indiviacuteduos materiais com uma histoacuteria natural e social jogam os jogos ou

performam atividades regradas em uma comunidade de outros

indiviacuteduos Com efeito regras devem ser sempre associadas com uma

forma de vida Um indiviacuteduo radicalmente isolado natildeo pode jogar um jogo

ou seguir uma regra se noacutes aceitarmos as consequecircncias do famoso

argumento contra a linguagem privada de Wittgenstein em suas

Investigaccedilotildees filosoacuteficas Um jogo jogado objetivamente deve poder ser

ensinado para outros indiviacuteduos a partir dos criteacuterios puacuteblicos pelos quais

se corrigem passos inadequados ou ilegiacutetimos em atividades regradas

Com estas observaccedilotildees neste curto ensaio pretendi mostrar como a

noccedilatildeo de jogos pode ainda ser relevante filosoficamente para se entender a

natureza de sistemas formais a partir de uma abordagem wittgensteiniana

usando principalmente os textos compilados como WWK

Referecircncias

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untersuchungen Werkausgabe Band 1 Frankfurt am Main Suhrkamp 1984b

9

Revisitando o Argumento da Linguagem Privada

Marcus Joseacute Alves de Souza 1

Introduccedilatildeo

Falar de ldquolinguagem privadardquo aponta para um conceito intuitivamente

ou aparentemente contraditoacuterio como pode existir uma linguagem privada

uma vez que a linguagem de um ponto de vista simplista pressupotildee

comunicaccedilatildeo interaccedilatildeo entre falantes Linguagem privada parece um

oxiacutemoro patente Entretanto do ponto de vista teoacuterico a depender de qual

moldura teoacuterica do significado se adere ldquolinguagem privadardquo natildeo eacute algo tatildeo

contraditoacuterio assim Deste modo ao se falar de ldquoargumento da linguagem

privadardquo natildeo se estaacute pensando num argumento que demonstre a

plausibilidade da linguagem privada Na acepccedilatildeo corrente dos estudos sobre

o pensamento de Wittgenstein objeto desta reflexatildeo ldquoargumento da

linguagem privadardquo eacute o argumento mais especificamente os argumentos

que tecircm a linguagem privada como objeto a rigor argumentos contra a

linguagem privada Segundo Hacker (2010 p 616) o que a expressatildeo indica

natildeo satildeo argumentos claros que o filoacutesofo apresenta na verdade satildeo

argumentos de tortuosa interpretaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo presentes nos

paraacutegrafos de 243 a 315 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

A proposta deste artigo eacute modesta Primeiro apresentar um possiacutevel

modo de estruturaccedilatildeo do argumento que tornaria plausiacutevel uma

linguagem privada argumento se de enquadra no acircmbito de uma

1 Professor de Filosofia da UFAL Liacuteder do Grupo Linguagem e Cogniccedilatildeo-UFAL

Marcus Joseacute Alves de Souza | 159

compreensatildeo mental de caraacuteter privatista A seguir indicar trecircs pontos de

ataques contra o argumento extraiacutedos dos paraacutegrafos das Investigaccedilotildees

Filosoacuteficas tentando mostrar falhas nas premissas do argumento

formalizado da plausibilidade da linguagem privada Feito isso encerra-

se o artigo anunciando brevemente alguns elementos desdobrados da

proposta do filoacutesofo para pensar o mental dentro do quadro da

compreensatildeo de linguagem do filoacutesofo

Argumento a Favor da Linguagem Privada

Natildeo eacute claro que Wittgenstein tenha em mente um alvo apenas de ataque

nos trechos indicados como referecircncia do que ficou conhecido como

ldquoargumento da linguagem privadardquo2 todavia eacute possiacutevel determinar que o

filoacutesofo busca atacar certa imagem de privacidade que podemos chamar de

moderna e o modelo de teoria do significado subjacente a tal privacidade

modelo mentalista de significado Nesta imagem existe o mundo da proacutepria

mente e o mundo exterior agrave mente dos objetos materiais e da mente das

outras pessoas O mundo da proacutepria mente eacute privado inicialmente

encapsulado em si e acessiacutevel privadamente de modo direto ao sujeito mental

e de modo indireto por outros sujeitos mentais (outras mentes)

Numa acepccedilatildeo cartesiana a mente eacute uma substacircncia imaterial ligada

ao corpo do portador da mente mas o corpo poderia existir por si proacuteprio

Na mente cartesiana se desenrola os pensamentos sentimentos

sensaccedilotildees Estes satildeo fundamentalmente privados Tal compreensatildeo cria

um problema efetivo quanto ao conhecimento de outras mentes

Tal imagem tambeacutem sobrevive numa acepccedilatildeo empirista mesmo que

o candidato a mente seja algo empiricamente observaacutevel o ceacuterebro Parece

existir uma dificuldade em transpor das operaccedilotildees neuroloacutegicas toda a

gama de manifestaccedilotildees comportamentais e toda a gama de capacidades

2 Eacute possiacutevel perceber que o ataque eacute claro para uma imagem cartesiana de mente bem como o modelo linguagem x designaccedilatildeo no ldquoargumento da linguagem privadardquo mas eacute possiacutevel perceber pelo itineraacuterio reflexivo do filoacutesofo que mesmo uma compreensatildeo empiacuterica mentalista da linguagem ou mesmo o ataque pode se conectar com problemas detectados naquilo que foi o projeto de linguagem fenomenoloacutegica Cf Nielsen 2008 Parte I

160 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

intelectuais disposiccedilotildees etc da nossa espeacutecie e de outras semelhantes o

que faz com que se estabeleccedila uma independecircncia de esferas mental e

fiacutesica (manifestaccedilotildees comportamentais x operaccedilotildees neuronais) que

alimenta a mesma imagem de mente

A compreensatildeo que a mente eacute algo privado e que a linguagem eacute

expressatildeo externa do que estaacute interno eacute a concepccedilatildeo em termos gerais

comum tanto do idealismoracionalismo quanto do

fisicalismoempirismo Isso cria um problema para o conhecimento de

outras mentes sendo que o encaminhamento da soluccedilatildeo se estabeleccedila por

analogia entre minha mente que tenho acesso direto e a mente dos

outros que numa hipoacutetese otimista tenho acesso indireto

Assim um dos alvos talvez o principal dos trechos das Investigaccedilotildees

Filosoacuteficas seja a compreensatildeo privada da mente e associada a esta a

teoria do significado que decorre desta privacidade que daacute condiccedilotildees para

se pensar uma linguagem privada No sect 243 Wittgenstein (1999) daacute as

bases para esta linguagem Natildeo se trata de uma linguagem

circunstancialmente privada algo como monoacutelogos criptografados mas

uma linguagem radicalmente privada A indicaccedilatildeo do filoacutesofo eacute uma

linguagem que diga respeito agraves proacuteprias ocorrecircncias mentais vivecircncias

interiores que seriam nesta moldura radicalmente privadas

Mas seria tambeacutem pensaacutevel uma linguagem na qual algueacutem pudesse para seu

uso proacuteprio anotar ou exprimir suas vivecircncias interiores ndash seus sentimentos

seus estados de espiacuterito ndash Natildeo podemos fazer isso em nossa linguagem

costumeira ndash acho que natildeo As palavras dessa linguagem devem referir-se

agravequilo que apenas o falante pode saber agraves suas sensaccedilotildees imediatas privadas

Um outro pois natildeo pode compreender esta linguagem (WITTGENSTEIN

1999 p 98 sect 243)

Assim aquilo sobre de que a linguagem se compotildee signos regras

referecircncia enfim todos seus elementos seriam privados apenas o criador-

usuaacuterio definiria o significado e apenas ele saberia o significado dos signos

De modo esquemaacutetico o argumento a favor da possibilidade de uma

linguagem privada poderia ser feito assim

Marcus Joseacute Alves de Souza | 161

- ldquoSensaccedilotildees satildeo privadas da mente da pessoa que as temrdquo (premissa 1 = P1)

- ldquoAs sensaccedilotildees satildeo inacessiacuteveis a outras pessoas uma vez que os outros natildeo tecircm

certeza se algueacutem tem ou natildeo uma sensaccedilatildeo particularrdquo (premissa 2 = P2)

- ldquoAlgueacutem pode dar um nome a uma sensaccedilatildeo particular na privacidade de sua mente

e usar este nome e o acerto deste nome nunca seria acessado por ningueacutem a

natildeo ser o usuaacuterio privadordquo (premissa 3 = P3)

- ldquoO significado de um termo nesta linguagem nada mais eacute que a referecircncia de uma

ocorrecircncia mental (sensaccedilatildeo) e seu modo de expressatildeo (signo) sobre uma

sensaccedilatildeo presente ou passada eacute a simples indicaccedilatildeo privada (ostensatildeo) desta

ocorrecircncia mentalrdquo (premissa 4 = P4)

rarr ldquoA linguagem privada eacute possiacutevel seria a linguagem de nossas ocorrecircncias

mentaisrdquo (Conclusatildeo)

Fazendo uma avaliaccedilatildeo inicial dessas premissas se pode estabelecer

sobretudo dentro de uma moldura privatista da mente e uma concepccedilatildeo

mentalista do significado que existe uma certa plausibilidade do argumento

A premissa 1 (P1) parece ser verdadeira as ocorrecircncias mentais as

sensaccedilotildees satildeo privadas ldquoningueacutem sente a minha dorrdquo por exemplo eacute uma

afirmaccedilatildeo claramente verdadeira o que aponta para a verdade da

premissa 1

A premissa 3 (P3) parece ser verdadeira tambeacutem parece ser

plausiacutevel admitir sua verdade Sendo privadas e sendo algo as sensaccedilotildees

podem ser nomeadas como qualquer objeto exterior na linguagem puacuteblica

(mesmo que passe por um processo mental de representaccedilatildeo) Como

apenas o criador e usuaacuterio conhece o termo soacute ele conhece sua associaccedilatildeo

referencial com o objeto e soacute ele conhece o objeto logo eacute possiacutevel admitir

que soacute ele sabe se acertou ou natildeo no uso deste termo

A premissa 4 (P4) tambeacutem pode ser plausiacutevel uma vez que pode se

admitir que o ato de ostensatildeo eacute fundamental para a instanciaccedilatildeo do

significado de um termo eacute possiacutevel admitir que semanticamente o

significado de um termo eacute sua substituiccedilatildeo por ostensatildeo no plano da

linguagem e como os elementos satildeo privados tal mecanismo pode ser

executado privadamente

162 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A premissa 2 (P2) parece ser a problemaacutetica pois parece existir uma

seacuterie de situaccedilotildees que claramente sabemos que uma pessoa tem dor por

exemplo o que aponta para uma implausibilidade da premissa Claro que

existem situaccedilotildees de simulaccedilatildeo de sensaccedilotildees mas seraacute possiacutevel duvidar que

ao enfiar um prego debaixo da unha de uma pessoa ela natildeo tenha dor Os

mais aferrados agrave moldura privatista da mente podem pensar que no maacuteximo

o que posso fazer eacute dado agraves reaccedilotildees da pessoa (comportamento) supor que

ela estaacute tendo dor pois natildeo sinto a dor dela logo natildeo tenho condiccedilotildees de

dizer com certeza que ela tem ou natildeo dor Assim mesmo que se possa pensar

que haacute uma inconfundiacutevel expressatildeo comportamental de dor natildeo existe clara

e confiaacutevel regularidade entre causa e efeito no caso das sensaccedilotildees Por mais

regular que seja a relaccedilatildeo entre enfiar um prego debaixo de uma unha de

algueacutem e este algueacutem gritar chorar se contorcer parece possiacutevel pensar

contra-exemplos desta regularidade algueacutem que fique impassiacutevel por

exemplo Assim parece natildeo existir uma correlaccedilatildeo perfeita entre tiacutepica causa

do comportamento de dor a dor e o comportamento de dor o que torna mais

plausiacutevel a premissa 2

Esta avaliaccedilatildeo preliminar tem como objetivo reforccedilar as bases da

plausibilidade da admissatildeo da linguagem privada P1 aponta para o

aspecto da natureza privada das ocorrecircncias mentais P2 para a dimensatildeo

epistemoloacutegica das ocorrecircncias mentais P3 e P4 para o mecanismo

semacircntico da proposta de linguagem privada

O exemplo recorrente de Wittgenstein eacute o da dor em algumas

ocasiotildees trabalha tambeacutem com o exemplo das cores Natildeo se pretende fugir

desses exemplos pois dado a sua vivacidade e forccedila retoacuterica servem

melhor para esclarecer a questatildeo e desdobrar para outros exemplos

Pontos de Ataque ao Argumento

A seguir tentaremos indicar a partir das reflexotildees de Wittgenstein o

ataque a este argumento na verdade indicando a inadmissibilidade do

argumento proposto para embasar a possibilidade da linguagem privada

Marcus Joseacute Alves de Souza | 163

A Engrenagem Solta

Este ponto de ataque pode ser detectado na sequecircncia dos paraacutegrafos

271 272 279 e 293 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

Eacute uma das metaacuteforas recorrentes de Wittgenstein para explicar a

linguagem a das engrenagens Assim aponta para o fato do significado ser

uma articulaccedilatildeo de uma seacuterie de elementos

Para a formulaccedilatildeo deste ataque os paraacutegrafos apontam para a

ambiguumlidade possiacutevel na denotaccedilatildeo do significado de palavras de cores

Nos paraacutegrafos eacute possiacutevel perceber a alegaccedilatildeo de que cada pessoa processa

seu exemplar de cor na sua mente e que existe a possibilidade de confusatildeo

na denotaccedilatildeo das cores Eacute possiacutevel que eu e parte da humanidade tenham

uma sensaccedilatildeo de vermelho e outra parte tenha outra sensaccedilatildeo cromaacutetica

(WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 272)

Um empirista como Locke admite a mesma situaccedilatildeo mas

sabiamente ele aponta (como Wittgenstein) que eacute uma situaccedilatildeo

inverificaacutevel Ou seja se vocecirc tem um exemplar privado na memoacuteria que

vocecirc chama de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute verde e eu tenho um

exemplar privado que eu chamo de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute azul e

um terceiro chama seu exemplar privado de ldquovermelhordquo e ele na realidade

eacute vermelho Dado a privacidade efetiva natildeo posso verificar os exemplares

privados dos trecircs A questatildeo mais problemaacutetica entra pela porta dos fundos

pela linguagem Para Locke ndash e aqui eacute a oportunidade de expor uma teoria

mentalista standart do significado - os nomes satildeo marcas sensiacuteveis de ideias

armazenadas na memoacuteria assim as palavras estatildeo em associaccedilatildeo com ideias

da mente Se uma palavra natildeo ldquoexecutardquo a mesma ideia armazenada na

mente de duas pessoas ou mais pessoas ela natildeo seraacute significativa

Quando um homem fala com outro o faz para que possa ser entendido e o fim

da fala implica que estes sons como marcas devem tornar conhecidas suas

ideias ao ouvinte Essas palavras entatildeo satildeo as marcas das ideias de quem fala

ningueacutem pode aplicaacute-las como marcas imediatamente a nenhuma outra coisa

164 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

exceto agraves ideias que ele mesmo possui jaacute que isto as tornaria sinais de suas

proacuteprias concepccedilotildees e ao contraacuterio aplicaacute-las a outras ideias faria com que elas

fossem e natildeo fossem ao mesmo tempo sinais de suas ideias e deste modo natildeo

teriam de nenhum modo qualquer significado (LOCKE 1983 p 222)

Assim no uso puacuteblico o desacordo eacute detectaacutevel uma vez que um dos

falantes mostre publicamente o que eacute que ele tem como exemplar de

ldquovermelhordquo do mesmo modo o outro e assim aleacutem de detectar o desacordo

superaacute-lo isso mantendo a moldura mentalista Cores a princiacutepio satildeo

elementos ou aspectos fiacutesicos de objetos fiacutesicosmateriais uma vez que se

tem a vantagem de poder ldquomostrarrdquo exteriormente um exemplar fiacutesico

similar ou idecircntico com a cor para superar a ambiguumlidade Transpor esta

problemaacutetica para o exemplo da dor torna a situaccedilatildeo bem mais problemaacutetica

e complexa Dor eacute uma sensaccedilatildeo sendo privada ningueacutem que natildeo tenha a

experiecircncia da sensaccedilatildeo de dor saberaacute o que significa o signo qualquer que

o designa Se o usuaacuterio e falante do signo dor usa-o para significar X num

momento e noutro para significar Y natildeo haveraacute desacordo nem

possibilidade de verificaccedilatildeo Na verdade seraacute tomado pelo usuaacuterio da

linguagem privada como significando a mesma coisa A mesma situaccedilatildeo

pode ser pensada em uso comum Suponha que algueacutem se queixa de uma

dor sendo privada a sensaccedilatildeo pode variar de pessoa para pessoa se for

diferente de pessoa para pessoa a duacutevida eacute sem sentido pois eacute radicalmente

insuperaacutevel a privacidade o que afeta o uso puacuteblico da palavra ldquodorrdquo como

palavra significativa Tal situaccedilatildeo aponta para a ideia de engrenagem solta

no uso do termo torna-se irrelevante se este algueacutem tem dor ou natildeo para a

significaccedilatildeo do termo em uso privado e para a comunicaccedilatildeo em uso puacuteblico

ldquo[] a roda que se pode mover sem que mais nada se mova natildeo pertence a

maacutequinardquo (WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 271)

A este respeito Wittgenstein (1997 p 427 ndash traduccedilatildeo nossa) diz nas

notas para conferecircncia de filosofia3 ldquoNatildeo eacute um ato oculto nomear um

objeto que possa dar significado a uma palavrardquo

3 Este texto que ficou com o tiacutetulo Conferecircncia Filosoacutefica (MS 166) eacute um conjunto de notas segundo Von Wright de em 1935 ou 1936 denotando uma conferecircncia natildeo realizada pelo filoacutesofo que segundo Anthony Kenny deveria ser realizada em 1941 supostamente para Academia Britacircnica Essas notas dizem respeito agraves reflexotildees de Wittgenstein

Marcus Joseacute Alves de Souza | 165

O que significa essa reflexatildeo para o argumento a favor da linguagem

privada Natildeo eacute um reforccedilo agrave privacidade como uma esfera inexpugnaacutevel

mas para mostrar que eacute irrelevante o objeto referecircncia da sensaccedilatildeo numa

moldura mentalista que na verdade supostamente funciona como

elemento fundamental para a significaccedilatildeo Nisso mesmo sem entrar no

meacuterito de que as sensaccedilotildees satildeo privadas (P1) sendo inacessiacuteveis aos outros

(P2) elas natildeo jogam papel algum para a significaccedilatildeo o que tira a

plausibilidade de P3 Entretanto no uso comum natildeo eacute possiacutevel supor que

estejamos num permanente engano ou mal entendido do significado dos

termos de sensaccedilatildeo evidecircncia que ataca a premissa 2 (P2)

Ausecircncia de Criteacuterio

No sect 258 Wittgenstein (1999) cria uma hipoteacutetica situaccedilatildeo de algueacutem

que quer escrever em um diaacuterio sobre a repeticcedilatildeo de uma sensaccedilatildeo Diz

ele ldquoPara tanto associo-a com o signo lsquoSrsquo e escrevo este signo num

calendaacuterio todos os dias em que tenho a sensaccedilatildeordquo A ideia eacute que faccedilo isso

por uma espeacutecie de ostensatildeo privada concentro-me na sensaccedilatildeo como

um apontar interior e a nomeio A pergunta que surge eacute ldquopara que tal

ritualrdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 100 sect 258) Se ele serve para

estabelecer o significado de ldquoSrdquo deve-se dizer que toda vez que a sensaccedilatildeo

surgir e nomeaacute-la isso se deu porque me recordo da ligaccedilatildeo pois gravei

em mim a associaccedilatildeo de ldquoSrdquo e a sensaccedilatildeo Escreve-se ldquoSrdquo para expressar

minha certeza interior dessa associaccedilatildeo Esta seria uma possiacutevel

justificativa para o ldquoritualrdquo mas ela eacute claramente insuficiente Pensemos

que significa tal situaccedilatildeo Um dos aspectos que mostra a insuficiecircncia eacute o

fato de que pode existir uma falha na instanciaccedilatildeo por erro de memoacuteria

por exemplo Ou seja marco no diaacuterio ldquoSrdquo no dia X quando tenho a

sensaccedilatildeo S no mesmo dia X tenho a mesma sensaccedilatildeo e por familiaridade

interior tenha a certeza de que a sensaccedilatildeo foi a mesma e marco ldquoSrdquo no

sobre a linguagem privada sua implausibilidade Mesmo pouco sistemaacutetico o escrito eacute um grande auxiacutelio para a compreensatildeo e da evoluccedilatildeo do tema no pensamento do filoacutesofo

166 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

calendaacuterio Passados 15 dias tenho a sensaccedilatildeo mas natildeo estou tatildeo certo

fico titubeante tenho duacutevidas de mim para mim se eacute a mesma sensaccedilatildeo

minha memoacuteria natildeo me daacute a certeza que precisaria mas depois de um

pouco mais de introspecccedilatildeo e esforccedilo de lembranccedila a certeza vem e anoto

ldquoSrdquo no calendaacuterio No dia seguinte tenho a sensaccedilatildeo desta vez ela me

pareceu niacutetida e familiar e escrevo sem titubear ldquoSrdquo

A pergunta que surge eacute como se pode sustentar a correccedilatildeo deste uso

denotativo interno Algueacutem mais apegado ao quadro criado atribuiria agrave

sinceridade ou agrave honestidade do ldquousuaacuteriordquo Mas novamente como aferir

tal sinceridade ou honestidade desta associaccedilatildeo Em tese apenas o usuaacuterio

da definiccedilatildeo extensional seria o avaliador de tal sinceridade ou

honestidade Seria algo como ldquoserei sincero com minha honesta

associaccedilatildeordquo ldquoserei sincero comigo mesmo e por isso garanto que natildeo erro

(intencionalmente) ao associar repetidas sensaccedilotildees ao signo lsquoSrsquordquo Mas ser

vocecirc o avalizador de sua sinceridade serum sincero e honesto avalizador

de sua sinceridade e honestidade eacute expressatildeo de um sem sentido de falta

de engrenagem significativa desta situaccedilatildeo E segundo Wittgenstein (1997

p 427-438) nas notas para conferecircncia filosoacutefica se o objeto interno

muda e nossa memoacuteria nos engana o que eacute possiacutevel e usamos a expressatildeo

privada de boa-feacute para significar o objeto usamos a mesma expressatildeo a

cada vez para significar algo distinto Falar de sinceridade honestidade e

boa feacute neste contexto eacute sem sentido exatamente porque boa-feacute

honestidade e sinceridade satildeo conceitos puacuteblicos natildeo faz sentido a natildeo

ser figuradamente e em uso puacuteblico dizer que se eacute honesto consigo

mesmo natildeo existe honestidade ou sinceridade privada Isso marca o

aspecto da falta de criteacuterio de correccedilatildeo desta situaccedilatildeo Aleacutem disso se pode

pensar voltando ao exemplo que se houvesse uma falha na memoacuteria que

criasse a incerteza o usuaacuterio natildeo deveria escrever ldquoSrdquo no dia em que ficou

com duacutevida isso eacute expressatildeo de que seria possiacutevel evitar o erro ou o

engano desde que o usuaacuterio fosse diligente epistemologicamente no

reconhecimento da sensaccedilatildeo e na sua posterior nomeaccedilatildeo Mas a questatildeo

natildeo eacute de capacidade memoriacutestica de reconhecimento A memoacuteria eacute uma

Marcus Joseacute Alves de Souza | 167

habilidade construiacuteda numa linguagem puacuteblica natildeo um ldquobauacuterdquo privado de

vivecircncias acumuladas Neste caso se o ldquousuaacuteriordquo competente ou natildeo em

termos de memoacuteria associar a sensaccedilatildeo ao signo ldquoSrdquo e disser que associou

corretamente seraacute correto Se ele associar incorretamente e disser que

associou corretamente seraacute correto tambeacutem Ou mesmo numa hipoacutetese

de desonestidade se ele natildeo tiver sensaccedilatildeo alguma mas se disser que ldquoSrdquo

significou tal sensaccedilatildeo assim seraacute tido como correto Isso fica claro em

trechos dos sectsect 258 e 259 ldquoCorreto eacute aquilo que sempre me parecer

correto E isto significa apenas que natildeo se pode falar de corretordquo ou ldquoA

balanccedila na qual se pesa as impressotildees natildeo eacute a impressatildeo da balanccedilardquo

(WITTGENSTEIN 1999 p 101 sectsect 258 e 259)

Tal situaccedilatildeo aponta para o fato de que criteacuterio privado de correccedilatildeo

natildeo eacute criteacuterio eacute impressatildeo de criteacuterio Parece haver criteacuterio mas satildeo

impressotildees de criteacuterio natildeo se descrimina nem corrige nada

O interessante eacute que todo o ldquoritualrdquo descrito anteriormente se faz a

semelhanccedila de procedimentos regrados publicamente transpostos par

uma esfera privada numa clara hipostasia de significado

Esta reflexatildeo ataca diretamente a premissas 3 (P3) e 4 (P4) do

argumento em favor da linguagem privada Do mesmo modo que a

inscriccedilatildeo ldquoSrdquo natildeo denota a sensaccedilatildeo necessariamente eacute possiacutevel como

decorrecircncia atacar a premissa 1 (P1) uma vez que se for o caso nem o

usuaacuterioportador da sensaccedilatildeo ldquosaberdquo se a tem isso pela situaccedilatildeo criada

pelo diaacuterio

TransiccedilatildeoDescritibilidade

No modelo cartesiano seria possiacutevel algo como o que Wittgenstein

aventa no sect 257 da crianccedila gecircnio que descobre por si mesma o nome de

uma sensaccedilatildeo ldquolsquoComo seria se os homens natildeo manifestassem suas dores

(natildeo gemessem natildeo fizessem caretas etc) Entatildeo natildeo se poderia ensinar

a uma crianccedila o uso das palavras lsquodor de dentersquo ndash Ora imaginemos que

uma crianccedila seja um gecircnio e descubra por si proacutepria um nome para a

168 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

sensaccedilatildeordquo (WITTGENSTEIN 1999 p 101) Seria uma situaccedilatildeo em que se

aprende o que eacute dor sentindo-a De novo seria algo como ao me

machucar concentro-me na sensaccedilatildeo e imprimo em mim o que eacute ldquodorrdquo

com um signo qualquer Como vimos pela argumentaccedilatildeo anterior falta

criteacuterios para identificar corretamente as minhas proacuteprias dores por

exemplo Mas deixemos isso de lado por enquanto pois no sect 265 haacute um

interessante desdobramento Admitindo a princiacutepio ser possiacutevel

identificar minhas proacuteprias dores corretamente entatildeo rigorosamente eu

natildeo poderia ser capaz de entender proferimentos como ldquoX tem dorrdquo

Podemos supor que descrevo dores a partir da minha proacutepria dor por

introspecccedilatildeo (ostensatildeo interior) mas se eacute assim isso natildeo me permite

ensinar aos outros como descrever a sensaccedilatildeo para uma pessoa particular

a rigor nem a mesma pois isso natildeo foi feito privadamente (Hume jaacute

assinalava que o ldquoeurdquo natildeo eacute objeto de introspecccedilatildeo) Assim quando sinto

dor natildeo eacute meu ego sente dor nem uma parte especial de mim como meu

ceacuterebro Isso eacute claramente uma falaacutecia (falaacutecia do homuacutenculo4) Mas o

ponto aqui eacute o da transcriccedilatildeo de ldquohaacute doresrdquo de ldquoeu tenho doresrdquo uma vez

que satildeo identificadas como sendo a mesma descriccedilatildeo pois natildeo posso sair

de mim dado a privacidade radical das sensaccedilotildees Do mesmo modo ldquoele

tem dorrdquo natildeo significa que eu designei ldquodorrdquo como algo que acontece num

lugar que natildeo seja o da minha privacidade ou seja o corpo ou a mente de

outra pessoa Se o modelo cartesiano estaacute certo ldquodorrdquo eacute um evento

privado captado introspectivamente enquanto ldquodorrdquo no corpo ou na

mente de outrem natildeo eacute algo introspectivamente captaacutevel por mim Assim

falar de dor a partir de mim como ldquodorrdquo de outra pessoa eacute no miacutenimo

uma significaccedilatildeo indevida Natildeo haacute garantia alguma de identidade entre os

significados (WITTGENSTEIN 1999 p 107 sect 292) Sendo assim natildeo

posso descrever dores que sinto em mim como dores que outro sente Em

sect302 Wittgenstein diz ldquoSe precisamos representar-nos a dor dos outros

segundo modelo de nossa proacutepria dor entatildeo isso natildeo eacute coisa faacutecil pois

4 KENNY J P The homunculus fallacy Cf KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein Oxford Blackwell 1984 p 124-136

Marcus Joseacute Alves de Souza | 169

devo representar-me dores que natildeo sinto segundo dores que sintordquo

(WITTGENSTEIN 1999 p 108)

O objetivo deste ponto eacute destacar agraves avessas que o fundamento

privado de constituiccedilatildeo da linguagem eacute implausiacutevel Ele cria uma seacuterie de

dificuldades para o argumento por analogia para conhecimento de outras

mentes numa perspectiva puacuteblica mostra que pela ausecircncia de criteacuterios

para constituiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel estabelecer qualquer descriccedilatildeo sobre algo

que ocorra na mente de outro tal linguagem aleacutem de ser privada deve

ser autocontida o que se mostra sem sentido pois mesmo as

descriccedilotildeesnomeaccedilotildees privadas perdem toda funccedilatildeo como descriccedilatildeo ou

nomeaccedilatildeo Nomear natildeo eacute um ato privado e oculto para que o termo tenha

significado Segundo Wittgenstein nas notas para conferecircncia filosoacutefica

nomear estaacute dentro de uma teacutecnica de uso nomear natildeo eacute espeacutecie de

batismo maacutegico privado ldquonatildeo serve para nada dizer que temos um objeto

privado ante a mente e damos um nomerdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 129

sect 428) Soacute existe nome segundo ele quando haacute uma teacutecnica para usaacute-lo e

esta teacutecnica natildeo pode ser privada Isso atesta agraves avessas que para que as

descriccedilotildeesnomeaccedilotildees sejam significativas devem ser puacuteblicas O que

ataca especialmente a premissa 2 do argumento (P2) as sensaccedilotildees natildeo satildeo

autocontidas indescritiacuteveis e inacessiacuteveis a outrem logo nem sempre terei

duacutevidas sobre se o outro tem ou natildeo determinada sensaccedilatildeo pois para que

a nomeaccedilatildeodescriccedilatildeo qualquer seja significativa ela deve ser puacuteblica o

que aponta para a noccedilatildeo de que se algum termo ou descriccedilatildeo de sensaccedilatildeo

eacute significativo ele se construiu publicamente logo as sensaccedilotildees natildeo satildeo

inacessiacuteveis e natildeo vivemos numa permanente duacutevida sobre se o outro tem

ou natildeo uma sensaccedilatildeo qualquer como dor

Argumento da Linguagem Privada e Filosofia da Mente em

Wittgenstein

Argumento da linguagem privada eacute o esforccedilo de levar ao extremo das

contradiccedilotildees uma concepccedilatildeo privada e representacional de mente que

170 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ganha forccedila ou eacute caudataacuteria de uma concepccedilatildeo referencialista de

significado (objeto ndash representaccedilatildeo ndash signo) Os argumentos apontam para

a perspectiva de fazer uma terapia de tal entendimento de apontar

deficiecircncias conceituais e de buscar suprimi-las com outro registro de

significado e mente

Este novo registro se encontra na concepccedilatildeo de linguagem como uso

como conjunto de accedilotildees puacuteblicas e regradas Nisso emergem conceitos natildeo

referencialistas de linguagem como jogos padrotildees regras criteacuterios

aprendizado e treinamento Tal conjunto de elementos numa avaliaccedilatildeo

panoracircmica dos usos de um termo e seus aparentados faz com que surja

a ldquogramaacuteticardquo de um conceito que abre espaccedilo para o entendimento da

filosofia da mente de Wittgenstein

A proposta de filosofia da mente do filoacutesofo se associa agrave gama de

conceitos surgidos do uso especialmente do uso de verbos intencionais

crer querer conhecer lembrar memorizar imaginar pensar etc cada

um com sua gramaacutetica Sendo assim mente natildeo eacute uma instacircncia

metafiacutesica privada e pneumaacutetica A configuraccedilatildeo dos elementos

conceituais extraiacutedo dos usos dos conceitos mentais traz uma explicaccedilatildeo

de uma seacuterie de fenocircmenos mentais a partir de

Nisso emergem conceitos de explicaccedilatildeo de uma seacuterie de fenocircmenos

mentais como

a) paracircmetros conceituais de definiccedilatildeo de conceitos mentais articulaccedilotildees e

exclusotildees pragmaacuteticas de uso que traccedilam o limite da gramaacutetica dos conceitos

mentais

b) assimetria pronominais de primeira e terceira pessoa como elementos

pragmaacuteticos que explicam a diferenccedila entre o interno e o externo como jogos

de linguagem entre auto e heacutetero descriccedilotildees ou expressotildees caracteriacutesticas de

exteriorizaccedilotildees (primeira pessoa) e afirmaccedilotildees sobre dimensotildees mentais de

outrem (terceira pessoa) diluindo o problema das outras mentes no formato

mentalista Assim interno e externo natildeo satildeo instacircncias metafiacutesicas o externo

natildeo eacute fachada do interno satildeo conceitos que tem um papel fundamental na nossa

imagem de pessoa como um conceito puacuteblico

c) comportamentos caracteriacutesticos associados pragmaticamente como conceitos

mentais

Marcus Joseacute Alves de Souza | 171

Outros aspectos da investigaccedilatildeo de Wittgenstein poderiam ser

levantados e aprofundados mas estes trecircs sumaacuterios elementos apontam

para onde se desenvolve a reflexatildeo do filoacutesofo A proposta aqui foi apenas

apresentar a discussatildeo sobre a plausibilidade da linguagem privada e

apontar elementos da filosofia da mente de Wittgenstein Do mesmo

modo compreender que o argumento contra a linguagem privada eacute de

fundamental importacircncia para o entendimento da filosofia da mente de

Wittgenstein

Referecircncias

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A companion to epistemology 2 ed Oxford Wiley-Blackwell 2010 p 616-621

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NIELSEN K S The evolution of the private language argument Hampshire UK

Ashgate Publishing Company 2007

SCHROEDER S Private language and private experience In GLOCK H-J Wittgenstein

a critical reader Oxford Backwell Publishers 2001 p 174-198

WITTGENSTEIN L Ocasiones filosoacuteficas 1912-1951 Trad Angel Garcia Rodrigues

Madrid Ediciones Caacutetedra 1997

______ Investigaccedilotildees filosoacuteficas Trad Joseacute Carlos Bruni Satildeo Paulo Nova Cultural

1999

10

O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico

Ricardo S Rabenschlag 1

No capiacutetulo que publiquei nesta mesma seacuterie de livros que registram

parte da produccedilatildeo acadecircmica do grupo de pesquisa Linguagem e

Cogniccedilatildeo afirmei que seria inuacutetil tentar extrair uma concepccedilatildeo coerente

de ciecircncia a partir da anaacutelise das principais obras publicadas pelos Novos

Ateus Embora minha convicccedilatildeo a este respeito permaneccedila inalterada natildeo

creio ser inuacutetil a tentativa de identificar os principais equiacutevocos

epistemoloacutegicos que este e outros grupos de autodeclarados pensadores

criacuteticos cometem em sua cruzada contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo

Em sua acepccedilatildeo vulgar ter uma atitude criacutetica significa suspender o

juiacutezo acerca de uma ideia a menos que tenhamos argumentos logicamente

vaacutelidos e bem fundados seja para afirmaacute-la seja para negaacute-la

Compreendido dessa forma o pensamento ou a atitude criacutetica se opotildeem

de um lado ao raciociacutenio falacioso e de outro agrave atitude dogmaacutetica Por

que devemos preferir raciociacutenios vaacutelidos agrave raciociacutenios falaciosos eacute algo que

dispensa maiores explicaccedilotildees Com efeito o proacuteprio conceito de falaacutecia jaacute

conteacutem um elemento pejorativo e o mesmo se daacute em relaccedilatildeo agrave atitude

dogmaacutetica compreendida natildeo apenas como indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave

busca de razotildees para se afirmar ou negar certas ideias mas sobretudo

como recusa em fazecirc-lo mesmo quando a afirmaccedilatildeo ou a negaccedilatildeo destas

ideais entra em flagrante contradiccedilatildeo com aquilo que acreditamos com

base em argumentos vaacutelidos e bem fundados

1 Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Ricardo S Rabenschlag | 173

Mas se eacute assim o que poderia haver de errado com o Pensamento

Criacutetico Como jaacute disse natildeo creio que haja nada de errado com a ideia de que

devemos sempre que possiacutevel suspender nosso juiacutezo antes que tenhamos

boas razotildees quer para negar quer para afirmar algo A ressalva eacute importante

porque no acircmbito praacutetico nem sempre podemos nos dar ao luxo de

suspender nosso juiacutezo sobretudo quando as consequecircncias desta indecisatildeo

satildeo moralmente graves O problema com o Pensamento Criacutetico natildeo diz

respeito a esta atitude criacutetica moderada e sim a um conjunto mais ou menos

bem definido de crenccedilas largamente difundidas por autores que se

identificam como pensadores criacuteticos entre eles os principais

representantes do novo ateiacutesmo2 Neste breve capiacutetulo examinarei uma das

maacuteximas mais populares entre os autoproclamados pensadores criacuteticos3

Qualquer um que jaacute tenha passado dos cinquenta anos e que tenha

amor pela ciecircncia se lembra com carinho das noites em que assistiu pela

primeira vez e ao longo de vaacuterias semanas aos treze capiacutetulos da seacuterie

Cosmos apresentada por Carl Sagan Natildeo foi o primeiro programa do tipo

e nem o melhor segundo muitos criacuteticos4 mas sob um aspecto ele foi

uacutenico pois nenhum outro programa de divulgaccedilatildeo cientiacutefica alcanccedilou uma

audiecircncia tatildeo vasta Seja pela beliacutessima trilha sonora pelos efeitos

especiais inovadores ou pelo carisma do seu apresentador a seacuterie Cosmos

foi um marco na divulgaccedilatildeo cientiacutefica audiovisual

Uma das caracteriacutesticas principais da seacuterie Cosmos posteriormente

publicada em forma de livro com o mesmo tiacutetulo e que teve enorme

sucesso de vendas em todo o mundo eacute que ela natildeo visava apenas

2 Estou me referindo aqui aos Quatro Cavaleiros do Natildeo-Apocalipse Richard Dawkins Christopher Hitchens Daniel Dennett e Sam Harris

3 Esta eacute apenas uma pequena parte de um projeto mais amplo cujos resultados pretendo publicar num livro com o mesmo tiacutetulo do presente capiacutetulo

4 Muitos incluindo o autor deste capiacutetulo consideram a seacuterie A Escalada do Homem apresentada por Jacob Bronowski como sendo superior sobretudo em razatildeo do maior escopo profundidade e interdisciplinaridade

174 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

transmitir a moderna visatildeo cientiacutefica do mundo ela buscava tambeacutem

promover o espiacuterito cientiacutefico moderno que tornara possiacutevel aos cientistas

modernos descobrirem tudo aquilo que Carl Sagan nos apresentava de

maneira tatildeo cativante Em outras palavras uma parte substancial do

programa tinha como foco a proacutepria ciecircncia sua histoacuteria seus meacutetodos e

sobretudo a atitude criacutetica que segundo Carl Sagan estaacute na raiz dessa

inovadora e bem-sucedida maneira de buscar respostas para questotildees

fundamentais como a origem da vida a origem do homem e do pequeno

planeta que ele habita e ateacute mesmo a origem do proacuteprio Universo

Na tentativa de explicar para o grande puacuteblico os traccedilos essenciais da

atitude criacutetica que caracterizaria o pensamento cientiacutefico Carl Sagan fez

uso5 do seguinte aformismo que rapidamente foi adotado pelos

autoproclamados pensadores criacuteticos como um princiacutepio metodoloacutegico

essencial a toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica6

Princiacutepio de Sagan alegaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias

extraordinaacuterias7

Embora muitos educadores e divulgadores da ciecircncia entre eles

vaacuterios cientistas e alguns filoacutesofos interpretem o aforismo tornado ceacutelebre

por Carl Sagan como expressando um princiacutepio metodoloacutegico essencial a

toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica vejamos o que a

Epistemologia da Ciecircncia tem a dizer sobre essa suposta peacuterola do

pensamento criacutetico Nunca eacute demais lembrar que a Epistemologia da

Ciecircncia natildeo eacute uma ciecircncia que investiga a proacutepria ciecircncia como satildeo a

Histoacuteria da Ciecircncia e a Sociologia da Ciecircncia e sim uma disciplina filosoacutefica

que estuda a natureza a origem e os limites do conhecimento cientiacutefico

5 O aforismo eacute provavelmente uma adaptaccedilatildeo de uma frase praticamente idecircntica publicada num artigo de 1978 de autoria do socioacutelogo italiano Marcello Truzzi Com efeito em seu artigo ldquoOn the Extraordinary An Attempt at Clarification ele afirma que an extraordinary claim requires extraordinary proof

6 Uma busca raacutepida no Google Scholar revela que o aforismo na versatildeo tornada ceacutelebre por Sagan eacute usado em mais de 1000 publicaccedilotildees acadecircmicas

7 O aformismo orignal em inglecircs ldquoExtraordinary claims requery extraordinary evidencerdquo pode ser traduzido tambeacutem como ldquoAfirmaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias extraordinaacuteriasrdquo

Ricardo S Rabenschlag | 175

Antes de tudo eacute importante deixar claro que embora Carl Sagan

tenha empregado o aforismo para descartar explicaccedilotildees pseudocientiacuteficas

em momento algum ele afirmou que se tratava de um princiacutepio

metodoloacutegico e nem se deu ao trabalho de explicar seu sentido preciso e

a menos que se faccedila isso o tatildeo celebrado aforismo aparenta ser uma

apenas uma consequecircncia ilegiacutetima do fato psicoloacutegico de que em geral eacute

mais difiacutecil convencer algueacutem da verdade de uma crenccedila que contraria

suas expectativas do que da verdade de uma crenccedila que natildeo se contraria

suas expectativas Poderiacuteamos expressar essa compreensatildeo vulgar e

psicologista do Princiacutecio de Sagan do seguinte modo

Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas

requerem evidecircncias mais robustas

A consequecircncia eacute obviamente ilegiacutetima jaacute que da proposiccedilatildeo que

descreve o fato psicoloacutegico de que tendemos a rejeitar aquilo que contraria

nossas expectativas e a aceitar aquilo a que estamos acostumados natildeo se

segue o princiacutepio metodoloacutegico de que devemos ser mais exigentes em

relaccedilatildeo agraves evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que

contrariam nossas expectativas e menos exigentes em relaccedilatildeo agraves

evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que natildeo contrariam

nossas expectativas Mais importante que isso esta interpretaccedilatildeo

independentemente da sua origem natildeo eacute aceitaacutevel uma vez que se de fato

estamos naturalmente precavidos em relaccedilatildeo agraves alegaccedilotildees que

consideramos extraordinaacuterias nesse sentido psicoloacutegico do termo

ldquoextraordinaacuteriordquo o mais correto do ponto de vista metodoloacutegico seria

requerermos evidecircncias mais robustas justamente em relaccedilatildeo agraves

alegaccedilotildees que natildeo consideramos extraodinaacuterias

Outra possiacutevel leitura psicologista do Princiacutepio de Sagan resultaria de

uma interpretaccedilatildeo em que ambas as ocorrecircncias do termo

ldquoextraordinaacuteriasrdquo teriam a mesma acepccedilatildeo psicoloacutegica caso em que ele

assumiria a seguinte forma

176 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas

requerem evidecircncias igualmente contraacuterias as nossas expectativas

Em primeiro lugar cumpre observar que se o caraacuteter surpreendente

de uma evidecircncia for definido pelos seus efeitos isto eacute pelo caraacuteter

surpreendente daquilo que ela evidencia o aforismo natildeo passa de um

truiacutesmo pois nesse caso qualquer evidecircncia em favor de uma alegaccedilatildeo

que contrariasse nossas expectativas seria por definiccedilatildeo uma evidecircncia

contraacuteria as nossas expectativas Mais importante que isso por natildeo se

tratar de uma trivialidade evidecircncias cientiacuteficas possuem um caraacuteter

peculiar que deriva do fato de que as explicaccedilotildees cientiacuteficas operam por

meio de teorias Em razatildeo dessa dependecircncia muacutetua que existe entre as

teorias cientiacuteficas e as evidecircncias cientiacuteficas uma evidecircncia cientiacutefica

nunca deve ser considerada de modo independente Daiacute que mesmo os

eventos mais corriqueiros e ateacute mesmo banais aos olhos do cientista isto

eacute quando examinados a partir de um refencial teoacuterico particular possam

adquirir um significado surpreendente Lembro ainda hoje do espanto que

senti quando li pela primeira vez sobre o Paradoxo da Noite Escura8 Este

famoso paradoxo trata das implicaccedilotildees cosmoloacutegicas da escuridatildeo

noturna Ao menos para a maioria de noacutes eacute difiacutecil encontrar algo mais

banal do que a escuridatildeo noturna9 e no entanto Johannes Kepler

considerou justamente a escuridatildeo da noite como sendo uma evidecircncia da

finitude espacial do Universo

Em linhas gerais o raciociacutenio de Kepler foi o seguinte suponha que

as estrelas estejam distribuiacutedas regularmente e que o Universo seja

espacialmente infinito Para um observador em qualquer ponto deste

espaccedilo infinito haacute uma esfera com centro nele cujo volume aumenta com

o quadrado do seu raio Portanto agrave medida que nos dintanciamos deste

observador hipoteacutetico o nuacutemero de estrelas que intercepta o seu raio de

visatildeo cresce com o quadrado da distacircncia Como resultado natildeo importa

8 Tambeacutem conhecido como Paradoxo de Olbers

9 Os Esquimoacutes sabem muito bem que nem toda noite eacute escura

Ricardo S Rabenschlag | 177

para onde ele olhe haveraacute sempre uma estrela interceptando o seu raio de

visatildeo Portanto se nosso Universo fosse espacialmente infinto e estivesse

repleto de estrelas regularmente distribuiacutedas como defendia Giordano

Bruno o ceacuteu noturno deveria ser tatildeo brilhante quanto a superfiacutecie de uma

estrela meacutedia Como isso natildeo ocorre a conclusatildeo do argumento eacute falsa o

que implica que ao menos uma das premissas do argumento eacute igualmente

falsa ou seja ou o Universo eacute espacialmente infinito ou as estrelas natildeo

estatildeo regularmente distribuiacutedas ou ambos Como a distribuiccedilatildeo das

estrelas se mostrava regular Kepler inferiu que o Universo deveria ser

espacialmente finito mostrando que algo tatildeo coriqueiro como a escuridatildeo

da noite pode ser legitimamente tomado como evidecircncia de uma alegaccedilatildeo

absolutamente extraodinaacuteria10

Este eacute apenas um entre muitos exemplos em que eventos ou fatos

nada extraordinaacuterios serviram de evidecircncia para afirmaccedilotildees

extraordinaacuterias o que mostra claramente a inadequaccedilatildeo desta segunda

interpretaccedilatildeo psicoloacutegica do Princiacutepio de Sagan Outro que me traz boas

recordaccedilotildees eacute o do chuvisco que aparecia nos antigos televisores de tubo

quando as emissoras de TV encerravam a sua programaccedilatildeo diaacuteria e que

hoje sabemos ser causado pela Radiaccedilatildeo Coacutesmica de Fundo que teve

origem no Big Bang Em outras palavras uma evidecircncia de que o Universo

teve iniacutecio haacute bilhotildees de anos numa ldquogrande explosatildeordquo estava agrave vista de

todos sem que ningueacutem suspeitasse

Em resumo interpretado psicologicamente o tatildeo celebrado Princiacutepio

de Sagan ou eacute trivial ou deriva de uma concepccedilatildeo profundamente

equivocada acerca da natureza do conhecimento cientiacutefico moderno Em

ambos os casos o Princiacutepio de Sagan natildeo deve ser considerado vaacutelido e

seu uso como guia para a investigaccedilatildeo cientiacutefica tem consequecircncias

desastrosas para ciecircncia

10 A soluccedilatildeo atualmente aceita para o paradoxo eacute diferente daquela proposta por Kepler Atualmente o paradoxo eacute resolvido com base em duas descobertas a) que o Universo tem uma idade finita e b) a luz tem uma velocidade finita a luz das estrelas mais distantes ainda natildeo teve tempo de chegar ateacute noacutes Portanto o Universo que enxergamos eacute limitado no espaccedilo por ser finito no tempo A escuridatildeo da noite eacute uma prova de que o Universo teve um iniacutecio

178 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Mas natildeo haveria alguma interpretaccedilatildeo ao mesmo tempo natildeo trivial e

natildeo psicologista do Princiacutepio de Sagan No intuito de nos livrarmos de

uma leitura pscicologista da formulaccedilatildeo tornada ceacutelebre por Carl Sagan

poderiacuteamos reformular o Princiacutepio de Sagan como expressando a ideia de

que deve haver uma proporcionalidade entre a forccedila das nossas alegaccedilotildees

e a forccedila das evidecircncias que apresentamos em favor delas Uma maneira

de expressar isso poderia ser a seguinte

Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees extraordinariamente fortes requerem

evidecircncias extraordinariamente fortes

Com base nessa reinterpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan poder-se-ia

alegar por exemplo que acreditar na existecircncia de discos voadores com

base apenas no fato de que algueacutem afirma ter visto um disco voador seria

uma violaccedilatildeo do princiacutepio jaacute que a forccedila da alegaccedilatildeo medida pelo impacto

que ela tem sobre o conhecimento cientiacutefico exigiria evidecircncias mais

robustas como por exemplo a exibiccedilatildeo dos destroccedilos do disco voador que

a pessoa alega ter visto e natildeo o simples relato de uma testemunha

afirmando ter visto um disco metaacutelico voando em baixa altitude No

primeiro caso tudo o que temos eacute o relato do avistamento de um OVNI

(Objeto Voador Natildeo Indentificado) no segundo temos uma evidecircncia

material a saber o proacuteprio objeto avistado o que nos permite uma

avaliccedilatildeo direta e possiacutevel identificaccedilatildeo do objeto que iraacute ou natildeo confirmar

a afirmaccedilatildeo de que o objeto avistado era uma nave alieniacutegena O mais

provaacutevel eacute que a pilha de destroccedilos por mais extraordinaacuteria que pareccedila

aos olhos de um leigo seja imediatamente reconhecida por um especialista

como sendo os restos de um balatildeo meteoroloacutegico ou algum outro aparato

tecnoloacutegico humano como de fato aconteceu no famoso incidente ocorrido

em Roswell Novo Meacutexico em 1947

Mas seraacute que esta reformulaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan tem o mesmo

sentido que os autoproclamados pensadores criacuteticos conferem a sua

Ricardo S Rabenschlag | 179

formulaccedilatildeo original E ainda que a aceitemos como uma traduccedilatildeo razoaacutevel

do Princiacutepio de Sagan o sentido da expressatildeo ldquoextraordinariamete fortesrdquo

que aparece nas expressotildees ldquoalegaccedilotildees extraordinariamente fortesrdquo e

ldquoevidecircncias extraordinariamente fortesrdquo eacute o mesmo em ambos os casos E

ainda que se diga que elas tecircm o mesmo sentido eacute mesmo verdadeiro que

toda alegaccedilatildeo que tem grande impacto em nossa atual visatildeo cientiacutefica do

mundo requer evidecircncias igualmente extraordinaacuterias Natildeo poderia haver

evidecircncias absolutamente conformes agrave visatildeo cientiacutefica do mundo e que natildeo

obstante isso seriam uma soacutelida evidecircncia para alegaccedilotildees extraodinaacuterias

como a finitude espacial do Universo A forccedila de uma evidecircncia eacute medida

pelas suas consequecircncias ou haacute um criteacuterio intriacutenseco como sugere a

comparaccedilatildeo entre evidecircncias testemunhais e materiais Alegaccedilotildees

conformes a nossa visatildeo de mundo podem ser aceitas com base apenas em

testemunhos ao passo que as que contrariam o que acreditamos saber

requerem evidecircncias materiais Nesse uacuteltimo caso que admitimos ser o

mais promissor qual a relevacircncia da forccedila de nossas alegaccedilotildees no que diz

respeito ao tipo de evidecircncia que devemos exigir para aceitaacute-la

Uma vez mais nos vemos em meio a uma dupla confusatildeo De um lado

natildeo temos clareza sobre o significado do enunciado do princiacutepio de outro

natildeo temos uma concepccedilatildeo clara sobre e natureza do conhecimneto

cientiacutefico Visando sanar estes problemas poderiacuteamos interpretar a ideia de

forccedila de uma alegaccedilatildeo ou de uma evidecircncia como uma referecircncia agravequilo que

poderiacuteamos chamar de estatuto epistecircmico de uma proposiccedilatildeo definido

como o grau de confiabilidade de uma proposiccedilatildeo Assim compreendido o

Princiacutepio de Sagan seria um corolaacuterio da ideia de que o estatuto epistecircmico

das premissas de um argumento deve ser igual ao estatuto epistecircmico da

sua conclusatildeo e poderia ser enunciado do seguinte modo

Interpretaccedilatildeo espistecircmica alegaccedilotildees com alto grau de confiabilidade

requerem evidecircncias com alto grau de confiabilidade

Reneacute Descartes certamente concordaria com essa interpretaccedilatildeo do

Princiacutepio de Sagan afinal toda sua filosofia estaacute baseada na ideia de que

180 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

somente evidecircncias indubitaacuteveis podem servir de base para afirmaccedilotildees

indubitaacuteveis11 Natildeo foi outra a razatildeo que o levou numa das passagens mais

memoraacuteveis da histoacuteria da filosofia12 a apresentar o Cogito como a uacutenica

saiacuteda para o que ele chamou de duacutevida hiperboacutelica e tomaacute-lo como o uacutenico

fundamento aceitaacutevel para a filosofia Ainda que Descartes esteja longe de

ser um iacutecone dos ldquopensadores criacuteticosrdquo um projeto fundacionista anaacutelogo

ao cartesiano estaacute na raiz do Positivismo Loacutegico uma das fontes de

inspiraccedilatildeo da grande maioria dos autoproclamados pensadores criacuteticos

Rudolf Carnap o maior expoente desta corrente neopositivista buscou

ancorar todo o conhecimento humano no que ele chamou de enunciados

protocolares descritos por ele como sendo registros em primeira pessoa

de dados sensiacuteveis elementares (sense data) que estariam na base de toda

a experiecircncia humana

O problema com essa interpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan eacute que

embora a nova formulaccedilatildeo do princiacutepio seja mais promissora ela

obviamnete natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo plausiacutevel do Princiacutepio de Sagan jaacute

que o grau de confiabilidade de alegaccedilotildees extraordinaacuterias natildeo eacute alto e sim

extremamente baixo daiacute que a maioria de noacutes esteja naturalmente

precavido contra elas

Uma terceira interpretaccedilatildeo epistecircmica do Princiacutepio de Sagan resulta

de uma leitura indutivista humeana da ideia de estatuto epistecircmico de uma

proposiccedilatildeo A ciecircncia segundo David Hume eacute um empreendimento

essencialmente indutivo e provisoacuterio e sua grandeza reside precisamente

no fato de que a ciecircncia natildeo busca verdades absolutas Do fato de que todo

conhecimento eacute provisoacuterio e por conseguinte dubitaacutevel natildeo se segue

contudo que nossas crenccedilas tenham todas elas o mesmo grau de

confiabilidade Obviamente uma afirmaccedilatildeo que jaacute tenha sido refutada natildeo

eacute nem um pouco confiaacutevel Mas o que dizer das que ainda natildeo foram

refutadas Segundo David Hume o grau de confiabilidade de uma crenccedila

11 No caso do coacutegito a proacutepria afirmaccedilatildeo ou mais precisamente o pensamento que ela expressa eacute evidecircncia da sua veracidade

12 Iniacutecio da Segunda Meditaccedilatildeo das Meditaccedilotildees Metafiacutesicas de Reneacute Descartes

Ricardo S Rabenschlag | 181

eacute proporcional ao nuacutemero de vezes em que ela foi experimentalmente

confirmada Seguindo essa linha de raciociacutenio poder-se-ia interpretar o

Princiacutepio de Sagan como a recomendaccedilatildeo de que afirmaccedilotildees que

contrariem crenccedilas que tenham sobrevivido a inuacutemeras e variadas

tentativas de refutaccedilatildeo e que satildeo nesse sentido extraordinaacuterias devam

ser igualmente submetidas a um longo e variado processo de testes

acumulando assim uma quantidade igualmente extraordinaacuteria de

evidecircncias em seu favor antes de serem consideradas mais confiaacuteveis que

agraves antigas crenccedilas que elas pretendem substituir

Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees que contrariam crenccedilas

corroboradas por uma extraordinaacuteria quantidade de evidecircncias requerem um

nuacutemero igualmente extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis

A longa disputa entre os sistemas ptolomaico e copernicano que

marca o iniacutecio da ciecircncia moderna eacute um bom exemplo de como devemos

ser cautelosos em relaccedilatildeo a afirmaccedilotildees extraordinaacuterias como por

exemplo a afirmaccedilatildeo de que a Terra natildeo estaacute parada no centro do

Universo e sim girando em uma grande velocidade em torno do Sol Tenho

certeza de que a maioria dos Novos Ateus endossaria aliviado esta leitura

indutivista do Princiacutepio de Saganrdquo e natildeo ficaria de modo algum surpreso

se Richard Dawkins acrescentasse de forma desdenhosa a observaccedilatildeo de

que era exatamente isso que ele estava querendo dizer o tempo todo

embora nunca o tivesse feito por achar oacutebvio demais Infelizmente as

coisas natildeo satildeo tatildeo simples quanto parecem a um leigo em Espistemologia

da Ciecircncia como Richard Dawkins Em primeiro lugar mesmo nos casos

mais promissores como o da disputa entre geocentrismo e

heliocentrismo a interpretaccedilatildeo mencionada acima apresenta seacuterios

problemas jaacute que o que pocircs fim a disputa em favor do heliocentrismo natildeo

foi um nuacutemero extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis e sim a criaccedilatildeo da

primeira teoria fiacutesica moderna capaz de explicar de maneira unificada

fenocircmenos corriqueiros como o movimento dos corpos terrestres e o

movimento dos corpos celestes

182 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Uma vez mais o problema aqui eacute o de como evitar a confusatildeo entre

o loacutegico e o psicoloacutegico Natildeo resta duacutevida de que a repeticcedilatildeo de uma mesma

ocorrecircncia aumente nossa confianccedila em relaccedilatildeo ao enunciado universal

que a descreve a questatildeo contudo eacute saber se ela aumenta o nosso

conhecimento e natildeo as nossas expectativas Eacute provaacutevel que um iacutempeto

indutivista esteja na base de parte importante do apoio ao Princiacutepio de

Sagan embora natildeo devamos esquecer que boa parte dos seus apoiadores

em especial os autoproclamados pensadores criacuteticos tem imensa adoraccedilatildeo

pelo racionalismo popperiano e que Karl Popper considerava ilegiacutetima

qualquer tentativa de justificar indutivamente uma crenccedila De qualquer

modo tanto o fundacionismo como o indutivismo satildeo extremamente

problemaacuteticos razatildeo pela qual foram haacute muito tempo descartados e natildeo

haacute hoje muitos especialistas que defendam quer a ideia de um fundamento

inabalaacutevel para as ciecircncias quer a ideia de uma loacutegica indutiva

Pode-se contra-argumentar dizendo que natildeo haacute verdades ou

conhecimento em sentido absoluto que natildeo haacute um mundo ou uma realidade

independente do sujeito que tudo eacute relativo provisoacuterio e incerto e que

portanto uma loacutegica indutiva eacute tatildeo boa quanto uma dedutiva Mas

obviamente que se adotarmos esta estrateacutegia de defesa o problema assume

uma feiccedilatildeo ainda mais sombria pois a menos que ser possa conciliar esta

concepccedilatildeo relativista com a objetividade cientiacutefica natildeo haacute como evitar que o

ceticismo moderado que caracteriza a atitude cientiacutefica se transforme num

ceticismo radical e portanto numa nova e poderosa forma de irracionalismo

Se o Princiacutepio de Sagan eacute assim tatildeo inadequado por que ele eacute

considerado por muitos como uma das regras de ouro do pensamento

criacutetico Como dissemos anteriormente o enunciado do princiacutepio eacute vago

deliberadamente vago a ponto de comportar interpretaccedilotildees muito diferentes

e ateacute mesmo antagocircnicas o que certamente contribui para o seu sucesso Haacute

contudo uma outra razatildeo que julgamos ser ainda mais importante a saber

Ricardo S Rabenschlag | 183

que ele natildeo eacute uma ferramenta cientiacutefica e sim ideoloacutegica Ele natildeo eacute utilizado

por cientistas em suas investigaccedilotildees e sim por ativistas que podem ou natildeo

ser cientistas em sua luta contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo

O combate agraves pseudociecircncias eacute um combate justo e necessaacuterio e a

atitude criacutetica tem um papel fundamental nesse processo natildeo temos

duacutevida quanto a isso Nossa criacutetica natildeo busca desencorajar o combate agraves

pseudociecircncias ela busca apenas mostrar por um lado que a ciecircncia natildeo

estaacute inume ao irriacionalismo e por outro que o irracionalismo na ciecircncia

se manifesta sob a forma de pseudofilosofias e natildeo de pseudociecircncias

Evidentemente esta natildeo eacute uma tarefa faacutecil e este pequeno capiacutetulo natildeo

esgota de forma alguma o assunto Ainda assim espero que esta breve

criacutetica do tatildeo aclamado Princiacutepio de Sagan tenha despertado a atenccedilatildeo dos

leitores para a importacircncia de uma criacutetica do Pensamento Criacutetico13

Referecircncias

CARNAP R The Logical Structure of the World Open Court New York 2003

DAWKINS R The God Delusion Transworld Pub London 2016

DENNETT D Breaking the Spell Penguim London 2007

DESCARTES R Meacuteditations Meacutetaphysiques Nabu Press Paris 2014

HARRIS S The End of Faith WW Norton London 2005

HITCHENS C God Is Not Great Atlantic Books London 2008

HUME D On Miracles Open Court London 1985

POPPER K Conjectures and Refutations Routledge New York 2002

SAGAN C Cosmos Ballantine Books New York 2013

13 Talvez seja o caso de cunharmos a expressatildeo ldquoNovo Pensamento Criacuteticordquo a exemplo do que se fez em relaccedilatildeo aos Novos Ateus seja para reforccedilar o viacutenculo entre as duas correntes seja para diferenciar este Novo Pensamento Criacutetico da Filosofia Criacutetica de Kant No presente texto optamos por usar a expressatildeo empregada na literatura existente

11

A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo

Sagid Salles 1

Introduccedilatildeo

Haacute pelo menos duas coisas que tornam o fenocircmeno da vagueza

interessante Primeiro a vagueza estaacute espalhada por toda a linguagem

natural Uma parte significativa das expressotildees de nossa linguagem satildeo

vagas e podemos encontrar a vagueza em expressotildees de diferentes

categorias loacutegicas como termos singulares predicados e quantificadores

Por razotildees de simplicidade contudo ao longo deste artigo considero

apenas o caso dos predicados vagos Segundo o fenocircmeno da vagueza estaacute

por traacutes de um difiacutecil paradoxo conhecido como Paradoxo Sorites

Atualmente haacute muitas tentativas de explicar esse fenocircmeno e resolver o

Sorites sendo uma delas a Teoria Trivalente da Vagueza Essa teoria eacute

interessante natildeo apenas porque fornece uma explicaccedilatildeo elegante da

vagueza acompanhada de uma soluccedilatildeo engenhosa para o paradoxo em

questatildeo mas tambeacutem porque serve de base para a compreensatildeo de outras

teorias claacutessicas da vagueza Tanto o Gradualismo como o

Supervalorativismo por exemplo incorporam parte significativa de suas

ideias centrais A despeito disso existem alguns seacuterios obstaacuteculos para a

Teoria Trivalente Acredito que o principal deles eacute que ela falha em

satisfazer pelo menos um dos trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria

1 Sagid Salles eacute graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto Mestre e Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da UFRJ com sanduiacuteche realizado em University of Miami Atualmente eacute professor substituto de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (E-mail sagidsallesgmailcom)

Sagid Salles | 185

ideal da vagueza o criteacuterio da precisatildeo Meu objetivo eacute apresentar essa

teoria e mostrar como essa dificuldade surge para ela

O artigo seraacute dividido em quatro seccedilotildees Na primeira apresento o

problema da vagueza ressaltando os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma

teoria ideal o criteacuterio do Sorites o criteacuterio da coerecircncia e o criteacuterio da

precisatildeo Na segunda e terceira apresento respectivamente os aspectos

centrais da Teoria Trivalente e uma das soluccedilotildees da mesma para o Sorites

Por fim defendo que apesar de satisfazer os dois primeiros criteacuterios de

adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente falha com respeito ao criteacuterio da precisatildeo

Vagueza Sorites e os Trecircs Criteacuterios de Adequaccedilatildeo

A palavra ldquovaguezardquo eacute usada cotidianamente em diferentes sentidos

mas o interesse filosoacutefico pela vagueza eacute direcionado a um fenocircmeno

especiacutefico O que mais chama a atenccedilatildeo sobre esse fenocircmeno eacute que ele estaacute

por traacutes do que eacute conhecido como Paradoxo Sorites Esse paradoxo foi

descoberto por Eubulides de Mileto ainda no seacuteculo IV ac mas eacute

argumentaacutevel que somente recentemente (talvez nos uacuteltimos 60 ou 70

anos) ele venha recebendo a atenccedilatildeo que merece Aliaacutes atualmente existe

uma grande variedade de versotildees diferentes do paradoxo (HYDE 2011)

uma delas a versatildeo quantificada seraacute apresentada a seguir

Seja ldquoCrdquo o predicado ldquocarecardquo ldquoardquo um nome arbitraacuterio de pessoas e

deixe os nuacutemeros na direita inferior indicarem o nuacutemero de cabelos que a

tem na cabeccedila Nesse contexto a versatildeo quantificada do Sorites para

ldquocarecardquo pode ser formulada como segue

(SC)

(1) Ca0

(2) foralln (CanrarrCan+1)

_______________

(3) Ca10000

186 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

(SC) parte da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa

com 0 fios de cabelo na cabeccedila eacute careca para a conclusatildeo claramente falsa

de que uma pessoa com 10000 fios de cabelo na cabeccedila tambeacutem eacute careca

A conclusatildeo (3) se segue de (1) e (2) por repetidas aplicaccedilotildees de

Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens

Agora repare que podemos facilmente formular o Sorites na direccedilatildeo

inversa partindo da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa

com 10000 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca para a conclusatildeo

claramente falsa de que uma pessoa com 0 fios tambeacutem natildeo eacute careca

(notSC)

(1) notCa10000

(2)foralln (notCan+1rarrnotCan)

______________

(3) notCa0

A conclusatildeo de (notSC) tambeacutem eacute obtida por repetidas aplicaccedilotildees de

Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens Enquanto argumentos como (SC)

nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute careca argumentos como

(notSC) nos permite mostrar que cada indiviacuteduo natildeo eacute careca Se tomadas

em conjunto os argumentos nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute

careca e natildeo eacute careca ao mesmo tempo Resultado o predicado ldquocarecardquo eacute

incoerente Se isso jaacute nos parece absurdo a coisa fica muito pior quando

lembramos que o mesmo paradoxo pode ser formulado para muitos

outros predicados ldquoaltordquo ldquobaixordquo ldquoricordquo ldquopobrerdquo ldquovivordquo ldquomortordquo

ldquoraacutepidordquo ldquolentordquo ldquomonterdquo etc Em uacuteltima instacircncia aceitar a conclusatildeo

do Sorites implicaria em aceitar que cada um desses predicados eacute

incoerente

A premissa (1) de cada argumento acima eacute claramente verdadeira

enquanto a conclusatildeo se segue de (1) e (2) por regras de inferecircncia que

Sagid Salles | 187

natildeo gostariacuteamos de rejeitar Isso torna (2) a premissa quantificada na

principal suspeita Nesse contexto algueacutem poderia pensar que a soluccedilatildeo

do paradoxo reside na simples negaccedilatildeo da premissa (2) Infelizmente essa

estrateacutegia eacute mais difiacutecil do que parece Suponhamos por exemplo que a

premissa quantificada de (SC) eacute falsa Se esse eacute o caso entatildeo eacute verdade que

notforalln (CanrarrCan+1) Isso eacute logicamente equivalente a Ǝn (Can˄notCan+1) que

diz que haacute um nuacutemero natural n tal que a com n fios de cabelo na cabeccedila

eacute careca e a com n+1 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca O problema eacute

que esse resultado eacute difiacutecil de engolir Para qualquer valor que se atribua a

n a suposiccedilatildeo de que uma pessoa com n fios de cabelo eacute careca e uma

pessoa com n+1 natildeo eacute careca pareceraacute altamente contraintuitiva

O ponto fica mais claro se pensarmos em termos de sequecircncias

Imagine uma sequecircncia como segue

lta0 a1 a2 a5000 a5001 a9998 a9999 a10000gt

Intuitivamente o predicado ldquocarecardquo se aplica a a0 a1 a2 etc e natildeo se

aplica a a10000 a9999 a9998 etc Entretanto natildeo haacute um uacuteltimo caso na

sequecircncia ao qual ldquocarecardquo se aplica seguido por um primeiro caso ao qual

o predicado natildeo se aplica nenhuma linha divisoacuteria eacute traccedilada Se

simplesmente negarmos a premissa quantificada aceitando que Ǝn

(Can˄notCan+1) teremos de assumir que o predicado ldquocarecardquo estabelece

uma linha divisoacuteria desse tipo2 Isso implicaria que ldquocarecardquo eacute um

predicado preciso e portanto natildeo vago O mesmo vale para todos os

predicados vagos Na verdade ser vago e ser preciso satildeo propriedades

incompatiacuteveis de modo que nenhuma expressatildeo linguiacutestica pode ser vaga

e precisa ao mesmo tempo

2 Iago Bozza chamou minha atenccedilatildeo para o fato de que aceitar que Ǝn (CanʌnotCan+1) natildeo implica que haja um par de itens na sequecircncia que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo careca e o primeiro natildeo careca Considere uma analogia com caso dos nuacutemeros naturais Todos podemos aceitar que existe um nuacutemero n tal que n eacute iacutempar e n+1 natildeo eacute iacutempar Disso natildeo se segue que haacute um par de itens adjacentes na sequecircncia dos nuacutemeros naturais que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo iacutempar e o primeiro natildeo iacutempar da mesma Quando falamos que tal divisatildeo entre os carecas e os natildeo carecas se segue de Ǝn (CanʌnotCan+1) estamos adicionalmente assumindo que certas restriccedilotildees oacutebvias para a aplicaccedilatildeo do predicado ldquocarecardquo estatildeo em jogo Sobre tais restriccedilotildees veja-se GraffFara (2000 p 57)

188 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Por fim repare que essa breve apresentaccedilatildeo do Paradoxo Sorites nos

sugere trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria ideal da vagueza Satildeo

eles

a) O criteacuterio do Sorites resolver o Paradoxo Sorites

b) O criteacuterio da coerecircncia natildeo implicar que predicados vagos satildeo incoerentes

c) O criteacuterio da precisatildeo natildeo implicar que predicados vagos satildeo precisos

Ao alegar que (a)-(c) satildeo trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria

ideal da vagueza quero dizer que a falha em satisfazer algum deles deve

ser interpretado como um defeito para qualquer teoria da vagueza Noacutes

queremos uma teoria da vagueza que explique os predicados vagos de

forma a resolver o Sorites mas sem implicar que eles satildeo incoerentes ou

precisos (Uma defesa desses criteacuterios pode ser encontrada em Salles

2016) Eacute dentro desse pano de fundo que a Teoria Trivalente seraacute avaliada

Teoria Trivalente da Vagueza

Por ldquoTeoria Trivalente da Vaguezardquo entendo uma famiacutelia de teorias

que explicam a vagueza em termos de um terceiro valor de verdade ou

uma lacuna entre os dois valores claacutessicos verdadeiro e falso Apesar de

requererem uma loacutegica trivalente nem toda teoria da vagueza que faz uso

dessa loacutegica eacute uma instacircncia da Teoria Trivalente da Vagueza O traccedilo

distintivo dessas teorias eacute colocar o terceiro valorlacuna no centro da

explicaccedilatildeo das expressotildees vagas

A motivaccedilatildeo de base para essa teoria eacute a intuiccedilatildeo dos casos de

fronteira os predicados vagos admitem casos de fronteira casos a respeito

dos quais sua aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara A existecircncia desses casos serve como

um indiacutecio a favor da Teoria Trivalente Considere a frase (1)

Sagid Salles | 189

1 Joatildeo eacute careca

Se Joatildeo tem 0 fios de cabelo em sua cabeccedila entatildeo (1) expressa uma

proposiccedilatildeo verdadeira se Joatildeo tem todo o couro cabeludo coberto por

cabelo entatildeo (1) expressa uma proposiccedilatildeo falsa Mas o que dizer do caso

em que ele tem 85 do couro cabeludo coberto por cabelo (se quiser

pense em uma porcentagem que ache mais favoraacutevel ao exemplo)

Intuitivamente seria incorreto dizer que (1) eacute verdadeira nesse caso assim

como seria incorreto dizer que eacute falsa Uma explicaccedilatildeo para isso eacute que de

fato natildeo eacute verdadeira e de fato natildeo eacute falsa (1) eacute nem verdadeira nem falsa

ou como prefere Tye (1994) indefinida

Haacute duas interpretaccedilotildees de indefinido Pode-se interpretaacute-lo como um

terceiro valor de verdade ou como uma lacuna entre o verdadeiro e o falso

A vantagem de interpretaacute-lo como um terceiro valor eacute que fica mais faacutecil

explicar como (1) pode expressar uma proposiccedilatildeo Afinal proposiccedilotildees satildeo

tradicionalmente concebidas como os portadores dos valores de verdade

Por outro lado ficamos com o difiacutecil problema metafiacutesico de explicar o que

eacute esse terceiro valor o indefinido A vantagem da concepccedilatildeo da lacuna eacute

que natildeo carrega esse problema metafiacutesico pois natildeo aceita um terceiro

valor de verdade A desvantagem eacute que natildeo eacute claro como (1) nesse caso

poderia expressar uma proposiccedilatildeo Tanto quanto for possiacutevel manter-me-

ei neutro quanto ao ponto Para simplificar vou falar em uma frase sendo

indefinida e o leitor pode interpretar isso como significando que expressa

uma proposiccedilatildeo com o valor indefinido ou que falha em expressar uma

proposiccedilatildeo

A pergunta mais importante eacute como o apelo a frases indefinidas nos

leva a uma teoria dos predicados vagos A resposta se revela ao olharmos

para as expressotildees que constituem a frase Tradicionalmente entende-se

que uma frase como (1) eacute verdadeira se o objeto referido por ldquoJoatildeordquo

pertence ao conjunto de coisas selecionado pelo predicado ldquoeacute careca e

falsa de outro modo Nessa imagem o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de um

predicado pode ser dividido em duas partes (i) as coisas agraves quais o

190 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

predicado se aplica a sua extensatildeo positiva (ii) as coisas agraves quais o

predicado natildeo se aplica a sua extensatildeo negativa Cada elemento do

domiacutenio pertenceraacute a um ou a outro Se Joatildeo for um elemento da extensatildeo

positiva de ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute verdadeira se for um elemento da

extensatildeo negativa entatildeo eacute falsa natildeo haacute outra opccedilatildeo De acordo com a

Teoria Trivalente os predicados vagos natildeo se encaixam nessa imagem

O problema eacute que os predicados vagos natildeo dividem o seu domiacutenio em

duas partes Eacute verdade que eles tecircm uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo

negativa Mas fosse essa toda a histoacuteria cada frase como (1) seria

verdadeira ou falsa natildeo havendo espaccedilo para o nem verdadeiro nem falso

ou indefinido Para aleacutem da extensatildeo positiva e a extensatildeo negativa de um

predicado vago existe tambeacutem o que eacute chamado de ldquopenumbrardquo A

penumbra eacute formada pelos casos fronteira do predicado aqueles com

relaccedilatildeo aos quais a aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara Se Joatildeo estaacute na penumbra de

ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute indefinida ou nem verdadeira nem falsa

Pode haver divergecircncia sobre se a explicaccedilatildeo para o fato de que os

predicados vagos admitem penumbra eacute linguiacutestica ou metafiacutesica Tye

assume uma concepccedilatildeo metafiacutesica De acordo com ele satildeo os proacuteprios

conjuntos que satildeo vagos e os predicados satildeo vagos apenas porque os

conjuntos satildeo Nesse sentido o conjunto dos carecas eacute tal que para

algumas pessoas eacute indefinido se elas satildeo ou natildeo elementos do conjunto

(TYE 1994 p 195) Tye gosta de expressar isso dizendo que natildeo haacute uma

questatildeo de fato sobre se essas pessoas satildeo ou natildeo elementos do conjunto

dos carecas Predicados vagos satildeo vagos apenas porque satildeo associados a

conjuntos vagos Haacute tambeacutem aqueles que preferem uma explicaccedilatildeo

linguiacutestica para a penumbra Concepccedilotildees linguiacutesticas geralmente se datildeo

em termos das condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo do predicado Pode-se sustentar que

um predicado admite penumbra devido a alguma caracteriacutestica nas suas

condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo De acordo com Soames (1999 p 163) ndash que no

entanto natildeo defende a Teoria Trivalente da Vagueza ndash os predicados que

admitem penumbra tecircm condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida e

condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida Essas condiccedilotildees satildeo mutuamente

Sagid Salles | 191

exclusivas mas natildeo conjuntamente exaustivas Como as condiccedilotildees satildeo

mutuamente exclusivas se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-

sucedida de ldquocarecardquo entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-

sucedida e se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida

entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida Como natildeo

satildeo conjuntamente exaustivas haacute casos que nem satisfazem as condiccedilotildees

de aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem satisfazem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo

mal-sucedida os casos indefinidos Para criacuteticas agrave proacutepria ideia de um

terceiro valorlacuna veja-se Glanzberg (2009) Para os nossos

propoacutesitos contudo natildeo precisamos ir aleacutem do que jaacute fomos

Em resumo os predicados vagos natildeo cortam seu domiacutenio de

aplicaccedilatildeo apenas em uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo negativa Eles

tambeacutem admitem uma penumbra formada pelos casos fronteira do

predicado Eacute isso que explica o suposto fato de algumas frases contendo

predicados vagos serem nem verdadeiras nem falsas Quando a estaacute na

penumbra de ldquoFrdquo ldquoFardquo eacute indefinida A Teoria Trivalente assume que a

propriedade caracteriacutestica dos predicados vagos eacute encaixar-se na descriccedilatildeo

acima

Teoria Trivalente e a Soluccedilatildeo do Sorites

O modo como a Teoria Trivalente da Vagueza resolve o Paradoxo

Sorites depende dos detalhes de cada versatildeo Mais especificamente

depende do tratamento dado aos conectivosquantificadores e da

concepccedilatildeo de validade adotada A introduccedilatildeo de um terceiro valor ndash ou de

uma lacuna entre os dois valores claacutessicos ndash implica na necessidade de

reformular algumas definiccedilotildees Pode-se adotar uma concepccedilatildeo de validade

que nos permita rejeitar a validade do argumento Sorites mas a soluccedilatildeo

mais simples eacute manter a validade como preservaccedilatildeo de verdade e rejeitar

alguma premissa (KEEFE 2000 p104 e 107) Isto pode ser feito olhando

apenas para os conectivos e quantificadores Existem diferentes

interpretaccedilotildees dos conectivos Primeiro podem ser interpretados

192 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

verofuncionalmente (TYE 1994) ou natildeo verofuncionalmente (RICHARD

2009) Segundo mesmo que adotemos uma das duas haveraacute divergecircncia

sobre qual seraacute a interpretaccedilatildeo correta de cada um Natildeo vou entrar em

qualquer discussatildeo deste tipo aqui No que segue assumo a interpretaccedilatildeo

verofuncional de Tye e apresento a sua soluccedilatildeo do paradoxo

Tye (1994 p 194) adota uma das interpretaccedilotildees propostas por Kleene

(1952 p 332-340) dos conectivos

Natildeo eacute difiacutecil ver a motivaccedilatildeo por traacutes de cada tabela escolhida

Quando as frases componentes da frase mais complexa possuem apenas

valores claacutessicos os conectivos funcionam precisamente como funcionam

na leitura claacutessica ndash esse eacute o chamado ldquorequisito de normalidaderdquo (KEEFE

2000 p 86 MACHINA 1976 p 55) Assim as diferenccedilas relevantes

ocorrem apenas quando uma das frases componentes eacute indefinida

A negaccedilatildeo de uma frase indefinida A eacute ela mesma indefinida Por um

lado se notA fosse verdadeira entatildeo A seria falsa e consequentemente natildeo

seria indefinida Por outro lado se notA fosse falsa entatildeo A seria verdadeira

e portanto natildeo seria indefinida Para que uma disjunccedilatildeo seja verdadeira

A B notA AvB A˄B ArarrB

V V F V V V

V I F V I I

V F F V F F

I V I V I V

I I I I I I

I F I I F I

F V V V F V

F I V I F V

F F V F F V

Sagid Salles | 193

basta que uma disjunta seja verdadeira e para que seja falsa basta que

todas as disjuntas sejam falsas Nos outros casos a disjunccedilatildeo eacute indefinida

Uma conjunccedilatildeo eacute verdadeira se todas conjuntas satildeo verdadeiras falsa se

pelo menos uma conjunta eacute falsa e indefinida nos outros casos A

condicional eacute como se espera um caso problemaacutetico A uacutenica motivaccedilatildeo

notada por Tye eacute que ArarrB deve ser equivalente a notAvB Por fim AharrB

pode ser definido como (ArarrB) ˄ (BrarrA)

O quantificador existencial eacute definido como segue ƎxFx eacute verdadeiro

se tem uma instacircncia verdadeira falsa se todas as suas instacircncias satildeo

falsas e indefinida nos outros casos A intuiccedilatildeo por traacutes da definiccedilatildeo eacute que

uma afirmaccedilatildeo existencial seraacute indefinida quando nenhuma instacircncia for

verdadeira e pelo menos algumas forem indefinitas o mesmo que

ocorreria com a disjunccedilatildeo de todas as instacircncias Fa1vFa2vFa3v Fan O

quantificador universal eacute definido como segue forallxFx eacute verdadeira se todas

as suas instacircncias satildeo verdadeiras falsa se alguma instacircncia eacute falsa e

indefinida nos outros casos A ideia aqui eacute que uma afirmaccedilatildeo universal eacute

indefinida apenas quando nenhuma instacircncia eacute falsa e algumas satildeo

indefinidas o mesmo que ocorreria com a conjunccedilatildeo de todas as instacircncias

Fa1˄Fa2˄Fa3˄Fan

Essa leitura dos conectivos nos leva a alguns resultados

contraintuitivos quanto ao valor de verdade de certas frases Por exemplo

intuitivamente toda frase da forma A˄notA eacute falsa e toda frase da forma

AvnotA eacute verdadeira mas na leitura de Tye ambas as intuiccedilotildees estatildeo

erradas Quando A eacute indefinido tanto A˄notA quanto AvnotA seratildeo

indefinidos Tudo que Tye (1994 p 194) consegue reter de nossas

intuiccedilotildees eacute que nenhuma frase da primeira forma seraacute verdadeira (trata-

se de uma quase-contradiccedilatildeo) e nenhuma da segunda forma seraacute falsa

(trata-se de uma quase-tautologia) Agora imagine que Joatildeo eacute mais alto do

que Marcos mas ambos estatildeo na penumbra de ldquoaltordquo Nossa intuiccedilatildeo eacute que

a condicional ldquoSe Marcos eacute alto entatildeo Joatildeo eacute altordquo eacute verdadeira Na leitura

de Tye dos conectivos contudo a condicional seraacute indefinida Exemplos

do tipo podem ser multiplicados (KEEFE 2000 p 96-97 SANTOS 2015

194 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

p 5-6) Por fim problemas similares aparecem para diferentes

interpretaccedilotildees verofuncionais dos conectivos (WILLIAMSON 1994 cap

4)

Em todo caso o que nos interessa aqui eacute como Tye resolve o Paradoxo

Sorites A sua soluccedilatildeo consiste em rejeitar a premissa quantificada sem

com isso aceitar a sua negaccedilatildeo Na versatildeo para ldquocarecardquo a premissa

quantificada era foralln (CanrarrCan+1) Nenhuma instacircncia dessa premissa seraacute

falsa de modo que ela proacutepria natildeo seraacute falsa Por outro lado algumas

instacircncias seratildeo indefinidas dado que teratildeo antecedente e consequente

indefinidos Lembre-se de acordo com a Teoria Trivalente o predicado

ldquocarecardquo admite uma penumbra um conjunto de casos aos quais a sua

aplicaccedilatildeo eacute indefinida Eacute plausiacutevel supor que para algum n tanto Can

quanto Can+1 seratildeo indefinidas e nesse caso a condicional CanrarrCan+1 seraacute

tambeacutem indefinida Ora uma afirmaccedilatildeo universal com nenhuma instacircncia

falsa e algumas indefinidas eacute ela mesma indefinida Logo a premissa

quantificada eacute indefinida Assim Tye consegue rejeitar a premissa

quantificada sem precisar assumir que ela seja falsa e portanto sem

precisar aceitar a sua negaccedilatildeo

Teoria Trivalente e o Criteacuterio da Precisatildeo

Vimos que uma teoria ideal da vagueza satisfaria trecircs criteacuterios

resolver o Paradoxo Sorites natildeo implicar que os predicados vagos satildeo

incoerentes e natildeo implicar que eles satildeo precisos Na seccedilatildeo anterior vimos

que a Teoria Trivalente fornece uma resposta ao Sorites Aleacutem disso estaacute

claro que ela natildeo implica que os predicados vagos satildeo incoerentes Seu

principal problema eacute com o criteacuterio da precisatildeo

Na concepccedilatildeo tradicional o domiacutenio de um predicado eacute dividido em

uma extensatildeo positiva e uma negativa e todo objeto do domiacutenio estaacute ou

em uma ou na outra Supondo que o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo seja

o domiacutenio das pessoas cada pessoa ou estaacute na extensatildeo positiva ou estaacute

na extensatildeo negativa de ldquocarecardquo Isso implica que uma sequecircncia para

Sagid Salles | 195

ldquocarecardquo seria dividida de modo a haver um nuacutemero n tal que uma pessoa

com n fios eacute careca e uma pessoa com n+1 natildeo eacute O resultado pode ser

representado como segue

Extensatildeo Positiva Extensatildeo negativa

|a0 a1 a2 a3 an | an+1 an+2hellip an+m|

Verdadeiro Falso

Fica evidente que na concepccedilatildeo acima ldquocarecardquo eacute um predicado

preciso Existe um uacuteltimo caso ao qual ldquocarecardquo se aplica e um primeiro

caso ao qual natildeo se aplica A Teoria Trivalente evita isto por meio da

postulaccedilatildeo de uma penumbra entre a extensatildeo positiva e a negativa O

resultado pode ser representado como segue

Ext Positiva Penumbra Ext negativa

|a0 a1 an | an+1an+m | an+m+1 an+m+k|

Verdadeiro Indefinido Falso

Esta imagem no entanto natildeo evita o problema da anterior Eacute

verdade que a Teoria Trivalente eacute capaz de separar os casos nos quais a

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo gera uma verdade dos casos nos quais ela gera uma

falsidade Existe um uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo na sequecircncia an e

existe um primeiro caso negativo an+m+1 Entre eles contudo haacute um

conjunto de casos nos quais a aplicaccedilatildeo gera o valorlacuna indefinido

Chamemos-lhes de ldquocasos indefinidosrdquo Nada disso evita a consequecircncia

de que predicados vagos satildeo precisos Na imagem acima o predicado

ldquocarecardquo continua cortando a sequecircncia de forma ciruacutergica A uacutenica

diferenccedila relevante eacute que ao inveacutes de haver apenas uma fronteira ndash a

fronteira entre os casos positivos e negativos ndash agora haacute duas fronteiras a

fronteira positivoindefinido e a fronteira indefinidonegativo O item an eacute

o uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo seu vizinho imediato an+1 eacute o primeiro

caso indefinido Portanto haacute uma fronteira precisa entre os casos positivos

e os casos indefinidos de ldquocarecardquo O item an+m eacute o uacuteltimo caso indefinido

e seu vizinho imediato an+m+1 eacute o primeiro negativo Portanto haacute tambeacutem

uma fronteira precisa entre os casos indefinidos e os negativos de ldquocarecardquo

196 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Comeccedilamos com uma fronteira e terminamos com duas Ao inveacutes de

ldquocarecardquo cortar o seu domiacutenio cirurgicamente em um ponto corta em dois

A Teoria Trivalente natildeo satisfaz o criteacuterio da precisatildeo

O resultado acima eacute que a Teoria Trivalente implica que os

predicados vagos satildeo de fato precisos Assumindo a intuiccedilatildeo de que ser

preciso e ser vago satildeo propriedades incompatiacuteveis o resultado eacute que as

expressotildees aparentemente vagas natildeo satildeo realmente vagas Isso ainda nos

deixaria com o que chamei de ldquoproblema fundacional da precisatildeordquo

(SALLES 2016 p 163) Se os predicados vagos satildeo precisos entatildeo como a

sua extensatildeo eacute determinada Essa pergunta eacute ainda mais difiacutecil de ser

respondida pela Teoria Trivalente do que pela concepccedilatildeo tradicional

Afinal agora temos de explicar como cada uma das duas fronteiras de

ldquocarecardquo por exemplo eacute determinada Nossos usos desse predicado seriam

refinados o bastante para estabelecer um corte entre os casos

positivoindefinidos e outro entre os indefinidonegativos de ldquocarecardquo

No que segue considero duas respostas disponiacuteveis ao defensor da

Teoria Trivalente A primeira sustenta que o erro do argumento acima eacute

supor que todos os objetos do domiacutenio de aplicaccedilatildeo do predicado ou estatildeo

na extensatildeo positiva ou estatildeo na negativa ou estatildeo na penumbra Natildeo se

trata aqui de aumentar ainda mais o nuacutemero de fronteiras Pelo

contraacuterio o ponto eacute questionar que soacute existam aquelas trecircs opccedilotildees sem

no entanto afirmar que existam mais Essa eacute a estrateacutegia de Tye (1994 p

195) para quem devemos assumir o seguinte

bull Os predicados vagos admitem casos positivos indefinidos e negativos e natildeo

existe uma questatildeo de fato acerca de se esses satildeo ou natildeo os uacutenicos casos

A tese acima natildeo afirma que existem mais do que as trecircs opccedilotildees

consideradas Mas ela impede que suponhamos que existam somente as

trecircs Uma vez que o argumento contra a Teoria Trivalente depende dessa

suposiccedilatildeo ele falha

O argumento de Tye a favor dessa tese eacute como segue Considere a

pergunta existem apenas trecircs opccedilotildees Suponha que sim Nesse caso

Sagid Salles | 197

como vimos o predicado ldquocarecardquo eacute preciso Suponha que natildeo Nesse caso

existe ainda uma quarta opccedilatildeo Pode-se entatildeo perguntar satildeo essas quatro

opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo caiacutemos no mesmo problema de antes e

predicados vagos seratildeo de fato precisos Se natildeo entatildeo precisaremos de

uma quinta opccedilatildeo Satildeo as cinco opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo predicados

vagos satildeo precisos Se natildeo entatildeo precisamos de uma sexta opccedilatildeo e assim

por diante Por um lado natildeo eacute verdade que existam apenas trecircs opccedilotildees

pois isso implica que predicados vagos satildeo precisos Por outro natildeo eacute falso

que existam apenas trecircs opccedilotildees pois isso implica em esquisitices

metafiacutesicas (o proacuteprio quarto valor) ou regresso ao infinito Conclusatildeo

natildeo haacute uma questatildeo de fato sobre se existe ou natildeo uma quarta opccedilatildeo Isso

pode ser expresso dizendo-se que eacute em si mesmo indefinido se ou natildeo

existem apenas trecircs opccedilotildees

Keefe (2000 p 121) apresenta uma objeccedilatildeo que me parece decisiva

contra o argumento acima Podemos explicitar o argumento de Tye como

segue

α Natildeo eacute verdadeiro que existem apenas trecircs opccedilotildees

β Natildeo eacute falso que existem apenas trecircs opccedilotildees

γ Logo eacute indefinido se existem apenas trecircs opccedilotildees

Como (γ) se segue de (α) e (β) Suponha por exemplo que existe

uma quarta opccedilatildeo indefinido Nesse caso o maacuteximo que poderiacuteamos

concluir a partir de (α) e (β) eacute que eacute indefinido ou indefinido que existem

apenas trecircs opccedilotildees De fato para que a inferecircncia de (γ) no argumento

acima seja permitida eacute preciso que haja apenas trecircs opccedilotildees verdadeiro

falso e indefinido Para mostrar que eacute indefinido que existem apenas trecircs

opccedilotildees Tye assume justamente que existem apenas trecircs opccedilotildees No fim

das contas Tye assume aquilo que pretende rejeitar

Mark Richard (2009 p 476) sustenta que o erro do argumento contra

a Teoria Trivalente estaacute em assumir que existe um uacuteltimo caso positivo de

ldquocarecardquo e um primeiro caso indefinido A sua resposta passa pelas noccedilotildees

de penumbra e indefinido Primeiro ele adota uma concepccedilatildeo linguiacutestica do

198 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que eacute para um predicado possuir uma penumbra Seguindo Soames um

predicado possui uma penumbra quando haacute objetos que nem satisfazem as

condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo

mal-sucedida3 Se Joatildeo estaacute na penumbra de ldquocarecardquo entatildeo as condiccedilotildees de

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo nada dizem sobre se ele deve ser incluiacutedo na extensatildeo

positiva ou na extensatildeo negativa desse predicado Como as condiccedilotildees de

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo natildeo determinam em qual lado estaacute Joatildeo eacute indefinido

se (1) eacute verdadeira ou falsa Por outras palavras (1) eacute indefinida (Richard

prefere indeterminada) Segundo indefinido natildeo eacute entendido como um

terceiro valor de verdade Nessa concepccedilatildeo soacute existem dois valores de

verdade mas pode estar indefinido qual deles uma frase tem

Agora o argumento procede como segue Uma vez que an+1estaacute na

penumbra de ldquocarecardquo natildeo estaacute definido se ele eacute careca ou natildeo Mas se natildeo

estaacute definido se an+1 eacute careca ou natildeo entatildeo natildeo podemos assumir que aneacute

o uacuteltimo caso de ldquocarecardquo na sequecircncia Por outro lado tambeacutem natildeo

podemos assumir que an natildeo seja o uacuteltimo item careca da sequecircncia Pois

soacute poderiacuteamos assumir isso se estivesse definido que o proacuteximo item an+1

eacute careca Mas isso tambeacutem estaacute indefinido Portanto natildeo haacute um caso que

possamos justificadamente apontar como sendo o uacuteltimo caso positivo de

ldquocarecardquo Um argumento similar nos permitiria mostrar que tambeacutem natildeo

haacute um que possamos apontar como sendo o primeiro caso negativo de

ldquocarecardquo Tatildeo logo entendemos corretamente no que consiste ser

indefinido se um item eacute ou natildeo careca percebemos que ldquocarecardquo natildeo

estabelece fronteiras e portanto natildeo eacute preciso

Natildeo acredito esse argumento evite a violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo

Mesmo aceitando tudo que foi dito continua sendo o caso de ldquocarecardquo

3 Haacute diferenccedilas entre Soames e Richard no que diz respeito ao mecanismo que faz com que um predicado acabe por ter uma penumbra De acordo com Soames isso ocorre porque o predicado (i) tem condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) essas condiccedilotildees satildeo mutuamente exclusivas mas (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas Richard (2009 p 465-467) pensa que essa definiccedilatildeo natildeo eacute boa o bastante para justificar uma lacuna entre os dois valores claacutessicos de verdade propondo uma pequena modificaccedilatildeo De acordo com ele um predicado ldquoFrdquo tem uma penumbra quando (i) tem um conjunto C de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) tem um conjunto Crsquo de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) C e Crsquo satildeo mutuamente exclusivas e (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas

Sagid Salles | 199

cortar o seu domiacutenio de forma precisa em trecircs partes Retorne agrave imagem

acima da divisatildeo tripartida do domiacutenio de ldquocarecardquo O item an eacute o uacuteltimo

para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo se aplica enquanto an+1 eacute o primeiro

para o qual estaacute indefinido Haacute uma fronteira precisa entre os casos

definidos e os indefinidos de ldquocarecardquo Do mesmo modo an+m eacute o ultimo

caso para o qual estaacute indefinido se ldquocarecardquo se aplica ou natildeo e an+m+1 eacute o

primeiro caso para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo natildeo se aplica Haacute uma

fronteira precisa entre os casos indefinidos e os definidos de ldquonatildeo-carecardquo

Novamente temos duas fronteiras precisas onde deveria haver nenhuma

O proacuteprio Richard reconhece essa objeccedilatildeo e apela a uma soluccedilatildeo

epistecircmica para a mesma (2009 p 476-477) Apesar dos predicados vagos

possuiacuterem fronteiras no sentido acima frequentemente natildeo eacute possiacutevel

para noacutes sabermos onde ela se situa Nesse caso natildeo eacute claro se natildeo seria

mais plausiacutevel rejeitar de uma vez por todas a Teoria Trivalente e aceitar

a Teoria Epistecircmica em seu lugar Seja como for essa soluccedilatildeo aceita a

violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo

Conclusatildeo

A principal conclusatildeo deste texto eacute que embora a Teoria Trivalente

satisfaccedila os criteacuterios do Sorites e da coerecircncia tem claros problemas em

satisfazer o criteacuterio da precisatildeo Em todo caso estou convencido de que

satisfazer a todos os trecircs criteacuterios eacute algo dificiacutelimo e que as outras teorias

tradicionais da vagueza (Gradualismo Supervalorativismo Incoerentismo

Epistemicismo etc) tambeacutem falham em satisfazer pelo menos algum deles

Se isso estiver correto fica em aberto a possibilidade de a Teoria Trivalente

ainda ser a nossa melhor opccedilatildeo Afinal nem sempre a melhor opccedilatildeo de que

dispomos eacute a opccedilatildeo ideal Por outro lado se houver uma teoria que satisfaccedila

conjuntamente a todos os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente

estaraacute em desvantagem quanto a mesma Eu de fato penso que exista tal

teoria mas essa eacute uma histoacuteria para outro momento

200 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Referecircncias

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v8 (Logic and Language) p 189-206 1994

WILLIAMSON T Vagueness Routledge 1994

12

O Leibniz de Deleuze

Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido1

William de Siqueira Piauiacute 2

Introduccedilatildeo

O que gostariacuteamos ao menos de comeccedilar a fazer em nosso mini-curso

eacute semelhante ao que fez Derrida em ldquoCogito e Histoacuteria da Loucurardquo

(Escritura e diferenccedila de 1967) com o trabalho exegeacutetico realizado por

Foucault quando este havia tentado localizar nas Meditaccedilotildees de Descartes

uma recusa ou exclusatildeo criticaacutevel da loucura tratava-se de mostrar que

um especialista em modernidade naquele momento jaacute autor de As

palavras e as coisas (de 1966) podia natildeo ter compreendido corretamente

o texto cartesiano acusaccedilatildeo grave e que por isso exigia natildeo soacute um novo

trabalho exegeacutetico do texto em questatildeo mas tambeacutem a explicitaccedilatildeo dos

pontos mais importantes e o centro da argumentaccedilatildeo da hipoacutetese

interpretativa a ser criticada3 Assim em termos comparativos o que

pretendemos mostrar eacute quais seriam os pontos principais e mesmo o

1 Texto-aula do minicurso que de iniacutecio tinha o nome O Leibniz de Deleuze problemas de exegese ministrado no IV Encontro Linguagem e Cogniccedilatildeo realizado junto agrave 8ordf Bienal Internacional do Livro de Alagoas em outubro de 2017 texto que com algumas alteraccedilotildees serviu de base para a palestra Deleuze e a noccedilatildeo leibniziana de sujeito apresentada no III Congresso Ibero-americano Leibniz realizado na Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Curitiba em novembro de 2017 palestra que foi um desenvolvimento das hipoacuteteses interpretativas que levantamos no V Encontro do Grupo Subjetividade no Pensamento Contemporacircneo realizado em junho de 2017 na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

2 Professor do Departamento de Filosofia (DFL) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) E-mail piauiuspgmailcom

3 E nos parece que Derrida faz o mesmo com Jean-Pierre Vernant em Khora cf por exemplo 1995 p 7

202 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

centro do trabalho exegeacutetico de Deleuze com relaccedilatildeo a Leibniz mostrar

que mesmo um ldquoespecialistardquo do seu quilate pode natildeo ter compreendido

bem a filosofia leibniziana ao fazer uma apropriaccedilatildeo elogiosa poreacutem

equivocada principalmente dos seus conceitos de mocircnada individual ou

substacircncia particular Deus mundo corpo e principalmente ao defender a

necessidade de certo deslocamento que corroboraria a hipoacutetese que

Leibniz teria ido muito longe naquilo que o francecircs compreendia como

gecircnese estaacutetica ontoloacutegica etapa fundamental de sua Loacutegica do sentido

obra que seraacute nosso principal ponto de partida Do nosso ponto de vista eacute

o que estaacute em jogo principalmente no seguinte trecho de sua 16ordf seacuterie

Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada

mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente

compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia dos

predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo expresso

natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas mocircnadas como

a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos verdade entretanto

que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas [ou seja Deus criou natildeo

exatamente Adatildeo-pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou] e [tambeacutem eacute

verdade] que o expresso natildeo se confunde com sua expressatildeo mas insiste ou

subsiste [] Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na

filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na mocircnada

expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo expresso e

esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo

as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma

loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e

da verdade Leibniz foi muito longe nesta primeira etapa da gecircnese [de um

certo campo transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades

entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentais o indiviacuteduo

constituiacutedo como centro de envolvimento como envolvendo singularidades

em um mundo e sobre seu corpo (DELEUZE 2003 p 114-5 grifo nosso)

Do nosso ponto de vista natildeo eacute necessaacuterio afirmar o deslocamento

defendido por Deleuze que corroboraria a obrigatoriedade do

encadeamento de I a III e natildeo do seu contraacuterio Em nossa opiniatildeo a

apropriaccedilatildeo equivocada da filosofia leibniziana fica mais evidente

William de Siqueira Piauiacute | 203

especialmente em parte do trabalho exegeacutetico que Deleuze faz do Discurso

de metafiacutesica em associaccedilatildeo com a Correspondecircncia de Leibniz e de

Arnauld dos sect408 sect409 e sect414 da Teodiceia na menccedilatildeo natildeo explicitada

de parte do sect47 da quinta carta da Correspondecircncia Leibniz Clarke ndash

que faz a base da noccedilatildeo de coexistecircncia ndash e inclusive no alcance que supocircs

do texto ldquoSobre o meacutetodo da universalidaderdquo ndash o que seraacute mantido em A

dobra ndash ao mencionar um suposto uso geral que Leibniz faria da noccedilatildeo de

ldquosigno ambiacuteguordquo e principalmente para defender que por conta de seu

antigeneralismo o alematildeo forneceria as bases para pensarmos um ldquocampo

transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades

entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentaisrdquo Para noacutes

Deleuze teria criado dado o uso que supocircs dos atributos verbais uma

ficccedilatildeo falsa a la Lorenzo Valha que se sobrepotildee ao que de fato eacute afirmado

no final da Teodiceia ndash talvez por ter decidido parar em seu sect408 ou pela

excessiva importacircncia que conferiu a uma parte de seu sect414 Tudo

apontando para uma aproximaccedilatildeo excessiva entre Leibniz e Newton

inclusive a partir de certa caracterizaccedilatildeo de um mundo expresso feito de

relaccedilotildees diferenciais e de singularidades adjacentes que acabariam por

conduzir a uma dinacircmica sem causa proacutexima

Quanto aos motivos que nos levam a rever a leitura de Deleuze jaacute haacute

tantos anos publicada e criticada temos que dizer que eles satildeo de caraacuteter

regional recentemente em 2015 vimos publicado no Brasil a traduccedilatildeo do

livro de Alain Badiou A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX que

conteacutem um capiacutetulo de tiacutetulo ldquoGilles Deleuze Sobre A dobra Leibniz e o

barrocordquo e a publicaccedilatildeo em 2016 do excelente artigo de Gonzalo

Montenegro ldquoDeleuze em diaacutelogo com Freacutemont tentativas de ler Leibnizrdquo

tais textos deixam claro que ainda haacute muito que problematizar quanto agraves

interpretaccedilotildees de Deleuze mesmo quanto agrave sua afirmaccedilatildeo que

permanecemos leibnizianos e eacute com esse trabalho que gostariacuteamos de

contribuir voltando especialmente ao texto que serviu de base para A

dobra Mesmo natildeo desconsiderando o ldquobrilhantismordquo ou a ldquogenialidaderdquo

da interpretaccedilatildeo do francecircs ndash o que tenta nos mostrar Badiou ndash para que

204 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

o leitor natildeo se engane quanto ao nosso ponto de vista de fundo fazendo

outros caminhos estamos mais de acordo com grande parte das objeccedilotildees

que Freacutemont fez agrave leitura deleuziana especialmente se tomarmos a Loacutegica

do sentido como ponto de partida inclusive consideramos a pertinecircncia

daquelas objeccedilotildees como o motivo mais forte para a obra A dobra ter

demorado vinte anos para ser confeccionada Para noacutes em termos de

comentaacuterio de obra a leitura de Fremoacutent eacute muito mais bem fundamentada

e corresponde mais apropriadamente com o que o texto leibniziano

permitiria concluir principalmente se natildeo aceitarmos o deslocamento

exigido em a Loacutegica do sentido ou se recusamos a inversatildeo do caminho

argumentativo da Monadologia bases da argumentaccedilatildeo defendida em A

dobra de qualquer modo natildeo nos parece que Gonzalo deixa claro com que

interpretaccedilatildeo estaria mais de acordo Eacute por aiacute portanto que caminharaacute

nossa tentativa de problematizar o trabalho interpretativo feito na Loacutegica

do sentido e que em grande medida prepara todo o trabalho realizado em

A dobra Por fim e em termos da leitura de Badiou mesmo que estejamos

de acordo com a opiniatildeo que A dobra eacute ldquoum livro rarordquo ldquoadmiraacutevelrdquo e que

ldquopropotildee-nos uma visatildeo e um pensamento do nosso mundordquo pretendemos

ainda uma vez voltar agraves querelas genealoacutegicas agrave agrimensura dos textos

especialmente daquele que lanccedila as bases da argumentaccedilatildeo defendida em

A dobra quem sabe tal empreitada nos permita recolocar a pergunta o

que vemos como ou pensamos ser o nosso mundo

I Parte ndash Entre Literatura Psicanaacutelise Linguiacutestica e Loacutegica Deleuze

de Loacutegica do Sentido e a Filosofia Contemporacircnea

Como nos diz Pierre Franccedilois Marietti (HUISMAN 2001 p 255) em

geral se costuma distinguir trecircs periacuteodos da filosofia do francecircs Gilles

Deleuze (1925-1995) O primeiro entre 1953 ou 52 e 1968 que

compreenderia a produccedilatildeo de vaacuterios trabalhos sobre filoacutesofos e literatos

o periacuteodo das monografias tais como sobre Hume em Hume sua vida e

sua obra de 1952 e em Empirismo e subjetividade de 1953 sobre

William de Siqueira Piauiacute | 205

Nietzsche em Nietzsche e a filosofia de 1962 ou simplesmente Nietzsche

de 1965 sobre Proust em Proust e os signos de 1964 sobre Bergson em

Bergsonismo de 1966 sobre Espinosa em Espinosa ou o problema da

expressatildeo de 1968 ano que marcaria o final deste periacuteodo O segundo

periacuteodo 1968-1972 teria iniacutecio com as produccedilotildees mais autocircnomas e

propriamente filosoacuteficas de Deleuze tais como os volumosos Diferenccedila e

repeticcedilatildeo de 1968 e Loacutegica do sentido de 1969 Mas eacute preciso dizer que

aquele primeiro tipo de produccedilatildeo caracteriacutestico do primeiro periacuteodo natildeo

seraacute abandonado e seratildeo produzidas dentre outras mais duas obras sobre

Espinosa (em 1970 e 1981) a obra Foucault de 1986 e a famosa A dobra

Leibniz e o Barroco de 1988 (publicado quase 20 anos depois de a Loacutegica

do sentido e que foi o resultado de aulas dadas nos anos 80 86 e 87)

Tambeacutem nesse periacuteodo se intensificaratildeo seus estudos sobre psicanaacutelise e

literatura isto eacute a produccedilatildeo das obras escritas em parceria com o

psicanalista Feacutelix Guattari (1930-1992) tais como O anti-Eacutedipo e mesmo

Kafka por uma literatura menor ambas de 1972 o primeiro estudo

marca o iniacutecio do que se costuma chamar de a grande ruptura que

certamente faz o pano de fundo de obras como O que eacute filosofia jaacute de

1991 e Criacutetica e Cliacutenica de 1997 este uacuteltimo publicado jaacute dois anos depois

da morte de Deleuze

Dito isso e como jaacute o indicamos a obra principal sobre a qual

falaremos neste minicurso seraacute a Loacutegica do sentido praticamente o tema

da nossa III Semana de Filosofia da Linguagem4 obra que foi publicada

em 1969 e que faria parte daquele segundo periacuteodo obra que segundo

Marietti mais que Diferenccedila e repeticcedilatildeo ldquoextrapola em muito os cacircnones

universitaacuterios vigentes na eacutepoca com seu interesse pelas meninasrdquo pelos

poetas ldquoe pelos esquizofrecircnicosrdquo ndash certamente uma referecircncia agrave 13ordf seacuterie

do livro ndash ldquocomrdquo completa ele uma ldquoreflexatildeo profunda sobre a linguagem

e a literaturardquo (HUISMAN 2001 p 255) e acrescentariacuteamos uma reflexatildeo

sobre o estruturalismo e ainda mais especifica sobre a loacutegica a qual

4 Evento ocorrido no DFL-UFS em marccedilo de 2017 e que teve por tema ldquoGilles Deleuze Loacutegica e Sentidordquo onde tambeacutem ministramos um minicurso sobre a Loacutegica do sentido

206 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

acompanharaacute Deleuze certamente ateacute o final de sua vida como o

comprova o capiacutetulo II (Prospectos e Conceitos) da parte II (Filosofia

Ciecircncia Loacutegica e Arte) do livro escrito em parceria com Guattari O que eacute

filosofia

O que extrapola os cacircnones universitaacuterios vigentes certamente natildeo

se associa somente a certas figuras que despertam o interesse de Deleuze

mas o proacuteprio assunto e a forma como ele seraacute exposto ou como nos diz

o proacuteprio tratar-se-aacute da ldquoconstituiccedilatildeo paradoxal da teoria do sentidordquo

teoria que seraacute apresentada em 34 seacuteries (espeacutecie de capiacutetulos) que

receberatildeo mais 2 apecircndices subdivididos em 5 tiacutetulos seacuteries em que

veremos a elaboraccedilatildeo de uma espeacutecie de histoacuteria ldquouma lsquohistoacuteria

embrulhadarsquordquo por fim a obra seraacute apresentada como um ldquoensaio de

romance loacutegico e psicanaliacuteticordquo Falar de loacutegica a partir do gecircnero

romance misturando tal tema com psicanaacutelise e ensaiando compor uma

histoacuteria embrulhada obra em que em muitos de seus capiacutetulos tratam do

tema ldquoparadoxordquo certamente tambeacutem significava extrapolar os cacircnones

universitaacuterios vigentes basta pensarmos em obras sobre loacutegica ou

linguagem como as de Frege (a Conceitografia por exemplo) Russell

(Principia mathematica) Carnap (Da construccedilatildeo loacutegica do mundo)

Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus) Husserl (Investigaccedilotildees

loacutegicas) e mesmo a de Heidegger (Princiacutepios metafiacutesicos da loacutegica) ou

Merleau-Ponty (A prosa do mundo) ou ainda a de Foucault (As palavras

e as coisas uma arqueologia das ciecircncias humanas) e de Derrida

(Gramatologia) para imaginarmos quatildeo grande era aquela extrapolaccedilatildeo

Toda essa extrapolaccedilatildeo ou abandono daquele rigor claacutessico rigor

ainda presente segundo Marietti em Diferenccedila e repeticcedilatildeo jaacute garantiria

um lugar de destaque agrave obra Loacutegica do sentido junto agrave filosofia

contemporacircnea ou dos modernos como quer Badiou o que seraacute

intensificado pela valorizaccedilatildeo de um tipo de filosofia que jaacute tinha aceitado

a ponto de se misturar com elas seja a intromissatildeo da literatura seja a da

psicanaacutelise seja a da linguiacutestica Quanto agrave uacuteltima eacute faacutecil perceber a

importacircncia natildeo costumeiramente afirmada em livros de loacutegica que

William de Siqueira Piauiacute | 207

assumiratildeo as consideraccedilotildees de um Benveniste (de Problemas de

linguiacutestica geral por exemplo) de Jakobson (de dentre outros ldquoO signo

zerordquo) e mesmo que indiretamente de Sausurre (de Curso de linguiacutestica

geral) para a elaboraccedilatildeo das ldquotrecircs relaccedilotildees distintas da proposiccedilatildeo

(designaccedilatildeo ou indicaccedilatildeo manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo) tema da 3ordf seacuterie

Mais do que isto a contribuiccedilatildeo geral da linguiacutestica e estruturalismo seratildeo

enunciadas na 12ordf seacuterie do seguinte modo

Os autores que se costuma atualmente chamar de estruturalistas [tais como

Benveniste e Jakobson] natildeo tecircm talvez outro ponto em comum ndash poreacutem

essencial ndash aleacutem do seguinte o sentido natildeo como aparecircncia mas como efeito

de superfiacutecie e de posiccedilatildeo produzido pela circulaccedilatildeo da casa vazia nas seacuteries

da estrutura [le sens non pas du tout comme apparence mais comme effet de

surface et de position produit par la circulation de la case vide dans les seacuteries

de la structure] ([] significante flutuante valor zero cantonada ou causa

ausente etc) O estruturalismo conscientemente ou natildeo celebra novos

achados de inspiraccedilatildeo estoica ou carrolliana [] (DELEUZE 2003 p 73-4

grifo nosso)

Ora natildeo eacute o elogio de tipo semelhante que veremos em muitos outros

filoacutesofos contemporacircneos Ao menos podemos dizer que eacute o caso

inclusive dito de modo muito semelhante de Derrida em Escritura e

diferenccedila especialmente no capiacutetulo ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo E a noccedilatildeo do

sentido como superfiacutecie certamente marca uma das viradas mais

conscientemente assumidas e feita jaacute no iniacutecio de a Loacutegica do sentido ou

seja na atualidade ou a partir daqueles achados o ldquoProfundo deixou de

ser um elogiordquo (Idem p 16) Eacute preciso pois se aproximar da filosofia da

literatura ou da arte da psicologia ou psicanaacutelise das teorias da linguagem

ou dos estruturalismos que natildeo simulam mais a profundidade e vivem dos

incorporais ou da superfiacutecie Jaacute antecipamos que a obra buscaraacute

justamente tornar mais explicito e de modo talvez mais consciente o que

a literatura produzida por Carroll e a filosofia produzida pelos Estoicos

podem nos inspirar mas voltemos ao que diziacuteamos

208 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Haacute outros dois tipos de produccedilatildeo que jaacute haviam aceitado se

embrulhar na investigaccedilatildeo do sentido associada agrave superfiacutecie Deleuze natildeo

procura em Nietzsche ldquoum profeta da reviravolta nem da superaccedilatildeordquo nem

em Freud ldquoum explorador da profundidade humanardquo pois

Se haacute um autor para o qual a morte de Deus a queda em altura do ideal

asceacutetico natildeo tem nenhuma importacircncia enquanto eacute compensada pelas falsas

profundidades do humano maacute consciecircncia e ressentimento eacute sem duacutevida

Nietzsche [] Natildeo procuramos em Freud um explorador da profundidade

humana e do sentido originaacuterio mas o prodigioso descobridor da maquinaria

do inconsciente[ e vale lembrar que o paradoxo eacute a potecircncia do inconsciente]5

por meio do qual o sentido eacute produzido sempre produzido em funccedilatildeo do natildeo-

senso [] O que haacute de burocraacutetico nestas maacutequinas fantasmas que satildeo os

povos e os poemas [] Basta que nos dissipemos um pouco que saibamos

estar na superfiacutecie que estendamos nossa pele como um tambor para que a

ldquogrande poliacuteticardquo comece [] Fazer circular a casa vazia e fazer falar as

singularidades pre-individuais e natildeo pessoais [faire parler las singulariteacutes preacute-

individuelles non personnelle] [que natildeo satildeo nem da ordem do geral nem da

ordem do individual nem pessoais nem universais] em suma produzir o

sentido eacute a tarefe de hoje (Idem p 75-6)

Nenhuma novidade quanto agrave menccedilatildeo a Nietzsche e Freud geste que

tambeacutem lembraraacute Derrida em ldquoLa diffeacuterancerdquo6 trata-se de autores

fundamentais para pensar filosofia contemporacircnea ao menos a produzida

no continente Mantermo-nos na superfiacutecie naquele algo que insiste em

subsistir deixar de elogiar o profundo compreender ao menos em termos

gerais o que pretendiam os estruturalistas bem como Nietzsche e Freud

fazer comeccedilar a grande poliacutetica (incluiriacuteamos tambeacutem aiacute a justiccedila) e natildeo

apenas relembrar ou comentar mas produzir o sentido satildeo portanto as

tarefas da filosofia contemporacircnea defendida por Deleuze em Loacutegica do

sentido Mas assim como ao seu modo os Estoicos natildeo realizaram tal

tarefa eacute preciso estar atento ao fato que para Deleuze tambeacutem Nietzsche

teria se desviado dela ou como ele mesmo nos dizia

5 Cf op cit p 82

6 Cf Margens da filosofia 1991 p 49

William de Siqueira Piauiacute | 209

Nietzsche esteve primeiramente entre estes [Boehme Schelling etc] disciacutepulo

de Schopenhauer no Nascimento da trageacutedia quando ele faz falar Dioniacutesio

sem fundo opondo-o agrave individuaccedilatildeo divina de Apolo e natildeo menos agrave pessoa

humana de Soacutecrates [] Assim a descoberta de Nietzsche estaacute alhures[ em

outro lugar em outra parte] quando tendo se livrado de Schopenhauer e de

Wagner explora um mundo de singularidades impessoais e preacute-

individuais [un monde de singulariteacutes impersonnelles et preacute-individuelles]

mundo que chama agora de dionisiacuteaco ou da vontade de potecircncia energia livre

e natildeo ligada [] Estranho discurso que devia renovar a filosofia e que

trata o sentido enfim natildeo como predicado [ou] como propriedade mas

como acontecimento [traite le sens enfin non pas comme preacutedicat comme

proprieacuteteacute mais comme eacuteveacutenement] [] Na sua descoberta Nietzsche entreviu

como em um sonho o meio de pisar a [superfiacutecie da] terra de roccedilaacute-la de

danccedilar e de trazer de volta agrave superfiacutecie o que restava dos monstros do fundo e

das figuras do ceacuteu Mas eacute verdade que ele foi tomado por uma ocupaccedilatildeo mais

profunda mais perigosa tambeacutem na sua descoberta ele viu um novo meio de

explorar o fundo [] correndo o risco de ser tragado por essa profundidade

(Idem p 110 grifo nosso)

Em sua avaliaccedilatildeo da filosofia nietzscheana embalado pela renovaccedilatildeo

da filosofia que ela sugeria Deleuze menciona uma espeacutecie de condiccedilatildeo da

tarefa fundamental de sua teoria do sentido ou seja aquele ldquoestranho

discursordquo deve nos conduzir a tratar ldquoo sentido enfim natildeo como

predicadordquo ou ldquocomo propriedade mas como acontecimentordquo para entatildeo

explorarmos ldquoum mundo de singularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo

inspiraccedilatildeo expliacutecita do Nietzsche de Nascimento da trageacutedia mas claro

tambeacutem que a noccedilatildeo freudiana de inconsciente e limite dado seu elemento

paradoxal limite do horizonte de saber (e talvez a grande poliacutetica e a

justiccedila tivessem justamente que assumir tal pressuposto) inclusive recusa

da profundidade das filosofias da intencionalidade satildeo fundamentais aqui

E vale repetir fonte inclusive da estranheza de seu discurso e que parece

ser a principal responsaacutevel pela distacircncia que separa ldquocontinentaisrdquo e

ldquoanaliacuteticosrdquo Nietzsche teria sonhado com o outro aspecto fundamental das

filosofias contemporacircneas que se embaralham com o problema do

significado e sentido o sentido natildeo deve ser tratado como predicado como

210 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

propriedade mas como acontecimento como eacuteveacutenement conceito

fundamental das filosofias e teorias da linguagem contemporacircneas

especialmente as continentais Tambeacutem eacute por causa deste aspecto que se

exigiraacute toda uma nova maneira de pensar a loacutegica do sentido que por isso

mesmo deveraacute ultrapassar aquelas trecircs relaccedilotildees distintas na proposiccedilatildeo

e seraacute especialmente associada agrave primeira a da designaccedilatildeo que Deleuze

formularaacute o problema mais geral de tal loacutegica

[] de que serviria elevarmo-nos da esfera do verdadeiro agrave do sentido se fosse

para encontrar entre o sentido e o natildeo-senso [le sens et non-sens] uma relaccedilatildeo

anaacuteloga agrave do verdadeiro e do falso () A loacutegica dos sentidos vecirc-se

necessariamente determinada a colocar entre sentido e o natildeo-senso um tipo

original de relaccedilatildeo intriacutenseca um modo de co-presenccedila [] (Idem p 71)

Muitos foram os autores que esbarraram neste problema ou seja o

de determinar um novo e original tipo de relaccedilatildeo que permitisse

diferenciar de uma vez por todas os problemas de significaccedilatildeo ou

relacionados diretamente ao verdadeiro e falso dos de sentido e que ao

menos em termo de designaccedilatildeo adotaram ao menos a postura de aceitar

sua complexidade e dificuldade nem perto da radicalidade de um Deleuze

evidentemente foi esse o caso de Bertrand Russell em Significaccedilatildeo e

verdade7 em que afrontou dentre outras a noccedilatildeo de Carnap de sentido-

significado seja como for a descoberta da necessidade de um novo e

original tipo de relaccedilatildeo mais proacutepria ao sentido uma outra dimensatildeo ou

relaccedilatildeo jaacute havia sido descoberta haacute muito tempo ou como lembrava

Deleuze

O sentido eacute a quarta dimensatildeo da proposiccedilatildeo [aleacutem de designaccedilatildeo

manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo] Os estoicos a descobriram com o acontecimento

o sentido eacute o expresso da proposiccedilatildeo este incorporal na superfiacutecie das coisas

entidade complexa irredutiacutevel [que natildeo pode ser simplificada separada do

natildeo-senso] acontecimento puro (eacuteveacutenement pur) que insiste ou subsiste na

proposiccedilatildeo (Idem p 20)

7 Cf tambeacutem DELEUZE 2003 [Loacutegica do sentido] p 18-9

William de Siqueira Piauiacute | 211

E tal descoberta se repetiu na histoacuteria no medievo pelos

nominalistas da escola de Ockham Gregoacuterio de Rimini (1300-1358) e

Nicolas de Autrecourt (1299-1369) e depois pela loacutegica dos objetos

inexistentes de Alexius Meinong (1853-1920) que foi duramente atacada

pelo mesmo Russell E tal dimensatildeo teria sido chamada pelo fenomenoacutelogo

Edmund Husserl (1859-1938) de ldquoexpressatildeordquo quanto a quem e ao que

Deleuze afirmava ldquoHusserl natildeo menos que Meinong reencontra as fontes

vivas de uma inspiraccedilatildeo estoicardquo (Idem p 21) Ateacute certo ponto afinado com

aquela boa nova aquela inspiraccedilatildeo contudo semelhantemente a

Nietzsche Husserl tambeacutem teria sido tragado pelas profundezas neste

caso natildeo soacute por natildeo ter compreendido os atributos como verbos-

acontecimentos e sim como predicados-conceitos (Idem p 100) mas por

ter pecado em sua interpretaccedilatildeo contra uma filosofia propriamente da

expressatildeo supostamente defensora das ldquosingularidades nocircmades

impessoais e preacute-individuaisrdquo (Idem p 113) daiacute que em pleno acordo com

aquela tarefa de uma loacutegica do sentido Deleuze afirmasse

[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida

em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e

sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de

Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como

veremos uma mudanccedila muito importante [] A ideia de singularidades

logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-

individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste

domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)

Como era de se esperar dado a menccedilatildeo ao conceito de mocircnada para

fazer avanccedilar a determinaccedilatildeo daquele domiacutenio e constituir uma nova

noccedilatildeo de tal campo Deleuze trataraacute em seguida na 16ordf seacuterie (a da gecircnese

estaacutetica ontoloacutegica) da Loacutegica do sentido da filosofia de Leibniz Com o

que dissemos ateacute aqui fica evidenciado o quatildeo central seraacute a reavaliaccedilatildeo

da filosofia leibniziana especialmente de seu conceito de mocircnada

individual tendo vista que seraacute justamente ele que permitiraacute a base da

212 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

hipoacutetese ou seja a estruturaccedilatildeo da ldquoideia de singularidades logo de anti-

generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-individuaisrdquo daquelas

ldquosingularidades nocircmades impessoais e preacute-individuaisrdquo isto eacute daquilo

que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do sentido de qualquer

modo a conclusatildeo de tal seacuterie seraacute

Na obra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduo a mocircnada que descobre

o sentido e jaacute presente o natildeo-senso remontando agrave superfiacutecie a partir de um

mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que se envolve nela e lhe impotildee a

dura lei das misturas [jaacute] Silvia e Bruno seriam antes como as pessoas lsquovagasrsquo

que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo

comum a vaacuterios mundos mundo dos homens e mundo das fadas (Idem p

121)

O que novamente atesta o papel central que o conceito leibiziano de

mocircnada desempenha para toda a Loacutegica do sentido inclusive pela

apropriaccedilatildeo que ela faz da obra de Carroll ou seja o conteuacutedo da 16ordf seacuterie

deveraacute servir para voltar a compreender parte daquela boa nova agora

associada mais propriamente agraves obras Aventuras de Alice no paiacutes das

maravilhes Atraveacutes do espelho e o que Alice viu laacute e As aventuras de

Silvia e Bruno de Lewis Carroll que junto com a teoria dos incorporais

dos Estoicos satildeo os grandes temas de a Loacutegica do sentido Assim o que

trataremos a seguir eacute da reconstituiccedilatildeo deleuzeana do conceito de mocircnada

individual

II Parte ndash Interpretaccedilatildeo Deleuziana da Filosofia Leibniziana uma

Ficccedilatildeo Falsa

Como noacutes indicamos eacute jaacute a partir de 1968 que o filoacutesofo francecircs Gilles

Deleuze demonstra seu apreccedilo pela filosofia leibniziana como fica

evidente em alguns momentos da obra Diferenccedila e repeticcedilatildeo mas na

obra que escreve um ano depois Loacutegica do sentido tal seraacute sua

importacircncia que ela se tornaraacute o tema principal de toda uma seacuterie a 16ordf

seacuterie justamente um dos momentos mais cruciais de seu romance ou

William de Siqueira Piauiacute | 213

histoacuteria embrulhada momento em que veremos Deleuze caracterizar as

Alices e Silvia e Bruno de Carroll a partir do suposto8 conceito leibniziano

de pessoa vaga e do de mocircnada individual conceitos que ofereceriam as

bases para pensar aquilo que ele chamou de gecircnese estaacutetica ontoloacutegica de

um certo campo transcendental Satildeo certamente as consideraccedilotildees feitas

aqui que forneceratildeo a direccedilatildeo principal das leituras que Deleuze faraacute de

Leibniz nos trecircs cursos que deu na deacutecada de oitenta (1980 86 e 87) aulas

que receberatildeo o tiacutetulo de Exasperaccedilatildeo da filosofia e que com algumas

poucas mudanccedilas substanciais teratildeo como resultado a obra A dobra

Leibniz e o barroco publicada em 1988 Assim o que pretendemos eacute

problematizar a compreensatildeo dos conceitos leibnizianos que serviriam

para caracterizar os personagens de Carroll tentando apontar alguns dos

problemas da leitura de Deleuze especialmente se levarmos em conta

dentre outros textos a carta que Leibniz escreve a Molanus em 1679 bem

antes do Discurso de metafiacutesica este nosso principal ponto de partida e

o que faz a base do capitulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou diversidaderdquo

dos Novos ensaios (II XXVII) posterior ao Discurso e anterior tanto agrave

Teodiceia quanto agrave Monadologia Com isso esperamos lanccedilar luz sobre

a noccedilatildeo de fato leibniziana de sujeito ou indiviacuteduo e as bases do

deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo deleuziana Vejamos entatildeo como a

filosofia de Leibniz aparece na obra de 1969

Como jaacute o dissemos em Loacutegica do sentido tudo parece comeccedilar

com a criacutetica a Husserl em sua 14ordf seacuterie Deleuze considera que

[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida

em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e

sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de

Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como

veremos uma mudanccedila muito importante9 [] A ideia de singularidades

8 Dizemos ldquosupostordquo tendo em vista que em nossa opiniatildeo Deleuze forccedila demais a oposiccedilatildeo entre o que Leibniz afirmou na correspondecircncia que travou com Arnauld especialmente a nota agrave carta de 13 de maio de 1686 e teria querido dizer nos paraacutegrafos finais da Teodiceia especialmente o sect414 Cf DELEUZE 2003 p 118 [nota 4]

9 A expressatildeo ldquoHaacute contudo como veremos uma mudanccedila muito importanterdquo parece apontar para uma interpretaccedilatildeo diferente da de Husserl e que seraacute parte do motivo de retornar agrave filosofia leibniziana nas seacuteries seguintes diferenccedila

214 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-

individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste

domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)

Segundo Deleuze Husserl teria construiacutedo um campo transcendental

sem atentar para as condiccedilotildees impostas por Sartre em seu famoso artigo de

1937 intitulado ldquoA transcendecircncia do Egordquo e natildeo teria vislumbrado a ideia

de ldquosingularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo que jaacute estariam

suficientemente desenvolvidas na filosofia de Leibniz10 em uma palavra

Husserl teria se mantido kantiano demais11 talvez inclusive por natildeo ter

compreendido uma suposta precedecircncia do mundo com relaccedilatildeo agrave mocircnada

expressiva e a arbitrariedade da aplicaccedilatildeo irrestrita do princiacutepio de inclusatildeo

do predicado no sujeito dito de outra forma por Husserl natildeo ter visto em

Leibniz uma loacutegica do acontecimento ou topologia de superfiacutecie que

permitiria a ldquodeterminaccedilatildeo daquele domiacutenio e de sua potecircncia geneacuteticardquo e

ainda de outra forma por natildeo ter visto nos textos de Leibniz os elementos

para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese segundo a qual as ldquosingularidadesrdquo ou ldquoanti-

generalidadesrdquo devem ser consideradas ldquoimpessoais e preacute-individuaisrdquo

Como era de se esperar dada a associaccedilatildeo ao conceito de mocircnada Deleuze

trataraacute na 16ordf seacuterie (ldquoDa gecircnese estaacutetica ontoloacutegicardquo) da Loacutegica do sentido

da filosofia de Leibniz e como esta permitiria compreender a constituiccedilatildeo de

tal campo e tal ideia e que se tornaraacute a base de sua argumentaccedilatildeo em A

dobra ndash o que fica evidente especialmente em seu capiacutetulo 5 trata-se aqui

de levar adiante aquilo que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do

sentido ou do acontecimento12

Entatildeo nos voltando para a conclusatildeo da 16ordf seacuterie e parte da sua

hipoacutetese geral A primeira pergunta que devemos fazer eacute Qual eacute o

que causou muita estranheza a muitos interpretes de Leibniz Gonzalo deixa claro em seu artigo jaacute mencionado os termos em que se deu a polecircmica entre Fremont e Deleuze

10 Certamente o que permitiraacute a Deleuze terminar A dobra dizendo que permanecemos leibnizianos (DELEUZE 1991 p 208) posicionamento filosoacutefico com o qual esse sim Alain Badiou se potildee em desacordo ao defender a ldquooutra escolha ontoloacutegicardquo (BADIOU 2015 p 39-44)

11 DELEUZE 2003 p 101

12 Idem todo o final da 14ordf seacuterie

William de Siqueira Piauiacute | 215

imperativo do uso das obras de Carroll que marcaria as nuacutepcias da

linguagem e do inconsciente A resposta eacute a contestaccedilatildeo da identidade

pessoal (Idem p 3) Pressuposto que permitia a circulaccedilatildeo da ldquocasa vaziardquo

e o falar das ldquosingularidades pre-individuais e natildeo pessoaisrdquo ldquoque natildeo satildeo

nem da ordem do geral nem da ordem do individual nem pessoais nem

universaisrdquo ldquoem sumardquo o que possibilitaria a produccedilatildeo do sentido Se

deixar arrastar pelos verbos de puro devir natildeo deixar que a noccedilatildeo de

atributo verbal seja confundida e assimilada pela de predicado da loacutegica

formal (claacutessica-aristoteacutelica) dai que evidente e novamente se queremos

tomaacute-lo como ponto de partida tenha de ser arbitraacuterio na filosofia de

Leibniz a inerecircncia do predicado no sujeito (Idem p 115) o que deve levar

agravequeles conceitos de pessoa ou indiviacuteduo que permitiriam comparar Alice

com uma mocircnada e Silvia e Bruno com pessoas vagas Mas seraacute mesmo

arbitraacuterio

Assim e para o que nos interessa em Loacutegica do sentido os pontos

principais e o centro da interpretaccedilatildeo de Deleuze da filosofia leibniziana

estariam na seguinte afirmaccedilatildeo

Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada

mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente

compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia

dos predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo

expresso natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas

mocircnadas como a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos

verdade entretanto que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas (Dieu

creacutee le monde plutocirct que les monades)13 e [tambeacutem eacute verdade] que o expresso

13 Outra traduccedilatildeo possiacutevel dessa afirmaccedilatildeo e que afasta o problema da anterioridade temporal seria ldquoDeus cria o mundo e natildeo (plutocirct que) as mocircnadasrdquo A expressatildeo francesa plutocirct nos arrastaria inclusive para o que parece ser o contraacuterio da anterior ldquoDeus cria o mundo sobretudo (plutocirct) as mocircnadasrdquo Nossa interpretaccedilatildeo vai se basear na afirmaccedilatildeo e nota correspondente o que tambeacutem consideramos ser uma intensificaccedilatildeo feitas em A dobra Leibniz e o barroco ldquoEstas natildeo satildeo as generalidades mas acontecimentos gotas de acontecimento Nem por isso deixam [os acontecimentos as gotas de acontecimento] de ser preacute-individuais uma vez que o mundo eacute virtualmente primeiro em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que o expressam (Deus criou natildeo Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou) O indiviacuteduo nesse sentido eacute atualizaccedilatildeo de singularidades preacute-individuais [Elles nrsquoen sont pas moins preacute-individuelles dans la mesure ougrave le monde est virtuellement premier par rapport aux individus qui lrsquoexpriment (Dieu a creacuteeacute non pas Adam peacutecheur mais le monde ougrave Adam a peacutecheacute) Lrsquoindividu en ce sens est lrsquoactualisation de singulariteacutes preacute-individuelles et nrsquoimplique aucune speacutecification preacutealable Il faut mecircme dire le contraire et constater que la speacutecification suppose elle-mecircme lrsquoindividuation]rdquo (DELEUZE 1991 p 101) Podemos mesmo falar em

216 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

natildeo se confunde com sua expressatildeo mas [partindo de um ponto de vista

estoico] insiste ou subsiste () Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos

predicados na filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na

mocircnada expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo

expresso e esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras

singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que

pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a]

uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdade Leibniz foi muito longe nesta

primeira etapa da gecircnese [ontoloacutegica de um certo campo transcendental

impessoal e preacute-individual ou das singularidades entendidas como

verdadeiros acontecimentos transcendentais14] o indiviacuteduo constituiacutedo

como centro de envolvimento como envolvendo singularidades em um

mundo e sobre seu corpo (Idem p 114-5 grifo nosso)15

Como jaacute indicamos ao falar da associaccedilatildeo de Husserl com os achados

estoicos para aleacutem da noccedilatildeo de sujeito indiviacuteduo ou pessoa o outro tema

cariacutessimo agrave Loacutegica do sentido e que tambeacutem deve ter contribuiacutedo para a

escolha da filosofia leibniziana eacute o de ldquoexpressatildeordquo tema que leva agrave

pergunta Como as mocircnadas expressariam o mundo e qual a ordem de

precedecircncia ou preferecircncia seja com relaccedilatildeo a Deus ao mundo ou aos

corpos De qualquer modo com relaccedilatildeo agrave polecircmica entre ambos natildeo eacute

preciso muito para compreender a insistecircncia de Fremoacutent na reconstruccedilatildeo

anterioridade virtual do mundo em Leibniz Seria isso suficiente para aceitarmos o deslocamento proposto por Deleuze desde a Loacutegica do sentido

14 Cf a p 105 da mesma obra

15 ldquoSrsquoeffectuer crsquoest aussi ecirctre exprimeacute Leibniz soutient une thegravese ceacutelegravebre chaque monade individuelle exprime le monde Mais cette thegravese nrsquoest pas suffisamment comprise tant qursquoon lrsquointerpregravete comme signifiant lrsquoinheacuterence des predicats dans la monade expressive Car il est bien vrai que le monde exprimeacute nrsquoexiste pas hors des monades qui

lrsquoexpriment donc existe dans les monades comme la seacuterie des preacutedicats qui leur sont inheacuterents Il nrsquoest pas moins vrai cependant que Dieu creacutee le monde plutocirct que les monades et que lrsquoexprimeacute ne se confond pas avec son expression mais insiste ou subsiste [nota 1] [] Il est arbitraire de privileacutegier lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la philosophie de Leibniz Car lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la monade expressive suppose drsquoabord la compossibiliteacute du monde exprimeacute et celle-ci agrave son tour suppose la distribution de pures singulariteacutes drsquoapregraves des regravegles de convergence et de divergence qui appartiennent encore agrave une logique du sens et de lrsquoeacuteveacutenement non pas agrave une logique de la preacutedicacion et de la veacuteriteacute Leibniz a eacuteteacute tregraves loin dans cette premiegravere eacutetape de la genegravese lrsquoindividu constitueacute comme centre drsquoenveloppement comme enveloppant des singulariteacutes dans un monde et sur son corps et Adammiddotnon peacutecheur deacutecoule de lrsquoincompossibiliteacute des mondes ougrave Adam pegraveche et ne pegraveche pas Dans chaque monde les monades individuelles expriment toutes les singulariteacutes de ce monde - une infiniteacute - comme dans un murmure ou un eacutevanouissement mais chacune nrsquoenveloppe ou nrsquoexprime laquoclairementraquo qursquoun certain nombre de singulariteacutes celles au voisinage desquelles elle se constitue et qui se combinent avec son corpsrdquo (DELEUZE 1969 p 134-5) Ao que segue o comentaacuterio da nota 1 ldquoTema constante das cartas de Leibniz a Arnauld Deus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou (Theme constant des lettres de Leibniz agrave Arnauld Dieu a creacuteeacute non pas exactament Adam-pecheur mais le monde ouacute Adam peacutecheacute)rdquo

William de Siqueira Piauiacute | 217

dos conceitos leibnizianos de Deus e de indiviacuteduo fica evidente com a

citaccedilatildeo feita acima que esses deveriam fazer a base da argumentaccedilatildeo do

proacuteprio Deleuze que muitas vezes prefere recorrer aos textos esparsos e

de difiacutecil interpretaccedilatildeo em que Leibniz fala de compossibilidade ou

incompossibilidade da universalidade ou generalidade e singularidade ou

especificaccedilatildeo das regras de convergecircncia ou divergecircncia e mesmo do

caacutelculo diferencial e integral mas natildeo tanto aos em que o alematildeo fala

propriamente dos conceitos de substacircncia particular ou mocircnada

individual Todavia natildeo eacute nossa intenccedilatildeo remontar tal embate Assim eacute

nossa pretensatildeo problematizar ainda uma vez a partir dos textos onde

Leibniz de fato trata deles inclusive os associando os assuntos ldquoinerecircncia

do predicado no sujeitordquo ldquoDeusrdquo ldquomocircnada individualrdquo ou ldquosubstacircncia

particularrdquo e ldquoacontecimentordquo tentando remontar o que do nosso ponto

de vista parece ser um dos principais problemas da leitura deleuziana

certa cadeia argumentativa e associaccedilatildeo inevitaacutevel de temas presentes nos

textos leibnizianos

Dito isso em primeiro lugar mesmo que acreditemos que a leitura

que faz Russell da filosofia de Leibniz eacute purista demais com relaccedilatildeo agrave sua

vinculaccedilatildeo agrave loacutegica aristoteacutelica se eacute arbitraacuterio a inerecircncia do predicado no

sujeito com relaccedilatildeo agrave mocircnada individual expressiva ndash que devemos fazer

preceder da noccedilatildeo de uma substacircncia individual16 ndash Deleuze deveria ter se

explicado melhor quanto agrave afirmaccedilatildeo feita no sect8 do Discurso de

metafiacutesica que trata justamente do conceito de Deus e de ldquoem que

consiste uma substacircncia individualrdquo a saber

Ora eacute bem constante que toda predicaccedilatildeo tem algum fundamento verdadeiro

na natureza da coisa e quando uma proposiccedilatildeo natildeo eacute idecircntica isto eacute quando

o predicado natildeo estaacute compreendido expressamente no sujeito eacute preciso que

esteja compreendido nele virtualmente A isto chamam os filoacutesofos in-esse

16 Com relaccedilatildeo ao modo como compreendemos a associaccedilatildeo do conceito de mocircnada humana com o de substacircncia individual indicamos nossos artigos ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo e ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e Infinito em Leibnizrdquo seja como for eacute no sentido do conceito de substacircncia individual ou noccedilatildeo de indiviacuteduo singular ou noccedilatildeo individual completa ou mesmo de pessoa possiacutevel que Deleuze entende o conceito de mocircnada individual ou humana

218 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

dizendo estar o predicado no sujeito Eacute preciso pois o termo do sujeito

conter sempre o do predicado de tal forma que quem entender

perfeitamente a noccedilatildeo do sujeito julgue tambeacutem que o predicado lhe

pertencerdquo (LEIBNIZ 1983 p 124 grifo nosso)

Afirmaccedilatildeo que fundamentaraacute as seguintes consequecircncias

Isto posto podemos dizer que a natureza de uma substacircncia individual ou

de um ser complexo consiste em ter uma noccedilatildeo tatildeo perfeita que seja

suficiente para deduzir de si todos os predicados do sujeito a que se

atribui estaacute noccedilatildeo [] [Daiacute que] Deus vendo a noccedilatildeo individual ou

ecceidade de Alexandre nela vecirc ao mesmo tempo o fundamento e a razatildeo

de todos os predicados que verdadeiramente dele se podem afirmar []

(Idem grifo nosso)

Apesar do deslocamento quanto agrave noccedilatildeo de criaccedilatildeo antes ou depois

de preferecircncia ou natildeo com relaccedilatildeo ao mundo ateacute aqui nada aponta para

uma restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse a natildeo ser a menccedilatildeo ao virtual

(virtuellement) ou seja nada aponta para a restriccedilatildeo do princiacutepio de

inerecircncia do predicado no sujeito especialmente quando se trata de pensar

a natureza de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo individual

completa ou perfeita noccedilatildeo individual ou ecceidade bem como nada

parece apontar para algo que permitisse concluir que ldquoDeus criou natildeo

exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo talvez no

sentido que a qualidade o adjetivo ldquopecadorrdquo o predicado natildeo seria

previa e propriamente ldquoinerenterdquo ao sujeito Adatildeo Restaria pois

compreender o que seria essa visatildeo sem precedecircncia ou preferecircncias e ldquoao

mesmo tempordquo da noccedilatildeo individual ou ecceidade O que quer dizer este

ldquoao mesmo tempordquo esta simultaneidade e como compreender este

fundamento e razatildeo de todos os predicados que verdadeiramente se

podem afirmar de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo

individual completa ou perfeita de um ser complexo (talvez o misteacuterio

mencionado em A dobra) Mas natildeo resta duacutevida que a verdade entra em

jogo aqui jaacute que se trata tambeacutem do fundamento de ldquotoda predicaccedilatildeordquo

por isso mesmo podemos colocar o problema no mesmo registro da

William de Siqueira Piauiacute | 219

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld17 quando o alematildeo afirma jaacute

na carta de 14 de julho de 1686 que semper enim notio praedicati inest

subjecto in propositione vera18 Nesse sentido a questatildeo seria perguntar se

o conhecimento que Deus tem de uma substacircncia individual noccedilatildeo

individual completa ou perfeita um noccedilatildeo individual ou ecceidade eacute certo

ndash infaliacutevel ndash a ponto de dizermos que as proposiccedilotildees formadas com relaccedilatildeo

a elas tecircm de ser ditas verdadeiras ou falsas mas claro que para Leibniz o

conhecimento de Deus eacute infaliacutevel e mesmo que em termos de predicaccedilatildeo

tiveacutessemos que levar a anaacutelise de tais noccedilotildees ao infinito temos de lembrar

que aquele conhecimento tambeacutem compreende o infinito Restaria ainda

perguntar se tal conhecimento se prenderia a uma caracteriacutestica

semelhante a um atributo verbal no sentido deleuzeano ou a um predicado

no sentido claacutessico De qualquer modo no sect31 do Discurso de metafiacutesica

que trata justamente da ldquorazatildeo que fez Deus chamar agrave existecircncia tal pessoa

possiacutevelrdquo tal substacircncia individual noccedilatildeo individual completa ou perfeita

noccedilatildeo individual ou ecceidade possiacuteveis e dos acontecimentos relacionados

a tais pessoas possiacuteveis ao menos parte da questatildeo eacute resolvida com a

seguinte consequecircncia geral

[] creio mais exato e seguro dizer segundo nossos princiacutepios e como jaacute notei

ser forccediloso haver entre os entes possiacuteveis a pessoa de Pedro ou Joatildeo cuja

noccedilatildeo ou ideia conteacutem toda esta seacuterie de graccedilas ordinaacuterias e todo o resto

destes acontecimentos (eacuteveacutenements) com suas circunstacircncias e que entre

uma infinidade de outras pessoas igualmente possiacuteveis agradou a Deus

escolhecirc-la para existir atualmente (actuellement) (Idem p 147 grifo nosso)19

17 Insistindo pois naquele lugar onde esse tema teria sido tatildeo debatido cf DELEUZE 2003 [nota 1] p 114

18 ldquoDe fato [ou manifestamente] na proposiccedilatildeo verdadeira sempre a noccedilatildeo do predicado lsquoinerersquo ao sujeitordquo

19 De pleno acordo com o que Leibniz defende na nota agrave carta de Arnauld com relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma noccedilatildeo vaga de sujeito ldquo[primeira resposta] que minha suposiccedilatildeo natildeo eacute simplesmente que Deus tenha querido criar um Adatildeo cuja noccedilatildeo seja vaga e incompleta mas que Deus quis criar um tal Adatildeo suficientemente determinado para um indiviacuteduo Esta noccedilatildeo individual completa encerra [ou envolve] em minha opiniatildeo relaccedilotildees com toda a serie das coisas o qual deve parecer tanto mais razoaacutevel quanto que o Sr Arnauld me concede aqui o enlace que haacute entre as resoluccedilotildees de Deus a saber que Deus ao resolver-se a criar determinado Adatildeo tem em conta todas as resoluccedilotildees que toma sobre toda a seria do universo agrave maneira de uma pessoa prudente que ao tomar uma resoluccedilatildeo com respeito a um propoacutesito tem em vista em sua totalidade dito propoacutesito jaacute que pode decidir-se melhor quando se resolve sobre todas as partes (que ma supposition nrsquoest paacutes simplement que Dieu a voulu creacuteer un Adam dont la notion soit vague et incomplegravete mais que Dieu a voulu creacuteer un tal Adam assez deacutetermineacute agrave un individu Et cette notion individuelle complete selon moi enveloppe decircs rapport agrave toute la suite des choses ce qui doit paraicirctre

220 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Fica evidente inclusive que mesmo quanto aos acontecimentos

(eacuteveacutenements) todos jaacute com suas circunstacircncias devem ser considerados

incluiacutedos nas ideias das pessoas possiacuteveis ou nas noccedilotildees completas das

pessoas possiacuteveis ou seja nas noccedilotildees das substacircncias individuais ou

particulares noccedilotildees individuais ou ecceidades possiacuteveis Em que sentido

portanto interpretar a afirmaccedilatildeo ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo

pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo Talvez ou no sentido que haacute

uma ruptura no desenvolvimento da filosofia de Leibniz entre o conceito

de substacircncia individual e mocircnada como querem muitos comentadores

ou concedendo que em Leibniz haveria a afirmaccedilatildeo do conceito de pessoa

vaga o que natildeo vemos como corroborar tendo em vista o que eacute afirmado

na nota agrave carta que mencionamos em nota mais acima mas poderia ser

um problema com relaccedilatildeo agrave hipoacutetese interpretativa que o sect414 da

Teodiceia exige uma ldquounidade objetividade muito especialrdquo para ser

compreendido e neste caso voltariacuteamos a uma saiacuteda semelhante agrave

daqueles comentadores Mas se nos mantemos na eacutepoca do Discurso

certamente podemos dizer que aquela consequecircncia seraacute seguida da

explicaccedilatildeo que parte dos princiacutepios fundamentais que guiam a

argumentaccedilatildeo de Leibniz satildeo 1) o da perfeiccedilatildeo ou completude das

operaccedilotildees de Deus e 2) o da noccedilatildeo individual completa ou perfeita (uma

noccedilatildeo natildeo vaga e natildeo incompleta) que encerra in-esse todos os

acontecimentos com todas as suas circunstacircncias Ateacute este momento o do

Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld

portanto nada parece apontar para o acontecimento ou gota de

acontecimento no sentido deleuziano mesmo que o revolucionaacuterio artigo

drsquoautant plus raisonnable que M Arnauld mrsquoaccorde ici la liaison qursquoil y a entre les reacutesolutions de Dieu savoir que Dieu prenant la reacutesolutions de creacuteer un tel Adam a eacutegard agrave toutes lecircs reacutesolutions qursquoil prend touchand toute la suiacutete de lrsquouniverse agrave peu pregraves comme une persone sage qui prend une reacutesolutions agrave lrsquoegard drsquoune partie de son dessein lrsquoa tout entier em vue et se reacutesoudra drsquoautant mieux si elle pourra se reacutesoudre drsquoautant mieux si elle pourrra se resoudre sur toutes lecircs parties agrave la fois)rdquo (LEIBNIZ 1900 p 182) Cf tambeacutem DELEUZE 2003 p 118 [e tambeacutem a nota 4] Vale lembrar que a questatildeo da escolha entre uma infinidade de pessoas possiacuteveis leva o problema do conhecimento do infinito natildeo mais para uma anaacutelise infinita de uma noccedilatildeo e sim para a de uma infinidade de noccedilotildees uma multidatildeo ou conjunto infinitos nesse sentido agrave de compossibilidade e incompossibilidade quanto ao que pensamos sobre a ligaccedilatildeo desse detalhe com o labirinto da liberdade gostariacuteamos de indicar novamente nosso artigo ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibnizrdquo

William de Siqueira Piauiacute | 221

sobre ldquoUm novo meacutetodo para os maacuteximos e miacutenimos assim como para as

tangentes que natildeo para ante quantidades fracionaacuterias ou irracionais e eacute

um gecircnero singular de caacutelculo para estes problemasrdquo jaacute esteja pronto

comprovadamente desde 1684 Na verdade cremos que a melhor

estrateacutegia para pensar uma topologia da superfiacutecie em Leibniz a partir de

1684 seria reconstituir sua noccedilatildeo de funccedilatildeo e se voltar para a sua

dinacircmica20 mas se distanciando de sua noccedilatildeo de mocircnada humana e

afirmando inclusive diferenccedilas importantes entre o conceito de substacircncia

individual do Discurso e o de mocircnada na Monadologia

De qualquer modo e em sentido contraacuterio agora a noccedilatildeo de pessoa

defendida no Discurso parece ser um desenvolvimento da de pessoa

espiritual que Leibniz defendia jaacute na carta a Molanus de 167921 justamente

contra a moral Estoica ndash o que deveria ter chamado a atenccedilatildeo do jovem

Deleuze ndash e a de Descartes e natildeo eacute diferente da utilizada na

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld portanto ambas as seacuteries de

cartas estariam em pleno acordo com o Discurso Mais que isso do nosso

ponto de vista trava-se desde a carta a Molanus daquilo que permitiraacute

compreender a peculiaridade e novidade do fatum christianum do iniacutecio

da Teodiceia novamente contra o fatum stoiumlcum vale lembrar Aleacutem

disso a noccedilatildeo individual completa ou perfeita eacute reafirmada nos Novos

ensaios justamente no capiacutetulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou

diversidaderdquo ndash capiacutetulo curiosamente natildeo analisado por Deleuze seja em

Loacutegica do sentido seja em A dobra ndash onde jaacute aparece o conceito de

mocircnada que a partir dali assimilaraacute grande parte das caracteriacutesticas do

conceito de noccedilatildeo individual completa ou perfeita capiacutetulo que deveria ter

sido interpretado por Deleuze ou ao menos mencionado dado que tanto

em A dobra e mais ainda em Loacutegica do sentido se tratava do problema

da identidade pessoal Assim ateacute por conta da boa nova que representaria

a obra carrolliana quanto agrave dissoluccedilatildeo da identidade pessoal nos parece

20 Quanto ao que pensamos sobre o conceito leibniziano de funccedilatildeo associado ao de continuidade e histoacuteria gostariacuteamos de indicar nosso artigo ldquoLeibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologiardquo

21 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartesrdquo

222 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que teria faltado um agrupamento mais cuidadoso dos textos a partir do

tema geral da noccedilatildeo individual completa ou perfeita De qualquer modo

ateacute esse momento o do Discurso ou em torno dos Novos ensaios e com

relaccedilatildeo seja ao conceito de mocircnada humana individual seja o de noccedilatildeo

individual completa natildeo vemos a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos alcanccedilados com o

artigo de 1684 ou que nos obrigue a leitura do texto ldquoSobre o meacutetodo da

universalidaderdquo de conforme Couturat o mais tardar 167422 o que parece

deixar sem fundamento o deslocamento exigido por Deleuze ao menos em

a Loacutegica do sentido A partir de quais textos que tratem propriamente do

problema do sujeito indiviacuteduo e mocircnada humana com as associaccedilotildees que

mencionamos acima fundamentariacuteamos aquela exigecircncia de recusarmos

o princiacutepio inesse e a de estarmos obrigados a apelar para as regras de

divergecircncia e convergecircncia ou para outro tipo de singularidade

Arriscariacuteamos dizer que por conta do todo da obra apenas os sect6 que

menciona a noccedilatildeo de funccedilatildeo e sect17 a sect22 que trabalham o conceito de

forccedila e causalidade final do Discurso poderiam fornecer algum

fundamento para tal deslocamento mas todo o resto da obra seria prova

suficiente que a adoccedilatildeo de tais regras em nada invalida o princiacutepio inesse

principalmente se as questotildees tiverem a ver com a tentativa de pensar a

noccedilatildeo completa de indiviacuteduo ou aquele conceito de mocircnada humana

defendido nos Novos ensaios e mesmo os conceitos de acontecimento e

suas circunstacircncias ou o conteuacutedo do intelecto divino23

Dito assim voltando ainda uma vez ao Discurso de metafiacutesica o

sect14 que trata das perspectivas do universo que Deus decide criar e que

corresponderiam ao que acontece agraves substacircncias individuais ndash talvez

daquilo que sem nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de Leibniz permitiria falar

da aplicaccedilatildeo das regras de convergecircncia e divergecircncia ou ao novo meacutetodo

para os maacuteximos e miacutenimos ndash natildeo deixa duacutevidas quanto agrave noccedilatildeo de

22 Anterior agrave carta a Molanus portanto

23 Vale lembrar o tiacutetulo que recebeu o sect6 do Discurso ldquoDeus nada faz fora de ordem e nem eacute possiacutevel forjar acontecimentos (eacuteveacutenements) que natildeo sejam regularesrdquo Neste caso os outros paraacutegrafos que mencionamos encaminham a pergunta que talvez impediria aquele deslocamento Com relaccedilatildeo ao conteuacutedo do intelecto divino o que faz o fundamento ou substacircncia da continuidade da mudanccedila Problema que no nosso entender eacute o principal que aparece jaacute desde o iniacutecio da Monadologia cf sect8 e que exige a noccedilatildeo de mocircnada individual fechada

William de Siqueira Piauiacute | 223

acontecimento e emprego irrestrito do princiacutepio da inclusatildeo do predicado

no sujeito com relaccedilatildeo agraves ideias de pessoas ou noccedilotildees completas ali

Leibniz afirmava

De certo modo e no bom sentido embora afastado do usual poder-se-aacute dizer

que nunca uma substacircncia particular atua (agit) sobre uma outra substacircncia

particular e tampouco padece se os eventos24 de cada um satildeo considerados

apenas como consequecircncia de sua simples ideia ou noccedilatildeo completa pois

esta ideia [ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular] encerra jaacute

todos os predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime

(exprime) todo o universo Com efeito nada pode acontecer-nos (arriver)

aleacutem de pensamentos e percepccedilotildees e todos os nossos futuros pensamentos e

percepccedilotildees natildeo passam de consequecircncias embora contingentes

(contingentes) dos nossos pensamentos e percepccedilotildees anteriores de tal modo

que se eu fosse capaz de considerar distintamente tudo quanto nesta hora

me acontece ou aparece nessa percepccedilatildeo poderia ver tudo quanto me

aconteceraacute e apareceraacute sempre o que natildeo falharia e aconteceria da mesma

maneira embora tudo quanto existisse fora de mim fosse destruiacutedo desde que

restasse Deus e eu (LEIBNIZ 1983 p 129-30)

A ideia ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular encerra jaacute

todos os predicados ou acontecimentos e exprime todo o universo E

exprime jaacute enquanto ideia ou noccedilatildeo completa todo o universo Claro que

um grande problema eacute compreender aquela contingecircncia mas natildeo no

esqueccedilamos da intensificaccedilatildeo que vem a seguir ldquodesde que restasse

apenas eu e Deusrdquo Apesar da necessidade de problematizar quatildeo longe

vai a impossibilidade de distinccedilatildeo completa dos nossos pensamentos e

percepccedilotildees certamente associada agrave necessidade de uma anaacutelise infinita

para a compreensatildeo total ou perfeita de uma noccedilatildeo individual o que pode

apontar para aquela contingecircncia em nenhum momento da Carta a

Molanus do Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz

e de Anauld vimos Leibniz afirmar a precedecircncia ou preferecircncia do

mundo e mesmo dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de pessoas

24 Aqui podemos ter um problema de traduccedilatildeo de fato soacute mais agrave frente surgiraacute no original francecircs a palavra lsquoeventorsquo ou lsquoacontecimentorsquo ou seja eacuteveacutenement

224 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

especialmente no sentido que haveria singularidades que precederiam as

individualidades o que justificaria a necessidade de recorrermos agraves suas

noccedilotildees de compossibilidade e incompossibilidade ou agraves regras de

convergecircncia e de divergecircncia Parece-nos que a afirmaccedilatildeo ldquoesta ideiardquo ou

noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular ldquoencerra jaacute todos os

predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime

(exprime) todo o universordquo vai justamente no sentido contraacuterio ao

pretendido por Deleuze De qualquer modo o problema da significaccedilatildeo do

conceito de expressatildeo seu campo semacircntico parece nos obrigar a passar

para a regiatildeo dos possiacuteveis e vai mais no sentido das noccedilotildees completas

para o universo do que o contraacuterio Assim eacute preciso atentar para o fato

que ao menos aqui ldquopredicadordquo ldquoacontecimentordquo e ldquoexpressatildeordquo satildeo

colocados no mesmo registro daquelas ideias e nada aponta para uma

restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse ou para a anterioridade ou preferecircncia do

mundo com relaccedilatildeo agraves ideias ou noccedilotildees completas de substacircncias

particulares ou mocircnadas individuais De qualquer modo e essa eacute nossa

opiniatildeo os paraacutegrafos finais da Teodiceia e a uacuteltima carta que Leibniz

escreveu a Samuel Clarke parecem ser decisivos Primeiro

Vocecirc vecirc [afirma a deusa Palas Atena] que meu pai [Juacutepiter] natildeo fez Sextus

mau ele [Sextus] o foi [mau] desde toda a eternidade ele o foi sempre

livremente [meu pai] soacute fez lhe consentir a existecircncia que sua sabedoria

natildeo podia recusar ao mundo em que ele estaacute compreendido ele o fez

passar da regiatildeo dos possiacuteveis para a dos seres atuais (LEIBNIZ 2013

[Teodiceia] sect416 p 415 grifo nosso)

Aqui eacute afirmada a necessidade de uma determinada pessoa possiacutevel

dever estar compreendida em um determinado mundo possiacutevel25 que

Deus ou na histoacuteria que termina a Teodiceia Juacutepiter faz ou consente vir

agrave existecircncia suposto ser o melhor dos mundos possiacuteveis ldquopassar da regiatildeo

dos possiacuteveis para a dos seres atuaisrdquo e certamente podiacuteamos pensar tal

25 A partir da perfeiccedilatildeo das operaccedilotildees do intelecto divino Leibniz natildeo soacute natildeo defende que haacute pessoas possiacuteveis vagas mas tambeacutem natildeo haacute propriamente falando mundos possiacuteveis vagos

William de Siqueira Piauiacute | 225

necessidade nos valendo da noccedilatildeo de compossibilidade e

incompossibilidade mas natildeo nos adiantemos Eacute preciso voltar ao que diz

o texto e lembrar que Juacutepiter apenas consentiu a existecircncia a Sextus

existecircncia que eacute precedida portanto de uma noccedilatildeo completa individual

que faz parte do conteuacutedo do intelecto divino e que se relaciona com as

perfeiccedilotildees de suas operaccedilotildees daiacute sua eternidade perfeiccedilatildeo ou completude

(em oposiccedilatildeo a vago) e precedecircncia com relaccedilatildeo agrave existecircncia isto eacute agrave

posterior atualizaccedilatildeo Em que sentido portanto interpretar a afirmaccedilatildeo

ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo

pecourdquo Contra parte da interpretaccedilatildeo de Deleuze pois Apolo-Juacutepiter natildeo

criou Sextus mau ou fez a inclusatildeo de tal predicado ou atributo verbal a

partir de uma seacuterie universo ou mundo determinado de singularidades

adjacentes preacute-individuais natildeo eacute nesse sentido que o mundo precede ou

tem preferecircncia com relaccedilatildeo a Sextus De todo modo e no mesmo sentido

das trecircs obras que mencionamos mais acima nem o Deus cristatildeo criou

Adatildeo pecador nem Juacutepiter criou o Sextus violador (de Lucreacutecia)26 eles o

foram de modo completo e perfeito desde sempre e seus acontecimentos

com todas as circunstacircncia estavam registrados no livro dos destinos ou

das verdades eternas no palaacutecio dos destinos ou na regiatildeo dos possiacuteveis

no mesmo ldquolugarrdquo em que Leibniz diz muitas vezes deveriacuteamos ldquobuscarrdquo

os mundos possiacuteveis as seacuteries que corresponderiam aos universos etc

Deus ou Juacutepiter os teriam visto como ideias ou noccedilotildees completas e sem

precedecircncia de tempo ou preferecircncia moral ao mesmo tempo e antes do

decreto da criaccedilatildeo Justamente o que permite dizer do diabo que ldquoporque

estava escrito no livro das verdades eternas que conteacutem tambeacutem os

possiacuteveis antes de todo o decreto de Deus que essa criatura [o diabo] se

dirigiria livremente para o mal se ela fosse criadardquo (Idem p 329)27

26 A partir disso perguntariacuteamos O Deus leibniziano a partir de sua ciecircncia de simples inteligecircncia natildeo vecirc desde sempre na ideia da natureza das criaturas livres Adatildeo e Sextus que elas satildeo pecadoras e violadoras (ou preguiccedilosa) Se sim natildeo fica claro de fato o que faz a base da necessidade daquele deslocamento e termos de supor uma noccedilatildeo leibniziana de acontecimento a partir de singularidades adjacentes

27 Eis o motivo porque Derrida achou necessaacuterio criticar em ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo (Escritura e diferenccedila) de 1967 as noccedilotildees leibnizianas de livro e histoacuteria criticar a noccedilatildeo de repeticcedilatildeo associada aos destinos depositados no palaacutecio dos destinos (Teodiceia sect414) ou no livro dos destinos (Teodiceia sect275) Certamente o que faria eco agrave recusa por parte de Badiou quanto agrave inclusatildeo de Mallarmeacute em A dobra E talvez aqui possamos pensar que tendo em vista que

226 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Somente assim Jupiacuteter natildeo se torna o culpado do destino de Sextus e natildeo

nos perdemos nessa regiatildeo do labirinto da liberdade Seja como for a

partir de seu conhecimento infinito e infaliacutevel Deus criou fez vir agrave

existecircncia exatamente Adatildeo pecador e de um soacute golpe o mundo em que

ele pecaraacute

Natildeo vemos outra maneira de interpretar o final da Teodiceia a natildeo

ser que queiramos e contra o que estabelece a filosofia leibniziana nos

perder no labirinto da liberdade e necessidade Daiacute que natildeo vemos como

corroborar aquela divisatildeo em seleccedilotildees28 que faz a base da hipoacutetese

interpretativa formulada no segundo momento da nota 4 da 16ordf seacuterie de

Loacutegica do sentido e que nos obrigaria aceitar aquele deslocamento e

ordem de dependecircncia Seraacute mesmo que precisamos pensar ldquouma unidade

objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo

de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo

infinitordquo base daquela necessidade de deslocamento e ordem de

dependecircncia que nos levaria para muito longe do que afirmava a nota agrave

carta a Arnauld de 13 de maio de 1686 que jaacute mencionamos em nota para

compreender os paraacutegrafos finais da Teodiceia

Deleuze natildeo menciona Derrida em a Loacutegica do sentido publicada um ano apoacutes Escritura e diferenccedila ou em A dobra a menccedilatildeo a Husserl e a inclusatildeo de Mallarmeacute podem ser indicadoras de sua oposiccedilatildeo agravequela interpretaccedilatildeo De qualquer modo tanto Derrida quanto Badiou recusam ou recusariam a opiniatildeo que permanecemos leibnizianos especialmente se queremos fazer Mallarmeacute estar de acordo conosco Se o leitor quiser entender melhor o que estamos tentando dizer aqui teraacute de cruzar nossos artigos ldquoLeibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agrave teoria tradicional da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegadardquo e ldquoDerrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeordquo e se perguntar se Leibniz natildeo tem de ser colocado naquele momento preacute Mallarmeacute e Goumldel em que se acreditava na completude sistecircmica da linguagem

28 Nos referimos agrave seguinte afirmaccedilatildeo ldquo[I momento] Distinguimos pois trecircs seleccedilotildees (seacutelections) conforme ao tema

leibniziano uma que define um mundo por convergecircncia uma outra que define neste mundo indiviacuteduos completos uma outra enfim que define elementos incompletos ou entes ambiacuteguos comuns a vaacuterios mundos e aos indiviacuteduos correspondentes [II momento] Sobre esta terceira seleccedilatildeo ou sobre Adatildeo lsquovagorsquo constituiacutedo por um pequeno nuacutemero de predicados (ser o primeiro homem etc) que devem ser completados diferentemente em diferentes mundos cf Leibniz lsquoObservaccedilotildees sobre a carta de M Arnauldrsquo [que citamos na nota 15] [] Eacute verdade que neste texto Adatildeo vago natildeo tecircm existecircncia por si mesmo vale somente com relaccedilatildeo ao nosso entendimento finito seus predicados natildeo satildeo mais que generalidades Mas ao contraacuterio no texto ceacutelebre da Teodiceia (sectsect414-416) os diferentes Sextus nos mundos diversos tecircm uma unidade objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo infinito Muito cedo Leibniz havia elaborado uma teoria dos lsquosignos ambiacuteguosrsquo em relaccedilatildeo com os pontos singulares tomando por exemplo as seccedilotildees cocircnicas [les diffeacuterents Sextus dans les mondes diverses ont une uniteacute objective tregraves speacuteciale qui repose sur 1a nature ambigueuml de la notion de singulariteacute et sur la cateacutegorie de problegraveme du point de vue drsquoun calcul infini Tregraves tocirct Leibniz avait eacutelaboreacute une theacuteorie des lsquosignes ambigusrsquo en rapport avec les points singuliers prenant pour exemple les sections coniques] cf lsquoDo meacutetodo da universalidadersquo (Opuacutesculos Couturat [p 97-144])rdquo (DELEUZE 2003 p 118 grifo nosso)

William de Siqueira Piauiacute | 227

Dito isso nos parece que o que faltou a Deleuze foi buscar

compreender melhor as noccedilotildees de ideia e representaccedilatildeo associadas agrave de

noccedilatildeo completa de um individuo singular tanto no Discurso e

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld quanto nos paraacutegrafos finais

da Teodiceia e como o uso indistinto que ele proacuteprio faz do filosofema o

comprova pouco importa os detalhes do desenvolvimento do conceito de

mocircnada humana individual Mas isso se pareceria muito com a criacutetica que

fez Derrida a Foucault e que jaacute mencionamos no iniacutecio Eacute como se Deleuze

tivesse ficado parado na parte da ficccedilatildeo em que Lorenzo Valla fala de um

querer ainda indeterminado uma singularidade preacute-individual apenas

que permitiria bifurcaccedilatildeo e soacute posterior inclusatildeo base de sua gecircnese

estaacutetica ontoloacutegica como um pecar ainda indeterminado um verbo-

atributo que permitiria falar em inclusatildeo do que ainda natildeo estava

totalmente ldquodeterminadordquo natildeo exatamente determinado o em bifurcaccedilatildeo

base daquela ldquounidade objetiva muito especialrdquo a partir de um mundo de

singularidades adjacentes um mundo regido por uma espeacutecie de siacutentese

disjuntiva que permitiria falar em ldquonatureza ambiacutegua da noccedilatildeo de

singularidaderdquo e em ldquocategoria do ponto de vista de um caacutelculo infinitordquo e

permitiria pensar indiviacuteduos possiacuteveis lsquovagosrsquo constituiacutedos ldquopor um

pequeno nuacutemero de predicados que devem ser completados

diferentemente em diferentes mundosrdquo mas tivesse se esquecido que

trata-se para Leibniz de uma ficccedilatildeo falsa que teria desconsiderado o

segundo aspecto do tipo de conhecimento que Apolo-Juacutepiter-Palas-Atena

teria ou seja soacute teria considerado algo semelhante agrave ciecircncia divina de

visatildeo (que vecirc as existecircncias o mundo ou os corpos) e esquecido a ciecircncia

da simples inteligecircncia (que vecirc todos os possiacuteveis sem precedecircncia ou

preferecircncia) neste caso justamente contra ao que advertia o proacuteprio

Leibniz a saber a ciecircncia da simples inteligecircncia eacute ldquoonde eacute preciso

procurar a fonte de todas as coisasrdquo (Idem p 416 [sect417]) tanto dos

mundos ou seacuteries universo quanto dos indiviacuteduos possiacuteveis

Segundo de qualquer modo pouco antes de morrer Leibniz afirmava

para Samuel Clarke

228 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

[sect6] Mas nem essa presciecircncia nem essa preordenaccedilatildeo atentam contra a

liberdade De fato Deus levado pela suprema razatildeo [que pode ser comparada

agrave suprema perfeiccedilatildeo do sect31 do Discurso de metafiacutesica] a fazer a escolha

entre muitas sequecircncias [ou seacuteries] de coisas ou mundos possiacuteveis daquele

em que as criaturas livres tomassem tais e tais resoluccedilotildees ainda que natildeo sem

seu concurso tornou assim todo acontecimento certo e determinado uma vez

por todas (tout eacuteveacutenement certain et determine une fois pour toutes) [] esse

simples decreto da escolha natildeo muda mas apenas atualiza as suas naturezas

[as das criaturas livres] vistas por ele em suas ideias (LEIBNIZ 1983 [Quinta

carta] p 194)29

Tanto Arnauld quanto o teoacutelogo Clarke teriam se incomodado com o

mesmo Novamente tendo em vista que a criaccedilatildeo do mundo eacute uma

atualizaccedilatildeo das naturezas das criaturas livres que foram vistas por Deus

em suas ideias e que eacute a partir do conhecimento preacutevio presciecircncia ou

ciecircncia da simples inteligecircncia de ldquotodasrdquo as resoluccedilotildees que elas tomaratildeo

que podemos falar em pontos de vistas de um mundo que as compreende

e que seraacute atualizado junto com elas tendo em vista tudo isso natildeo haacute

motivo para falar em precedecircncia de mundo que resulte em singularidades

preacute-individuais ou que Deus cria ou vecirc primeiro o mundo onde Adatildeo eacute

pecador que levaria a crer que Deus natildeo vecirc ou cria um Adatildeo exatamente

pecador Ou seja nada aponta para uma ldquounidade objetiva muito especialrdquo

que nos obrigaria a diferenciar a noccedilatildeo de individuo possiacutevel com relaccedilatildeo

ao Adatildeo da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld ou do Discurso

da com relaccedilatildeo aos Sextus dos paraacutegrafos finais da Teodiceia Se levarmos

a seacuterio as obras que mencionamos ateacute aqui e principalmente a histoacuteria

contada ao final da Teodiceia mesmo os mundos possiacuteveis tecircm como

conteuacutedo as noccedilotildees completas ou perfeitas de pessoas possiacuteveis e natildeo haacute

por que falar em anterioridade ou preferecircncia do mundo com relaccedilatildeo ao

seu conteuacutedo

29 Mais ny cette prescience ny cette preordination ne derogent point agrave la liberteacute Car Dieu porte par la supremo raison agrave choisir plusieurs suites des choses ou mondes possibiles celuy ougrave les creatures libres prendroient telles ou telles resolutions quoyque non sans son concours a rendu par lagrave tout evenement certain et determine une fois pour toutes sans deroger por lagrave a liberte de ces creatures ce simple decret du choix ne changeant point mais actualisant seulement leur natures libres quirsquoil y voyoit dans ses ideacutees

William de Siqueira Piauiacute | 229

Agora fica claro que ateacute o final da sua vida Leibniz defendeu natildeo soacute

uma noccedilatildeo de pessoa espiritual (previamente conhecida) daiacute de mocircnada

humana individual que de modo nenhum se assemelha agrave noccedilatildeo de uma

pessoa vaga mas tambeacutem de acontecimento (previamente conhecido e

ordenado) que de modo nenhum se assemelha agrave ideia de caos ou que

lembre siacutenteses disjuntivas portanto ambas nada tecircm a ver com as boas

novas que Deleuze viu seja nas trecircs obras de Carroll seja na filosofia dos

Estoicos Na verdade se obedecemos seja agrave ordem de argumentaccedilatildeo do

Discurso seja agrave da Monadologia quem ilumina a noccedilatildeo de

acontecimento mudanccedila ou movimento eacute a de substacircncia individual ou

mocircnada e natildeo o contraacuterio aleacutem disso o que permite compreender o

conhecimento preacutevio que o deus leibniziano teria do mundo a ser

efetivado daiacute criado depende do que ele considerava ser a ciecircncia de

simples inteligecircncia e natildeo de visatildeo

Do nosso ponto de vista o que dissemos ateacute aqui jaacute nos impediria de

aceitar a natildeo ser com muitas ressalvas e natildeo vemos qualquer vantagem

nisso o deslocamento exigido por Deleuze seja na 16ordf seacuterie de Loacutegica do

sentido seja no capiacutetulo ldquoIndividuaccedilatildeo e especificaccedilatildeordquo de A dobra ou

seja inclusive por que natildeo vimos motivo para aceitar a defesa daquela

ldquounidade objetiva muito especialrdquo nos uacuteltimos paraacutegrafos da Teodiceia os

textos que mencionamos parecem fornecer prova suficiente que natildeo eacute

necessaacuterio nos encaminhar para as noccedilotildees de compossibilidade ou

incompossibilidade e regra de convergecircncia ou divergecircncia se queremos

compreender adequadamente o que Leibniz entendia por pessoa ou

indiviacuteduo possiacutevel associado a acontecimento e que seria muito diferente

do que o tinha visto Husserl Ao inveacutes de comeccedilarmos por aceitar tal

deslocamento preferimos nos perguntar Mas quais entatildeo seriam as

principais fontes do deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo de Deleuze ou

da peculiaridade daquela unidade objetiva Nossa hipoacutetese eacute que a Loacutegica

do sentido e mesmo A dobra Leibniz e o barroco estariam associados agrave

excessiva importacircncia que ele deu agrave seguinte parte do sect414 da Teodiceia

230 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

E quando as condiccedilotildees natildeo estiverem determinadas o bastante haveraacute tanto

quanto se quiser de tais mundos diferentes entre si que responderatildeo

diferentemente agrave mesma questatildeo de tantas maneiras quanto eacute possiacutevel Vocecirc

aprendeu geometria quando era ainda jovem como todos os gregos bastante

elevados Vocecirc sabe entatildeo que quando as condiccedilotildees de um assunto que se

pergunta natildeo o determinam o bastante e que haacute uma infinidade deles e ao

menos esse lugar que frequentemente eacute uma linha seraacute determinado Desse

modo vocecirc pode afigurar uma sequecircncia regrada de mundos que conteratildeo

todos ou somente o caso de que se trata e nisso variaratildeo as circunstacircncias e

as consequecircncias Mas se vocecirc coloca um caso que natildeo difere do mundo

atual exceto numa uacutenica coisa definida e na sua sequecircncia um certo

mundo determinado lhe corresponderaacute esses mundos estatildeo aqui [no

palaacutecio dos destinos] quero dizer em ideias (LEIBNIZ 2103 p 413 grifo

nosso)

Novamente os mundos enquanto ideias estatildeo naquele ambiente

regido pela ciecircncia de simples inteligecircncia Mas talvez tenhamos aqui o

uacutenico caso em que uma variedade de mundos eacute posta antes dos indiviacuteduos

possiacuteveis ou da determinaccedilatildeo completa dos acontecimentos com suas

circunstacircncias e permitiria falar em uma unidade objetiva especial

entretanto eacute preciso lembrar que trata-se de uma suposiccedilatildeo em que ldquoas

condiccedilotildees natildeo estejam determinadasrdquo exatamente com o mesmo sentido

de suposiccedilatildeo da menccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pessoa vaga da nota agrave carta de Arnauld

ndash que jaacute mencionamos tantas vezes de qualquer modo tal suposiccedilatildeo deve

ser compreendida com a ajuda de noccedilotildees tiradas de uma geometria que jaacute

era conhecida dos gregos30 e no miacutenimo natildeo justifica simplesmente o

apelo ou passagem para uma topologia de superfiacutecie ou para a defesa da

tese que em Leibniz podemos encontrar a defesa da noccedilatildeo completa ou

perfeita de uma substacircncia particular a partir da de singularidade

subjacente ou de uma unidade objetiva especial Todavia e em primeiro

lugar tambeacutem eacute preciso lembrar o que vem logo em seguida e que

grifamos no texto acima justamente o que permite a consequecircncia e

30 Vejam que aqui o proacuteprio Leibniz natildeo faz qualquer referecircncia agraves novidades que havia descoberto em matemaacutetica seja com relaccedilatildeo ao infinito agraves singularidades ou aos signos ambiacuteguos o que ele faz ou daacute a entender em outros momentos da Teodiceia ele prefere tendo em vista a eacutepoca em que viveria o personagem Teodoro se referir ao que jaacute era conhecido a partir da geometria dos gregos

William de Siqueira Piauiacute | 231

comparaccedilatildeo que viratildeo a seguir ou seja neste palaacutecio dos destinos Palas

Atena diz que mostraraacute a Teodoro ldquoonde (ougrave) ele [Sextus] se encontraraacuterdquo

ao que se seguira a advertecircncia ldquonatildeo completamente o mesmo Sextus que

vocecirc viu isto natildeo pode ser pois ele leva sempre consigo aquilo que ele

seraacute mas outros Sextus semelhantesrdquo mas tambeacutem totalmente

determinados ldquoque teratildeo o que vocecirc jaacute conhece do verdadeiro Sextusrdquo

Tudo segue no sentido de que haacute presciecircncia das ldquosequecircncias [ou seacuteries]

de coisas ou mundos possiacuteveisrdquo nos quais tais ou tais ldquocriaturas livres

tomassem tais e tais resoluccedilotildeesrdquo Claro que aquele ldquoonderdquo se refere a um

lugar que deve ser pensado no plano das ideias e aqui sim poderiacuteamos

utilizar a topologia leibniziana (Caracteriacutestica Geomeacutetrica ou Analysis

situs) ou a doutrina do espaccedilo e tempo relacionais para compreender o

que seria a noccedilatildeo individual completa e perfeita de um tal Sextus Seja

como for jaacute podemos dizer que tal ou tais Sextus nada tecircm a ver com o

Fang de ldquoO jardim de caminhos que se birfurcamrdquo31 de Borges daiacute de Silvia

e Bruno ou das Alices de Carroll ou seja apesar de estar de acordo que

Leibniz eacute um antigeneralista quando se trata das noccedilotildees completas ou

perfeitas isso natildeo traz a consequecircncia que por isso ele teria de defender a

constituiccedilatildeo de indiviacuteduos a partir de singularidades adjacentes A natildeo

necessidade da consequecircncia pode ser pensada natildeo soacute a partir do que de

fato lemos no sect414 da Teodiceia mas ainda mais explicitamente nos dois

momentos do sect9 do Discurso eacute verdade que ali Leibniz se mostra um

antigeneralista e nesse sentido um antitomista mas tambeacutem eacute verdade

que manteacutem a noccedilatildeo tomista das inteligecircncias separadas para a

compreensatildeo adequada do que ele havia defendido no sect8 da mesma obra

a saber quod ibi omne individuum sit specie infima Concordamos que

para pensar a noccedilatildeo leibniziana de espeacutecie a partir dessa antigeneralidade

eacute preciso opor a noccedilatildeo matemaacutetica de espeacutecie agrave noccedilatildeo fiacutesica de espeacutecie

mas novamente isso natildeo eacute razatildeo suficiente para recusar o que ele mesmo

afirma no sect9 e que faz o fundo de grande parte da oposiccedilatildeo dele ao

nominalismo de um Locke nos Novos ensaios E quanto ao que Leibniz

31 Cf BORGES 2005 [Ficciones] p 80

232 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

diz da existecircncia das espeacutecies no sentido matemaacutetico prefeririacuteamos

interpretaacute-la a partir do embate que ele teve com Newton quanto agrave

realidade e materialidade dos objetos matemaacuteticos que pode ser

depreendida do que eacute afirmado em Sobre o peso ndash a gravitaccedilatildeo ndash e

equiliacutebrio dos fluidos (De gravitatione et aequipondio fluidorum)32

Cremos que para o alematildeo as figuras matemaacuteticas natildeo precisam existir

para que falemos em verdade ou em movimentos em acordo com elas a

verdade de tais objetos eacute de outra ordem satildeo verdades eternas que

tambeacutem mas diferentemente das noccedilotildees de indiviacuteduos fazem o conteuacutedo

do intelecto divino Mas isso natildeo eacute o fundamental aqui

De qualquer forma parece-nos que foi justamente a excessiva

importacircncia que Deleuze conferiu a aquela parte tendo sido separada de

seu final consequecircncia e comparaccedilatildeo que conduziu Deleuze ao final do

texto ldquoSobre o meacutetodo universalrdquo33 o que seraacute mantido e de certa forma

intensificado em A dobra o que mais uma vez seraacute chamado para

fundamentar a exigecircncia de parte daquele deslocamento isto eacute o

pensamento generalista de Leibniz conduziria diretamente agrave exigecircncia do

uso geral das regras de convergecircncia e divergecircncia ndash e mesmo a um caacutelculo

do infinito ou agrave noccedilatildeo de signo ambiacuteguo ndash para as singularidades

adjacentes e o consequente delas para as noccedilotildees de compossibilidade e

incompossibilidade34

Do nosso ponto de vista talvez associada a essa importacircncia

exagerada e por que natildeo interpretaccedilatildeo equivocada outro problema talvez

ainda mais grave de exegese parece ter tido origem no lugar de parada que

Deleuze fez ou permite que faccedilamos no iniacutecio do sect47 da Quinta carta a

Clarke texto que de fato soacute pode ser interpretado a partir de parte da

32 Para um comeccedilo de conversa indicariacuteamos o nosso artigo ldquoQuerela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo agrave filosofia modernardquo

33 Cf LEIBNIZ 1903 [Opuscules et fragments ineacutedits de Leibniz] p 145

34 Vale relembrar a ordem de dependecircncia das suposiccedilotildees ldquoEacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na filosofia de Leibniz Pois (III) a inerecircncia de predicados na mocircnada expressiva supotildee primeiro (II) a compossibilidade do mundo expresso e esta por sua vez supotildee (I) a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdaderdquo (DELEUZE 2003 p 115)

William de Siqueira Piauiacute | 233

topologia leibniziana e da doutrina do espaccedilo e tempo relacionais quer

dizer ele teria parado justamente no modo como os homens

semelhantemente a Newton pensam a noccedilatildeo de movimento (daiacute mudanccedila

referente aos corpos por consequecircncia acontecimento) situaccedilatildeo e

possiacutevel teria parado e pensado a noccedilatildeo de indiviacuteduo apenas a partir de

uma topologia posicional que desconsidera justamente a necessidade de os

acidentes natildeo passearem fora das mocircnadas Neste caso Deleuze teria

esquecido de separar e mesmo teria invertido a importacircncia as duas

partes do texto ou seja a que comeccedila com ldquoEis como os homens chegam

a formar a noccedilatildeo de espaccedilordquo e a que comeccedila com ldquoE eacute bom considerar aqui

a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa

o lugarrdquo que continua com ldquodois sujeitos diferentesrdquo ldquonatildeo poderiam ter

precisamenterdquo de modo completamente determinado ldquoa mesma situaccedilatildeo

individual natildeo podendo um mesmo acidente individual encontrar-se em

dois sujeitos nem passar de sujeito para sujeitordquo Onde pois colocar o

Fang de Borges se natildeo queremos ir contra a doutrina leibniziana do espaccedilo

e tempo relacionais ou fazer esquecer a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo

de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugar ou que um mesmo acidente

individual natildeo pode encontrar-se em dois sujeitos Trata-se de retomada

explicita do sect7 da Monadologia que deve ser compreendida a partir de

uma noccedilatildeo de mocircnada fechada e natildeo vemos outro jeito do princiacutepio do

predicado inerente ao sujeito ou de predicados acontecimento (sentido

claacutessico) dados de uma vez por todas e natildeo atributos verbais que se

associem a uma espeacutecie de siacutentese disjuntiva ou exijam uma unidade

objetiva muito especial

Uma interpretaccedilatildeo atenta agrave inversatildeo necessaacuteria teria permitido a

Deleuze compreender o motivo da afirmaccedilatildeo de Leibniz no sect61 da

Monadologia segundo a qual os corpos les composeacutes apenas simbolizam

(symbolisent) no sentido que apenas ldquoconcordam comrdquo e que remeteria

ao convencionalismo no sentido que sozinhos careceriam de fundamento

defendido no sect1 do De interpretatione de Aristoacuteteles os fenocircmenos bem

234 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

fundados apenas simbolizam os simples35 e natildeo o contraacuterio o que mais

uma vez parece colocar Deleuze em dificuldades se se pretende afirmar a

precedecircncia do mundo ou dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees completas de

indiviacuteduos ou agrave necessidade de recorrer agraves singularidades adjacentes

E aqui do nosso ponto de vista chegamos ao ponto central do

deslocamento exigido por Deleuze desde a Loacutegica do sentido ele toma

seu pleno sentido somente se invertermos o plano argumentativo da

Monadologia ou seja se recusamos o caminho sinteacutetico do simples para

o composto dito de outro modo se pensarmos o conceito de mocircnada a

partir de uma matemaacutetica uma topologia que utilizariacuteamos para dar

conta das mudanccedilas que ocorreriam no plano dos corpos mas sem

individuaccedilatildeo preacutevia isto eacute a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos corpos viria em

primeiro lugar e comporia a seacuterie universo mas isso eacute inverter a ordem

de importacircncia entre a metafiacutesica e dinacircmica ndash ir contra o que diz o sect18

do Discurso ndash e eacute preciso estar muito atento para natildeo defender sem o

saber uma distinccedilatildeo que funciona muito bem no plano dos corpos mas

que eacute solo nuacutemero com relaccedilatildeo ao que de fato resolve o problema da

mudanccedila dito de outro modo tal inversatildeo desconsideraria justamente o

fundamento da ldquorelaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo

A proacutepria ordem dos capiacutetulos de A dobra evidenciaria tal inversatildeo as

consideraccedilotildees sobre as redobras na mateacuteria vecircm antes das sobre as dobras

nas almas e seu capiacutetulo 5 estaacute repleto de consideraccedilotildees que tomam o

corpo ou o mundo antes daquilo que faz o fundamento ldquoda relaccedilatildeo de

situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo

35 ldquoEt les composeacutes symbolisent en cela avec le simplesrdquo (LEIBNIZ 2004 p 235) Mais natildeo eacute o exato contraacuterio que defendiam os estoicos nesse sentido invertendo o valor da ldquoexpressatildeordquo do expresso do lekton Seria estranho que algueacutem que defendeu muitas vezes tanto o fato que os estoicos foram os criadores da filosofia da linguagem quanto que sua diferenciaccedilatildeo e dependecircncia entre lekton e corpo eram baacutesicas para a loacutegica do sentido e do acontecimento defendesse o contraacuterio mas aqui mantemos a suposiccedilatildeo de uma mudanccedila de ponto de vista que parece ter ocorrido por volta da elaboraccedilatildeo de Mil platocircs e que ficaria mais evidente nos capiacutetulos de tiacutetulo ldquoPostulados da linguiacutesticardquo e ldquoSobre alguns regimes de signosrdquo ou seja a partir de 1980 o conceito de palavra de ordem (le mot drsquoordre) o registro do lekton passa a assumir o mesmo valor causal que os corpos mais forccedila ainda para o plano da expressatildeo Marca inconteste da ldquogenialidaderdquo do francecircs teriacuteamos permanecido ainda mais leibnizianos ndash um Leibniz deleuzeano natildeo nos esqueccedilamos ndash a partir da deacutecada de 80 portanto talvez o principal motivo que levou Deleuze a voltar aos textos de Leibniz e intensificar os pontos principais da 16ordf seacuterie de a Loacutegica do sentido

William de Siqueira Piauiacute | 235

Do nosso ponto de vista tal inversatildeo que consideramos ser o

fundamento real da exigecircncia daquele deslocamento eacute o problema mais

grave da interpretaccedilatildeo que Deleuze faz da filosofia leibniziana ela teria

desconsiderado a resposta que Leibniz teria dado a um outro problema

levantado por Newton em De gravitatione et aequipondio fluidorum

mas que se associava agrave caracterizaccedilatildeo cartesiana do movimento e que fica

explicito no uso da expressatildeo affectiones locorum ou the properties of

places por parte do inglecircs Problema que para Leibniz tem de ser

resolvido para que possamos falar em mudanccedila ou movimento real Isso

nos permite formular um questionamento para a interpretaccedilatildeo geral

empreendida por Deleuze seja em A dobra seja em Loacutegica do sentido

Como diferenciar a noccedilatildeo newtoniana de individuaccedilatildeo (solo numero) da

leibniziana se nos mantemos apenas nas affectiones locorum36 Vale

lembrar que a filosofia natural de Newton e sua matemaacutetica tambeacutem

permitem singularidades adjacentes Com as agravantes Como o

equacionou Leibniz natildeo eacute justamente por seu fechamento que o conceito

de mocircnada resolve o problema cartesiano do movimento Dito de outro

modo Como o conceito de mocircnada baseado em singularidades adjacentes

tatildeo semelhante ao de vizinhanccedila imediata resolveria o problema da causa

proacutexima do movimento Assim cremos que a leitura de Deleuze aproxima

perigosamente Leibniz de Newton sem ter respondido suficientemente agrave

pergunta geral Por que a preferecircncia pelo alematildeo se em termos de

descoberta e grande parte do tipo de uso que ambos fizeram do caacutelculo

diferencial e integral de uma geometria de posiccedilatildeo e mesmo das regras de

convergecircncia e divergecircncia nada impediria de ver tambeacutem na filosofia do

inglecircs uma topologia de superfiacutecies37 E terminariacuteamos com as

provocaccedilotildees oacutebvias Permanecemos leibnizianos ou newtonianos

36 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect47 da uacuteltima carta a Clarkerdquo ou ldquoLeibniz y el papel de la imaginacioacuten en la geacutenesis de la nocioacuten de espacio newtonianordquo

37 Referimo-nos ao que eacute defendido entre outros no excelente livro De Newton y los newtonianos entre Descartes e Berkeley de Laura Benitez Grobet e Joseacute A Robles Garciacutea cf Bibliografia De qualquer modo o que estamos tentando dizer aqui agravaria ainda mais tais questionamentos desde que a hipoacutetese defendida por Benitez Grobet e Robles Garciacutea eacute a de que Newton precisava de um outro modelo de predicaccedilatildeo que natildeo a aristoteacutelica e por que natildeo da recusa do princiacutepio in-esse para levar a cabo sua filosofia natural e nesse sentido vale lembrar as muitas vezes em que Leibniz pergunta a Clarke que papel em termos de predicaccedilatildeo aristoteacutelica em termos de sujeito predicado

236 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Conclusatildeo

Do nosso ponto de vista em primeiro lugar a tese ceacutelebre de Leibniz

segundo a qual cada mocircnada individual exprime o mundo pode e deve ser

compreendida a partir do princiacutepio de inerecircncia do predicado no sujeito

obviamente um grande desafio para o inteacuterprete em segundo lugar natildeo

eacute verdade que para Leibniz Deus criou o mundo antes das ou de

preferecircncia agraves mocircnadas ao menos natildeo no sentido que haveria de fato

inclusatildeo posterior de algum acidente (enquanto predicado um adjetivo)

natildeo jaacute preacute-vista nas noccedilotildees completas de indiviacuteduos ou pessoas ou mesmo

na seacuterie possiacutevel de um mundo em terceiro lugar se aquela precedecircncia

ou preferecircncia for pensada em termos de compossibilidade e

incompossibilidade ndash que oferecesse alguma alternativa para o princiacutepio

de contradiccedilatildeo ndash eacute preciso lembrar que o entendimento divino eacute fora da

ordem do tempo e mais uma vez natildeo podemos falar em precedecircncia ou

preferecircncia de partes de suas operaccedilotildees e por fim natildeo vemos como as

regras de convergecircncia e divergecircncia nos ajudariam ou seria necessaacuterio

recorrer a elas para corroborar a interpretaccedilatildeo de Deleuze se aquela

precedecircncia ou preferecircncia natildeo se viu confirmada Assim natildeo vemos

motivos para aceitar a necessidade do deslocamento que Deleuze pretende

impor desde a Loacutegica do sentido Vale lembrar que nossa oposiccedilatildeo nada

tem a ver com o uso do caacutelculo diferencial e integral e as regras de

convergecircncia e divergecircncia para pensar o conceito de mocircnada ldquofechadardquo

e mesmo de uma topologia de superfiacutecie jaacute mostramos em outro lugar38 o

como a matemaacutetica criada por Leibniz pode ajudar a pensar um conceito

de mocircnada humana individual fechada e de seacuterie universo fechado em

e acidente desempenharia o tempo e espaccedilo absolutos de Newton Sendo que o sect47 da quinta resposta que deu a Clarke deve ser considerado justamente natildeo soacute como uma tentativa de se manter fiel aacute metafiacutesica que fundamenta a loacutegica aristoteacutelica e o inicio da Monadologia mas tambeacutem sem perder de vista seja os princiacutepios de sua topologia (Caracteriacutestica Geometrica ou Analysis situs) seja de sua doutrina do espaccedilo e tempo relacionais

38 Cf nossos artigos ldquoMatemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e Integral e o processo psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeordquo e ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo

William de Siqueira Piauiacute | 237

pleno acordo com sua metafiacutesica e sua dinacircmica em uma palavra em

pleno acordo com a histoacuteria contada ao final da Teodiceia

Por fim se na ldquoobra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduordquo

ldquoque descobre o sentido e jaacute pressente o natildeo-senso remontando agrave

superfiacutecie a partir de um mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que

se envolve nela e lhe impotildee a dura lei das misturasrdquo ela nada tem a ver

com o conceito leibniziano de mocircnada humana individual ou substacircncia

particular e se novamente na ldquoobra de Carrollrdquo ldquoSilvia e Bruno seriam

antes como as pessoas lsquovagasrsquo que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila

ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo comum a vaacuterios mundos mundo dos

homens e mundo das fadasrdquo a proacutepria referecircncia agrave noccedilatildeo lsquopessoa vagarsquo

deveria ser prova suficiente que natildeo podem ser melhor compreendidas a

partir das noccedilotildees leibnizianas de mocircnada humana individual ou

substacircncia particular Mas natildeo eacute justamente porque queremos estar com

Carroll ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de sujeito ou contestaccedilatildeo da

identidade pessoal ndash e Mallarmeacute ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de

livro ou texto ndash que natildeo somos leibnizianos e nem mesmo newtonianos

E aqui deixamos algo mais que a simples discordacircncia entre os ldquofiloacutesofosrdquo

Badiou e Deleuze

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39 Tendo em vista que se tratava inicialmente de um minicurso cremos ser justificativa suficiente para oferecermos uma Bibliografia ao inveacutes de apenas referecircncias bibliograacuteficas

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_____ La monadologiacutea Trad Virginia Naughton Buenos Aires Quadrata 2005

_____ Novos ensaios Trad Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Abril Cultural 1984

_____ Nouveaux essais Paris Flamarion 1990

240 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

_____ Correspondencia con Arnauld Trad Vicente P Quintero Buenos Aires Ed

Losada 2004

_____ Correspondance de Leibniz et drsquoArnauld In _____ Œuvres philosophiques de

Leibniz aos cuidados de Paul Janet) Paris Alcan 1900

_____ Observaccedilotildees quanto ao livro sobre a origem do mal publicado haacute pouco na

Inglaterra (sectsect 18-22) [Leibniz e a metafiacutesica das diferenccedilas qualitativas dos

possiacuteveis] Theoria revista eletrocircnica de filosofia v 4 n 11 p 151-60 2012

_____ Ensaios de Teodiceia Trad William de Siqueira Piauiacute e Juliana Cecci Silva Satildeo

Paulo Ed Estaccedilatildeo Liberdade 2013

_____ Essais de theacuteodiceacutee Paris Flamarion 1969

_____ Escritos Filosoacuteficos Org Ezequiel Olaso Buenos Aires Ed Charcas 1982

PIAUIacute William de Siqueira Leibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da

criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartes Prometeus ano 10 n 22 p 49-64 2017

_____ Derrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeo

Prometeus ano 10 n 24 p 178-93 2017

_____ Leibniz y el papel de la imaginacioacuten em la geacutenesis de la nocioacuten de espacio

newtoniano Imaginacioacuten y conocimiento de Descartes a Freud NASR Zuraya

Monroy e RODRIacuteGUEZ-SALAZAR Luis Mauriacutecio Meacutexico Ed Corinter e Ed Gedisa

p 33-49 2016

_____ Leibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologia Prometeus ano 9 n 19 p 100-26

2016

_____ Querela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo aacute filosofia

moderna Kalagatos v 11 n 21 p 523-49 2014

_____ Leibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect 47 da uacuteltima carta a Clarke

Prometeus ano 6 n 11 p 9-34 2013

_____ Noccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibniz Cadernos de

histoacuteria e filosofia da ciecircncia v 21 n 1 p 257-87 2011

William de Siqueira Piauiacute | 241

_____ Matemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e integral e o processo

psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeo Theoria ndash Revista eletrocircnica de Filosofia Pouso

Alegre v 5 p 1-16 2010

_____ Leibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeo Aacutegora filosoacutefica

Pernambuco Universidade Catoacutelica ano 6 n 1 p 117-36 2006

PIAUIacute William de Siqueira e CECCI SILVA Juliana Leibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agraves

teorias tradicionais da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegada O

Mutum revista de literatura e pensamento (Dossiecirc Literatura escrever o pensar)

Org por Piero Eyben Brasiacutelia UnB n 1 v 1 p 183-203 2013

SARTRE Jean-Paul A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica

Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Cadernos

espinosanos n 22 2010 p 183-228

_____ A transcendecircncia do ego esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica Trad Joatildeo

Batista Kreuch Petroacutepolis RJ Ed Vozes 2013

Sobre os Organizadores

Natural de Brasiacutelia Marcus Joseacute Alves de

Souza eacute Doutor em Filosofia pela

Universidade Federal da Paraiacuteba

Professor do Instituto de Ciecircncias

Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes e do

Mestrado em Filosofia da Universidade

Federal de Alagoas Liacuteder do Grupo de

Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo

Potiguar de Mossoroacute Maxwell Morais de

Lima Filho eacute Doutor em Filosofia pela

Universidade Federal do Cearaacute e

Professor do Instituto de Ciecircncias

Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes da

Universidade Federal de Alagoas desde

2011

A Editora Fi eacute especializada na editoraccedilatildeo publicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo de pesquisa

acadecircmicacientiacutefica das humanidades sob acesso aberto produzida em parceria das mais diversas instituiccedilotildees de ensino superior no Brasil Conheccedila

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Revisatildeo das regras da ABNT Iuri Rocio Franco Rizzi

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SOUZA Marcus Joseacute Alves de LIMA FILHO Maxwell Morais de (Orgs)

Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo [recurso eletrocircnico] Marcus Joseacute Alves de Souza Maxwell Morais de Lima

Filho (Orgs) -- Porto Alegre RS Editora Fi 2019

242 p

ISBN - 978-85-5696-748-0

Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg

1 Filosofia 2 Cogniccedilatildeo 3 Linguagem 4 Loacutegica 5 Mente I Tiacutetulo

CDD 100

Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico

1 Filosofia 100

Para Bia Jorginho

Tissi Camu e o Ecossistecircmico Rudaacute

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 11

Marcus Joseacute Alves de Souza

1 14

Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica

Manfredo Arauacutejo de Oliveira

2 40

Encheiriacutedion Capiacutetulo I Traduccedilotildees e Comentaacuterios

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio

3 53

A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva da Filosofia Analiacutetica da Mente

Taacuterik de Athayde Prata

4 69

A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico A Criacutetica de John Searle agraves Principais

Correntes da Filosofia da Mente

Maxwell Morais de Lima Filho

5 98

Da Natureza Humana As Perspectivas Epistemoloacutegicas de Piaget Chomsky e

Foucault

Argus Romero Abreu de Morais

6 116

Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche A Leitura de Guumlnter Abel

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa

7 133

Habermas e o Problema do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira

8 146

Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes para se Pensar a Natureza de Sistemas

Formais Uma Abordagem Wittgensteiniana

Marcos Silva

9 158

Revisitando o Argumento da Linguagem Privada

Marcus Joseacute Alves de Souza

10 172

O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico

Ricardo S Rabenschlag

11 184

A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo

Sagid Salles

12 201

O Leibniz de Deleuze Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido

William de Siqueira Piauiacute

Sobre os Organizadores 242

Apresentaccedilatildeo

Marcus Joseacute Alves de Souza

O empreendimento filosoacutefico eacute uma atividade coletiva especialmente

por seu caraacuteter corretivo estabelecido em debate puacuteblico Eacute claro que haacute

momentos de reflexatildeo solitaacuteria mas mesmo estes satildeo momentos de

organizaccedilatildeo discursiva que visam agrave correccedilatildeo em debate e o debate com

os autores eacute fundamental para o desenvolvimento do empreendimento

filosoacutefico Ao apresentar este novo volume da seacuterie Escritos de Filosofia

Linguagem e Cogniccedilatildeo gostariacuteamos de enfatizar estes dois aspectos

sugeridos no iniacutecio o aspecto coletivo e o corretivo deste trabalho Na

dimensatildeo coletiva este eacute mais um fruto da atividade do Grupo de Pesquisa

Linguagem e Cogniccedilatildeo da Universidade Federal de Alagoas Ele resulta da

continuidade de um trabalho que desde 2014 reuacutene profissionais de

Filosofia de variadas instituiccedilotildees para apresentarem e debaterem suas

pesquisas Num Estado com pouca tradiccedilatildeo em realizaccedilatildeo deste tipo de

atividade a reuniatildeo coletiva para divulgaccedilatildeo de pesquisas eacute uma conquista

que deve ser ressaltada pois fortaleceu o Grupo de Pesquisa e originou

uma linha do receacutem-criado Mestrado Acadecircmico de Filosofia da UFAL

(2018) Mas filoacutesofos se reuacutenem especialmente para apresentar ideias e

debatecirc-las numa perspectiva de autocorreccedilatildeo entre pares Isso vem se

dando nas atividades do Grupo inclusive nos Encontros seis ateacute agora

mas sobretudo atraveacutes desta seacuterie de publicaccedilotildees Aqui o aspecto

corretivo ganha relevo A perspectiva eacute incrementar ainda mais uma

tradiccedilatildeo de publicaccedilotildees que mantenha o debate de ideias vivo

contribuindo para o avanccedilo das discussotildees filosoacuteficas daqueles que

tomarem contato com cada publicaccedilatildeo da seacuterie Escritos de Filosofia

Linguagem e Cogniccedilatildeo Possibilitando assim a acareaccedilatildeo criacutetica dos vaacuterios

12 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

escritos e animando o avanccedilo do conhecimento filosoacutefico num acircmbito da

Filosofia que reuacutene temas relacionados agraves aacutereas de Loacutegica da Filosofia da

Linguagem da Filosofia da Mente e da Epistemologia

Os textos aqui apresentados satildeo resultado do IV Encontro Linguagem

e Cogniccedilatildeo realizado em novembro de 2017 que reuniu mais uma vez

profissionais de vaacuterias instituiccedilotildees (UFAL UFAM UFPI UFS UFC UFPE

UFSJ PUC-Rio UnB dentre outras) no intuito de avanccedilarmos a pesquisa

filosoacutefica nos contextos alagoano e nordestino Como nas outras ediccedilotildees

as temaacuteticas de investigaccedilatildeo estatildeo relacionadas agrave loacutegica agrave linguagem agrave

consciecircncia e ao conhecimento

Eacute importante afirmarmos que para aleacutem de uma possiacutevel

organicidade temaacutetica dos textos este livro eacute resultado tambeacutem de

confluecircncias de amizades construiacutedas pelo interesse filosoacutefico Nisso

nossos Encontros tecircm se mostrado frutiacuteferos ao mostrar a forccedila da

tradiccedilatildeo de associar a ldquoamizade ao saberrdquo

Esta eacute a terceira coletacircnea da seacuterie Escritos de Filosofia Linguagem e

Cogniccedilatildeo mostrando continuidade e esforccedilo em darmos publicidade ao

trabalho de pesquisa realizado Reforccedilando e aprofundando laccedilos teoacutericos

de investigaccedilatildeo este volume eacute composto de 12 capiacutetulos escritos por 14

pesquisadores de 8 instituiccedilotildees (UFAM UFPI UFC UECE UFPE UFAL

UFS e UFSJ) O leitor teraacute oportunidade de refletir e avaliar criticamente

sobre uma diversidade de temas filosoacuteficos Neste ponto eacute interessante

destacar que os temas abarcados vatildeo aleacutem daquilo que ficou conhecido

como ldquoFilosofia Analiacuteticardquo haja vista a salutar heterogeneidade de autores

e abordagens jaacute presente nos outros volumes

O leitor poderaacute pensar a trajetoacuteria histoacuterico-filosoacutefica da conhecida

ldquoreviravolta linguiacutesticardquo e avaliar se efetivamente saiacutemos de um marco

reflexivo da subjetividade para o da linguagem em Filosofia Ler um

trabalho cuidadoso de traduccedilatildeo comentada de um capiacutetulo do Encheiriacutedion

de Epicteto Tomar contato com uma reflexatildeo sobre o conceito de

consciecircncia em Sartre numa perspectiva analiacutetica Compreender a criacutetica

de John Searle agraves principais correntes da Filosofia da Mente Revisitar o

Marcus Joseacute | 13

tema da natureza humana a partir de trecircs autores natildeo-analiacuteticos Piaget

Foucault e Chomsky Rediscutir os temas da consciecircncia da linguagem e

da natureza em Nietzsche a partir da avaliaccedilatildeo de Guumlnter Abel

Aprofundar no conhecimento da temaacutetica da objetividade dentro do

pensamento de Habermas Refletir sobre o conceito de jogo em sistemas

loacutegicos formais Retomar a discussatildeo do argumento da linguagem privada

de Wittgenstein Avaliar aspectos filosoacuteficos do pensamento dos ldquonovos

ateusrdquo Aproximar-se da problemaacutetica da vagueza numa avaliaccedilatildeo criacutetica

da teoria trivalente da vagueza e as dificuldades loacutegico-filosoacuteficas do

estabelecimento da precisatildeo conceitual Analisar de modo criacutetico a

interpretaccedilatildeo que Deleuze faz de Leibniz Enfim o leitor teraacute oportunidade

de pensar temas autores e abordagens variadas neste volume Esperamos

que seja de proveito para conhecimento inicial ou mesmo de

aprofundamento para o leitor experiente em Filosofia e que todos tenham

uma leitura filosoficamente estimulante

Agradecemos aos participantes que gentilmente forneceram os textos

para a composiccedilatildeo deste trabalho coletivo Agradecemos agrave agecircncia de

fomento agrave pesquisa de Alagoas FAPEAL (Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa

do Estado de Alagoas) pelo apoio financeiro ao evento que deu origem a

este volume Ao apoio do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e

Artes (ICHCA) e do Curso de Filosofia da UFAL A todos que contribuem

com as atividades o Grupo de Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo da UFAL Agrave

Editora Fi pela parceria nesta publicaccedilatildeo

Maceioacute setembro de 2019

1

Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta

de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica

Manfredo Arauacutejo de Oliveira 1

A filosofia se encontra hoje diante de um desafio que tem a ver com

a proacutepria forma de sua configuraccedilatildeo enquanto teoria ou seja o desafio da

articulaccedilatildeo de um novo paradigma teoacuterico O ponto de partida desta

situaccedilatildeo foi certamente a reviravolta linguiacutestica ou seja a substituiccedilatildeo no

pensamento de Frege da anaacutelise de sensaccedilotildees representaccedilotildees e juiacutezos pela

anaacutelise das expressotildees linguiacutesticas Quine (1981 p 23) ao fazer um

balanccedilo dos resultados que marcaram positivamente a filosofia do seacuteculo

XX afirmou que o evento decisivo e irreversiacutevel da filosofia depois de

Hume foi a reviravolta linguiacutestica Que significa isto para a filosofia Hoje

haacute pensadores que defendem que ela apenas significou uma radicalizaccedilatildeo

da reviravolta transcendental da filosofia moderna Faremos uma breve

apresentaccedilatildeo da proposta da fenomenologia transcendental no

pensamento de Husserl que levantou a pretensatildeo de articular o paradigma

transcendental da forma mais rigorosa possiacutevel para poder depois mostrar

que a reviravolta linguiacutestica natildeo necessariamente se deve entender como

uma radicalizaccedilatildeo deste paradigma mas articula antes um quadro teoacuterico

propriamente poacutes-transcendental

1 Graduado pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR) Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Gregoriana de Roma (PUG) Doutor em Filosofia pela Ludwig-Maximilian de Munique (LMU) e Professor Emeacuterito da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 15

A Filosofia Transcendental Preacute-Linguiacutestica O Mundo se nos Daacute em

Intuiccedilotildees Puras A Fenomenologia Husserliana

Para Husserl a filosofia exige uma mudanccedila radical de postura o que

revela o caraacuteter ingecircnuo da atitude da postura natural Essa transformaccedilatildeo

radical de postura nos vai mostrar que todos os entes soacute nos podem ser

dados na esfera da subjetividade transcendental atraveacutes de muacuteltiplos

modos de manifestaccedilatildeo que satildeo em princiacutepio variaacuteveis e ilimitados Neste

sentido fenomenologia natildeo eacute simples descriccedilatildeo do que aparece sem que

possa haver uma decisatildeo sobre o que o ente eacute em sua essecircncia e seu ser

mas ela eacute precisamente o esclarecimento dos entes em sua essecircncia em

seu sentido e em seu ser Nesta perspectiva se deve dizer que a questatildeo

central da fenomenologia natildeo eacute o ser mas o sentido embora natildeo seja claro

como Husserl interpreta o sentido De qualquer modo ele sempre tematiza

o sentido e natildeo o ser mesmo (PUNTEL 2011 p 305)

Isto se faz atraveacutes do retorno agraves vivecircncias intencionais nas quais os

sentidos vecircm agrave doaccedilatildeo Dessa forma o tema especiacutefico da fenomenologia

eacute a correlatividade entre as ldquoformas de doaccedilatildeordquo dos objetos e os momentos

intencionais das vivecircncias (dos atos intencionais) em suas inuacutemeras

modificaccedilotildees (TUGENDHAT 1967 p 172)2 Numa palavra fenomenologia

eacute anaacutelise da correlaccedilatildeo entre objeto intencional e ato intencional ou seja

trata-se de determinar a partir da intenccedilatildeo o sentido do ldquointendidordquo

Portanto o que temos eacute sempre um objeto num modo determinado de nos

dar-se natildeo haacute objeto sem a mediaccedilatildeo de seu modo de dar-se Fenocircmeno

eacute entatildeo aqui um correlato intencional da consciecircncia (FINK 1976 p 83)

e a subjetividade eacute o princiacutepio da originariedade (FINK 1976 p 91)

Ser eacute entatildeo ser para a consciecircncia esta eacute a tese baacutesica da filosofia

transcendental e natildeo se pode entender o projeto husserliano de filosofia

sem vinculaacute-lo agrave tradiccedilatildeo do pensamento transcendental de Kant e

sobretudo de Fichte3 no giro reflexivo da filosofia na expressatildeo de

2 A respeito do caminho que vai de Bolzano a Husserl cf PORTA (2003 p 85-106)

3 Essa eacute a tese baacutesica de Siemek Cf SIEMEK (2001 p 190 e ss) Cf OLIVEIRA (1973 p 139-220)

16 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Tugendhat (1976 p 16 e ss) aceita e radicalizada por Husserl Isto significa

dizer que o sentido e o ser de qualquer objeto que conservamos enquanto

idecircntico atraveacutes das diferentes formas de consciecircncia se formam atraveacutes

de nossas accedilotildees sinteacuteticas no como de sua doaccedilatildeo isto eacute nos diferentes

tipos de objetualidade (HABERMAS 1984 p 37) Para a postura

fenomenoloacutegica todos os entes abstratos ou concretos reais ou ideais tecircm

seus modos de doaccedilatildeo (HUSSERL 1963 p 169) Numa palavra tudo se

revela na consciecircncia como objeto constituiacutedo por atos constituintes e

portanto a subjetividade emerge como a fonte uacuteltima de toda doaccedilatildeo de

sentido

Husserl rejeita este meacutetodo regressivo natildeo no sentido da pergunta

pelas condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento objetivo mas no sentido

de que esta pergunta no pensamento de Kant natildeo realiza um retorno agrave

intuiccedilatildeo e neste sentido eacute em uacuteltima anaacutelise uma construccedilatildeo atraveacutes de

deduccedilatildeo Com isto todo o procedimento se radica em suposiccedilotildees natildeo

intuiacutedas o que tem como consequecircncia que desta forma natildeo eacute possiacutevel

atingir a autodoaccedilatildeo da subjetividade em seu ser em si ela eacute apenas

ldquoconstruiacutedardquo num pensamento vazio

O grande ausente no pensamento de Kant eacute precisamente a intuiccedilatildeo

que Husserl denomina o ldquoPrinciacutepio dos Princiacutepiosrdquo entendida como a

fonte originaacuteria a evidecircncia fundante de todo conhecimento (HUSSERL

1950 p 25 e STROumlKER 1987 p 1-34) Desta forma a tese central da

fenomenologia eacute que soacute o retorno aos atos intencionais pode produzir

aquela autodoaccedilatildeo em evidecircncia intuitiva que constitui o cerne da

fenomenologia Assim as coisas mesmas natildeo satildeo objetos no sentido de

uma ldquoposiccedilatildeo transcendente de serrdquo mas o que eacute intuiacutedo na satisfaccedilatildeo de

atos intencionais (GADAMER 1987 p 118)

Um confronto com a tese fundamental da fenomenologia a respeito

da forma suprema do dar-se da realidade a noacutes pode iniciar-se com a

criacutetica articulada por E Tugendhat (1976 p 85-87) conhecido eacute para

Husserl precisamente o que nos eacute imediatamente dado Para Tugendhat

justamente nisto se mostra o caraacuteter unilateral da concepccedilatildeo husserliana

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 17

de conhecimento a funccedilatildeo do conceito para o que eacute sensivelmente preacute-

dado perde importacircncia frente ao papel da intuiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que eacute

significado de tal modo que ascensatildeo no conhecimento significa

exclusivamente maior proximidade da coisa e natildeo igualmente aumento

em diferenciaccedilatildeo e distinccedilatildeo

Este preacute-conceito da fenomenologia ou seja de que a simples

presenccedila garante por si mesma o cumprimento uacuteltimo de uma intenccedilatildeo

significante tem para Tugendhat enormes consequecircncias na concepccedilatildeo

husserliana da filosofia Em primeiro lugar isto eacute decisivo para o modelo

de filosofia transcendental que ele articulou e para a concepccedilatildeo da

consciecircncia pura como o campo absoluto precisamente porque o campo

do que se daacute adequadamente Em segundo lugar para a consequecircncia

metoacutedica de que a anaacutelise fenomenoloacutegica se restringe ao que eacute

simplesmente dado intuitivamente na intuiccedilatildeo originaacuteria (HUSSERL

1950 p 52) A natildeo consideraccedilatildeo da questatildeo da determinaccedilatildeo tem como

resultado que o determinado eacute aceito ingenuamente e natildeo eacute considerado

expressamente mas por outro lado ele eacute o ponto de chegada de um

processo de determinaccedilatildeo que se faz atraveacutes de sua relaccedilatildeo agrave forma de seu

dar-se Isto conduz sempre a uma absolutizaccedilatildeo da experiecircncia em

questatildeo

De fato aqui se situa a questatildeo fundamental de confronto com o

pensamento de Husserl e sua proposta de articular a filosofia enquanto

fenomenologia transcendental mesmo na sua formulaccedilatildeo uacuteltima de

filosofia do mundo vivido como o originariamente dado Trata-se para ele

de atingir a dimensatildeo mais originaacuteria do pensamento enquanto tal e esta

eacute para ele a intuiccedilatildeo que se daacute originariamente e que constitui a fonte de

justificaccedilatildeo de todo conhecimento Isso leva segundo E Fink (1976 p 85)

a uma postura ldquointencionalistardquo na concepccedilatildeo do ser e da verdade

enquanto posiccedilatildeo especiacutefica da fenomenologia enquanto filosofia Na

realidade aqui natildeo se articula propriamente uma justificaccedilatildeo mas se

defende a tese de que se trata em uacuteltima instacircncia de um ver de um

mostrar-se a dimensatildeo originaacuteria se mostra daacute-se

18 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Como diz Habermas (1984 p 47-59) em Husserl a intuiccedilatildeo sensiacutevel

serve de modelo para pensar qualquer outro tipo de intuiccedilatildeo possiacutevel pois

aqui aparece em niacutevel elementar o que constitui a intuiccedilatildeo a autodoaccedilatildeo

de um objeto Sua suposiccedilatildeo fundamental eacute que temos na experiecircncia

sensiacutevel acesso intuitivo a algo dado imediata e evidentemente Para E

Fink (1976 p 84) em Husserl a percepccedilatildeo intuitiva constitui de fato o

modo originaacuterio de autodoaccedilatildeo Sua tese eacute que em Husserl isto natildeo

significa um intuicionismo inimigo do pensamento mas defesa do

ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo e do caraacuteter secundaacuterio do pensamento Habermas

aponta para a dificuldade de defesa desta tese do ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo a

partir inclusive de consideraccedilotildees do proacuteprio Husserl (1964) em sua obra

ldquoErfahrung und Urteilrdquo A razatildeo fundamental eacute que em cada intuiccedilatildeo

originaacuteria jaacute estatildeo presentes determinaccedilotildees categoriais o que para ele

significa que o modelo de uma filosofia da consciecircncia tem que ser

substituiacutedo pelo modelo de uma filosofia enquanto teoria centralizada na

linguagem

Que significa isto para a filosofia Em primeiro lugar que depois da

reviravolta linguiacutestica natildeo podemos mais analisar nossa capacidade de

conhecimento independentemente de nossa capacidade de falar e agir uma

vez que noacutes enquanto sujeitos cognoscentes jaacute sempre nos encontramos

no horizonte de nossas praacuteticas no mundo vivido Linguagem e realidade

estatildeo mutuamente imbricadas de tal modo que toda experiecircncia humana

eacute linguisticamente impregnada Com isto supera-se definitivamente o

ldquomito do dadordquo uma vez que mesmo a experiecircncia sensiacutevel jaacute eacute mediada

linguisticamente de tal modo que ela perde a autoridade epistecircmica

daquela instacircncia que nos daria imediatamente a realidade pura Para

Habermas (1984 p 20) foi meacuterito de W Sellars (2003 p 23 ss) em sua

criacutetica ao empirismo do Ciacuterculo de Viena de ter explicitado esta

consequecircncia da reviravolta linguiacutestica

Isto tem como consequecircncia a eliminaccedilatildeo do primado da

intencionalidade e de sua substituiccedilatildeo pelo primado de uma compreensatildeo

linguiacutestica Neste caso a urgecircncia de uma fundamentaccedilatildeo que eacute central na

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 19

filosofia natildeo pode satisfazer-se atraveacutes de uma consideraccedilatildeo

fenomenoloacutegica da histoacuteria da originaccedilatildeo do mundo vivido mas atraveacutes

da acareaccedilatildeo das pretensotildees de validade que levantamos em nossas

praacuteticas simboacutelicas ordinaacuterias Natildeo intuiccedilatildeo mas argumentos eacute o que pode

justificar a aceitaccedilatildeo ou natildeo das pretensotildees de validade e por conseguinte

eacute neste niacutevel que se situa uma teoria filosoacutefica

Em direccedilatildeo semelhante Apel rearticula a filosofia transcendental

claacutessica a partir do diaacutelogo com as filosofias que saiacuteram da reviravolta

linguiacutestica a filosofia analiacutetica e a filosofia hermenecircutica Para ele essa

reviravolta provocou uma transformaccedilatildeo daquilo que constitui a questatildeo

central desta tradiccedilatildeo de pensamento filosoacutefico ou seja a pergunta pelas

condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido Foi nesse contexto que

Tugendhat (1976 p 16) 4 interpretou a reviravolta linguiacutestica como

radicalizaccedilatildeo do movimento do pensamento que constitui o cerne da

filosofia transcendental que ele denomina de ldquoreviravolta reflexivardquo cujo

cerne consiste em dizer que a filosofia natildeo tem como tarefa o

conhecimento direto dos objetos do mundo mas sua especificidade eacute uma

reflexatildeo sobre como os objetos do mundo enquanto tais nos podem ser

dados

Eacute neste sentido estrito que K-O Apel afirma ser a filosofia da

linguagem a nova ldquofilosofia primeirardquo ou seja natildeo uma filosofia primeira

enquanto pergunta pelo ente enquanto tal ou pela estrutura da

consciecircncia transcendental enquanto fundamento do conhecimento

vaacutelido mas uma filosofia primeira agrave altura da consciecircncia criacutetica alcanccedilada

em nossos dias o que neste contexto significa a consciecircncia da

inevitabilidade da mediaccedilatildeo linguiacutestica de nosso acesso ao mundo

Neste sentido eacute que natildeo haacute como diz J McDowell (2005 p 64)

qualquer experiecircncia originaacuteria que esteja fora da esfera conceitual natildeo

haacute uma fronteira exterior para aleacutem da esfera conceitual como ele diz

comentando Wittgenstein

4 ldquoSie konzipiert ihre Fragestellungen nicht in direkter Thematizierung jeweiliger Gegenstaumlnde sondern in der gleichzeitigen Reflexion darauf wie uns diese Gegenstaumlnde gegeben sein koumlnnenwie sie uns zugaumlnglich werdenrdquo

20 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

natildeo existe lacuna ontoloacutegica entre o tipo de coisa que podemos querer dizer

ou de modo geral entre o tipo de coisa em que podemos pensar e o tipo de

coisa que pode ocorrer Quando algueacutem pensa de modo verdadeiro aquilo em

que ele pensa eacute aquilo que ocorre Como o mundo eacute tudo que ocorre (como ele

proacuteprio escrevera) natildeo haacute lacuna entre o pensamento enquanto tal e o

mundo

Natildeo haacute portanto nenhuma lacuna entre o pensamento enquanto tal

e o mundo mas um jogo reciacuteproco entre conceitos e intuiccedilotildees entre

receptividade e espontaneidade (McDOWELL 2005 p 40) o que poreacutem

natildeo nos impede de falar de uma realidade independente que exerce um

controle racional sobre nosso pensamento Isso natildeo significa contudo que

o mundo seja completamente no espaccedilo de um sistema de conceitos

Precisamos de um trabalho longo e paciente o que implica uma obrigaccedilatildeo

permanente de reflexatildeo O importante aqui eacute afirmaccedilatildeo de que a realidade

natildeo estaacute fora da esfera conceitual e a rejeiccedilatildeo do ldquomito do dadordquo significa

precisamente que natildeo existe uma presenccedila pura originaacuteria fora da esfera

conceitual Eacute isto que McDowell chama de ldquoo caraacuteter indelimitado do

conceitualrdquo

A Posiccedilatildeo da Filosofia-Sistemaacutetico-Estrutural de L B Puntel

A questatildeo do papel exercido pela linguagem na filosofia constitui

certamente para L B Puntel uma questatildeo central partindo-se de uma nova

forma de articular a filosofia e suas questotildees que eacute resultado do que se

convencionou denominar de ldquogiro ou reviravolta linguiacutesticardquo da filosofia

(OLIVEIRA 2015) Natildeo se trata aqui de um novo objeto ou um novo campo

de investigaccedilatildeo para uma teoria filosoacutefica mas da filosofia mesma em sua

configuraccedilatildeo teoacuterica Isto significa dizer que a tematizaccedilatildeo da linguagem

natildeo constitui uma disciplina filosoacutefica nova mas sua consideraccedilatildeo faz

parte da tematizaccedilatildeo dos pressupostos irrenunciaacuteveis da articulaccedilatildeo da

filosofia enquanto uma forma de atividade teoacuterica na vida humana jaacute que

o que estaacute em jogo aqui eacute a instacircncia imprescindiacutevel de articulaccedilatildeo de uma

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 21

teoria filosoacutefica sem ela nada eacute dado a uma teoria filosoacutefica o que seria

dizer que a teoria seria inviaacutevel

A tese baacutesica da reviravolta linguiacutestica eacute de que natildeo eacute mais possiacutevel

pensar a filosofia sem a mediaccedilatildeo da linguagem e isto tem consequecircncias

fundamentais em sua articulaccedilatildeo o que se configura como tese da

centralidade da linguagem na filosofia Na proposta da filosofia

sistemaacutetico-estrutural de Puntel (OLIVEIRA 2014 p 190 ss) esta eacute

elucidada no contexto de uma ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo da revoluccedilatildeo

transcendental que caracteriza o pensamento moderno e desemboca

numa filosofia poacutes-transcendental Que significa propriamente isto

Uma filosofia sistemaacutetico-estrutural na proposta de Puntel (2008 p

97 ss) radica-se na concepccedilatildeo fundamental de que filosofia eacute uma

atividade humana que se distingue de outras atividades em razatildeo de seu

objetivo baacutesico isto eacute a elaboraccedilatildeo e a apresentaccedilatildeo de teorias Teoria eacute a

forma de discurso metoacutedico e rigorosamente ordenado que se compotildee de

sentenccedilas puramente declarativas Nesta posiccedilatildeo em oposiccedilatildeo a vaacuterias

propostas hoje existentes a filosofia eacute concebida como um

empreendimento estritamente teoacuterico Esta ldquoatividaderdquo e seu ldquoprodutordquo

tecircm a ver com o ldquomundordquo compreendido como a totalidade ilimitada dos

ldquoobjetosrdquo ou ldquocamposrdquo ou ldquoacircmbitosrdquo a totalidade do que eacute dado na

linguagem

A uniatildeo desses trecircs fatores baacutesicos nos autoriza a falar da ldquodimensatildeo

expositivardquo como sendo o especiacutefico da atividade filosoacutefica Por esta razatildeo

seu primeiro trabalho consiste precisamente no esclarecimento da

dimensatildeo da teoricidade e da explicitaccedilatildeo do conceito de uma teoria

filosoacutefica pela apresentaccedilatildeo de seus componentes irrenunciaacuteveis Numa

palavra sendo a filosofia uma atividade que se efetiva na esfera da

linguagem tendo assim a linguagem como seu pressuposto primeiro

exige-se para o cumprimento de sua tarefa a tematizaccedilatildeo de seus

pressupostos linguiacutesticos o que eacute uma decorrecircncia da reflexividade que

caracteriza a atividade teoacuterica neste niacutevel de sua efetivaccedilatildeo Isto implica

22 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

dizer que uma filosofia deve comeccedilar pela consideraccedilatildeo de sua mediaccedilatildeo

linguiacutestica

Num sentido programaacutetico Puntel elabora uma quase-definiccedilatildeo de

filosofia que serviraacute de fio condutor para toda a exposiccedilatildeo ldquoa filosofia

sistemaacutetico-estrutural eacute a teoria das estruturas universais (mais gerais) do

universo do discurso [universe of discourse] ilimitadordquo (PUNTEL 2008

p 33) ldquoUniverso do discursordquo pode ser explicitado por conceitos mais

determinados do ponto de vista do conteuacutedo como ldquomundordquo ldquouniversordquo

ldquorealidaderdquo e em uacuteltima instacircncia ldquoserrdquo A dimensatildeo do universo do

discurso eacute o dado abrangente dado eacute compreendido aqui como o

ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila portanto algo linguisticamente articulado

precisamente aquilo que eacute dado para ser compreendido ou explicado pela

filosofia seu objeto sua temaacutetica especiacutefica tudo o que eacute candidato a um

tratamento teoacuterico-filosoacutefico

A pretensatildeo proacutepria de qualquer teoria eacute assim compreender um

dado um setor do mundo ou o mundo enquanto tal no caso de uma teoria

filosoacutefica Desta forma eacute tarefa do filoacutesofo sistemaacutetico-estrutural tentar

integrar numa teoria compreensiva todos estes dados que num primeiro

momento emergem justamente como candidatos agrave compreensatildeo como

candidatos agrave teoria Daiacute porque a formaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica

consiste em trabalhar a interconexatildeo entre a dimensatildeo dos dados e a

dimensatildeo das estruturas isto eacute os componentes irrecusaacuteveis da

linguagem enquanto os pressupostos irrenunciaacuteveis para a compreensatildeo

de qualquer dado de tal forma que as estruturas afinal se revelam como

estruturas dos dados e os dados enquanto incluiacutedos na dimensatildeo das

estruturas

Uma pergunta se revela aqui como fundamental Que eacute entatildeo

compreender Que implica o compreender Esta eacute uma questatildeo que

subjaz a todo empreendimento teoacuterico uma vez que compreender um

determinado X constitui a tarefa especiacutefica de qualquer empreendimento

teoacuterico ldquosendo que ldquocompreenderrdquo neste caso eacute um conceito geral para

ldquoentenderrdquo ldquoexplicarrdquo ldquoarticularrdquo (PUNTEL 2008 p 205) O X por sua

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 23

vez designa a coisa a temaacutetica o objeto do compreender o dado em

questatildeo

Neste contexto um procedimento teoacuterico se revela muito produtivo

as diferentes posiccedilotildees filosoacuteficas (PUNTEL 2008 p 206) podem ser

consideradas a partir de como elas pensam a relaccedilatildeo entre o compreender

e a coisa a ser compreendida A pergunta baacutesica aqui eacute entatildeo se o

compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao

contraacuterio De acordo com a primeira posiccedilatildeo (PUNTEL 1990 p 266 ss)

noacutes natildeo criamos produzimos ou constituiacutemos o mundo efetivo mas antes

o encontramos o mundo efetivo nos eacute preacute-dado Isto significa dizer que

apreendemos a realidade sem conceito sem linguagem5 sem teorias o

que segundo esta posiccedilatildeo se mostra em muitas experiecircncias Assim nesta

perspectiva uma coisa eacute a apreensatildeo da realidade outra a sua

compreensatildeo de tal forma que a verdadeira tarefa de uma atividade teoacuterica

consiste em descobrir o mundo em si mesmo aprendecirc-lo descrevecirc-lo e

explicaacute-lo O mundo portanto situa-se fora do conceitual isto constitui o

cerne do que se denomina de ldquorealismordquo

A posiccedilatildeo contraposta (normalmente denominada pelos realistas de

idealista hoje se fala mais de antirrealismo) procura desvelar a

ingenuidade desta primeira posiccedilatildeo ressaltando a mediaccedilatildeo irrecusaacutevel de

um sistema conceitual em toda atividade teoacuterica assim que admitir uma

realidade inteiramente desprovida de esquemas conceituais se mostra

impossiacutevel Realidade mundo universo soacute tecircm sentido no interior de um

esquema conceitual por noacutes articulado Distinguimos os objetos

justamente atraveacutes da introduccedilatildeo deste ou daquele esquema conceitual Jaacute

sempre estamos em relaccedilatildeo com o mundo pela atividade conceitual de tal

modo que fora desta relaccedilatildeo o mundo eacute simplesmente ininteligiacutevel Desta

forma falar de independecircncia do mundo natildeo significa afirmar que ele se

coloque para aleacutem da esfera conceitual

5 Haacute filoacutesofos que distinguem entre significado linguiacutestico e conteuacutedos mentais Cf Miller (2010 p 208) ldquoFiloacutesofos chamam estados mentais tais como crenccedilas desejos vontades intenccedilotildees esperanccedilas e assim por diante de atitudes proposicionais Podemos dizer que enquanto sentenccedilas possuem significado linguiacutestico atitudes proposicionais possuem conteuacutedo mentalrdquo Cf a respeito Branquinho (2006 p 72-78)

24 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Neste contexto McDowell (2005 p 65) estabelece uma distinccedilatildeo

fundamental

Pensamento pode significar o ato de pensar mas pode significar tambeacutem o

conteuacutedo que eacute pensado ndash aquilo que algueacutem pensa6 Ora se quisermos dar o

devido reconhecimento agrave independecircncia da realidade precisamos de uma

coerccedilatildeo exterior ao pensamento e ao juiacutezo entendidos enquanto exerciacutecios de

espontaneidade Esta coerccedilatildeo natildeo precisa vir de um lugar exterior aos

conteuacutedos pensaacuteveis7

Foram aqui apresentadas duas posiccedilotildees extremas que habitualmente

natildeo se articulam desta forma uma vez que as diferentes propostas

filosoacuteficas satildeo normalmente formas mistas portadoras de elementos de

ambas as posturas o que se pode mostrar mesmo no pensamento de Kant

fundamentalmente marcado pela dicotomia radical entre sujeito e objeto

Putnam empenhou-se em caracterizar com rigor a primeira posiccedilatildeo

Ele defende a partir de 1976 a posiccedilatildeo denominada por ele mesmo de

ldquorealismo internordquo que levanta a pretensatildeo de articular uma posiccedilatildeo

intermediaacuteria entre o que ele chama de ldquorealismo metafiacutesicordquo8 da tradiccedilatildeo

e o ldquorelativismordquo muito difundido em nossos dias A primeira o realismo

metafiacutesico (PUTNAM 1996 p 205) eacute o que Moore e Russell teriam

retomado depois de ter sido recusado pelo idealismo moderno de Kant e

Hegel Putnam (1993 p 213) atribui ao proacuteprio Kant a distinccedilatildeo entre

estes dois tipos de realismo

Outros autores falam simplesmente de ldquorealismordquo ou como eacute caso de

Puntel (PUNTEL 1990 p 269) de ldquorealismo transcendenterdquo Para ele

pode-se distinguir aqui duas variantes a) O realismo transcendente

absoluto que afirma existir um uacutenico sistema conceitual correto

considerando os demais como algo puramente subjetivo 2) O realismo

6 Na perspectiva da filosofia sistemaacutetico-estrutural pensamento proposiccedilatildeo e estado-de-coisas satildeo expressotildees sinocircnimas e constituem o ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila Cf Puntel (2008 p 214-216)

7 McDowell (2005 p 73) tambeacutem afirma o seguinte ldquoO objeto de uma experiecircncia [] eacute entendido como parte do mundo pensaacutevel tomado como um todordquo

8A respeito das raiacutezes teoacutericas do realismo metafiacutesico no pensamento de Putnam cf Engel (1994 p 363-364)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 25

transcendente moderado que admite uma pluralidade de sistemas

conceituais e os interpreta como tambeacutem as teorias como diferentes

aproximaccedilotildees ao uacutenico mundo efetivo

Em nossos dias o realismo metafiacutesico para Putnam constitui a tese

especiacutefica dos materialistas9 Sua tese baacutesica eacute que a fiacutesica constitui uma

configuraccedilatildeo de uma teoria verdadeira e acabada da estrutura do mundo

Putnam admite ter sido precisamente esta sua primeira posiccedilatildeo teoacuterica jaacute

que tambeacutem ele defendeu a tese de que as ciecircncias descrevem e explicam

uma realidade inteiramente independente de noacutes Constituiu um

argumento decisivo para ele neste momento o fato de que a transformaccedilatildeo

de significaccedilatildeo dos termos teoacutericos natildeo demanda que se deixe de falar de

uma uacutenica e mesma realidade o que seria impossiacutevel se ela natildeo se situasse

para aleacutem de nossas teorias

O realismo metafiacutesico se fundamenta entatildeo na crenccedila de que haacute

apenas uma teoria verdadeira capaz de expor exaustivamente a estrutura

do mundo como ele eacute em si mesmo independente de noacutes de nossas

concepccedilotildees a seu respeito Numa palavra o realista metafiacutesico afirma que

podemos falar de coisas e pensar nelas como elas satildeo em si mesmas em

sua constituiccedilatildeo intriacutenseca independentemente de nosso espiacuterito de nossa

linguagem de nossas teorias A razatildeo disto eacute a relaccedilatildeo de correspondecircncia

entre as expressotildees de nossa linguagem e certos tipos de entidades

independentes Nesta perspectiva o mundo eacute entendido enquanto a

totalidade invariaacutevel de objetos independentes de nosso espiacuterito de nossa

linguagem de nossas teorias (PUTNAM 1993 p 156) Hoje se defende a

tese de que estas entidades tecircm nos objetos materiais seu paradigma e de

que a correspondecircncia em tela eacute uma relaccedilatildeo causal

Numa palavra o mundo efetivo nos eacute preacute-dado enquanto plenamente

estruturado em si mesmo (ldquoa ready-made worldrdquo expressatildeo sugerida por

N Goodman) e o objetivo fundamental de toda e qualquer atividade

9 Cf Putnam (1996 p 208) ldquoMetaphysics or the enterprise of describing the ldquofurniture of the worldrdquo the ldquothings in themselvesrdquo apart from our conceptual imposition has been rejected by many analytic philosophers (though not as I remarked by Russell) and by all the leading brands of continental philosophy Today apart from relics it is virtually only materialists (or ldquophysicalistsrdquo as they like to call themselves) who continue the traditional enterpriserdquo

26 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

teoacuterica consiste em apresentar o mundo como ele eacute em si mesmo da

maneira mais fiel possiacutevel Putnam denomina esta posiccedilatildeo de

ldquoexternaliacutesticardquo jaacute que sua postura pressupotildee que noacutes podemos dispor do

ldquoponto de vista de Deusrdquo (ldquoGodacutes-Eye Viewrdquo) que teria condiccedilotildees de

alcanccedilar os dois lados do abismo entre linguagem e mundo de tal modo

que fosse possiacutevel comparar linguagem e mundo e decidir se haacute

correspondecircncia entre os dois

Neste caso tornar-se-ia possiacutevel distinguir claramente entre o que

realmente eacute o caso e o que se julga ser o caso (PUTNAM 1990 p 102) Esta

eacute a razatildeo pela qual uma teoria correspondencial da verdade eacute um elemento

essencial desta posiccedilatildeo uma teoria que segundo ele foi contestada por

Kant (PUTNAM 1990 p 92-93) Putnam (1990 p 85) chama a teoria da

correspondecircncia de ldquoteoria da semelhanccedila de relaccedilatildeordquo precisamente por

ela sustentar que a relaccedilatildeo vigente entre nossas representaccedilotildees e os

objetos externos eacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila

Satildeo vaacuterias as razotildees que levaram Putnam a abandonar esta posiccedilatildeo

Puntel (2008 p 480) enumera as trecircs mais importantes 1) A

compreensatildeo de que a crenccedila de que poderiacuteamos dispor de uma

perspectiva de Deus eacute uma presunccedilatildeo e uma ilusatildeo 2) O realismo

metafiacutesico produz uma consequecircncia inadmissiacutevel uma vez que o abismo

entre linguagem (teoria) e mundo eacute insuperaacutevel para seres finitos natildeo se

pode afastar a possibilidade de que mesmo uma teoria ideal por noacutes

elaborada possa enganar-se em relaccedilatildeo ao mundo e isto eacute certamente

ininteligiacutevel 3) O contato com o uacuteltimo Wittgenstein o levou a considerar

o realismo metafiacutesico uma teoria ingecircnua quanto ao sentido que

simplesmente natildeo se sustenta mais

Na perspectiva pragmaacutetica aberta por Wittgenstein a referecircncia a um

jogo de linguagem eacute essencial o que significa dizer que o significado

linguiacutestico natildeo se esgota na esfera da semacircntica Isto conduz agrave afirmaccedilatildeo

da primazia da dimensatildeo pragmaacutetica na linguagem e consequentemente a

uma articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas de forma inteiramente diferente

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 27

Como diz Zilhatildeo (1993 p 204) para descrever a mudanccedila radical de

perspectiva

[hellip] soacute no interior dos jogos de linguagem correspondentes eacute que

determinadas expressotildees mesmo quando apresentam uma estrutura formal

declarativa adquirem o caraacutecter de ldquopensamentosrdquo e ldquoproposiccedilotildeesrdquo isto eacute a

sua simples aparecircncia formal considerada independentemente do uso que

elas tenham num contexto determinado natildeo nos autoriza a classificaacute-las de

acordo com qualquer categoria

No entanto para Puntel a posiccedilatildeo alternativa articulada por Putnam

o ldquorealismo internordquo que eacute uma versatildeo da posiccedilatildeo antirrealista apesar de

ter um aspecto profundamente correto tem tambeacutem uma dimensatildeo

inaceitaacutevel Certamente a tese de que o mundo (a natureza a realidade o

universo as coisas mesmas) existe ou possa existir em absoluta

independecircncia do espiacuterito respectivamente da linguagem enquanto tal se

autodestroacutei em sua enunciaccedilatildeo portanto natildeo eacute inteligiacutevel e por isto

inaceitaacutevel (PUNTEL 1990 p 271-72) Antes de tudo porque

inteligibilidade implica algo conceitual

Na realidade um tal mundo natildeo passa de um constructo

contraditoacuterio por um lado o mundo eacute aceito como algo independente de

qualquer elemento conceitual por outro lado se fala de mundo relaciona-

se com o mundo o que inclui elementos conceituais em muacuteltiplas formas

linguisticamente expressos A Keller defende a tese de que a palavra em

contraposiccedilatildeo a siacutelabas sem sentido caracteriza-se por ser uma sequecircncia

de sons com significado A partir daqui ele justifica a vinculaccedilatildeo entre

ldquoconceito e linguagemrdquo afirmando que jaacute que natildeo existe significado sem

uma sequecircncia de sons pelo menos pensada natildeo existe conceito sem uma

sequecircncia de sons sem palavra nenhum conceito (KELLER 1979 p93)

Esta tese antirrealista eacute para Puntel correta mas insuficiente porque

ele natildeo mostrou em que sentido exatamente a tese de uma realidade

concebida deste modo seria nua O argumento aqui eacute que questotildees a

respeito da dicotomia entre pensamentoatos

constituintesespiacuteritolinguagem e mundonaturezarealidadecoisa

28 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

mesma natildeo podem ser elucidadas sem a referecircncia clara a uma tese

ontoloacutegica central que eacute o pressuposto de qualquer empreendimento

teoacuterico o que possa ser aquela dimensatildeo que habitualmente se denomina

mundorealidadecoisa mesma ela eacute portadora de qualquer forma de uma

estruturaccedilatildeo imanente fundamental ou seja de uma expressabilidade

plena sem a qual a teoria seria privada de sentido

Puntel (2008 p 482) emprega o termo ldquoexpressabilidaderdquo como uma

espeacutecie de foacutermula abreviada de uma seacuterie de termos como

inteligibilidade conceituabilidade compreensibilidade explicabilidade

articulabilidade etc Portanto se o ser enquanto tal eacute expressaacutevel e eacute isto

que todo empreendimento teoacuterico em princiacutepio pressupotildee sob pena de ou

ser autocontraditoacuterio ou natildeo ter sentido entatildeo a esta universalidade

corresponde uma instacircncia de sua expressatildeo igualmente universal uma

instacircncia expressante a linguagem de modo que parafraseando Gadamer

se pode dizer ldquoo ser que pode ser entendido eacute o universo do discursordquo

(PUNTEL 2008 p 526-527) o que implica uma relaccedilatildeo essencial entre o

ser e a linguagem

Em contraposiccedilatildeo ao realismo metafiacutesico a posiccedilatildeo aqui eacute que a

expressabilidade do mundo pressuposta por nossos empreendimentos

teoacutericos natildeo eacute compreensiacutevel sem uma instacircncia que a exprima ou seja a

tese de um ldquomundo nurdquo sem qualquer relaccedilatildeo a algo como linguagem

espiacuterito conceitualidade etc numa palavra a tese de um mundo

enclausurado em si mesmo eacute uma impossibilidade metafiacutesica e por esta

razatildeo ininteligiacutevel

Quando se afirma [] a ldquoindependecircncia absolutardquo do mundo (do universo

etc) isso daacute a impressatildeo de que se estaacute afirmando algo natildeo inteligiacutevel a saber

um ldquomundo natildeo conceitualizadordquo ldquonatildeo estruturadordquo totalmente

incompreendido e incompreensiacutevel situado fora do alcance do compreensiacutevel

do articulaacutevel etc Esta eacute a aporia em que incorre o realista (metafiacutesico)

(PUNTEL 2008 p 498)

Portanto a linguagem diz o mundo ela eacute a instacircncia intransponiacutevel

da expressabilidade do mundo e por isto seu lugar na filosofia eacute

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 29

absolutamente central Partindo das teses da antropologia do iniacutecio do

seacuteculo XX A Keller apresenta esta problemaacutetica afirmando que o ser

humano enquanto ldquoser biologicamente carenterdquo natildeo estaacute contudo preso

por seus instintos a um meio ambiente especiacutefico mas eacute relacionado ao

mundo em seu todo Ele natildeo conhece contudo esta totalidade

simplesmente atraveacutes de um conjunto desordenado de impressotildees mas a

capta atraveacutes de esquemas aprendidos o que se pode denominar a

ldquoestrutura-enquantordquo porque ele sempre capta algo enquanto algo

determinado isto eacute linguisticamente delimitado Daiacute porque para o ser

humano a linguagem eacute tatildeo vitalmente necessaacuteria como o instinto para o

animal (KELLER 1979 p 121 129)

Em segundo lugar para Puntel Putnam como os antirrealistas em

geral sempre afirma que a realidade (o mundo o universo) se refere a

ldquonosso espiacuteritordquo aldquonossa linguagemrdquo Isto significa dizer que a maneira

como o mundo estaacute estruturadodepende da linguagem em que ele se

expressa e essa linguagem para ele eacute sempre ldquonossa linguagemrdquo Desta

forma nem tudo se pode dizer em cada linguagem trata-se aqui de uma

grandeza limitada Nossas visotildees do mundo satildeo sempre diferentemente

relativas agraves nossas diferentes linguagens Eacute por isto afirma Humboldt

(1903a p 14-15) que soacute atraveacutes da linguagem captamos o mundo seus

objetos propriedades e relaccedilotildees e a linguagem eacute sempre um todo uma

estrutura cujas partes devem ser consideradas em seu papel no todo

Realizamos isso no entanto sempre numa linguagem determinada

de uma forma determinada Cada linguagem efetiva uma transformaccedilatildeo

do mundo em linguagem (HUMBOLDT 1903b p 28) articula uma visatildeo

do mundo (Weltansicht) uma concepccedilatildeo peculiar do mundo e de sua

estrutura10 uma ontologia proacutepria Assim se a cultura engendra a

linguagem a linguagem entatildeo eacute frente ao indiviacuteduo uma potecircncia que

determina seu pensamento e sua experiecircncia configurando sua visatildeo do

mundo Desta forma cada linguagem eacute em si mesma uma individualidade

espiritual (HUMBOLDT 1903b p 151) que delimita o caraacuteter nacional de

10 A respeito das questotildees epistemoloacutegicas que marcam essa posiccedilatildeo cf Kutschera (1975 p 332 e ss)

30 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

tal forma que o ser humano natildeo fala como ele fala simplesmente porque

deseja falar assim mas porque tem que falar assim11 Nele a maneira de

falar eacute um constrangimento de sua natureza intelectual (HUMBOLDT

1903b p 127) Na perspectiva da concepccedilatildeo pragmaacutetica contudo nada haacute

aqui de necessaacuterio

[hellip] nada haacute de necessaacuterio no facto de usarmos os nossos sinais do modo como

os usamos isto eacute em vez de uma forma loacutegica que espelha a forma da

realidade a gramaacutetica eacute algo de arbitraacuterio [hellip] Natildeo se pode assim falar de uma

gramaacutetica errada mas tatildeo soacute de uma desadequaccedilatildeo de uma linguagem ou jogo

de linguagem em funccedilatildeo de determinadas necessidades praacuteticas [hellip] na

linguagem tal como no xadrez se seguirmos outras regras gramaticais

estaremos respectivamente ou a dizer outra coisa qualquer noutro sistema de

regras ou a jogar outro jogo (ZILHAtildeO 1993 p 205-206)

Aqui se manifesta uma conexatildeo muacutetua entre pensamento e palavra

(HUMBOLDT 1903a p 27) pensando a partir da consciecircncia Humboldt

defende o caraacuteter inseparaacutevel da consciecircncia e da linguagem humanas

uma vez que a linguagem eacute o oacutergatildeo que estrutura o pensamento Neste

sentido a linguagem natildeo eacute apenas meio de expressatildeo e comunicaccedilatildeo de

conteuacutedos de pensamento portanto de uma verdade jaacute articulada sem ela

mas antes pensamento e linguagem instituem uma unidade indissoluacutevel

(HUMBOLDT 1903b p 22 ss)12

O grande problema aqui e que toca o cerne das filosofias da

subjetividade inclusive as que fizeram a reviravolta linguiacutestica eacute o

seguinte estas afirmaccedilotildees levam a estabelecer a subjetividade como

instacircncia doadora de sentido a tudo A questatildeo se potildee igualmente numa

filosofia pragmaacutetica jaacute que o elemento central da pragmaacutetica (OLIVEIRA

2012 p 87-106) consiste na consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre linguagem e

falantes ou da linguagem na perspectiva da maneira como os falantes a

usam o que significa que aqui eacute determinante a accedilatildeo dos falantes Nesse

11 Uma tese que foi desenvolvida por Sapir (1929 p 209) ldquoHuman beings do not live in the objective world alone not alone in the world of social activity as ordinarily understood but are very much at the mercy of the particular language which has become the medium of expression for their societyrdquo

12 Cf Sellars (1973 p 82) ldquoThinking at the distinctly human level [hellip] is essentially verbal activityrdquo

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 31

sentido a passagem da subjetividade para a intersubjetividade proposta

como mudanccedila de paradigma na realidade natildeo resulta na superaccedilatildeo do

caraacuteter determinante da subjetividade na filosofia ou seja da postura em

que a subjetividade eacute a instacircncia teoacuterica que determina tudo

Ora noacutes somos entes puramente contingentes entatildeo

inevitavelmente se levanta a questatildeo ldquoComo poderiam entatildeo os lsquoentes

humanosrsquo (mesmo em sua totalidade como quer que esta seja pensada)

ser tomados como lsquoparacircmetrorsquo para o que eacute o mundordquo (PUNTEL 2008

p 482-483) Como nesta postura natildeo se pode falar de forma coerente do

grande mundo uma soluccedilatildeo razoaacutevel poderia ser reduzir a grande

dimensatildeo do mundo ao nosso mundo entendido como nosso mundo

vivido com a consequecircncia de ter que avaliar como sem sentido ou como

ficccedilatildeo tudo aquilo que natildeo for compatiacutevel com este mundo como por

exemplo muito do que eacute elaborado pelas ciecircncias

A implausibilidade desta posiccedilatildeo aponta para a verdadeira questatildeo

neste contexto como entender a linguagem (espiacuterito) a fim de que se

legitime a afirmaccedilatildeo de que natildeo tem sentido falar de um mundo sem

nenhuma relaccedilatildeo a ela Esta eacute a questatildeo irrefutaacutevel em primeiro lugar

para a articulaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica precisamente enquanto uma

atividade teoacuterica Numa palavra trata-se antes de tudo da determinaccedilatildeo

de um criteacuterio universal de teoricidade e justamente de um criteacuterio

linguiacutestico pois a linguagem eacute o primeiro pressuposto de uma teoria que

se compotildee de sentenccedilas especificamente de sentenccedilas teoacutericas em

segundo lugar para o enfrentamento da questatildeo do lugar central atribuiacutedo

agrave subjetividade pela filosofia moderna A resposta a esta questatildeo implica

uma virada no pensamento moderno que vai justificar falar de uma

despontencializaccedilatildeo da subjetividade

A primeira etapa nesta direccedilatildeo consiste para Puntel na diferenciaccedilatildeo

entre duas formas diferentes de compreensatildeo da linguagem Quando

familiarmente nos referimos a signos linguiacutesticos entatildeo o ser humano

com sua histoacuteria obras e contingecircncias se revela seu autor e nesta

32 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

perspectiva haacute razatildeo para falar de ldquonossardquo linguagem uma vez que sem o

ser humano natildeo se pode falar de siacutembolos linguiacutesticos bem determinados

Eacute justamente nesse sentido que A Keller (1979 p 42) entende a

linguagem como um sistema de formas de proferimentos produzido pelo

ser humano que para expressar-se para entender-se para organizar seus

conhecimentos e comunicaacute-los e para defrontar-se de diferentes formas

com a realidade Numa palavra na medida em que a linguagem se

constitui de siacutembolos linguiacutesticos assim compreendidos ela eacute uma

produccedilatildeo histoacuterico-contingente de sujeitos humanos de tal forma que a

referecircncia a estes sujeitos eacute ineliminaacutevel Nisto tecircm razatildeo os pragmaacuteticos

aqui a accedilatildeo humana eacute simplesmente decisiva ldquoisto eacute o modo particular

atraveacutes do qual intervimos na realidaderdquo (ZILHAtildeO 1993 p 207) embora

se deva afirmar tambeacutem como o faz Kutschera que a linguagem eacute natildeo soacute

uma criaccedilatildeo da comunidade e da cultura humanas mas igualmente sua

condiccedilatildeo de possibilidade Nela com uma quantidade finita de expressotildees

e uma quantidade finita de regras gramaticais pode-se comunicar uma

quantidade infinita de informaccedilotildees que possibilitam a forma determinada

de comunicaccedilatildeo que gera a comunidade e a cultura A linguagem eacute assim

a pressuposiccedilatildeo da qualidade especificamente humana de uma

comunidade (KUTSCHERA 1998 p 105 ss)

No entanto a linguagem entendida no sentido maximal ou seja

como linguagem absolutamente universal natildeo eacute um produto humano

mas jaacute estaacute dada com o mundo entendido como ser em seu todo Ela eacute a

instacircncia da expressabilidade universal enquanto esfera correlata agrave

expressabilidade do ser enquanto tal

ldquoexpressabilidaderdquo eacute uma relaccedilatildeo que soacute eacute explicaacutevel e desse modo

compreensiacutevel se tambeacutem seu reverso for reconhecido X eacute expressaacutevel se e

somente se houver um Y que eacute a instacircncia expressante de X [hellip] a

expressabilidade universal do mundo tem como pressuposto ou [hellip] como

implicaccedilatildeo uma instacircncia expressante universal [hellip] uma linguagem

(PUNTEL 2008 p 501)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 33

Isto significa dizer que o relacionamento com a realidade soacute ocorre

linguisticamente Numa palavra a expressabilidade universal implica uma

instacircncia expressante universal uma linguagem universal que

consequentemente tem que ter um caraacuteter diferente da ldquonossardquo

linguagem Neste sentido ela natildeo eacute um produto humano puramente

contingente mas uma estruturalidade imanente ou seja um momento

estrutural do mundo entendido como ser em seu todo e dessa maneira ela

jaacute estaacute dada com o mundo em sentido do todo da realidade Enquanto tal

ela eacute um sistema semioacutetico objetivo (PUNTEL 1990 p 135)

O ser na medida em que eacute expressaacutevel enquanto tal possui uma

relaccedilatildeo imanente essencial com a linguagem que eacute precisamente a

instacircncia correlata a esta expressabilidade universal uma caracteriacutestica

imanente do ser em si mesmo Neste contexto linguagem eacute entendida

como um sistema semioacutetico abstrato que conteacutem uma quantidade

inumeraacutevel de expressotildees Este eacute para Puntel o ldquolocus originariusrdquo da

compreensatildeo da linguagem ou melhor da linguisticidade Ele denomina

por esta razatildeo a linguagem assim entendida como ldquolinguagem originaacuteriardquo

e eacute ela que ocupa a posiccedilatildeo primordial na filosofia

Assim a linguagem enquanto linguisticidade do ser enquanto tal eacute a

linguagem absolutamente universal e designa precisamente o lado inverso

da expressabilidade universal do ser em seu todo Esta linguagem assim

entendida eacute coextensiva ao ser em seu todo pois o mundo (o universo o

ser) em seu todo eacute expressaacutevel o pressuposto ineliminaacutevel de qualquer

passo teoacuterico Nada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser articulado em

forma de linguagem

Neste sentido a expressabilidade eacute um momento estrutural imanente

do mundoe desse modo coextensional com o mundo como o eacute

consequentemente a linguagem Isso significa dizer que todo conteuacutedo

conceitual eacute articulado no seio da linguagem e eacute precisamente nesse

sentido que a linguagem emerge como meio indispensaacutevel da expressatildeo

ou da exposiccedilatildeo no sentido de que conteuacutedos conceituais natildeo existem sem

sua articulaccedilatildeo linguiacutestica

34 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

[hellip] linguagem constitui meio indispensaacutevel da expressatildeo ou exposiccedilatildeo no

seguinte sentido se compreendidos adequada e rigorosamente os assim

chamados ldquoconteuacutedos conceituaisrdquo natildeo existem sem sua articulaccedilatildeo (ou

articulabilidade) linguiacutestica (PUNTEL 2008 p 226)

Eacute nessa oacutetica que tem sentido a afirmaccedilatildeo de Kutschera articulada na

linguagem da semacircntica e da ontologia composicionais natildeo conhecemos

o mundo primeiro no pensamento e depois exprimimos o conhecido na

linguagem mas captamos a realidade os objetos suas diferenccedilas

propriedades e relaccedilotildees em forma linguiacutestica Pensamento e linguagem se

desenvolvem sempre juntos os pensamentos soacute se exprimem em forma

linguiacutestica A linguagem eacute o ldquomeacutediumrdquo do pensamento (KUTSCHERA

1998 p 111) Uma consequecircncia primeira fundamental aqui eacute que eacute na

articulaccedilatildeo linguiacutestica que eacute possiacutevel apreender o que eacute o conteuacutedo

conceitual como ele eacute estruturado

Quando se entende poreacutem linguagem como siacutembolos linguiacutesticos

entra em jogo o ser humano com sua histoacuteria ou seja aqui a linguagem eacute

produccedilatildeo humana e eacute isto que explica a contingecircncia histoacuterica dessas

linguagens13 Ela entatildeo se revela como a pressuposiccedilatildeo na expressatildeo de

V Kutschera (1998 p 113) de todas as nossas produccedilotildees culturais de

nossa autocompreensatildeo de nossa autoconsciecircncia e de nosso pensamento

Mas quando se leva em consideraccedilatildeo a estruturalidade semacircntico-

ontoloacutegica da linguagem entatildeo ela eacute o resultado da expressabilidade da

proacutepria realidade e ldquofalantes e sujeitos satildeo determinados e entendidos a

partir da linguagem e natildeo a linguagem a partir dos falantes ou sujeitosrdquo

(PUNTEL 2008 p 130)

Entendendo assim a linguagem no sentido maximal ou seja como

um sistema semioacutetico composto de uma quantidade infinita natildeo

enumeraacutevel de expressotildees isto eacute quando a linguagem eacute entendida como

13 Cf Zilhatildeo (1993 p 206) ldquoA analogia adequada que nos permite compreender a ligaccedilatildeo que Wittgenstein entendia existir entre linguagem ou pensamento e mundo eacute-nos dada pela consideraccedilatildeo das ferramentas que usamos Se soubermos olhar para elas poderemos ficar a saber tudo o que haacute para saber tanto acerca da lsquoformarsquo do mundo como do comportamento e da vida de quem as usa [hellip]rdquo

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 35

o reverso da expressabilidade do mundo entatildeo a fala sobre o mundo (a

realidade) a partir do interior da linguagem de nenhuma forma implica

sua reduccedilatildeo ao mundo da nossa linguagem e com isto cai tambeacutem por

terra a dicotomia ldquoem si e para noacutesrdquo Uma primeira consequecircncia desta

tese eacute que natildeo pode haver entidades excluiacutedas da dimensatildeo da linguagem

pois isto implicaria que tais entidades natildeo seriam expressaacuteveis Assim a

quantidade de sentenccedilas deve corresponder pelo menos ao nuacutemero de

entidades ou de fatos do mundo

O caraacuteter unilateral da posiccedilatildeo antirrealista se mostra justamente

nareduccedilatildeo da linguagem a uma criaccedilatildeo humana e consequentemente agrave

ldquonossa linguagemrdquo no desconhecimento total da linguagem maximal ou

absolutamente universal Isto significa dizer que falta aqui uma visatildeo para

o ldquotodordquo do fenocircmeno da linguagem e consequentemente a compreensatildeo

de que ldquonossardquo linguagem eacute apenas um segmento de uma linguagem

muito mais abrangente ou seja de um sistema semioacutetico composto de

uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees que eacute o ldquoinversordquo

da expressabilidade universal do ser em seu todo Nesse sentido a

linguagem possui um poder de expressatildeo muitiacutessimo maior do que a

linguagem entendida como sistema semioacutetico de comunicaccedilatildeo

Na consideraccedilatildeo da linguagem maximal a referecircncia agrave subjetividade

se torna simplesmente supeacuterflua uma tese que Apel (1973 p 240 ss) jaacute vecirc

presente na posiccedilatildeo de Wittgenstein Ele defende a tese de que o Tractatus

de Wittgenstein eacute uma filosofia transcendental sem sujeito uma vez que

Wittgenstein identifica o sujeito com a operaccedilatildeo formal constitutiva da

linguagem Com isto a referecircncia ao sujeito se torna supeacuterflua Em

contraposiccedilatildeo a esta posiccedilatildeo Apel defende a tese do caraacuteter irrecusaacutevel

pelo menos implicitamente de uma autorreferecircncia da linguagem a si

mesma que eacute depois da reviravolta linguiacutestica a nova forma de auto-

reflexividade Com isto se daacute a referecircncia a um sujeito individual como

suporte da forma loacutegica a fim de que ela possa exercer sua funccedilatildeo

transcendental Portanto a referecircncia ao sujeito eacute ineliminaacutevel

36 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Puntel (2008 p 129) denomina a linguagem maximal que de

nenhuma forma eacute tematizada pelas diferentes formas de filosofia

antirrealista como a de Apel de originaacuteria ou antes o ldquolocus originariusrdquo

de compreensatildeo da linguagem ldquono sentido de sistema semioacutetico que se

baseia na ideia da expressabilidade universal do mundo (do universo do

ser)rdquo Neste contexto uma observaccedilatildeo eacute absolutamente fundamental

a linguagem filosoacutefica e cientiacutefica infinita natildeo enumeraacutevel natildeo eacute compreendida

como se fosse uma grandeza ldquomanipulaacutevelrdquo ela eacute antes uma espeacutecie de ideia

reguladora ou emolduradora em qualquer caso uma assunccedilatildeo metafiacutesica cuja

funccedilatildeo principal consiste em desempenhar um importante papel explanatoacuterio

(PUNTEL 2008 p 522)

Uma pergunta que emerge neste contexto inevitavelmente eacute o que eacute

mesmo essa linguagem maximal essa linguagem universal Para Puntel

(2008 p 527) se tem que dizer em primeiro lugar que ela por um lado

natildeo existe em lugar algum mas por outro lado existe em toda parte no

sentido de que ldquonada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser lsquoarticulado em

forma de linguagemrsquordquo Ocorre que o falante escolhe um certo ldquosegmentordquo

desta linguagem para se adequar a seus objetivos poreacutem este segmento

de nenhuma forma se identifica simplesmente com a totalidade da

linguagem o que tambeacutem vale para uma linguagem artificial que conteacutem

uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees direcionadas ao

objetivo da exposiccedilatildeo e natildeo da comunicaccedilatildeo Eacute esta a razatildeo porque se fala

aqui de linguagem maximal e ela natildeo soacute constitui o lugar originaacuterio da

compreensatildeo da linguagem mas soacute a partir daqui se pode compreender

adequadamente o que significa propriamente falar de centralidade da

linguagem na filosofia

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2

Encheiriacutedion Capiacutetulo I

Traduccedilotildees e Comentaacuterios

Aldo Dinucci 1

Alfredo Julien 2

Antonio Carlos Tarquiacutenio 3

O Encheiriacutedion termo que em grego significa ldquoadaga punhal arma

portaacutetil ou livro portaacutetil manualrdquo foi composto por Luacutecio Flaacutevio Arriano

de Nicomeacutedia4 tomando por base suas compilaccedilotildees das aulas de Epicteto

Consistindo em um conjunto de apotegmas para que o seguidor do

Estoicismo tenha sempre ao alcance da matildeo os princiacutepios para enfrentar

as dificuldades da vida e vencecirc-las o Encheiriacutedion tornou ceacutelebre o nome

de Epicteto Seguem breves mas importantes traduccedilotildees e comentaacuterios

sobre o primeiro capiacutetulo do Encheiriacutedion de Epicteto A primeira traduccedilatildeo

comentada foi realizada por Aldo Dinucci e Alfredo Julien pesquisadores

que dedicaram alguns anos agrave traduccedilatildeo da obra culminando com uma

ediccedilatildeo em Coimbra da mesma pelos Classica Digitalia A segunda por

Antonio Carlos Tarquiacutenio filoacutesofo radicado em Satildeo Paulo que tem se

dedicado intensamente nas uacuteltimas deacutecadas ao estudo de Epicteto

publicando em 2017 o livro Uma filosofia do desapego a askesis de

desapropriaccedilatildeo epictetiana agrave luz da katharsis do Feacutedon de Platatildeo resultado

1 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

2 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (USP)

3 Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)

4 Ca 86-160

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 41

de suas pesquisas de doutorado sobre o velho de Nicoacutepolis Imediatamente

abaixo temos o texto em grego estabelecido pela primeira vez por Boter

em 1999

[11] Τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ ἡμῖν τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἐφ ἡμῖν μὲν

ὑπόληψις ὁρμή ὄρεξις ἔκκλισις καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα ἡμέτερα ἔργα οὐκ ἐφ

ἡμῖν δὲ τὸ σῶμα ἡ κτῆσις δόξαι ἀρχαὶ καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα οὐχ ἡμέτερα

ἔργα[12]καὶ τὰ μὲν ἐφ ἡμῖν ἐστι φύσει ἐλεύθερα ἀκώλυτα παραπόδιστα

τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀσθενῆ δοῦλα κωλυτά ἀλλότρια[13] μέμνησο οὖν ὅτι

ἐὰν τὰ φύσει δοῦλα ἐλεύθερα οἰηθῇς καὶ τὰ ἀλλότρια ἴδια ἐμποδισθήσῃ

πενθήσεις ταραχθήσῃ μέμψῃ καὶ θεοὺς καὶ ἀνθρώπους ἐὰν δὲ τὸ σὸν

μόνον οἰηθῇς σὸν εἶναι τὸ δὲ ἀλλότριον ὥσπερ ἐστίν ἀλλότριον οὐδείς σε

ἀναγκάσει οὐδέποτε οὐδείς σε κωλύσει οὐ μέμψῃ οὐδένα οὐκ ἐγκαλέσεις

τινί ἄκων πράξεις οὐδὲ ἕν οὐδείς σε βλάψει ἐχθρὸν οὐχ ἕξεις οὐδὲ γὰρ

βλαβερόν τι πείσῃ [14] τηλικούτων οὖν ἐφιέμενος μέμνησο ὅτι οὐ δεῖ

μετρίως κεκινημένον ἅπτεσθαι αὐτῶν ἀλλὰ τὰ μὲν ἀφιέναι παντελῶς τὰ δ

ὑπερτίθεσθαι πρὸς τὸ παρόν ἐὰν δὲ καὶ ταῦτ ἐθέλῃς καὶ ἄρχειν καὶ

πλουτεῖν τυχὸν μὲν οὐδ αὐτῶν τούτων τεύξῃ διὰ τὸ καὶ τῶν προτέρων

ἐφίεσθαι πάντως γε μὴν ἐκείνων ἀποτεύξη δι ὧν μόνων ἐλευθερία καὶ

εὐδαιμονία περιγίνεται [15] εὐθὺς οὖν πάσῃ φαντασίᾳ τραχείᾳ μελέτα

ἐπιλέγειν ὅτι lsquoφαντασία εἶ καὶ οὐ πάντως τὸ φαινόμενονrsquo ἔπειτα ἐξέταζε

αὐτὴν καὶ δοκίμαζε τοῖς κανόσι τούτοις οἷς ἔχεις πρώτῳ δὲ τούτῳ καὶ

μάλιστα πότερον περὶ τὰ ἐφ ἡμῖν ἐστιν ἢ περὶ τὰ οὐκ ἐφ ἡμῖν κἂν περί τι

τῶν οὐκ ἐφ ἡμῖν ᾖ πρόχειρον ἔστω τὸ διότι lsquoοὐδὲν πρὸς ἐμέrsquo

Encheiriacutedion Capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Aldo Dinucci e

Alfredo Julien)

[11] Das coisas existentes algumas satildeo encargos nossos outras natildeo Satildeo

encargos nossos o juiacutezo o impulso o desejo a repulsa ndash em suma tudo quanto

seja accedilatildeo nossa Natildeo satildeo encargos nossos o corpo as posses a reputaccedilatildeo os

cargos puacuteblicos ndash em suma tudo quanto natildeo seja accedilatildeo nossa [12] Por

natureza as coisas que satildeo encargos nossos satildeo livres5 desobstruiacutedas6 sem

5 Eleutheros livre por oposiccedilatildeo a escravo Para Epicteto quem deseja o que natildeo eacute encargo seu necessariamente torna-se escravo pois voluntariamente submete-se aos que podem proporcionar-lhe ou impedir-lhe o acesso agrave coisa desejada (cf Diatribes I 419)

6 Akolytos adjetivo verbal de privaccedilatildeo da accedilatildeo relacionada ao verbo kolyo que significa ldquoafastar desviarrdquo adquirindo o sentido de ldquoimpedirrdquo Bailly (2000) apresenta o substantivo neutro to kolyon com o significado de ldquoobstaacuteculordquo

42 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

entraves7 As que natildeo satildeo encargos nossos satildeo deacutebeis8 escravas obstruiacutedas9

de outrem10 [13] Lembra entatildeo que se pensares11 livres as coisas escravas por

natureza e tuas as de outrem tu te faraacutes entraves12 tu te afligiraacutes13 tu te

inquietaraacutes14 censuraraacutes tanto os deuses como os homens Mas se pensares

teu unicamente o que eacute teu e o que eacute de outrem como o eacute de outrem ningueacutem

jamais te constrangeraacute15 ningueacutem te faraacute obstaacuteculos natildeo censuraraacutes

ningueacutem nem acusaraacutes quem quer que seja de modo algum agiraacutes

constrangido ningueacutem te causaraacute dano natildeo teraacutes inimigos pois natildeo seraacutes

persuadido em relaccedilatildeo a nada nocivo [14] Entatildeo almejando coisas de

tamanha importacircncia lembra que eacute preciso que natildeo te empenhes de modo

comedido mas que abandones completamente algumas coisas e por ora

deixes outras para depois Mas se quiseres aquelas coisas e tambeacutem ter cargos

e ser rico talvez natildeo obtenhas estas duas uacuteltimas por tambeacutem buscar as

primeiras e absolutamente natildeo atingiraacutes aquelas coisas por meio das

quaisunicamente resultam a liberdade e a felicidade16 [15] Entatildeo pratica dizer

prontamente a toda representaccedilatildeo bruta17 ldquoEacutes representaccedilatildeo e de modo

algum lteacutesgt o que se afigurardquo18 Em seguida examina-a e testa-a com essas

mesmas regras que possuis em primeiro lugar e principalmente se eacute sobre

ldquoimpedimentordquo Assim a-kolytos refere-se a algo para o que natildeo haacute impedimento quanto agrave sua obtenccedilatildeo sendo portanto ldquodesimpedidordquo

7 Aparapodistos optamos traduzir o termo por ldquosem entravesrdquo pois trata-se de um adjetivo verbal que nega a accedilatildeo relacionada ao verbo podizo que significa ldquosujeitar os peacutes com travasrdquo referindo-se principalmente a armadilhas para animais Cf o substantivo feminino podistra que pode significar tanto ldquoarmadilha que prende pelos peacutesrdquo (Antologia Palatina 6 107) quanto ldquoteia de aranhardquo (Antologia Palatina 9 372)

8 Asthene privado de forccedila no sentido de ldquoforccedila fiacutesica vigorrdquo

9 Kolytos Cf nota acima sobre akolutos

10 Arriano assim relaciona os adjetivos empregados para qualificar o que eacute encargo nosso e o que natildeo eacute o que eacute encargo nosso eacute livre desobstruiacutedo sem entraves o que natildeo eacute encargo nosso eacute deacutebil escravo de outrem

11 Oio ldquopensarrdquo no sentido de ldquopresumirrdquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute ldquopressentir crer estimarrdquo

12 Empodizo significa literalmente ldquometer os peacutes em uma armadilhardquo

13 Pentheo verbo relacionado ao substantivo to penthos que siginifica ldquodor afliccedilatildeordquo

14 Tarasso significa primariamente ldquoremexerrdquo ldquoagitarrdquo no sentido concreto de preparar um medicamento agitando os ingredientes que o compotildeem

15 Anankazo ldquoforccedilarrdquo ldquoconstrangerrdquo

16 Felicidade traduz eudaimoniacutea No contexto do paganismo grego daimoniacuteos eacute um adjetivo que qualifica tudo o que proveacutem da divindade ou eacute enviado por um deus Associado ao prefixo ldquoeṷrdquo (ldquobemrdquo no sentido de coisas boas) esse vocaacutebulo tem significaccedilatildeo proacutexima agrave de ldquobem-aventuranccedilardquo na acepccedilatildeo cristatilde

17 Trata-se do adjetivo trachys apresentado por Bailly (2000) com o significado de ldquoruderdquo adquirindo diversos sentidos dependendo do substantivo ao qual esteja ligado ldquoAacutesperordquo ao se tratar de uma pedra ldquopedregosordquo ao se referir a um rio ou a um terreno ldquoroucardquo ao qualificar um tipo voz ldquogrosseiro duro cruel violento e irasciacutevelrdquo ao se referir ao comportamento de algueacutem Simpliacutecio (Comentaacuterio ao Encheiriacutedion de Epicteto V 15) observa que tal representaccedilatildeo eacute chamada tracheiacutea (dura bruta) por ser contraacuteria agrave razatildeo tornando ldquoaacutesperardquo a vida Oldfather (2000) e White (1983) traduzem esse adjetivo por ldquoharshrdquo Gourinat (1998) por ldquopeacuteniblerdquo Garciacutea (1995) por ldquobrutardquo

18 Phainoacutemenon ldquoo que estaacute se manifestando ou se mostrandordquo particiacutepio presente meacutedio do verbo phaaino

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 43

coisas que satildeo encargos nossos ou natildeo E caso esteja entre as coisas que natildeo

sejam encargos nossos tem agrave matildeo que ldquoNada eacute para mimrdquo

A expressatildeo ephi hemin que ora traduzimos por ldquosob nosso encargordquo

ou ldquoencargo nossordquo natildeo possui equivalente direto que possa dar conta de

seu significado Literalmente poderiacuteamos traduzi-la por ldquoalgumas coisas

estatildeo sobre noacutes outras natildeordquo Henrique Murachco traduz expressatildeo

semelhante (to epi emoi) por ldquono que estaacute sobre mimrdquo no sentido ldquode

quanto a mimrdquo ldquono que me concernerdquo (2001 p 573) No caso do

Encheiridion de Epicteto a traduccedilatildeo poderia ser ldquoalgumas coisas nos

concernem outras natildeordquo Bailly (2000) citando a mesma expressatildeo

acentua a ideia de dependecircncia e de poder que ela expressa traduzindo-a

por ldquoautant qursquoil est em mon pouvoirrdquo enfatizando assim a ideia de

controle (cf Xenofonte Ciropeacutedia 54 11) A expressatildeo possui imagem

concreta e clara referindo-se a algo que eacute colocado sobre noacutes sustentado

por noacutes pois nos encontramos embaixo fornecendo seu apoio A opccedilatildeo

por ldquoencargo nossordquo acentua a ideia de responsabilidade que temos quanto

a isso que estaacute sobre noacutes (e do que somos a causa primaacuteria)

A expressatildeo eacute diferentemente vertida por diferentes tradutores

Oldfather a traduz por ldquothings under our controlrdquo (2000) White por

ldquowhat is up to usrdquo (1983) Gourinat por ldquochoses qui deacutependent de nousrdquo

(1998)

Como dissemos epi expressa uma relaccedilatildeo de dependecircncia Satildeo

portanto coisas que dependem de noacutes Como Epicteto diraacute na continuaccedilatildeo

do texto eacute preciso que nos concentremos sobre as coisas que estatildeo sob

nosso controle em trecircs sentidos Em relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo (phantasia)

retirando dela todo juiacutezo (hypolepsis) equivocado a partir da

compreensatildeo de que nada que natildeo depende de noacutes eacute por si mesmo um

bem ou um mal Em relaccedilatildeo ao impulso (horme) uma vez cientes de que

produzimos nosso bem e nosso mal eacute preciso moderar os impulsos e

encontrar o modo de agir segundo a natureza Em relaccedilatildeo ao desejo

(orexis) e agrave repulsa (ekklisis) partindo mais uma vez da compreensatildeo de

que nada externo eacute por si soacute um bem ou um mal eacute preciso que o desejo e

44 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

a repulsa se apliquem natildeo mais agraves coisas que natildeo dependem de noacutes

(sendo-nos necessaacuterio desejaacute-las como satildeo) mas agraves coisas que estatildeo sob

nosso controle

Traduzimos por juiacutezo o vocaacutebulo grego hypolepsis que eacute substantivo

relacionado ao verbo hypolambano que expressa a ideia de sucessatildeo e de

substituiccedilatildeo adquirindo os sentidos de ldquoreacuteplica resposta concepccedilatildeo e

pensamentordquo O vocaacutebulo ldquojuiacutezordquo empregado aqui para traduzir essa

noccedilatildeo deve ser entendido como um parecer ou uma opiniatildeo que orienta

nossa conduta diante de um acontecimento que se nos apresenta Vale a

pena ressaltar que no contexto deste capiacutetulo o vocaacutebulo estaacute associado

ao verbo oiocedil traduzido aqui por ldquopensarrdquo No capiacutetulo 20 do Encheiriacutedion

apresenta-se uma associaccedilatildeo clara entre hypolepsis e dogma (opiniatildeo) No

capiacutetulo 5 apresenta-se tambeacutem uma associaccedilatildeo entre dogma (opiniatildeo) e

phantasiacutea (representaccedilatildeo) por meio do verbo phainomai (afigurar-se) Eacute

interessante notar que o juiacutezo nesses exemplos envolve a ponderaccedilatildeo ndash

como a consideraccedilatildeo sobre se algo eacute livre ou escravo - mas tambeacutem

sentimentos relacionados agraves nossas recusas medos e desejos Oldfather

(2000) traduz hypolepsis por ldquoconceptionrdquo White (1993) por ldquoopinionrdquo

Gourinat (1998) por ldquojugementrdquo e Garciacutea (1995) por ldquojuiciordquo

A noccedilatildeo de phantasiacutea que ora traduzimos por representaccedilatildeo eacute de

fundamental importacircncia para a compreensatildeo da filosofia estoica por

relacionar-se tanto a questotildees loacutegicas quanto epistemoloacutegicas e eacuteticas

Embora tanto Cleanto quanto Crisipo considerem a phantasiacutea uma

modificaccedilatildeo da faculdade diretriz eles divergem ao explicar essa mudanccedila

Para Lesses (1998 p 6) Crisipo parece criticar Cleanto por aceitar uma

concepccedilatildeo ingecircnua de representaccedilatildeo mental segundo a qual as phantasiacuteai

perceptivas satildeo coacutepias de qualidades que os objetos representados

possuem (cf Dioacutegenes Laeacutercio 7504) Aleacutem disso Annas (1991 p 74-75)

compreende estar implicado nas observaccedilotildees de Crisipo que as phantasiacuteai

satildeo proposicionais ou articulaacuteveis em forma linguiacutestica Ora quanto agraves

alternativas para traduzirmos o termo phantasiacutea parece-nos que

impressatildeo estaacute mais proacuteximo de Cleanto que de Crisipo pois a metaacutefora

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 45

utilizada por Cleanto para introduzir o conceito em questatildeo eacute justamente

agrave da impressatildeo sobre a cera metaacutefora que eacute criticada por Crisipo por seu

caraacuteter imageacutetico A concepccedilatildeo de Crisipo sobre a phantasiacutea ndash adotada

desde entatildeo pelo Estoicismo ndash eacute que ela tem duas facetas uma sensiacutevel

(pois como dissemos trata-se de uma modificaccedilatildeo da faculdade diretriz)

e outra virtual (pois a essa modificaccedilatildeo eacute afixado um juiacutezo que descreve e

avalia aquilo que efetuou a modificaccedilatildeo) Assim sendo parece-nos que a

palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo (que possui de acordo com o Aureacutelio o sentido

filosoacutefico geral de ldquoconteuacutedo concreto apreendido pelos sentidos pela

imaginaccedilatildeo pela memoacuteria ou pelo pensamentordquo) serve para o nosso

propoacutesito e por ela traduziremos phantasiacutea

Traduzimos por lsquoimpulsorsquo o termo grego horme que eacute substantivo

relacionado ao verbo ornumi (ldquolevantar-serdquo) designando o primeiro bote

de um assalto ou ataque adquirindo os sentidos de elatilde e de impulso Entre

as traduccedilotildees consultadas para este trabalho a uacutenica exceccedilatildeo a ldquoimpulsordquo

como vocaacutebulo para traduzir horme eacute a opccedilatildeo de Oldfather (2000) que

emprega ldquochoicerdquo (ldquoescolhardquo) Horme deve ser entendido no contexto do

pensamento epictetiano como o iacutempeto para a accedilatildeo a tendecircncia para agir

desta ou daquela maneira diante de determinada coisa

Traduzimos por lsquodesejorsquo o termo grego orexis que eacute o nome da accedilatildeo

do verbo orego que apresenta o significado de ldquoestender ou tender na

direccedilatildeo de algordquo (por exemplo estender as matildeos para o ceacuteu ou para pedir

algo a algueacutem) de onde ldquodesejordquo ldquoapetiterdquo Eacute uma palavra difiacutecil para ser

transportada ao contexto cultural presente Embora sua traduccedilatildeo por

ldquodesejordquo seja corrente eacute preciso ter cautela com ela pois natildeo se deve

entender orexis no sentido do emaranhado de pulsotildees originadas em niacutevel

inconsciente que caracteriza a visatildeo moderna da subjetividade humana

Orexis descreve a accedilatildeo de tender em direccedilatildeo a algo Uma forma de

apreender da maneira mais precisa possiacutevel seu significado eacute ter em conta

que orexis se opotildee a ekklisis que expressa o movimento contraacuterio o de

afastar-se Para Epicteto desejamos as coisas que consideramos boas (cf

Diatribes I42-3)

46 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

lsquoRepulsarsquo eacute nossa escolha para traduzir eacutekklisis termo grego que

identifica a accedilatildeo de declinar expressando o movimento contraacuterio de klisis

que significa a accedilatildeo de inclinar-se Eacute empregado para descrever o

movimento da tropa que evita o combate ou para descrever o decliacutenio de

um astro Oldfather (2000) White (1983) e Gourinat (1998) optaram

traduzi-lo por ldquoaversatildeordquo Garciacutea (1998) por ldquorechazordquo No Aureacutelio

ldquoaversatildeordquo apresenta os significados de ldquooacutedio rancor antipatiardquo que natildeo

cabem no presente caso Optamos entatildeo por ldquorepulsardquo para expressar a

ideia de repelir afastar ou evitar algo sem a conotaccedilatildeo de aversatildeo Para

Epicteto repudiamos as coisas que consideramos ruins (cf Diatribes

I42-3)

Encheiriacutedion capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Antonio Carlos

Tarquiacutenio)

(1-1) Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes19 outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute

propriamente nosso20 julgamento de valor21 impulso para agir desejo

aversatildeo - em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa

alccedilada22 o corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos

- em uma palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem

propriamente (1-2) E as coisas que nos competem satildeo por natureza livres

sem impedimentos sem entraves e as que natildeo satildeo fracas escravas

impedidas de outrem (1-3) Lembra entatildeo que se consideras as coisas

escravas por natureza livres e as coisas alheias proacuteprias seraacutes impedido

estaraacutes triste e perturbado censuraraacutes tanto os deuses como tambeacutem os

homens Mas se consideras ser teu somente o teu e o alheio como eacute alheio

ningueacutem te obrigaraacute nem te impediraacute natildeo censuraraacutes a ningueacutem tampouco

acusaraacutes a algueacutem nenhuma accedilatildeo contra vontade ningueacutem te prejudicaraacute

natildeo teraacutes inimigo uma vez que ningueacutem te convenceraacute de algo danoso23 (1-

4) Lembra-te enfim de que aspirando coisas de tal tamanho24 natildeo eacute preciso

19 Satildeo de nossa alccedilada

20 Eacute de nossa competecircncia

21 Aceito a traduccedilatildeo de Pierre Hadot da palavra hypolepsis

22 Natildeo satildeo de nossa competecircncia natildeo satildeo propriamente nossos

23 Ou seja que tenha sofrido algo de danoso Ningueacutem nos convenceraacute de havermos sido prejudicados

24 Isto eacute tatildeo grandes Elevadas

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 47

se mover moderadamente para alcanccedilaacute-las25 mas umas abandonar

completamente e outras abandonar ante o presente para se dedicar depois

Mas se queres tambeacutem essas coisas (isto eacute as elevadas e grandes) e mandar e

enriquecer talvez natildeo obtenhas dessas mesmas (riqueza e autoridade) por

tambeacutem demandares as primeiras (as elevadas e grandes) erraraacutes o alvo

totalmente pelo menos daquelas (coisas) atraveacutes das quais tatildeo somente

dominarias a liberdade e a felicidade (1-5) Enfim exercita-te rapidamente em

acrescentar a toda fantasia26 que ldquoeacutes impressatildeo e de modo algum o que se

mostra (sendo)rdquo A seguir investiga-a e submeta-a a esses cacircnones os quais

tens e em primeiro lugar esse e sobretudo qual dos dois se a respeito das

coisas sobre noacutes ou a respeito das coisas que natildeo estatildeo sobre noacutes e se for algo

a respeito das que natildeo estatildeo sobre noacutes por isso esteja agrave matildeo ldquonada perante

a mimrdquo

O primeiro capiacutetulo do Enquiriacutedio de Epicteto enfeixa ideias preciosas

que auxiliam o acesso agrave compreensatildeo de sua proposta filosoacutefica Nele

encontramos pontos essenciais de sua doutrina de seu ensinamento Se

no seguimento da obra outros temas surgem e encontram em tempo

oportuno explicaccedilatildeo eacute nos seus cinco itens iniciais (1-1 a 1-5 acima) que

vemos traccedilado o panorama de pensamento do filoacutesofo estoico

Desde o iniacutecio do Enquiriacutedio de Epicteto vecirc-se o estabelecimento de

uma linha divisoacuteria que possui como principal objetivo demarcar a zona

do eu - do verdadeiro eu - distinguindo-a da regiatildeo em que se situam as

coisas em relaccedilatildeo estreita com o corpo Eis a afirmativa de Epicteto a este

respeito

Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute

propriamente nosso julgamento de valor impulso para agir desejo aversatildeo

- em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa alccedilada o

25 Tocaacute-las obtecirc-las

26 Optamos por traduzir phantasiacutea por fantasia em vez de usar os habituais termos ldquorepresentaccedilatildeordquo e ldquoimpressatildeordquo que carreiam consigo interpretaccedilotildees tatildeo incompatiacuteveis entre si que para utilizaacute-los se faria necessaacuteria uma elucidaccedilatildeo criacutetica de cada uma delas De acordo com Sexto Empiacuterico a traduccedilatildeo de phantasiacutea para ldquoimpressatildeordquo (typosis) eacute compatiacutevel com o pensamento de Cleantes conforme a metaacutefora com que procura explicar a forma como o mundo exterior atua sobre o hegemocircnico agrave feiccedilatildeo de um sinete sobre a cera Jaacute Crisipo entende a he phantasiacutea ao modo de uma alteraccedilatildeo (heteroiosis) da alma Sexto Empiacuterico M VII 228-230 Doravante citado com a sigla SE

48 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos - em uma

palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem propriamente27

Se pararmos para pensar um pouco nos tempos atuais agrave face dessa

tese epictetiana parece verdadeira loucura sustentar que posses fama

riquezas inclusive nossos corpos natildeo devam ser situados no campo de

nossas preocupaccedilotildees habituais por natildeo nos pertencerem propriamente

Pois essas satildeo coisas que se no passado jaacute se procuravam hoje muito mais

Em contrapartida o desejar o julgar o agir e o evitar natildeo causam

indignaccedilatildeo como fazeres nossos apesar da descoberta nos uacuteltimos seacuteculos

do inconsciente que parece gerar consequecircncias seriacutessimas em torno das

faculdades aniacutemicas do homem

Notemos que o corpo aparece como primeiro na lista das coisas ldquonatildeo

sobre noacutesrdquo e continuaraacute aparecendo principalmente nas Liccedilotildees de

Epicteto28 toda vez que ele se referir agrave distinccedilatildeo essencial em que figura o

campo de responsabilidade especiacutefica humana Vejamos por exemplo este

trecho das Liccedilotildees

Pois o corpo nos eacute estranho seus membros nos satildeo estranhos nossos teres

nos satildeo estranhos Se por conseguinte tu te prendes a alguma dessas coisas

como a alguma coisa pessoal receberaacutes o castigo que merece aquele que deseja

aquilo que lhe eacute estranho29

Se o corpo e seus amigos natildeo nos pertencem propriamente as obras

da alma satildeo nossas30 natildeo soacute como propriedades inalienaacuteveis mas

sobretudo porque satildeo livres desimpedidas e isentas de qualquer

obstaacuteculo como o Enquiriacutedio de Epicteto inicia separando esferas de

27 E I 1

28 Traduzo Epiktetoi diatribai por Liccedilotildees de Epicteto Seratildeo representadas com a sigla L

29 L IV 1 130-131

30 ldquoE as obras da alma satildeo o impulso para agir o impulso de se afastar o desejar o preparar o intentar o assentirrdquo L IV 11 6 O termo ldquoobras da almardquo demonstra que a real distinccedilatildeo eacute entre a psykhe e o corpo Ora as obras da alma satildeo as obras do hegemocircnico ldquoOs estoicos afirmam que o hegemocircnico eacute a parte mais alta da alma aquela que produz as fantasias os assentimentos as sensaccedilotildees as tendecircncias (hormas) e que eles chamam o pensamento (logismos) 847 Aeacutecio IV 21 1-4 = Pseudo-Plutarque 903A12c-10 Crisipo Oeuvre Philosophique Doravante citado com a sigla Chrys OC

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 49

responsabilidade aquilo por que sou responsaacutevel daquilo pelo que natildeo sou

responsaacutevel nem sempre se consegue perceber a questatildeo de fundo por

traacutes da divisatildeo Entretanto quando Epicteto trata do assunto por outro

acircngulo notamos aquilo que estaacute em jogo na separaccedilatildeo a centralizaccedilatildeo da

vida humana nos valores da alma

Em uma declaraccedilatildeo visceral contra Epicuro surpreendemos Epicteto

se perguntando sobre quem no filoacutesofo do Jardim produziu seus escritos

deixou que sua barba crescesse e tambeacutem quem nele afirmou certa vez

viver seus uacuteltimos dias em estado de felicidade E conclui sua indagaccedilatildeo

com a pergunta A carne (sarks) ou a escolha (prohairesis)31 ou seja

se Epicuro escolheu escrever a prohairesis eacute aquele ato espiritual que o

define mesmo que sua filosofia negue isso Na passagem que segue se

clareia por inteira a noccedilatildeo de que o bem humano eacute por excelecircncia e

essencialmente de ordem espiritual Digo ldquoespiritualrdquo no sentido de

indicar o hegemocircnico em uma das suas funccedilotildees primordiais32 mesmo

sabendo se tratar de um pneuma corpoacutereo uma vez que o proacuteprio Epicteto

compara-o ao corpo utilizando termos antiteacuteticos

A divindade eacute uacutetil mas o bem tambeacutem eacute Entatildeo eacute verossiacutemil onde a essecircncia

da divindade laacute tambeacutem a do bem Entatildeo qual eacute a essecircncia da divindade A

carne Natildeo viria a ser Campo Natildeo viria a ser Fama Natildeo viria a ser A mente

a ciecircncia o pensamento correto Logo procura nessas coisas simplesmente a

essecircncia do bem33

Na introduccedilatildeo ao livro Le Manuel drsquoEacutepicteacutete Pierre Hadot se refere agrave

concentraccedilatildeo do eu qual exerciacutecio espiritual que se poderia derivar

diretamente da separaccedilatildeo sugerida por Epicteto Seria a separaccedilatildeo do eu

do natildeo-eu34 e natildeo discordamos

31 L II 23 21

32 O ato de escolher a prohairesis

33 L II 8 1-3

34 Na medida em que se potildee em operaccedilatildeo a distinccedilatildeo entre as coisas dependentes de noacutes e as coisas independentes de noacutes o eu eacute como que recolocado dentro de seus limites porque natildeo avanccedila mais sobre o que natildeo lhe diz respeito O eu reposicionado deixa para fora de si o natildeo-eu ou seja todo um universo de coisas que segundo os estoicos deve ser considerado como indiferente

50 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Distinguir o que depende de noacutes e o que natildeo depende de noacutes a causalidade

interior e a causalidade exterior eacute finalmente distinguir o eu do natildeo-eu Eacute um

exerciacutecio de concentraccedilatildeo e de delimitaccedilatildeo do eu eu natildeo sou os objetos que

me circundam e que por vezes me satildeo caros esta marmita ou este cavalo ou

esta lacircmpada eu natildeo sou pode-se dizer os atributos gramaticais que o

Destino me impotildee rico ou pobre saudaacutevel ou doente senhor ou escravo

poderoso ou miseraacutevel eu natildeo sou os meus membros eu natildeo sou o meu corpo

nem a emoccedilotildees involuntaacuterias que podem emocionaacute-lo35

O que estaacute no cerne da cisatildeo preceituada por Epicteto eacute a fixaccedilatildeo de

um lugar o estabelecimento de um onde para o qual o homem deve se

voltar a fim de concentrar todos os seus esforccedilos Na verdade a

concentraccedilatildeo do eu demarca dois itineraacuterios bem definidos um em que a

parte dirigente da alma36 eacute assentada a tiacutetulo de oficina e outro em que eacute

definida a principal tarefa do homem ou seja o seu ofiacutecio

Oficina e ofiacutecio juntam-se num mesmo caminho espiritual Enquanto

a primeira diz respeito ao princiacutepio diretor da alma ao hegemocircnico como

lugar de trabalho a segunda se define como o proacuteprio trabalho no cuidado

dele

Referecircncias

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EdiUFS 2007

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2008

35 Hadot (2000 p 44-45) Cf L III 24 56 IV 1 129-130

36 Crisipo se refere ao hegemocircnico como o verdadeiro ldquoeurdquo Cf Galeno Sobre as doutrinas de Hipoacutecrates e de Platatildeo II 2 9 1-11 6

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 51

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3

A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva

da Filosofia Analiacutetica da Mente

Taacuterik de Athayde Prata 1

Alguns Problemas a Respeito da Consciecircncia

Enquanto escrevo estas palavras estou consciente Isso significa que

estou desperto e assim capaz de interagir com meu ambiente imediato

atraveacutes de percepccedilotildees bem como de accedilotildees Sinto a temperatura desta sala

ao mesmo tempo em que vejo as letras surgindo na tela do computador

enquanto sinto a textura das teclas ao deslizar meus dedos sobre elas

Assim entendida minha consciecircncia eacute algo que diz respeito ao

funcionamento de meu organismo e dessa forma pertence a aqueles que

David Chalmers chamou de ldquoproblemas faacuteceisrdquo (easy problems) isto eacute

problemas que se referem a (i) funccedilotildees de modo que se precisa apenas

buscar o (ii) mecanismo que as desempenha (cf CHALMERS 1995 p

202) De acordo com ele ldquoPara uma explanaccedilatildeo do sono e da vigiacutelia seraacute

suficiente uma adequada explanaccedilatildeo neurofisioloacutegica dos processos

responsaacuteveis pelo comportamento contrastante do organismo nesses

estadosrdquo (CHALMERS 1995 p 201) E a diferenccedila entre sono e vigiacutelia eacute

constitutiva da consciecircncia como uma propriedade de um organismo

Mas se eu enquanto organismo posso ser qualificado como

ldquoconscienterdquo natildeo eacute difiacutecil perceber que haacute um uso plenamente legiacutetimo

desse adjetivo em relaccedilatildeo agrave minha vida psicoloacutegica em seus detalhes mais

1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

54 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

especiacuteficos ou seja em relaccedilatildeo a meus estados eventos e processos

mentais entidades psiacutequicas que podem tambeacutem ser conscientes Minhas

percepccedilotildees (da temperatura da sala das letras na tela da textura das

teclas) minhas intenccedilotildees (de digitar certas palavras de escrever um texto

para um evento acadecircmico) assim como meus pensamentos (p ex a

respeito do tema filosoacutefico da consciecircncia) ou minhas eventuais emoccedilotildees

(como a ansiedade de concluir o texto a tempo) tudo isso satildeo fenocircmenos

mentais que podem ou natildeo se tornar conscientes

Entra aqui em cena a distinccedilatildeo proposta por David Rosenthal entre

(a) consciecircncia de criatura (que seria um tema mais permeaacutevel agrave pesquisa

empiacuterica do funcionamento orgacircnico) e (b) consciecircncia de estado (que

seria um tema mais especiacutefico da investigaccedilatildeo filosoacutefica)2 Eacute interessante

notar que Rosenthal eacute um filoacutesofo que assume uma perspectiva anti-

cartesiana no sentido de recusar a ideia defendida pelo filoacutesofo francecircs

da consciecircncia como a essecircncia da mente3 Para ele natildeo haacute grande

dificuldade para se perceber que diversos estados mentais existem

desprovidos de consciecircncia por exemplo quando ldquosabemos sem que nos

seja dito o que outra pessoa estaacute pensando ou sentindo E algumas vezes

sabemos isso mesmo quando a pessoa na verdade natildeo estaacute ciente [aware]

pelo menos a princiacutepio de ter esses sentimentos e pensamentosrdquo

(ROSENTHAL 1986 p 329)

Uma visatildeo como essa segundo a qual os fenocircmenos mentais satildeo em

si mesmos inconscientes tem para Rosenthal a importante vantagem de

2 ldquoDois assuntos satildeo frequentemente confundidos nas discussotildees sobre a consciecircncia Uma questatildeo eacute o que eacute para um estado mental ser consciente Supondo que nem todos os estados mentais satildeo conscientes noacutes queremos saber como os estados conscientes se diferenciam daqueles que natildeo satildeo E ainda que todos os estados mentais fossem conscientes noacutes ainda perguntariacuteamos em que consiste a sua consciecircncia Denominamos essa a questatildeo da consciecircncia de estado Esse seraacute meu principal tema no texto que segue Mas noacutes natildeo descrevemos apenas estados mentais como sendo conscientes ou natildeo noacutes tambeacutem atribuiacutemos consciecircncia a criaturas Assim existe uma segunda questatildeo a questatildeo sobre o que eacute para uma pessoa ou outra criatura ser consciente ou seja como criaturas conscientes se diferenciam daquelas que natildeo satildeo conscientes Denominamos esta a questatildeo da consciecircncia de criaturardquo (ROSENTHAL 1997 p 729)

3 Descartes caracterizou o pensamento para ele a propriedade essencial do mental como ldquotudo quanto estaacute de tal modo em noacutes que somos imediatamente conscientes [consci]rdquo (DESCARTES 1979 p 169 [AT VII p 160 AT IX p 124]) E em conformidade a isso ele entendeu que ldquonenhum pensamento pode existir em noacutes do qual nos natildeo estejamos conscientes [fit conscia] no exato momento em que ele existe em noacutesrdquo (cf AT VII p 246 AT IX p 190) Os nuacutemeros romanos datildeo as referecircncias nos volumes em latim (volume VII) e em francecircs (volume IX) da ediccedilatildeo completa das obras de Descartes feita por Charles Adam e Paul Tannery (AT)

Taacuterik de Athayde Prata | 55

possibilitar uma explanaccedilatildeo informativa da consciecircncia como uma

propriedade de estados mentais pois se a consciecircncia jaacute caracteriza de

saiacuteda todos os fenocircmenos psiacutequicos como pensava Descartes ldquotoda

tentativa de explanar a consciecircncia formulando condiccedilotildees necessaacuterias e

suficientes para um estado mental ser consciente vatildeo fracassar

automaticamente Se a consciecircncia jaacute estaacute embutida na mentalidade toda

explanaccedilatildeo seraacute natildeo informativardquo (ROSENTHAL 1986 p 330) E eu

acrescentaria que essa perspectiva tem a vantagem adicional de ser

compatiacutevel com os incontaacuteveis e no meu entender muito convincentes

indiacutecios de que a maior parte de nossa vida mental ocorre

independentemente da consciecircncia (cf por exemplo SEARLE 1992 p

164 1997 p 236 2004 p 244-45)

Entretanto esse tipo de perspectiva sobre a consciecircncia que a

considera natildeo essencial para o psiacutequico natildeo foi aceita por importantes

filoacutesofos do seacuteculo passado entre os quais se encontra Jean-Paul Sartre

(1905-1980) um dos mais influentes intelectuais do seacuteculo XX que

produziu uma obra de enorme abrangecircncia se estendendo desde a

escritura em diversos gecircneros literaacuterios passando pela filosofia pelos

textos de cunho poliacutetico4 e que na juventude empreendeu

interessantiacutessimas reflexotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia e os

fundamentos da psicologia5 Em sua mais importante obra anterior a O

ser e o nada (1943) o livro O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da

imaginaccedilatildeo (1940) Sartre (1996 p 36) afirma sem reservas que ldquoa

existecircncia de um fenocircmeno psiacutequico e o sentido que ele tem para a

consciecircncia satildeo uma coisa soacuterdquo o que o leva admitir em nota de rodapeacute que

ldquoessas constataccedilotildees nos obrigam a rejeitar inteiramente a existecircncia de um

inconscienterdquo (SARTRE 1996 p 36 nota no 13)

4 Como afirma Annie Cohen-Solal (2007 p 16) a mais conhecida bioacutegrafa de Sartre ele ldquoabordou todos os domiacutenios da escrita (romance novela filosofia teatro cinema biografia autobiografia ensaio criacutetico reportagem jornaliacutestica canccedilatildeo entre outros)rdquo

5 Em uma entrevista concedida jaacute no final de sua vida Sartre declarou que no iniacutecio de sua carreira filosoacutefica ldquoo que eu chamava de lsquofilosofiarsquo era pura e simplesmente psicologiardquo (COHEN-SOLAL 1986 p 90)

56 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Apesar das diversas passagens de sua obra que atacam a ideia de

inconsciente6 existem inteacuterpretes que questionam se Sartre de fato estava

comprometido com a rejeiccedilatildeo a essa ideia (cf GENNARO 2002 p 299-301)

Mas o fato eacute que ela natildeo eacute (pelo menos agrave primeira vista) compatiacutevel com sua

perspectiva pois de acordo com ele quando a consciecircncia (de algo) e uma

autoconsciecircncia impliacutecita natildeo satildeo concebidas como unificadas somos

confrontados com graves problemas No meu entendimento Sartre parte da

constataccedilatildeo de que introduzir uma dualidade na consciecircncia a torna

incompreensiacutevel pois leva a teorias insustentaacuteveis Em termos sumaacuterios a

dualidade nos deixa diante de um dilema

Ou paramos em um termo qualquer da seacuterie conhecido ndash cognoscente

conhecido ndash cognoscente conhecido pelo cognoscente etc e entatildeo a totalidade

do fenocircmeno cai no desconhecido quer dizer esbarramos sempre com uma

reflexatildeo natildeo consciente de si como derradeiro termo ndash ou entatildeo afirmamos a

necessidade de regressatildeo ao infinito (idea ideae ideae etc) o que eacute absurdo

(SARTRE 1943 p 18-19 SARTRE 1997 p 23)

Se haacute uma dualidade entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a

autoconsciecircncia entatildeo ou (I) esta autoconsciecircncia eacute inconsciente ou (II) a

autoconsciecircncia exige (para se tornar consciente) uma outra consciecircncia a

respeito dela que por sua vez exige outra e assim ad infinitum dois

resultados que parecem insatisfatoacuterios ndash pois uma consciecircncia

inconsciente parece uma contradiccedilatildeo em termos7 e um regresso ao

6 Jaacute em A transcendecircncia do ego (1937) seu primeiro texto escrito sob a influecircncia husserliana ele escreveu ldquoSem mesmo se dar conta os teoacutericos do amor-proacuteprio supotildeem que o refletido eacute anterior original e dissimulado no inconsciente Eacute penoso precisar evidenciar a absurdidade de uma tal hipoacutetese Mesmo se o inconsciente existisse o que nos faria acreditar ser ele o depositaacuterio de espontaneidades da forma refletida A definiccedilatildeo do refletido natildeo eacute a do que eacute colocado por uma consciecircnciardquo (SARTRE 1966 p 40-41 SARTRE 2010 p 198-99)

7 Eacute interessante notar que Franz Brentano um dos mais importantes pensadores da virada do seacuteculo XX (JACQUETTE 2004 p 1) autor que sem duacutevida atraveacutes de sua influecircncia sobre Husserl estaacute na raiz de muitas das concepccedilotildees de Sartre natildeo concordava com a visatildeo de que o inconsciente eacute uma noccedilatildeo contraditoacuteria apesar de Brentano ter sido um ferrenho opositor dessa noccedilatildeo Nas palavras de Brentano ldquoAlgumas pessoas iriam apenas balanccedilar a cabeccedila diante dessa questatildeo Supor uma consciecircncia inconsciente parece a elas absurdo Mesmo eminentes psicoacutelogos como por exemplo Locke e John Stuart Mill consideravam essa ideia uma contradiccedilatildeo direta Mas algueacutem que presta atenccedilatildeo agraves determinaccedilotildees feitas a seguir dificilmente iraacute julgar assim Esse algueacutem reconheceraacute que quem levanta a questatildeo sobre a existecircncia de uma consciecircncia inconsciente natildeo estaacute sendo ridiacuteculo como algueacutem que perguntasse se existe um vermelho natildeo vermelho Uma consciecircncia inconsciente eacute tatildeo pouco uma contraditio in adjecto quanto uma visatildeo natildeo vistardquo (BRENTANO 1924 p 143-4 [102-3])

Taacuterik de Athayde Prata | 57

infinito significa que a consciecircncia permanece natildeo explicada (aleacutem do fato

de que a proacutepria ideia de que haacute um regresso infinito parece insustentaacutevel

ndash de modo que a concepccedilatildeo comprometida com um regresso se mostra

absurda) Eacute interessante notar que essas dificuldades ndash (I) e (II) ndash satildeo

aplicaacuteveis ao tipo de teoria proposta por Rosenthal Ao conceber a

consciecircncia de um estado mental como decorrente do monitoramento

deste estado por um outro estado mental a respeito do primeiro

Rosenthal se expotildee ao perigo do regresso ao infinito e eacute para evitar esse

regresso que ele concebe o estado mental de ordem superior como

inconsciente o que evidentemente o leva a recair no primeiro termo do

dilema apontado por Sartre o pensamento que gera a consciecircncia do

estado mental de niacutevel inferior eacute ele proacuteprio inconsciente8

Devido a essas dificuldades Sartre conclui que ldquoConsciecircncia de si natildeo

eacute dualidade Se quisermos evitar regressatildeo ao infinito tem de ser relaccedilatildeo

imediata e natildeo cognitiva de si a sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24)

Exatamente por isso ele opta por colocar o ldquoderdquo da expressatildeo ldquoconsciecircncia

de sirdquo entre parecircnteses de modo a indicar que essa partiacutecula eacute empregada

por imposiccedilatildeo da gramaacutetica (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25) e natildeo

deve ser entendida como sugerindo uma dualidade entre a lsquoconsciecircnciarsquo e

o lsquosirsquo E a ideia da consciecircncia como uma relaccedilatildeo imediata a si mesma

constitui aquele que Kathleen Wider (1997 p 1) considera ser a alegaccedilatildeo

fundamental de Sartre sobre a consciecircncia a saber a alegaccedilatildeo de que

ldquotoda consciecircncia eacute por sua proacutepria natureza autoconsciecircnciardquo No ensaio

sobre A transcendecircncia do ego Sartre defendera que ldquoo tipo de existecircncia

da consciecircncia implica ser consciecircncia de si E ela toma consciecircncia de si

na exata medida em que eacute consciecircncia de um objeto transcendenterdquo

(SARTRE 1966 p 23-4 2010 p 188) Tomando o exemplo de uma

percepccedilatildeo ndash ou seja nos termos dele uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo ndash

Sartre afirma em O ser e o nada que a consciecircncia de si enquanto uma

8 A respeito da teoria de Rosenthal sobre a consciecircncia de estados mentais Uriah Kriegel afirma ldquoO estado de segunda ordem S2 em virtude do qual [o estado de primeira ordem] S1 eacute consciente eacute ele mesmo um estado inconsciente Assim o fato de que S2 representa o eu natildeo implica que por ter S2 o eu eacute consciente de si mesmo pois S2 natildeo eacute uma representaccedilatildeo consciente do eurdquo (KRIEGEL 2002 p 522-23) Cf tambeacutem Kriegel (2005 p 28)

58 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoconsciecircncia espontacircneardquo da percepccedilatildeo ldquoeacute constitutiva de minha

consciecircncia perceptivardquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24) e tomando o

exemplo da accedilatildeo de contar alguns cigarros afirma que ldquoa consciecircncia natildeo

teacutetica de contar eacute condiccedilatildeo mesma de minha atividade aditivardquo (SARTRE

1943 p 19 1997 p 24)

Mas se a assunccedilatildeo de uma dualidade na consciecircncia nos leva a um

dilema entre duas posiccedilotildees insustentaacuteveis a concepccedilatildeo por assim dizer

unitaacuteria da consciecircncia que a entende como uma unidade indissoluacutevel

entre uma (i) consciecircncia de algo e uma (ii) autoconsciecircncia natildeo estaacute livre

de suas proacuteprias dificuldades A concepccedilatildeo sartriana que vecirc essa

autoconsciecircncia como constitutiva ou como condiccedilatildeo de toda consciecircncia

intencional de objetos parece tornar a consciecircncia um fenocircmeno

misterioso inexplicaacutevel pois natildeo conseguimos formar uma noccedilatildeo clara de

qual seja a sua estrutura jaacute que ldquoa consciecircncia de si que caracteriza toda

consciecircncia de algo parece estar de algum modo misturada a esta

consciecircncia de algo de maneira que natildeo eacute nada faacutecil discerni-lasrdquo (PRATA

2017 p 460) e se essas noccedilotildees natildeo podem ser discernidas natildeo eacute possiacutevel

articular uma explicaccedilatildeo do que seja propriamente a consciecircncia

Consciecircncia Posicional e Consciecircncia Natildeo Posicional

Antes de examinar a dificuldade de explicar a consciecircncia tal como

concebida por Sartre eacute importante compreender uma distinccedilatildeo

importante proposta por ele a distinccedilatildeo entre (i) a consciecircncia posicional

ou teacutetica (cf SARTRE 1966 p 28 2010 p 191) por um lado e (ii) a

consciecircncia natildeo posicional (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou natildeo

teacutetica (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) por outro lado A consciecircncia

posicional eacute aquela que potildee um objeto de determinado modo Por exemplo

uma consciecircncia perceptiva potildee seu objeto como existente jaacute que a

percepccedilatildeo se articula enquanto apreensatildeo de algo que existe previamente

a ela ao passo que uma consciecircncia em imagem potildee seu objeto

(imaginado) de diferentes formas (p ex como ausente ou como

Taacuterik de Athayde Prata | 59

inexistente ndash cf SARTRE 1996 p 26) que pressupotildeem que a consciecircncia

eacute a criadora dessa imagem mental E eacute importante notar que o que cada

consciecircncia potildee eacute um objeto que portanto eacute concebido implicitamente

como algo que transcende a consciecircncia existindo para aleacutem de toda

consciecircncia que se possa ter dele9 Jaacute a consciecircncia natildeo posicional natildeo potildee

um objeto pois ela eacute um tipo especial de relaccedilatildeo que natildeo se volta para algo

contra-posto (ob-jectum) agrave consciecircncia mas eacute uma relaccedilatildeo desta

consciecircncia consigo mesma (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)

A respeito dessa distinccedilatildeo a importante inteacuterprete Kathleen Wider

entende que as duas formas de consciecircncia a posicional e a natildeo posicional

podem ser elucidadas em termos do foco da atenccedilatildeo do sujeito consciente

em cada caso enquanto a consciecircncia posicional implica em uma atenccedilatildeo

focada em um objeto (distinto da proacutepria consciecircncia) a consciecircncia natildeo

posicional apreende aquilo em que o sujeito natildeo concentra a sua atenccedilatildeo

Nas palavras de Wider (1997 p 41)

Por um lado qualquer coisa que cai no campo de ciecircncia [awareness] de

algueacutem e para a qual sua atenccedilatildeo estaacute direcionada eacute um objeto que eacute posto

pela consciecircncia Por isso Sartre chama a consciecircncia desse objeto de

consciecircncia teacutetica ou posicional Por outro lado algueacutem tem apenas uma

consciecircncia natildeo teacutetica ou natildeo posicional de qualquer coisa que cai em seu

campo de ciecircncia mas ao qual ele natildeo estaacute presentemente prestando atenccedilatildeo

Se percebo um objeto ou imagino uma paisagem posiciono essa

referecircncia transcendente agrave minha consciecircncia de determinada maneira ndash

como existente no caso da percepccedilatildeo ou como p ex existente em outro

lugar no caso da imaginaccedilatildeo ndash e minha atenccedilatildeo eacute absorvida por essa

referecircncia transcendente Mas ao mesmo tempo em que minha atenccedilatildeo se

absorve na coisa ndash percebida ou imaginada ndash eu apreendo implicitamente

minha proacutepria consciecircncia perceptiva ou imaginativa pois se percebo

apreendo implicitamente ndash na periferia da atenccedilatildeo ndash minha percepccedilatildeo

9 De acordo com Sartre haacute ldquoalgo de excessivo no mundo das lsquocoisasrsquo a cada instante haacute sempre infinitamente mais do queo que podemos ver para esgotar a riqueza de minha percepccedilatildeo atual seria necessaacuterio um tempo infinitordquo (SARTRE 1996 p 22)

60 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

como passiva ao passo que se imagino apreendo implicitamente minha

imaginaccedilatildeo como criadora (cf PRATA 2016 p 81-82) Essa apreensatildeo

impliacutecita pode ser transformada em uma consciecircncia posicional de

consciecircncia ndash uma consciecircncia posicional da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo

Mas nesse caso estamos diante de uma reflexatildeo ou seja uma consciecircncia

reflexiva (cf abaixo)

A Opacidade da Consciecircncia na Teoria de Sartre

A avaliaccedilatildeo de que a teoria de Sartre natildeo eacute capaz de fornecer uma

explicaccedilatildeo da consciecircncia parece ser confirmada pela maneira como ele

em diversas passagens se refere ao fenocircmeno da consciecircncia atraveacutes de

metaacuteforas o que de fato sugere que ele natildeo dispunha de conceitos claros

sobre a estrutura da consciecircncia Penso que a necessidade do uso de

metaacuteforas surge de uma estrutura conceitual obscura como encontramos

em determinada passagem de O ser e o nada na qual apoacutes afirmar a

autoconsciecircncia ldquonatildeo teacuteticardquo10 como constitutiva de todo ato mental (como

uma operaccedilatildeo de contar) nega que isso implique um ciacuterculo vicioso mas

se exprime em termos relativamente nebulosos

Contudo natildeo haacute esse ciacuterculo vicioso ou se preferirmos eacute da proacutepria natureza

da consciecircncia existir ldquoem ciacuterculordquo O que se pode exprimir assim toda existecircncia

consciente existe como consciecircncia de existir Compreendemos agora porque a

consciecircncia primeira de consciecircncia natildeo eacute posicional eacute uma soacute com [un avec] a

consciecircncia da qual eacute consciecircncia (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)

A autoconsciecircncia eacute una com a consciecircncia de algo a respeito da qual

ela eacute e justamente essa unidade parece tornar o fenocircmeno opaco a uma

explicaccedilatildeo conceitual E logo em seguida ele se exprime em termos que

tornam essa opacidade ainda mais flagrante Nas palavras de Sartre

10 Conforme discutido acima uma consciecircncia ldquonatildeo-teacuteticardquo (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) equivale a uma consciecircncia ldquonatildeo-posicionalrdquo (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou seja trata-se de uma consciecircncia que natildeo potildee seu objeto como algo distinto de si mesma (cf SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)

Taacuterik de Athayde Prata | 61

Natildeo haacute antes uma consciecircncia que recebesse depois [grifado no original] a

afecccedilatildeo ldquoprazerrdquo tal como se colore a aacutegua ndash do mesmo modo como natildeo haacute

antes um prazer (inconsciente ou psicoloacutegico) que recebesse depois a

qualidade de consciente como um feixe de luz Haacute um ser indivisiacutevel

indissoluacutevel [grifo meu] ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas

qualidades como seres menores mas um ser que eacute existecircncia de ponta a ponta

(SARTRE 1943 p 21 1997 p 26)

Aqui ele rejeita a ideia de que a relaccedilatildeo entre a (i) consciecircncia de algo

e a (ii) autoconsciecircncia seja comparaacutevel agrave relaccedilatildeo entre um sujeito e seu

predicado fazendo dela um ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo cuja

compreensatildeo se torna muito difiacutecil Desse modo natildeo parece restar

alternativa para Sartre aleacutem de recorrer a metaacuteforas para exprimir esse

modo de existecircncia peculiar da consciecircncia como quando ele afirma que a

autoconsciecircncia

Natildeo deve ser considerada uma nova consciecircncia mas o uacutenico modo de

existecircncia possiacutevel para uma consciecircncia de alguma coisa Assim como um

objeto extenso estaacute obrigado a existir segundo as trecircs dimensotildees tambeacutem uma

intenccedilatildeo um prazer uma dor natildeo poderiam existir exceto como consciecircncia

imediata de si mesmos (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25 grifado no original)

Neste trecho o modo de existecircncia da consciecircncia (enquanto

essencialmente marcada por uma autoconsciecircncia) eacute simplesmente

comparado a um fato bruto a saber o de que objetos espaciais

necessariamente existem nas trecircs dimensotildees E jaacute anos antes no ensaio

sobre A transcendecircncia do ego ele se expressara em termos semelhantes

ao dizer que o fato de a consciecircncia irrefletida ser consciecircncia de ser

consciecircncia de um objeto eacute ldquoa lei de sua existecircnciardquo (SARTRE 1966 p 24

2010 p 188-89 grifo meu)

Vejamos agora de modo mais detalhado a maneira como Sartre

concebe a consciecircncia atraveacutes de uma segunda distinccedilatildeo fundamental a

distinccedilatildeo entre (arsquo) consciecircncia irrefletida tida por ele como a forma

fundamental e (brsquo) consciecircncia reflexiva tida por ele como derivada

62 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Consciecircncia Irrefletida e Consciecircncia Reflexiva

Para articular adequadamente a relaccedilatildeo entre a consciecircncia e o eu no

esforccedilo de negar a noccedilatildeo husserliana de um eu transcendental Sartre

desenvolveu uma distinccedilatildeo entre (arsquo) a consciecircncia irrefletida (irreacutefleacutechie)

a forma mais fundamental originaacuteria e (brsquo) a consciecircncia reflexiva

(reacuteflexive) derivada da primeira na qual o fenocircmeno do ldquoeurdquo teria sua

origem (cf SARTRE 1966 p 37 2010 p 196) Na consciecircncia reflexiva

temos duas manifestaccedilotildees de consciecircncia11 a consciecircncia reflexionante

(reacutefleacutechissante) e a consciecircncia refletida (reacutefleacutechie) onde uma se debruccedila

sobre a outra colocando esta uacuteltima como seu objeto Entretanto essa

forma de consciecircncia (cindida entre duas manifestaccedilotildees) natildeo poderia ser

a forma mais fundamental pois a consciecircncia reflexionante que faz da

consciecircncia refletida um objeto jaacute eacute uma consciecircncia (mesmo quando essa

consciecircncia reflexionante natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo ulterior o que eacute

sempre possiacutevel ndash cf SARTRE 1966 p 29 2010 p 191) Portanto deve

haver algo nela (assim como tambeacutem nas manifestaccedilotildees de consciecircncia

voltadas para objetos exteriores) que jaacute a torne consciecircncia

Isso leva Sartre a articular sua concepccedilatildeo a respeito da consciecircncia

irrefletida a consciecircncia que natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo que se investe

completamente no visar um objeto para aleacutem dela proacutepria e eacute nesse

contexto que surge a tese basilar da teoria de Sartre a respeito da

consciecircncia (cf WIDER 1997 p 1) que podemos designar como a tese da

autoreferencialidade da consciecircncia irrefletida que pode ser formulada

nos seguintes termos ldquotoda consciecircncia posicional do objeto eacute ao mesmo

tempo consciecircncia natildeo posicional de sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p

24)12 Eacute exatamente por isso que a consciecircncia irrefletida eacute por si mesma

consciecircncia independentemente da reflexatildeo pois a consciecircncia irrefletida

11 Temos aqui um uso de ldquoconsciecircnciardquo que se refere a cada episoacutedio particular de vivecircncia consciente (cf SARTRE 1996 p 13) isto eacute nesse sentido cada episoacutedio de percepccedilatildeo cada episoacutedio de imagem mental cada episoacutedio de emoccedilatildeo eacute uma consciecircncia Esse uso eacute diferente de um outro aceito por sartre um uso mais globalizante no qual ldquoconsciecircnciardquo se refere agrave ldquomocircnada e o conjunto de suas estruturas psiacutequicasrdquo (SARTRE 1996 p 13)

12 Sartre caracteriza a noccedilatildeo de ldquoposicionalrdquo nos seguintes termos ldquoToda consciecircncia eacute posicional na medida em que se transcende para alcanccedilar um objeto e ela esgota-se nessa posiccedilatildeo [position] mesmardquo (SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)

Taacuterik de Athayde Prata | 63

(na medida em que eacute intencional) eacute uma relaccedilatildeo com um objeto

transcendente a ela que eacute simultaneamente uma relaccedilatildeo a si mesma

Para que se possa construir uma compreensatildeo teoacuterica adequada dessa

autoconsciecircncia preacute-reflexiva tal como concebida por Sartre eacute necessaacuterio no

meu modo de entender um modelo no qual os elementos constituintes dessa

autoconsciecircncia possam ser conceitualmente discernidos ao mesmo tempo

em que a sua unidade por assim dizer orgacircnica se mostre de maneira

inteligiacutevel Seguindo uma indicaccedilatildeo do professor Andreacute Leclerc13 me

proponho a investigar o modelo integrativo da consciecircncia articulado por

Uriah Kriegel para verificar se ele pode servir como um modelo adequado

para se compreender a teoria sartriana da consciecircncia (de) si

O Modelo Integrativo de Kriegel

Kriegel articula o seu modelo integrativo na tentativa de naturalizar

aquilo que ele denomina de ldquocaraacuteter subjetivordquo da experiecircncia consciente

visto por ele como um aspecto constituinte daquilo que ele chama de

ldquocaraacuteter fenomenalrdquo dessa experiecircncia Esse caraacuteter fenomenal pensado por

Kriegel corresponde a aquilo que Thomas Nagel (1974 p 436 2005 p 247)

chamou de subjetividade a saber lsquoo modo como eacute vivenciar um estado

mental x para a criatura que o vivenciarsquo Kriegel propotildee analisar esse caraacuteter

fenomenal em dois aspectos constituintes (a) o modo como eacute vivenciar o

estado mental x ndash que ele denomina caraacuteter qualitativo ndash e (b) o fato desse

modo se doar ao sujeito que vivencia esse estado mental ndash que Kriegel

denomina o caraacuteter subjetivo desse estado Na visatildeo de Kriegel (2005 p 24)

ldquoo caraacuteter qualitativo de uma experiecircncia consciente determina qual

experiecircncia consciente ela eacute mas eacute o caraacuteter subjetivo da experiecircncia que

determina se ela eacute de algum modo [at all] uma experiecircncia conscienterdquo

E eacute importante perceber que esse caraacuteter subjetivo se encontra em

uma relaccedilatildeo essencial com o conceito de ciecircncia [awareness] pois na exata

13 Aproveito para agradecer por essa observaccedilatildeo que o professor fez no debate de uma apresentaccedilatildeo que fiz sobre a teoria de Sartre no IX Encontro Interinstitucional de Filosofia em 2015 no Recife

64 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

medida em que uma experiecircncia se doa ndash ou se manifesta ndash ao sujeito

consciente este sujeito tem que estar ciente [aware] dessa experiecircncia (cf

KRIEGEL 2005 p 25)14 Mas Kriegel enfatiza que o modo como o sujeito

estaacute ciente de suas proacuteprias experiecircncias eacute bastante peculiar pois essa

ciecircncia normalmente natildeo estaacute focada na proacutepria experiecircncia mas sim

nos objetos ou estados de coisas extra-psiacutequicos que satildeo o tema dessa

experiecircncia Sendo assim ele se vecirc levado a introduzir uma distinccedilatildeo entre

(I) estar ciente de algo de modo focado e (II) estar ciente disso de modo

perifeacuterico15 A ideia baacutesica eacute do mesmo modo que em uma percepccedilatildeo

visual estamos cientes de maneira focada do objeto que estaacute no centro do

campo visual e estamos cientes de maneira perifeacuterica dos objetos que se

afastam desse centro no que diz respeito agraves nossas proacuteprias experiecircncias

estamos normalmente16 cientes delas de modo perifeacuterico ao mesmo

tempo em que temos uma ciecircncia focada dos objetos extra-psiacutequicos

dessas experiecircncias Como esclarece Kriegel (2005 p 26)

Minha sugestatildeo eacute que nossa ciecircncia de nossas experiecircncias conscientes eacute

normalmente uma forma de tal ciecircncia perifeacuterica natildeo-perceptiva Experiecircncias

conscientes exibem caraacuteter subjetivo em virtude do fato de que sempre que

temos uma experiecircncia consciente noacutes estamos perifericamente cientes de tecirc-la

Ele entende que o problema do caraacuteter subjetivo ldquoeacute o problema de

compreender como um estado mental pode incluir em si uma ciecircncia de si

proacutepriordquo (KRIEGEL 2005 p 30) E para explicar isso ele propotildee um

modelo teoacuterico baseado na integraccedilatildeo de informaccedilotildees que por essa razatildeo

eu denomino um modelo ldquointegrativordquo Para Kriegel a inclusatildeo de uma

ciecircncia de si mesmo no interior do proacuteprio estado mental consciente pode

14 Em um texto bastante conhecido no debate sobre a consciecircncia David Woodruff Smith (1986 p 149) escreveu ldquoum estado mental eacute consciente se o sujeito desse estado estaacute ciente [aware] de sua ocorrecircnciardquo

15Natildeo eacute difiacutecil perceber que essa maneira como Kriegel procura esclarecer o caraacuteter impliacutecito da ciecircncia que temos de nossas experiecircncias coincide com a maneira como Kathleen Wider (1997 p 41) interpreta a distinccedilatildeo sartriana entre consciecircncia posicional e natildeo posicional discutida na seccedilatildeo 2 acima

16A exceccedilatildeo satildeo os casos de reflexatildeo ndash no dizer de Sartre (1966 p 27-28 2010 p 190-91) ndash ou introspecccedilatildeo ndash no dizer de Rosenthal (1986 p 336-37 1997 p 730) caso que satildeo menos comuns do que os de consciecircncia natildeo reflexiva (cf KRIEGEL 2002 p 518 2003 p 105)

Taacuterik de Athayde Prata | 65

ser explicada atraveacutes da presenccedila de um tipo peculiar de conteuacutedo no

estado consciente conteuacutedo que conecta (a) a ciecircncia de um objeto ndash ou

estado de coisas ndash externo agrave mente com (b) a ciecircncia do proacuteprio estado

mental que se direciona a aquele objeto ndash ou estado de coisas ndash tornando-

se entatildeo necessaacuterio explicar como esse conteuacutedo eacute produzido E eacute aiacute que

entra em cena o modelo integrativo Nas palavras de Kriegel (2005 p 46)

A abordagem que pretendo introduzir sugere que esse tipo de conteuacutedo

representacional pode ser produzido simplesmente atraveacutes da integraccedilatildeo da

informaccedilatildeo carregada por o que eram inicialmente estados mentais separados

Quando os conteuacutedos desses estados mentais separados satildeo apropriadamente

integrados surge um (uacutenico) estado mental que possui exatamente o tipo

correto de conteuacutedo representacional

Apoacutes essa sinteacutetica exposiccedilatildeo do modelo de Kriegel somos obrigados

por motivos de espaccedilo a passar diretamente a uma discussatildeo da teoria de

Sartre

Consideraccedilotildees Finais

Se a visatildeo cartesiana da consciecircncia como a essecircncia da mente sofreu

fortes contestaccedilotildees ao longo do seacuteculo XX vimos que a perspectiva

sartriana ndash influenciada por Descartes ndash da autoconsciecircncia (impliacutecita)

como constitutiva de todo estado intencional parece inviabilizar uma

compreensatildeo teoacuterica adequada da consciecircncia Sartre defende uma

unidade essencial entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a autoconsciecircncia

porque a separaccedilatildeo desses elementos levaria a um dilema entre (I) uma

autoconsciecircncia inconsciente e (II) um regresso ao infinito (cf SARTRE

1943 p 18-19 1997 p 23 cf KRIEGEL 2005 p 28) Entretanto essa

visatildeo unitaacuteria tambeacutem eacute problemaacutetica pois torna a consciecircncia algo

inexplicaacutevel deixando a Sartre apenas a opccedilatildeo de recorrer a metaacuteforas ndash

como a do ldquociacuterculordquo e a das ldquotrecircs dimensotildeesrdquo (cf SARTRE 1943 p 20

1997 p 25) ou ainda a da ldquolei de existecircnciardquo (cf SARTRE 1966 p 24

2010 p 188-89) ndash ou entatildeo recorrer a conceitos obscuros ndash como o de um

66 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo (cf SARTRE 1943 p 21 1997 p 26) ndash para

tentar exprimir o que a consciecircncia eacute

Em outras palavras natildeo resta duacutevida de que o terreno em que esse

debate sobre a consciecircncia eacute travado eacute extremamente movediccedilo pois a

exposiccedilatildeo feita acima mostrou que se a visatildeo da consciecircncia como

essencialmente conectada a uma autoconsciecircncia eacute obscura a visatildeo que

separa a consciecircncia de algo da autoconsciecircncia tambeacutem natildeo funciona

pois recai no dilema acima mencionado ndash entre (I) e (II) Eacute aqui que o

modelo de Kriegel se mostra promissor pois a ideia de uma efetiva

integraccedilatildeo de estados mentais que existiam originalmente separados por

um lado nos fornece a distinccedilatildeo entre conceitos ndash o conceito da (i) ciecircncia

[awareness] do objeto por um lado e o conceito da (ii) ciecircncia do proacuteprio

estado mental por outro lado ndash que possibilita a articulaccedilatildeo de uma

explanaccedilatildeo propriamente dita jaacute que a unidade proposta por Sartre

concebida de uma maneira natildeo predicativa17 como vimos parece

inviabilizar qualquer explanaccedilatildeo conceitual E por outro lado a ideia da

integraccedilatildeo real de estados mentais (originalmente distintos) nos fornece

uma unidade diferente daquela que encontramos nos escritos do filoacutesofo

francecircs pois aleacutem de evitar o regresso ao infinito (como faz a unidade

misteriosa de Sartre) ela permanece permeaacutevel a uma explanaccedilatildeo

conceitual tornando-se assim uma opccedilatildeo mais atraente no cenaacuterio das

elaboraccedilotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia

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17 ldquoHaacute um ser indivisiacutevel indissoluacutevel ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas qualidades como seres menoresrdquo (SARTRE 1943 p 21 1997 p 26 grifos meus) Temos aqui uma terminologia ontoloacutegica que pressupotildee o discurso sujeito-predicado (cf IMAGUIRE 2007 p 274)

Taacuterik de Athayde Prata | 67

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4

A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico

A Criacutetica de John Searle agraves Principais Correntes

da Filosofia da Mente

Maxwell Morais de Lima Filho 1

Parece muito doce aquela cana

Descasco-a provo-a chupo-ahellip ilusatildeo treda

Augusto dos Anjos

Para Searle (2006 p 7-9) nem eacute verdade que o problema mente-

corpo seja insoluacutevel nem que seja necessaacuterio um projeto de naturalizaccedilatildeo

para atacaacute-lo pois basta reconhecermos que os fenocircmenos mentais satildeo

caracteriacutesticas de niacutevel superior causadas e realizadas no sistema nervoso

para resolvecirc-lo2

O famoso problema mente-corpo fonte de tanta controveacutersia ao longo dos

dois uacuteltimos milecircnios tem uma soluccedilatildeo simples [] Aqui estaacute ela os

fenocircmenos mentais satildeo causados por processos neurofisioloacutegicos no ceacuterebro

e satildeo eles proacuteprios caracteriacutesticas do ceacuterebro

[]

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) e Professor do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

2 Em Intencionalidade Searle (1995 p 21-2) critica tanto os dualistas quanto os fisicalistas por tentarem resolver um problema que sequer existe ldquoOs dualistas que percebem corretamente o papel causal do mental consideram que precisamente por esta razatildeo devem postular uma categoria ontoloacutegica separada Muitos fisicalistas que percebem corretamente que tudo o que temos no cracircnio eacute um ceacuterebro acham que por esta razatildeo devem negar a eficaacutecia causal dos aspectos mentais do ceacuterebro ou mesmo a existecircncia desses aspectos mentais irredutiacuteveis Acredito que ambas as visotildees estejam equivocadas Ambas tentam resolver o problema mente-corpo quando a abordagem correta eacute perceber que tal problema natildeo existe O lsquoproblema mente-corporsquo natildeo eacute um problema mais real que o do lsquoestocircmago-digestatildeorsquordquo

70 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Os dualistas de propriedades pensam que o problema mente-corpo eacute

espantosamente difiacutecil talvez completamente insoluacutevel Os materialistas

concordam que se a intencionalidade e a consciecircncia realmente existem e satildeo

irredutiacuteveis a fenocircmenos fiacutesicos entatildeo de fato haveria um difiacutecil problema

mente-corpo mas eles pretendem ldquonaturalizarrdquo a intencionalidade e talvez

tambeacutem a consciecircncia Por ldquonaturalizaccedilatildeordquo de fenocircmenos mentais eles

entendem a sua reduccedilatildeo a fenocircmenos fiacutesicos

Perpassando as incontaacuteveis divergecircncias teoacutericas entre dualistas e

fisicalistas se encontra um liame terminoloacutegico herdado de Descartes que

contrapotildee o fiacutesico ao mental essa distinccedilatildeo substancial do mundo por sua

vez teria sido uacutetil para superar o aparente conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia

no seacuteculo XVII Sendo assim os assuntos concernentes agrave alma e agrave moral

humanas seriam tratados exclusivamente pela Religiatildeo enquanto os

cientistas se debruccedilariam sobre os mais diversos fenocircmenos naturais ndash

fiacutesicos quiacutemicos bioloacutegicos etc Em realidade natildeo houve uma completa

superaccedilatildeo do conflito como o proacuteprio Searle adverte (2010c) haja vista

que Galileu se retratou perante a Igreja e Descartes se mudou para a mais

tolerante Holanda Interessante notarmos que o filoacutesofo britacircnico Gilbert

Ryle tambeacutem menciona os pensadores italiano e francecircs na origem do erro

categorial presente na doutrina do fantasma na maacutequina Poreacutem no que

se refere ao conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia Ryle (1970 p 18-9) o

restringe agrave esfera pessoal de Descartes que aceitou o mecanicismo

galilaico somente na esfera corpoacuterea

[Q]uando Galileu mostrou que os seus meacutetodos de descoberta cientiacutefica eram

capazes de estabelecer uma teoria mecacircnica que abrangeria todos os

ocupantes do espaccedilo Descartes encontrou em si proacuteprio duas razotildees em

conflito Como homem de gecircnio cientiacutefico natildeo tinha outro remeacutedio senatildeo

sancionar as descobertas da mecacircnica ao passo que como homem religioso e

moral natildeo poderia aceitar como Hobbes aceitou os desencorajantes

corolaacuterios dessas descobertas ou seja que a natureza humana difere apenas

em grau de complexidade do mecanismo de um reloacutegio O mental natildeo poderia

ser uma variedade do mecacircnico

Maxwell Morais de Lima Filho | 71

Eacute justamente contra essa visatildeo que o autor drsquoA Redescoberta da

Mente defende que o passo que devemos dar antes mesmo de iniciar a

investigaccedilatildeo eacute abandonar o dualismo conceitual que estaacute presente nas

concepccedilotildees mais diacutespares do espectro da Filosofia da Mente o dualismo

de substacircncia o dualismo de propriedade o materialismo o monismo o

behaviorismo a teoria da identidade o funcionalismo e a inteligecircncia

artificial forte Se largarmos o dualismo conceitual dissolveremos o falso

dilema que nos faz acreditar que ou defendemos uma concepccedilatildeo dualista

ou uma fisicalista como ostenta Searle (2002a p 15) nesta passagem

Os filoacutesofos analiacuteticos juntamente com o restante da tradiccedilatildeo cartesiana

assumiram de modo caracteriacutestico que ldquomentalrdquo implica ldquonatildeo-materialrdquo ou

ldquoimaterialrdquo e que ldquomaterialrdquo ou ldquofiacutesicordquo implica ldquonatildeo mentalrdquo No entanto

quando se reflete sobre o modo como o ceacuterebro opera tem-se a impressatildeo de

que ambos os pressupostos satildeo obviamente falsos

Feitas essas ressalvas exporemos as criacuteticas que Searle tece agraves

principais correntes da Filosofia da Mente comeccedilando pelo dualismo de

substacircncia Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia rastreamos versotildees dessa

concepccedilatildeo sendo defendidas por pensadores desde a Greacutecia Antiga sendo

Platatildeo o mais insigne entre eles Tambeacutem registramos brevemente que o

dualismo de substacircncia se configurou como uma posiccedilatildeo-padratildeo tanto na

Patriacutestica como na Escolaacutestica e foi defendido por eruditos do porte de

Agostinho e de Tomaacutes de Aquino Em que pesem todos esses antecedentes

a versatildeo do dualismo de substacircncia que eacute levada em consideraccedilatildeo pela

maioria dos filoacutesofos da mente eacute aquela consumada na obra de Reneacute

Descartes Em resumo o filoacutesofo francecircs propunha uma cisatildeo entre o

domiacutenio fiacutesico res extensa (substacircncia material ou fiacutesica) e o domiacutenio

mental res cogitans3 (alma mente ou substacircncia mental) Para

fundamentar a dualidade ontoloacutegica o filoacutesofo francecircs parte do princiacutepio

de distinccedilatildeo para afianccedilar a possibilidade de concebermos claramente que

3 Cottingham (1999 p 26) nos adverte para natildeo nos desencaminharmos pelo significado religioso ou espiritual que foi imputado ao termo ldquoalmardquo tendo em conta que Descartes utiliza os vocaacutebulos ldquolrsquoacircme (ldquoalmardquo) e lrsquoesprit (ldquomenterdquo) mais ou menos indiferentemente simplesmente para se referir ao que quer que seja consciente []rdquo

72 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

a discriminaccedilatildeo e a independecircncia entre corpo e alma decorrem do fato de

eles assim terem sido produzidos por Deus Mas afinal de contas em que

reside a diferenccedila fundamental entre esses dois domiacutenios ontoloacutegicos

Descartes (1996 p 326) responde a esse questionamento afirmando que

a caracteriacutestica crucial dos corpos eacute a extensatildeo e a da alma o pensamento

E embora [] eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente

conjugado todavia jaacute que de um lado tenho uma ideacuteia clara e distinta de mim

mesmo na medida em que sou apenas uma coisa pensante [res cogitans] e

inextensa e que de outro tenho uma ideacuteia distinta do corpo na medida em

que eacute apenas uma coisa extensa [res extensa] e que natildeo pensa eacute certo que este

eu isto eacute minha alma pela qual eu sou o que sou eacute inteira e verdadeiramente

distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele [independecircncia

entre alma e corpo]

Seguindo o raciociacutenio cartesiano ao examinar o meu corpo (ou outro

qualquer como uma mesa por exemplo) constatariacuteamos que ele tem uma

extensatildeo e a partir disso posso falar algo como ldquomeccedilo 174 mrdquo

Conquanto natildeo faria sentido algum aferirmos ao peacute da letra o

comprimento da minha crenccedila na democracia Logo haacute uma diferenciaccedilatildeo

ontoloacutegica entre o meu corpo (coisa fiacutesicasubstacircncia extensa) e a minha

mente (coisa natildeo fiacutesicasubstacircncia pensante) a coisa extensa eacute natildeo

pensante e a coisa pensante eacute natildeo extensa Decorre diretamente dessa

distinccedilatildeo a irredutibilidade e a independecircncia do mental em relaccedilatildeo ao

fiacutesico e entre outras coisas isso significa que natildeo haacute nenhum

impedimento para a persistecircncia de minha alma apoacutes a morte do meu

corpo Para Descartes (2004 p 227)

o corpo humano na medida em que difere dos outros corpos eacute constituiacutedo

por certa configuraccedilatildeo de membros e de outros acidentes desse modo ao

passo que a mente humana natildeo eacute constituiacuteda dessa maneira a partir de

acidentes nenhuns mas eacute pura substacircncia Pois embora todos os seus

acidentes se modifiquem ndash ela entende umas coisas quer outras sente outras

etc ndash nem por isso a proacutepria mente torna-se uma outra Ao passo que o corpo

humano torna-se outro em virtude apenas de que se modifique a figura de

qualquer uma de suas partes Disto se segue que tal corpo morre muito

Maxwell Morais de Lima Filho | 73

facilmente enquanto a mente ou a alma do homem (o que natildeo distingo) eacute

imortal por sua natureza

Jaacute em sua eacutepoca o filoacutesofo francecircs foi criticado por defender a

interaccedilatildeo entre esses dois tipos totalmente diferentes de substacircncia porque

restou inexplicado como algo fiacutesico causaria algo mental e inversamente

como o mental atuaria sobre o fiacutesico Na tentativa de resguardar seu

posicionamento interacionista ele recorreu agrave glacircndula pineal e aos

espiacuteritos animais resguardando agravequela a sede da alma e conferindo a estes

uacuteltimos a funccedilatildeo comunicativa entre as duas substacircncias Todavia

Descartes (1996 p 328-9) nos alerta para natildeo olvidarmos que o contraste

metafiacutesico entre espiacuterito e mateacuteria natildeo impede a sua iacutentima conjunccedilatildeo

como uma totalidade coerente

A natureza me ensina tambeacutem por esses sentimentos de dor fome sede etc

que natildeo somente estou alojado em meu corpo como um piloto em seu navio

mas que aleacutem disso lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo

confundido e misturado que componho com ele um uacutenico todo

Para Cottingham (1989) seria incorreto enquadrar a posiccedilatildeo de

Descartes como um dualismo pois existem atributos humanos que natildeo se

encaixariam nem como modos de extensatildeo nem como modos de

pensamento haja vista que seriam o resultado da uniatildeo de ambos Sendo

assim como os fenocircmenos psicofiacutesicos natildeo se identificariam nem aos

fenocircmenos fiacutesicos (res extensa) nem aos mentais (res cogitans)

estariacuteamos diante de um ldquotrialismo cartesianordquo Para justificar sua linha

de raciociacutenio Cottingham (1989 p 172) menciona uma carta que

Descartes enviou agrave rainha Elizabeth em 1643 na qual o filoacutesofo francecircs

reconhece a existecircncia de ldquotrecircs categorias ou noccedilotildees primitivasrdquo a forma

e o movimento se relacionam agrave extensatildeo a compreensatildeo e a vontade ao

pensamento e as sensaccedilotildees e paixotildees agrave uniatildeo entre o corpo e a alma

Independentemente de qual leitura exegeacutetica prevaleccedila ndash dualismo ou

trialismo ndash o ponto eacute que os expedientes da glacircndula pineal e dos espiacuteritos

animais utilizados por Descartes estatildeo longe de serem satisfatoacuterios Por um

74 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

lado eacute incoerente delimitar a alma na glacircndula pineal porque a res cogitans

eacute uma substacircncia natildeo extensa e portanto sem localizaccedilatildeo espacial por

outro ainda que se considere que os espiacuteritos animais sejam constituiacutedos de

uma substacircncia fiacutesica bastante delicada permanece aberta a questatildeo

original como os espiacuteritos animais que possuem massa e satildeo espacialmente

situados satildeo capazes de interatuar com uma substacircncia imaterial Natildeo

obstante as criacuteticas direcionadas ao dualismo de substacircncia ao longo dos

seacuteculos e o fato de ele ser minoritaacuterio no ambiente acadecircmico atual natildeo

devemos esquecer que essa concepccedilatildeo estaacute intimamente afinada tanto com

o senso comum quanto com o pensamento religioso pois a maioria das

Religiotildees ndash se natildeo todas ndash defende uma separaccedilatildeo entre a alma e o corpo

Para o autor drsquoA Redescoberta da Mente no entanto essa corrente seria

inconciliaacutevel com o arcabouccedilo conceitual proveniente das Ciecircncias da

Natureza segundo o qual as caracteriacutesticas de niacutevel superior se

fundamentam na microestrutura o que nos impede de tratarmos a

consciecircncia como se fosse uma substacircncia distinta ou uma entidade

adicional ao substrato fiacutesico Nesse sentido Searle (2010a p 4-5) assevera

que por ser causada e realizada neurofisiologicamente eacute que a consciecircncia

natildeo passa de uma caracteriacutestica de niacutevel superior do sistema nervoso

O cheiro da flor o som da sinfonia os pensamentos sobre os postulados da

geometria euclidiana ndash tudo eacute causado por processos bioloacutegicos de niacutevel

inferior no ceacuterebro e ateacute onde sabemos os elementos cruciais satildeo os

neurocircnios e as sinapses

[]

Assim eacute possiacutevel resumir da seguinte maneira as duas relaccedilotildees cruciais entre

consciecircncia e ceacuterebro os processos neurocircnicos de niacutevel inferior no ceacuterebro

causam a consciecircncia e a consciecircncia eacute apenas uma caracteriacutestica de niacutevel

superior de um sistema composto de elementos neurocircnicos de niacutevel inferior

Obviamente esse modo de pensar vai de encontro agrave tese central do

dualismo de substacircncia de que a distinccedilatildeo ontoloacutegica4 entre os dois

4 Por motivos distintos o eliminativista Rorty (1994 p 133) tambeacutem critica as categorias cartesianas ldquoEssas assim chamadas categorias ontoloacutegicas [de lsquomentalrsquo e de lsquofiacutesicorsquo] satildeo simplesmente os modos de embalar noccedilotildees deveras heterogecircneas de fontes histoacutericas deveras heterogecircneas que eram convenientes aos propoacutesitos do proacuteprio Descartes

Maxwell Morais de Lima Filho | 75

domiacutenios sustenta que o fiacutesico tem um modo de existecircncia diferente do

mental Portanto ao defender que a consciecircncia eacute uma caracteriacutestica

emergente do sistema nervoso o filoacutesofo estadunidense estaacute propondo

que o acircmbito fiacutesico eacute mais abrangente do que o dualista de substacircncia

poderia supor pois a mentalidade eacute fiacutesica Eacute somente a partir disso que

compreendemos a revisatildeo do adaacutegio cartesiano pretendida por Searle

(2006 p 26) quando afirma que ldquosou um ser pensante portanto sou um

ser fiacutesicordquo Mais do que isso como a consciecircncia emerge da organizaccedilatildeo e

da complexidade fiacutesicas Searle (2010d p 98) tambeacutem discorda do

posicionamento cartesiano de que os animais natildeo humanos satildeo

autocircmatos haja vista que o grau de semelhanccedila5 conosco ndash principalmente

com os primatas ndash leva-nos na direccedilatildeo contraacuteria

Do ponto de vista anatocircmico as semelhanccedilas satildeo grandes demais para que

essa especulaccedilatildeo [da ausecircncia de intencionalidade e de pensamento nos

animais natildeo humanos] pareccedila plausiacutevel ainda que remotamente do ponto de

vista fisioloacutegico como sabemos os mecanismos que produzem a

intencionalidade e o pensamento nos humanos tecircm estreitos paralelos com os

que se verificam em outros animais

Foi com o intuito de fugir das dificuldades que se impotildeem ao

dualismo de substacircncia que alguns filoacutesofos comprometidos com a

irredutibilidade dos fenocircmenos mentais propuseram o dualismo de

propriedade Essa abordagem postula a existecircncia de uma uacutenica

substacircncia a substacircncia fiacutesica (monismo fiacutesico) e de dois tipos de

propriedade mutuamente excludentes as fiacutesicas e as mentais Ao

observarmos uma pessoa qualquer diria o dualista de propriedade

Mas os seus propoacutesitos natildeo satildeo os nossos Os filoacutesofos natildeo devem pensar em seu conglomerado artificial como se fosse uma descoberta de algo preacute-existente ndash uma descoberta que por lsquointuitivarsquo ou lsquoconceitualrsquo ou lsquocategoacutericarsquo estabelece paracircmetros permanentes para a ciecircncia e a filosofiardquo

5 Changeux (1985 p 74) assegura que natildeo haacute diferenccedila significativa entre ldquoas peccedilas e parafusosrdquo que compotildeem por exemplo os ceacuterebros dos ratos e dos homens ldquoTanto ao niacutevel da anatomia macroscoacutepica do coacutertex como da sua arquitectura microscoacutepica natildeo ocorre qualquer brutal reorganizaccedilatildeo lsquoqualitativarsquo que leve do ceacuterebro lsquoanimalrsquo ao ceacuterebro lsquohumanorsquo Deu-se pelo contraacuterio uma evoluccedilatildeo quantitativa e contiacutenua do nuacutemero total de neuroacutenios da diversidade das aacutereas do nuacutemero de possibilidades conexionais entre neuroacutenios e por conseguinte da complexidade das redes de neuroacutenios que constituem a maacutequina cerebralrdquo

76 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

constatamos que o seu corpo ndash cabeccedila pernas braccedilos etc ndash tem um modo

de existecircncia fiacutesico poreacutem se analisarmos o ceacuterebro dela veremos que

aleacutem de possuir propriedades fiacutesicas ndash muitas delas semelhantes agraves que

satildeo encontradas na cabeccedila nas pernas e nos braccedilos ndash tal oacutergatildeo tambeacutem

possui propriedades mentais

Dessa maneira poderiacuteamos afirmar que esse enrugado oacutergatildeo

formado por bilhotildees de ceacutelulas e que pesa um quilo e meio possui

propriedades que se distinguem e natildeo se reduzem a nenhuma dessas

propriedades fiacutesicas Em geral contrapotildeem-se os aspectos subjetivo

qualitativo e privado das propriedades mentais agrave precisatildeo intersubjetiva

com que mensuramos os objetos e propriedades fiacutesicos o acesso direto agrave

dor estaacute restrito ao sujeito que a experiencia mas que ele pese oitenta

quilos eacute um dado objetivo quantitativo e publicamente acessiacutevel a

qualquer um que disponha de uma balanccedila Como explica Pereira (2013)

os filoacutesofos da mente se valem dos termos quale (singular) e qualia6

(plural) para se referir ao caraacuteter subjetivo e qualitativo dos fenocircmenos

mentais que experienciamos quando saboreamos o azedume do

tamarindo vemos a beleza de um flamboyant ouvimos uma bela canccedilatildeo

tocamos na pessoa querida ou cheiramos um bebecirc Abrantes (2005 p

226) nos alerta entretanto que os uacutenicos estados mentais

consensualmente considerados qualia satildeo as sensaccedilotildees Nesse sentido

muitos filoacutesofos negam ndash diferentemente de Searle ndash que haja qualquer

tipo de aspecto qualitativo envolvido na realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo

matemaacutetica como a adiccedilatildeo por exemplo

Para o dualista de propriedade as propriedades mentais satildeo especiais

em dois sentidos em primeiro lugar por conta de sua singularidade

bioloacutegica apesar de os objetos serem constituiacutedos basicamente pelos

6 Por salvaguardar que a consciecircncia eacute qualitativa Searle (2010b p 34) julga como absurda a tentativa daqueles que pretendem apartar o que para ele eacute inseparaacutevel ldquoNatildeo haacute dois problemas separados ndash o problema da consciecircncia e entatildeo um problema subsidiaacuterio o dos qualia O problema da consciecircncia eacute idecircntico ao dos qualia porque os estados conscientes satildeo acima de tudo estados qualitativosrdquo Em outras palavras Searle (2010c p 57-8) considera o termo qualia dispensaacutevel porque todos os fenocircmenos conscientes satildeo qualitativos ldquo[T]al como entendo esses termos qualia eacute somente uma designaccedilatildeo coletiva dos estados conscientes Na medida em que a lsquoconsciecircnciarsquo e os qualia satildeo coextensivos natildeo haacute razatildeo para introduzir um termo especiacuteficordquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 77

mesmos ldquoblocos de construccedilatildeordquo (aacutetomos) somente algumas estruturas

fiacutesicas possuem propriedades mentais a saber ceacuterebros complexos Em

segundo lugar a despeito de dependerem ontologicamente dos sistemas

fiacutesicos que as produzem as propriedades mentais satildeo irredutiacuteveis e

inexplicaacuteveis a partir dos conceitos provenientes das Ciecircncias Naturais

como a Fiacutesica a Quiacutemica e a Biologia

Para mostrar isso o filoacutesofo Frank Jackson (1986 2004) propocircs um

importante experimento de pensamento objetivando sustentar a

irredutibilidade dos qualia Imaginemos que Mary seja uma neurocientista

que sabe tudo acerca dos aspectos fiacutesicos e neurofisioloacutegicos das cores isto

eacute que ela domine o conhecimento sobre as leis oacutepticas das reflectacircncias

de luz bem como da anatomia e da fisiologia das ceacutelulas fotorreceptoras e

do coacutertex visual Natildeo obstante seu profundo conhecimento cientiacutefico ela

vive em um mundo preto e branco e portanto nunca experenciou

visualmente cores que natildeo estas duas Imaginemos ainda que um dia ela

saiu do seu laboratoacuterio alvinegro e percebeu pela primeira vez a cor

vermelha de uma maccedilatilde De acordo com essa linha de pensamento essa

experiecircncia visual traria um novo tipo de conhecimento a Mary a saber a

experiecircncia qualitativa de ver vermelho Ora argumenta Jackson se Mary

possuiacutea todo o conhecimento fiacutesico sobre as cores agrave sua disposiccedilatildeo e

mesmo assim aprende um novo fato cromaacutetico concluiacutemos que a sensaccedilatildeo

de ver vermelho (fato novo) aleacutem de natildeo ser fiacutesica eacute irredutiacutevel

ontologicamente a qualquer tipo de estado ou propriedade material Com

isso Jackson (2004 p 765) quer defender que as propriedades mentais

estatildeo acima e aleacutem da realidade fiacutesica e que se mantecircm intocadas pela

explicaccedilatildeo fiacutesico-bioloacutegica da visatildeo

A conclusatildeo [] eacute que os qualia satildeo deixados de fora da histoacuteria fisicalista E a

forccedila polecircmica do argumento do Conhecimento eacute que eacute tatildeo difiacutecil negar a sua

afirmaccedilatildeo central de que se pode ter toda a informaccedilatildeo fiacutesica sem ter todas as

informaccedilotildees que haacute para ter

78 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Searle (2000) natildeo admite essa diferenciaccedilatildeo e advoga que o mental eacute

fiacutesico por ser bioloacutegico ou seja os fenocircmenos mentais satildeo fenocircmenos

bioloacutegicos tais quais outros processos encontrados no mundo vivo como

a digestatildeo a fotossiacutentese e a mitose Portanto para sermos exitosos na

superaccedilatildeo do dualismo de propriedade devemos rejeitar a terminologia

que exclui a consciecircncia do mundo natural e a trata como se natildeo fosse

bioloacutegica Com o intuito de denunciar o quanto esse sistema de categorias

eacute problemaacutetico ele assevera que o dualista inevitavelmente estaraacute diante

de uma encruzilhada se pressupuser que as propriedades mentais estatildeo

acima e aleacutem das propriedades fiacutesicas Se levarmos em consideraccedilatildeo o

fechamento causal fiacutesico do Universo ndash todo evento fiacutesico possui como

causa suficiente outro evento fiacutesico ndash teriacuteamos como resultado que as

propriedades natildeo fiacutesicas satildeo causalmente ineficazes ou seja o mental

subsistiria como um domiacutenio epifenomecircnico

Nesse cenaacuterio as nossas sensaccedilotildees crenccedilas e desejos seriam

totalmente irrelevantes para o nosso comportamento assim como seria

ilusoacuteria a causaccedilatildeo mental O caminho alternativo eacute igualmente

problemaacutetico porque se comprometeria ndash na contramatildeo do que

pressupotildeem as melhores teorias cientiacuteficas ndash com a tese de que o Universo

natildeo eacute fisicamente fechado Essa conjuntura asseguraria a eficaacutecia causal

do mental em troca de acatarmos a sobreposiccedilatildeo causal de certos eventos

isto eacute comprometer-nos-iacuteamos com a sobredeterminaccedilatildeo causal por

afirmar que um evento fiacutesico F eacute duplamente produzido por um evento

fiacutesico F e por um evento mental M Segundo Searle7 (2014 p 107)

sabemos [] que quando eu levanto meu braccedilo haacute uma histoacuteria a ser contada

no niacutevel de disparos de neurocircnios neurotransmissores e contraccedilotildees

musculares que eacute suficiente para descrever [] o movimento do meu braccedilo

Entatildeo se supusermos que a consciecircncia tambeacutem funciona no movimento do

meu braccedilo entatildeo parece que temos duas histoacuterias causais distintas nenhuma

redutiacutevel agrave outra e para colocar muito brevemente a questatildeo meus

7 Em Lima Filho (2010b) analisamos em detalhes o problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico

Maxwell Morais de Lima Filho | 79

movimentos corporais tecircm muitas causas Noacutes temos [sobredeterminaccedilatildeo]

causal

O autor drsquoA Redescoberta da Mente eacute da opiniatildeo que apesar da

relutacircncia o dualista de propriedade acaba por cair na ldquovelhardquo dualidade

substancial como fica patente no uso de metaacuteforas que insinuam a

separaccedilatildeo entre os fenocircmenos conscientes a consciecircncia se origina do

ceacuterebro mas estaacute acima e aleacutem dos processos cerebrais por ser uma

propriedade emergente Esse modo de pensar nos conduz agrave imagem da

consciecircncia como uma cereja que por estar acima do bolo dele difere

Searle (2014 p 114) enxerga uma inconsistecircncia nessa posiccedilatildeo segundo a

qual a consciecircncia (cereja) eacute uma propriedade que estaacute acima e aleacutem do

ceacuterebro (bolo) afirmando que essa incongruecircncia acaba por minar o

monismo fiacutesico e passa a incidir em alguma versatildeo do dualismo de

substacircncia

A imagem verdadeira se vamos persistir na metaacutefora do bolo eacute que a

consciecircncia eacute o estado em que o bolo (ceacuterebro) estaacute Oficialmente o dualista

de propriedades diz que a consciecircncia eacute uma propriedade do ceacuterebro mas se

vocecirc considerar propriedades incontroversas do ceacuterebro como peso forma

cor solidez etc ningueacutem diz que elas ldquosurgem dordquo [hellip] ou estatildeo ldquoaleacutemrdquo [hellip]

do ceacuterebro e somente num sentido especial algumas delas podem ser descritas

como ldquoemergentesrdquo [hellip] e certamente natildeo como ldquoemergentes dordquo [hellip] ceacuterebro

Uma corrente que se opocircs fortemente ao dualismo foi o behaviorismo

analiacutetico8 Muitos estudiosos consideram como marco da Filosofia da

Mente Contemporacircnea o livro de Gilbert Ryle (1970 p 11) Concept of

Mind publicado originalmente em 1949 que principia resumindo a

posiccedilatildeo a ser combatida o ldquomito de Descartesrdquo ou o ldquodogma do fantasma

na maacutequinardquo

8 Natildeo devemos confundi-lo com a corrente psicoloacutegica associada aos nomes de John Watson Ivan Pavlov e Burrhus Frederic Skinner Como esclarece Blackburn (1997 p 39) em vez de levar em consideraccedilatildeo a introspecccedilatildeo e a subjetividade o behaviorismo psicoloacutegico inicialmente se orientou pela perspectiva metodoloacutegica de mensuraccedilatildeo das causas comportamentais Posteriormente sobretudo com Skinner passou a vigorar o empreendimento de se gerir a accedilatildeo humana por meio de estiacutemulos e reforccedilos

80 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A doutrina oficial que vem principalmente de Descartes eacute qualquer coisa

como isto com as exceccedilotildees duvidosas dos idiotas e das crianccedilas de colo todo

ser humano tem um corpo e um espiacuterito Alguns prefeririam dizer que todo

ser humano eacute simultaneamente corpo e espiacuterito O seu corpo e o seu espiacuterito

estatildeo geralmente reunidos mas depois da morte do corpo o espiacuterito pode

continuar a existir e a funcionar

O intento de Ryle eacute imunizar todos contra o ldquopatoloacutegicordquo legado

cartesiano valendo-se de anaacutelises conceituais com o duplo objetivo de

criticar as operaccedilotildees realizadas pelos defensores da ldquodoutrina oficialrdquo e de

situar o conceito mental no tipo loacutegico adequado Com o intuito de ilustrar

sua argumentaccedilatildeo contra o dualismo ele daacute o seguinte exemplo de erro

categorial Se apoacutes termos apresentado a Reitoria as Unidades

Acadecircmicas as Faculdades o Restaurante Universitaacuterio e os Museus que

compotildeem a nossa instituiccedilatildeo o que responderiacuteamos ao estrangeiro que

persistisse perguntando pela localizaccedilatildeo da Universidade haja vista que

ele afirma ter visto somente os departamentos administrativos as salas de

aula e os aparelhos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica Ora diz Ryle (1970 p 16)

devemos mostrar que o nosso colega se equivoca ao natildeo observar que a

Universidade eacute constituiacuteda pela coordenaccedilatildeo conjunta dos oacutergatildeos

burocraacuteticos espaccedilos didaacuteticos laboratoacuterios etc que ele observou em sua

visita ao campus

O seu erro [do estrangeiro] assenta na suposiccedilatildeo inocente de que era correto

falar da Christ Church da Bodleian Library do Ashmolean Museum e da

Universidade como se a ldquoUniversidaderdquo significasse um membro extra da

classe da qual estas outras unidades satildeo membros Ele estava a situar

erroneamente a Universidade na mesma categoria a que as outras instituiccedilotildees

pertencem

Consoante o behaviorista algo semelhante ocorre quando nos

emocionamos ao ler um poema sentimos dor de dente desejamos um

chocolate ou cremos na Biacuteblia tendo em conta que natildeo estariacuteamos nos

referindo a eventos mentais interiores mas tatildeo somente ao nosso

comportamento seja ele real ou potencial Eacute justamente por esse motivo

Maxwell Morais de Lima Filho | 81

que ele pretende preservar a equivalecircncia semacircntica quando traduz a

crenccedila de Tomeacute no Cristianismo nas seguintes descriccedilotildees

comportamentais

(i) Se lhe oferecerem de presente a Biacuteblia ou o Coratildeo ele optaraacute pelo primeiro

(ii) Se lhe perguntarem em qual livro Deus se revela ele responderaacute que eacute na Biacuteblia

(iii) Se lhe questionarem sobre a autoria dos Dez Mandamentos ele afirmaraacute que

foram escritos por Deus

(iv) Se houver oportunidade ele pregaraacute a mensagem biacuteblica

Uma criacutetica inicial a essa proposta teoacuterica se reflete no repuacutedio de

sermos reduzidos agrave pura e simples mecacircnica comportamental

desconsiderando-se para tal fim a totalidade dos fenocircmenos subjetivos e

qualitativos que constituem a rica vida mental que todos noacutes inclusive os

behavioristas experimentamos Em outras palavras haacute uma distinccedilatildeo de

tipo9 entre a crenccedila cristatilde e a observaccedilatildeo comportamental de Tomeacute Para

ser consistente essa anaacutelise deveria levar em consideraccedilatildeo a

indeterminaccedilatildeo e o nuacutemero potencialmente infinito de vias relacionadas agrave

crenccedila religiosa de Tomeacute e natildeo apenas os quatro condicionais listados

anteriormente

Esse tipo de exame tambeacutem padece de circularidade porque o

behaviorista deve lanccedilar matildeo de hipoacuteteses adicionais natildeo explicitadas para

sustentar que a crenccedila no Cristianismo se traduz comportamentalmente

na inclinaccedilatildeo de ser presenteado por uma Biacuteblia Caso Tomeacute possua dez

traduccedilotildees comentadas da Biacuteblia em diferentes liacutenguas seria provaacutevel que

ele preferisse ganhar o Coratildeo de presente ndash na verdade a lista de regalos

passiacuteveis de corroborar a crenccedila de Tomeacute eacute deveras extensa sendo muito

difiacutecil determinaacute-la precisamente A disposiccedilatildeo comportamental de

preferir a Biacuteblia tambeacutem assume sub-repticiamente que Tomeacute sabe e gosta

de ler o que obviamente natildeo eacute necessaacuterio Por fim querer ganhar uma

9 Searle (2010h p 337) realccedila essa dessemelhanccedila entre os fenocircmenos mentais conscientes e a anaacutelise comportamental a partir desse exemplo da dor gaacutestrica ldquoO fato de sentir essa dor eacute completamente diferente ndash aliaacutes um tipo de fato completamente diferente ndash de quaisquer fatos inclusive condicionais que digam respeito a meu comportamento Ter uma dor de estocircmago eacute uma coisa adotar este ou aquele tipo de comportamento adequado a uma dor de estocircmago eacute algo totalmente diferenterdquo

82 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Biacuteblia soacute faz sentido se Tomeacute acreditar que ela natildeo viraacute com paacuteginas em

branco que ela estaacute redigida em liacutengua compreensiacutevel que sua mensagem

natildeo foi corrompida por editores inescrupulosos etc

A tentativa de se explicar a crenccedila de Tomeacute no Cristianismo

(analysandum) atraveacutes de sua conduta de pregaccedilatildeo evangeacutelica (analysans)

eacute malograda porque o comportamento que pretende esclarecer o estado

psicoloacutegico eacute ele proacuteprio intencional10 Ou seja os movimentos corporais

de pegar a Biacuteblia e sair de porta em porta anunciando que Jesus eacute a nossa

salvaccedilatildeo e a soluccedilatildeo para todos os nossos problemas soacute podem ser

denominados accedilotildees se forem causados por intenccedilotildees que satildeo tatildeo mentais

quanto o que se pretende elucidar a crenccedila de Tomeacute Eacute guiado por linha

de raciociacutenio semelhante que Searle (2010h p 339) afirma que o

behaviorista estaria diante de um dilema pois ou ele considera que o

comportamento eacute intencional ou natildeo por um lado permaneceria o

elemento mental se se admitir que o comportamento eacute intencionalmente

causado por outro caso natildeo se defenda isso

temos de interpretar o comportamento como uma seacuterie de movimentos

corporais descritos tatildeo somente como movimentos corporais e nenhuma

anaacutelise dos enunciados sobre crenccedilas desejos e intenccedilotildees em funccedilatildeo de

enunciados sobre movimentos corporais jamais seraacute suficiente porque os

movimentos ainda natildeo satildeo accedilotildees humanas e a noccedilatildeo de um movimento

corporal em si mesmo eacute insuficiente para qualquer anaacutelise dos estados

mentais

Desse modo o filoacutesofo estadunidense reitera que soacute podemos

acreditar em algo ou desejarmos alguma coisa se tivermos uma Rede

(Network) com diversas crenccedilas e desejos Poreacutem como o conteuacutedo

intencional natildeo eacute autointerpretativo Searle (2010g p 249-50) postula que

a Rede necessita de um Pano de Fundo (Background)11 constituiacutedo por

habilidades preacute-intencionais

10 Consoante Leclerc (2015) Roderick Chisholm defendeu na deacutecada de 50 que eacute impossiacutevel transpormos o ciacuterculo das noccedilotildees intencionais haja vista que a intencionalidade eacute indefiniacutevel a partir de termos natildeo intencionais

11 Vimos que a intransponibilidade do ciacuterculo intencional eacute sustentada por Chisholm porque os termos natildeo intencionais satildeo inuacuteteis para definir a intencionalidade Apesar de reconhecer a importacircncia da Rede Searle (1995

Maxwell Morais de Lima Filho | 83

Todos os fenocircmenos intencionais quer sejam crenccedilas desejos esperanccedilas

medos ou outros pressupotildeem capacidades natildeo intencionais de background

para que possam funcionar Com isso quero dizer que os estados intencionais

somente determinam suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo e portanto somente

funcionam como estados intencionais se for pressuposto um conjunto de

capacidades que nos permitem aplicar os estados intencionais A

intencionalidade natildeo eacute por assim dizer autointerpretante ou autoaplicativa

[hellip] [O] ponto importante dessas habilidades de background eacute que elas

mesmas natildeo satildeo representacionais Natildeo consistem num conjunto de regras

crenccedilas ou outros tipos de representaccedilotildees

Nos anos 50 e 60 do seacuteculo XX pouco apoacutes a proposta behaviorista

de Ryle filoacutesofos como Herbert Feigl Ullin Thomas Place John Jamieson

Carswell Smart e David Malet Armstrong defenderam uma teoria da

identidade mente-ceacuterebro segundo a qual os estados mentais nada mais

satildeo do que estados fiacutesicos que ocorrem no sistema nervoso Portanto

estamos diante de um monismo fiacutesico que identifica ontologicamente o

domiacutenio psicoloacutegico ao neurobioloacutegico como ocorre na identificaccedilatildeo entre

a dor e a descarga de fibras C Em artigo publicado originalmente em 1956

Place (2002) defende a hipoacutetese cientiacutefica de que a consciecircncia eacute um

processo cerebral sem se comprometer com a suposiccedilatildeo adicional de que

a linguagem neurobioloacutegica sirva para descrever os sonhos as fantasias e

as sensaccedilotildees Eacute justamente porque a assunccedilatildeo da identidade mente-

ceacuterebro eacute anaacuteloga agravequela das Ciecircncias Naturais ndash que se reflete por sua

vez na ausecircncia de equivalecircncia semacircntica entre as descriccedilotildees dos

fenocircmenos fiacutesicos e mentais ndash que natildeo seria irracional se Royce afirmasse

p 198) recua um passo ao advogar que o Pano de Fundo preacute-intencional eacute a condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer estado intencional ldquoO Background eacute lsquopreacute-intencionalrsquo no sentido de que embora natildeo seja uma forma ou formas de Intencionalidade eacute natildeo obstante uma precondiccedilatildeo ou um conjunto de precondiccedilotildees de Intencionalidaderdquo Portanto se a definiccedilatildeo de intencionalidade empregada por Searle eacute circular natildeo deixa de ser verdade que ela se explica a partir do Pano de Fundo Ressaltamos que os obstaacuteculos impostos por determinadas praacuteticas humanas situadas podem ser transpostos devido ao compartilhamento de um Background profundo Eis dois exemplos do proacuteprio Searle (2006 p 277) ldquoDiferenccedilas de Backgrounds locais tornam difiacutecil a traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra a generalidade do Background profundo torna-a possiacutevel de qualquer modo Se vocecirc lecirc a descriccedilatildeo de um jantar festivo na casa dos Guermantes em Proust provavelmente deve achar alguns aspectos da descriccedilatildeo enigmaacuteticos Isso tem a ver com diferenccedilas de praacuteticas culturais locais Mas existem certas coisas que vocecirc pode dar por certas Por exemplo os participantes natildeo comem enfiando a comida em seus ouvidosrdquo

84 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que sente dor e que as suas fibras C natildeo disparam haja vista que o

enunciado ldquoRoyce estaacute com dorrdquo natildeo eacute sinocircnimo de ldquoas fibras C de Royce

estatildeo disparandordquo do mesmo modo que natildeo seria um absurdo declarar

que a aacutegua deste copo natildeo eacute composta por H2O

Como Searle defende que os fenocircmenos mentais satildeo causados e

realizados no sistema nervoso ele natildeo veria problema algum em localizaacute-

los espaacutecio-temporalmente nos processos cerebrais subjacentes desde que

levemos em conta que uns e outros satildeo ontologicamente distintos ou seja

que aqueles fenocircmenos possuem caracteriacutesticas intriacutensecas que os tornam

irredutiacuteveis a padrotildees sinaacutepticos estes sim descritiacuteveis a partir do

vocabulaacuterio neurocientiacutefico de terceira pessoa Dito isso vemos o porquecirc

de Searle (2010e p 129-30) criticar a identificaccedilatildeo ontoloacutegica do

fisicalismo redutivo

Assim quando o teoacuterico da identidade nos diz que os estados mentais satildeo

somente estados cerebrais haacute um modo de compreender essa tese que eacute

perfeitamente compatiacutevel com nossa pressuposiccedilatildeo de senso comum sobre o

caraacuteter intriacutenseco e irredutiacutevel da consciecircncia e de outras formas de

intencionalidade [hellip] Mas em geral natildeo eacute isso o que os teoacutericos da identidade

querem dizer Um exame cuidadoso dos textos [hellip] revela que em geral os

teoacutericos da identidade [hellip] acabam por negar a existecircncia das caracteriacutesticas

intrinsecamente mentais do mundo

Outra objeccedilatildeo eacute feita agrave contundente asserccedilatildeo de que os estados

mentais compartilhados por duas pessoas implicam que eles satildeo

necessariamente determinados por processos neurofisioloacutegicos de tipo

idecircntico Assim sendo os mesmos estados fiacutesicos devem ocorrer nos

ceacuterebros de Jacoacute e de Luiz para que eles compartilhem a crenccedila de que

Januaacuterio eacute o maior dos sanfoneiros Ora jaacute que somos cercados por

estruturas bioloacutegicas e por artefatos que satildeo multiplamente realizaacuteveis do

ponto de vista fiacutesico por que o mesmo natildeo ocorreria com os estados

mentais Em outras palavras se olhos asas reloacutegios e cadeiras satildeo

compostos e organizados fisicamente de mais de um modo por que algo

semelhante natildeo se daria com a mentalidade Destarte nada impede que a

Maxwell Morais de Lima Filho | 85

mesma crenccedila na grandiosidade musical de Januaacuterio seja realizada por

padrotildees neurocircnicos de tipo X no velho Jacoacute e de tipo Y em seu filho Searle

(2010h p 344) se vale de outros exemplos para corroborar a tese da

realizaccedilatildeo muacuteltipla do mental e para explicitar o que faz com que dois

estados psicoloacutegicos sejam do mesmo tipo

Assim vocecirc e eu podemos ter cada qual a mesma crenccedila de que estaacute nevando

sem que nossas neurofisiologias sejam necessariamente de tipo idecircntico assim

como meu carro e o seu podem ter cada qual um carburador embora o meu

seja de accedilo e o seu de latatildeo Mas entatildeo o que os estados mentais tecircm em

comum capaz de tornaacute-los de tipo idecircntico Creio que a resposta oacutebvia eacute que

eles satildeo de tipo idecircntico por causa de suas caracteriacutesticas mentais comuns

sejam elas caracteriacutesticas de consciecircncia da intencionalidade ou de ambas ou

ainda outras espeacutecies de caracteriacutesticas mentais

Aliaacutes foi motivado por esse tipo de criacutetica ao fisicalismo redutivo que

surgiu nos anos 60 a teoria funcionalista que talvez ainda hoje seja a

concepccedilatildeo de maior prestiacutegio acadecircmico De acordo com uma de suas

vertentes os fenocircmenos mentais podem ser produzidos artificialmente

pelos chips de siliacutecio de computador o que demonstraria a inexistecircncia de

um viacutenculo necessaacuterio entre ceacuterebros complexos e estados mentais Como

natildeo seriam essencialmente bioloacutegicos o aspecto relevante residiria no

papel funcional envolvido nas relaccedilotildees entre os proacuteprios estados mentais

bem como destes com as informaccedilotildees provenientes do ambiente e que

direcionam o comportamento Essa centralidade do papel funcional estaacute

por traacutes do pressuposto metodoloacutegico do teste de Turing (1950) de que se

uma maacutequina manifesta um comportamento linguiacutestico tatildeo complexo

quanto o do ser humano eacute porque nos eacute similar em inteligecircncia e

mentalidade

Com o fito de atacar esse pressuposto behaviorista do funcionalismo

e para asseverar que toda e qualquer maacutequina de Turing eacute incapaz de

compreender os siacutembolos que manipula Searle12 (1980a) propocircs o

12 Apresentamos o ataque de Searle ao funcionalismo computacional em Lima Filho (2010a)

86 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

experimento de pensamento do quarto chinecircs Em linhas gerais podemos

expor o famoso Gedankenexperiment do seguinte modo confinado em um

quarto Searle passa a receber folhas escritas em chinecircs liacutengua da qual ele

natildeo conhece um soacute ideograma e que eacute incapaz de falar quaisquer palavras

tambeacutem o fornecem um manual com regras escritas em inglecircs que lhe

permite relacionar pelo formato os siacutembolos recebidos com outras folhas

redigidas em chinecircs que ele passa por debaixo da porta Esse processo

ocorre repetidamente ndash recebimento do texto em chinecircs consulta ao

manual e devoluccedilatildeo do siacutembolo correspondente ndash e sem que o filoacutesofo se

aperceba disso o falante de chinecircs julga que estaacute entabulando uma

conversaccedilatildeo porque dele recebeu respostas satisfatoacuterias sobre o seu nome

a sua origem e a sua profissatildeo O ponto nevraacutelgico da argumentaccedilatildeo eacute que

a manipulaccedilatildeo simboacutelica natildeo eacute suficiente para a compreensatildeo semacircntica e

que o maacuteximo alcanccedilaacutevel por um programa de computador eacute a simulaccedilatildeo13

ndash mas natildeo a duplicaccedilatildeo ndash de estados mentais Eis como Searle (1998a p

38-9) posteriormente resume o seu argumento

1 Programas satildeo totalmente sintaacuteticos

2 As mentes tecircm uma capacidade semacircntica

3 A sintaxe natildeo eacute a mesma coisa que a semacircntica nem eacute por si soacute suficiente

para garantir um conteuacutedo semacircntico

Consequentemente programas natildeo satildeo mentes

Para golpear o cognitivismo ndash linha para a qual os processos

cognitivos satildeo inconscientes e computacionais ndash Searle propotildee um

argumento assentado na tese de que a computaccedilatildeo eacute relativa ao

observador e eacute exclusivamente sintaacutetica Consoante Moural (2003)

podemos resumi-lo nessas quatro asserccedilotildees

13 Analogamente Searle (2007 p 66) afirma que um programa computacional simulador da digestatildeo eacute incapaz de decompor fiacutesico-quimicamente um pedaccedilo de pizza ldquo[U]m computador realiza um modelo ou uma simulaccedilatildeo de um processo E a simulaccedilatildeo computacional de uma mente eacute como a simulaccedilatildeo computacional da digestatildeo Eu natildeo sei por qual motivo as pessoas cometem um erro tatildeo bobo Veja se fizermos uma simulaccedilatildeo computacional perfeita da digestatildeo ningueacutem poderia pensar lsquovamos comprar uma pizza e pocirc-la no computadorrsquo Eacute um modelo uma fotografia da digestatildeo Nos mostra que a estrutura formal de funcionamento de fato natildeo digere nada Isso eacute o que ocorre com um computador Um modelo computacional do que eacute apaixonar-se ler um romance ou embriagar-se natildeo se apaixona nem lecirc um romance nem se embriaga de fato Somente faz uma representaccedilatildeo dessas coisasrdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 87

(i) Por definiccedilatildeo computaccedilatildeo consiste em uma manipulaccedilatildeo formal de siacutembolos

(ii) No entanto como nem a sintaxe nem os siacutembolos satildeo definidos em termos fiacutesicos

natildeo podemos consideraacute-los intriacutensecos agrave Fiacutesica

(iii) Como o significado da sintaxe e dos siacutembolos soacute podem ser atribuiacutedos perante

um observador segue-se que o mesmo deva se dar com a computaccedilatildeo

(iv) Consequentemente a possibilidade de realizarmos uma interpretaccedilatildeo

computacional do ceacuterebro natildeo nos autoriza a conjecturar que esse oacutergatildeo seja

intrinsecamente um computador

A distinccedilatildeo capital que permeia esse argumento eacute aquela entre as

caracteriacutesticas que independem e as que dependem do observador14 como

o satildeo respectivamente a massa da moleacutecula de aacutegua e a funccedilatildeo

cronomeacutetrica do reloacutegio Com isso Searle (2002b) faz uma discriminaccedilatildeo

entre estados mentais humanos e aqueles atribuiacutedos ao computador o

estado de consciecircncia de Searle eacute intrinsecamente intencional porque

existe independentemente do que pensemos a seu respeito diversamente

dos estados mentais que outorgamos agrave maacutequina e que possuem uma

intencionalidade relativa ao observador15 Portanto o medo expresso por

14 Para Searle (1998a p 42) as Ciecircncias da Natureza se distinguem das Ciecircncias Sociais pelo estudo dessas caracteriacutesticas ldquoAs ciecircncias naturais lidam com essas propriedades da natureza que satildeo intriacutensecas ou independentes do observador no sentido de sua existecircncia natildeo depender do que pensamos sobre ela Exemplos dessas propriedades satildeo a massa a fotossiacutentese a carga eleacutetrica e a mitose As ciecircncias sociais em geral lidam com propriedades que satildeo dependentes do observador ou relativas ao observador no sentido de que sua existecircncia depende de como os seres humanos tratam usam ou ao menos pensam a respeito delas Exemplos tiacutepicos satildeo o dinheiro a propriedade e o casamentordquo

15 Estamos diante de uma intencionalidade intriacutenseca quando adicionamos mentalmente dois e dois e obtemos quatro jaacute quando expressamos esse caacutelculo pela linguagem falada ou escrita referimo-nos agrave intencionalidade derivada por fim temos tambeacutem a intencionalidade ldquocomo serdquo quando falamos que o gramado ou o carro estatildeo

sedentos Como adverte Searle (2010f p 189-90) a sede do gramado ou do automoacutevel natildeo eacute intencional mas tatildeo somente metafoacuterica ldquoa intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo eacute intencionalidade de modo nenhum Quando afirmo que um sistema tem uma intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo lhe atribuo intencionalidade Estou afirmando apenas que o sistema se comporta como se tivesse intencionalidade embora natildeo a tenha de fatordquo Como a intencionalidade intriacutenseca precede a linguagem poderiacuteamos encontraacute-la em bebecircs humanos e em outras espeacutecies animais Eacute nesse sentido que as carecircncias de aacutegua e de alimento causariam os primordiais desejos de beber e de comer como assinala Searle (2000 p 91-2) ldquoAs formas biologicamente mais primitivas de intencionalidade satildeo as formas de desejo que envolvem necessidades fiacutesicas como a fome e a sede Ambas satildeo intencionais porque ambas satildeo formas de desejo A fome eacute um desejo de comer a sede um desejo de beberrdquo Searle (2012 p 24) vai aleacutem e advoga que esses estados mentais preacute-linguiacutesticos satildeo indissociaacuteveis de suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo ldquoEssas formas preacute-linguiacutesticas de intencionalidade jaacute possuem algumas propriedades loacutegicas cruciais Porque percepccedilotildees intenccedilotildees crenccedilas desejos e assim por diante satildeo formas de intencionalidade elas trazem em si especificamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees de sucesso ou fracasso Por exemplo um animal faminto tem o desejo de comer e patologias agrave parte assim ele tem a capacidade de reconhecer quando esse desejo eacute satisfeito e quando natildeo o eacuterdquo No entanto essa alegada intrinsecalidade dos estados mentais eacute posta em duacutevida por Gauker (2012 p 154) ldquoO fato de que os bebecircs os animais natildeo humanos e os hominiacutedeos preacute-linguiacutesticos possuam estados intencionais se isso fosse um fato natildeo mostraria

88 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Hal 9000 quando David Bowman estava desativando seus processos

superiores natildeo passa de uma fobia metafoacuterica Para Searle (1980a) natildeo haacute

qualquer arbitrariedade no criteacuterio que se funda na intencionalidade

intriacutenseca para diferenciar a mentalidade da decisatildeo de Bowman do pavor

figurado de Hal 9000 se assim o fosse estaria subjugado a nosso bel-

prazer encarar os nossos semelhantes como zumbis e a estiagem como

mental

Os argumentos levantados por Searle de que a sintaxe eacute insuficiente

para a semacircntica e de que ela natildeo eacute intriacutenseca agrave Fiacutesica natildeo raras vezes tem

conduzido agrave interpretaccedilatildeo de que ele seja repulsivo ao projeto de um

ceacuterebro e de uma mente artificiais No entanto essa chave de leitura eacute

injusta porque ambos os argumentos do filoacutesofo estadunidense satildeo

voltados para o programa do computador ndash e natildeo para o hardware

Justamente por se apoiar nas Ciecircncias da Natureza Searle natildeo nega que

uma funccedilatildeo possa ser multiplamente realizada como eacute o caso do voo

executaacutevel bioloacutegica ndash insetos aves e morcegos ndash ou tecnologicamente ndash

balotildees aviotildees helicoacutepteros e foguetes Por mais distintas que sejam as asas

da mosca e as do 14-bis elas compartilham poderes causais que permitem

ao animal e ao aviatildeo sobrepujarem a forccedila da gravidade Ora se a

consciecircncia eacute uma caracteriacutestica sistecircmica do ceacuterebro e desejamos

produzi-la artificialmente basta que dupliquemos os poderes causais

desse oacutergatildeo Nas palavras de Searle (2000 p 56)

Quando digo que o ceacuterebro eacute um oacutergatildeo bioloacutegico e a consciecircncia um processo

bioloacutegico eacute claro que natildeo estou dizendo ou sugerindo que seria impossiacutevel

produzir um ceacuterebro artificial a partir de materiais natildeo bioloacutegicos que tambeacutem

pudessem ser causa da consciecircncia e sustentaacute-la [] O ponto que deve ser

enfatizado eacute que tal ceacuterebro artificial teria de reproduzir as verdadeiras causas

dos ceacuterebros humanos e animais para produzir estados de consciecircncia

internos qualitativos e subjetivos A produccedilatildeo de comportamentos similares

por si soacute natildeo seria suficiente

que a intencionalidade dos estados mentais eacute lsquointriacutensecarsquo em qualquer sentido mas mostraria que a capacidade para pensar com as propriedades semacircnticas natildeo depende da posse de uma linguagem ao contraacuterio de minha hipoacuteteserdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 89

Dessa maneira o autor drsquoA Redescoberta da Mente aceita uma versatildeo

bem mais branda da tese de realizaccedilatildeo muacuteltipla em comparaccedilatildeo com a que

eacute acatada pelos funcionalistas pois nem todo material seria capaz de

efetuar a funccedilatildeo em questatildeo Como Searle (1984) diz abertamente o

ceacuterebro eacute uma maacutequina viva e portanto a sua constituiccedilatildeo bioloacutegica eacute

relevante para a produccedilatildeo e para a realizaccedilatildeo da mente ou seja eacute de nosso

conhecimento que os padrotildees sinaacutepticos satildeo efetivos para a emergecircncia de

estados intencionalmente intriacutensecos Contudo diferentemente do que se

daacute com o voo a nossa atual ignoracircncia sobre os detalhes bioquiacutemicos e

fisioloacutegicos nos impede por enquanto de duplicar os estados mentais em

estruturas natildeo bioloacutegicas

Para fechar o nosso itineraacuterio pela Filosofia da Mente apresentamos

a seguir o fisicalismo eliminativista corrente defendida por Paul

Feyerabend Richard Rorty Patricia e Paul Churchland Diferentemente da

abordagem fisicalista de Feigl Place Smart e Armstrong o eliminativista

rejeita a identificaccedilatildeo entre os fenocircmenos neurofisioloacutegicos e os mentais

haja vista que estes uacuteltimos natildeo passam de ilusatildeo Para defender a tese do

irrealismo do mental e a sua necessaacuteria eliminaccedilatildeo teoacuterica o fisicalista

eliminativo lanccedila matildeo da seguinte analogia histoacuterica no tempo das

Inquisiccedilotildees sustentava-se a necessidade de caccedilar e de queimar na fogueira

a mulher que pactuava com Satanaacutes mas atualmente nenhuma pessoa

sensata admitiria a existecircncia de bruxas Essa mudanccedila de perspectiva se

daacute porque o progresso epistecircmico revelou a falsidade do conceito de bruxa

e o eliminou do arcabouccedilo terminoloacutegico da Ciecircncia como aconteceraacute ndash

alega Paul Churchland (2004 p 79) ndash com os termos da Psicologia

Popular

[N]atildeo podemos esperar que uma explicaccedilatildeo realmente adequada de nossa vida

interior feita pela neurociecircncia revele categorias teoacutericas que correspondam

exatamente agraves categorias do arcabouccedilo de senso comum [posiccedilatildeo anti-

reducionista] Dessa forma devemos esperar que o antigo arcabouccedilo seja

simplesmente eliminado e natildeo reduzido por uma neurociecircncia amadurecida

90 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Consoante Teixeira (2008) a Psicologia Popular eacute a teoria que nos

permite explicar o comportamento humano evocando conceitos como

crenccedila desejo e intenccedilatildeo Desse modo o avanccedilo neurocientiacutefico natildeo

acarretaraacute a reduccedilatildeo da Psicologia Popular pois natildeo haacute uma

correspondecircncia um-a-um entre essas duas aacutereas o que demonstraria a

necessidade de suprimir os termos psicoloacutegicos que representam de modo

distorcido os estados neurofisioloacutegicos e as causas do comportamento Por

conseguinte uma Neurociecircncia16 avanccedilada e precisa propiciaraacute

eliminaccedilotildees teoacutericas como a de algueacutem que mencione a ativaccedilatildeo de suas

fibras C em tal regiatildeo do ceacuterebro no lugar de falar que estaacute com dor como

expotildee Churchland (2004 p 82)

Nossas explicaccedilotildees sobre os comportamentos uns dos outros iratildeo recorrer a

coisas como nossos estados neurofarmacoloacutegicos nossa atividade neural em

aacutereas anatocircmicas especiacuteficas e a outros estados que forem relevantes para a

nova teoria Nossa introspecccedilatildeo individual tambeacutem seraacute transformada e

poderaacute ser profundamente aprimorada em razatildeo de um arcabouccedilo conceitual

mais penetrante e preciso com o qual ela teraacute de trabalhar []

Searle (2006) trata com sarcasmo os eliminativistas ao perguntar se

deveria beliscaacute-los para provar que satildeo conscientes e que sentem dor

advogando que o fato de os estados mentais dependerem ontologicamente

dos processos neurobioloacutegicos natildeo os tornam aparentes ou ilusoacuterios Em

outras palavras por mais que conheccedilamos todos os pormenores

bioquiacutemicos e fisioloacutegicos dos processos cerebrais isso natildeo baniraacute ndash nem

ontoloacutegica nem explicativamente ndash o niacutevel dos fenocircmenos psicoloacutegicos

Estes fenocircmenos inexistiriam se houvesse uma distinccedilatildeo entre a aparecircncia

e a realidade17 mas esse natildeo eacute o caso como pontua Searle (2000 p 59)

16 Rorty (1997 p 158) pinta o hipoteacutetico progresso neurocientiacutefico com essas tintas ldquoNoacutes esperamos que a fisiologia possa algum dia traccedilar um caminho a partir da distribuiccedilatildeo de descargas eleacutetricas em meu ceacuterebro ateacute as interfaces [neuromusculares] em minha garganta e por conseguinte nos viabilizar predizer elocuccedilotildees por sobre a base dos estados cerebraisrdquo

17 Em outro texto Searle (1998c p 224) faz a seguinte comparaccedilatildeo ldquoReduccedilotildees eliminatoacuterias exigem uma distinccedilatildeo entre a realidade e a aparecircncia Por exemplo o Sol parece se pocircr mas na realidade eacute a Terra que realiza o movimento de rotaccedilatildeo Mas vocecirc natildeo pode fazer este movimento para a consciecircncia porque no que diz respeito agrave consciecircncia a realidade eacute a aparecircncia Se conscientemente tenho a impressatildeo de ser consciente entatildeo sou conscienterdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 91

Natildeo podemos fazer uma reduccedilatildeo eliminatoacuteria da consciecircncia porque o padratildeo

das reduccedilotildees eliminatoacuterias eacute mostrar que o fenocircmeno reduzido eacute apenas uma

ilusatildeo No entanto no que diz respeito agrave consciecircncia a existecircncia da ldquoilusatildeordquo eacute

a proacutepria realidade Isso quer dizer que se me parece que estou consciente

entatildeo eu estou Natildeo haacute nada na consciecircncia aleacutem de uma sequumlecircncia de

ldquoaparecircnciasrdquo desse tipo A esse respeito a consciecircncia eacute diferente dos poentes

porque eu posso ter a ilusatildeo de que o sol estaacute se pondo por traacutes das montanhas

quando na verdade ele natildeo estaacute fazendo isso

Dessa maneira os processos neurofisioloacutegicos satildeo capazes de explicar

minuciosamente a causa da dor mas isso natildeo significa deixaacute-la de lado

como um conceito preacute-cientiacutefico muito pelo contraacuterio haja vista que a

sensaccedilatildeo dolorosa possui uma ontologia de primeira pessoa no sentido de

ser experienciada por um sujeito e de possuir um modo de existecircncia

qualitativo que a diferencia dos disparos neurocircnicos que a causam Essa

caracteriacutestica real e ineliminaacutevel da mentalidade eacute expressa por Searle

(1998b p 57-8) ao declarar que

a pura sensaccedilatildeo qualitativa de dor eacute uma propriedade do ceacuterebro bem

diferente das descargas neuronais que causam a dor Logo em se tratando de

descargas neuronais vocecirc pode obter uma reduccedilatildeo causal de dor mas natildeo

uma reduccedilatildeo ontoloacutegica Isto eacute vocecirc pode fornecer uma anaacutelise causal

completa da razatildeo de sentirmos dores mas isso natildeo mostra que as dores natildeo

existam realmente

Fazendo um apanhado geral do que apresentamos constatamos que

o filoacutesofo estadunidense critica severamente todas as principais correntes

recusando igualmente o dualismo a reduccedilatildeo ontoloacutegica e a eliminaccedilatildeo da

Psicologia Popular Para ele a criacutetica ao dualismo acabou jogando o bebecirc

junto com a aacutegua suja do banho pois os fenocircmenos mentais conscientes

foram descartados juntamente com a alma imaterial Eacute como se o pavor

pelo conceito de alma justificasse a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer

92 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

subjetividade18 do seio da natureza O polo oposto tambeacutem eacute desalentador

pois a defesa da mentalidade se faz agraves custas de uma consciecircncia natildeo fiacutesica

Searle (2006 p 23-4) pinta com essas tintas o quadro sinoacuteptico da

Filosofia da Mente

Relutamos em reconhecer qualquer dos fatos consensuais que soam

ldquocartesianosrdquo porque parece que se aceitarmos os fatos teremos de aceitar

toda a metafiacutesica cartesiana Qualquer espeacutecie de mentalismo que reconheccedila

os fatos oacutebvios de nossa existecircncia eacute considerada automaticamente suspeita

[hellip] De um modo talvez mais exasperante ainda eles satildeo auxiliados nesse erro

por aqueles filoacutesofos que de bom grado reconhecem a existecircncia da consciecircncia

e assim fazendo supotildeem estar afirmando a existecircncia de algo natildeo fiacutesico

Ao recusar ambas as posiccedilotildees Searle (2006 p 26-7) pretende articular

uma concepccedilatildeo que natildeo apenas leve em consideraccedilatildeo a subjetividade do

mental mas que a fundamente nas Ciecircncias Naturais deixando de lado

quaisquer ldquoaparatos cartesianosrdquo haja vista que o mental eacute fiacutesico

[O] fato de uma caracteriacutestica ser mental natildeo implica que natildeo seja fiacutesica o fato

de uma caracteriacutestica ser fiacutesica natildeo implica que natildeo seja mental Revisitando

Descartes [] poderiacuteamos dizer natildeo somente ldquopenso logo existordquo e ldquosou um ser

pensanterdquo mas tambeacutem sou um ser pensante portanto sou um ser fiacutesicordquo

[]

Minhas proacuteprias concepccedilotildees natildeo se encaixam em nenhum dos roacutetulos

tradicionais mas para muitos filoacutesofos a ideia de que algueacutem possa defender

um ponto de vista que natildeo se encaixe nessas categorias parece incompreensiacutevel

Pior ainda talvez haacute diversos substantivos e verbos que parecem ter significados

claros como se realmente apresentassem objetos e atividades bem definidos ndash

ldquomenterdquo ldquoegordquo e ldquointrospecccedilatildeordquo satildeo exemplos oacutebvios

A concepccedilatildeo positiva de Searle (1980b p 455) ndash por ele denominada

de naturalismo bioloacutegico ndash surgiu pela primeira vez quando rebateu as

criacuteticas feitas a Mentes Ceacuterebros e Programas no artigo Intencionalidade

Intriacutenseca ocasiatildeo na qual comparou os estados mentais agraves propriedades

18 Para mais informaccedilotildees sobre o importante papel da subjetividade no naturalismo bioloacutegico consultar Lima Filho (2017c)

Maxwell Morais de Lima Filho | 93

de um pneu Na ocasiatildeo seu principal alvo era atacar o funcionalismo

computacional ao apontar as limitaccedilotildees intriacutensecas ao programa de

computador ao mesmo tempo em que destacava a relevacircncia do estofo

bioloacutegico para a mentalidade No entanto tambeacutem vislumbramos nesse

texto o seu repuacutedio ao irrealismo do mental propugnado pelos fisicalistas

redutivos e eliminativos e ao caraacuteter natildeo fiacutesico resguardado pelos dualistas

de substacircncia e de propriedade Natildeo consiste nenhuma surpresa que a

estrateacutegia ofensiva de Searle tenha gerado contra-ataques dos mais

variados vieses dualistas e fisicalistas os quais o impulsionaram em parte

a desenvolver cada vez mais a sua posiccedilatildeo ancorada em dois grandes

compromissos teoacutericos a saber a subjetividade e a biologicidade do

mental Os fenocircmenos mentais ndash ontologicamente subjetivos ndash satildeo

bioloacutegicos tanto na acepccedilatildeo evolutiva quanto na funcional De acordo com

esta uacuteltima os processos neurofisioloacutegicos causam e sustentam a

mentalidade a qual surgiu historicamente devido aos processos evolutivos

que atuaram sobre linhagens animais no decorrer das eras geoloacutegicas19

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5

Da Natureza Humana

As Perspectivas Epistemoloacutegicas

de Piaget Chomsky e Foucault

Argus Romero Abreu de Morais 1

Consideraccedilotildees Iniciais

Em 1971 convidados pelo apresentador holandecircs Fons Elders para

um debate televisivo Noam Chomsky e Michel Foucault aceitaram

esclarecer suas perspectivas a respeito dos conceitos de natureza humana

justiccedila e poder (CHOMSKY 2014) Poucos anos apoacutes em 1975 Jean Piaget

e Noam Chomsky se reuniram com renomados pesquisadores do mundo

na Abadia de Royaumont na Franccedila para discutirem as questotildees

vinculadas agrave aquisiccedilatildeo e agrave aprendizagem da linguagem humana

(PIATELLI-PALMARINI 1983)

A nosso ver aproximar tais debates torna-se interessante por

permitir elucidar os pressupostos epistemoloacutegicos de autores acadecircmicos

tatildeo relevantes do seacuteculo XX e com isso demarcar as linhas de tensatildeo entre

seus campos e as escolhas teoacutericas das suas pesquisas Nesse sentido no

presente trabalho Chomsky funciona como uma espeacutecie de elo virtual

entre Foucault e Piaget os quais natildeo produziram um debate particular

Natildeo obstante entendemos que os apontamentos feitos por estes dois

1 Professor colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Cultura Educaccedilatildeo e Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGCELUESB) e poacutes-doutorando no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Teoria Literaacuteria e Criacutetica da Cultura da Universidade Federal de Satildeo Joatildeo del-Rei (PROMELUFSJ) Email argusromeroyahoocombr

Argus Romero Abreu de Morais | 99

uacuteltimos teoacutericos durante a defesa de seus pilares conceituais permitem

contrastaacute-los sendo marcante a distinccedilatildeo entre ambos no que diz respeito

agrave gecircnese do conhecimento humano nos indiviacuteduos por consequecircncia agrave

Histoacuteria das Ciecircncias

Assim pretendemos colocar face a face os vieses da autorregulaccedilatildeo em

Piaget do inatismo da linguagem em Chomsky e de um certo empirismo

histoacuterico em Foucault Evidentemente cada um desses pensadores natildeo soacute

possui uma enorme produccedilatildeo teoacuterica sobre distintos temas acadecircmicos

como tambeacutem apresentou mudanccedilas de perspectiva nas deacutecadas seguintes

Apesar disso entendemos que os fundamentos epistecircmicos das suas aacutereas de

pesquisa natildeo se alteraram significativamente ao longo do tempo garantindo

certa coerecircncia aos seus projetos de estudo

Natildeo eacute nosso intuito portanto em um breve texto dar conta da

amplitude das contribuiccedilotildees desses pensadores seja pela nossa incapacidade

de cumprir com tal propoacutesito seja pelos limites impostos pelo nosso recorte

investigativo o qual prioriza avaliar os argumentos dos trecircs estudiosos em

torno da existecircncia ou natildeo de uma natureza humana Cumpre-nos destacar

que nos vinculamos agrave epistemologia da Anaacutelise do Discurso Francesa (AD) a

qual pressupotildee a determinaccedilatildeo histoacuterica das formaccedilotildees sociais humanas

inclusive a do proacuteprio pensamento Foucault eacute considerado um dos

principais expoentes desse campo de estudos sendo por conseguinte a

partir do seu olhar discursivo que concluiremos o presente escrito tecendo

comentaacuterios criacuteticos aos demais domiacutenios Antes disso apresentaremos a

perspectiva piagetiana em seguida a abordagem chomskyana

A Funccedilatildeo Sensoacuterio-Motora como Fundamento da Formaccedilatildeo da Linguagem2

Eacute verdade que a auto-regulaccedilatildeo eacute em parte inata mas a tiacutetulo mais de

funcionamento do que de estrutura

Jean Piaget

2 Almejando tornar o texto mais fluido colocaremos as citaccedilotildees diretas ndash ipsis litteris ndash que fundamentam os nossos raciociacutenios em notas de rodapeacute Ressaltamos todavia que utilizaremos um nuacutemero expressivo de notas permitindo o acesso do leitor aos argumentos dos proacuteprios debatedoresautores Esperamos com isso possibilitar o esclarecimento e aprofundamento teoacutericos que o tema exige

100 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Segundo Piaget os estudos que definem a aprendizagem humana

pela associaccedilatildeo entre percepccedilotildees dos indiviacuteduos e objetos se mostraram

ineficientes na tentativa de explicar a formaccedilatildeo do conhecimento humano

(criacutetica ao meacutetodo empirista) Para o epistemoacutelogo esse modelo teoacuterico

tem por principal falha natildeo considerar a atividade do sujeito na construccedilatildeo

do proacuteprio conhecimento engendrado por dois processos

interdependentes o processo de assimilaccedilatildeo no qual os indiviacuteduos

assimilariam novos objetos a esquemas previamente conformados nas

suas estruturas cognitivas e no sentido inverso o processo de

acomodaccedilatildeo no qual os antigos esquemas se acomodam de acordo com as

particularidades dos novos objetos produzindo com isso novos esquemas

(PIATELLI-PALMARINI 1983)3

Busca-se assim definir os constructos cognitivos como frutos de

uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o ser e o mundo desconstruindo a

necessidade de um a priori universal inato ndash criacutetica ao Gerativismo ndash em

prol de um pensamento dinacircmicosistecircmico Desse modo a um soacute tempo

Piaget renega o empreendimento empirista segundo o qual o sujeito se

ajusta ao mundo pelas experiecircncias (o sujeito seria uma taacutebula rasa) e

descarta a empreitada gerativista chomskyana na qual a forma do sujeito

eacute preacutevia agrave experiecircncia e agrave forma do mundo (PIATELLI-PALMARINI 1983)4

Consoante Piaget apenas o funcionamento da inteligecircncia humana eacute

hereditaacuterio sendo essa definida como o mecanismo capaz de gerar

3 Ao criticar o Empirismo Behaviorista campo teoacuterico tambeacutem renegado por Chomsky Piaget destaca ldquoNenhum conhecimento se deve somente agraves percepccedilotildees pois estas satildeo sempre dirigidas e enquadradas por esquemas de accedilotildees O conhecimento procede pois da accedilatildeo e toda a accedilatildeo que se repete ou se generaliza por aplicaccedilatildeo a novos objetos gera por isso mesmo um lsquoesquemarsquo ou seja uma espeacutecie de conceito praacutexico A ligaccedilatildeo fundamental constitutiva de todo o conhecimento natildeo eacute portanto uma simples associaccedilatildeo entre objetos mas a assimilaccedilatildeo dos objetos a esquemas desse indiviacuteduo Esse processo prolonga aliaacutes diversas formas de lsquoassimilaccedilotildeesrsquo bioloacutegicas das quais a assimilaccedilatildeo cognitiva eacute um caso particular enquanto processo funcional de integraccedilatildeo Em contrapartida quando os objetos satildeo assimilados aos esquemas de accedilatildeo haacute a obrigaccedilatildeo de uma acomodaccedilatildeo agraves particularidades desses objetos (cf os lsquoaccommodatsrsquo fenotiacutepicos em biologia) e essa acomodaccedilatildeo resulta de dados exteriores logo da experiecircnciardquo (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor)

4No dizer de Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor) ldquoCinquenta anos de experiecircncias ensinaram-nos que natildeo existem conhecimentos resultantes de um simples registro de observaccedilotildees Mas tampouco existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas soacute o funcionamento da inteligecircncia eacute hereditaacuterio e soacute gera estruturas mediante uma organizaccedilatildeo de accedilotildees sucessivas exercidas sobre objetosrdquo

Argus Romero Abreu de Morais | 101

continuamente estruturas conceituais atraveacutes de operaccedilotildees sobre os

objetos A seu ver assim como a Psicanaacutelise de Jung o projeto gerativista

se equivoca ao confundir as estruturas gerais do espiacuterito com a existecircncia

de estruturas inatas base da suposiccedilatildeo da linguagem como faculdade

hereditaacuteria alocada no ceacuterebro humano Segundo aponta eacute possiacutevel a

existecircncia das primeiras sem que haja as segundas

Definida como construtivista a Epistemologia Geneacutetica piagetiana

expotildee aleacutem do argumento da confusatildeo entre universalidade e inatismo

dois motivos principais para negar a hipoacutetese nativista do Gerativismo

primeiro na forma como estaacute posta a Gramaacutetica Universal (GU) supotildee

que a linguagem humana seria resultado de mutaccedilotildees exclusivas agrave espeacutecie

humana sem que consiga contudo dar explicaccedilotildees plausiacuteveis sobre o(s)

porquecirc(s) desse privileacutegio segundo conseguir-se-ia chegar agraves mesmas

conclusotildees de existecircncia de estruturas universais caso se concebesse a

linguagem como produto de um processo de autorregulaccedilatildeo dispensando

com isso os problemas dos universais modulares de Chomsky (PIATELLI-

PALMARINI 1983)

A autorregulaccedilatildeo funciona portanto como o conceito-chave do

Construtivismo na medida em que eacute o mecanismo responsaacutevel tanto pela

construccedilatildeo humana do conhecimento quanto pela organizaccedilatildeo da

realidade natildeo caoacutetica do mundo Ambos tecircm em comum o fato de se

disporem em forma loacutegico-matemaacutetica Ademais diferentemente da

recursividade algoriacutetmica tal como proposta por Chomsky o pensamento

sistecircmico de Piaget sugere que o retorno agraves estruturas cognitivas de base

natildeo ocorre sobre as regras iniciais como se os componentes primeiros

fossem estaacuteveis na relaccedilatildeo entre o ser e o mundo5

5 Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 83) expressa do seguinte modo seu pensamento sistecircmico ldquoA auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio do organismo limita-se em geral e normalmente a conservar um certo estado de equiliacutebrio e em caso de desvio ou de nova formaccedilatildeo a reconduzi-lo ao estado inicial Enquanto que pelo contraacuterio a auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio dos comportamentos impele incessantemente o organismo o sujeito se se trata de comportamento cognitivo para novos avanccedilos O organismo fisioloacutegico natildeo tem razatildeo de espeacutecie alguma para variar [] A conservaccedilatildeo eacute a norma suprema para o equiliacutebrio fisioloacutegico Ao passo que pelo contraacuterio quando se aborda o terreno do comportamento este persegue dois objetivos o primeiro eacute a extensatildeo do meio superar o meio no qual o organismo estaacute atualmente mergulhado por exploraccedilotildees e pesquisas em novos meios e o segundo o reforccedilo dos poderes do organismo sobre o meiordquo

102 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Para Piaget haacute a superaccedilatildeo contiacutenua do modelo antecedente pelos

modelos subsequentes na mente da crianccedila que embora mais complexos

estavam presentes no anterior como possibilidade ndash latente ndash de

existecircncia e que quando concretizados superam o anterior englobando-

o a saber sensoacuterio-motor de 0 a 1824 meses periacuteodo que antecede a

proacutepria linguagem preacute-operatoacuterio de 162 anos a 78 anos periacuteodo

marcado pelo desenvolvimento das representaccedilotildeessiacutembolos o

operatoacuterio-concreto de 78 anos a 1112 anos periacuteodo da construccedilatildeo

loacutegica e por fim operatoacuterio-formal de 1112 anos em diante periacuteodo em

que a crianccedila eacute capaz de raciociacutenios hipoteacutetico-dedutivos (PIATELLI-

PALMARINI 1983)6

Logo todo sistema se torna subsistema de um novo sistema isto eacute uma

subestrutura da nova estrutura organizadora seguindo um movimento em

direccedilatildeo agrave maior complexidade No caso do pensamento humano quanto

mais proacuteximo da organizaccedilatildeo loacutegica do real melhor o sistema recriado pelas

suas estruturas intelectivas Nesse vieacutes supotildee-se que o ceacuterebro humano seja

capaz de reproduzir internamente a mesma complexidade que o mundo

produz de forma dessubjetivada externamente Isto eacute concluiacutedas as etapas

de amadurecimento cognitivo no indiviacuteduo este seria capaz de reproduzir

ainda que inconscientemente o mesmo niacutevel de complexidade das estruturas

do mundo na forma de conhecimento (matemaacutetico por excelecircncia)

(PIATELLI-PALMARINI 1983)7

Destarte conforme o epistemoacutelogo suiacuteccedilo tanto o pensamento

humano como as ideias cientiacuteficas parecem funcionar por meio da

6 No que diz respeitos agraves etapas de maturaccedilatildeo do conhecimento humano Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 40) especifica ldquoEm primeiro lugar um periacuteodo sensoacuterio-motor anterior agrave linguagem vecirc constituir-se uma loacutegica das accedilotildees (relaccedilotildees de ordem concatenaccedilatildeo de esquemas intersecccedilotildees estabelecimentos de correspondecircncia etc) fecunda em descobertas e mesmo invenccedilotildees (objetos permanentes organizaccedilatildeo do espaccedilo causalidade etc) Dos 2 aos 7 anos haacute uma conceptualizaccedilatildeo das accedilotildees logo representaccedilotildees com descoberta de funccedilotildees entre as co-variaccedilotildees de fenocircmenos identidades etc mas ainda sem operaccedilotildees reversiacuteveis nem conservaccedilotildees Estas duas uacuteltimas constituem-se ao niacutevel das operaccedilotildees concretas (7-10 anos) com lsquoagrupamentosrsquo logicamente estruturados mas ainda ligados agrave manipulaccedilatildeo de objetos Finalmente por volta dos 11-12 anos constitui-se uma loacutegica proposicional hipoteacutetico-dedutiva sem combinatoacuterio lsquoconjunto de partesrsquo grupos de quaternidade etcrdquo

7 A respeito da relaccedilatildeo entre conhecimento e realidade Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 81) assevera ldquoRecuso-me terminantemente por minha parte a pensar que as estruturas matemaacutetico-loacutegicas tivessem uma origem aleatoacuteria elas nada tecircm de fortuito natildeo eacute por seleccedilotildees de sobrevivecircncia que puderam constituir-se mas por uma adequaccedilatildeo propriamente dita e detalhada agrave realidaderdquo

Argus Romero Abreu de Morais | 103

acumulaccedilatildeo de saberes No primeiro caso atraveacutes da capacidade loacutegico-

matemaacutetica ndash capacidade racional ndash de interagir com o ambiente os

indiviacuteduos adquirem estruturas de comportamento ou morfoloacutegicas via

fenoacutetipo que ainda desprovidas de hereditariedade passam a modificar o

proacuteprio genoma humano de modo que a mudanccedila nos niacuteveis inferiores

incorre por consequecircncia nos niacuteveis superiores do meio epigeneacutetico Essa

aquisiccedilatildeo de ldquofenocoacutepiasrdquo seria de acordo com Piaget a responsaacutevel por

selecionar as variaccedilotildees ou mutaccedilotildees no proacuteprio genoma passando a serem

hereditaacuterias Isso explicaria no seu dizer o modo pelo qual a proacutepria

linguagem teria evoluiacutedo na espeacutecie humana8

No segundo caso pela forma como a realidade parece se organizar

por leis que em uacuteltima instacircncia seguem a loacutegica matemaacutetica Associada

agrave pureza das formas a praacutetica cientiacutefica seria a principal responsaacutevel por

intermediar a relaccedilatildeo entre o homem e o mundo criando instrumentais

teoacutericos que possam fazer com que aquele compreenda e transforme o seu

habitat Ademais como vimos o processo de desenvolvimento da

linguagem na crianccedila repetiria com alta semelhanccedila a evoluccedilatildeo das

proacuteprias descobertas cientiacuteficas (PIATELLI-PALMARINI 1983)9

Ao sugerir uma oacutetica sistecircmica para a construccedilatildeo do conhecimento

Piaget avanccedila agrave sua maneira na proposta de um sujeito processual

dinacircmico em detrimento da imutabilidade do sujeito cartesiano em

8 O conceito de fenocoacutepia eacute um dos principais vetores do debate Piaget-Chomsky Piaget (apud PIATELLI-

PALMARINI 1983 p 81-2) explica tal categoria da seguinte forma ldquoFenocoacutepia eacute um processo bioloacutegico em que certos comportamentos (eacute sobretudo vaacutelido no domiacutenio dos comportamentos) ou entatildeo uma certa forma ou estrutura morfoloacutegica satildeo primeiramente adquiridos pelo fenoacutetipo mas sem hereditariedade O fenoacutetipo pelo contraacuterio modifica o meio interior e modifica os niacuteveis superiores pelo meio epigeneacutetico e entatildeo as variaccedilotildees ou as mutaccedilotildees que podem produzir-se no genoma seratildeo selecionadas natildeo pelo meio exterior mas por esse meio interior ou epigeneacutetico que vai canalizaacute-las na mesma direccedilatildeo da conduta jaacute adquirida pelo fenoacutetipo por outras palavras haveria uma reconstruccedilatildeo geneacutetica ou gecircnica de uma aquisiccedilatildeo feita pelo fenoacutetipordquo

9 Sobre o tema Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 48) conclui ldquoPara periacuteodos mais vastos da histoacuteria eacute evidente que natildeo se encontra um paralelismo estaacutegio por estaacutegio mas eacute possiacutevel encontrar mecanismos comuns [] Ora deparamo-nos com um processo anaacutelogo [agrave histoacuteria da geometria ocidental] embora em escala reduzida nas crianccedilas as quais comeccedilam naturalmente pelo intrafigural mas descobrem por volta dos 7 anos que para determinar um ponto num plano natildeo basta uma medida sendo precisas duas que estejam dispostas de maneira ortogonal A essa etapa lsquointerfiguralrsquo (necessaacuteria tambeacutem para a construccedilatildeo de horizontais) sucede aquela que podemos denominar lsquotransfiguralrsquo em que as propriedades a descobrir natildeo podem ler-se numa uacutenica figura mas requerem uma deduccedilatildeo e um caacutelculo as curvas mecacircnicas os movimentos relativos etcrdquo

104 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Chomsky10 o qual antecede a experiecircncia Desse modo por um lado sua

perspectiva de geraccedilatildeo da funccedilatildeo simboacutelica da linguagem a partir dos

significantes sensoacuterio-motores ndash associaccedilatildeo de objetos a esquemas de accedilatildeo

ndash o opotildee ao modo pelo qual Chomsky entende o ldquonuacutecleo fixordquo da

linguagem por outro ao prescindir da opacidade do mundo em relaccedilatildeo agrave

linguagem bem como das rupturas e contradiccedilotildees advindas da histoacuteria

contrasta indiretamente sua teoria com a perspectiva do pensamento

sustentada por Foucault

O Algoritmo eacute o Sujeito

Se qualquer coisa fosse possiacutevel entatildeo nada seria possiacutevel

Noam Chomsky

Para Chomsky (1979) o ceacuterebro humano eacute arquitetado por diferentes

subsistemas inatos em interaccedilatildeo limitada os quais decorrem de distintos

processos evolutivos no Homo sapiens A linguagem seria uma dessas

faculdades isto eacute um subsistema da inteligecircncia humana que permite a

interface com o moacutedulo conceptual-intencional (semacircntico-pragmaacutetico) e

o perceptual-articulatoacuterio (sensoacuterio-motor) Sendo a forma da linguagem

restrita evolutivamente agraves formas representacionais possiacuteveis no ceacuterebro

humano pode-se adquirir apenas o que eacute biologicamente previsto11

Nesse vieacutes o empreendimento gerativista se baseia em pelo menos

trecircs hipoacuteteses importantes para as Ciecircncias Cognitivas em particular no

que toca agrave Linguiacutestica (I) a estrutura representacional do pensamento

humano eacute preacutevia a toda experiecircncia do corpo de modo que a linguagem

10 Sobre esse toacutepico Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 45) destaca ldquoMas o que os inatistas parecem esquecer de maneira surpreendente eacute que existe um mecanismo tatildeo geral quanto a hereditariedade e que num sentido ateacute a comanda eacute a auto-regulaccedilatildeo a qual desempenha um papel em todas as escalas desde o genoma e um papel tanto mais importante quanto mais se avizinha dos niacuteveis superiores e do comportamento A auto-regulaccedilatildeo cujas raiacutezes satildeo evidentemente orgacircnicas eacute assim comum aos processos vitais e mentais e suas accedilotildees tecircm aleacutem disso a grande vantagem de ser diretamente controlaacuteveis portanto eacute nessa direccedilatildeo e natildeo na da simples hereditariedade que conveacutem buscar a explicaccedilatildeo bioloacutegica das construccedilotildees cognitivas tanto mais que pelo jogo das regulaccedilotildees de regulaccedilotildees a auto-regulaccedilatildeo eacute por sua proacutepria natureza eminentemente construtivista (e dialeacutetica)rdquo

11 Para aprofundar essas questotildees sugerimos a leitura de Chomsky (2006 2008) e de Berwick e Chomsky (2017) Utilizaremos algumas passagens dessas obras no presente texto

Argus Romero Abreu de Morais | 105

deve ser explicada com relaccedilatildeo agrave heranccedila bioloacutegica da espeacutecie humana (II)

a linguagem humana eacute constituiacuteda por um conjunto de algoritmos ndash regras

de formaccedilatildeo ndash implementados no nosso ceacuterebro os quais fundariam o

ldquoestado inicial S0 geneticamente determinadordquo12 tambeacutem conhecido como

Gramaacutetica Universal (GU) a qual conteacutem os princiacutepios pelos quais pode-

se adquirir uma dada liacutengua natural ndash condicionada agrave experiecircncia humana

ndash ateacute chegar a um ldquoestado estacionaacuteriordquo (steady state) (III) a Linguiacutestica

deve se formalizar de modo a explicar como um indiviacuteduo eacute capaz de gerar

um nuacutemero infinito de frases em sua liacutengua vernaacutecula a partir de um

conjunto limitado de regras sintaacuteticas (infinitude discreta) em vista disso

a teoria chomskyana eacute chamada de Gramaacutetica Gerativa13

Se tanto Chomsky como Piaget parecem concordar com a existecircncia

de um ldquonuacutecleo fixordquo da linguagem o linguista norte-americano se afasta

do bioacutelogo suiacuteccedilo ao responder as duas principais criacuteticas piagetianas ao

seu modelo teoacuterico quais sejam (a) a inexplicabilidade das mutaccedilotildees na

espeacutecie humana responsaacuteveis por lhe dotar dessas estruturas inatas (b) a

consideraccedilatildeo da inteligecircncia sensoacuterio-motora na formaccedilatildeo da inteligecircncia

simboacutelica seria tatildeo eficiente quanto a hipoacutetese do inatismo na explicaccedilatildeo

da formaccedilatildeo desse ldquonuacutecleo fixordquo

12 Consoante Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoO desenvolvimento dessa pessoa (em um ambiente natural) efetua-se a partir do estado inicial S0 geneticamente determinado passa por uma sequecircncia de estados S1 S2 e atinge finalmente um lsquoestado estacionaacuteriorsquo (steady state) S8 o qual soacute parece entatildeo modificar-se de maneira secundaacuteria (digamos por acreacutescimo de vocabulaacuterio novo) O estado estacionaacuterio eacute alcanccedilado numa idade relativamente fixa aparentemente na puberdade ou um pouco antesrdquo

13 De acordo com Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoEle [investigador independente] abordaraacute ou deveria abordar o estudo das estruturas cognitivas como eacute o caso da linguagem humana de uma forma anaacuteloga agravequela como estudaria um oacutergatildeo do corpo ndash o olho ou o coraccedilatildeo por exemplo ndash a fim de determinar (I) as suas caracteriacutesticas num dado indiviacuteduo (II) suas propriedades gerais invariantes de uma espeacutecie agrave outra abstraccedilatildeo feita de todo o deacuteficit flagrante (III) seu lugar num sistema de estruturas desse tipo (IV) o curso do seu desenvolvimento no indiviacuteduo em questatildeo (V) o fundamento geneticamente determinado desse desenvolvimento (VI) os fatores que deram origem a esse oacutergatildeo no decorrer da evoluccedilatildeordquo No que concerne aos aspectos matemaacuteticos dos estudos da mente humana Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 2014 p 16) complementa ldquoEntendo por isso [teoria matemaacutetica da mente] simplesmente uma teoria abstrata articulada com precisatildeo e formulada com clareza que tenha consequecircncias empiacutericas que nos permita saber se a teoria estaacute certa ou errada ou se estaacute no caminho errado ou certo E que ao mesmo tempo tenha as propriedades da ciecircncia matemaacutetica isto eacute as propriedades do rigor e da precisatildeo e uma estrutura que nos permita deduzir conclusotildees a partir de hipoacuteteses e assim por dianterdquo Por fim Berwick e Chomsky (2017 p 108) esclarecem o que entendem por infinitude discreta ldquoDiscreta porque haacute frases de cinco palavras e frases de seis palavras mas nenhuma frase de cinco palavras e meia infinita porque natildeo haacute [virtualmente] uma frase que seja a frase mais longa da liacutenguardquo

106 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A esse respeito Chomsky responde que apesar de haver brechas na

teoria evolutiva no que concerne ao entendimento da seleccedilatildeo natural em

relaccedilatildeo ao corpo humano natildeo haacute outra compreensatildeo possiacutevel para

considerar a constituiccedilatildeo dos seus oacutergatildeos Nesse sentido considera-se que

a estrutura interna dos distintos oacutergatildeos do organismo bem como seu

desenvolvimento e funcionamento satildeo independentes das experiecircncias

ontogeneacuteticas do ser Isso o impede de concordar com a hipoacutetese das

fenocoacutepias a qual sugere que estruturas adquiridas poderiam ser

absorvidas pelo genoma

Como universalizar no desenvolvimento dos indiviacuteduos algo

adquirido Essa eacute uma questatildeo que de acordo com Chomsky natildeo pode

ser resolvida pelo mecanismo construtivo da autorregulaccedilatildeo o qual natildeo

limitaria o nuacutemero de estados possiacuteveis na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro A

soluccedilatildeo seria considerar que a mente se reduz causalmente ao ceacuterebro

Ademais a derivaccedilatildeo do sistema simboacutelico do estaacutegio sensoacuterio-motor na

crianccedila e a sua estabilizaccedilatildeo via processo de autorregulaccedilatildeo seriam

insuficientes para explicar o caraacuteter especiacutefico desse moacutedulo da

linguagem suas regras limites e relaccedilotildees com os demais aparatos da

inteligecircncia humana14

Chomsky (1977) relembra o curioso fato de tanto ele quanto Foucault

terem conseguido aproximar as suas opiniotildees acerca do tema da ldquonatureza

14 No dizer de Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 51) ldquoSe eacute verdade que ignoramos completamente como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias dotaram a espeacutecie humana da capacidade especiacutefica de aprender uma linguagem humana eacute igualmente verdadeiro que tambeacutem ignoramos como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias conduziram ao desenvolvimento das estruturas particulares do olho dos mamiacuteferos ou do coacutertex cerebral Natildeo concluiacutemos portanto

que essas estruturas em sua natureza fundamental no indiviacuteduo que chegou agrave maturidade satildeo determinadas por interaccedilatildeo com o meio ambiente []rdquo Berwick e Chomsky (2017 p 104 Itaacutelico dos autores) detecircm-se exclusivamente sobre o fato de a linguagem humana ser exclusiva agrave nossa espeacutecie e de sua breve existecircncia ser possiacutevel dentro de uma teoria evolucionista que considere aleacutem dos processos seletivos e adaptativos claacutessicos as mutaccedilotildees e os efeitos estocaacutesticos da Biologia Moderna ldquoDe maneira completamente desconhecida nossos antepassados desenvolveram conceitos humanos Em algum momento no passado muito recente ao que parece algum tempo antes de 80 mil anos atraacutes se pudermos julgar a partir de nossos representantes simboacutelicos indiviacuteduos em um pequeno grupo de hominiacutedeos na Aacutefrica Oriental sofreram uma pequena mudanccedila bioloacutegica que favoreceu o surgimento da operaccedilatildeo Merge ndash uma operaccedilatildeo que toma conceitos humanos como aacutetomos computacionais [leacutexico] e produz expressotildees estruturadas que sistematicamente interpretadas pelo sistema conceitual fornecem uma rica linguagem do pensamento [] A inovaccedilatildeo teve vantagens oacutebvias e se disseminou pelo pequeno grupo Em algum estaacutegio posterior a linguagem do pensamento interna estava ligada ao sistema sensoacuterio-motor []rdquo De acordo com essa abordagem a linguagem emerge como ldquoferramentardquo para o pensamento (foco na internalizaccedilatildeo) e natildeo para a comunicaccedilatildeo (foco na externalizaccedilatildeo) garantindo agravequeles que a possuem as vantagens da abstraccedilatildeo inferecircncia interpretaccedilatildeo organizaccedilatildeo da accedilatildeo e do planejamento em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que natildeo a possuem

Argus Romero Abreu de Morais | 107

humanardquo enquanto que o mesmo natildeo ocorreu com relaccedilatildeo agravequele

relacionado ao ldquoaspecto poliacutetico do saberrdquo A seu ver isso pode ser

explicado pela seguinte metaacutefora ldquoQuanto ao conceito de natureza

humana pareceu-me que cavaacutevamos a mesma montanha a partir de

direccedilotildees opostasrdquo (CHOMSKY 1977 p 78-9)

Embora seja difiacutecil supor um consenso entre o pesquisador norte-

americano defensor do inatismo da linguagem e o filoacutesofo francecircs um

dos principais nomes da empreitada filosoacutefica do ldquodescentramento do

sujeitordquo o primeiro supotildee que no fim das contas isso eacute possiacutevel pelo fato

de eles se deterem sobre as mesmas questotildees embora partindo de pontos

diferentes Para Chomsky (1977) a pesquisa cientiacutefica eacute devedora de dois

aspectos 1) as propriedades constituintes do espiacuterito e 2) as condiccedilotildees

sociais e intelectuais que possibilitam a emergecircncia e a consolidaccedilatildeo dos

saberes em um dado periacuteodo histoacuterico Natildeo se trataria de excluir um ou

outro pois ambos estatildeo relacionados Ele se deteria sobre o primeiro

abordando os processos de aquisiccedilatildeo e de desenvolvimento da linguagem

nos indiviacuteduos enquanto Foucault priorizaria a anaacutelise das condiccedilotildees

histoacutericas que possibilitam a conformaccedilatildeo social do conhecimento em

meio agraves relaccedilotildees de saber-poder (CHOMSKY 1977)15

15 Apesar de essa argumentaccedilatildeo parecer dirimir as distinccedilotildees epistemoloacutegicas dos autores via complementaridade o vieacutes chomskyano prioriza sempre os argumentos relacionados agraves estruturas cerebrais humanas em detrimento do vieacutes sociocultural foucaultiano inclusive quando tratam dos paracircmetros de cientificidade na produccedilatildeo do conhecimento humano como nos deixa entrever o seguinte raciociacutenio ldquoOra quando por felicidade acontece de algum aspecto da realidade conter a propriedade de uma das estruturas existentes em nossa mente entatildeo temos um

exemplo do conhecimento Isso quer dizer que afortunadamente a estrutura da nossa mente e a estrutura de algum aspecto da realidade coincidem o bastante para que possamos desenvolver um conhecimento inteligiacutevel Eacute exatamente essa limitaccedilatildeo inicial que existe em nossa mente quanto a certo tipo de conhecimento possiacutevel que proporciona a enorme riqueza e criatividade do conhecimento cientiacuteficordquo (CHOMSKY 2014 p 34) A ldquocoincidecircncia suficienterdquo entre as propriedades da mente e as propriedades do mundo parece curiosamente aproximar Chomsky de Piaget ou pelo menos do que o linguista norte-americano denomina de ldquodoutrinas do referencialismordquo abrindo a nosso ver uma possiacutevel contradiccedilatildeo teoacuterica com as seguintes passagens ldquoOs siacutembolos da linguagem humana e do pensamento satildeo muito diferentes [em relaccedilatildeo ao dos chimpanzeacutes] Seu uso natildeo estaacute automaticamente condicionado por estados emocionais e eles natildeo dependem de objetos independentes da mente ou eventos no mundo externo Para a linguagem e o pensamento ao que parece natildeo haacute uma relaccedilatildeo de referecircncia no sentido de Frege Peirce Tarski Quine e da filosofia contemporacircnea da linguagem e da menterdquo (BERWICK CHOMSKY 2017 p 102 Itaacutelico dos autores) Pouco depois Berwick e Chomsky (2017 p 103 Itaacutelicos dos autores) redefinem a referecircncia como um ldquoideal normativordquo para a ciecircncia ldquoPara a ciecircncia o conceito de referecircncia no sentido teacutecnico eacute um ideal normativo esperamos que os conceitos inventados de foacuteton ou de sintagma verbal se refiram a alguma coisa real dono mundo E eacute claro que o conceito de referecircncia eacute muito bom para o contexto para o qual foi inventado na loacutegica moderna para os sistemas formais em que a relaccedilatildeo de referecircncia eacute estipuladardquo Resta-nos perguntar qual o paracircmetro para

108 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Se Chomsky recorre a Descartes para estabelecer parte dos

fundamentos filosoacuteficos do Gerativismo notadamente no que concerne

ao entendimento da relaccedilatildeo entre sujeito cognoscente e objeto

cognosciacutevel16 pauta-se no corte copeacuternico-galileano da fundaccedilatildeo da ciecircncia

moderna para definir o modelo hipoteacutetico-dedutivo na pesquisa

linguiacutestica17 Logo o problema do conhecimento no sujeito eacute tambeacutem o

problema do que pode ser conhecido no mundo almejando compreender

tanto como as estruturas cognitivas humanas permitem o desvendamento

das estruturas da realidade vivenciada como a melhor forma de organizar

as primeiras no intuito de desenvolver programas investigativos

sistemaacuteticos Esse problema epistemoloacutegico eacute transversal a Piaget

Chomsky e Foucault em suas empreitadas teoacutericas de modo que eacute nesse

ponto em que suas distintas teorias sobre a formaccedilatildeo do ser tocam no

entendimento da Histoacuteria das Ciecircncias englobando a constituiccedilatildeo dos

campos disciplinares a validade das proposiccedilotildees cientiacuteficas e a

transformaccedilatildeo dos seus pressupostos ao longo do tempo

distinguir quais conceitos coincidem com a realidade e quais natildeo Quais os limites do imaginaacuterio humano em relaccedilatildeo ao simboacutelico e ao real

16 Nesse ponto Chomsky (2008 p 28) por vezes se ancora em Descartes Kant e Leibniz aproximando suas contribuiccedilotildees filosoacuteficas daquelas de Franccedilois Jacob e Jacques Monod ndash tambeacutem presentes no debate Piaget-Chomsky ndash para o entendimento da neurofisiologia da linguagem ldquoAcho que Monod estaacute certo ao comentar que lsquoessas descobertas [sobre um sistema analiacutetico primitivo em animais natildeo-humanos] apoiam num sentido novo as teses de Descartes e Kant contrariamente ao empirismo radical que tem dominado a ciecircncia por dois seacuteculos e que lanccedila suspeitas sobre qualquer hipoacutetese que postule a natureza inata das formas de conhecimentorsquo Ateacute onde sabemos os animais aprendem de acordo com um programa determinado geneticamente Natildeo haacute razatildeo para duvidar que isto seja verdade tambeacutem no que se refere lsquoagraves categorias fundamentais do conhecimento humanorsquo []rdquo Sobre o papel da experiecircncia na aprendizagem lembra ldquoQue a experiecircncia seja um requisito para colocar em funcionamento estruturas inatas ou para ativar um sistema de ideias inatas eacute algo admitido de modo bastante expliacutecito por Descartes

Leibniz e outros como parte de teorias que dificilmente podem ser consideradas lsquoempiristasrsquo []rdquo (CHOMSKY 2008 p 32-3) Em outra passagem afirma ldquoA ideia eacute lsquoinato agrave mentersquo no sentido em que Descartes argumentou que lsquoa ideia de um triacircngulo verdadeirorsquo eacute inatardquo (CHOMSKY 2008 p 48)

17 Sobre a importacircncia do corte copeacuternico-galileano para o estabelecimento do meacutetodo cientiacutefico moderno e consequentemente para a formaccedilatildeo de teorias cientiacuteficas Chomsky (2006 p 121) ressalta ldquoO que foi notaacutevel com respeito a Galileu e considerado muito ofensivo na eacutepoca foi que ele rejeitou muitos dados Ele estava disposto a dizer lsquoVejam se os dados refutam a teoria os dados provavelmente estatildeo erradosrsquo E os dados que descartou natildeo eram insignificantes Por exemplo ele defendia a tese de Copeacuternico mas natildeo era capaz de explicar porque os corpos natildeo se desprendiam da Terra se a Terra estaacute girando por que tudo natildeo estaacute solto no espaccedilordquo Em seguida complementa ldquoBem tudo isso eacute parte do que vocecirc poderia chamar de lsquoestilo galileanorsquo dedicaccedilatildeo agrave busca do entendimento natildeo apenas do registro O registro dos fenocircmenos em si eacute insignificante [] [] O reconhecimento de que esse eacute o caminho que a ciecircncia deve seguir se quisermos buscar o entendimento [] eacute um passo bastante grande e que tem muitas partes como a estrateacutegia galileana de descartar fenocircmenos recalcitrantes quando isso implicar um aumento de compreensatildeo a maior preocupaccedilatildeo poacutes-newtoniana com a inteligibilidade das teorias do que com o mundo e assim por dianterdquo (CHOMSKY 2006 p 125-6)

Argus Romero Abreu de Morais | 109

Para Foucault (CHOMSKY 2014) o problema da perspectiva

argumentativa de Chomsky (1977) estaria em natildeo reconhecer o fato de que

os lados da montanha natildeo podem ser separados de forma estanque pondo

o indiviacuteduo-sujeito de um lado e a constituiccedilatildeo histoacuterica do saber de

outro Isso ocasionaria um vieacutes metafiacutesico na explicaccedilatildeo da subjetividade

humana a qual poderia transformar sem ser transformada De certo

modo de tatildeo racionalista o vieacutes chomskyano entraria no campo do

idealismo rompendo com o vieacutes materialista da anaacutelise teoacuterica Tomando

por base esse raciociacutenio perguntamo-nos os domiacutenios histoacutericos do saber

possibilitam a constituiccedilatildeo e a emergecircncia das propriedades constituintes

do espiacuterito em um dado indiviacuteduo Passaremos a essa questatildeo na seccedilatildeo

seguinte

Pensamento e Discurso

E se o intelecto fosse uma estrutura complexa muacuteltipla e natildeo individual natildeo

lsquosujeita ao sujeitorsquo que produzisse resultados autecircnticos

Michel Foucault

O projeto filosoacutefico foucaultiano se interessa pelo entendimento

daquilo que ele chama de saber discursivo de modo a estabelecer uma

perspectiva da Histoacuteria das Ciecircncias ou das Ideias que natildeo se atenha agrave

criatividade centrada no indiviacuteduo no sujeito falante e no cientista assim

como na continuidade cumulativa do conhecimento Destarte o que se

estabelece como verdadeiro em cada periacuteodo histoacuterico depende da

maneira como uma dada sociedade organiza a validade ndash inclusive a

cientificidade ndash de determinados dizeres e por consequecircncia exclui a de

outros criando mecanismos sociais de controle do que se pode ou deve

dizer sobre um dado objeto

Para Foucault a liacutengua como sistema de signos criado socialmente

conforme definida por Saussure (2006) natildeo se reduz ao discurso

possuindo uma ordem simboacutelica proacutepria com sua loacutegica e suas regras

Consoante o linguista suiacuteccedilo a liacutengua seria uma forma sendo equivocado

110 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

consideraacute-la como uma substacircncia visto que como fato social ela

funciona tambeacutem como instituiccedilatildeo estabelecendo normas classificaccedilotildees e

nomenclaturas Ela seria aleacutem disso o principal sistema organizador da

linguagem humana sendo o signo a junccedilatildeo de um conceito (significado) a

uma imagem acuacutestica (significante) ambos psiacutequicos e em relaccedilatildeo

negativa com o mundo em si O valor de um dado signo se daacute por oposiccedilatildeo

aos demais maneira pela qual estabelece suas relaccedilotildees no sistema

linguiacutestico

Segundo Foucault (2008) a liacutengua natildeo se materializa no vaacutecuo pois

para que possa produzir sentido eacute recortada pela funccedilatildeo discursiva um

modo histoacuterico de organizaacute-la em zonas do conhecimento atribuindo-lhe

conceitos isto eacute objetos Liacutengua e discurso se atravessam pela funccedilatildeo

enunciativa18 constituindo os limites da cogniccedilatildeo humana Tratar-se-ia

portanto natildeo do pensamento do sujeito mas do pensaacutevel no sujeito natildeo

do dizer do falante mas do diziacutevel pelo falante os quais necessitam de preacute-

formaccedilotildees do saber histoacuterico para que possam constituir os estados

mentais e as possibilidades de fala nos indiviacuteduos19 Natildeo haacute assim

anterioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem sob pena de o

18 Nesta seccedilatildeo em alguns momentos remeteremos aos raciociacutenios de Foucault (2008) como forma de aprofundar sua perspectiva e instrumentais teoacutericos os quais natildeo satildeo trabalhados precisamente em Chomsky (2014) Sobre a singularidade do enunciado em relaccedilatildeo agraves demais categorias de estudos da linguagem Foucault (2008 p 103 Itaacutelicos nossos) esclarece ldquoUm enunciado natildeo tem diante de si (e numa espeacutecie de conversa) um correlato - ou uma ausecircncia de correlato assim como uma proposiccedilatildeo tem um referente (ou natildeo) ou como um nome proacuteprio designa um indiviacuteduo (ou ningueacutem) Estaacute antes ligado a um lsquoreferencialrsquo que natildeo eacute constituiacutedo de lsquocoisasrsquo de lsquofatosrsquo de lsquorealidadesrsquo ou de lsquoseresrsquo mas de leis de possibilidade de regras de existecircncia para os objetos que aiacute se encontram nomeados designados ou descritos para as relaccedilotildees que aiacute se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar a condiccedilatildeo o campo de emergecircncia a instacircncia de diferenciaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou dos

objetos dos estados de coisas e das relaccedilotildees que satildeo postas em jogo pelo proacuteprio enunciado define as possibilidades de aparecimento e de delimitaccedilatildeo do que daacute agrave frase seu sentido agrave proposiccedilatildeo seu valor de verdaderdquo

19 Sobre o assunto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 23 Itaacutelicos nossos) destaca ldquoQuando estudamos a histoacuteria do conhecimento percebemos que existem duas linhas gerais de anaacutelise de acordo com uma delas deve-se demonstrar como sob que condiccedilotildees e por que razotildees o intelecto se modifica no que diz respeito a suas regras formadoras sem passar por um lsquoinventorrsquo que descobre a verdade e de acordo com a outra deve-se demonstrar como o funcionamento das regras de um intelecto pode produzir num indiviacuteduo conhecimento novo e ineacutedito Aqui meu objetivo junta-se com meacutetodos imperfeitos e de uma forma bem inferior ao projeto do sr Chomsky ao explicar o fato de que algumas poucas regras ou elementos precisos totalidades desconhecidas que nunca foram nem produzidas podem ser elucidadas pelos indiviacuteduos Para resolver este problema o sr Chomsky tem de reintroduzir o dilema do sujeito no campo da anaacutelise gramatical Para resolver um problema anaacutelogo no campo da histoacuteria com o qual me encontro envolvido eacute preciso fazer o oposto de certo modo introduzir o ponto de vista do intelecto de suas regras de seus sistemas de suas transformaccedilotildees de totalidades no jogo do conhecimento individual Tanto em um como no outro caso o problema da criatividade natildeo pode ser resolvido da mesma maneira ou melhor natildeo pode ser formulado nos mesmos termos dada a condiccedilatildeo das disciplinas em cujo interior ele eacute colocadordquo

Argus Romero Abreu de Morais | 111

primeiro funcionar como uma instacircncia imaterial pura sem

temporalidade nem espacialidade

Sendo a linguagem uma produccedilatildeo social anterior ndash externalizada ndash

aos indiviacuteduos (seres orgacircnicos) deve-se considerar que as formas

simboacutelicas satildeo as responsaacuteveis pela instituiccedilatildeo do sujeito (aquele que

concretiza o enunciado) natildeo sendo os primeiros a dizerem o que dizem

natildeo satildeo tambeacutem o locus da gecircnese semacircntica Engajar-se numa situaccedilatildeo

de produccedilatildeo de sentidos eacute necessariamente posicionar-se ndash ou ser

posicionado ndash de acordo com as regras enunciativas vivenciadas e

institucionalizadas em sociedade Os enunciados representam as regras

historicizadas da forma de pensar e natildeo o revelar da intencionalidade e

do conhecimento em si por vezes tidos como a priori universais em

relaccedilatildeo agravequelas20 Logo como emergecircncia das organizaccedilotildees histoacutericas do

pensamento em distintas praacuteticas sociais o sujeito irrompe fragmentado

visto que sua internalidade decorre das descontinuidades dos saberes que

lhe atravessam natildeo sendo possiacutevel encontrar sua essecircncia nem na

interioridade do espiacuterito (FOUCAULT 2008) O sujeito torna-se portanto

uma instacircncia simboacutelica fugidia e clivada uma forma natildeo uma substacircncia

Agora pode-se compreender com mais clareza o motivo pelo qual

Foucault (CHOMSKY 2014) sustenta que a competecircncia natildeo eacute inata assim

como as regras do pensamento humano natildeo satildeo matemaacuteticas As

regularidades se devem aos sistemas enunciativos e estes satildeo submetidos

agraves contradiccedilotildees histoacutericas decorrentes das diversas formas de organizaccedilatildeo

dos homens em sociedade A proacutepria verdade sobre um objeto portanto

20 No que concerne agrave criatividade na linguagem conceito central na abordagem chomskyana Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 27 Itaacutelicos nossos) afirma ldquoO que de fato existe satildeo criaccedilotildees possiacuteveis inovaccedilotildees possiacuteveis Em termos de linguagem ou de conhecimento soacute se pode criar algo novo aplicando determinado nuacutemero de regras que definiratildeo a aceitabilidade ou a gramaticalidade dessas afirmaccedilotildees ou que definiratildeo no caso do conhecimento o caraacuteter cientiacutefico das afirmaccedilotildeesrdquo Em seguida acrescenta ldquoTambeacutem natildeo vejo problema em dizer que essas regras devem permitir que compreendamos aquilo que eacute falado ou pensado por esses indiviacuteduos Mas dizer que essas regulamentaccedilotildees estatildeo conectadas como precondiccedilatildeo da existecircncia agrave mente humana ou [agrave] sua natureza eacute algo difiacutecil de aceitar para mim Parece-me que antes de chegar a esse ponto ndash e seja como for estou me referindo apenas ao conhecimento ndash devemos reinseri-las no acircmbito de outras praacuteticas humanas como a economia a tecnologia a poliacutetica a sociologia que podem servir-lhes como condiccedilotildees de formaccedilatildeo de modelos de lugar de surgimento etc Gostaria de saber por que natildeo se pode descobrir o sistema de regularidade de limitaccedilatildeo ndash que torna a ciecircncia possiacutevel ndash em outro lugar mesmo fora da mente humana nos sistemas sociais nas relaccedilotildees de produccedilatildeo na luta de classes etcrdquo (FOUCAULT apud CHOMSKY 2014 p 36)

112 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

estaria submetida agrave temporalidade da histoacuteria e natildeo a uma descoberta

apesar da histoacuteria Assim em uacuteltima instacircncia a verdade estaria

condicionada agrave historicidade das ideias visto que a veracidade de um dado

referente decorre dos regimes de verdade os quais satildeo criados e

reproduzidos pelos grupos e instituiccedilotildees sociais bem como pelas relaccedilotildees

de forccedila instituiacutedas entre eles em cada sociedade (FOUCAULT 2008)

Para o filoacutesofo a proacutepria noccedilatildeo de ldquonatureza humanardquo natildeo se

configuraria como um conceito cientiacutefico funcionando mais como uma

espeacutecie de ldquoindicador epistemoloacutegicordquo que organiza distintas incursotildees

cientiacuteficas ao longo do seacuteculo XX21 Nesse sentido podemos entender que em

uma abordagem discursiva da relaccedilatildeo pensamentolinguagemmundo a

proacutepria forma deve ceder espaccedilo ao funcionamento22 Isso significa que

Foucault almeja desconstruir a psicologia interna dos sujeitos nos seguintes

termos constituiccedilatildeo social da linguagem (externalismo em oposiccedilatildeo ao

internalismoinatismo) rarr regras de enunciaccedilatildeo histoacutericas rarr

discursividades rarr pensamento rarr fala rarr condiccedilotildees de enunciaccedilatildeo rarr

sujeito do discurso (subjetividade imanente agrave linguagem em oposiccedilatildeo agrave

subjetividade transcendente) rarr praacutetica discursiva (FOUCAULT 2008)

A singularidade de uma produccedilatildeo discursiva decorre do fato de a

liacutengua(gem) por consequecircncia o proacuteprio pensamento soacute se materializar

em uma dada praacutetica constrangida por possibilidades que natildeo satildeo da sua

proacutepria ordem23 A infinidade de possibilidades para a realizaccedilatildeo de um

21 Ao comentar sobre a ldquonatureza humanardquo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 8 Itaacutelicos nossos) pondera ldquoNatildeo foi estudando a natureza humana que os linguistas descobriram as leis da mutaccedilatildeo consonantal que Freud descobriu

os princiacutepios da anaacutelise dos sonhos ou que os antropoacutelogos culturais descobriram as estruturas dos mitos Tenho a impressatildeo de que na histoacuteria do conhecimento a ideia de natureza humana desempenhou principalmente o papel de um indicador epistemoloacutegico [semelhante ao ideal normativo de Berwick e Chomsky (2017)] para designar certos tipos de discurso relacionados ou contraacuterios agrave teologia agrave biologia ou agrave histoacuteria Para mim seria difiacutecil ver nisso um conceito cientiacuteficordquo

22 Sobre esse aspecto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 36) pontua ldquoTalvez a diferenccedila entre o sr Chomsky e eu seja que quando fala de ciecircncia ele provavelmente estaacute pensando na organizaccedilatildeo formal do conhecimento enquanto eu estou falando do conhecimento em si ou seja eu penso no conteuacutedo de diversos conhecimentos que se encontram dispersos numa sociedade especiacutefica que permeiam a sociedade e que se afirmam como o fundamento da educaccedilatildeo das teorias das praacuteticas etcrdquo

23 Segundo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 21 Itaacutelicos nossos) ldquoO que me preocupa eacute a substituiccedilatildeo das transformaccedilotildees do intelecto pela histoacuteria das descobertas do conhecimento Desse modo eu tenho ao menos aparentemente uma atitude completamente diferente da do sr Chomsky a propoacutesito da criatividade porque para mim a questatildeo eacute eliminar o dilema do sujeito cognoscente enquanto para ele a questatildeo eacute permitir que o dilema do sujeito falante reapareccedila Poreacutem se ele o fez reaparecer se ele o descreveu eacute porque tem condiccedilotildees de fazecirc-lo Jaacute faz

Argus Romero Abreu de Morais | 113

enunciado natildeo representa a sua aleatoriedade pois esse gozaria de uma

caracteriacutestica semelhante agrave linguagem em Chomsky tendendo agrave raridade

das suas regras A diferenccedila entre o algoritmo no Gerativismo e a funccedilatildeo

enunciativa na perspectiva discursiva de Foucault eacute que esta uacuteltima se

constitui externamente ao espiacuterito sendo adquirida pelas experiecircncias em

sociedade Essa espeacutecie de empirismo histoacuterico natildeo se associa ao

comportamentalismo skinneriano dado que natildeo se funda na

transparecircncia da relaccedilatildeo entre o sistema perceptual e o mundo e na

consequente abstraccedilatildeo das relaccedilotildees dos objetos pela induccedilatildeo direta A

linguagem eacute opaca ndash indeterminada ndash em sua estrutura fundamental

sendo o sujeito sua consequecircncia

Eacute nesse ponto que Chomsky pode ter visto semelhanccedila entre a sua

abordagem e a de Foucault de modo que o filoacutesofo francecircs natildeo abandona

necessariamente as capacidades da inteligecircncia humana apenas se opotildee agrave

reduccedilatildeo dos conceitos a sistemas loacutegicos a priori no espiacuterito Ambos

parecem concordar que a linguagem funda um limite do possiacutevel no ser

considerando-a como instacircncia que aponta recursivamente para si mesma

e que demarca os estados finitos do dizer e de suas propriedades de

encadeamento diferentemente do sujeito tendencialmente onipotente

piagetiano e de seu ajuste em relaccedilatildeo agraves estruturas loacutegicas do mundo

Por fim podemos concluir que Chomsky e Foucault satildeo

antirreferencialistas na medida em que negam a relaccedilatildeo direta entre

palavra e objeto24 Opotildeem-se contudo na associaccedilatildeo ao estruturalismo

saussureano para o qual a liacutengua eacute uma entidade coletiva fundada em uma

espeacutecie de contrato social e natildeo um objeto bioloacutegico internalizado como

pretende o Gerativismo Em semelhanccedila com Piaget para Foucault

(2008) o sujeito natildeo eacute uma preacute-formaccedilatildeo do espiacuterito pois se constitui na

relaccedilatildeo dinacircmica entre estruturas simboacutelicas natildeo-inatas e experiecircncias em

sociedade embora segundo o estudioso francecircs a gecircnese deva ceder

muito tempo que os linguistas tecircm analisado a linguagem como um sistema que possui valor coletivo [dentre os quais Saussure] O intelecto como uma soma coletiva de regras que possibilitam que tais conhecimentos sejam produzidosem determinado periacuteodo mal foi estudado ateacute agorardquo

24 Ver aparente paradoxo em Chomsky na nota 15

114 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

espaccedilo agrave singularidade os universais semacircnticos agraves contingecircncias o

indiviacuteduo agrave subjetividade e a loacutegica matemaacutetica agrave dinacircmica histoacuterica Em

siacutentese Foucault sustenta que tanto o pensamento humano quanto os

sistemas de pensamento se organizam pela descontinuidade das ideias

frutos da emergecircncia de possiacuteveis histoacutericos e de horizontes de validade

dos conhecimentos25

Consideraccedilotildees Finais

Cada praacutetica teoacuterica constroacutei os seus limites e as suas potencialidades

dentro de um domiacutenio mais vasto dos saberes Tais diaacutelogos natildeo satildeo

desinteressados pois propotildeem construir ou desconstruir pontes do

conhecimento autorizar ou desautorizar o olhar do outro definir enfim

a si e ao outro enquanto campo do saber No que concerne a este trabalho

retomamos os debates entre Piaget Chomsky e Foucault para demonstrar

que a AD natildeo estaacute alheia aos aspectos cognitivos dos sujeitos apenas os

incorpora a uma perspectiva de historicidade radical da linguagem Pode-

25 No dizer de Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 32 Itaacutelicos do autor) ldquoExiste haacute muito tempo a ideia de que as ciecircncias e o conhecimento seguiam certa linha de lsquoprogressorsquo obedecendo ao princiacutepio de lsquocrescimentorsquo e ao princiacutepio de convergecircncia de todos os tipos de saber [] Cada nova versatildeo torna o conhecimento completamente diferente em suas funccedilotildees em sua organizaccedilatildeo em suas relaccedilotildees internas O que se tem aiacute eacute um princiacutepio de divergecircncia muito mais do que de crescimento Eu diria antes que existem muitas maneiras diferentes de tornar possiacuteveis simultaneamente alguns tipos de conhecimento Portanto existe sempre de certo ponto de vista um excesso de informaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos possiacuteveis sistemas em determinado periacuteodo o que faz com que eles sejam conhecidos dentro de seus limites mesmo em sua deficiecircncia o que significa que natildeo se consegue perceber sua criatividade E de outro ponto de vista o do historiador existe um excesso uma proliferaccedilatildeo de sistemas para uma pequena quantidade de informaccedilatildeo daiacute a ideia amplamente difundida de que o que determina o movimento na histoacuteria da

ciecircncia eacute a descoberta de novos fatosrdquo Eacute notoacuteria a proximidade entre a perspectiva foucaultiana de saber descontinuidade e acontecimento discursivo na Histoacuteria das Ciecircncias e aquela de paradigma descontinuidade e revoluccedilatildeo cientiacutefica desenvolvida por Kuhn (1998 [1962] p 20-1) como podemos notar a seguir ldquoPreocupado com o desenvolvimento cientiacutefico o historiador parece entatildeo ter duas tarefas principais De um lado deve determinar quando e por quem cada fato teoria ou lei cientiacutefica contemporacircnea foi descoberta ou inventada De outro lado deve explicar os amontoados de erros mitos e supersticcedilotildees que inibiram a acumulaccedilatildeo mais raacutepida dos elementos constituintes do moderno texto cientiacutefico [] Contudo nos uacuteltimos anos alguns historiadores estatildeo encontrando mais e mais dificuldades para preencher as funccedilotildees que lhe satildeo prescritas pelo conceito de desenvolvimento-por-acumulaccedilatildeo [] Talvez a ciecircncia natildeo se desenvolva pela acumulaccedilatildeo de descobertas e invenccedilotildees individuaisrdquo No capiacutetulo ldquoAs revoluccedilotildees como concepccedilotildees de mundordquo o fiacutesico acrescenta ldquoGuiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direccedilotildees E o que eacute ainda mais importante durante as revoluccedilotildees os cientistas veem coisas novas e diferentes quando empregando instrumentos familiares olham para os mesmos pontos jaacute examinados anteriormente Eacute como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta onde objetos familiares satildeo vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidosrdquo (KUHN 1998 p 145-6)

Argus Romero Abreu de Morais | 115

se com isso demonstrar os limites das abordagens logicizantes da relaccedilatildeo

pensamentolinguagemmundo aspecto transversal ao Construtivismo e

ao Gerativismo No sentido contraacuterio entendemos que a AD deve testar

seus fundamentos teoacutericos a partir da problemaacutetica da aquisiccedilatildeo da

linguagem a qual continuaremos a explorar em trabalhos futuros tendo

por foco avaliar os fundamentos epistemoloacutegicos de uma aquisiccedilatildeo do

discurso

Referecircncias

BERWICK R CHOMSKY N Por que apenas noacutes Linguagem e evoluccedilatildeo Satildeo Paulo

Editora Unesp 2017 [2016]

CHOMSKY N Diaacutelogos com Mitsuo Ronat Satildeo Paulo Cultrix 1977

_____ Sobre o minimalismo In CHOMSKY N Sobre natureza e linguagem Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006 [1999] p 113-200

_____ Problemas do conhecimento e da liberdade Rio de janeiro Record 2008 [1971]

_____ Natureza humana justiccedila vs poder o debate entre Chomsky e Foucault Satildeo

Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014 [1974]

FOUCAULT M A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2008

[1969]

KUHN T A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1998

[1962]

PIATELLI-PALMARINI M (Org) Teorias da linguagem teorias da aprendizagem o

debate entre Jean Piaget amp Noam Chomsky Satildeo Paulo Cultrix Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 1983 [1979]

SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Satildeo Paulo Cultrix 2006 [1916]

6

Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche

A Leitura de Guumlnter Abel

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa 1

O presente texto esboccedila uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento de

Nietzsche e a filosofia da mente no que diz respeito ao tratamento de

algumas questotildees centrais aiacute presentes ndash em particular o problema da

consciecircncia no debate entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo

entre processos fiacutesicos e mentais Para a compreensatildeo de tais questotildees o

pensamento nietzscheano ndash aqui mediado pela interpretaccedilatildeo de Guumlnter

Abel ndash mostra sua relevacircncia e atualidade no sentido de uma superaccedilatildeo

daquela dicotomia

Em ldquoConsciecircncia ndash linguagem ndash natureza a filosofia da mente em

Nietzscherdquo (ABEL 2005 p 1-41)2 Abel parte da anaacutelise de alguns aspectos

da investigaccedilatildeo atual em filosofia da mente para a partir de uma exegese

do corpus nietzscheano3 apontar para sua pertinecircncia e relevacircncia dentro

desse contexto As reflexotildees de Nietzsche acerca dos acircmbitos e das relaccedilotildees

entre consciecircncia natureza e linguagem ndash a limitaccedilatildeo do consciente pelo

natildeo consciente a formaccedilatildeo de conceitos e da memoacuteria a ideia de natureza

como conjunto complexo de forccedilas por exemplo ndash mostram a importacircncia

que essa triacuteade tem para o seu pensamento

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professor adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE)

2 Esse texto foi originalmente publicado nos Nietzsche-Studien 30 (2001) Berlim De Gruyter

3 Em particular trechos da Gaia ciecircncia e Aleacutem de bem e mal bem como fragmentos poacutestumos de 1884 a 1887 contidos em KSA nos vols X XI XII e XIII da ediccedilatildeo criacutetica de G Colli e M Montinari (1999a 1999b 1999c 1999d)

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 117

O foco da anaacutelise de Abel recai sobre o debate ndash renovado na

atualidade apoacutes a chamada ldquoreviravolta linguiacutesticardquo iniciada por

Wittgenstein e a ldquoredescoberta da consciecircnciardquo (ABEL 2005 p 199) pela

filosofia analiacutetica ndash entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo

entre processos fiacutesicos e mentais em particular os processos consciente-

mentais Segundo Abel de uma maneira geral duas posturas antagocircnicas

podem daqui emergir de um lado a tese do materialismo fisicalismo

monista a defender que estados e processos mentais satildeo tatildeo somente

fenocircmenos da mateacuteria de outro a tese do mentalismo dualista que

defende a irredutibilidade daqueles a estes Ambas as posturas no entanto

por suas proacuteprias limitaccedilotildees natildeo poderiam ser superadas uma pela outra

Precisamente pela ldquoarmaccedilatildeo conceitual que implica ou tem como

consequecircncia essa natildeo resoluccedilatildeordquo (ABEL 2005 p 206) ter-se-ia entatildeo um

impasse E soacute uma modificaccedilatildeo na arquitetura mesma dessa armaccedilatildeo

conceitual tornaria possiacutevel um encaminhamento do problema de modo a

indicar as condiccedilotildees sob as quais ele natildeo poderia mais ocorrer

Os elementos de interpretaccedilatildeo apropriados a essa modificaccedilatildeo

poderiam ser encontrados segundo Abel no pensamento nietzscheano A

tese que defende e que aqui procuraremos expor eacute a de que as criacuteticas

realizadas por Nietzsche agrave questatildeo da consciecircncia expondo seus limites

apontam para uma reinterpretaccedilatildeo do fenocircmeno que natildeo se deixa reduzir

a um mero fisicalismo naturalista nem tampouco se deixa levar por uma

hipoacutestase do conceito-modelo ldquoConsciecircnciardquo A triacuteade acima citada seria

nesse sentido natildeo soacute de fundamental importacircncia para a compreensatildeo do

pensamento nietzscheano como por outro lado seu pensamento a esse

respeito ndash ao acentuar o papel da praacutexis interpretativa e das funccedilotildees

simboacutelicas linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas na constituiccedilatildeo da consciecircncia e

da autoconsciecircncia ndash mostra sua relevacircncia no sentido de uma superaccedilatildeo

daquela dicotomia Tais elementos foram reconstruiacutedos pelo autor em seis

seccedilotildees que seratildeo apresentadas a seguir princiacutepio do continuum modelo

do processo organizaccedilatildeo funcional consciecircncia e linguagem

fenomenalismo da experiecircncia interna e consciecircncia e corporeidade

118 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

O Princiacutepio do Continuum

Abel parte da compreensatildeo de que a superaccedilatildeo das dicotomias entre

mentalismo e materialismofisicalismo soacute pode ocorrer a partir de um

modo de ver natildeo dualista E Nietzsche segundo Abel defende tal

concepccedilatildeo a partir do que chama de princiacutepio do continuum o mundo

para Nietzsche constitui-se como um espectro de continuidade que vai do

inorgacircnico passando pelo orgacircnico ateacute as atividades cognitivas e aos

projetos e consecuccedilatildeo das accedilotildees O que significa que por um lado o

homem seria entendido como corporificaccedilatildeo de todas as atividades

ldquointeligentesrdquo que jaacute se encontram no orgacircnico e com as quais o ser

humano seria retraduzido na natureza por outro o ldquocaraacuteter espiritualrdquo

das atividades vivas poderia ser encontrado nas formas de manifestaccedilatildeo

orgacircnica e ateacute para aleacutem destas

Natildeo se trata aqui de uma superaccedilatildeo redutora ou derivativa do modelo

dualista na relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o consciente No modelo do

continuum a consciecircncia desponta como um fenocircmeno gradual que surge

a partir de ldquodiferenciaccedilotildees filogeneacuteticas e ontogeneacuteticas no acircmbito do

orgacircnicordquo (ABEL 2005 p 209) e cujos elementos jaacute se encontram

presentes em animais enquanto o tornar-se consciente e a autoconsciecircncia

somente no homem seriam encontrados Dois pressupostos do princiacutepio

nietzscheanos satildeo aqui delineados em primeiro lugar formas de vida preacute-

conscientes e orgacircnicas devem ser vistas como ldquoprocessos dinacircmicosrdquo jaacute

inteligentes e basilares para a formaccedilatildeo da consciecircncia por outro ldquoestados

mentais conscientesrdquo devem ser distintos dos ldquoinconscientesrdquo sendo este

acircmbito mais amplo e a partir do qual aquele pode ser explicado Em todo

caso por peticcedilatildeo de princiacutepio ldquoa consciecircncia mesma natildeo estaacute em condiccedilatildeo

de indicar uma lsquocausa objetivarsquo para sua proacutepria origemrdquo (ABEL 2005 p

209)

O que seria entatildeo o ldquoeurdquo da consciecircncia ou o lsquoSi mesmorsquo [Selbst] do

corpo humano Dois aspectos devem ser aqui observados por um lado

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 119

como o modelo do continuum abre-se a possibilidade de que esse ldquoeurdquo

ldquoinfluencie num certo sentido os processos orgacircnicosrdquo (ABEL 2005 p

208) ou seja que determinados pensamentos possam ser ldquoincorporadosrdquo

organicamente por outro o sujeito da consciecircncia ndash ou o que Abel chama

de ldquoeu consciente e lsquoindexicalrsquordquo ndash surge como uma delimitaccedilatildeo dentro da

ldquocorrente contiacutenua de acontecimentosrdquo e natildeo mais como uma coisa

individual que precede a consciecircncia de algo O Eu aparece assim como a

ponta de um processo da qual por isso mesmo prescinde o todo restante

Daiacute a formulaccedilatildeo de Nietzsche ldquoPara que em geral consciecircncia se ela eacute

no geral supeacuterfluardquo e agrave qual ele mesmo responde ldquouma rede de ligaccedilatildeo

entre homem e homemrdquo que teve de ldquodesenvolver-se somente enquanto

talrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354)

Modelo do Processo

Enquanto continuum que vai do orgacircnico ao consciente o mundo de

Nietzsche eacute um conjunto de ldquoefeitos cambiantes dinacircmicos altamente

complexos de variadas organizaccedilotildees de forccedilas vivas e inteligentesrdquo (ABEL

2005 p 215) ndash luta e arregimentaccedilatildeo de impulsos cujo pathos se mostra a

ele como vontade de poder [der Wille zur Macht] Os elementos da

natureza nesse sentido natildeo podem mais ser tomados coisas ndash corpos

materiais ocupando posiccedilotildees no espaccedilo-tempo mas ldquoeventosrdquo ou ldquoobjetos-

processordquo (ABEL 2005 p 216)4 Tal concepccedilatildeo certamente traz

consequecircncias natildeo somente para o status do conceito de ldquocoisardquo mas

tambeacutem para a ideia de ldquosujeitordquo A questatildeo que Abel aqui se coloca eacute os

processos devem ainda pressupor um sujeito ou eacute possiacutevel partir de

processos sem sujeito

A ideia de um sujeito da consciecircncia que a represente e organize seus

conteuacutedos parece implicada no momento mesmo em que a consciecircncia

4 Abel salienta aqui a proximidade da concepccedilatildeo nietzscheana com a fiacutesica contemporacircnea (objetos como uma identidade de eventos) e com as pesquisas em filosofia da linguagem (em particular as ideias de Reichenbach e Davidson)

120 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

enquanto consciecircncia-de-algo transitiva designada por meio da

intencionalidade manifesta-se Ocorre que tambeacutem o ldquoeurdquo o sujeito da

consciecircncia soacute se manifesta em virtude do surgimento desta uacuteltima5

Como afirma Nietzsche em Aleacutem do bem e do mal a ideia de um ldquosujeito

lsquoeursquordquo como condiccedilatildeo do predicado ldquopensordquo seria uma ldquofalsificaccedilatildeo dos

fatosrdquo (NIETZSCHE 2005 sect17) Ora com isso dois postulados expostos

na seccedilatildeo anterior comeccedilam a ser esclarecidos

(a) de que o eu (sujeito) que surge no interior da consciecircncia jaacute depende de

uma amaacutelgama de processos sem sujeito e (b) que o estado e fenocircmeno da

consciecircncia repousa genealogicamente jaacute sobre estados mentais [eventos

processos] natildeo conscientes (ABEL 2005 p 218)

Haveria nesse sentido uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a ideia de um

ldquosujeito da consciecircnciardquo e a figura de ldquoprocessos sem sujeitordquo A pergunta

ldquoquem pensardquo deve ser respondida com ldquoalgo pensardquo no sentido de que

esse ldquoalgordquo jaacute natildeo eacute um ldquoeurdquo objeto e representaccedilatildeo mas um processo e

uma interpretaccedilatildeo ndash ou citando Nietzsche ldquouma interpretaccedilatildeo do processo

que natildeo pertence ao processo mesmordquo (NIETZSCHE 2005 sect17) ndash

designada com a palavra indexical ldquoeurdquo funccedilatildeo desse processo Da mesma

forma no plano linguiacutestico as sentenccedilas de processo natildeo seriam mais

vinculadas a um sujeito gramatical (ABEL 2005 p 221)6 A ideia de sujeito

enquanto ldquoindiviacuteduo-coisardquo dissolve-se nesse sentido pelo ldquoretorno do

sujeito da consciecircncia em si mesmo como sua consequecircncia internardquo

(ABEL 2005 p 220) Em seu lugar surgem o indiviacuteduo-evento e o eu-

interpretaccedilatildeo

A suspeita de uma contaminaccedilatildeo categorial [] de que somente indiviacuteduos-

coisa fornecem o modelo de referecircncia parece banida atraveacutes da passagem ao

esquema do evento e uma teoria natildeo dualista natildeo estaacute mais aprisionada ao

5 Veremos adiante (na seccedilatildeo ldquoFenomenalismo da experiecircncia internardquo) que o eu-consciecircncia a perspectiva da primeira pessoa surge no momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a consciecircncia

6 O autor faz aqui atraveacutes de Lichtenberg um paralelo entre a concepccedilatildeo nietzscheana (com o exemplo das expressotildees impessoais) e a criacutetica ao eu-portador feita por Wittgenstein (o do Tractatus assim como o das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas na comparaccedilatildeo entre olho e o campo visual)

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 121

leito de Procrusto do sujeito da consciecircncia Somente um modelo de referecircncia

baseado em indiviacuteduos-evento abre essa possibilidade (ABEL 2005 p 222)

A partir daqui abre-se o caminho para se pensar eventos mentais

conscientes e natildeo conscientes em uma ldquoco-pertenccedila natildeo dualistardquo com

processos orgacircnicos e corporais

Organizaccedilatildeo Funcional

A ideia de processo implicaria tambeacutem uma passagem do modelo de

organismo ao de organizaccedilatildeo Com efeito o orgacircnico em Nietzsche eacute

entendido como uma ldquoestrutura de organizaccedilatildeordquo na qual a consciecircncia o

pensamento consciente e outros processos mentais resultam como

ldquopropriedades e consequecircncias emergentes da co-relaccedilatildeo muacuteltipla e

altamente complexa dos componentes do sistema inteiro que constituem

a organizaccedilatildeo e garantem sua funcionalidaderdquo Aqui natildeo se trata

propriamente de uma relaccedilatildeo entre parte e todo ndash entre particular e

universal mas de uma combinaccedilatildeo de ldquomuacuteltiplas organizaccedilotildees de forccedilas

das partesrdquo cujos efeitos fazem surgir aqueles estados mentais e emergir

a ldquoespiritualidade viva e inteligenterdquo jaacute presente no orgacircnico (ABEL 2005

p 223)

Tambeacutem aqui haveria uma proximidade com a concepccedilatildeo

atualmente defendida e aceita nas pesquisas sobre o ceacuterebro ndash em

particular ao modelo dos ldquomultiple draftsrdquo desenvolvido por Dennett

(1991 cap 5 apud ABEL 2005 p 224) ndash de que estados mentais

conscientes e natildeo conscientes satildeo resultados da organizaccedilatildeo e da

complexa dinacircmica de configuraccedilotildees de neurocircnios ndash o que vale ser aqui

salientado dado que tal modelo vai de encontro agrave concepccedilatildeo cartesiana

centralista da consciecircncia na qual o ceacuterebro teria um centro ndash um ldquoolho

internordquo para as experiecircncias conscientes Por outro lado a proacutepria ideia

de um ldquofluxo da consciecircnciardquo natildeo pode ser vista como uma sequecircncia

unificada mas ao contraacuterio processos de conformaccedilotildees dinacircmicas e

muacuteltiplas combinaccedilotildees das partes do sistema envolvidas

122 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Na concepccedilatildeo nietzscheana diz Abel esse aspecto eacute enfatizado no

sentido da dependecircncia do ldquoperfil funcionalrdquo do orgacircnico em relaccedilatildeo agraves

combinaccedilotildees de suas partes A ldquoorganizaccedilatildeo processualrdquo pode ser

entendida como configuraccedilotildees de forccedilas que preponderam e dominam ndash

ldquoregentesrdquo mas que satildeo ao mesmo tempo ldquodependentes das forccedilas

particulares funcionaisrdquo ndash e forccedilas ldquoregidasrdquo As partes ndash eventos e

processos por sua vez jaacute natildeo podem ser representadas como elementos

atomiacutesticos mas como ldquoconsecuccedilatildeo efetivo-relacional do acontecerrdquo

(ABEL 2005 p 227) Para Nietzsche esse eacute um evento fundamental de

tudo o que eacute efetivo e vivo E eacute nesse sentido que para ele a vida pode ser

definida como ldquolsquouma forma duradoura do processo de afirmaccedilatildeo da forccedila

onde os lutadores crescem de modo desigual entre sirsquordquo (COLLI

MONTINARI 1999b KSA-XI 36 [22])

A centralidade que o aspecto da organizaccedilatildeo funcional ocupa na

concepccedilatildeo nietzscheana permite caracterizaacute-la segundo Abel como um

funcionalismo entendido no sentido de que estados e processos mentais ndash

em particular estados e processos natildeo conscientes exercem papeacuteis

funcionais e referem-se agrave organizaccedilatildeo funcional de um sistema podendo

ser descritos por uma terminologia funcionalista No entanto natildeo seria

possiacutevel aqui uma associaccedilatildeo ao funcionalismo defendido por Putnam

(1975 apud ABEL 2005 p 228) com base em um modelo computacional

de descriccedilatildeo do funcionamento e individuaccedilatildeo de estados mentais Isso

porque entraria na concepccedilatildeo nietzscheana um ldquoelemento de liberdade e

criatividaderdquo que permite ao eu da consciecircncia dispor dos conteuacutedos e

subsumi-los a um ldquotratamento imaginativo ou planejado do agirrdquo

Um uacuteltimo aspecto quanto agrave organizaccedilatildeo funcional em Nietzsche e

na filosofia da mente diz respeito a uma possiacutevel interpretaccedilatildeo

teleoloacutegico-normativa dos papeacuteis funcionais exercidos pelos processos

mentais Na concepccedilatildeo nietzscheana os processos de organizaccedilatildeo de

forccedilas satildeo eventos de autorregulaccedilatildeo e otimizaccedilatildeo das relaccedilotildees de forccedilas

atuando tanto na organizaccedilatildeo como nas partes nela envolvidas Essas

muacuteltiplas combinaccedilotildees soacute posteriormente apareceriam agrave consciecircncia como

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 123

em conformidade a um fim Natildeo haveria nesse sentido nenhuma

teleologia na coisa mesma mas apenas em como ela aparece agrave consciecircncia

ldquoA organizaccedilatildeo e a dinacircmica dos processos complexos de forccedilas se

realizam () de modo ateleoloacutegicordquo (ABEL 2005 p 231) Seria preciso

distinguir entre duas espeacutecies de finalidade seja a ideia de fim entendida

como um motivo ndash uma ldquoteleologia do atuar exoacutegenordquo ou no como uma

consequecircncia ndash uma ldquofuncionalidade e regularidade endoacutegenardquo Nesse

sentido soacute como expressatildeo de um ldquoolhar que observa posteriormenterdquo

uma conformidade a fins seria possiacutevel

Consciecircncia e Linguagem

Os modelos e organizaccedilotildees acima natildeo estariam bem esclarecidos sem

a compreensatildeo de que por detraacutes das representaccedilotildees sobre as quais a

consciecircncia se efetiva estatildeo os signos linguiacutesticos e funccedilotildees gramaticais

que por sua vez exercem-se no contexto de uma praacutexis interpretativa Em

outras palavras na base do fenocircmeno da consciecircncia aparece o

fundamento linguiacutestico-gramatical e interpretativo de todo pensar Para

Nietzsche soacute podemos pensar ldquode forma linguiacutesticardquo (COLLI

MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22]) O ldquopensar racionalrdquo eacute nesse sentido

um ldquointerpretar segundo um esquema que natildeo podemos dispensarrdquo

(COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22])

Para Abel o que assume significaccedilatildeo fundamental nos dias de hoje eacute

que se por um lado a consciecircncia apresenta a linguagem ndash enquanto uso

dos signos (linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticos) por outro na base mesma de

seu surgimento consecuccedilatildeo e desenvolvimento ela revela tambeacutem com a

linguagem o seu caraacuteter puacuteblico e social A consciecircncia (e suas

especificidades) nesse sentido eacute tematizada agora ldquona interseccedilatildeo dos

desenvolvimentos no acircmbito do natural-orgacircnico [] com os processos

nas esferas do social do histoacuterico e do culturalrdquo (ABEL 2005 p 233)

Jaacute em seus primeiros escritos postumamente publicados Nietzsche

aponta para o cerne comunicativo constitutivo da consciecircncia Na forma

124 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

como apresentado em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral o

homem natildeo apreende coisas objetos mas sensaccedilotildees ndash marcas de

excitaccedilotildees externas que satildeo por meio de transposiccedilatildeo metafoacutericas ndash do

objeto em imagem e da imagem em conceito ndash simplificadas

antropomorfizadas e restituiacutedas pela linguagem na forma de signos Por

uma ldquotransposiccedilatildeo artiacutesticardquo entatildeo a linguagem opera uma identificaccedilatildeo

do natildeo idecircntico da qual surge o conceito Mais ainda eacute nessa identificaccedilatildeo

que se constitui o objeto e tambeacutemo sujeito criador como esfera a ele

oposta com o qual natildeo pode ter senatildeo uma ldquorelaccedilatildeo esteacuteticardquo que eacute a sua

proacutepria criaccedilatildeoconstituiccedilatildeo

Tal processo nesse sentido soacute se justifica do ponto de vista de uma

praacutexis social ou seja por uma necessidade de comunicaccedilatildeo e de

ldquoestabilizaccedilatildeo de sistemas sociaisrdquo (ABEL 2005 p 235) A proacutepria

ldquoverdaderdquo nada mais eacute que uma metaacutefora cristalizada e aceita socialmente

isto eacute pelo rebanho Nietzsche ressalta as condiccedilotildees fisioloacutegicas e

histoacutericas do ldquoinstinto (ou impulso) de verdaderdquo que marca nossa

civilizaccedilatildeo e cujo cerne ilusoacuterio e metafoacuterico revela antes uma crenccedila na

verdade como valor incondicional ldquoas verdades satildeo ilusotildees cuja origem

estaacute esquecidardquo (NIETZSCHE 2007 1 30)

Essa compreensatildeo eacute retomada posteriormente em A gaia ciecircncia

Para Nietzsche na constituiccedilatildeo mesma da consciecircncia aparece uma

ldquonecessidade de comunicaccedilatildeordquo que pressupotildee por sua vez uma

ldquocapacidade [entendida como forccedila e arte] de comunicaccedilatildeordquo

[] posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas

sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeo () Consciecircncia eacute na realidade

apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas () o pensar que se torna

consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos ndash pois

apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de

comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia

(NIETZSCHE 2004 sect 354)

O pensar conceitual e a experiecircncia consciente efetivam-se nesse

sentido enquanto ldquosignos de comunicaccedilatildeordquo ou ldquoformaccedilotildees e abreviaccedilotildees

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 125

de signos sobre signosrdquo Segundo Abel a constituiccedilatildeo de um sistema

conceitual ndash pelo qual o eu da consciecircncia se efetiva ndash ocorre no momento

em que ela proacutepria eacute capaz de diferenciar conceitualmente algo de algo e

com essa delimitaccedilatildeo constituir objetos e a si proacutepria como objeto

O caraacuteter interpretativo da consciecircncia no entanto natildeo se restringe

a um aspecto de suas funccedilotildees simboacutelicas mas eacute sua proacutepria condicionante

no sentido de que os processos orgacircnicos mesmos jaacute pressupotildeem um

ldquointerpretar contiacutenuordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 2 [148])

sendo por ele caracterizados A consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo soacute procede

de modo interpretativo em sua consecuccedilatildeo mas tambeacutem jaacute repousa em

processos de interpretaccedilatildeo natildeo conscientesrdquo (ABEL 2005 p 237) sendo

jaacute um resultado dessas relaccedilotildees Daqui se tem como consequecircncia que ela

natildeo pode ser nem causa sui nem finis sui no sentido de que permanece

sem acesso a seu proacuteprio fundamento A tarefa de uma filosofia da mente

nesse sentido consistiria principalmente em destacar o caraacuteter simboacutelico

e principalmente interpretativo subjacente a estados processos e

fenocircmenos da consciecircncia

Sempre haveria no entanto o perigo de a consciecircncia de modo auto-

causal e auto-teleoloacutegico hipostasiar-se a si proacutepria e mascarar o caraacuteter

problemaacutetico de as representaccedilotildees que surgem na consciecircncia estarem agrave

disposiccedilatildeo e poder do eu-consciecircncia como se esta as antecedesse e

pudesse com elas relacionar-se de outro modo Uma suposta

autocertificaccedilatildeo da autoconsciecircncia compensaria a incerteza quanto ao

objeto e ao sujeito que ela representa Eacute a tendecircncia proacutepria agrave consciecircncia

de querer ir aleacutem natildeo soacute do fenomenalismo da experiecircncia exterior como

tambeacutem da interior (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 15 [90]) Esse

ponto seraacute abordado na proacutexima seccedilatildeo

Fenomenalismo da Experiecircncia Interna

Vimos que pela articulaccedilatildeo linguiacutestica a consciecircncia opera uma

simplificaccedilatildeo esquematizaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo (ABEL 2005 p 237) de

126 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

tudo o que ateacute ela chega do mundo exterior Da mesma forma na

experiecircncia interna natildeo deparamos com fatos como sendo algo primaacuterio

mas eles proacuteprios ldquotecircm de ser o resultado de interpretaccedilotildeesrdquo Sensaccedilotildees de

prazer e dor por exemplo bem como aquilo que costumamos chamar de

ldquosentido internordquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 14 [152]) satildeo

para Nietzsche segundo Abel ldquofenocircmenos tardios derivados

interpretados intelectualmente de processos de forccedilas que estatildeo ao fundordquo

(ABEL 2005 p 238-239)

Duas perspectivas aqui se abrem para a caracterizaccedilatildeo

dessefenomenalismo da percepccedilatildeointerior em primeiro lugar a ordem e

cronologia de causa e efeito eacute continuamente invertida de forma que por

meio da memoacuteria das experiecircncias internas passadas a causa eacute imaginada

ndash em adequaccedilatildeo agrave causa real ndash depois de o efeito jaacute ter sucedido Em

segundo lugar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem (conforme exposta

acima) conduz tambeacutem a uma relaccedilatildeo entre fenomenalismo e

perspectivismo de forma que as experiecircncias internas ndash que satildeo uacutenicas e

individuais satildeo pela linguagem traduzidas para a consciecircncia como

estados internos conhecidos delimitados e tangiacuteveis ao indiviacuteduo7

Natildeo podemos assim transgredir o mundo fenomenal Mas isso natildeo

quer dizer que aquilo a que natildeo temos acesso seja o mundo ldquoverdadeirordquo

e sim tatildeo somente o ldquoinformulaacutevel mundo sem forma do caos de

sensaccedilotildeesrdquo ldquouma outra espeacutecie de mundo fenomenal para noacutes

incognosciacutevelrdquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 9 [106]) Haveria

aqui segundo Abel uma forte criacutetica ao princiacutepio mesmo da racionalidade

moderna a autoconsciecircncia cartesiana ndash ou mais precisamente agrave ldquoideia de

uma autocertificaccedilatildeo fundamentalista numa experiecircncia pura preacute-

linguiacutestica preacute-conceitual e independente da interpretaccedilatildeordquo ABEL 2005

p 241) Na base desse fundamentalismo epistemoloacutegico ldquoo ponto de

partida errado ndash como se houvesse lsquofatos da consciecircnciarsquo ndash e nenhum

fenomenalismo na observaccedilatildeo de si mesmordquo Erro que resultaria em seis

7 Processo esse que como vimos natildeo subsiste independentemente de uma praacutexis social

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 127

pressuposiccedilotildees nenhuma delas para Nietzsche (COLLI MONTINARI

1999d KSA XIII 15 [90]) plena de sentido

(1) transparecircncia completa da consciecircncia (2) manutenccedilatildeo da ideia do dado

ao menos para o acircmbito da experiecircncia interna da consciecircncia (3) a

experiecircncia humana eacute independente da linguagem da descriccedilatildeo e por fim ateacute

mesmo da interpretaccedilatildeo (4) o fenomenalismo eacute restrito somente ao mundo

exterior () (5) haacute um ponto de observaccedilatildeo fixo (6) a consciecircncia tem acesso

imediato a seus proacuteprios estados de experiecircncia interna de si (ABEL 2005 p

238-239)

Com ofenomenalismo e perspectivismo da experiecircncia interna entra

em cena o eu-consciecircncia ndash a perspectiva da primeira pessoa que surge no

momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a

consciecircncia Tambeacutem com ele o ldquocaraacuteter subjetivo qualitativo e

fenomenal da vivecircncia conscienterdquo (ABEL 2005 p 241) Tais aspectos satildeo

segundo Abel discutidos na atual filosofia da mente a partir de duas teses

(1) que os aspectos subjetivos qualitativos e fenomenais satildeo fundamentais

para a experiecircncia interna (2) [que] esses aspectos subjetivos qualitativos e

fenomenais ligados agrave perspectiva da vivecircncia na primeira pessoa natildeo podem

ser reduzidos agrave conformidade a leis fiacutesicas [que satildeo] explicadas da perspectiva

neutra da [] intersubjetividade [Esta] no entanto eacute precisamente aquilo

que natildeo somente eacute dado na vivecircncia factual subjetiva qualitativa e fenomenal

mas tambeacutem sistematicamente excluiacuteda (ABEL 2005 p 242)

Consciecircncia e Corporeidade

Apesar de natildeo poder representar ou sequer distanciar-se da rede natildeo

consciente de seus condicionamentos a consciecircncia ndash enquanto eu-

consciecircncia tem no entanto a ldquopossibilidade de abrir-se retroagindo a si

mesma em contraposiccedilatildeo ao complexo de suas condiccedilotildeesrdquo (ABEL 2005

p 244) Transiccedilatildeo essa que segundo Abel pode ser vista como a passagem

de uma consciecircncia autoteleoloacutegica e autocausal para um eu-consciecircncia

que sem perder a autoconsciecircncia eacute o proacuteprio si-mesmo do corpo ndash aquilo

que Nietzsche chama de grande razatildeo Isso implicaria a transiccedilatildeo de uma

128 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoontologia moralrdquo (COLLI MONTINARI 1999b KSA XI 7 [4]) a uma

ldquofilosofia do corpordquo que comeccedila quando a pequena razatildeo se volta sobre si

por sua proacutepria autoconservaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo a seus

condicionamentos O que natildeo deve ser confundido como uma reduccedilatildeo a

um naturalismo ou biologismo ndash nem tampouco de uma ldquoneurofilosofiardquo

como em Churchland (1998) Natildeo se trata na filosofia do corpo de

Nietzsche de organismos corpos e neurocircnios mas do corpo-organizaccedilatildeo

Natildeo haacute aqui um ldquoalgordquo a ser estudado mas uma ldquocombinaccedilatildeo dinacircmica e

altamente complexa de [] inteligecircncias em processordquo (ABEL 2005 p

244) A passagem do eu-consciecircncia ao si-mesmo (o ldquodominador do eurdquo)

eacute nesse sentido a passagem de uma ldquosubjetividade produtorardquo para a

ldquoindividualidade no sentido da organizaccedilatildeo do corpo [Leib] () que cada

um eacute enquanto ser que interpretardquo ABEL 2005 p 246-7) Isto natildeo implica

um retorno da individualidade ao sujeito racional universal mas a

subsunccedilatildeo em uma ldquoindividualidade-corpordquo

Dois aspectos satildeo salientados aqui por Abel em primeiro lugar a

ldquocorporeidade preacute-cognitiva preacute-linguiacutestica e preacute-racional em seus

estados esteacuteticos pode ser vista como o lugar de surgimento dos signos

simbolizadores linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticosrdquo (ABEL 2005 p 247) em

cuja invenccedilatildeo estatildeo envolvidos estados corporais Na abertura do eu-

consciecircncia agrave rede de seus condicionantes revela-se ldquoo caraacuteter dos signos e

da interpretaccedilatildeo em sua posiccedilatildeo fundamentalrdquo (ABEL 2005 p 248) Por

outro lado o modo de consideraccedilatildeo do ldquofio-condutor do corpordquo apresenta-

se como um ldquofenocircmeno mais ricordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII

40 [15]) no sentido de que se situa no interior mesmo da posiccedilatildeo criticista

A posiccedilatildeo da consciecircncia bem como da criacutetica da linguagem eacute nesse

sentido aprofundada Trata-se nas palavras de Nietzsche ldquodo corpo em

todo o desenvolvimento do espiacuterito ele eacute a histoacuteria que se torna sensiacutevel

de que um corpo superior se formardquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X

24 [16]) Em que o mental por outro lado eacute a ldquolinguagem simboacutelica do

corpordquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X 7 [126])

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 129

Criacutetica da Consciecircncia e Criacutetica da Linguagem

Dois aspectos devem ser salientados quanto a este toacutepico por um

lado a importacircncia da consciecircncia e da linguagem nas relaccedilotildees humanas

ndash com o mundo com o outro e consigo ndash e por outro o reconhecimento

de seus limites ndash em uacuteltima instacircncia do limite-corpo que subjaz a ambas

linguagem e consciecircncia

No caso da linguagem os limites parecem ser bastante sutis no

sentido de que ela proacutepria enquanto ldquogramaacuteticardquo atua como preacute-

formadora do pensamento consciente e nesse sentido ldquoo que pode ser

pensado e dito em geral tem de estar jaacute na gramaacutetica de uma linguagemrdquo

(ABEL 2005 p 249) Como afirma Nietzsche em Crepuacutesculo dos iacutedolos

ldquoA lsquorazatildeorsquo na linguagem oh que velha e enganadora senhora Receio que

natildeo nos livremos de Deus porque ainda acreditamos na gramaacuteticardquo

(NIETZSCHE 2006 III sect5) Tais limites que a tornam suscetiacutevel a uma

petrificaccedilatildeo estatildeo precisamente pelo caraacuteter de universalidade das

sentenccedilas e palavras Principalmente quando estas se tornam conceitos

frutos da ldquoidentificaccedilatildeo do natildeo idecircnticordquo (NIETZSCHE 2007 1) e jaacute

distantes de sua ldquovivecircncia original uacutenica e totalmente individualizadardquo Haacute

aqui o risco de se fazer mitologia com o ldquomundo dos signosrdquo e de tornaacute-lo

o ldquoem si das coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 sect21)

Uma superaccedilatildeo no pensamento dos ldquoerrosrdquo da razatildeo petrificados na

linguagem ndash ou em uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo (NIETZSCHE 2006

III sect5) ndash seria no entanto impossiacutevel porque noacutes ldquonecessitamos do errordquo

O problema crucial aqui como aponta Abel eacute que o indiviacuteduo uma

sensaccedilatildeo ou o proacuteprio inefaacutevel jaacute pressupotildeem a linguagem quando satildeo

expressos comunicados Como entatildeo conciliar o caraacuteter individual de uma

sensaccedilatildeo com a pretensatildeo agrave universalidade e o caraacuteter comunicativo e

social da linguagem que a expressa

No acircmbito da consciecircncia por sua vez por intermeacutedio e constituiccedilatildeo

da linguagem tudo perde a individualidade e eacute traduzido para o acircmbito do

universal O que impede um acesso agrave profundidade e deixa agravequela apenas

130 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

um ldquomundo de superfiacutecies e signosrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354) A

consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo pertence propriamente agrave existecircncia

individual do homemrdquo A relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem mostra-se

uma relaccedilatildeo de constituiccedilatildeo universalizaccedilatildeo simplificaccedilatildeo e

superficializaccedilatildeo Os limites se datildeo em que nessa relaccedilatildeo com a iminecircncia

de uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo a consciecircncia corre de vaacuterias formas o

risco de hipostasiar-se a si mesma

Em primeiro lugar na medida em que ela pretende identificar-se com a ampla

situaccedilatildeo total de um homem Entatildeo conforme ela considera seu eu isto eacute o

sujeito como substacircncia ela assumiria como sujeito uma posiccedilatildeo aprioriacutestica

face aos conteuacutedos da consciecircncia Por fim na medida em que o eu isto eacute o

sujeito da consciecircncia vecirc suas determinaccedilotildees das representaccedilotildees da consciecircncia

dos objetos da experiecircncia como determinaccedilotildees ontoloacutegicas Aleacutem disso haacute o

risco de hipoacutestase no sentido de que [] a consciecircncia e a mente tendem a

entenderem a si mesmas de modo autoteleoloacutegico e autocausal como finis sui e

causa sui e que elas jaacute natildeo podem abrir-se desse modo agrave rede abarcante das

condiccedilotildees de sua proacutepria existecircncia (ABEL 2005 p 252)

A criacutetica de Nietzsche em suma natildeo se refere propriamente agrave

consciecircncia ndash erro necessaacuterio ndash nem tampouco tem caraacuteter reducionista

Antes dirige-se ao modelo cartesiano hipostasiado de reflexatildeo da

consciecircncia e da autoconsciecircncia em seus seis erros ou pressuposiccedilotildees

Filosofia Simboacutelica e Interpretativa da Mente

Pode-se formular a advertecircncia articulada na criacutetica da consciecircncia e da

linguagem do seguinte modo natildeo se confunda a circunstacircncia de que noacutes

temos a ver na consciecircncia assim como na autoconsciecircncia com signos e

interpretaccedilotildees com a concepccedilatildeo de que noacutes nos deparariacuteamos com as ldquocoisas

mesmasrdquo ou com as coisas-em-si-mesmas Assumir essa uacuteltima significa

recair no sofisma naturalista da consciecircncia (ABEL 2005 p 253-4)

Do que foi exposto quanto aspectos acima atenccedilatildeo especial deve ser

dada ao caraacuteter simboacutelico e interpretativo ndash semioacutetico ndash dos estados e

processos da consciecircncia da autoconsciecircncia e dos outros processos

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 131

mentais conscientes e natildeo conscientes Consciecircncia eacute consciecircncia de signos

cujos elementos (sintaacuteticos semacircnticos e pragmaacuteticos) natildeo os precedem

mas satildeo eles mesmos constituiacutedos em sua ldquoorientaccedilatildeo a algo ou a outras

pessoasrdquo ndash orientaccedilatildeo que tem o caraacuteter de uma ldquointerpretaccedilatildeo

construcionalrdquo (ABEL 2005 p 253-4) As funccedilotildees da interpretaccedilatildeo

constituem assim o fundamento dos signos Todos os estados processos

e fenocircmenos mentais bem como a comunicaccedilatildeo desses conteuacutedos

realizam-se em e como signos e interpretaccedilotildees O ponto chave nessa

concepccedilatildeo pragmaacutetica simboacutelica e interpretativa diz Abel eacute que ldquonoacutes

temos consciecircncia mente e pensamento natildeo por meio mas por forccedila dos

processos de signos e interpretaccedilotildeesrdquo (ABEL 2005 p 256) A

interpretaccedilatildeo nesse sentido ldquoeacute condiccedilatildeo e natildeo opccedilatildeo para o emprego

bem-logrado dos signosrdquo (ABEL 2005 p 257)

Para o autor a construccedilatildeo nos dias de hoje de uma teoria da

consciecircncia que parta dessa tese ou seja para aleacutem da dicotomia

materialismofisicalismo e mentalismo deve levar em consideraccedilatildeo cinco

aspectos (1) uma postura contra o fisicalismo das funccedilotildees simboacutelicas dos

signos e interpretaccedilotildees (2) a introduccedilatildeo de sistemas e signos e

interpretaccedilotildees natildeo linguiacutesticos e natildeo proposicionais revelando a

insuficiecircncia dos siacutembolos linguiacutesticos e proposicionais como uacutenico meio

de representaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo mentais (3) a consideraccedilatildeo aleacutem de

Nietzsche do pragmatismo de Peirce da teoria geral do siacutembolo de

Goodman e a teoria das formas simboacutelicas de Cassirer (4) a ideia de uma

relaccedilatildeo ou uma ligaccedilatildeo interna entre signos interpretaccedilotildees e

possibilidade de accedilatildeo (5) a consideraccedilatildeo dos valores avaliaccedilotildees e normas

(sentido e dever) no emprego dos signos e nas accedilotildees

Assim o fundamental na concepccedilatildeo de uma filosofia da mente a

partir do pensamento de Nietzsche deve estar na ideia de que os processos

de interpretaccedilatildeo estatildeo implicados desde o iniacutecio tatildeo logo se trate de

submeter o que estaacute na consciecircncia a uma delimitaccedilatildeo ordenaccedilatildeo

classificaccedilatildeo coerecircncia ou comunicaccedilatildeo O orgacircnico mesmo jaacute eacute para

Nietzsche uma interpretaccedilatildeo contiacutenua

132 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Referecircncias

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MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo

Discurso Editorial 2005

_____ ldquoVerdade e interpretaccedilatildeordquo In MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad

Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo Discurso Editorial 2005a

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_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos (GDCI) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2006

_____ Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (WLVM) In Sobre verdade e

mentira Trad e Org Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2007

7

Habermas e o Problema do Mundo Objetivo

em Verdade e Justificaccedilatildeo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira 1

Introduccedilatildeo

O objetivo deste artigo eacute investigar a questatildeo do mundo objetivo a

partir da recente distinccedilatildeo que Habermas realiza entre verdade e

justificaccedilatildeo na obra de mesmo tiacutetulo Eacute preciso entatildeo entendermos o

lugar que o mundo objetivo passa a ter no pensamento habermasiano

sobretudo a partir da diferenccedila entre verdade e justificaccedilatildeo algo outrora

inexistente

Verdade e justificaccedilatildeo de 1999 reuacutene trabalhos escritos entre 1996 e

1998 que retomam o fio de uma reflexatildeo interrompida em Conhecimento

e Interesse (1987) Apesar de a pragmaacutetica da linguagem que Habermas

desenvolveu nos anos 1970 ter feito uso de conceitos como verdade

referecircncia validade objetividade realidade e racionalidade estes natildeo

foram abordados agrave luz da filosofia teoacuterica como em Verdade e justificaccedilatildeo

Habermas (2012) nos tempos da Teoria do agir comunicativo obra

de 1971 definia o sentido de verdade a partir da situaccedilatildeo ideal de fala

atraveacutes dos pressupostos idealizantes de 1) publicidade e total inclusatildeo de

todos os envolvidos 2) distribuiccedilatildeo equitativa dos direitos de

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) com Doutorado Sanduiacuteche pela Ludwig-Maximilian-Universitaumlt (LMU) em Munique Alemanha Poacutes-doutorando pela Universidade Federal do Piauiacute (UFPI) e Bolsista Capes Email julianocordeiro81gmailcom

134 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

comunicaccedilatildeo 3) caraacuteter natildeo violento de uma situaccedilatildeo que admite apenas

a forccedila natildeo coerciva do melhor argumento e 4) a probidade dos

proferimentos de todos os participantes Nesse sentido a verdade

relacionava-se diretamente com o consenso construiacutedo pelos sujeitos

atraveacutes da situaccedilatildeo ideal de fala

Entretanto Habermas em Verdade e justificaccedilatildeo partindo das

criacuteticas que recebeu por igualar o conceito de verdade agrave justificaccedilatildeo ao

longo de seu projeto teoacuterico afirma hoje em dia que a verdade natildeo pode

mais ser assimilada simplesmente agrave situaccedilatildeo ideal de fala agrave justificaccedilatildeo

pragmaacutetica dos sujeitos ldquoDe laacute para caacute percebi que essa assimilaccedilatildeo natildeo

pode dar certo Reformulei o antigo conceito discursivo de verdade que

natildeo eacute errado mas eacute pelo menos incompletordquo (HABERMAS 2004 p 60)

A verdade agora tem a ver com o mundo objetivo que temos

inevitavelmente de pressupor nos atos de fala e nas nossas accedilotildees A

justificaccedilatildeo por sua vez seria um criteacuterio pragmaacutetico relacionado

unicamente aos sujeitos falantes natildeo podendo ser assimilado agrave verdade

como Habermas conceituava antes A verdade por assim dizer relaciona-

se com um pressuposto formal que os sujeitos precisam admitir sob pena

de natildeo falar nem agir no mundo

Poreacutem mesmo com a distinccedilatildeo habermasiana entre os conceitos de

verdade e justificaccedilatildeo continua natildeo estando em questatildeo a representaccedilatildeo

correta da realidade ou a estrutura ontoloacutegica do mundo Eacute impossiacutevel

determinar a significaccedilatildeo das palavras sem uma consideraccedilatildeo do contexto

social em que satildeo usadas porque eacute o uso que decide a significaccedilatildeo das

expressotildees linguiacutesticas caracteriacutestica central do pragmatismo No

Segundo Wittgenstein e tambeacutem em Habermas a ecircnfase eacute dada

sobretudo agrave pragmaacutetica

Como entatildeo entender o novo lugar que o mundo objetivo passou a

ter no pensamento habermasiano haja vista que ele continua a ser criacutetico

da noccedilatildeo representacionista de verdade Como conciliar a tese da

pressuposiccedilatildeo irrecusaacutevel de um mundo objetivo independente de nossas

descriccedilotildees e idecircntico para todos os observadores com a tese baacutesica da

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 135

reviravolta linguiacutestica de que natildeo temos acesso diretamente isto eacute natildeo

linguisticamente mediado a uma realidade ldquonuardquo Eacute o que veremos a

seguir

A Necessaacuteria Diferenccedila entre Verdade e Justificaccedilatildeo

Inicialmente Habermas conceituava a verdade como sinocircnimo de

justificaccedilatildeo Ou seja a verdade era aquilo que os sujeitos estabeleciam

consensualmente nas deliberaccedilotildees Wellmer (apud ALVARENGA 1999)

por exemplo numa criacutetica a Habermas destaca que racionalidade e

verdade natildeo necessariamente coincidem Para ele natildeo podemos afirmar

que havendo consenso racional exista verdade de imediato Nada impede

que no futuro seja considerado falso um consenso atual o que natildeo

implica que agimos irracionalmente A verdade eacute sempre algo maior do

que a racionalidade dos consensos situados Todo consenso encontra-se

sob reserva podendo no futuro ser posto em questatildeo mediante razotildees

Wellmer argumenta referindo-se agrave primeira concepccedilatildeo de verdade

de Habermas que um conceito de verdade como consenso eacute insuficiente

por natildeo abranger o aspecto da correspondecircncia da verdade Seria preciso

esse complemento na teoria discursiva de Habermas Mesmo que se

cumpram as condiccedilotildees ideais de fala tal fato natildeo significa que as razotildees

alegadas no processo deliberativo tenham sido boas Um consenso falso

pode ser racional no sentido de que foi alcanccedilado sob condiccedilotildees formais

de uma situaccedilatildeo ideal

Habermas a partir de tais criacuteticas reformulou sua concepccedilatildeo de

verdade distinguindo verdade de justificaccedilatildeo Ele assume que o consenso

natildeo pode ser considerado como um criteacuterio mas deve ser visto como um

mecanismo de certificaccedilatildeo da verdade Ele relaciona o conceito discursivo

mantido de aceitabilidade racional com um conceito de verdade

pragmaacutetico natildeo epistecircmico sem assimilar a verdade agrave assertibilidade

ideal ou seja agrave justificaccedilatildeo

136 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Inicialmente Habermas (2012) na Teoria do agir comunicativo

apresentou uma teoria consensual da verdade o consenso era o criteacuterio de

verdade O que eacute verdadeiro seria aquilo advindo de um consenso racional

e universal como consequecircncia de um diaacutelogo numa situaccedilatildeo ideal de fala

Entretanto como demonstra Puntel (2013) Habermas viu as dificuldades

dessa concepccedilatildeo uma vez que haacute uma incapacidade de explicar por que

mesmo as asserccedilotildees mais exaustivamente justificadas podem ser falsas

Habermas trabalha atualmente com uma concepccedilatildeo de verdade orientada

realisticamente denominada de realismo epistemoloacutegico pragmaacutetico

Os principais passos de Habermas na apresentaccedilatildeo e explicaccedilatildeo de

sua nova concepccedilatildeo pragmaacutetico-realista da verdade segundo Puntel

(2013) satildeo os seguintes 1) o ponto de partida satildeo pretensotildees de verdade

feitas no mundo da vida 2) a verdade eacute conceitualmente (natildeo

epistemologicamente) desconectada da justificaccedilatildeo a verdade eacute

transcendente agrave justificaccedilatildeo 3) a verdade implica uma referecircncia a um

mundo objetivo independente 4) a verdade articula a conexatildeo entre a

sentenccedilaproposiccedilatildeo qualificada como verdadeira e o mundo

Habermas (2004) explica que argumentos que nos convencem da

verdade de ldquoprdquo podem se revelar falsos em outra situaccedilatildeo epistecircmica Ou

seja por mais que ldquoprdquo seja bem justificado ele pode ainda revelar-se falso

A argumentaccedilatildeo permanece reforccedila ele como o uacutenico meio disponiacutevel

para se certificar da verdade de modo que natildeo haacute outra maneira de

examinar as pretensotildees de validade tornadas problemaacuteticas Entretanto a

justificaccedilatildeo natildeo pode ser validada ainda como verdade Habermas entatildeo

pretende salvar a dimensatildeo do mundo objetivo em sua teoria

relacionando-a com a verdade

Ele estabelece um conceito de verdade em que as pretensotildees de

validade transcendam toda justificaccedilatildeo ldquo() depois da

destranscendentalizaccedilatildeo do sujeito cognoscente continua a existir uma

lacuna entre o que eacute verdadeiro e o que conta como justificado ou

racionalmente aceitaacutevel para noacutesrdquo (HABERMAS 2002 p 44) Habermas

pretende assegurar a diferenccedila entre verdade e aceitabilidade racional

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 137

Contudo tal diferenccedila coloca os sujeitos numa situaccedilatildeo paradoxal De um

lado sem acesso direto agraves condiccedilotildees de verdade eles soacute podem resgatar as

pretensotildees de validade por meio de boas razotildees de outro as melhores

razotildees satildeo tambeacutem faliacuteveis Portanto Habermas defende que o abismo

entre aceitabilidade racional e verdade natildeo pode ser transposto uma vez

que todo acordo alcanccedilado pela justificaccedilatildeo eacute tambeacutem faliacutevel

Habermas (2004) destaca que verdade e falibilidade satildeo dois lados de

uma mesma moeda Ele entende que falta agrave justificaccedilatildeo no sentido por

exemplo de Richard Rorty uma referecircncia aos objetos Nesse sentido as

pretensotildees de validade devem transcender o contexto natildeo se satisfazendo

apenas com a justificaccedilatildeo alcanccedilada O verdadeiro para Habermas deve

ser defendido em todos os contextos possiacuteveis

Segundo ele uma concepccedilatildeo que faccedila justiccedila agrave intuiccedilatildeo realista de um

mundo que existe independentemente de noacutes mesmo sem a

representaccedilatildeo de uma correspondecircncia entre proposiccedilotildees e fatos favorece

o projeto de explicar os aspectos nos quais a verdade e a justificaccedilatildeo ao

mesmo tempo assemelham-se e distinguem-se Em suma a verdade eacute um

conceito que transcende toda justificaccedilatildeo natildeo podendo ser identificada

com o conceito de assertibilidade idealmente justificada

De acordo com Habermas a conexatildeo interna entre verdade e

justificaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo epistemoloacutegica pois natildeo estaacute em jogo a

representaccedilatildeo correta da realidade mas uma praacutexis que natildeo pode vir

abaixo O entendimento muacutetuo natildeo pode funcionar sem que os envolvidos

se refiram a um uacutenico mundo objetivo dentro de um espaccedilo puacuteblico

intersubjetivamente partilhado O conceito discursivo de verdade natildeo eacute

exatamente falso mas insuficiente ele natildeo explica o que nos autoriza a ter

por verdadeiro um enunciado suposto como idealmente justificado Dessa

forma asserccedilotildees bem justificadas podem se revelar falsas porque a

verdade deve transcender qualquer contexto de justificaccedilatildeo

Puntel (2013) destaca uma criacutetica a Habermas apontando-nos uma

dimensatildeo natildeo aprofundada por este Puntel com razatildeo critica Habermas

agrave medida que este rejeita a teoria tradicional da verdade sem oferecer uma

138 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

explanaccedilatildeo miacutenima do que ele chama de conexatildeo ou entrelaccedilamento de

verdade e mundo Sua concepccedilatildeo realista pragmaacutetica permaneceria vaga

Se Habermas acertou por um lado em separar verdade de

justificaccedilatildeo ele simultaneamente tambeacutem criou um novo problema em

sua filosofia O que realmente Habermas chama de mundo objetivo O que

de fato significa verdade em Habermas visto que esta se relaciona com um

mundo objetivo que apenas podemos pressupor mas natildeo tematizar tal

qual uma praacutexis que natildeo pode vir abaixo Que dimensatildeo eacute essa que

transcende a justificaccedilatildeo

O Estatuto do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo de um Novo

Acerto a um Novo Problema

Segundo Cliacutestenes Franccedila (2015) Habermas em Verdade e

justificaccedilatildeo substitui sua outrora teoria da verdade por uma teoria da

justificaccedilatildeo deixando de oferecer-nos uma teoria da verdade genuiacutena

Uma teoria da verdade e uma teoria da justificaccedilatildeo satildeo empreendimentos

teoacutericos distintos A primeira teoria da verdade de Habermas dos tempos

do Agir comunicativo era uma teoria antirrealista pois como vimos antes

a verdade era algo sinocircnimo de justificaccedilatildeo Ela natildeo dependia da

ocorrecircncia no mundo de um estado de coisas tendo a ver com a

legitimaccedilatildeo das pretensotildees de validade dos falantes

Jaacute em Verdade e justificaccedilatildeo a verdade natildeo se circunscreve agrave esfera

do discurso ela sempre o ultrapassa Portanto o maacuteximo que podemos

afirmar sobre a aceitabilidade racional de uma asserccedilatildeo eacute que muito

provavelmente ela eacute verdadeira mas natildeo podemos garantir que isso ocorra

de fato Criteacuterios de autorizaccedilatildeo entretanto satildeo formulados por teorias da

justificaccedilatildeo e natildeo por teorias da verdade Franccedila (2015) levanta a hipoacutetese

de que em Verdade e justificaccedilatildeo Habermas apresenta uma teoria da

justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade Habermas natildeo pode mais

dizer em que a verdade consiste mas apenas indicar o que nossas intuiccedilotildees

pragmaacuteticas realistas nos afirmam que ela seja

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 139

Para Franccedila (2015) agrave luz de Kirkham uma teoria da verdade seria

uma teoria metafiacutesica que buscaria fixar uma definiccedilatildeo do que seja a

verdade Uma teoria metafiacutesica da verdade contudo natildeo procuraria

oferecer mecanismos que nos auxiliassem a determinar quando nos

encontramos de posse de um conhecimento verdadeiro Jaacute uma teoria da

justificaccedilatildeo busca indicar as evidecircncias e garantias que algo deve possuir

para ser considerado como provavelmente verdadeiro Criteacuterios de

autorizaccedilatildeo satildeo formulados por teorias da justificaccedilatildeo e natildeo por teorias

da verdade

Habermas apresentaria em Verdade e justificaccedilatildeo uma teoria da

justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade A incorporaccedilatildeo de aspectos

realistas ao conceito da verdade na pragmaacutetica formal de Habermas

resultou no abandono de se oferecer uma definiccedilatildeo positiva do que eacute a

verdade de fato Como pensar a partir disso o problema do mundo

objetivo

Habermas chega ao mundo objetivo somente atraveacutes de anaacutelises das

accedilotildees e discursos que os falantes e agentes realizam no processo

comunicativo Mas isso natildeo transcende a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo

Segundo Puntel (2013) Habermas sempre privilegia a dimensatildeo

pragmaacutetica em relaccedilatildeo agrave semacircntica embora defenda que satildeo duas

dimensotildees co-originaacuterias

Ele supotildee que o ldquoproacuteprio mundordquo eacute o ldquoproacuteprio mundordquo apenas se

permanecer completamente intocado pela linguagem Habermas separa

fatos de objetos Ele natildeo menciona a perspectiva de que ao identificarmos

os objetos como elementos do ldquoproacuteprio mundordquo noacutes jaacute estamos falando

acerca desses objetos pertencentes ao ldquoproacuteprio mundordquo Aqui haacute como

pano de fundo a claacutessica criacutetica de Hegel a Kant

Se os fatos acerca dos objetos natildeo tecircm um status ontoloacutegico entatildeo somos

confrontados com uma declaraccedilatildeo incorreta Com efeito para que tenha um

significado inteligiacutevel lsquoser acerca de um objetorsquo deve ser entendido como

lsquoalcanccedilarrsquo ou lsquoatingirrsquo ou lsquoconcernirrsquo o proacuteprio objeto eacute algo sem sentido

declarar um fato acerca de um objeto e entatildeo defender que este fato nada tem

a ver com o objeto Se o fato expresso nada tem a ver com o objeto o objeto

140 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

permaneceria em um esplecircndido isolamento desconhecido inarticulado O

processo de aprendizagem que torna possiacutevel a expressatildeo de fatos acerca dos

objetos natildeo teria qualquer sentido (PUNTEL 2013 p 206)

Habermas (2004) por sua vez defende uma concepccedilatildeo nominalista

do mundo o mundo eacute a totalidade de objetos dos quais podemos

estabelecer fatos Segundo Habermas os fatos satildeo o que noacutes declaramos

acerca dos objetos Ele enfatiza que o nominalismo eacute menos suspeito do

que outras posiccedilotildees ontoloacutegicas especialmente as posiccedilotildees que atribuem

um status ontoloacutegico aos fatos De acordo com Puntel (2013) o argumento

de Habermas eacute incoerente visto que se os fatos tecircm uma relaccedilatildeo essencial

com a linguagem o mesmo deve ser dito dos objetos Se os fatos estatildeo

entrelaccedilados com a linguagem porque podem ser expressos o mesmo

ocorre com os objetos haja vista que podem ser referidos a algo

Habermas poreacutem defende que apenas os fatos satildeo tocados pela

linguagem natildeo os objetos

Podemos dizer que haacute um abismo que separa a dimensatildeo pragmaacutetica

da semacircntica em Habermas embora ele sempre argumente que satildeo duas

perspectivas inseparaacuteveis Esse eacute um aspecto a ser criticado no

pensamento de Habermas agrave medida que ele natildeo concilia de fato a

pragmaacutetica e a semacircntica Segundo Manfredo Oliveira (2010) do

pressuposto metodoloacutegico fundamental da razatildeo comunicativa Habermas

deriva uma consequecircncia temaacutetica draacutestica isto eacute a restriccedilatildeo do tema da

filosofia agrave dimensatildeo pragmaacutetica Dessa forma como tambeacutem aponta

Puntel (2013) a abordagem pragmaacutetica habermasiana considera que as

estruturas e praacuteticas da comunicaccedilatildeo satildeo a base uacutenica uacuteltima e decisiva

do pensar filosoacutefico privilegiando a linguagem natural em sua

integralidade

Habermas (2004) em Verdade e justificaccedilatildeo distingue entre as

funccedilotildees expositiva (Darstellung) e comunicativa (Kommunikation) da

linguagem natural afirmando que elas se pressupotildeem mutuamente

aceitando a tese de Michael Dummett Poreacutem Habermas privilegia

claramente a dimensatildeo pragmaacutetica colocando a semacircntica em segundo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 141

plano O resultado eacute que o problema do mundo objetivo em Habermas

natildeo eacute explorado suficientemente em sua teoria aparecendo apenas como

pressuposiccedilatildeo formal

Natildeo haacute uma clareza acerca da relaccedilatildeo entre verdade e mundo

objetivo apesar de este ser determinante na sua nova teoria da verdade

Nesse sentido podemos dizer que haacute um deacuteficit ontoloacutegico em Habermas

pois a ontologia aparece sempre agrave sombra em sua teoria mas nunca como

algo tematizado e sim pressuposto formalmente Ou seja haacute uma

postulaccedilatildeo da dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo propriamente da ontologia que

eacute a teoria dessa dimensatildeo A semacircntica eacute reduzida agrave pragmaacutetica (ou pelo

menos articulada em funccedilatildeo da pragmaacutetica e a ela submetida) referecircncia

central de toda a filosofia de Habermas

Como vimos antes Habermas diz que a justificaccedilatildeo natildeo pode ser mais

um criteacuterio de verdade mas ela continua sendo um mecanismo de

certificaccedilatildeo da verdade De acordo com Puntel poreacutem quando uma

sentenccedila eacute qualificada como verdadeira supotildee-se a correspondecircncia com

algo no mundo levantando-se a questatildeo de como deve ser concebido esse

algo

Se assim eacute ele [Habermas] deveria reconhecer que esta articulaccedilatildeo ou

conexatildeo eacute exprimiacutevel e portanto natildeo somente pode mas deve ser explicitada

ndash caso contraacuterio falar dela seria vazio e autocontraditoacuterio Mas isto eacute algo que

Habermas poderia ou deveria aceitar De fato ele natildeo apresenta qualquer

explicaccedilatildeo relevante da dimensatildeo da conexatildeo ou entrelaccedilamento e isto deve

ser considerado como resultado de sua posiccedilatildeo poacutes-metafiacutesica (PUNTEL

2013 p 198)

Segue-se daiacute que a articulaccedilatildeo teoacuterica da dimensatildeo pressuposta ndash do

entrelaccedilamentoconexatildeo de verdade e mundo ndash natildeo pode ser realizada

pelo discurso pragmaacutetico ou dentro de seu quadro referencial teoacuterico

pragmaacutetico Isso torna claro que a afirmaccedilatildeo de Habermas a respeito de

uma verdade incondicional eacute extremamente restrita Em suma eacute uma

afirmaccedilatildeo dentro do acircmbito da pragmaacutetica que torna Habermas incapaz

de articular uma verdade genuinamente incondicional

142 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Ele fala da importacircncia de se reconhecer a dimensatildeo da validade

incondicionada mas natildeo avanccedila para aleacutem de tal afirmaccedilatildeo Se haacute a

necessidade de separar verdade de justificaccedilatildeo ele teria que aprofundar e

tematizar o que estaacute chamando de verdadee mundo objetivo Ou seja que

algo eacute esse que se encontra para aleacutem da justificaccedilatildeo e que ao mesmo

tempo pode pocircr abaixo as justificaccedilotildees no mesmo instante em que soacute

temos acesso ao mundo objetivo pelas proacuteprias justificaccedilotildees

A mesma criacutetica de Puntel a Habermas pode ser feita a toda a tradiccedilatildeo

transcendental oriunda de Kant Este afirma que a representaccedilatildeo das

coisas como nos satildeo dadas deve regular-se como fenocircmenos e natildeo como

coisas em si Em Kant natildeo eacute possiacutevel no conhecimento a priori

acrescentar aos objetos nada a natildeo ser o que o sujeito pensante toma de si

mesmo Todavia Kant exemplifica que se natildeo eacute possiacutevel conhecermos os

objetos como coisas em si mesmas podemos contudo pensaacute-los

Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa natildeo tanto

com objetos mas com o nosso modo de conhecimento de objetos na medida

em que ele deva ser possiacutevel a priori Um sistema de tais conceitos denominar-

se-ia filosofia transcendental (KANT 1974 p 33)

Habermas segue a mesma perspectiva de Kant postulando a

intersubjetividade destranscendentalizada no lugar do sujeito

transcendental Poreacutem a orientaccedilatildeo continua a mesma quando Habermas

afirma que podemos conhecer apenas os fatos natildeo os objetos do mundo

O mundo em Habermas natildeo nos impotildee sua linguagem ele natildeo fala e soacute

responde em sentido figurado

Habermas elabora uma teoria filosoacutefica centrada na dimensatildeo

comunicativa (pragmaacutetica) Seria a partir dela que outras dimensotildees

poderiam ser compreendidas Percebemos que a dimensatildeo expositiva

(semacircntica) eacute posta em segundo plano Em Habermas o modo como as

coisas do mundo satildeo apreendidas e denominadas se orienta no contato

comunicativo entre pessoas O mundo objetivo para ele soacute eacute conhecido

com base na relaccedilatildeo com o quadro referencial da comunicaccedilatildeo Ele eacute

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 143

apenas considerado de tal modo que a interaccedilatildeo entre pessoas se faccedila

possiacutevel Contudo Habermas natildeo se interroga pela condiccedilatildeo de

inteligibilidade da proacutepria pragmaacutetica sendo sua consideraccedilatildeo do mundo

objetivo algo vago

Conclusatildeo

Habermas como vimos distingue verdade de justificaccedilatildeo

entendendo verdade tal qual demonstra Puntel de alguma maneira no

sentido da teoria da correspondecircncia relacionada ao mundo objetivo Uma

pergunta contudo permanece sem resposta em Habermas o que significa

compreender algo Eacute preciso destacar contra ele que haacute um deacuteficit acerca

de uma consideraccedilatildeo da linguagem em sua dimensatildeo estruturalno que diz

respeito agrave dimensatildeo ontoloacutegica

Se Habermas acerta na proposta de separar a verdade da justificaccedilatildeo

haja vista o problema da universalidade e da objetividade (de um mesmo

mundo para todos) ele ao mesmo tempo natildeo consegue esclarecer como

ocorre a relaccedilatildeo da co-originaridade entre exposiccedilatildeo e comunicaccedilatildeo natildeo

aprofundando o estatuto que o mundo objetivo possui em sua filosofia

teoacuterica Habermas natildeo avanccedila de forma mais profunda acerca de questotildees

ontoloacutegicas exigidas por sua nova posiccedilatildeo realista-pragmaacutetica

Ele ignora ou tenta fazer desaparecer questotildees filosoacuteficas que

tradicionalmente seriam chamadas de metafiacutesicas como a tematizaccedilatildeo do

mundo objetivo A virada radicalmente epistecircmica de toda a filosofia

moderna como no esquema transcendental deslocou o sujeito para o

centro de toda a empresa teoacuterica e desse modo tambeacutem da filosofia Fala-

se como sabemos no acircmbito da modernidade de uma filosofia do sujeito

No caso de Habermas e de seu kantismo pragmaacutetico revirado

linguisticamente podemos falar de uma filosofia centralizada na

intersubjetividade e na pragmaacutetica mas que manteacutem ainda a dicotomia

entre sujeitos e mundo

144 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Em Verdade e justificaccedilatildeo os sujeitos supotildeem em comum um

mundo objetivo como totalidade dos objetos que podem ser tratados e

apreciados Eacute justamente o conceito de fracasso performativo que nos

conduz em Habermas a uma pressuposiccedilatildeo formal de nossas accedilotildees

linguiacutesticas e de nossas intervenccedilotildees no mundo objetivo entendido como

sistema de possiacuteveis referecircncias e possiacuteveis manipulaccedilotildees

Trata-se em Habermas de um postulado que inevitavelmente temos

de fazer caso contraacuterio a fala e a intervenccedilatildeo no mundo se tornariam

impossiacuteveis Os participantes do discurso assumem a mesma

pressuposiccedilatildeo formal de um mundo independente de noacutes de nossas

descriccedilotildees de nossos esquemas conceituais

Nesse sentido em Habermas a referecircncia ao mundo natildeo eacute

apresentada como constituindo uma caracteriacutestica componente da

semacircntica da linguagem mas como um pressuposto acrescentado para

que possamos explicar nossas falas e nossas intervenccedilotildees Habermas fala

de semacircntica apenas como dimensatildeo da linguagem (Darstellung der

Welt) mas nunca a analisa Como ressalta Puntel (2013) as tentativas de

Habermas de abordar questotildees filosoacuteficas centrais sem deixar de ser fiel

ao pensamento poacutes-metafiacutesico conduziram-no a problemas

fundamentais obscuridades incoerecircncias ausecircncias de esclarecimentos e

soluccedilotildees

Referecircncias

ALVARENGA N Verdade contingecircncia e falibilismo a teoria discursiva da verdade de J

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Filosofia Belo Horizonte v 40 n 127 p 173-223 2013

8

Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes

para se Pensar a Natureza de Sistemas Formais

Uma Abordagem Wittgensteiniana

Marcos Silva 1

I want to say an education quite different from ours

might also be the foundation for quite different concepts

(Wittgenstein Zettel 387)

Em 1930 segundo algumas conversas documentadas em

Wittgenstein (1984a)2 estava discutindo com alguns membros influentes

do Ciacuterculo de Viena aspectos importantes de sua filosofia Essas

discussotildees pretendiam esclarecer novidades e dificuldades advindas da

revisatildeo e aprofundamento de toacutepicos de seu Tractatus (1984b) Neste

contexto histoacuterico fica claro pela dinacircmica das conversas que Waismann

conduziu as discussotildees para a filosofia da matemaacutetica uma vez que

Wittgenstein estava preparando-o para um painel a tomar lugar em

Koumlnigsberg naquele mesmo ano O painel trataria justamente de

diferentes perspectivas a respeito dos desafios filosoacuteficos concernentes agrave

crise dos fundamentos na matemaacutetica Nesta discussatildeo em Koumlnisberg Von

Neumann representaria o formalismo Carnap o logicismo e Heyting a

escola intuitionista Jaacute Waismann o quarto membro ilustre da mesa de

1 Professor Adjunto do curso de Filosofia da UFAL e bolsista de produtividade do CNPq (2018-2021) Agradeccedilo aos comentaacuterios valiosos de Luiz Henrique da Silva Santos a este trabalho

2 Estas discussotildees foram documentadas por Waismann e organizadas para publicaccedilatildeo por McGuinness em Wittgenstein und Wiener Kreis doravante WWK

Marcos Silva | 147

discussotildees sobre o estado da arte da filosofia da matemaacutetica seria

responsaacutevel por representar a filosofia de Wittgenstein

A literatura secundaacuteria sobre estes toacutepicos de discussatildeo acerca da

natureza da matemaacutetica no WWK de maneira frequente e acertada a meu

ver aborda os comentaacuterios de Wittgenstein como sendo muito criacuteticos em

relaccedilatildeo ao programa de Hilbert A criacutetica tinha como alvo a meta do

programa que consistia na procura por uma prova absoluta para a

consistecircncia da matemaacutetica (Hacker 1986 Engelmann 2013) Segundo

Wittgenstein provocativamente afirma a tentativa de se fornecer uma prova

absoluta da consistecircncia da aritmeacutetica seria anaacuteloga agrave procura por uma

ldquodoenccedila escondidardquo em um corpo funcional (WITTGENSTEIN 1984a p

120) Contudo acredito que o ponto faltante nesta literatura seja a observaccedilatildeo

de que nesta altura Wittgenstein natildeo foi de forma alguma criacutetico de uma

tese central da tradiccedilatildeo formalista Essa tese diz respeito agrave arbitrariedade da

sintaxe Assim como as regras de um jogo as regras da sintaxe de sistemas

formais seriam para formalistas arbitraacuterias ou seja natildeo residiriam na

essecircncia da linguagem da mente ou do mundo Com efeito Wittgenstein

teria afirmado contundentemente nas discussotildees com os membros do

Ciacuterculo de Viena que ldquoa verdade no formalismo eacute que toda sintaxe pode ser

concebida como se fosse um sistema de regras de um jogo (hellip) Eu gostaria

de afirmar que natildeo somente os axiomas da matemaacutetica mas toda a sintaxe eacute

arbitraacuteriardquo (WITTGENSTEIN 1984a p103 minha traduccedilatildeo)

Minha hipoacutetese de trabalho para se entender esta formulaccedilatildeo forte

de Wittgenstein eacute a de que ela ilustra a sua reaccedilatildeo agrave visatildeo de Frege esta

muito criacutetica ao formalismo Esta reaccedilatildeo me parece ser baseada em uma

ainda incipiente aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de jogos para se entender de maneira

geral a natureza das regras da sintaxe e particularmente a proacutepria noccedilatildeo

de sistemas formais Em junho de 1930 Wittgenstein e Waismann estavam

lendo Grundgetsetze II de Frege em Viena como a entrada ldquoo que dizer

em Koumlnigsbergrdquo do WWK nos mostra No Grundgesetze II Frege (1903

sect106-119) defendeu inter alia contra teses formalistas que identificam a

natureza de sistemas formais com jogos que 1) nuacutemeros da aritmeacutetica natildeo

148 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

podem ser reduzidos a meros sinais ou marcas fiacutesicas porque por

exemplo lsquo0rsquo natildeo tem a propriedade de resultar no sinal lsquo1rsquo quando

adicionado ao sinal lsquo1rsquo ou seja sinais fiacutesicos eles mesmos em uma folha

de papel por exemplo natildeo possuem propriedades matemaacuteticas 2) que

uma contradiccedilatildeo um conceito propriamente loacutegico pode somente ocorrer

nas regras do jogo de xadrez e natildeo nas configuraccedilotildees baacutesicas isto eacute em

nenhum arranjo fiacutesico atual de peccedilas (do xadrez) e 3) que eacute impossiacutevel

inferir regras de um sistema formal pela mera inspeccedilatildeo de posiccedilotildees de

alguns sinais assim como seria impossiacutevel inferir as regras de um jogo de

tabuleiro dado a partir da mera disposiccedilatildeo de suas peccedilas

Nesta altura nas discussotildees com Waismann Wittgenstein parece

concordar com todas essas criacuteticas de Frege ao formalismo contudo vale

notar que Wittgenstein (1984a p 105) acusou indiretamente Frege de ter

cometido uma espeacutecie de falaacutecia do falso dilema se loacutegica e matemaacutetica

natildeo satildeo uma questatildeo de mera inspeccedilatildeo de sinais fiacutesicos ou da disposiccedilatildeo

de marcas materiais em um folha de papel por exemplo o significado de

seus sinais natildeo precisam ser fundados em seu Bedeutung ou seja em sua

referecircncia a entidades abstratas como Frege argumentou Wittgenstein

critica o seguinte raciociacutenio Se o significado de sinais em um sistema

formal natildeo pode ser dado pela mera configuraccedilatildeo de suas marcas fiacutesicas

entatildeo o seu significado deveria ser dado pela sua referecircncia a

determinados objetos especiais Wittgenstein parece ter defendido que ou

bem Bedeutung ou bem meramente sinais fiacutesicos natildeo satildeo todas as

alternativas neste horizonte De fato noacutes precisamos de sinais isto eacute de

algumas marcas fiacutesicas organizadas para a elaboraccedilatildeo de sistemas formais

variados mas noacutes precisamos ainda de regras para manipular estes sinais

Como consequecircncia uma compreensatildeo adequada da metaacutefora de jogos

dos formalistas deveria redundar na assimilaccedilatildeo da ideia que noacutes natildeo

precisamos nos engajar com algum Bedeutung transcendente ao jogo ele

mesmo para garantirmos que os sinais de um sistema formal tenham

significado Em outras palavras sinais seriam sim necessaacuterios mas natildeo

suficientes para a constituiccedilatildeo de um sistema formal mas nem por isso

Marcos Silva | 149

deveriacuteamos postular uma referecircncia a coisas fora do sistema ele mesmo

para dotaacute-lo de significado caso compreendamos a natureza das regras

que organizam o sistema e governam a manipulaccedilatildeo dos seus sinais

Eacute importante notar que Wittgenstein depois desta criacutetica

imediatamente comeccedila a usar o vocabulaacuterio que Frege introduziu ao criticar

formalistas a saber sistemas formais como jogos mas natildeo a posiccedilatildeo de

Frege de que a loacutegica deveria representar leis de uma realidade abstrata

Parece que Frege assumiu o vocabulaacuterio formalista como o de regras e

jogos para mostrar em uacuteltima instacircncia seu absurdo ou ao menos sua

implausibilidade para se entender a aritmeacutetica e a loacutegica Acredito que

Wittgenstein assumiu o vocabulaacuterio formalista de Frege mas condenou seu

falso dilema a saber ou bem somente sinais ou bem a necessidade de um

Bedeutung ao mostrar que formalistas fazem um bom ponto ao defenderem

que toda a sintaxe eacute arbitraacuteria como as regras de jogos Wittgenstein

assumiu o vocabulaacuterio formalista de jogos para mostrar que quaisquer

regras sintaacuteticas poderiam ser outras as regras de sistemas formais natildeo

precisam estar ancoradas na realidade mesmo que rejeitemos que natildeo

devem ser redutiacuteveis a meros sinais ou marcas fiacutesicas Nestas discussotildees

documentadas em WWK Wittgenstein natildeo parecia estar preocupado com

nenhuma lei loacutegica da realidade ou do pensamento mas sim com as regras

para manipular sinais que satildeo estipuladas quando noacutes estipulamos um

sistema loacutegico Ao se entender sistemas como jogos deveriacuteamos entendecirc-los

como independentes de uma realizaccedilatildeo material especiacutefica uma vez que o

fato de o rei num jogo de xadrez ser de plaacutestico madeira ou ateacute mesmo uma

bola de papel eacute irrelevante para a constituiccedilatildeo do proacuteprio sistema Os

sistemas formais como jogos deveriam ser compostos de marcas fiacutesicas sim

mas que possam exercer funccedilotildees variadas no sistema sempre determinadas

pelas regras de manipulaccedilatildeo do jogo

Neste periacuteodo histoacuterico no comeccedilo da deacutecada de 1930 a discussatildeo de

Wittgenstein estaacute ainda circunscrita agrave natureza de sistemas formais e natildeo

eacute desenvolvida para um entendimento geral da linguagem ou das

atividades humanas como um todo Wittgenstein eacute um pensador radical

150 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Eacute razoaacutevel defender que o desenvolvimento de sua filosofia madura possa

ser visto como o desenvolvimento proacuteprio das consequecircncias radicais

desta metaacutefora de jogos natildeo somente para entender matemaacutetica e loacutegica

mas para se entender a linguagem a intencionalidade e a normatividade

peculiares de atividades de seres humanos

No que se segue eu gostaria de responder a pergunta acerca do

porquecirc e de como a noccedilatildeo de jogos desenvolvida por Wittgenstein em 1930

(e nāo de jogos de linguagem porque ele natildeo tinha ainda este conceito

nesta eacutepoca) poderia ainda ser relevante para a filosofia da loacutegica Esta

questatildeo fica ainda mais premente ao considerarmos os problemas

contemporacircneos associados agrave emergecircncia de tantos sistemas natildeo-claacutessicos

legiacutetimos e seu desafio agrave natureza da racionalidade

Eu natildeo pretendo apresentar aqui um quadro nem original e nem

exaustivo de caracteriacutesticas filosoficamente importantes de sistemas

formais ao serem vinculadas a natureza de jogos Mas em vez disso eu

espero defender algumas intuiccedilotildees de Wittgenstein no comeccedilo da deacutecada

de 1930 sobre jogos e regras antes mesmo de suas noccedilotildees maduras (e

elusivas) de jogos de linguagem e semelhanccedila de famiacutelia Minhas

preocupaccedilotildees natildeo redundam em avanccedilar e defender todas as ideias

associadas agrave loacutegica como jogos mas restringir minhas ambiccedilotildees a

promover esta visatildeo filosoacutefica como cogente

Eacute importante evidenciar que os primeiros sistemas de ldquodeduccedilatildeo

naturalrdquo como introduzidos por Jaskowski (1934) e Gentzen (1934-35)

foram desenvolvidos na deacutecada de 1930 Nestes sistemas axiomas

foacutermulas bem formadas e pretensamente evidentes de onde se partem as

derivaccedilotildees satildeo substituiacutedos por conjuntos de inferecircncias que definem o

significado do vocabulaacuterio loacutegico de maneira que natildeo faz sentido dizer que

um sistema loacutegico descreve alguma coisa na realidade Embora as

conexotildees entre diferentes abordagens da loacutegica na deacutecada de 1930 e o

embate contemporacircneo entre teoria da prova e teoria de modelos sejam

histoacuterica e conceitualmente importantes seu exame natildeo estaacute no escopo

deste trabalho

Marcos Silva | 151

Com efeito muito mais poderia ser dito a respeito de jogos e seu uso

em abordagens anti-realistas na loacutegica e na epistemologia A teoria de

jogos foi oficialmente apresentada em 1944 mas foi antecipada por Borel

na deacutecada de 1920 Aleacutem disso a analogia com jogo de xadrez foi

frequentemente usada por exemplo por Weyl (1944) para criticar o

formalismo de Hilbert Vale tambeacutem notar que depois da segunda guerra

mundial o loacutegico Paul Lorenzen (1961) desenvolveu uma influente loacutegica

baseada em jogos dialoacutegicos materiais Estes jogos natildeo foram

influenciados por Wittgenstein mas por outras sugestotildees filosoacuteficas de

natureza construtivista Estes exemplos mostram a seminalidade filosoacutefica

e teacutecnica em se aplicar a metaacutefora do jogo agrave loacutegica independentemente de

uma abordagem wittgensteiniana Um projeto de pesquisa mais

abrangente a respeito disto parece ser bem-vindo

No que se segue eu natildeo estou interessado diretamente na exegese da

filosofia de Wittgenstein3 portanto natildeo vou me concentrar em seu

desenvolvimento filosoacutefico Eu proponho em vez disso oferecer uma

abordagem filosoacutefica mais geral sobre a loacutegica que tambeacutem poderia ser uacutetil

para se entender a natureza do vocabulaacuterio loacutegico

De fato a seguir eu seleciono e brevemente discuto algumas

caracteriacutesticas filosoficamente atraentes a respeito de se pensar loacutegica em

termos de regras em jogos isto eacute em tomar loacutegica como um conjunto de

praacuteticas governadas por regras engajadas por agentes racionais A

motivaccedilatildeo principal aqui eacute a respeito de como esta abordagem poderia ser

filosoficamente seminal para se entender loacutegica e racionalidade em um

ambiente de uma grande pluralidade de jogos Em outras palavras eu vou

mostrar como ao aceitarmos a ideia de sistemas loacutegicos como jogos

poderiacuteamos nos prover de ferramentas filosoacuteficas e loacutegicas para se avanccedilar

discussotildees contemporacircneas em filosofia da loacutegica

Um primeiro ponto relevante em se desenvolver a metaacutefora formalista

a respeito de sistemas formais como jogos eacute o anti-representacionismo

3 Estes problemas conceituais e histoacutericos satildeo tatildeo importantes quanto controversos por um nuacutemero grande razotildees Ver Engelmann (2013) para uma apresentaccedilatildeo mais detalhada Algum anacronismo seraacute cometido no presente trabalho

152 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Regras de um jogo natildeo precisam descrever a experiecircncia e nem a realidade

Regras natildeo podem ser falsificadas e nem verificadas pela experiecircncia uma

vez que natildeo satildeo proposiccedilotildees empiacutericas e natildeo descrevem nada

(WITTGENSTEIN 1984b 61222) De fato noacutes testamos nossa experiecircncia

do mundo usando regras como criteacuterio mas a regra ela mesma natildeo pode

ser testada pela experiecircncia como uma proposiccedilatildeo descrevendo-a pode ser

testada Uma distinccedilatildeo deve ser feita aqui por um lado noacutes testamos uma

proposiccedilatildeo a partir da experiecircncia porque a proposiccedilatildeo descreve o que

ocorre falsa ou verdadeiramente por outro lado proposiccedilotildees empiacutericas satildeo

diferentes de regras na medida em que noacutes testamos ou avaliamos a

qualidade de nossas descriccedilotildees usando algumas regras como criteacuterios Os

criteacuterios eles mesmo natildeo satildeo nem verdadeiros nem falsos Criteacuterios podem

contudo ser tomados como adequados ou inadequados para um

determinado contexto ou uso mas eles natildeo podem ser falsificados a partir

da comparaccedilatildeo com a realidade O motivo da recusa ou rejeiccedilatildeo de criteacuterios

para avaliar a qualidade de nossas praacuteticas discursivas satildeo quase sempre

pragmaacuteticas ou seja baseados na sua legitimidade ou adequaccedilatildeo conceitual

em contextos variados de accedilatildeo e natildeo metafiacutesicos

Outro ponto relevante envolvido na abordagem da loacutegica a partir da

noccedilatildeo de jogos eacute a ecircnfase na generalidade ao inveacutes da universalidade do

conhecimento Regras satildeo gerais isto eacute noacutes podemos compreender um

sistema complexo com um nuacutemero pequeno de regras simples e gerais e

estas natildeo satildeo e natildeo precisam ser universais ou seja ser vaacutelidas para o

domiacutenio de todas as coisas Regras satildeo aplicadas a muitos casos por pessoas

diferentes em contextos diferentes e em muitos periacuteodos diferentes Neste

sentido uma regra natildeo eacute conectada com uma situaccedilatildeo particular mas sim

com uma multiplicidade de situaccedilotildees possiacuteveis Noacutes podemos muito bem

entender um sistema complexo em um momento pela compreensatildeo das

regras que governam seu comportamento De fato a partir do entendimento

comum da noccedilatildeo de regras noacutes podemos pensaacute-las como uma foacutermula geral

que pode determinar um nuacutemero infinito de aplicaccedilotildees

Marcos Silva | 153

Ademais como em uma perspectiva funcionalista para o

entendimento do comportamento de sistemas complexos podemos

associar o desenvolvimento da metaacutefora formalista de jogos com uma

reaccedilatildeo criacutetica ao essencialismo uma vez que natildeo precisamos entender a

essecircncia do mundo para entender o funcionamento de sistemas loacutegicos

Por outro lado esta metaacutefora tambeacutem redunda em uma criacutetica ao

fisicalismo uma vez que a base material eacute irrelevante para o entendimento

da constituiccedilatildeo do significado a partir das regras de um dado sistema O

que Wittgenstein defende eacute um desenvolvimento importante da analogia

formalista de sistemas formais com jogos a saber assim como a base

material de um jogo de tabuleiro natildeo define o significado de suas peccedilas os

sinais na folha de papel por exemplo natildeo determinam o significado destas

marcas Satildeo contudo as regras que fixam o significado tanto das peccedilas do

jogo quanto dos sinais em um sistema formal

Vale notar tambeacutem que um jogo ou uma atividade regrada natildeo

precisa nem ter uma justificaccedilatildeo e nem ter uma fundamentaccedilatildeo Hacker

(1986) apresenta esta caracteriacutestica de jogos como a autonomia ou

arbitrariedade da sintaxe Isto significa que noacutes natildeo precisamos pensar ou

entender a essecircncia da linguagem ou do mundo para aprender como jogar

um jogo Jogos sāo auto-contidos o que eacute dito ou feito em um jogo natildeo

precisa ter nenhuma relaccedilatildeo com o que eacute feito num outro jogo Aqui noacutes

podemos ter uma interessante liberaccedilatildeo de restriccedilotildees metafiacutesicas

relacionadas agrave exigecircncia de referecircncia ao mundo para que estruturas

linguiacutesticas tenham significado uma vez que jogos natildeo precisam ser

pensados em relaccedilatildeo a alguma coisa isto eacute eles natildeo precisam ser

comportar de acordo com um fato determinado no mundo

Em se jogando jogos noacutes temos um claro aspecto de Handlung

dentro de sua dinacircmica loacutegica Ou seja para entendermos o que eacute um jogo

noacutes somos obrigados a pensarmos em termos de alguma accedilatildeo passos

(ldquomovesrdquo) operaccedilotildees ou em uma palavra praacuteticas em atividades regradas

(geregelte Handlung) Existe um niacutevel performativo mandataacuterio em jogos

Regras satildeo instruccedilotildees para atividades (jogos) ou para a construccedilatildeo de algo

154 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

por exemplo A ecircnfase filosoacutefica deve estar no procedimento pelo qual ou

a teacutecnica a partir da qual alguma performance eacute desempenhada e natildeo no

conhecimento proposicional a partir do qual o mundo eacute conhecido

verdadeiramente Natildeo eacute acidental que regras com frequecircncia funcionem

como normas para a accedilatildeo uma vez que expressam o que eacute considerado

adequado ou inadequado correto ou incorreto aceitaacutevel ou inaceitaacutevel

legiacutetimo ou ilegiacutetimo Um operador loacutegico neste contexto pode ser

tomado apenas como um procedimento tomado como legiacutetimo pelo qual

manipulamos sinais ou como uma seacuterie de manipulaccedilotildees permitidas que

contribui com o significado para proposiccedilotildees complexas

Nesta visatildeo que enfatiza o elemento humano em sistemas formais

como atividades regradas de seres humanos uma via de compatibilidade

com o pluralismo loacutegico a tese contemporacircnea que defende a

possibilidade de vaacuterios sistemas loacutegicos conflitantes serem legiacutetimos

conjuntamente pode ser pavimentada Ao se manter que sistemas loacutegicos

satildeo jogos noacutes podemos falar de maneira muito natural a respeito de vaacuterios

caacutelculos sem que precisemos nos comprometer com a verdade ou a

falsidade de alguns deles Com efeito caacutelculos natildeo podem ser falsos no

mesmo sentido que uma proposiccedilatildeo empiacuterica pode ser falsa Mesmo a

loacutegica proposicional entendida classicamente natildeo pode ser verdadeira ou

falsa Como eacute defendido aqui um jogo natildeo pode ser nem falso nem

verdadeiro uma vez que natildeo precisa descrever nada

Aleacutem disso vale notar que natildeo haacute nem um jogo sem regra ou seja

num certo sentido natildeo haacute um jogo anaacuterquico nenhuma regra sem jogo

ou uma regra sem o sistema em que ela deva estar situada Em outras

palavras regras satildeo mortas sem um sistema e um sistema sem regras natildeo

eacute realmente um sistema Aqui noacutes temos uma motivaccedilatildeo para introduzir

o que podemos chamar de holismo loacutegico para cada passo (ldquomoverdquo) ou

operaccedilatildeo em uma atividade governada eles devem estar inseridos em um

sistema Analogamente em sistemas formais operaccedilotildees ganham

significado em relaccedilatildeo a muitas outras Como resultado desta visatildeo

Marcos Silva | 155

mudar uma regra formal significa mudar o jogo uma vez que natildeo haacute

mudanccedila local que natildeo impactaria globalmente no sistema formal inteiro

O desenvolvimento da visatildeo formalista inspirada por Wittgenstein

tambeacutem permite as propriedades muito seminais de sistemas formais

como flexibilidade e plasticidade a partir da noccedilatildeo de jogos Em principio

noacutes podemos rejeitaraceitar ou mudar qualquer regraprinciacutepio em um

sistema loacutegico (claro evitando trivializaccedilāo com notado por Da Costa

1958) Em outras palavras operar em um sistema loacutegico eacute um Handlung

com signos governado por regras que satildeo convencionais no sentido que

poderiam ser outras

Consequentemente noacutes podemos rejeitar a visatildeo tiacutepica a respeito da

normatividade oferecida pelo realista monista Se noacutes temos apenas uma

uacutenica loacutegica verdadeira natildeo importando aqui qual e se a loacutegica determinar

as condiccedilotildees de inteligibilidade de nossas praacuteticas e os limites de nossa

racionalidade entatildeo eacute faacutecil transformar a discussatildeo loacutegica em uma discussatildeo

normativa qualquer desvio da supostaloacutegica verdadeira (como qualquer

outra loacutegica com outros princiacutepios) deveria ser tomado como contrassensual

Desvios sob o ponto de vista de um monista satildeo instacircncias de mau raciociacutenio

ou mesmo ilustraccedilotildees de nenhum raciociacutenio ou seja de que nenhum

raciociacutenio foi de fato feito Se noacutes levarmos a noccedilatildeo de jogos devidamente a

seacuterio a resposta para a normatividade da loacutegica fica encapsulada em normas

de accedilatildeo ou em instruccedilotildees para praacuteticas associadas com uma finalidade

particular Eacute evidente que noacutes poderiacuteamos ter outras normas como de fato

outras comunidades tecircm Com efeito existem outras comunidades que

obedecem outras regras uma comunidade de matemaacuteticos de orientaccedilatildeo

intuicionista por exemplo (LOumlF 1996 2013)

Como um uacuteltimo ponto para a relevacircncia filosoacutefica de se pensar

sistemas formais como jogos vale se destacar que regras satildeo puacuteblicas e

natildeo fundamentadas em representaccedilotildees privadas mentais ou em quaisquer

leis da mente Regras devem ser aprendidas em um ambiente social e a

partir de interaccedilotildees sociais Aqui a noccedilatildeo de educaccedilatildeo ou de iniciaccedilatildeo em

uma praacutetica naturalmente ganha importacircncia dentro do escopo da

156 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

discussatildeo em filosofia da loacutegica e da matemaacutetica Esta visatildeo encoraja

consequentemente uma virada antropoloacutegica na abordagem de sistemas

formais uma vez que enfatiza o niacutevel institucional e social na performance

de um jogo A questatildeo natural eacute Quem joga o jogo Quem aplica os

sistemas autocircnomos ao mundo Responder a esta questatildeo propondo um

sujeito metafiacutesico imaterial fora do mundo ou mesmo um

transcendental impondo estruturas a priori as suas representaccedilotildees

parece ser altamente inadequado Uma resposta natural deveria ser que

indiviacuteduos materiais com uma histoacuteria natural e social jogam os jogos ou

performam atividades regradas em uma comunidade de outros

indiviacuteduos Com efeito regras devem ser sempre associadas com uma

forma de vida Um indiviacuteduo radicalmente isolado natildeo pode jogar um jogo

ou seguir uma regra se noacutes aceitarmos as consequecircncias do famoso

argumento contra a linguagem privada de Wittgenstein em suas

Investigaccedilotildees filosoacuteficas Um jogo jogado objetivamente deve poder ser

ensinado para outros indiviacuteduos a partir dos criteacuterios puacuteblicos pelos quais

se corrigem passos inadequados ou ilegiacutetimos em atividades regradas

Com estas observaccedilotildees neste curto ensaio pretendi mostrar como a

noccedilatildeo de jogos pode ainda ser relevante filosoficamente para se entender a

natureza de sistemas formais a partir de uma abordagem wittgensteiniana

usando principalmente os textos compilados como WWK

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Suhrkamp 1984a

_____ Tractatus logico-philosophicus Tagebuumlcher 1914-16 philosophische

untersuchungen Werkausgabe Band 1 Frankfurt am Main Suhrkamp 1984b

9

Revisitando o Argumento da Linguagem Privada

Marcus Joseacute Alves de Souza 1

Introduccedilatildeo

Falar de ldquolinguagem privadardquo aponta para um conceito intuitivamente

ou aparentemente contraditoacuterio como pode existir uma linguagem privada

uma vez que a linguagem de um ponto de vista simplista pressupotildee

comunicaccedilatildeo interaccedilatildeo entre falantes Linguagem privada parece um

oxiacutemoro patente Entretanto do ponto de vista teoacuterico a depender de qual

moldura teoacuterica do significado se adere ldquolinguagem privadardquo natildeo eacute algo tatildeo

contraditoacuterio assim Deste modo ao se falar de ldquoargumento da linguagem

privadardquo natildeo se estaacute pensando num argumento que demonstre a

plausibilidade da linguagem privada Na acepccedilatildeo corrente dos estudos sobre

o pensamento de Wittgenstein objeto desta reflexatildeo ldquoargumento da

linguagem privadardquo eacute o argumento mais especificamente os argumentos

que tecircm a linguagem privada como objeto a rigor argumentos contra a

linguagem privada Segundo Hacker (2010 p 616) o que a expressatildeo indica

natildeo satildeo argumentos claros que o filoacutesofo apresenta na verdade satildeo

argumentos de tortuosa interpretaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo presentes nos

paraacutegrafos de 243 a 315 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

A proposta deste artigo eacute modesta Primeiro apresentar um possiacutevel

modo de estruturaccedilatildeo do argumento que tornaria plausiacutevel uma

linguagem privada argumento se de enquadra no acircmbito de uma

1 Professor de Filosofia da UFAL Liacuteder do Grupo Linguagem e Cogniccedilatildeo-UFAL

Marcus Joseacute Alves de Souza | 159

compreensatildeo mental de caraacuteter privatista A seguir indicar trecircs pontos de

ataques contra o argumento extraiacutedos dos paraacutegrafos das Investigaccedilotildees

Filosoacuteficas tentando mostrar falhas nas premissas do argumento

formalizado da plausibilidade da linguagem privada Feito isso encerra-

se o artigo anunciando brevemente alguns elementos desdobrados da

proposta do filoacutesofo para pensar o mental dentro do quadro da

compreensatildeo de linguagem do filoacutesofo

Argumento a Favor da Linguagem Privada

Natildeo eacute claro que Wittgenstein tenha em mente um alvo apenas de ataque

nos trechos indicados como referecircncia do que ficou conhecido como

ldquoargumento da linguagem privadardquo2 todavia eacute possiacutevel determinar que o

filoacutesofo busca atacar certa imagem de privacidade que podemos chamar de

moderna e o modelo de teoria do significado subjacente a tal privacidade

modelo mentalista de significado Nesta imagem existe o mundo da proacutepria

mente e o mundo exterior agrave mente dos objetos materiais e da mente das

outras pessoas O mundo da proacutepria mente eacute privado inicialmente

encapsulado em si e acessiacutevel privadamente de modo direto ao sujeito mental

e de modo indireto por outros sujeitos mentais (outras mentes)

Numa acepccedilatildeo cartesiana a mente eacute uma substacircncia imaterial ligada

ao corpo do portador da mente mas o corpo poderia existir por si proacuteprio

Na mente cartesiana se desenrola os pensamentos sentimentos

sensaccedilotildees Estes satildeo fundamentalmente privados Tal compreensatildeo cria

um problema efetivo quanto ao conhecimento de outras mentes

Tal imagem tambeacutem sobrevive numa acepccedilatildeo empirista mesmo que

o candidato a mente seja algo empiricamente observaacutevel o ceacuterebro Parece

existir uma dificuldade em transpor das operaccedilotildees neuroloacutegicas toda a

gama de manifestaccedilotildees comportamentais e toda a gama de capacidades

2 Eacute possiacutevel perceber que o ataque eacute claro para uma imagem cartesiana de mente bem como o modelo linguagem x designaccedilatildeo no ldquoargumento da linguagem privadardquo mas eacute possiacutevel perceber pelo itineraacuterio reflexivo do filoacutesofo que mesmo uma compreensatildeo empiacuterica mentalista da linguagem ou mesmo o ataque pode se conectar com problemas detectados naquilo que foi o projeto de linguagem fenomenoloacutegica Cf Nielsen 2008 Parte I

160 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

intelectuais disposiccedilotildees etc da nossa espeacutecie e de outras semelhantes o

que faz com que se estabeleccedila uma independecircncia de esferas mental e

fiacutesica (manifestaccedilotildees comportamentais x operaccedilotildees neuronais) que

alimenta a mesma imagem de mente

A compreensatildeo que a mente eacute algo privado e que a linguagem eacute

expressatildeo externa do que estaacute interno eacute a concepccedilatildeo em termos gerais

comum tanto do idealismoracionalismo quanto do

fisicalismoempirismo Isso cria um problema para o conhecimento de

outras mentes sendo que o encaminhamento da soluccedilatildeo se estabeleccedila por

analogia entre minha mente que tenho acesso direto e a mente dos

outros que numa hipoacutetese otimista tenho acesso indireto

Assim um dos alvos talvez o principal dos trechos das Investigaccedilotildees

Filosoacuteficas seja a compreensatildeo privada da mente e associada a esta a

teoria do significado que decorre desta privacidade que daacute condiccedilotildees para

se pensar uma linguagem privada No sect 243 Wittgenstein (1999) daacute as

bases para esta linguagem Natildeo se trata de uma linguagem

circunstancialmente privada algo como monoacutelogos criptografados mas

uma linguagem radicalmente privada A indicaccedilatildeo do filoacutesofo eacute uma

linguagem que diga respeito agraves proacuteprias ocorrecircncias mentais vivecircncias

interiores que seriam nesta moldura radicalmente privadas

Mas seria tambeacutem pensaacutevel uma linguagem na qual algueacutem pudesse para seu

uso proacuteprio anotar ou exprimir suas vivecircncias interiores ndash seus sentimentos

seus estados de espiacuterito ndash Natildeo podemos fazer isso em nossa linguagem

costumeira ndash acho que natildeo As palavras dessa linguagem devem referir-se

agravequilo que apenas o falante pode saber agraves suas sensaccedilotildees imediatas privadas

Um outro pois natildeo pode compreender esta linguagem (WITTGENSTEIN

1999 p 98 sect 243)

Assim aquilo sobre de que a linguagem se compotildee signos regras

referecircncia enfim todos seus elementos seriam privados apenas o criador-

usuaacuterio definiria o significado e apenas ele saberia o significado dos signos

De modo esquemaacutetico o argumento a favor da possibilidade de uma

linguagem privada poderia ser feito assim

Marcus Joseacute Alves de Souza | 161

- ldquoSensaccedilotildees satildeo privadas da mente da pessoa que as temrdquo (premissa 1 = P1)

- ldquoAs sensaccedilotildees satildeo inacessiacuteveis a outras pessoas uma vez que os outros natildeo tecircm

certeza se algueacutem tem ou natildeo uma sensaccedilatildeo particularrdquo (premissa 2 = P2)

- ldquoAlgueacutem pode dar um nome a uma sensaccedilatildeo particular na privacidade de sua mente

e usar este nome e o acerto deste nome nunca seria acessado por ningueacutem a

natildeo ser o usuaacuterio privadordquo (premissa 3 = P3)

- ldquoO significado de um termo nesta linguagem nada mais eacute que a referecircncia de uma

ocorrecircncia mental (sensaccedilatildeo) e seu modo de expressatildeo (signo) sobre uma

sensaccedilatildeo presente ou passada eacute a simples indicaccedilatildeo privada (ostensatildeo) desta

ocorrecircncia mentalrdquo (premissa 4 = P4)

rarr ldquoA linguagem privada eacute possiacutevel seria a linguagem de nossas ocorrecircncias

mentaisrdquo (Conclusatildeo)

Fazendo uma avaliaccedilatildeo inicial dessas premissas se pode estabelecer

sobretudo dentro de uma moldura privatista da mente e uma concepccedilatildeo

mentalista do significado que existe uma certa plausibilidade do argumento

A premissa 1 (P1) parece ser verdadeira as ocorrecircncias mentais as

sensaccedilotildees satildeo privadas ldquoningueacutem sente a minha dorrdquo por exemplo eacute uma

afirmaccedilatildeo claramente verdadeira o que aponta para a verdade da

premissa 1

A premissa 3 (P3) parece ser verdadeira tambeacutem parece ser

plausiacutevel admitir sua verdade Sendo privadas e sendo algo as sensaccedilotildees

podem ser nomeadas como qualquer objeto exterior na linguagem puacuteblica

(mesmo que passe por um processo mental de representaccedilatildeo) Como

apenas o criador e usuaacuterio conhece o termo soacute ele conhece sua associaccedilatildeo

referencial com o objeto e soacute ele conhece o objeto logo eacute possiacutevel admitir

que soacute ele sabe se acertou ou natildeo no uso deste termo

A premissa 4 (P4) tambeacutem pode ser plausiacutevel uma vez que pode se

admitir que o ato de ostensatildeo eacute fundamental para a instanciaccedilatildeo do

significado de um termo eacute possiacutevel admitir que semanticamente o

significado de um termo eacute sua substituiccedilatildeo por ostensatildeo no plano da

linguagem e como os elementos satildeo privados tal mecanismo pode ser

executado privadamente

162 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A premissa 2 (P2) parece ser a problemaacutetica pois parece existir uma

seacuterie de situaccedilotildees que claramente sabemos que uma pessoa tem dor por

exemplo o que aponta para uma implausibilidade da premissa Claro que

existem situaccedilotildees de simulaccedilatildeo de sensaccedilotildees mas seraacute possiacutevel duvidar que

ao enfiar um prego debaixo da unha de uma pessoa ela natildeo tenha dor Os

mais aferrados agrave moldura privatista da mente podem pensar que no maacuteximo

o que posso fazer eacute dado agraves reaccedilotildees da pessoa (comportamento) supor que

ela estaacute tendo dor pois natildeo sinto a dor dela logo natildeo tenho condiccedilotildees de

dizer com certeza que ela tem ou natildeo dor Assim mesmo que se possa pensar

que haacute uma inconfundiacutevel expressatildeo comportamental de dor natildeo existe clara

e confiaacutevel regularidade entre causa e efeito no caso das sensaccedilotildees Por mais

regular que seja a relaccedilatildeo entre enfiar um prego debaixo de uma unha de

algueacutem e este algueacutem gritar chorar se contorcer parece possiacutevel pensar

contra-exemplos desta regularidade algueacutem que fique impassiacutevel por

exemplo Assim parece natildeo existir uma correlaccedilatildeo perfeita entre tiacutepica causa

do comportamento de dor a dor e o comportamento de dor o que torna mais

plausiacutevel a premissa 2

Esta avaliaccedilatildeo preliminar tem como objetivo reforccedilar as bases da

plausibilidade da admissatildeo da linguagem privada P1 aponta para o

aspecto da natureza privada das ocorrecircncias mentais P2 para a dimensatildeo

epistemoloacutegica das ocorrecircncias mentais P3 e P4 para o mecanismo

semacircntico da proposta de linguagem privada

O exemplo recorrente de Wittgenstein eacute o da dor em algumas

ocasiotildees trabalha tambeacutem com o exemplo das cores Natildeo se pretende fugir

desses exemplos pois dado a sua vivacidade e forccedila retoacuterica servem

melhor para esclarecer a questatildeo e desdobrar para outros exemplos

Pontos de Ataque ao Argumento

A seguir tentaremos indicar a partir das reflexotildees de Wittgenstein o

ataque a este argumento na verdade indicando a inadmissibilidade do

argumento proposto para embasar a possibilidade da linguagem privada

Marcus Joseacute Alves de Souza | 163

A Engrenagem Solta

Este ponto de ataque pode ser detectado na sequecircncia dos paraacutegrafos

271 272 279 e 293 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

Eacute uma das metaacuteforas recorrentes de Wittgenstein para explicar a

linguagem a das engrenagens Assim aponta para o fato do significado ser

uma articulaccedilatildeo de uma seacuterie de elementos

Para a formulaccedilatildeo deste ataque os paraacutegrafos apontam para a

ambiguumlidade possiacutevel na denotaccedilatildeo do significado de palavras de cores

Nos paraacutegrafos eacute possiacutevel perceber a alegaccedilatildeo de que cada pessoa processa

seu exemplar de cor na sua mente e que existe a possibilidade de confusatildeo

na denotaccedilatildeo das cores Eacute possiacutevel que eu e parte da humanidade tenham

uma sensaccedilatildeo de vermelho e outra parte tenha outra sensaccedilatildeo cromaacutetica

(WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 272)

Um empirista como Locke admite a mesma situaccedilatildeo mas

sabiamente ele aponta (como Wittgenstein) que eacute uma situaccedilatildeo

inverificaacutevel Ou seja se vocecirc tem um exemplar privado na memoacuteria que

vocecirc chama de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute verde e eu tenho um

exemplar privado que eu chamo de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute azul e

um terceiro chama seu exemplar privado de ldquovermelhordquo e ele na realidade

eacute vermelho Dado a privacidade efetiva natildeo posso verificar os exemplares

privados dos trecircs A questatildeo mais problemaacutetica entra pela porta dos fundos

pela linguagem Para Locke ndash e aqui eacute a oportunidade de expor uma teoria

mentalista standart do significado - os nomes satildeo marcas sensiacuteveis de ideias

armazenadas na memoacuteria assim as palavras estatildeo em associaccedilatildeo com ideias

da mente Se uma palavra natildeo ldquoexecutardquo a mesma ideia armazenada na

mente de duas pessoas ou mais pessoas ela natildeo seraacute significativa

Quando um homem fala com outro o faz para que possa ser entendido e o fim

da fala implica que estes sons como marcas devem tornar conhecidas suas

ideias ao ouvinte Essas palavras entatildeo satildeo as marcas das ideias de quem fala

ningueacutem pode aplicaacute-las como marcas imediatamente a nenhuma outra coisa

164 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

exceto agraves ideias que ele mesmo possui jaacute que isto as tornaria sinais de suas

proacuteprias concepccedilotildees e ao contraacuterio aplicaacute-las a outras ideias faria com que elas

fossem e natildeo fossem ao mesmo tempo sinais de suas ideias e deste modo natildeo

teriam de nenhum modo qualquer significado (LOCKE 1983 p 222)

Assim no uso puacuteblico o desacordo eacute detectaacutevel uma vez que um dos

falantes mostre publicamente o que eacute que ele tem como exemplar de

ldquovermelhordquo do mesmo modo o outro e assim aleacutem de detectar o desacordo

superaacute-lo isso mantendo a moldura mentalista Cores a princiacutepio satildeo

elementos ou aspectos fiacutesicos de objetos fiacutesicosmateriais uma vez que se

tem a vantagem de poder ldquomostrarrdquo exteriormente um exemplar fiacutesico

similar ou idecircntico com a cor para superar a ambiguumlidade Transpor esta

problemaacutetica para o exemplo da dor torna a situaccedilatildeo bem mais problemaacutetica

e complexa Dor eacute uma sensaccedilatildeo sendo privada ningueacutem que natildeo tenha a

experiecircncia da sensaccedilatildeo de dor saberaacute o que significa o signo qualquer que

o designa Se o usuaacuterio e falante do signo dor usa-o para significar X num

momento e noutro para significar Y natildeo haveraacute desacordo nem

possibilidade de verificaccedilatildeo Na verdade seraacute tomado pelo usuaacuterio da

linguagem privada como significando a mesma coisa A mesma situaccedilatildeo

pode ser pensada em uso comum Suponha que algueacutem se queixa de uma

dor sendo privada a sensaccedilatildeo pode variar de pessoa para pessoa se for

diferente de pessoa para pessoa a duacutevida eacute sem sentido pois eacute radicalmente

insuperaacutevel a privacidade o que afeta o uso puacuteblico da palavra ldquodorrdquo como

palavra significativa Tal situaccedilatildeo aponta para a ideia de engrenagem solta

no uso do termo torna-se irrelevante se este algueacutem tem dor ou natildeo para a

significaccedilatildeo do termo em uso privado e para a comunicaccedilatildeo em uso puacuteblico

ldquo[] a roda que se pode mover sem que mais nada se mova natildeo pertence a

maacutequinardquo (WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 271)

A este respeito Wittgenstein (1997 p 427 ndash traduccedilatildeo nossa) diz nas

notas para conferecircncia de filosofia3 ldquoNatildeo eacute um ato oculto nomear um

objeto que possa dar significado a uma palavrardquo

3 Este texto que ficou com o tiacutetulo Conferecircncia Filosoacutefica (MS 166) eacute um conjunto de notas segundo Von Wright de em 1935 ou 1936 denotando uma conferecircncia natildeo realizada pelo filoacutesofo que segundo Anthony Kenny deveria ser realizada em 1941 supostamente para Academia Britacircnica Essas notas dizem respeito agraves reflexotildees de Wittgenstein

Marcus Joseacute Alves de Souza | 165

O que significa essa reflexatildeo para o argumento a favor da linguagem

privada Natildeo eacute um reforccedilo agrave privacidade como uma esfera inexpugnaacutevel

mas para mostrar que eacute irrelevante o objeto referecircncia da sensaccedilatildeo numa

moldura mentalista que na verdade supostamente funciona como

elemento fundamental para a significaccedilatildeo Nisso mesmo sem entrar no

meacuterito de que as sensaccedilotildees satildeo privadas (P1) sendo inacessiacuteveis aos outros

(P2) elas natildeo jogam papel algum para a significaccedilatildeo o que tira a

plausibilidade de P3 Entretanto no uso comum natildeo eacute possiacutevel supor que

estejamos num permanente engano ou mal entendido do significado dos

termos de sensaccedilatildeo evidecircncia que ataca a premissa 2 (P2)

Ausecircncia de Criteacuterio

No sect 258 Wittgenstein (1999) cria uma hipoteacutetica situaccedilatildeo de algueacutem

que quer escrever em um diaacuterio sobre a repeticcedilatildeo de uma sensaccedilatildeo Diz

ele ldquoPara tanto associo-a com o signo lsquoSrsquo e escrevo este signo num

calendaacuterio todos os dias em que tenho a sensaccedilatildeordquo A ideia eacute que faccedilo isso

por uma espeacutecie de ostensatildeo privada concentro-me na sensaccedilatildeo como

um apontar interior e a nomeio A pergunta que surge eacute ldquopara que tal

ritualrdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 100 sect 258) Se ele serve para

estabelecer o significado de ldquoSrdquo deve-se dizer que toda vez que a sensaccedilatildeo

surgir e nomeaacute-la isso se deu porque me recordo da ligaccedilatildeo pois gravei

em mim a associaccedilatildeo de ldquoSrdquo e a sensaccedilatildeo Escreve-se ldquoSrdquo para expressar

minha certeza interior dessa associaccedilatildeo Esta seria uma possiacutevel

justificativa para o ldquoritualrdquo mas ela eacute claramente insuficiente Pensemos

que significa tal situaccedilatildeo Um dos aspectos que mostra a insuficiecircncia eacute o

fato de que pode existir uma falha na instanciaccedilatildeo por erro de memoacuteria

por exemplo Ou seja marco no diaacuterio ldquoSrdquo no dia X quando tenho a

sensaccedilatildeo S no mesmo dia X tenho a mesma sensaccedilatildeo e por familiaridade

interior tenha a certeza de que a sensaccedilatildeo foi a mesma e marco ldquoSrdquo no

sobre a linguagem privada sua implausibilidade Mesmo pouco sistemaacutetico o escrito eacute um grande auxiacutelio para a compreensatildeo e da evoluccedilatildeo do tema no pensamento do filoacutesofo

166 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

calendaacuterio Passados 15 dias tenho a sensaccedilatildeo mas natildeo estou tatildeo certo

fico titubeante tenho duacutevidas de mim para mim se eacute a mesma sensaccedilatildeo

minha memoacuteria natildeo me daacute a certeza que precisaria mas depois de um

pouco mais de introspecccedilatildeo e esforccedilo de lembranccedila a certeza vem e anoto

ldquoSrdquo no calendaacuterio No dia seguinte tenho a sensaccedilatildeo desta vez ela me

pareceu niacutetida e familiar e escrevo sem titubear ldquoSrdquo

A pergunta que surge eacute como se pode sustentar a correccedilatildeo deste uso

denotativo interno Algueacutem mais apegado ao quadro criado atribuiria agrave

sinceridade ou agrave honestidade do ldquousuaacuteriordquo Mas novamente como aferir

tal sinceridade ou honestidade desta associaccedilatildeo Em tese apenas o usuaacuterio

da definiccedilatildeo extensional seria o avaliador de tal sinceridade ou

honestidade Seria algo como ldquoserei sincero com minha honesta

associaccedilatildeordquo ldquoserei sincero comigo mesmo e por isso garanto que natildeo erro

(intencionalmente) ao associar repetidas sensaccedilotildees ao signo lsquoSrsquordquo Mas ser

vocecirc o avalizador de sua sinceridade serum sincero e honesto avalizador

de sua sinceridade e honestidade eacute expressatildeo de um sem sentido de falta

de engrenagem significativa desta situaccedilatildeo E segundo Wittgenstein (1997

p 427-438) nas notas para conferecircncia filosoacutefica se o objeto interno

muda e nossa memoacuteria nos engana o que eacute possiacutevel e usamos a expressatildeo

privada de boa-feacute para significar o objeto usamos a mesma expressatildeo a

cada vez para significar algo distinto Falar de sinceridade honestidade e

boa feacute neste contexto eacute sem sentido exatamente porque boa-feacute

honestidade e sinceridade satildeo conceitos puacuteblicos natildeo faz sentido a natildeo

ser figuradamente e em uso puacuteblico dizer que se eacute honesto consigo

mesmo natildeo existe honestidade ou sinceridade privada Isso marca o

aspecto da falta de criteacuterio de correccedilatildeo desta situaccedilatildeo Aleacutem disso se pode

pensar voltando ao exemplo que se houvesse uma falha na memoacuteria que

criasse a incerteza o usuaacuterio natildeo deveria escrever ldquoSrdquo no dia em que ficou

com duacutevida isso eacute expressatildeo de que seria possiacutevel evitar o erro ou o

engano desde que o usuaacuterio fosse diligente epistemologicamente no

reconhecimento da sensaccedilatildeo e na sua posterior nomeaccedilatildeo Mas a questatildeo

natildeo eacute de capacidade memoriacutestica de reconhecimento A memoacuteria eacute uma

Marcus Joseacute Alves de Souza | 167

habilidade construiacuteda numa linguagem puacuteblica natildeo um ldquobauacuterdquo privado de

vivecircncias acumuladas Neste caso se o ldquousuaacuteriordquo competente ou natildeo em

termos de memoacuteria associar a sensaccedilatildeo ao signo ldquoSrdquo e disser que associou

corretamente seraacute correto Se ele associar incorretamente e disser que

associou corretamente seraacute correto tambeacutem Ou mesmo numa hipoacutetese

de desonestidade se ele natildeo tiver sensaccedilatildeo alguma mas se disser que ldquoSrdquo

significou tal sensaccedilatildeo assim seraacute tido como correto Isso fica claro em

trechos dos sectsect 258 e 259 ldquoCorreto eacute aquilo que sempre me parecer

correto E isto significa apenas que natildeo se pode falar de corretordquo ou ldquoA

balanccedila na qual se pesa as impressotildees natildeo eacute a impressatildeo da balanccedilardquo

(WITTGENSTEIN 1999 p 101 sectsect 258 e 259)

Tal situaccedilatildeo aponta para o fato de que criteacuterio privado de correccedilatildeo

natildeo eacute criteacuterio eacute impressatildeo de criteacuterio Parece haver criteacuterio mas satildeo

impressotildees de criteacuterio natildeo se descrimina nem corrige nada

O interessante eacute que todo o ldquoritualrdquo descrito anteriormente se faz a

semelhanccedila de procedimentos regrados publicamente transpostos par

uma esfera privada numa clara hipostasia de significado

Esta reflexatildeo ataca diretamente a premissas 3 (P3) e 4 (P4) do

argumento em favor da linguagem privada Do mesmo modo que a

inscriccedilatildeo ldquoSrdquo natildeo denota a sensaccedilatildeo necessariamente eacute possiacutevel como

decorrecircncia atacar a premissa 1 (P1) uma vez que se for o caso nem o

usuaacuterioportador da sensaccedilatildeo ldquosaberdquo se a tem isso pela situaccedilatildeo criada

pelo diaacuterio

TransiccedilatildeoDescritibilidade

No modelo cartesiano seria possiacutevel algo como o que Wittgenstein

aventa no sect 257 da crianccedila gecircnio que descobre por si mesma o nome de

uma sensaccedilatildeo ldquolsquoComo seria se os homens natildeo manifestassem suas dores

(natildeo gemessem natildeo fizessem caretas etc) Entatildeo natildeo se poderia ensinar

a uma crianccedila o uso das palavras lsquodor de dentersquo ndash Ora imaginemos que

uma crianccedila seja um gecircnio e descubra por si proacutepria um nome para a

168 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

sensaccedilatildeordquo (WITTGENSTEIN 1999 p 101) Seria uma situaccedilatildeo em que se

aprende o que eacute dor sentindo-a De novo seria algo como ao me

machucar concentro-me na sensaccedilatildeo e imprimo em mim o que eacute ldquodorrdquo

com um signo qualquer Como vimos pela argumentaccedilatildeo anterior falta

criteacuterios para identificar corretamente as minhas proacuteprias dores por

exemplo Mas deixemos isso de lado por enquanto pois no sect 265 haacute um

interessante desdobramento Admitindo a princiacutepio ser possiacutevel

identificar minhas proacuteprias dores corretamente entatildeo rigorosamente eu

natildeo poderia ser capaz de entender proferimentos como ldquoX tem dorrdquo

Podemos supor que descrevo dores a partir da minha proacutepria dor por

introspecccedilatildeo (ostensatildeo interior) mas se eacute assim isso natildeo me permite

ensinar aos outros como descrever a sensaccedilatildeo para uma pessoa particular

a rigor nem a mesma pois isso natildeo foi feito privadamente (Hume jaacute

assinalava que o ldquoeurdquo natildeo eacute objeto de introspecccedilatildeo) Assim quando sinto

dor natildeo eacute meu ego sente dor nem uma parte especial de mim como meu

ceacuterebro Isso eacute claramente uma falaacutecia (falaacutecia do homuacutenculo4) Mas o

ponto aqui eacute o da transcriccedilatildeo de ldquohaacute doresrdquo de ldquoeu tenho doresrdquo uma vez

que satildeo identificadas como sendo a mesma descriccedilatildeo pois natildeo posso sair

de mim dado a privacidade radical das sensaccedilotildees Do mesmo modo ldquoele

tem dorrdquo natildeo significa que eu designei ldquodorrdquo como algo que acontece num

lugar que natildeo seja o da minha privacidade ou seja o corpo ou a mente de

outra pessoa Se o modelo cartesiano estaacute certo ldquodorrdquo eacute um evento

privado captado introspectivamente enquanto ldquodorrdquo no corpo ou na

mente de outrem natildeo eacute algo introspectivamente captaacutevel por mim Assim

falar de dor a partir de mim como ldquodorrdquo de outra pessoa eacute no miacutenimo

uma significaccedilatildeo indevida Natildeo haacute garantia alguma de identidade entre os

significados (WITTGENSTEIN 1999 p 107 sect 292) Sendo assim natildeo

posso descrever dores que sinto em mim como dores que outro sente Em

sect302 Wittgenstein diz ldquoSe precisamos representar-nos a dor dos outros

segundo modelo de nossa proacutepria dor entatildeo isso natildeo eacute coisa faacutecil pois

4 KENNY J P The homunculus fallacy Cf KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein Oxford Blackwell 1984 p 124-136

Marcus Joseacute Alves de Souza | 169

devo representar-me dores que natildeo sinto segundo dores que sintordquo

(WITTGENSTEIN 1999 p 108)

O objetivo deste ponto eacute destacar agraves avessas que o fundamento

privado de constituiccedilatildeo da linguagem eacute implausiacutevel Ele cria uma seacuterie de

dificuldades para o argumento por analogia para conhecimento de outras

mentes numa perspectiva puacuteblica mostra que pela ausecircncia de criteacuterios

para constituiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel estabelecer qualquer descriccedilatildeo sobre algo

que ocorra na mente de outro tal linguagem aleacutem de ser privada deve

ser autocontida o que se mostra sem sentido pois mesmo as

descriccedilotildeesnomeaccedilotildees privadas perdem toda funccedilatildeo como descriccedilatildeo ou

nomeaccedilatildeo Nomear natildeo eacute um ato privado e oculto para que o termo tenha

significado Segundo Wittgenstein nas notas para conferecircncia filosoacutefica

nomear estaacute dentro de uma teacutecnica de uso nomear natildeo eacute espeacutecie de

batismo maacutegico privado ldquonatildeo serve para nada dizer que temos um objeto

privado ante a mente e damos um nomerdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 129

sect 428) Soacute existe nome segundo ele quando haacute uma teacutecnica para usaacute-lo e

esta teacutecnica natildeo pode ser privada Isso atesta agraves avessas que para que as

descriccedilotildeesnomeaccedilotildees sejam significativas devem ser puacuteblicas O que

ataca especialmente a premissa 2 do argumento (P2) as sensaccedilotildees natildeo satildeo

autocontidas indescritiacuteveis e inacessiacuteveis a outrem logo nem sempre terei

duacutevidas sobre se o outro tem ou natildeo determinada sensaccedilatildeo pois para que

a nomeaccedilatildeodescriccedilatildeo qualquer seja significativa ela deve ser puacuteblica o

que aponta para a noccedilatildeo de que se algum termo ou descriccedilatildeo de sensaccedilatildeo

eacute significativo ele se construiu publicamente logo as sensaccedilotildees natildeo satildeo

inacessiacuteveis e natildeo vivemos numa permanente duacutevida sobre se o outro tem

ou natildeo uma sensaccedilatildeo qualquer como dor

Argumento da Linguagem Privada e Filosofia da Mente em

Wittgenstein

Argumento da linguagem privada eacute o esforccedilo de levar ao extremo das

contradiccedilotildees uma concepccedilatildeo privada e representacional de mente que

170 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ganha forccedila ou eacute caudataacuteria de uma concepccedilatildeo referencialista de

significado (objeto ndash representaccedilatildeo ndash signo) Os argumentos apontam para

a perspectiva de fazer uma terapia de tal entendimento de apontar

deficiecircncias conceituais e de buscar suprimi-las com outro registro de

significado e mente

Este novo registro se encontra na concepccedilatildeo de linguagem como uso

como conjunto de accedilotildees puacuteblicas e regradas Nisso emergem conceitos natildeo

referencialistas de linguagem como jogos padrotildees regras criteacuterios

aprendizado e treinamento Tal conjunto de elementos numa avaliaccedilatildeo

panoracircmica dos usos de um termo e seus aparentados faz com que surja

a ldquogramaacuteticardquo de um conceito que abre espaccedilo para o entendimento da

filosofia da mente de Wittgenstein

A proposta de filosofia da mente do filoacutesofo se associa agrave gama de

conceitos surgidos do uso especialmente do uso de verbos intencionais

crer querer conhecer lembrar memorizar imaginar pensar etc cada

um com sua gramaacutetica Sendo assim mente natildeo eacute uma instacircncia

metafiacutesica privada e pneumaacutetica A configuraccedilatildeo dos elementos

conceituais extraiacutedo dos usos dos conceitos mentais traz uma explicaccedilatildeo

de uma seacuterie de fenocircmenos mentais a partir de

Nisso emergem conceitos de explicaccedilatildeo de uma seacuterie de fenocircmenos

mentais como

a) paracircmetros conceituais de definiccedilatildeo de conceitos mentais articulaccedilotildees e

exclusotildees pragmaacuteticas de uso que traccedilam o limite da gramaacutetica dos conceitos

mentais

b) assimetria pronominais de primeira e terceira pessoa como elementos

pragmaacuteticos que explicam a diferenccedila entre o interno e o externo como jogos

de linguagem entre auto e heacutetero descriccedilotildees ou expressotildees caracteriacutesticas de

exteriorizaccedilotildees (primeira pessoa) e afirmaccedilotildees sobre dimensotildees mentais de

outrem (terceira pessoa) diluindo o problema das outras mentes no formato

mentalista Assim interno e externo natildeo satildeo instacircncias metafiacutesicas o externo

natildeo eacute fachada do interno satildeo conceitos que tem um papel fundamental na nossa

imagem de pessoa como um conceito puacuteblico

c) comportamentos caracteriacutesticos associados pragmaticamente como conceitos

mentais

Marcus Joseacute Alves de Souza | 171

Outros aspectos da investigaccedilatildeo de Wittgenstein poderiam ser

levantados e aprofundados mas estes trecircs sumaacuterios elementos apontam

para onde se desenvolve a reflexatildeo do filoacutesofo A proposta aqui foi apenas

apresentar a discussatildeo sobre a plausibilidade da linguagem privada e

apontar elementos da filosofia da mente de Wittgenstein Do mesmo

modo compreender que o argumento contra a linguagem privada eacute de

fundamental importacircncia para o entendimento da filosofia da mente de

Wittgenstein

Referecircncias

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A companion to epistemology 2 ed Oxford Wiley-Blackwell 2010 p 616-621

KENNY J P The homunculus fallacy In KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein

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LOCKE J Ensaio acerca do entendimento humano Trad Anoar Aiex Satildeo Paulo Nova

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NIELSEN K S The evolution of the private language argument Hampshire UK

Ashgate Publishing Company 2007

SCHROEDER S Private language and private experience In GLOCK H-J Wittgenstein

a critical reader Oxford Backwell Publishers 2001 p 174-198

WITTGENSTEIN L Ocasiones filosoacuteficas 1912-1951 Trad Angel Garcia Rodrigues

Madrid Ediciones Caacutetedra 1997

______ Investigaccedilotildees filosoacuteficas Trad Joseacute Carlos Bruni Satildeo Paulo Nova Cultural

1999

10

O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico

Ricardo S Rabenschlag 1

No capiacutetulo que publiquei nesta mesma seacuterie de livros que registram

parte da produccedilatildeo acadecircmica do grupo de pesquisa Linguagem e

Cogniccedilatildeo afirmei que seria inuacutetil tentar extrair uma concepccedilatildeo coerente

de ciecircncia a partir da anaacutelise das principais obras publicadas pelos Novos

Ateus Embora minha convicccedilatildeo a este respeito permaneccedila inalterada natildeo

creio ser inuacutetil a tentativa de identificar os principais equiacutevocos

epistemoloacutegicos que este e outros grupos de autodeclarados pensadores

criacuteticos cometem em sua cruzada contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo

Em sua acepccedilatildeo vulgar ter uma atitude criacutetica significa suspender o

juiacutezo acerca de uma ideia a menos que tenhamos argumentos logicamente

vaacutelidos e bem fundados seja para afirmaacute-la seja para negaacute-la

Compreendido dessa forma o pensamento ou a atitude criacutetica se opotildeem

de um lado ao raciociacutenio falacioso e de outro agrave atitude dogmaacutetica Por

que devemos preferir raciociacutenios vaacutelidos agrave raciociacutenios falaciosos eacute algo que

dispensa maiores explicaccedilotildees Com efeito o proacuteprio conceito de falaacutecia jaacute

conteacutem um elemento pejorativo e o mesmo se daacute em relaccedilatildeo agrave atitude

dogmaacutetica compreendida natildeo apenas como indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave

busca de razotildees para se afirmar ou negar certas ideias mas sobretudo

como recusa em fazecirc-lo mesmo quando a afirmaccedilatildeo ou a negaccedilatildeo destas

ideais entra em flagrante contradiccedilatildeo com aquilo que acreditamos com

base em argumentos vaacutelidos e bem fundados

1 Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Ricardo S Rabenschlag | 173

Mas se eacute assim o que poderia haver de errado com o Pensamento

Criacutetico Como jaacute disse natildeo creio que haja nada de errado com a ideia de que

devemos sempre que possiacutevel suspender nosso juiacutezo antes que tenhamos

boas razotildees quer para negar quer para afirmar algo A ressalva eacute importante

porque no acircmbito praacutetico nem sempre podemos nos dar ao luxo de

suspender nosso juiacutezo sobretudo quando as consequecircncias desta indecisatildeo

satildeo moralmente graves O problema com o Pensamento Criacutetico natildeo diz

respeito a esta atitude criacutetica moderada e sim a um conjunto mais ou menos

bem definido de crenccedilas largamente difundidas por autores que se

identificam como pensadores criacuteticos entre eles os principais

representantes do novo ateiacutesmo2 Neste breve capiacutetulo examinarei uma das

maacuteximas mais populares entre os autoproclamados pensadores criacuteticos3

Qualquer um que jaacute tenha passado dos cinquenta anos e que tenha

amor pela ciecircncia se lembra com carinho das noites em que assistiu pela

primeira vez e ao longo de vaacuterias semanas aos treze capiacutetulos da seacuterie

Cosmos apresentada por Carl Sagan Natildeo foi o primeiro programa do tipo

e nem o melhor segundo muitos criacuteticos4 mas sob um aspecto ele foi

uacutenico pois nenhum outro programa de divulgaccedilatildeo cientiacutefica alcanccedilou uma

audiecircncia tatildeo vasta Seja pela beliacutessima trilha sonora pelos efeitos

especiais inovadores ou pelo carisma do seu apresentador a seacuterie Cosmos

foi um marco na divulgaccedilatildeo cientiacutefica audiovisual

Uma das caracteriacutesticas principais da seacuterie Cosmos posteriormente

publicada em forma de livro com o mesmo tiacutetulo e que teve enorme

sucesso de vendas em todo o mundo eacute que ela natildeo visava apenas

2 Estou me referindo aqui aos Quatro Cavaleiros do Natildeo-Apocalipse Richard Dawkins Christopher Hitchens Daniel Dennett e Sam Harris

3 Esta eacute apenas uma pequena parte de um projeto mais amplo cujos resultados pretendo publicar num livro com o mesmo tiacutetulo do presente capiacutetulo

4 Muitos incluindo o autor deste capiacutetulo consideram a seacuterie A Escalada do Homem apresentada por Jacob Bronowski como sendo superior sobretudo em razatildeo do maior escopo profundidade e interdisciplinaridade

174 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

transmitir a moderna visatildeo cientiacutefica do mundo ela buscava tambeacutem

promover o espiacuterito cientiacutefico moderno que tornara possiacutevel aos cientistas

modernos descobrirem tudo aquilo que Carl Sagan nos apresentava de

maneira tatildeo cativante Em outras palavras uma parte substancial do

programa tinha como foco a proacutepria ciecircncia sua histoacuteria seus meacutetodos e

sobretudo a atitude criacutetica que segundo Carl Sagan estaacute na raiz dessa

inovadora e bem-sucedida maneira de buscar respostas para questotildees

fundamentais como a origem da vida a origem do homem e do pequeno

planeta que ele habita e ateacute mesmo a origem do proacuteprio Universo

Na tentativa de explicar para o grande puacuteblico os traccedilos essenciais da

atitude criacutetica que caracterizaria o pensamento cientiacutefico Carl Sagan fez

uso5 do seguinte aformismo que rapidamente foi adotado pelos

autoproclamados pensadores criacuteticos como um princiacutepio metodoloacutegico

essencial a toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica6

Princiacutepio de Sagan alegaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias

extraordinaacuterias7

Embora muitos educadores e divulgadores da ciecircncia entre eles

vaacuterios cientistas e alguns filoacutesofos interpretem o aforismo tornado ceacutelebre

por Carl Sagan como expressando um princiacutepio metodoloacutegico essencial a

toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica vejamos o que a

Epistemologia da Ciecircncia tem a dizer sobre essa suposta peacuterola do

pensamento criacutetico Nunca eacute demais lembrar que a Epistemologia da

Ciecircncia natildeo eacute uma ciecircncia que investiga a proacutepria ciecircncia como satildeo a

Histoacuteria da Ciecircncia e a Sociologia da Ciecircncia e sim uma disciplina filosoacutefica

que estuda a natureza a origem e os limites do conhecimento cientiacutefico

5 O aforismo eacute provavelmente uma adaptaccedilatildeo de uma frase praticamente idecircntica publicada num artigo de 1978 de autoria do socioacutelogo italiano Marcello Truzzi Com efeito em seu artigo ldquoOn the Extraordinary An Attempt at Clarification ele afirma que an extraordinary claim requires extraordinary proof

6 Uma busca raacutepida no Google Scholar revela que o aforismo na versatildeo tornada ceacutelebre por Sagan eacute usado em mais de 1000 publicaccedilotildees acadecircmicas

7 O aformismo orignal em inglecircs ldquoExtraordinary claims requery extraordinary evidencerdquo pode ser traduzido tambeacutem como ldquoAfirmaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias extraordinaacuteriasrdquo

Ricardo S Rabenschlag | 175

Antes de tudo eacute importante deixar claro que embora Carl Sagan

tenha empregado o aforismo para descartar explicaccedilotildees pseudocientiacuteficas

em momento algum ele afirmou que se tratava de um princiacutepio

metodoloacutegico e nem se deu ao trabalho de explicar seu sentido preciso e

a menos que se faccedila isso o tatildeo celebrado aforismo aparenta ser uma

apenas uma consequecircncia ilegiacutetima do fato psicoloacutegico de que em geral eacute

mais difiacutecil convencer algueacutem da verdade de uma crenccedila que contraria

suas expectativas do que da verdade de uma crenccedila que natildeo se contraria

suas expectativas Poderiacuteamos expressar essa compreensatildeo vulgar e

psicologista do Princiacutecio de Sagan do seguinte modo

Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas

requerem evidecircncias mais robustas

A consequecircncia eacute obviamente ilegiacutetima jaacute que da proposiccedilatildeo que

descreve o fato psicoloacutegico de que tendemos a rejeitar aquilo que contraria

nossas expectativas e a aceitar aquilo a que estamos acostumados natildeo se

segue o princiacutepio metodoloacutegico de que devemos ser mais exigentes em

relaccedilatildeo agraves evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que

contrariam nossas expectativas e menos exigentes em relaccedilatildeo agraves

evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que natildeo contrariam

nossas expectativas Mais importante que isso esta interpretaccedilatildeo

independentemente da sua origem natildeo eacute aceitaacutevel uma vez que se de fato

estamos naturalmente precavidos em relaccedilatildeo agraves alegaccedilotildees que

consideramos extraordinaacuterias nesse sentido psicoloacutegico do termo

ldquoextraordinaacuteriordquo o mais correto do ponto de vista metodoloacutegico seria

requerermos evidecircncias mais robustas justamente em relaccedilatildeo agraves

alegaccedilotildees que natildeo consideramos extraodinaacuterias

Outra possiacutevel leitura psicologista do Princiacutepio de Sagan resultaria de

uma interpretaccedilatildeo em que ambas as ocorrecircncias do termo

ldquoextraordinaacuteriasrdquo teriam a mesma acepccedilatildeo psicoloacutegica caso em que ele

assumiria a seguinte forma

176 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas

requerem evidecircncias igualmente contraacuterias as nossas expectativas

Em primeiro lugar cumpre observar que se o caraacuteter surpreendente

de uma evidecircncia for definido pelos seus efeitos isto eacute pelo caraacuteter

surpreendente daquilo que ela evidencia o aforismo natildeo passa de um

truiacutesmo pois nesse caso qualquer evidecircncia em favor de uma alegaccedilatildeo

que contrariasse nossas expectativas seria por definiccedilatildeo uma evidecircncia

contraacuteria as nossas expectativas Mais importante que isso por natildeo se

tratar de uma trivialidade evidecircncias cientiacuteficas possuem um caraacuteter

peculiar que deriva do fato de que as explicaccedilotildees cientiacuteficas operam por

meio de teorias Em razatildeo dessa dependecircncia muacutetua que existe entre as

teorias cientiacuteficas e as evidecircncias cientiacuteficas uma evidecircncia cientiacutefica

nunca deve ser considerada de modo independente Daiacute que mesmo os

eventos mais corriqueiros e ateacute mesmo banais aos olhos do cientista isto

eacute quando examinados a partir de um refencial teoacuterico particular possam

adquirir um significado surpreendente Lembro ainda hoje do espanto que

senti quando li pela primeira vez sobre o Paradoxo da Noite Escura8 Este

famoso paradoxo trata das implicaccedilotildees cosmoloacutegicas da escuridatildeo

noturna Ao menos para a maioria de noacutes eacute difiacutecil encontrar algo mais

banal do que a escuridatildeo noturna9 e no entanto Johannes Kepler

considerou justamente a escuridatildeo da noite como sendo uma evidecircncia da

finitude espacial do Universo

Em linhas gerais o raciociacutenio de Kepler foi o seguinte suponha que

as estrelas estejam distribuiacutedas regularmente e que o Universo seja

espacialmente infinito Para um observador em qualquer ponto deste

espaccedilo infinito haacute uma esfera com centro nele cujo volume aumenta com

o quadrado do seu raio Portanto agrave medida que nos dintanciamos deste

observador hipoteacutetico o nuacutemero de estrelas que intercepta o seu raio de

visatildeo cresce com o quadrado da distacircncia Como resultado natildeo importa

8 Tambeacutem conhecido como Paradoxo de Olbers

9 Os Esquimoacutes sabem muito bem que nem toda noite eacute escura

Ricardo S Rabenschlag | 177

para onde ele olhe haveraacute sempre uma estrela interceptando o seu raio de

visatildeo Portanto se nosso Universo fosse espacialmente infinto e estivesse

repleto de estrelas regularmente distribuiacutedas como defendia Giordano

Bruno o ceacuteu noturno deveria ser tatildeo brilhante quanto a superfiacutecie de uma

estrela meacutedia Como isso natildeo ocorre a conclusatildeo do argumento eacute falsa o

que implica que ao menos uma das premissas do argumento eacute igualmente

falsa ou seja ou o Universo eacute espacialmente infinito ou as estrelas natildeo

estatildeo regularmente distribuiacutedas ou ambos Como a distribuiccedilatildeo das

estrelas se mostrava regular Kepler inferiu que o Universo deveria ser

espacialmente finito mostrando que algo tatildeo coriqueiro como a escuridatildeo

da noite pode ser legitimamente tomado como evidecircncia de uma alegaccedilatildeo

absolutamente extraodinaacuteria10

Este eacute apenas um entre muitos exemplos em que eventos ou fatos

nada extraordinaacuterios serviram de evidecircncia para afirmaccedilotildees

extraordinaacuterias o que mostra claramente a inadequaccedilatildeo desta segunda

interpretaccedilatildeo psicoloacutegica do Princiacutepio de Sagan Outro que me traz boas

recordaccedilotildees eacute o do chuvisco que aparecia nos antigos televisores de tubo

quando as emissoras de TV encerravam a sua programaccedilatildeo diaacuteria e que

hoje sabemos ser causado pela Radiaccedilatildeo Coacutesmica de Fundo que teve

origem no Big Bang Em outras palavras uma evidecircncia de que o Universo

teve iniacutecio haacute bilhotildees de anos numa ldquogrande explosatildeordquo estava agrave vista de

todos sem que ningueacutem suspeitasse

Em resumo interpretado psicologicamente o tatildeo celebrado Princiacutepio

de Sagan ou eacute trivial ou deriva de uma concepccedilatildeo profundamente

equivocada acerca da natureza do conhecimento cientiacutefico moderno Em

ambos os casos o Princiacutepio de Sagan natildeo deve ser considerado vaacutelido e

seu uso como guia para a investigaccedilatildeo cientiacutefica tem consequecircncias

desastrosas para ciecircncia

10 A soluccedilatildeo atualmente aceita para o paradoxo eacute diferente daquela proposta por Kepler Atualmente o paradoxo eacute resolvido com base em duas descobertas a) que o Universo tem uma idade finita e b) a luz tem uma velocidade finita a luz das estrelas mais distantes ainda natildeo teve tempo de chegar ateacute noacutes Portanto o Universo que enxergamos eacute limitado no espaccedilo por ser finito no tempo A escuridatildeo da noite eacute uma prova de que o Universo teve um iniacutecio

178 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Mas natildeo haveria alguma interpretaccedilatildeo ao mesmo tempo natildeo trivial e

natildeo psicologista do Princiacutepio de Sagan No intuito de nos livrarmos de

uma leitura pscicologista da formulaccedilatildeo tornada ceacutelebre por Carl Sagan

poderiacuteamos reformular o Princiacutepio de Sagan como expressando a ideia de

que deve haver uma proporcionalidade entre a forccedila das nossas alegaccedilotildees

e a forccedila das evidecircncias que apresentamos em favor delas Uma maneira

de expressar isso poderia ser a seguinte

Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees extraordinariamente fortes requerem

evidecircncias extraordinariamente fortes

Com base nessa reinterpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan poder-se-ia

alegar por exemplo que acreditar na existecircncia de discos voadores com

base apenas no fato de que algueacutem afirma ter visto um disco voador seria

uma violaccedilatildeo do princiacutepio jaacute que a forccedila da alegaccedilatildeo medida pelo impacto

que ela tem sobre o conhecimento cientiacutefico exigiria evidecircncias mais

robustas como por exemplo a exibiccedilatildeo dos destroccedilos do disco voador que

a pessoa alega ter visto e natildeo o simples relato de uma testemunha

afirmando ter visto um disco metaacutelico voando em baixa altitude No

primeiro caso tudo o que temos eacute o relato do avistamento de um OVNI

(Objeto Voador Natildeo Indentificado) no segundo temos uma evidecircncia

material a saber o proacuteprio objeto avistado o que nos permite uma

avaliccedilatildeo direta e possiacutevel identificaccedilatildeo do objeto que iraacute ou natildeo confirmar

a afirmaccedilatildeo de que o objeto avistado era uma nave alieniacutegena O mais

provaacutevel eacute que a pilha de destroccedilos por mais extraordinaacuteria que pareccedila

aos olhos de um leigo seja imediatamente reconhecida por um especialista

como sendo os restos de um balatildeo meteoroloacutegico ou algum outro aparato

tecnoloacutegico humano como de fato aconteceu no famoso incidente ocorrido

em Roswell Novo Meacutexico em 1947

Mas seraacute que esta reformulaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan tem o mesmo

sentido que os autoproclamados pensadores criacuteticos conferem a sua

Ricardo S Rabenschlag | 179

formulaccedilatildeo original E ainda que a aceitemos como uma traduccedilatildeo razoaacutevel

do Princiacutepio de Sagan o sentido da expressatildeo ldquoextraordinariamete fortesrdquo

que aparece nas expressotildees ldquoalegaccedilotildees extraordinariamente fortesrdquo e

ldquoevidecircncias extraordinariamente fortesrdquo eacute o mesmo em ambos os casos E

ainda que se diga que elas tecircm o mesmo sentido eacute mesmo verdadeiro que

toda alegaccedilatildeo que tem grande impacto em nossa atual visatildeo cientiacutefica do

mundo requer evidecircncias igualmente extraordinaacuterias Natildeo poderia haver

evidecircncias absolutamente conformes agrave visatildeo cientiacutefica do mundo e que natildeo

obstante isso seriam uma soacutelida evidecircncia para alegaccedilotildees extraodinaacuterias

como a finitude espacial do Universo A forccedila de uma evidecircncia eacute medida

pelas suas consequecircncias ou haacute um criteacuterio intriacutenseco como sugere a

comparaccedilatildeo entre evidecircncias testemunhais e materiais Alegaccedilotildees

conformes a nossa visatildeo de mundo podem ser aceitas com base apenas em

testemunhos ao passo que as que contrariam o que acreditamos saber

requerem evidecircncias materiais Nesse uacuteltimo caso que admitimos ser o

mais promissor qual a relevacircncia da forccedila de nossas alegaccedilotildees no que diz

respeito ao tipo de evidecircncia que devemos exigir para aceitaacute-la

Uma vez mais nos vemos em meio a uma dupla confusatildeo De um lado

natildeo temos clareza sobre o significado do enunciado do princiacutepio de outro

natildeo temos uma concepccedilatildeo clara sobre e natureza do conhecimneto

cientiacutefico Visando sanar estes problemas poderiacuteamos interpretar a ideia de

forccedila de uma alegaccedilatildeo ou de uma evidecircncia como uma referecircncia agravequilo que

poderiacuteamos chamar de estatuto epistecircmico de uma proposiccedilatildeo definido

como o grau de confiabilidade de uma proposiccedilatildeo Assim compreendido o

Princiacutepio de Sagan seria um corolaacuterio da ideia de que o estatuto epistecircmico

das premissas de um argumento deve ser igual ao estatuto epistecircmico da

sua conclusatildeo e poderia ser enunciado do seguinte modo

Interpretaccedilatildeo espistecircmica alegaccedilotildees com alto grau de confiabilidade

requerem evidecircncias com alto grau de confiabilidade

Reneacute Descartes certamente concordaria com essa interpretaccedilatildeo do

Princiacutepio de Sagan afinal toda sua filosofia estaacute baseada na ideia de que

180 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

somente evidecircncias indubitaacuteveis podem servir de base para afirmaccedilotildees

indubitaacuteveis11 Natildeo foi outra a razatildeo que o levou numa das passagens mais

memoraacuteveis da histoacuteria da filosofia12 a apresentar o Cogito como a uacutenica

saiacuteda para o que ele chamou de duacutevida hiperboacutelica e tomaacute-lo como o uacutenico

fundamento aceitaacutevel para a filosofia Ainda que Descartes esteja longe de

ser um iacutecone dos ldquopensadores criacuteticosrdquo um projeto fundacionista anaacutelogo

ao cartesiano estaacute na raiz do Positivismo Loacutegico uma das fontes de

inspiraccedilatildeo da grande maioria dos autoproclamados pensadores criacuteticos

Rudolf Carnap o maior expoente desta corrente neopositivista buscou

ancorar todo o conhecimento humano no que ele chamou de enunciados

protocolares descritos por ele como sendo registros em primeira pessoa

de dados sensiacuteveis elementares (sense data) que estariam na base de toda

a experiecircncia humana

O problema com essa interpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan eacute que

embora a nova formulaccedilatildeo do princiacutepio seja mais promissora ela

obviamnete natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo plausiacutevel do Princiacutepio de Sagan jaacute

que o grau de confiabilidade de alegaccedilotildees extraordinaacuterias natildeo eacute alto e sim

extremamente baixo daiacute que a maioria de noacutes esteja naturalmente

precavido contra elas

Uma terceira interpretaccedilatildeo epistecircmica do Princiacutepio de Sagan resulta

de uma leitura indutivista humeana da ideia de estatuto epistecircmico de uma

proposiccedilatildeo A ciecircncia segundo David Hume eacute um empreendimento

essencialmente indutivo e provisoacuterio e sua grandeza reside precisamente

no fato de que a ciecircncia natildeo busca verdades absolutas Do fato de que todo

conhecimento eacute provisoacuterio e por conseguinte dubitaacutevel natildeo se segue

contudo que nossas crenccedilas tenham todas elas o mesmo grau de

confiabilidade Obviamente uma afirmaccedilatildeo que jaacute tenha sido refutada natildeo

eacute nem um pouco confiaacutevel Mas o que dizer das que ainda natildeo foram

refutadas Segundo David Hume o grau de confiabilidade de uma crenccedila

11 No caso do coacutegito a proacutepria afirmaccedilatildeo ou mais precisamente o pensamento que ela expressa eacute evidecircncia da sua veracidade

12 Iniacutecio da Segunda Meditaccedilatildeo das Meditaccedilotildees Metafiacutesicas de Reneacute Descartes

Ricardo S Rabenschlag | 181

eacute proporcional ao nuacutemero de vezes em que ela foi experimentalmente

confirmada Seguindo essa linha de raciociacutenio poder-se-ia interpretar o

Princiacutepio de Sagan como a recomendaccedilatildeo de que afirmaccedilotildees que

contrariem crenccedilas que tenham sobrevivido a inuacutemeras e variadas

tentativas de refutaccedilatildeo e que satildeo nesse sentido extraordinaacuterias devam

ser igualmente submetidas a um longo e variado processo de testes

acumulando assim uma quantidade igualmente extraordinaacuteria de

evidecircncias em seu favor antes de serem consideradas mais confiaacuteveis que

agraves antigas crenccedilas que elas pretendem substituir

Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees que contrariam crenccedilas

corroboradas por uma extraordinaacuteria quantidade de evidecircncias requerem um

nuacutemero igualmente extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis

A longa disputa entre os sistemas ptolomaico e copernicano que

marca o iniacutecio da ciecircncia moderna eacute um bom exemplo de como devemos

ser cautelosos em relaccedilatildeo a afirmaccedilotildees extraordinaacuterias como por

exemplo a afirmaccedilatildeo de que a Terra natildeo estaacute parada no centro do

Universo e sim girando em uma grande velocidade em torno do Sol Tenho

certeza de que a maioria dos Novos Ateus endossaria aliviado esta leitura

indutivista do Princiacutepio de Saganrdquo e natildeo ficaria de modo algum surpreso

se Richard Dawkins acrescentasse de forma desdenhosa a observaccedilatildeo de

que era exatamente isso que ele estava querendo dizer o tempo todo

embora nunca o tivesse feito por achar oacutebvio demais Infelizmente as

coisas natildeo satildeo tatildeo simples quanto parecem a um leigo em Espistemologia

da Ciecircncia como Richard Dawkins Em primeiro lugar mesmo nos casos

mais promissores como o da disputa entre geocentrismo e

heliocentrismo a interpretaccedilatildeo mencionada acima apresenta seacuterios

problemas jaacute que o que pocircs fim a disputa em favor do heliocentrismo natildeo

foi um nuacutemero extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis e sim a criaccedilatildeo da

primeira teoria fiacutesica moderna capaz de explicar de maneira unificada

fenocircmenos corriqueiros como o movimento dos corpos terrestres e o

movimento dos corpos celestes

182 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Uma vez mais o problema aqui eacute o de como evitar a confusatildeo entre

o loacutegico e o psicoloacutegico Natildeo resta duacutevida de que a repeticcedilatildeo de uma mesma

ocorrecircncia aumente nossa confianccedila em relaccedilatildeo ao enunciado universal

que a descreve a questatildeo contudo eacute saber se ela aumenta o nosso

conhecimento e natildeo as nossas expectativas Eacute provaacutevel que um iacutempeto

indutivista esteja na base de parte importante do apoio ao Princiacutepio de

Sagan embora natildeo devamos esquecer que boa parte dos seus apoiadores

em especial os autoproclamados pensadores criacuteticos tem imensa adoraccedilatildeo

pelo racionalismo popperiano e que Karl Popper considerava ilegiacutetima

qualquer tentativa de justificar indutivamente uma crenccedila De qualquer

modo tanto o fundacionismo como o indutivismo satildeo extremamente

problemaacuteticos razatildeo pela qual foram haacute muito tempo descartados e natildeo

haacute hoje muitos especialistas que defendam quer a ideia de um fundamento

inabalaacutevel para as ciecircncias quer a ideia de uma loacutegica indutiva

Pode-se contra-argumentar dizendo que natildeo haacute verdades ou

conhecimento em sentido absoluto que natildeo haacute um mundo ou uma realidade

independente do sujeito que tudo eacute relativo provisoacuterio e incerto e que

portanto uma loacutegica indutiva eacute tatildeo boa quanto uma dedutiva Mas

obviamente que se adotarmos esta estrateacutegia de defesa o problema assume

uma feiccedilatildeo ainda mais sombria pois a menos que ser possa conciliar esta

concepccedilatildeo relativista com a objetividade cientiacutefica natildeo haacute como evitar que o

ceticismo moderado que caracteriza a atitude cientiacutefica se transforme num

ceticismo radical e portanto numa nova e poderosa forma de irracionalismo

Se o Princiacutepio de Sagan eacute assim tatildeo inadequado por que ele eacute

considerado por muitos como uma das regras de ouro do pensamento

criacutetico Como dissemos anteriormente o enunciado do princiacutepio eacute vago

deliberadamente vago a ponto de comportar interpretaccedilotildees muito diferentes

e ateacute mesmo antagocircnicas o que certamente contribui para o seu sucesso Haacute

contudo uma outra razatildeo que julgamos ser ainda mais importante a saber

Ricardo S Rabenschlag | 183

que ele natildeo eacute uma ferramenta cientiacutefica e sim ideoloacutegica Ele natildeo eacute utilizado

por cientistas em suas investigaccedilotildees e sim por ativistas que podem ou natildeo

ser cientistas em sua luta contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo

O combate agraves pseudociecircncias eacute um combate justo e necessaacuterio e a

atitude criacutetica tem um papel fundamental nesse processo natildeo temos

duacutevida quanto a isso Nossa criacutetica natildeo busca desencorajar o combate agraves

pseudociecircncias ela busca apenas mostrar por um lado que a ciecircncia natildeo

estaacute inume ao irriacionalismo e por outro que o irracionalismo na ciecircncia

se manifesta sob a forma de pseudofilosofias e natildeo de pseudociecircncias

Evidentemente esta natildeo eacute uma tarefa faacutecil e este pequeno capiacutetulo natildeo

esgota de forma alguma o assunto Ainda assim espero que esta breve

criacutetica do tatildeo aclamado Princiacutepio de Sagan tenha despertado a atenccedilatildeo dos

leitores para a importacircncia de uma criacutetica do Pensamento Criacutetico13

Referecircncias

CARNAP R The Logical Structure of the World Open Court New York 2003

DAWKINS R The God Delusion Transworld Pub London 2016

DENNETT D Breaking the Spell Penguim London 2007

DESCARTES R Meacuteditations Meacutetaphysiques Nabu Press Paris 2014

HARRIS S The End of Faith WW Norton London 2005

HITCHENS C God Is Not Great Atlantic Books London 2008

HUME D On Miracles Open Court London 1985

POPPER K Conjectures and Refutations Routledge New York 2002

SAGAN C Cosmos Ballantine Books New York 2013

13 Talvez seja o caso de cunharmos a expressatildeo ldquoNovo Pensamento Criacuteticordquo a exemplo do que se fez em relaccedilatildeo aos Novos Ateus seja para reforccedilar o viacutenculo entre as duas correntes seja para diferenciar este Novo Pensamento Criacutetico da Filosofia Criacutetica de Kant No presente texto optamos por usar a expressatildeo empregada na literatura existente

11

A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo

Sagid Salles 1

Introduccedilatildeo

Haacute pelo menos duas coisas que tornam o fenocircmeno da vagueza

interessante Primeiro a vagueza estaacute espalhada por toda a linguagem

natural Uma parte significativa das expressotildees de nossa linguagem satildeo

vagas e podemos encontrar a vagueza em expressotildees de diferentes

categorias loacutegicas como termos singulares predicados e quantificadores

Por razotildees de simplicidade contudo ao longo deste artigo considero

apenas o caso dos predicados vagos Segundo o fenocircmeno da vagueza estaacute

por traacutes de um difiacutecil paradoxo conhecido como Paradoxo Sorites

Atualmente haacute muitas tentativas de explicar esse fenocircmeno e resolver o

Sorites sendo uma delas a Teoria Trivalente da Vagueza Essa teoria eacute

interessante natildeo apenas porque fornece uma explicaccedilatildeo elegante da

vagueza acompanhada de uma soluccedilatildeo engenhosa para o paradoxo em

questatildeo mas tambeacutem porque serve de base para a compreensatildeo de outras

teorias claacutessicas da vagueza Tanto o Gradualismo como o

Supervalorativismo por exemplo incorporam parte significativa de suas

ideias centrais A despeito disso existem alguns seacuterios obstaacuteculos para a

Teoria Trivalente Acredito que o principal deles eacute que ela falha em

satisfazer pelo menos um dos trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria

1 Sagid Salles eacute graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto Mestre e Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da UFRJ com sanduiacuteche realizado em University of Miami Atualmente eacute professor substituto de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (E-mail sagidsallesgmailcom)

Sagid Salles | 185

ideal da vagueza o criteacuterio da precisatildeo Meu objetivo eacute apresentar essa

teoria e mostrar como essa dificuldade surge para ela

O artigo seraacute dividido em quatro seccedilotildees Na primeira apresento o

problema da vagueza ressaltando os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma

teoria ideal o criteacuterio do Sorites o criteacuterio da coerecircncia e o criteacuterio da

precisatildeo Na segunda e terceira apresento respectivamente os aspectos

centrais da Teoria Trivalente e uma das soluccedilotildees da mesma para o Sorites

Por fim defendo que apesar de satisfazer os dois primeiros criteacuterios de

adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente falha com respeito ao criteacuterio da precisatildeo

Vagueza Sorites e os Trecircs Criteacuterios de Adequaccedilatildeo

A palavra ldquovaguezardquo eacute usada cotidianamente em diferentes sentidos

mas o interesse filosoacutefico pela vagueza eacute direcionado a um fenocircmeno

especiacutefico O que mais chama a atenccedilatildeo sobre esse fenocircmeno eacute que ele estaacute

por traacutes do que eacute conhecido como Paradoxo Sorites Esse paradoxo foi

descoberto por Eubulides de Mileto ainda no seacuteculo IV ac mas eacute

argumentaacutevel que somente recentemente (talvez nos uacuteltimos 60 ou 70

anos) ele venha recebendo a atenccedilatildeo que merece Aliaacutes atualmente existe

uma grande variedade de versotildees diferentes do paradoxo (HYDE 2011)

uma delas a versatildeo quantificada seraacute apresentada a seguir

Seja ldquoCrdquo o predicado ldquocarecardquo ldquoardquo um nome arbitraacuterio de pessoas e

deixe os nuacutemeros na direita inferior indicarem o nuacutemero de cabelos que a

tem na cabeccedila Nesse contexto a versatildeo quantificada do Sorites para

ldquocarecardquo pode ser formulada como segue

(SC)

(1) Ca0

(2) foralln (CanrarrCan+1)

_______________

(3) Ca10000

186 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

(SC) parte da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa

com 0 fios de cabelo na cabeccedila eacute careca para a conclusatildeo claramente falsa

de que uma pessoa com 10000 fios de cabelo na cabeccedila tambeacutem eacute careca

A conclusatildeo (3) se segue de (1) e (2) por repetidas aplicaccedilotildees de

Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens

Agora repare que podemos facilmente formular o Sorites na direccedilatildeo

inversa partindo da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa

com 10000 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca para a conclusatildeo

claramente falsa de que uma pessoa com 0 fios tambeacutem natildeo eacute careca

(notSC)

(1) notCa10000

(2)foralln (notCan+1rarrnotCan)

______________

(3) notCa0

A conclusatildeo de (notSC) tambeacutem eacute obtida por repetidas aplicaccedilotildees de

Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens Enquanto argumentos como (SC)

nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute careca argumentos como

(notSC) nos permite mostrar que cada indiviacuteduo natildeo eacute careca Se tomadas

em conjunto os argumentos nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute

careca e natildeo eacute careca ao mesmo tempo Resultado o predicado ldquocarecardquo eacute

incoerente Se isso jaacute nos parece absurdo a coisa fica muito pior quando

lembramos que o mesmo paradoxo pode ser formulado para muitos

outros predicados ldquoaltordquo ldquobaixordquo ldquoricordquo ldquopobrerdquo ldquovivordquo ldquomortordquo

ldquoraacutepidordquo ldquolentordquo ldquomonterdquo etc Em uacuteltima instacircncia aceitar a conclusatildeo

do Sorites implicaria em aceitar que cada um desses predicados eacute

incoerente

A premissa (1) de cada argumento acima eacute claramente verdadeira

enquanto a conclusatildeo se segue de (1) e (2) por regras de inferecircncia que

Sagid Salles | 187

natildeo gostariacuteamos de rejeitar Isso torna (2) a premissa quantificada na

principal suspeita Nesse contexto algueacutem poderia pensar que a soluccedilatildeo

do paradoxo reside na simples negaccedilatildeo da premissa (2) Infelizmente essa

estrateacutegia eacute mais difiacutecil do que parece Suponhamos por exemplo que a

premissa quantificada de (SC) eacute falsa Se esse eacute o caso entatildeo eacute verdade que

notforalln (CanrarrCan+1) Isso eacute logicamente equivalente a Ǝn (Can˄notCan+1) que

diz que haacute um nuacutemero natural n tal que a com n fios de cabelo na cabeccedila

eacute careca e a com n+1 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca O problema eacute

que esse resultado eacute difiacutecil de engolir Para qualquer valor que se atribua a

n a suposiccedilatildeo de que uma pessoa com n fios de cabelo eacute careca e uma

pessoa com n+1 natildeo eacute careca pareceraacute altamente contraintuitiva

O ponto fica mais claro se pensarmos em termos de sequecircncias

Imagine uma sequecircncia como segue

lta0 a1 a2 a5000 a5001 a9998 a9999 a10000gt

Intuitivamente o predicado ldquocarecardquo se aplica a a0 a1 a2 etc e natildeo se

aplica a a10000 a9999 a9998 etc Entretanto natildeo haacute um uacuteltimo caso na

sequecircncia ao qual ldquocarecardquo se aplica seguido por um primeiro caso ao qual

o predicado natildeo se aplica nenhuma linha divisoacuteria eacute traccedilada Se

simplesmente negarmos a premissa quantificada aceitando que Ǝn

(Can˄notCan+1) teremos de assumir que o predicado ldquocarecardquo estabelece

uma linha divisoacuteria desse tipo2 Isso implicaria que ldquocarecardquo eacute um

predicado preciso e portanto natildeo vago O mesmo vale para todos os

predicados vagos Na verdade ser vago e ser preciso satildeo propriedades

incompatiacuteveis de modo que nenhuma expressatildeo linguiacutestica pode ser vaga

e precisa ao mesmo tempo

2 Iago Bozza chamou minha atenccedilatildeo para o fato de que aceitar que Ǝn (CanʌnotCan+1) natildeo implica que haja um par de itens na sequecircncia que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo careca e o primeiro natildeo careca Considere uma analogia com caso dos nuacutemeros naturais Todos podemos aceitar que existe um nuacutemero n tal que n eacute iacutempar e n+1 natildeo eacute iacutempar Disso natildeo se segue que haacute um par de itens adjacentes na sequecircncia dos nuacutemeros naturais que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo iacutempar e o primeiro natildeo iacutempar da mesma Quando falamos que tal divisatildeo entre os carecas e os natildeo carecas se segue de Ǝn (CanʌnotCan+1) estamos adicionalmente assumindo que certas restriccedilotildees oacutebvias para a aplicaccedilatildeo do predicado ldquocarecardquo estatildeo em jogo Sobre tais restriccedilotildees veja-se GraffFara (2000 p 57)

188 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Por fim repare que essa breve apresentaccedilatildeo do Paradoxo Sorites nos

sugere trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria ideal da vagueza Satildeo

eles

a) O criteacuterio do Sorites resolver o Paradoxo Sorites

b) O criteacuterio da coerecircncia natildeo implicar que predicados vagos satildeo incoerentes

c) O criteacuterio da precisatildeo natildeo implicar que predicados vagos satildeo precisos

Ao alegar que (a)-(c) satildeo trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria

ideal da vagueza quero dizer que a falha em satisfazer algum deles deve

ser interpretado como um defeito para qualquer teoria da vagueza Noacutes

queremos uma teoria da vagueza que explique os predicados vagos de

forma a resolver o Sorites mas sem implicar que eles satildeo incoerentes ou

precisos (Uma defesa desses criteacuterios pode ser encontrada em Salles

2016) Eacute dentro desse pano de fundo que a Teoria Trivalente seraacute avaliada

Teoria Trivalente da Vagueza

Por ldquoTeoria Trivalente da Vaguezardquo entendo uma famiacutelia de teorias

que explicam a vagueza em termos de um terceiro valor de verdade ou

uma lacuna entre os dois valores claacutessicos verdadeiro e falso Apesar de

requererem uma loacutegica trivalente nem toda teoria da vagueza que faz uso

dessa loacutegica eacute uma instacircncia da Teoria Trivalente da Vagueza O traccedilo

distintivo dessas teorias eacute colocar o terceiro valorlacuna no centro da

explicaccedilatildeo das expressotildees vagas

A motivaccedilatildeo de base para essa teoria eacute a intuiccedilatildeo dos casos de

fronteira os predicados vagos admitem casos de fronteira casos a respeito

dos quais sua aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara A existecircncia desses casos serve como

um indiacutecio a favor da Teoria Trivalente Considere a frase (1)

Sagid Salles | 189

1 Joatildeo eacute careca

Se Joatildeo tem 0 fios de cabelo em sua cabeccedila entatildeo (1) expressa uma

proposiccedilatildeo verdadeira se Joatildeo tem todo o couro cabeludo coberto por

cabelo entatildeo (1) expressa uma proposiccedilatildeo falsa Mas o que dizer do caso

em que ele tem 85 do couro cabeludo coberto por cabelo (se quiser

pense em uma porcentagem que ache mais favoraacutevel ao exemplo)

Intuitivamente seria incorreto dizer que (1) eacute verdadeira nesse caso assim

como seria incorreto dizer que eacute falsa Uma explicaccedilatildeo para isso eacute que de

fato natildeo eacute verdadeira e de fato natildeo eacute falsa (1) eacute nem verdadeira nem falsa

ou como prefere Tye (1994) indefinida

Haacute duas interpretaccedilotildees de indefinido Pode-se interpretaacute-lo como um

terceiro valor de verdade ou como uma lacuna entre o verdadeiro e o falso

A vantagem de interpretaacute-lo como um terceiro valor eacute que fica mais faacutecil

explicar como (1) pode expressar uma proposiccedilatildeo Afinal proposiccedilotildees satildeo

tradicionalmente concebidas como os portadores dos valores de verdade

Por outro lado ficamos com o difiacutecil problema metafiacutesico de explicar o que

eacute esse terceiro valor o indefinido A vantagem da concepccedilatildeo da lacuna eacute

que natildeo carrega esse problema metafiacutesico pois natildeo aceita um terceiro

valor de verdade A desvantagem eacute que natildeo eacute claro como (1) nesse caso

poderia expressar uma proposiccedilatildeo Tanto quanto for possiacutevel manter-me-

ei neutro quanto ao ponto Para simplificar vou falar em uma frase sendo

indefinida e o leitor pode interpretar isso como significando que expressa

uma proposiccedilatildeo com o valor indefinido ou que falha em expressar uma

proposiccedilatildeo

A pergunta mais importante eacute como o apelo a frases indefinidas nos

leva a uma teoria dos predicados vagos A resposta se revela ao olharmos

para as expressotildees que constituem a frase Tradicionalmente entende-se

que uma frase como (1) eacute verdadeira se o objeto referido por ldquoJoatildeordquo

pertence ao conjunto de coisas selecionado pelo predicado ldquoeacute careca e

falsa de outro modo Nessa imagem o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de um

predicado pode ser dividido em duas partes (i) as coisas agraves quais o

190 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

predicado se aplica a sua extensatildeo positiva (ii) as coisas agraves quais o

predicado natildeo se aplica a sua extensatildeo negativa Cada elemento do

domiacutenio pertenceraacute a um ou a outro Se Joatildeo for um elemento da extensatildeo

positiva de ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute verdadeira se for um elemento da

extensatildeo negativa entatildeo eacute falsa natildeo haacute outra opccedilatildeo De acordo com a

Teoria Trivalente os predicados vagos natildeo se encaixam nessa imagem

O problema eacute que os predicados vagos natildeo dividem o seu domiacutenio em

duas partes Eacute verdade que eles tecircm uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo

negativa Mas fosse essa toda a histoacuteria cada frase como (1) seria

verdadeira ou falsa natildeo havendo espaccedilo para o nem verdadeiro nem falso

ou indefinido Para aleacutem da extensatildeo positiva e a extensatildeo negativa de um

predicado vago existe tambeacutem o que eacute chamado de ldquopenumbrardquo A

penumbra eacute formada pelos casos fronteira do predicado aqueles com

relaccedilatildeo aos quais a aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara Se Joatildeo estaacute na penumbra de

ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute indefinida ou nem verdadeira nem falsa

Pode haver divergecircncia sobre se a explicaccedilatildeo para o fato de que os

predicados vagos admitem penumbra eacute linguiacutestica ou metafiacutesica Tye

assume uma concepccedilatildeo metafiacutesica De acordo com ele satildeo os proacuteprios

conjuntos que satildeo vagos e os predicados satildeo vagos apenas porque os

conjuntos satildeo Nesse sentido o conjunto dos carecas eacute tal que para

algumas pessoas eacute indefinido se elas satildeo ou natildeo elementos do conjunto

(TYE 1994 p 195) Tye gosta de expressar isso dizendo que natildeo haacute uma

questatildeo de fato sobre se essas pessoas satildeo ou natildeo elementos do conjunto

dos carecas Predicados vagos satildeo vagos apenas porque satildeo associados a

conjuntos vagos Haacute tambeacutem aqueles que preferem uma explicaccedilatildeo

linguiacutestica para a penumbra Concepccedilotildees linguiacutesticas geralmente se datildeo

em termos das condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo do predicado Pode-se sustentar que

um predicado admite penumbra devido a alguma caracteriacutestica nas suas

condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo De acordo com Soames (1999 p 163) ndash que no

entanto natildeo defende a Teoria Trivalente da Vagueza ndash os predicados que

admitem penumbra tecircm condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida e

condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida Essas condiccedilotildees satildeo mutuamente

Sagid Salles | 191

exclusivas mas natildeo conjuntamente exaustivas Como as condiccedilotildees satildeo

mutuamente exclusivas se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-

sucedida de ldquocarecardquo entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-

sucedida e se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida

entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida Como natildeo

satildeo conjuntamente exaustivas haacute casos que nem satisfazem as condiccedilotildees

de aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem satisfazem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo

mal-sucedida os casos indefinidos Para criacuteticas agrave proacutepria ideia de um

terceiro valorlacuna veja-se Glanzberg (2009) Para os nossos

propoacutesitos contudo natildeo precisamos ir aleacutem do que jaacute fomos

Em resumo os predicados vagos natildeo cortam seu domiacutenio de

aplicaccedilatildeo apenas em uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo negativa Eles

tambeacutem admitem uma penumbra formada pelos casos fronteira do

predicado Eacute isso que explica o suposto fato de algumas frases contendo

predicados vagos serem nem verdadeiras nem falsas Quando a estaacute na

penumbra de ldquoFrdquo ldquoFardquo eacute indefinida A Teoria Trivalente assume que a

propriedade caracteriacutestica dos predicados vagos eacute encaixar-se na descriccedilatildeo

acima

Teoria Trivalente e a Soluccedilatildeo do Sorites

O modo como a Teoria Trivalente da Vagueza resolve o Paradoxo

Sorites depende dos detalhes de cada versatildeo Mais especificamente

depende do tratamento dado aos conectivosquantificadores e da

concepccedilatildeo de validade adotada A introduccedilatildeo de um terceiro valor ndash ou de

uma lacuna entre os dois valores claacutessicos ndash implica na necessidade de

reformular algumas definiccedilotildees Pode-se adotar uma concepccedilatildeo de validade

que nos permita rejeitar a validade do argumento Sorites mas a soluccedilatildeo

mais simples eacute manter a validade como preservaccedilatildeo de verdade e rejeitar

alguma premissa (KEEFE 2000 p104 e 107) Isto pode ser feito olhando

apenas para os conectivos e quantificadores Existem diferentes

interpretaccedilotildees dos conectivos Primeiro podem ser interpretados

192 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

verofuncionalmente (TYE 1994) ou natildeo verofuncionalmente (RICHARD

2009) Segundo mesmo que adotemos uma das duas haveraacute divergecircncia

sobre qual seraacute a interpretaccedilatildeo correta de cada um Natildeo vou entrar em

qualquer discussatildeo deste tipo aqui No que segue assumo a interpretaccedilatildeo

verofuncional de Tye e apresento a sua soluccedilatildeo do paradoxo

Tye (1994 p 194) adota uma das interpretaccedilotildees propostas por Kleene

(1952 p 332-340) dos conectivos

Natildeo eacute difiacutecil ver a motivaccedilatildeo por traacutes de cada tabela escolhida

Quando as frases componentes da frase mais complexa possuem apenas

valores claacutessicos os conectivos funcionam precisamente como funcionam

na leitura claacutessica ndash esse eacute o chamado ldquorequisito de normalidaderdquo (KEEFE

2000 p 86 MACHINA 1976 p 55) Assim as diferenccedilas relevantes

ocorrem apenas quando uma das frases componentes eacute indefinida

A negaccedilatildeo de uma frase indefinida A eacute ela mesma indefinida Por um

lado se notA fosse verdadeira entatildeo A seria falsa e consequentemente natildeo

seria indefinida Por outro lado se notA fosse falsa entatildeo A seria verdadeira

e portanto natildeo seria indefinida Para que uma disjunccedilatildeo seja verdadeira

A B notA AvB A˄B ArarrB

V V F V V V

V I F V I I

V F F V F F

I V I V I V

I I I I I I

I F I I F I

F V V V F V

F I V I F V

F F V F F V

Sagid Salles | 193

basta que uma disjunta seja verdadeira e para que seja falsa basta que

todas as disjuntas sejam falsas Nos outros casos a disjunccedilatildeo eacute indefinida

Uma conjunccedilatildeo eacute verdadeira se todas conjuntas satildeo verdadeiras falsa se

pelo menos uma conjunta eacute falsa e indefinida nos outros casos A

condicional eacute como se espera um caso problemaacutetico A uacutenica motivaccedilatildeo

notada por Tye eacute que ArarrB deve ser equivalente a notAvB Por fim AharrB

pode ser definido como (ArarrB) ˄ (BrarrA)

O quantificador existencial eacute definido como segue ƎxFx eacute verdadeiro

se tem uma instacircncia verdadeira falsa se todas as suas instacircncias satildeo

falsas e indefinida nos outros casos A intuiccedilatildeo por traacutes da definiccedilatildeo eacute que

uma afirmaccedilatildeo existencial seraacute indefinida quando nenhuma instacircncia for

verdadeira e pelo menos algumas forem indefinitas o mesmo que

ocorreria com a disjunccedilatildeo de todas as instacircncias Fa1vFa2vFa3v Fan O

quantificador universal eacute definido como segue forallxFx eacute verdadeira se todas

as suas instacircncias satildeo verdadeiras falsa se alguma instacircncia eacute falsa e

indefinida nos outros casos A ideia aqui eacute que uma afirmaccedilatildeo universal eacute

indefinida apenas quando nenhuma instacircncia eacute falsa e algumas satildeo

indefinidas o mesmo que ocorreria com a conjunccedilatildeo de todas as instacircncias

Fa1˄Fa2˄Fa3˄Fan

Essa leitura dos conectivos nos leva a alguns resultados

contraintuitivos quanto ao valor de verdade de certas frases Por exemplo

intuitivamente toda frase da forma A˄notA eacute falsa e toda frase da forma

AvnotA eacute verdadeira mas na leitura de Tye ambas as intuiccedilotildees estatildeo

erradas Quando A eacute indefinido tanto A˄notA quanto AvnotA seratildeo

indefinidos Tudo que Tye (1994 p 194) consegue reter de nossas

intuiccedilotildees eacute que nenhuma frase da primeira forma seraacute verdadeira (trata-

se de uma quase-contradiccedilatildeo) e nenhuma da segunda forma seraacute falsa

(trata-se de uma quase-tautologia) Agora imagine que Joatildeo eacute mais alto do

que Marcos mas ambos estatildeo na penumbra de ldquoaltordquo Nossa intuiccedilatildeo eacute que

a condicional ldquoSe Marcos eacute alto entatildeo Joatildeo eacute altordquo eacute verdadeira Na leitura

de Tye dos conectivos contudo a condicional seraacute indefinida Exemplos

do tipo podem ser multiplicados (KEEFE 2000 p 96-97 SANTOS 2015

194 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

p 5-6) Por fim problemas similares aparecem para diferentes

interpretaccedilotildees verofuncionais dos conectivos (WILLIAMSON 1994 cap

4)

Em todo caso o que nos interessa aqui eacute como Tye resolve o Paradoxo

Sorites A sua soluccedilatildeo consiste em rejeitar a premissa quantificada sem

com isso aceitar a sua negaccedilatildeo Na versatildeo para ldquocarecardquo a premissa

quantificada era foralln (CanrarrCan+1) Nenhuma instacircncia dessa premissa seraacute

falsa de modo que ela proacutepria natildeo seraacute falsa Por outro lado algumas

instacircncias seratildeo indefinidas dado que teratildeo antecedente e consequente

indefinidos Lembre-se de acordo com a Teoria Trivalente o predicado

ldquocarecardquo admite uma penumbra um conjunto de casos aos quais a sua

aplicaccedilatildeo eacute indefinida Eacute plausiacutevel supor que para algum n tanto Can

quanto Can+1 seratildeo indefinidas e nesse caso a condicional CanrarrCan+1 seraacute

tambeacutem indefinida Ora uma afirmaccedilatildeo universal com nenhuma instacircncia

falsa e algumas indefinidas eacute ela mesma indefinida Logo a premissa

quantificada eacute indefinida Assim Tye consegue rejeitar a premissa

quantificada sem precisar assumir que ela seja falsa e portanto sem

precisar aceitar a sua negaccedilatildeo

Teoria Trivalente e o Criteacuterio da Precisatildeo

Vimos que uma teoria ideal da vagueza satisfaria trecircs criteacuterios

resolver o Paradoxo Sorites natildeo implicar que os predicados vagos satildeo

incoerentes e natildeo implicar que eles satildeo precisos Na seccedilatildeo anterior vimos

que a Teoria Trivalente fornece uma resposta ao Sorites Aleacutem disso estaacute

claro que ela natildeo implica que os predicados vagos satildeo incoerentes Seu

principal problema eacute com o criteacuterio da precisatildeo

Na concepccedilatildeo tradicional o domiacutenio de um predicado eacute dividido em

uma extensatildeo positiva e uma negativa e todo objeto do domiacutenio estaacute ou

em uma ou na outra Supondo que o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo seja

o domiacutenio das pessoas cada pessoa ou estaacute na extensatildeo positiva ou estaacute

na extensatildeo negativa de ldquocarecardquo Isso implica que uma sequecircncia para

Sagid Salles | 195

ldquocarecardquo seria dividida de modo a haver um nuacutemero n tal que uma pessoa

com n fios eacute careca e uma pessoa com n+1 natildeo eacute O resultado pode ser

representado como segue

Extensatildeo Positiva Extensatildeo negativa

|a0 a1 a2 a3 an | an+1 an+2hellip an+m|

Verdadeiro Falso

Fica evidente que na concepccedilatildeo acima ldquocarecardquo eacute um predicado

preciso Existe um uacuteltimo caso ao qual ldquocarecardquo se aplica e um primeiro

caso ao qual natildeo se aplica A Teoria Trivalente evita isto por meio da

postulaccedilatildeo de uma penumbra entre a extensatildeo positiva e a negativa O

resultado pode ser representado como segue

Ext Positiva Penumbra Ext negativa

|a0 a1 an | an+1an+m | an+m+1 an+m+k|

Verdadeiro Indefinido Falso

Esta imagem no entanto natildeo evita o problema da anterior Eacute

verdade que a Teoria Trivalente eacute capaz de separar os casos nos quais a

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo gera uma verdade dos casos nos quais ela gera uma

falsidade Existe um uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo na sequecircncia an e

existe um primeiro caso negativo an+m+1 Entre eles contudo haacute um

conjunto de casos nos quais a aplicaccedilatildeo gera o valorlacuna indefinido

Chamemos-lhes de ldquocasos indefinidosrdquo Nada disso evita a consequecircncia

de que predicados vagos satildeo precisos Na imagem acima o predicado

ldquocarecardquo continua cortando a sequecircncia de forma ciruacutergica A uacutenica

diferenccedila relevante eacute que ao inveacutes de haver apenas uma fronteira ndash a

fronteira entre os casos positivos e negativos ndash agora haacute duas fronteiras a

fronteira positivoindefinido e a fronteira indefinidonegativo O item an eacute

o uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo seu vizinho imediato an+1 eacute o primeiro

caso indefinido Portanto haacute uma fronteira precisa entre os casos positivos

e os casos indefinidos de ldquocarecardquo O item an+m eacute o uacuteltimo caso indefinido

e seu vizinho imediato an+m+1 eacute o primeiro negativo Portanto haacute tambeacutem

uma fronteira precisa entre os casos indefinidos e os negativos de ldquocarecardquo

196 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Comeccedilamos com uma fronteira e terminamos com duas Ao inveacutes de

ldquocarecardquo cortar o seu domiacutenio cirurgicamente em um ponto corta em dois

A Teoria Trivalente natildeo satisfaz o criteacuterio da precisatildeo

O resultado acima eacute que a Teoria Trivalente implica que os

predicados vagos satildeo de fato precisos Assumindo a intuiccedilatildeo de que ser

preciso e ser vago satildeo propriedades incompatiacuteveis o resultado eacute que as

expressotildees aparentemente vagas natildeo satildeo realmente vagas Isso ainda nos

deixaria com o que chamei de ldquoproblema fundacional da precisatildeordquo

(SALLES 2016 p 163) Se os predicados vagos satildeo precisos entatildeo como a

sua extensatildeo eacute determinada Essa pergunta eacute ainda mais difiacutecil de ser

respondida pela Teoria Trivalente do que pela concepccedilatildeo tradicional

Afinal agora temos de explicar como cada uma das duas fronteiras de

ldquocarecardquo por exemplo eacute determinada Nossos usos desse predicado seriam

refinados o bastante para estabelecer um corte entre os casos

positivoindefinidos e outro entre os indefinidonegativos de ldquocarecardquo

No que segue considero duas respostas disponiacuteveis ao defensor da

Teoria Trivalente A primeira sustenta que o erro do argumento acima eacute

supor que todos os objetos do domiacutenio de aplicaccedilatildeo do predicado ou estatildeo

na extensatildeo positiva ou estatildeo na negativa ou estatildeo na penumbra Natildeo se

trata aqui de aumentar ainda mais o nuacutemero de fronteiras Pelo

contraacuterio o ponto eacute questionar que soacute existam aquelas trecircs opccedilotildees sem

no entanto afirmar que existam mais Essa eacute a estrateacutegia de Tye (1994 p

195) para quem devemos assumir o seguinte

bull Os predicados vagos admitem casos positivos indefinidos e negativos e natildeo

existe uma questatildeo de fato acerca de se esses satildeo ou natildeo os uacutenicos casos

A tese acima natildeo afirma que existem mais do que as trecircs opccedilotildees

consideradas Mas ela impede que suponhamos que existam somente as

trecircs Uma vez que o argumento contra a Teoria Trivalente depende dessa

suposiccedilatildeo ele falha

O argumento de Tye a favor dessa tese eacute como segue Considere a

pergunta existem apenas trecircs opccedilotildees Suponha que sim Nesse caso

Sagid Salles | 197

como vimos o predicado ldquocarecardquo eacute preciso Suponha que natildeo Nesse caso

existe ainda uma quarta opccedilatildeo Pode-se entatildeo perguntar satildeo essas quatro

opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo caiacutemos no mesmo problema de antes e

predicados vagos seratildeo de fato precisos Se natildeo entatildeo precisaremos de

uma quinta opccedilatildeo Satildeo as cinco opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo predicados

vagos satildeo precisos Se natildeo entatildeo precisamos de uma sexta opccedilatildeo e assim

por diante Por um lado natildeo eacute verdade que existam apenas trecircs opccedilotildees

pois isso implica que predicados vagos satildeo precisos Por outro natildeo eacute falso

que existam apenas trecircs opccedilotildees pois isso implica em esquisitices

metafiacutesicas (o proacuteprio quarto valor) ou regresso ao infinito Conclusatildeo

natildeo haacute uma questatildeo de fato sobre se existe ou natildeo uma quarta opccedilatildeo Isso

pode ser expresso dizendo-se que eacute em si mesmo indefinido se ou natildeo

existem apenas trecircs opccedilotildees

Keefe (2000 p 121) apresenta uma objeccedilatildeo que me parece decisiva

contra o argumento acima Podemos explicitar o argumento de Tye como

segue

α Natildeo eacute verdadeiro que existem apenas trecircs opccedilotildees

β Natildeo eacute falso que existem apenas trecircs opccedilotildees

γ Logo eacute indefinido se existem apenas trecircs opccedilotildees

Como (γ) se segue de (α) e (β) Suponha por exemplo que existe

uma quarta opccedilatildeo indefinido Nesse caso o maacuteximo que poderiacuteamos

concluir a partir de (α) e (β) eacute que eacute indefinido ou indefinido que existem

apenas trecircs opccedilotildees De fato para que a inferecircncia de (γ) no argumento

acima seja permitida eacute preciso que haja apenas trecircs opccedilotildees verdadeiro

falso e indefinido Para mostrar que eacute indefinido que existem apenas trecircs

opccedilotildees Tye assume justamente que existem apenas trecircs opccedilotildees No fim

das contas Tye assume aquilo que pretende rejeitar

Mark Richard (2009 p 476) sustenta que o erro do argumento contra

a Teoria Trivalente estaacute em assumir que existe um uacuteltimo caso positivo de

ldquocarecardquo e um primeiro caso indefinido A sua resposta passa pelas noccedilotildees

de penumbra e indefinido Primeiro ele adota uma concepccedilatildeo linguiacutestica do

198 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que eacute para um predicado possuir uma penumbra Seguindo Soames um

predicado possui uma penumbra quando haacute objetos que nem satisfazem as

condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo

mal-sucedida3 Se Joatildeo estaacute na penumbra de ldquocarecardquo entatildeo as condiccedilotildees de

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo nada dizem sobre se ele deve ser incluiacutedo na extensatildeo

positiva ou na extensatildeo negativa desse predicado Como as condiccedilotildees de

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo natildeo determinam em qual lado estaacute Joatildeo eacute indefinido

se (1) eacute verdadeira ou falsa Por outras palavras (1) eacute indefinida (Richard

prefere indeterminada) Segundo indefinido natildeo eacute entendido como um

terceiro valor de verdade Nessa concepccedilatildeo soacute existem dois valores de

verdade mas pode estar indefinido qual deles uma frase tem

Agora o argumento procede como segue Uma vez que an+1estaacute na

penumbra de ldquocarecardquo natildeo estaacute definido se ele eacute careca ou natildeo Mas se natildeo

estaacute definido se an+1 eacute careca ou natildeo entatildeo natildeo podemos assumir que aneacute

o uacuteltimo caso de ldquocarecardquo na sequecircncia Por outro lado tambeacutem natildeo

podemos assumir que an natildeo seja o uacuteltimo item careca da sequecircncia Pois

soacute poderiacuteamos assumir isso se estivesse definido que o proacuteximo item an+1

eacute careca Mas isso tambeacutem estaacute indefinido Portanto natildeo haacute um caso que

possamos justificadamente apontar como sendo o uacuteltimo caso positivo de

ldquocarecardquo Um argumento similar nos permitiria mostrar que tambeacutem natildeo

haacute um que possamos apontar como sendo o primeiro caso negativo de

ldquocarecardquo Tatildeo logo entendemos corretamente no que consiste ser

indefinido se um item eacute ou natildeo careca percebemos que ldquocarecardquo natildeo

estabelece fronteiras e portanto natildeo eacute preciso

Natildeo acredito esse argumento evite a violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo

Mesmo aceitando tudo que foi dito continua sendo o caso de ldquocarecardquo

3 Haacute diferenccedilas entre Soames e Richard no que diz respeito ao mecanismo que faz com que um predicado acabe por ter uma penumbra De acordo com Soames isso ocorre porque o predicado (i) tem condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) essas condiccedilotildees satildeo mutuamente exclusivas mas (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas Richard (2009 p 465-467) pensa que essa definiccedilatildeo natildeo eacute boa o bastante para justificar uma lacuna entre os dois valores claacutessicos de verdade propondo uma pequena modificaccedilatildeo De acordo com ele um predicado ldquoFrdquo tem uma penumbra quando (i) tem um conjunto C de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) tem um conjunto Crsquo de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) C e Crsquo satildeo mutuamente exclusivas e (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas

Sagid Salles | 199

cortar o seu domiacutenio de forma precisa em trecircs partes Retorne agrave imagem

acima da divisatildeo tripartida do domiacutenio de ldquocarecardquo O item an eacute o uacuteltimo

para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo se aplica enquanto an+1 eacute o primeiro

para o qual estaacute indefinido Haacute uma fronteira precisa entre os casos

definidos e os indefinidos de ldquocarecardquo Do mesmo modo an+m eacute o ultimo

caso para o qual estaacute indefinido se ldquocarecardquo se aplica ou natildeo e an+m+1 eacute o

primeiro caso para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo natildeo se aplica Haacute uma

fronteira precisa entre os casos indefinidos e os definidos de ldquonatildeo-carecardquo

Novamente temos duas fronteiras precisas onde deveria haver nenhuma

O proacuteprio Richard reconhece essa objeccedilatildeo e apela a uma soluccedilatildeo

epistecircmica para a mesma (2009 p 476-477) Apesar dos predicados vagos

possuiacuterem fronteiras no sentido acima frequentemente natildeo eacute possiacutevel

para noacutes sabermos onde ela se situa Nesse caso natildeo eacute claro se natildeo seria

mais plausiacutevel rejeitar de uma vez por todas a Teoria Trivalente e aceitar

a Teoria Epistecircmica em seu lugar Seja como for essa soluccedilatildeo aceita a

violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo

Conclusatildeo

A principal conclusatildeo deste texto eacute que embora a Teoria Trivalente

satisfaccedila os criteacuterios do Sorites e da coerecircncia tem claros problemas em

satisfazer o criteacuterio da precisatildeo Em todo caso estou convencido de que

satisfazer a todos os trecircs criteacuterios eacute algo dificiacutelimo e que as outras teorias

tradicionais da vagueza (Gradualismo Supervalorativismo Incoerentismo

Epistemicismo etc) tambeacutem falham em satisfazer pelo menos algum deles

Se isso estiver correto fica em aberto a possibilidade de a Teoria Trivalente

ainda ser a nossa melhor opccedilatildeo Afinal nem sempre a melhor opccedilatildeo de que

dispomos eacute a opccedilatildeo ideal Por outro lado se houver uma teoria que satisfaccedila

conjuntamente a todos os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente

estaraacute em desvantagem quanto a mesma Eu de fato penso que exista tal

teoria mas essa eacute uma histoacuteria para outro momento

200 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Referecircncias

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WILLIAMSON T Vagueness Routledge 1994

12

O Leibniz de Deleuze

Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido1

William de Siqueira Piauiacute 2

Introduccedilatildeo

O que gostariacuteamos ao menos de comeccedilar a fazer em nosso mini-curso

eacute semelhante ao que fez Derrida em ldquoCogito e Histoacuteria da Loucurardquo

(Escritura e diferenccedila de 1967) com o trabalho exegeacutetico realizado por

Foucault quando este havia tentado localizar nas Meditaccedilotildees de Descartes

uma recusa ou exclusatildeo criticaacutevel da loucura tratava-se de mostrar que

um especialista em modernidade naquele momento jaacute autor de As

palavras e as coisas (de 1966) podia natildeo ter compreendido corretamente

o texto cartesiano acusaccedilatildeo grave e que por isso exigia natildeo soacute um novo

trabalho exegeacutetico do texto em questatildeo mas tambeacutem a explicitaccedilatildeo dos

pontos mais importantes e o centro da argumentaccedilatildeo da hipoacutetese

interpretativa a ser criticada3 Assim em termos comparativos o que

pretendemos mostrar eacute quais seriam os pontos principais e mesmo o

1 Texto-aula do minicurso que de iniacutecio tinha o nome O Leibniz de Deleuze problemas de exegese ministrado no IV Encontro Linguagem e Cogniccedilatildeo realizado junto agrave 8ordf Bienal Internacional do Livro de Alagoas em outubro de 2017 texto que com algumas alteraccedilotildees serviu de base para a palestra Deleuze e a noccedilatildeo leibniziana de sujeito apresentada no III Congresso Ibero-americano Leibniz realizado na Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Curitiba em novembro de 2017 palestra que foi um desenvolvimento das hipoacuteteses interpretativas que levantamos no V Encontro do Grupo Subjetividade no Pensamento Contemporacircneo realizado em junho de 2017 na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

2 Professor do Departamento de Filosofia (DFL) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) E-mail piauiuspgmailcom

3 E nos parece que Derrida faz o mesmo com Jean-Pierre Vernant em Khora cf por exemplo 1995 p 7

202 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

centro do trabalho exegeacutetico de Deleuze com relaccedilatildeo a Leibniz mostrar

que mesmo um ldquoespecialistardquo do seu quilate pode natildeo ter compreendido

bem a filosofia leibniziana ao fazer uma apropriaccedilatildeo elogiosa poreacutem

equivocada principalmente dos seus conceitos de mocircnada individual ou

substacircncia particular Deus mundo corpo e principalmente ao defender a

necessidade de certo deslocamento que corroboraria a hipoacutetese que

Leibniz teria ido muito longe naquilo que o francecircs compreendia como

gecircnese estaacutetica ontoloacutegica etapa fundamental de sua Loacutegica do sentido

obra que seraacute nosso principal ponto de partida Do nosso ponto de vista eacute

o que estaacute em jogo principalmente no seguinte trecho de sua 16ordf seacuterie

Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada

mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente

compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia dos

predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo expresso

natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas mocircnadas como

a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos verdade entretanto

que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas [ou seja Deus criou natildeo

exatamente Adatildeo-pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou] e [tambeacutem eacute

verdade] que o expresso natildeo se confunde com sua expressatildeo mas insiste ou

subsiste [] Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na

filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na mocircnada

expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo expresso e

esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo

as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma

loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e

da verdade Leibniz foi muito longe nesta primeira etapa da gecircnese [de um

certo campo transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades

entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentais o indiviacuteduo

constituiacutedo como centro de envolvimento como envolvendo singularidades

em um mundo e sobre seu corpo (DELEUZE 2003 p 114-5 grifo nosso)

Do nosso ponto de vista natildeo eacute necessaacuterio afirmar o deslocamento

defendido por Deleuze que corroboraria a obrigatoriedade do

encadeamento de I a III e natildeo do seu contraacuterio Em nossa opiniatildeo a

apropriaccedilatildeo equivocada da filosofia leibniziana fica mais evidente

William de Siqueira Piauiacute | 203

especialmente em parte do trabalho exegeacutetico que Deleuze faz do Discurso

de metafiacutesica em associaccedilatildeo com a Correspondecircncia de Leibniz e de

Arnauld dos sect408 sect409 e sect414 da Teodiceia na menccedilatildeo natildeo explicitada

de parte do sect47 da quinta carta da Correspondecircncia Leibniz Clarke ndash

que faz a base da noccedilatildeo de coexistecircncia ndash e inclusive no alcance que supocircs

do texto ldquoSobre o meacutetodo da universalidaderdquo ndash o que seraacute mantido em A

dobra ndash ao mencionar um suposto uso geral que Leibniz faria da noccedilatildeo de

ldquosigno ambiacuteguordquo e principalmente para defender que por conta de seu

antigeneralismo o alematildeo forneceria as bases para pensarmos um ldquocampo

transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades

entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentaisrdquo Para noacutes

Deleuze teria criado dado o uso que supocircs dos atributos verbais uma

ficccedilatildeo falsa a la Lorenzo Valha que se sobrepotildee ao que de fato eacute afirmado

no final da Teodiceia ndash talvez por ter decidido parar em seu sect408 ou pela

excessiva importacircncia que conferiu a uma parte de seu sect414 Tudo

apontando para uma aproximaccedilatildeo excessiva entre Leibniz e Newton

inclusive a partir de certa caracterizaccedilatildeo de um mundo expresso feito de

relaccedilotildees diferenciais e de singularidades adjacentes que acabariam por

conduzir a uma dinacircmica sem causa proacutexima

Quanto aos motivos que nos levam a rever a leitura de Deleuze jaacute haacute

tantos anos publicada e criticada temos que dizer que eles satildeo de caraacuteter

regional recentemente em 2015 vimos publicado no Brasil a traduccedilatildeo do

livro de Alain Badiou A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX que

conteacutem um capiacutetulo de tiacutetulo ldquoGilles Deleuze Sobre A dobra Leibniz e o

barrocordquo e a publicaccedilatildeo em 2016 do excelente artigo de Gonzalo

Montenegro ldquoDeleuze em diaacutelogo com Freacutemont tentativas de ler Leibnizrdquo

tais textos deixam claro que ainda haacute muito que problematizar quanto agraves

interpretaccedilotildees de Deleuze mesmo quanto agrave sua afirmaccedilatildeo que

permanecemos leibnizianos e eacute com esse trabalho que gostariacuteamos de

contribuir voltando especialmente ao texto que serviu de base para A

dobra Mesmo natildeo desconsiderando o ldquobrilhantismordquo ou a ldquogenialidaderdquo

da interpretaccedilatildeo do francecircs ndash o que tenta nos mostrar Badiou ndash para que

204 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

o leitor natildeo se engane quanto ao nosso ponto de vista de fundo fazendo

outros caminhos estamos mais de acordo com grande parte das objeccedilotildees

que Freacutemont fez agrave leitura deleuziana especialmente se tomarmos a Loacutegica

do sentido como ponto de partida inclusive consideramos a pertinecircncia

daquelas objeccedilotildees como o motivo mais forte para a obra A dobra ter

demorado vinte anos para ser confeccionada Para noacutes em termos de

comentaacuterio de obra a leitura de Fremoacutent eacute muito mais bem fundamentada

e corresponde mais apropriadamente com o que o texto leibniziano

permitiria concluir principalmente se natildeo aceitarmos o deslocamento

exigido em a Loacutegica do sentido ou se recusamos a inversatildeo do caminho

argumentativo da Monadologia bases da argumentaccedilatildeo defendida em A

dobra de qualquer modo natildeo nos parece que Gonzalo deixa claro com que

interpretaccedilatildeo estaria mais de acordo Eacute por aiacute portanto que caminharaacute

nossa tentativa de problematizar o trabalho interpretativo feito na Loacutegica

do sentido e que em grande medida prepara todo o trabalho realizado em

A dobra Por fim e em termos da leitura de Badiou mesmo que estejamos

de acordo com a opiniatildeo que A dobra eacute ldquoum livro rarordquo ldquoadmiraacutevelrdquo e que

ldquopropotildee-nos uma visatildeo e um pensamento do nosso mundordquo pretendemos

ainda uma vez voltar agraves querelas genealoacutegicas agrave agrimensura dos textos

especialmente daquele que lanccedila as bases da argumentaccedilatildeo defendida em

A dobra quem sabe tal empreitada nos permita recolocar a pergunta o

que vemos como ou pensamos ser o nosso mundo

I Parte ndash Entre Literatura Psicanaacutelise Linguiacutestica e Loacutegica Deleuze

de Loacutegica do Sentido e a Filosofia Contemporacircnea

Como nos diz Pierre Franccedilois Marietti (HUISMAN 2001 p 255) em

geral se costuma distinguir trecircs periacuteodos da filosofia do francecircs Gilles

Deleuze (1925-1995) O primeiro entre 1953 ou 52 e 1968 que

compreenderia a produccedilatildeo de vaacuterios trabalhos sobre filoacutesofos e literatos

o periacuteodo das monografias tais como sobre Hume em Hume sua vida e

sua obra de 1952 e em Empirismo e subjetividade de 1953 sobre

William de Siqueira Piauiacute | 205

Nietzsche em Nietzsche e a filosofia de 1962 ou simplesmente Nietzsche

de 1965 sobre Proust em Proust e os signos de 1964 sobre Bergson em

Bergsonismo de 1966 sobre Espinosa em Espinosa ou o problema da

expressatildeo de 1968 ano que marcaria o final deste periacuteodo O segundo

periacuteodo 1968-1972 teria iniacutecio com as produccedilotildees mais autocircnomas e

propriamente filosoacuteficas de Deleuze tais como os volumosos Diferenccedila e

repeticcedilatildeo de 1968 e Loacutegica do sentido de 1969 Mas eacute preciso dizer que

aquele primeiro tipo de produccedilatildeo caracteriacutestico do primeiro periacuteodo natildeo

seraacute abandonado e seratildeo produzidas dentre outras mais duas obras sobre

Espinosa (em 1970 e 1981) a obra Foucault de 1986 e a famosa A dobra

Leibniz e o Barroco de 1988 (publicado quase 20 anos depois de a Loacutegica

do sentido e que foi o resultado de aulas dadas nos anos 80 86 e 87)

Tambeacutem nesse periacuteodo se intensificaratildeo seus estudos sobre psicanaacutelise e

literatura isto eacute a produccedilatildeo das obras escritas em parceria com o

psicanalista Feacutelix Guattari (1930-1992) tais como O anti-Eacutedipo e mesmo

Kafka por uma literatura menor ambas de 1972 o primeiro estudo

marca o iniacutecio do que se costuma chamar de a grande ruptura que

certamente faz o pano de fundo de obras como O que eacute filosofia jaacute de

1991 e Criacutetica e Cliacutenica de 1997 este uacuteltimo publicado jaacute dois anos depois

da morte de Deleuze

Dito isso e como jaacute o indicamos a obra principal sobre a qual

falaremos neste minicurso seraacute a Loacutegica do sentido praticamente o tema

da nossa III Semana de Filosofia da Linguagem4 obra que foi publicada

em 1969 e que faria parte daquele segundo periacuteodo obra que segundo

Marietti mais que Diferenccedila e repeticcedilatildeo ldquoextrapola em muito os cacircnones

universitaacuterios vigentes na eacutepoca com seu interesse pelas meninasrdquo pelos

poetas ldquoe pelos esquizofrecircnicosrdquo ndash certamente uma referecircncia agrave 13ordf seacuterie

do livro ndash ldquocomrdquo completa ele uma ldquoreflexatildeo profunda sobre a linguagem

e a literaturardquo (HUISMAN 2001 p 255) e acrescentariacuteamos uma reflexatildeo

sobre o estruturalismo e ainda mais especifica sobre a loacutegica a qual

4 Evento ocorrido no DFL-UFS em marccedilo de 2017 e que teve por tema ldquoGilles Deleuze Loacutegica e Sentidordquo onde tambeacutem ministramos um minicurso sobre a Loacutegica do sentido

206 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

acompanharaacute Deleuze certamente ateacute o final de sua vida como o

comprova o capiacutetulo II (Prospectos e Conceitos) da parte II (Filosofia

Ciecircncia Loacutegica e Arte) do livro escrito em parceria com Guattari O que eacute

filosofia

O que extrapola os cacircnones universitaacuterios vigentes certamente natildeo

se associa somente a certas figuras que despertam o interesse de Deleuze

mas o proacuteprio assunto e a forma como ele seraacute exposto ou como nos diz

o proacuteprio tratar-se-aacute da ldquoconstituiccedilatildeo paradoxal da teoria do sentidordquo

teoria que seraacute apresentada em 34 seacuteries (espeacutecie de capiacutetulos) que

receberatildeo mais 2 apecircndices subdivididos em 5 tiacutetulos seacuteries em que

veremos a elaboraccedilatildeo de uma espeacutecie de histoacuteria ldquouma lsquohistoacuteria

embrulhadarsquordquo por fim a obra seraacute apresentada como um ldquoensaio de

romance loacutegico e psicanaliacuteticordquo Falar de loacutegica a partir do gecircnero

romance misturando tal tema com psicanaacutelise e ensaiando compor uma

histoacuteria embrulhada obra em que em muitos de seus capiacutetulos tratam do

tema ldquoparadoxordquo certamente tambeacutem significava extrapolar os cacircnones

universitaacuterios vigentes basta pensarmos em obras sobre loacutegica ou

linguagem como as de Frege (a Conceitografia por exemplo) Russell

(Principia mathematica) Carnap (Da construccedilatildeo loacutegica do mundo)

Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus) Husserl (Investigaccedilotildees

loacutegicas) e mesmo a de Heidegger (Princiacutepios metafiacutesicos da loacutegica) ou

Merleau-Ponty (A prosa do mundo) ou ainda a de Foucault (As palavras

e as coisas uma arqueologia das ciecircncias humanas) e de Derrida

(Gramatologia) para imaginarmos quatildeo grande era aquela extrapolaccedilatildeo

Toda essa extrapolaccedilatildeo ou abandono daquele rigor claacutessico rigor

ainda presente segundo Marietti em Diferenccedila e repeticcedilatildeo jaacute garantiria

um lugar de destaque agrave obra Loacutegica do sentido junto agrave filosofia

contemporacircnea ou dos modernos como quer Badiou o que seraacute

intensificado pela valorizaccedilatildeo de um tipo de filosofia que jaacute tinha aceitado

a ponto de se misturar com elas seja a intromissatildeo da literatura seja a da

psicanaacutelise seja a da linguiacutestica Quanto agrave uacuteltima eacute faacutecil perceber a

importacircncia natildeo costumeiramente afirmada em livros de loacutegica que

William de Siqueira Piauiacute | 207

assumiratildeo as consideraccedilotildees de um Benveniste (de Problemas de

linguiacutestica geral por exemplo) de Jakobson (de dentre outros ldquoO signo

zerordquo) e mesmo que indiretamente de Sausurre (de Curso de linguiacutestica

geral) para a elaboraccedilatildeo das ldquotrecircs relaccedilotildees distintas da proposiccedilatildeo

(designaccedilatildeo ou indicaccedilatildeo manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo) tema da 3ordf seacuterie

Mais do que isto a contribuiccedilatildeo geral da linguiacutestica e estruturalismo seratildeo

enunciadas na 12ordf seacuterie do seguinte modo

Os autores que se costuma atualmente chamar de estruturalistas [tais como

Benveniste e Jakobson] natildeo tecircm talvez outro ponto em comum ndash poreacutem

essencial ndash aleacutem do seguinte o sentido natildeo como aparecircncia mas como efeito

de superfiacutecie e de posiccedilatildeo produzido pela circulaccedilatildeo da casa vazia nas seacuteries

da estrutura [le sens non pas du tout comme apparence mais comme effet de

surface et de position produit par la circulation de la case vide dans les seacuteries

de la structure] ([] significante flutuante valor zero cantonada ou causa

ausente etc) O estruturalismo conscientemente ou natildeo celebra novos

achados de inspiraccedilatildeo estoica ou carrolliana [] (DELEUZE 2003 p 73-4

grifo nosso)

Ora natildeo eacute o elogio de tipo semelhante que veremos em muitos outros

filoacutesofos contemporacircneos Ao menos podemos dizer que eacute o caso

inclusive dito de modo muito semelhante de Derrida em Escritura e

diferenccedila especialmente no capiacutetulo ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo E a noccedilatildeo do

sentido como superfiacutecie certamente marca uma das viradas mais

conscientemente assumidas e feita jaacute no iniacutecio de a Loacutegica do sentido ou

seja na atualidade ou a partir daqueles achados o ldquoProfundo deixou de

ser um elogiordquo (Idem p 16) Eacute preciso pois se aproximar da filosofia da

literatura ou da arte da psicologia ou psicanaacutelise das teorias da linguagem

ou dos estruturalismos que natildeo simulam mais a profundidade e vivem dos

incorporais ou da superfiacutecie Jaacute antecipamos que a obra buscaraacute

justamente tornar mais explicito e de modo talvez mais consciente o que

a literatura produzida por Carroll e a filosofia produzida pelos Estoicos

podem nos inspirar mas voltemos ao que diziacuteamos

208 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Haacute outros dois tipos de produccedilatildeo que jaacute haviam aceitado se

embrulhar na investigaccedilatildeo do sentido associada agrave superfiacutecie Deleuze natildeo

procura em Nietzsche ldquoum profeta da reviravolta nem da superaccedilatildeordquo nem

em Freud ldquoum explorador da profundidade humanardquo pois

Se haacute um autor para o qual a morte de Deus a queda em altura do ideal

asceacutetico natildeo tem nenhuma importacircncia enquanto eacute compensada pelas falsas

profundidades do humano maacute consciecircncia e ressentimento eacute sem duacutevida

Nietzsche [] Natildeo procuramos em Freud um explorador da profundidade

humana e do sentido originaacuterio mas o prodigioso descobridor da maquinaria

do inconsciente[ e vale lembrar que o paradoxo eacute a potecircncia do inconsciente]5

por meio do qual o sentido eacute produzido sempre produzido em funccedilatildeo do natildeo-

senso [] O que haacute de burocraacutetico nestas maacutequinas fantasmas que satildeo os

povos e os poemas [] Basta que nos dissipemos um pouco que saibamos

estar na superfiacutecie que estendamos nossa pele como um tambor para que a

ldquogrande poliacuteticardquo comece [] Fazer circular a casa vazia e fazer falar as

singularidades pre-individuais e natildeo pessoais [faire parler las singulariteacutes preacute-

individuelles non personnelle] [que natildeo satildeo nem da ordem do geral nem da

ordem do individual nem pessoais nem universais] em suma produzir o

sentido eacute a tarefe de hoje (Idem p 75-6)

Nenhuma novidade quanto agrave menccedilatildeo a Nietzsche e Freud geste que

tambeacutem lembraraacute Derrida em ldquoLa diffeacuterancerdquo6 trata-se de autores

fundamentais para pensar filosofia contemporacircnea ao menos a produzida

no continente Mantermo-nos na superfiacutecie naquele algo que insiste em

subsistir deixar de elogiar o profundo compreender ao menos em termos

gerais o que pretendiam os estruturalistas bem como Nietzsche e Freud

fazer comeccedilar a grande poliacutetica (incluiriacuteamos tambeacutem aiacute a justiccedila) e natildeo

apenas relembrar ou comentar mas produzir o sentido satildeo portanto as

tarefas da filosofia contemporacircnea defendida por Deleuze em Loacutegica do

sentido Mas assim como ao seu modo os Estoicos natildeo realizaram tal

tarefa eacute preciso estar atento ao fato que para Deleuze tambeacutem Nietzsche

teria se desviado dela ou como ele mesmo nos dizia

5 Cf op cit p 82

6 Cf Margens da filosofia 1991 p 49

William de Siqueira Piauiacute | 209

Nietzsche esteve primeiramente entre estes [Boehme Schelling etc] disciacutepulo

de Schopenhauer no Nascimento da trageacutedia quando ele faz falar Dioniacutesio

sem fundo opondo-o agrave individuaccedilatildeo divina de Apolo e natildeo menos agrave pessoa

humana de Soacutecrates [] Assim a descoberta de Nietzsche estaacute alhures[ em

outro lugar em outra parte] quando tendo se livrado de Schopenhauer e de

Wagner explora um mundo de singularidades impessoais e preacute-

individuais [un monde de singulariteacutes impersonnelles et preacute-individuelles]

mundo que chama agora de dionisiacuteaco ou da vontade de potecircncia energia livre

e natildeo ligada [] Estranho discurso que devia renovar a filosofia e que

trata o sentido enfim natildeo como predicado [ou] como propriedade mas

como acontecimento [traite le sens enfin non pas comme preacutedicat comme

proprieacuteteacute mais comme eacuteveacutenement] [] Na sua descoberta Nietzsche entreviu

como em um sonho o meio de pisar a [superfiacutecie da] terra de roccedilaacute-la de

danccedilar e de trazer de volta agrave superfiacutecie o que restava dos monstros do fundo e

das figuras do ceacuteu Mas eacute verdade que ele foi tomado por uma ocupaccedilatildeo mais

profunda mais perigosa tambeacutem na sua descoberta ele viu um novo meio de

explorar o fundo [] correndo o risco de ser tragado por essa profundidade

(Idem p 110 grifo nosso)

Em sua avaliaccedilatildeo da filosofia nietzscheana embalado pela renovaccedilatildeo

da filosofia que ela sugeria Deleuze menciona uma espeacutecie de condiccedilatildeo da

tarefa fundamental de sua teoria do sentido ou seja aquele ldquoestranho

discursordquo deve nos conduzir a tratar ldquoo sentido enfim natildeo como

predicadordquo ou ldquocomo propriedade mas como acontecimentordquo para entatildeo

explorarmos ldquoum mundo de singularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo

inspiraccedilatildeo expliacutecita do Nietzsche de Nascimento da trageacutedia mas claro

tambeacutem que a noccedilatildeo freudiana de inconsciente e limite dado seu elemento

paradoxal limite do horizonte de saber (e talvez a grande poliacutetica e a

justiccedila tivessem justamente que assumir tal pressuposto) inclusive recusa

da profundidade das filosofias da intencionalidade satildeo fundamentais aqui

E vale repetir fonte inclusive da estranheza de seu discurso e que parece

ser a principal responsaacutevel pela distacircncia que separa ldquocontinentaisrdquo e

ldquoanaliacuteticosrdquo Nietzsche teria sonhado com o outro aspecto fundamental das

filosofias contemporacircneas que se embaralham com o problema do

significado e sentido o sentido natildeo deve ser tratado como predicado como

210 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

propriedade mas como acontecimento como eacuteveacutenement conceito

fundamental das filosofias e teorias da linguagem contemporacircneas

especialmente as continentais Tambeacutem eacute por causa deste aspecto que se

exigiraacute toda uma nova maneira de pensar a loacutegica do sentido que por isso

mesmo deveraacute ultrapassar aquelas trecircs relaccedilotildees distintas na proposiccedilatildeo

e seraacute especialmente associada agrave primeira a da designaccedilatildeo que Deleuze

formularaacute o problema mais geral de tal loacutegica

[] de que serviria elevarmo-nos da esfera do verdadeiro agrave do sentido se fosse

para encontrar entre o sentido e o natildeo-senso [le sens et non-sens] uma relaccedilatildeo

anaacuteloga agrave do verdadeiro e do falso () A loacutegica dos sentidos vecirc-se

necessariamente determinada a colocar entre sentido e o natildeo-senso um tipo

original de relaccedilatildeo intriacutenseca um modo de co-presenccedila [] (Idem p 71)

Muitos foram os autores que esbarraram neste problema ou seja o

de determinar um novo e original tipo de relaccedilatildeo que permitisse

diferenciar de uma vez por todas os problemas de significaccedilatildeo ou

relacionados diretamente ao verdadeiro e falso dos de sentido e que ao

menos em termo de designaccedilatildeo adotaram ao menos a postura de aceitar

sua complexidade e dificuldade nem perto da radicalidade de um Deleuze

evidentemente foi esse o caso de Bertrand Russell em Significaccedilatildeo e

verdade7 em que afrontou dentre outras a noccedilatildeo de Carnap de sentido-

significado seja como for a descoberta da necessidade de um novo e

original tipo de relaccedilatildeo mais proacutepria ao sentido uma outra dimensatildeo ou

relaccedilatildeo jaacute havia sido descoberta haacute muito tempo ou como lembrava

Deleuze

O sentido eacute a quarta dimensatildeo da proposiccedilatildeo [aleacutem de designaccedilatildeo

manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo] Os estoicos a descobriram com o acontecimento

o sentido eacute o expresso da proposiccedilatildeo este incorporal na superfiacutecie das coisas

entidade complexa irredutiacutevel [que natildeo pode ser simplificada separada do

natildeo-senso] acontecimento puro (eacuteveacutenement pur) que insiste ou subsiste na

proposiccedilatildeo (Idem p 20)

7 Cf tambeacutem DELEUZE 2003 [Loacutegica do sentido] p 18-9

William de Siqueira Piauiacute | 211

E tal descoberta se repetiu na histoacuteria no medievo pelos

nominalistas da escola de Ockham Gregoacuterio de Rimini (1300-1358) e

Nicolas de Autrecourt (1299-1369) e depois pela loacutegica dos objetos

inexistentes de Alexius Meinong (1853-1920) que foi duramente atacada

pelo mesmo Russell E tal dimensatildeo teria sido chamada pelo fenomenoacutelogo

Edmund Husserl (1859-1938) de ldquoexpressatildeordquo quanto a quem e ao que

Deleuze afirmava ldquoHusserl natildeo menos que Meinong reencontra as fontes

vivas de uma inspiraccedilatildeo estoicardquo (Idem p 21) Ateacute certo ponto afinado com

aquela boa nova aquela inspiraccedilatildeo contudo semelhantemente a

Nietzsche Husserl tambeacutem teria sido tragado pelas profundezas neste

caso natildeo soacute por natildeo ter compreendido os atributos como verbos-

acontecimentos e sim como predicados-conceitos (Idem p 100) mas por

ter pecado em sua interpretaccedilatildeo contra uma filosofia propriamente da

expressatildeo supostamente defensora das ldquosingularidades nocircmades

impessoais e preacute-individuaisrdquo (Idem p 113) daiacute que em pleno acordo com

aquela tarefa de uma loacutegica do sentido Deleuze afirmasse

[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida

em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e

sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de

Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como

veremos uma mudanccedila muito importante [] A ideia de singularidades

logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-

individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste

domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)

Como era de se esperar dado a menccedilatildeo ao conceito de mocircnada para

fazer avanccedilar a determinaccedilatildeo daquele domiacutenio e constituir uma nova

noccedilatildeo de tal campo Deleuze trataraacute em seguida na 16ordf seacuterie (a da gecircnese

estaacutetica ontoloacutegica) da Loacutegica do sentido da filosofia de Leibniz Com o

que dissemos ateacute aqui fica evidenciado o quatildeo central seraacute a reavaliaccedilatildeo

da filosofia leibniziana especialmente de seu conceito de mocircnada

individual tendo vista que seraacute justamente ele que permitiraacute a base da

212 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

hipoacutetese ou seja a estruturaccedilatildeo da ldquoideia de singularidades logo de anti-

generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-individuaisrdquo daquelas

ldquosingularidades nocircmades impessoais e preacute-individuaisrdquo isto eacute daquilo

que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do sentido de qualquer

modo a conclusatildeo de tal seacuterie seraacute

Na obra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduo a mocircnada que descobre

o sentido e jaacute presente o natildeo-senso remontando agrave superfiacutecie a partir de um

mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que se envolve nela e lhe impotildee a

dura lei das misturas [jaacute] Silvia e Bruno seriam antes como as pessoas lsquovagasrsquo

que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo

comum a vaacuterios mundos mundo dos homens e mundo das fadas (Idem p

121)

O que novamente atesta o papel central que o conceito leibiziano de

mocircnada desempenha para toda a Loacutegica do sentido inclusive pela

apropriaccedilatildeo que ela faz da obra de Carroll ou seja o conteuacutedo da 16ordf seacuterie

deveraacute servir para voltar a compreender parte daquela boa nova agora

associada mais propriamente agraves obras Aventuras de Alice no paiacutes das

maravilhes Atraveacutes do espelho e o que Alice viu laacute e As aventuras de

Silvia e Bruno de Lewis Carroll que junto com a teoria dos incorporais

dos Estoicos satildeo os grandes temas de a Loacutegica do sentido Assim o que

trataremos a seguir eacute da reconstituiccedilatildeo deleuzeana do conceito de mocircnada

individual

II Parte ndash Interpretaccedilatildeo Deleuziana da Filosofia Leibniziana uma

Ficccedilatildeo Falsa

Como noacutes indicamos eacute jaacute a partir de 1968 que o filoacutesofo francecircs Gilles

Deleuze demonstra seu apreccedilo pela filosofia leibniziana como fica

evidente em alguns momentos da obra Diferenccedila e repeticcedilatildeo mas na

obra que escreve um ano depois Loacutegica do sentido tal seraacute sua

importacircncia que ela se tornaraacute o tema principal de toda uma seacuterie a 16ordf

seacuterie justamente um dos momentos mais cruciais de seu romance ou

William de Siqueira Piauiacute | 213

histoacuteria embrulhada momento em que veremos Deleuze caracterizar as

Alices e Silvia e Bruno de Carroll a partir do suposto8 conceito leibniziano

de pessoa vaga e do de mocircnada individual conceitos que ofereceriam as

bases para pensar aquilo que ele chamou de gecircnese estaacutetica ontoloacutegica de

um certo campo transcendental Satildeo certamente as consideraccedilotildees feitas

aqui que forneceratildeo a direccedilatildeo principal das leituras que Deleuze faraacute de

Leibniz nos trecircs cursos que deu na deacutecada de oitenta (1980 86 e 87) aulas

que receberatildeo o tiacutetulo de Exasperaccedilatildeo da filosofia e que com algumas

poucas mudanccedilas substanciais teratildeo como resultado a obra A dobra

Leibniz e o barroco publicada em 1988 Assim o que pretendemos eacute

problematizar a compreensatildeo dos conceitos leibnizianos que serviriam

para caracterizar os personagens de Carroll tentando apontar alguns dos

problemas da leitura de Deleuze especialmente se levarmos em conta

dentre outros textos a carta que Leibniz escreve a Molanus em 1679 bem

antes do Discurso de metafiacutesica este nosso principal ponto de partida e

o que faz a base do capitulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou diversidaderdquo

dos Novos ensaios (II XXVII) posterior ao Discurso e anterior tanto agrave

Teodiceia quanto agrave Monadologia Com isso esperamos lanccedilar luz sobre

a noccedilatildeo de fato leibniziana de sujeito ou indiviacuteduo e as bases do

deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo deleuziana Vejamos entatildeo como a

filosofia de Leibniz aparece na obra de 1969

Como jaacute o dissemos em Loacutegica do sentido tudo parece comeccedilar

com a criacutetica a Husserl em sua 14ordf seacuterie Deleuze considera que

[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida

em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e

sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de

Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como

veremos uma mudanccedila muito importante9 [] A ideia de singularidades

8 Dizemos ldquosupostordquo tendo em vista que em nossa opiniatildeo Deleuze forccedila demais a oposiccedilatildeo entre o que Leibniz afirmou na correspondecircncia que travou com Arnauld especialmente a nota agrave carta de 13 de maio de 1686 e teria querido dizer nos paraacutegrafos finais da Teodiceia especialmente o sect414 Cf DELEUZE 2003 p 118 [nota 4]

9 A expressatildeo ldquoHaacute contudo como veremos uma mudanccedila muito importanterdquo parece apontar para uma interpretaccedilatildeo diferente da de Husserl e que seraacute parte do motivo de retornar agrave filosofia leibniziana nas seacuteries seguintes diferenccedila

214 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-

individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste

domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)

Segundo Deleuze Husserl teria construiacutedo um campo transcendental

sem atentar para as condiccedilotildees impostas por Sartre em seu famoso artigo de

1937 intitulado ldquoA transcendecircncia do Egordquo e natildeo teria vislumbrado a ideia

de ldquosingularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo que jaacute estariam

suficientemente desenvolvidas na filosofia de Leibniz10 em uma palavra

Husserl teria se mantido kantiano demais11 talvez inclusive por natildeo ter

compreendido uma suposta precedecircncia do mundo com relaccedilatildeo agrave mocircnada

expressiva e a arbitrariedade da aplicaccedilatildeo irrestrita do princiacutepio de inclusatildeo

do predicado no sujeito dito de outra forma por Husserl natildeo ter visto em

Leibniz uma loacutegica do acontecimento ou topologia de superfiacutecie que

permitiria a ldquodeterminaccedilatildeo daquele domiacutenio e de sua potecircncia geneacuteticardquo e

ainda de outra forma por natildeo ter visto nos textos de Leibniz os elementos

para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese segundo a qual as ldquosingularidadesrdquo ou ldquoanti-

generalidadesrdquo devem ser consideradas ldquoimpessoais e preacute-individuaisrdquo

Como era de se esperar dada a associaccedilatildeo ao conceito de mocircnada Deleuze

trataraacute na 16ordf seacuterie (ldquoDa gecircnese estaacutetica ontoloacutegicardquo) da Loacutegica do sentido

da filosofia de Leibniz e como esta permitiria compreender a constituiccedilatildeo de

tal campo e tal ideia e que se tornaraacute a base de sua argumentaccedilatildeo em A

dobra ndash o que fica evidente especialmente em seu capiacutetulo 5 trata-se aqui

de levar adiante aquilo que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do

sentido ou do acontecimento12

Entatildeo nos voltando para a conclusatildeo da 16ordf seacuterie e parte da sua

hipoacutetese geral A primeira pergunta que devemos fazer eacute Qual eacute o

que causou muita estranheza a muitos interpretes de Leibniz Gonzalo deixa claro em seu artigo jaacute mencionado os termos em que se deu a polecircmica entre Fremont e Deleuze

10 Certamente o que permitiraacute a Deleuze terminar A dobra dizendo que permanecemos leibnizianos (DELEUZE 1991 p 208) posicionamento filosoacutefico com o qual esse sim Alain Badiou se potildee em desacordo ao defender a ldquooutra escolha ontoloacutegicardquo (BADIOU 2015 p 39-44)

11 DELEUZE 2003 p 101

12 Idem todo o final da 14ordf seacuterie

William de Siqueira Piauiacute | 215

imperativo do uso das obras de Carroll que marcaria as nuacutepcias da

linguagem e do inconsciente A resposta eacute a contestaccedilatildeo da identidade

pessoal (Idem p 3) Pressuposto que permitia a circulaccedilatildeo da ldquocasa vaziardquo

e o falar das ldquosingularidades pre-individuais e natildeo pessoaisrdquo ldquoque natildeo satildeo

nem da ordem do geral nem da ordem do individual nem pessoais nem

universaisrdquo ldquoem sumardquo o que possibilitaria a produccedilatildeo do sentido Se

deixar arrastar pelos verbos de puro devir natildeo deixar que a noccedilatildeo de

atributo verbal seja confundida e assimilada pela de predicado da loacutegica

formal (claacutessica-aristoteacutelica) dai que evidente e novamente se queremos

tomaacute-lo como ponto de partida tenha de ser arbitraacuterio na filosofia de

Leibniz a inerecircncia do predicado no sujeito (Idem p 115) o que deve levar

agravequeles conceitos de pessoa ou indiviacuteduo que permitiriam comparar Alice

com uma mocircnada e Silvia e Bruno com pessoas vagas Mas seraacute mesmo

arbitraacuterio

Assim e para o que nos interessa em Loacutegica do sentido os pontos

principais e o centro da interpretaccedilatildeo de Deleuze da filosofia leibniziana

estariam na seguinte afirmaccedilatildeo

Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada

mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente

compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia

dos predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo

expresso natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas

mocircnadas como a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos

verdade entretanto que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas (Dieu

creacutee le monde plutocirct que les monades)13 e [tambeacutem eacute verdade] que o expresso

13 Outra traduccedilatildeo possiacutevel dessa afirmaccedilatildeo e que afasta o problema da anterioridade temporal seria ldquoDeus cria o mundo e natildeo (plutocirct que) as mocircnadasrdquo A expressatildeo francesa plutocirct nos arrastaria inclusive para o que parece ser o contraacuterio da anterior ldquoDeus cria o mundo sobretudo (plutocirct) as mocircnadasrdquo Nossa interpretaccedilatildeo vai se basear na afirmaccedilatildeo e nota correspondente o que tambeacutem consideramos ser uma intensificaccedilatildeo feitas em A dobra Leibniz e o barroco ldquoEstas natildeo satildeo as generalidades mas acontecimentos gotas de acontecimento Nem por isso deixam [os acontecimentos as gotas de acontecimento] de ser preacute-individuais uma vez que o mundo eacute virtualmente primeiro em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que o expressam (Deus criou natildeo Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou) O indiviacuteduo nesse sentido eacute atualizaccedilatildeo de singularidades preacute-individuais [Elles nrsquoen sont pas moins preacute-individuelles dans la mesure ougrave le monde est virtuellement premier par rapport aux individus qui lrsquoexpriment (Dieu a creacuteeacute non pas Adam peacutecheur mais le monde ougrave Adam a peacutecheacute) Lrsquoindividu en ce sens est lrsquoactualisation de singulariteacutes preacute-individuelles et nrsquoimplique aucune speacutecification preacutealable Il faut mecircme dire le contraire et constater que la speacutecification suppose elle-mecircme lrsquoindividuation]rdquo (DELEUZE 1991 p 101) Podemos mesmo falar em

216 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

natildeo se confunde com sua expressatildeo mas [partindo de um ponto de vista

estoico] insiste ou subsiste () Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos

predicados na filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na

mocircnada expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo

expresso e esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras

singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que

pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a]

uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdade Leibniz foi muito longe nesta

primeira etapa da gecircnese [ontoloacutegica de um certo campo transcendental

impessoal e preacute-individual ou das singularidades entendidas como

verdadeiros acontecimentos transcendentais14] o indiviacuteduo constituiacutedo

como centro de envolvimento como envolvendo singularidades em um

mundo e sobre seu corpo (Idem p 114-5 grifo nosso)15

Como jaacute indicamos ao falar da associaccedilatildeo de Husserl com os achados

estoicos para aleacutem da noccedilatildeo de sujeito indiviacuteduo ou pessoa o outro tema

cariacutessimo agrave Loacutegica do sentido e que tambeacutem deve ter contribuiacutedo para a

escolha da filosofia leibniziana eacute o de ldquoexpressatildeordquo tema que leva agrave

pergunta Como as mocircnadas expressariam o mundo e qual a ordem de

precedecircncia ou preferecircncia seja com relaccedilatildeo a Deus ao mundo ou aos

corpos De qualquer modo com relaccedilatildeo agrave polecircmica entre ambos natildeo eacute

preciso muito para compreender a insistecircncia de Fremoacutent na reconstruccedilatildeo

anterioridade virtual do mundo em Leibniz Seria isso suficiente para aceitarmos o deslocamento proposto por Deleuze desde a Loacutegica do sentido

14 Cf a p 105 da mesma obra

15 ldquoSrsquoeffectuer crsquoest aussi ecirctre exprimeacute Leibniz soutient une thegravese ceacutelegravebre chaque monade individuelle exprime le monde Mais cette thegravese nrsquoest pas suffisamment comprise tant qursquoon lrsquointerpregravete comme signifiant lrsquoinheacuterence des predicats dans la monade expressive Car il est bien vrai que le monde exprimeacute nrsquoexiste pas hors des monades qui

lrsquoexpriment donc existe dans les monades comme la seacuterie des preacutedicats qui leur sont inheacuterents Il nrsquoest pas moins vrai cependant que Dieu creacutee le monde plutocirct que les monades et que lrsquoexprimeacute ne se confond pas avec son expression mais insiste ou subsiste [nota 1] [] Il est arbitraire de privileacutegier lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la philosophie de Leibniz Car lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la monade expressive suppose drsquoabord la compossibiliteacute du monde exprimeacute et celle-ci agrave son tour suppose la distribution de pures singulariteacutes drsquoapregraves des regravegles de convergence et de divergence qui appartiennent encore agrave une logique du sens et de lrsquoeacuteveacutenement non pas agrave une logique de la preacutedicacion et de la veacuteriteacute Leibniz a eacuteteacute tregraves loin dans cette premiegravere eacutetape de la genegravese lrsquoindividu constitueacute comme centre drsquoenveloppement comme enveloppant des singulariteacutes dans un monde et sur son corps et Adammiddotnon peacutecheur deacutecoule de lrsquoincompossibiliteacute des mondes ougrave Adam pegraveche et ne pegraveche pas Dans chaque monde les monades individuelles expriment toutes les singulariteacutes de ce monde - une infiniteacute - comme dans un murmure ou un eacutevanouissement mais chacune nrsquoenveloppe ou nrsquoexprime laquoclairementraquo qursquoun certain nombre de singulariteacutes celles au voisinage desquelles elle se constitue et qui se combinent avec son corpsrdquo (DELEUZE 1969 p 134-5) Ao que segue o comentaacuterio da nota 1 ldquoTema constante das cartas de Leibniz a Arnauld Deus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou (Theme constant des lettres de Leibniz agrave Arnauld Dieu a creacuteeacute non pas exactament Adam-pecheur mais le monde ouacute Adam peacutecheacute)rdquo

William de Siqueira Piauiacute | 217

dos conceitos leibnizianos de Deus e de indiviacuteduo fica evidente com a

citaccedilatildeo feita acima que esses deveriam fazer a base da argumentaccedilatildeo do

proacuteprio Deleuze que muitas vezes prefere recorrer aos textos esparsos e

de difiacutecil interpretaccedilatildeo em que Leibniz fala de compossibilidade ou

incompossibilidade da universalidade ou generalidade e singularidade ou

especificaccedilatildeo das regras de convergecircncia ou divergecircncia e mesmo do

caacutelculo diferencial e integral mas natildeo tanto aos em que o alematildeo fala

propriamente dos conceitos de substacircncia particular ou mocircnada

individual Todavia natildeo eacute nossa intenccedilatildeo remontar tal embate Assim eacute

nossa pretensatildeo problematizar ainda uma vez a partir dos textos onde

Leibniz de fato trata deles inclusive os associando os assuntos ldquoinerecircncia

do predicado no sujeitordquo ldquoDeusrdquo ldquomocircnada individualrdquo ou ldquosubstacircncia

particularrdquo e ldquoacontecimentordquo tentando remontar o que do nosso ponto

de vista parece ser um dos principais problemas da leitura deleuziana

certa cadeia argumentativa e associaccedilatildeo inevitaacutevel de temas presentes nos

textos leibnizianos

Dito isso em primeiro lugar mesmo que acreditemos que a leitura

que faz Russell da filosofia de Leibniz eacute purista demais com relaccedilatildeo agrave sua

vinculaccedilatildeo agrave loacutegica aristoteacutelica se eacute arbitraacuterio a inerecircncia do predicado no

sujeito com relaccedilatildeo agrave mocircnada individual expressiva ndash que devemos fazer

preceder da noccedilatildeo de uma substacircncia individual16 ndash Deleuze deveria ter se

explicado melhor quanto agrave afirmaccedilatildeo feita no sect8 do Discurso de

metafiacutesica que trata justamente do conceito de Deus e de ldquoem que

consiste uma substacircncia individualrdquo a saber

Ora eacute bem constante que toda predicaccedilatildeo tem algum fundamento verdadeiro

na natureza da coisa e quando uma proposiccedilatildeo natildeo eacute idecircntica isto eacute quando

o predicado natildeo estaacute compreendido expressamente no sujeito eacute preciso que

esteja compreendido nele virtualmente A isto chamam os filoacutesofos in-esse

16 Com relaccedilatildeo ao modo como compreendemos a associaccedilatildeo do conceito de mocircnada humana com o de substacircncia individual indicamos nossos artigos ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo e ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e Infinito em Leibnizrdquo seja como for eacute no sentido do conceito de substacircncia individual ou noccedilatildeo de indiviacuteduo singular ou noccedilatildeo individual completa ou mesmo de pessoa possiacutevel que Deleuze entende o conceito de mocircnada individual ou humana

218 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

dizendo estar o predicado no sujeito Eacute preciso pois o termo do sujeito

conter sempre o do predicado de tal forma que quem entender

perfeitamente a noccedilatildeo do sujeito julgue tambeacutem que o predicado lhe

pertencerdquo (LEIBNIZ 1983 p 124 grifo nosso)

Afirmaccedilatildeo que fundamentaraacute as seguintes consequecircncias

Isto posto podemos dizer que a natureza de uma substacircncia individual ou

de um ser complexo consiste em ter uma noccedilatildeo tatildeo perfeita que seja

suficiente para deduzir de si todos os predicados do sujeito a que se

atribui estaacute noccedilatildeo [] [Daiacute que] Deus vendo a noccedilatildeo individual ou

ecceidade de Alexandre nela vecirc ao mesmo tempo o fundamento e a razatildeo

de todos os predicados que verdadeiramente dele se podem afirmar []

(Idem grifo nosso)

Apesar do deslocamento quanto agrave noccedilatildeo de criaccedilatildeo antes ou depois

de preferecircncia ou natildeo com relaccedilatildeo ao mundo ateacute aqui nada aponta para

uma restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse a natildeo ser a menccedilatildeo ao virtual

(virtuellement) ou seja nada aponta para a restriccedilatildeo do princiacutepio de

inerecircncia do predicado no sujeito especialmente quando se trata de pensar

a natureza de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo individual

completa ou perfeita noccedilatildeo individual ou ecceidade bem como nada

parece apontar para algo que permitisse concluir que ldquoDeus criou natildeo

exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo talvez no

sentido que a qualidade o adjetivo ldquopecadorrdquo o predicado natildeo seria

previa e propriamente ldquoinerenterdquo ao sujeito Adatildeo Restaria pois

compreender o que seria essa visatildeo sem precedecircncia ou preferecircncias e ldquoao

mesmo tempordquo da noccedilatildeo individual ou ecceidade O que quer dizer este

ldquoao mesmo tempordquo esta simultaneidade e como compreender este

fundamento e razatildeo de todos os predicados que verdadeiramente se

podem afirmar de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo

individual completa ou perfeita de um ser complexo (talvez o misteacuterio

mencionado em A dobra) Mas natildeo resta duacutevida que a verdade entra em

jogo aqui jaacute que se trata tambeacutem do fundamento de ldquotoda predicaccedilatildeordquo

por isso mesmo podemos colocar o problema no mesmo registro da

William de Siqueira Piauiacute | 219

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld17 quando o alematildeo afirma jaacute

na carta de 14 de julho de 1686 que semper enim notio praedicati inest

subjecto in propositione vera18 Nesse sentido a questatildeo seria perguntar se

o conhecimento que Deus tem de uma substacircncia individual noccedilatildeo

individual completa ou perfeita um noccedilatildeo individual ou ecceidade eacute certo

ndash infaliacutevel ndash a ponto de dizermos que as proposiccedilotildees formadas com relaccedilatildeo

a elas tecircm de ser ditas verdadeiras ou falsas mas claro que para Leibniz o

conhecimento de Deus eacute infaliacutevel e mesmo que em termos de predicaccedilatildeo

tiveacutessemos que levar a anaacutelise de tais noccedilotildees ao infinito temos de lembrar

que aquele conhecimento tambeacutem compreende o infinito Restaria ainda

perguntar se tal conhecimento se prenderia a uma caracteriacutestica

semelhante a um atributo verbal no sentido deleuzeano ou a um predicado

no sentido claacutessico De qualquer modo no sect31 do Discurso de metafiacutesica

que trata justamente da ldquorazatildeo que fez Deus chamar agrave existecircncia tal pessoa

possiacutevelrdquo tal substacircncia individual noccedilatildeo individual completa ou perfeita

noccedilatildeo individual ou ecceidade possiacuteveis e dos acontecimentos relacionados

a tais pessoas possiacuteveis ao menos parte da questatildeo eacute resolvida com a

seguinte consequecircncia geral

[] creio mais exato e seguro dizer segundo nossos princiacutepios e como jaacute notei

ser forccediloso haver entre os entes possiacuteveis a pessoa de Pedro ou Joatildeo cuja

noccedilatildeo ou ideia conteacutem toda esta seacuterie de graccedilas ordinaacuterias e todo o resto

destes acontecimentos (eacuteveacutenements) com suas circunstacircncias e que entre

uma infinidade de outras pessoas igualmente possiacuteveis agradou a Deus

escolhecirc-la para existir atualmente (actuellement) (Idem p 147 grifo nosso)19

17 Insistindo pois naquele lugar onde esse tema teria sido tatildeo debatido cf DELEUZE 2003 [nota 1] p 114

18 ldquoDe fato [ou manifestamente] na proposiccedilatildeo verdadeira sempre a noccedilatildeo do predicado lsquoinerersquo ao sujeitordquo

19 De pleno acordo com o que Leibniz defende na nota agrave carta de Arnauld com relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma noccedilatildeo vaga de sujeito ldquo[primeira resposta] que minha suposiccedilatildeo natildeo eacute simplesmente que Deus tenha querido criar um Adatildeo cuja noccedilatildeo seja vaga e incompleta mas que Deus quis criar um tal Adatildeo suficientemente determinado para um indiviacuteduo Esta noccedilatildeo individual completa encerra [ou envolve] em minha opiniatildeo relaccedilotildees com toda a serie das coisas o qual deve parecer tanto mais razoaacutevel quanto que o Sr Arnauld me concede aqui o enlace que haacute entre as resoluccedilotildees de Deus a saber que Deus ao resolver-se a criar determinado Adatildeo tem em conta todas as resoluccedilotildees que toma sobre toda a seria do universo agrave maneira de uma pessoa prudente que ao tomar uma resoluccedilatildeo com respeito a um propoacutesito tem em vista em sua totalidade dito propoacutesito jaacute que pode decidir-se melhor quando se resolve sobre todas as partes (que ma supposition nrsquoest paacutes simplement que Dieu a voulu creacuteer un Adam dont la notion soit vague et incomplegravete mais que Dieu a voulu creacuteer un tal Adam assez deacutetermineacute agrave un individu Et cette notion individuelle complete selon moi enveloppe decircs rapport agrave toute la suite des choses ce qui doit paraicirctre

220 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Fica evidente inclusive que mesmo quanto aos acontecimentos

(eacuteveacutenements) todos jaacute com suas circunstacircncias devem ser considerados

incluiacutedos nas ideias das pessoas possiacuteveis ou nas noccedilotildees completas das

pessoas possiacuteveis ou seja nas noccedilotildees das substacircncias individuais ou

particulares noccedilotildees individuais ou ecceidades possiacuteveis Em que sentido

portanto interpretar a afirmaccedilatildeo ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo

pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo Talvez ou no sentido que haacute

uma ruptura no desenvolvimento da filosofia de Leibniz entre o conceito

de substacircncia individual e mocircnada como querem muitos comentadores

ou concedendo que em Leibniz haveria a afirmaccedilatildeo do conceito de pessoa

vaga o que natildeo vemos como corroborar tendo em vista o que eacute afirmado

na nota agrave carta que mencionamos em nota mais acima mas poderia ser

um problema com relaccedilatildeo agrave hipoacutetese interpretativa que o sect414 da

Teodiceia exige uma ldquounidade objetividade muito especialrdquo para ser

compreendido e neste caso voltariacuteamos a uma saiacuteda semelhante agrave

daqueles comentadores Mas se nos mantemos na eacutepoca do Discurso

certamente podemos dizer que aquela consequecircncia seraacute seguida da

explicaccedilatildeo que parte dos princiacutepios fundamentais que guiam a

argumentaccedilatildeo de Leibniz satildeo 1) o da perfeiccedilatildeo ou completude das

operaccedilotildees de Deus e 2) o da noccedilatildeo individual completa ou perfeita (uma

noccedilatildeo natildeo vaga e natildeo incompleta) que encerra in-esse todos os

acontecimentos com todas as suas circunstacircncias Ateacute este momento o do

Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld

portanto nada parece apontar para o acontecimento ou gota de

acontecimento no sentido deleuziano mesmo que o revolucionaacuterio artigo

drsquoautant plus raisonnable que M Arnauld mrsquoaccorde ici la liaison qursquoil y a entre les reacutesolutions de Dieu savoir que Dieu prenant la reacutesolutions de creacuteer un tel Adam a eacutegard agrave toutes lecircs reacutesolutions qursquoil prend touchand toute la suiacutete de lrsquouniverse agrave peu pregraves comme une persone sage qui prend une reacutesolutions agrave lrsquoegard drsquoune partie de son dessein lrsquoa tout entier em vue et se reacutesoudra drsquoautant mieux si elle pourra se reacutesoudre drsquoautant mieux si elle pourrra se resoudre sur toutes lecircs parties agrave la fois)rdquo (LEIBNIZ 1900 p 182) Cf tambeacutem DELEUZE 2003 p 118 [e tambeacutem a nota 4] Vale lembrar que a questatildeo da escolha entre uma infinidade de pessoas possiacuteveis leva o problema do conhecimento do infinito natildeo mais para uma anaacutelise infinita de uma noccedilatildeo e sim para a de uma infinidade de noccedilotildees uma multidatildeo ou conjunto infinitos nesse sentido agrave de compossibilidade e incompossibilidade quanto ao que pensamos sobre a ligaccedilatildeo desse detalhe com o labirinto da liberdade gostariacuteamos de indicar novamente nosso artigo ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibnizrdquo

William de Siqueira Piauiacute | 221

sobre ldquoUm novo meacutetodo para os maacuteximos e miacutenimos assim como para as

tangentes que natildeo para ante quantidades fracionaacuterias ou irracionais e eacute

um gecircnero singular de caacutelculo para estes problemasrdquo jaacute esteja pronto

comprovadamente desde 1684 Na verdade cremos que a melhor

estrateacutegia para pensar uma topologia da superfiacutecie em Leibniz a partir de

1684 seria reconstituir sua noccedilatildeo de funccedilatildeo e se voltar para a sua

dinacircmica20 mas se distanciando de sua noccedilatildeo de mocircnada humana e

afirmando inclusive diferenccedilas importantes entre o conceito de substacircncia

individual do Discurso e o de mocircnada na Monadologia

De qualquer modo e em sentido contraacuterio agora a noccedilatildeo de pessoa

defendida no Discurso parece ser um desenvolvimento da de pessoa

espiritual que Leibniz defendia jaacute na carta a Molanus de 167921 justamente

contra a moral Estoica ndash o que deveria ter chamado a atenccedilatildeo do jovem

Deleuze ndash e a de Descartes e natildeo eacute diferente da utilizada na

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld portanto ambas as seacuteries de

cartas estariam em pleno acordo com o Discurso Mais que isso do nosso

ponto de vista trava-se desde a carta a Molanus daquilo que permitiraacute

compreender a peculiaridade e novidade do fatum christianum do iniacutecio

da Teodiceia novamente contra o fatum stoiumlcum vale lembrar Aleacutem

disso a noccedilatildeo individual completa ou perfeita eacute reafirmada nos Novos

ensaios justamente no capiacutetulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou

diversidaderdquo ndash capiacutetulo curiosamente natildeo analisado por Deleuze seja em

Loacutegica do sentido seja em A dobra ndash onde jaacute aparece o conceito de

mocircnada que a partir dali assimilaraacute grande parte das caracteriacutesticas do

conceito de noccedilatildeo individual completa ou perfeita capiacutetulo que deveria ter

sido interpretado por Deleuze ou ao menos mencionado dado que tanto

em A dobra e mais ainda em Loacutegica do sentido se tratava do problema

da identidade pessoal Assim ateacute por conta da boa nova que representaria

a obra carrolliana quanto agrave dissoluccedilatildeo da identidade pessoal nos parece

20 Quanto ao que pensamos sobre o conceito leibniziano de funccedilatildeo associado ao de continuidade e histoacuteria gostariacuteamos de indicar nosso artigo ldquoLeibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologiardquo

21 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartesrdquo

222 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que teria faltado um agrupamento mais cuidadoso dos textos a partir do

tema geral da noccedilatildeo individual completa ou perfeita De qualquer modo

ateacute esse momento o do Discurso ou em torno dos Novos ensaios e com

relaccedilatildeo seja ao conceito de mocircnada humana individual seja o de noccedilatildeo

individual completa natildeo vemos a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos alcanccedilados com o

artigo de 1684 ou que nos obrigue a leitura do texto ldquoSobre o meacutetodo da

universalidaderdquo de conforme Couturat o mais tardar 167422 o que parece

deixar sem fundamento o deslocamento exigido por Deleuze ao menos em

a Loacutegica do sentido A partir de quais textos que tratem propriamente do

problema do sujeito indiviacuteduo e mocircnada humana com as associaccedilotildees que

mencionamos acima fundamentariacuteamos aquela exigecircncia de recusarmos

o princiacutepio inesse e a de estarmos obrigados a apelar para as regras de

divergecircncia e convergecircncia ou para outro tipo de singularidade

Arriscariacuteamos dizer que por conta do todo da obra apenas os sect6 que

menciona a noccedilatildeo de funccedilatildeo e sect17 a sect22 que trabalham o conceito de

forccedila e causalidade final do Discurso poderiam fornecer algum

fundamento para tal deslocamento mas todo o resto da obra seria prova

suficiente que a adoccedilatildeo de tais regras em nada invalida o princiacutepio inesse

principalmente se as questotildees tiverem a ver com a tentativa de pensar a

noccedilatildeo completa de indiviacuteduo ou aquele conceito de mocircnada humana

defendido nos Novos ensaios e mesmo os conceitos de acontecimento e

suas circunstacircncias ou o conteuacutedo do intelecto divino23

Dito assim voltando ainda uma vez ao Discurso de metafiacutesica o

sect14 que trata das perspectivas do universo que Deus decide criar e que

corresponderiam ao que acontece agraves substacircncias individuais ndash talvez

daquilo que sem nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de Leibniz permitiria falar

da aplicaccedilatildeo das regras de convergecircncia e divergecircncia ou ao novo meacutetodo

para os maacuteximos e miacutenimos ndash natildeo deixa duacutevidas quanto agrave noccedilatildeo de

22 Anterior agrave carta a Molanus portanto

23 Vale lembrar o tiacutetulo que recebeu o sect6 do Discurso ldquoDeus nada faz fora de ordem e nem eacute possiacutevel forjar acontecimentos (eacuteveacutenements) que natildeo sejam regularesrdquo Neste caso os outros paraacutegrafos que mencionamos encaminham a pergunta que talvez impediria aquele deslocamento Com relaccedilatildeo ao conteuacutedo do intelecto divino o que faz o fundamento ou substacircncia da continuidade da mudanccedila Problema que no nosso entender eacute o principal que aparece jaacute desde o iniacutecio da Monadologia cf sect8 e que exige a noccedilatildeo de mocircnada individual fechada

William de Siqueira Piauiacute | 223

acontecimento e emprego irrestrito do princiacutepio da inclusatildeo do predicado

no sujeito com relaccedilatildeo agraves ideias de pessoas ou noccedilotildees completas ali

Leibniz afirmava

De certo modo e no bom sentido embora afastado do usual poder-se-aacute dizer

que nunca uma substacircncia particular atua (agit) sobre uma outra substacircncia

particular e tampouco padece se os eventos24 de cada um satildeo considerados

apenas como consequecircncia de sua simples ideia ou noccedilatildeo completa pois

esta ideia [ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular] encerra jaacute

todos os predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime

(exprime) todo o universo Com efeito nada pode acontecer-nos (arriver)

aleacutem de pensamentos e percepccedilotildees e todos os nossos futuros pensamentos e

percepccedilotildees natildeo passam de consequecircncias embora contingentes

(contingentes) dos nossos pensamentos e percepccedilotildees anteriores de tal modo

que se eu fosse capaz de considerar distintamente tudo quanto nesta hora

me acontece ou aparece nessa percepccedilatildeo poderia ver tudo quanto me

aconteceraacute e apareceraacute sempre o que natildeo falharia e aconteceria da mesma

maneira embora tudo quanto existisse fora de mim fosse destruiacutedo desde que

restasse Deus e eu (LEIBNIZ 1983 p 129-30)

A ideia ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular encerra jaacute

todos os predicados ou acontecimentos e exprime todo o universo E

exprime jaacute enquanto ideia ou noccedilatildeo completa todo o universo Claro que

um grande problema eacute compreender aquela contingecircncia mas natildeo no

esqueccedilamos da intensificaccedilatildeo que vem a seguir ldquodesde que restasse

apenas eu e Deusrdquo Apesar da necessidade de problematizar quatildeo longe

vai a impossibilidade de distinccedilatildeo completa dos nossos pensamentos e

percepccedilotildees certamente associada agrave necessidade de uma anaacutelise infinita

para a compreensatildeo total ou perfeita de uma noccedilatildeo individual o que pode

apontar para aquela contingecircncia em nenhum momento da Carta a

Molanus do Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz

e de Anauld vimos Leibniz afirmar a precedecircncia ou preferecircncia do

mundo e mesmo dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de pessoas

24 Aqui podemos ter um problema de traduccedilatildeo de fato soacute mais agrave frente surgiraacute no original francecircs a palavra lsquoeventorsquo ou lsquoacontecimentorsquo ou seja eacuteveacutenement

224 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

especialmente no sentido que haveria singularidades que precederiam as

individualidades o que justificaria a necessidade de recorrermos agraves suas

noccedilotildees de compossibilidade e incompossibilidade ou agraves regras de

convergecircncia e de divergecircncia Parece-nos que a afirmaccedilatildeo ldquoesta ideiardquo ou

noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular ldquoencerra jaacute todos os

predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime

(exprime) todo o universordquo vai justamente no sentido contraacuterio ao

pretendido por Deleuze De qualquer modo o problema da significaccedilatildeo do

conceito de expressatildeo seu campo semacircntico parece nos obrigar a passar

para a regiatildeo dos possiacuteveis e vai mais no sentido das noccedilotildees completas

para o universo do que o contraacuterio Assim eacute preciso atentar para o fato

que ao menos aqui ldquopredicadordquo ldquoacontecimentordquo e ldquoexpressatildeordquo satildeo

colocados no mesmo registro daquelas ideias e nada aponta para uma

restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse ou para a anterioridade ou preferecircncia do

mundo com relaccedilatildeo agraves ideias ou noccedilotildees completas de substacircncias

particulares ou mocircnadas individuais De qualquer modo e essa eacute nossa

opiniatildeo os paraacutegrafos finais da Teodiceia e a uacuteltima carta que Leibniz

escreveu a Samuel Clarke parecem ser decisivos Primeiro

Vocecirc vecirc [afirma a deusa Palas Atena] que meu pai [Juacutepiter] natildeo fez Sextus

mau ele [Sextus] o foi [mau] desde toda a eternidade ele o foi sempre

livremente [meu pai] soacute fez lhe consentir a existecircncia que sua sabedoria

natildeo podia recusar ao mundo em que ele estaacute compreendido ele o fez

passar da regiatildeo dos possiacuteveis para a dos seres atuais (LEIBNIZ 2013

[Teodiceia] sect416 p 415 grifo nosso)

Aqui eacute afirmada a necessidade de uma determinada pessoa possiacutevel

dever estar compreendida em um determinado mundo possiacutevel25 que

Deus ou na histoacuteria que termina a Teodiceia Juacutepiter faz ou consente vir

agrave existecircncia suposto ser o melhor dos mundos possiacuteveis ldquopassar da regiatildeo

dos possiacuteveis para a dos seres atuaisrdquo e certamente podiacuteamos pensar tal

25 A partir da perfeiccedilatildeo das operaccedilotildees do intelecto divino Leibniz natildeo soacute natildeo defende que haacute pessoas possiacuteveis vagas mas tambeacutem natildeo haacute propriamente falando mundos possiacuteveis vagos

William de Siqueira Piauiacute | 225

necessidade nos valendo da noccedilatildeo de compossibilidade e

incompossibilidade mas natildeo nos adiantemos Eacute preciso voltar ao que diz

o texto e lembrar que Juacutepiter apenas consentiu a existecircncia a Sextus

existecircncia que eacute precedida portanto de uma noccedilatildeo completa individual

que faz parte do conteuacutedo do intelecto divino e que se relaciona com as

perfeiccedilotildees de suas operaccedilotildees daiacute sua eternidade perfeiccedilatildeo ou completude

(em oposiccedilatildeo a vago) e precedecircncia com relaccedilatildeo agrave existecircncia isto eacute agrave

posterior atualizaccedilatildeo Em que sentido portanto interpretar a afirmaccedilatildeo

ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo

pecourdquo Contra parte da interpretaccedilatildeo de Deleuze pois Apolo-Juacutepiter natildeo

criou Sextus mau ou fez a inclusatildeo de tal predicado ou atributo verbal a

partir de uma seacuterie universo ou mundo determinado de singularidades

adjacentes preacute-individuais natildeo eacute nesse sentido que o mundo precede ou

tem preferecircncia com relaccedilatildeo a Sextus De todo modo e no mesmo sentido

das trecircs obras que mencionamos mais acima nem o Deus cristatildeo criou

Adatildeo pecador nem Juacutepiter criou o Sextus violador (de Lucreacutecia)26 eles o

foram de modo completo e perfeito desde sempre e seus acontecimentos

com todas as circunstacircncia estavam registrados no livro dos destinos ou

das verdades eternas no palaacutecio dos destinos ou na regiatildeo dos possiacuteveis

no mesmo ldquolugarrdquo em que Leibniz diz muitas vezes deveriacuteamos ldquobuscarrdquo

os mundos possiacuteveis as seacuteries que corresponderiam aos universos etc

Deus ou Juacutepiter os teriam visto como ideias ou noccedilotildees completas e sem

precedecircncia de tempo ou preferecircncia moral ao mesmo tempo e antes do

decreto da criaccedilatildeo Justamente o que permite dizer do diabo que ldquoporque

estava escrito no livro das verdades eternas que conteacutem tambeacutem os

possiacuteveis antes de todo o decreto de Deus que essa criatura [o diabo] se

dirigiria livremente para o mal se ela fosse criadardquo (Idem p 329)27

26 A partir disso perguntariacuteamos O Deus leibniziano a partir de sua ciecircncia de simples inteligecircncia natildeo vecirc desde sempre na ideia da natureza das criaturas livres Adatildeo e Sextus que elas satildeo pecadoras e violadoras (ou preguiccedilosa) Se sim natildeo fica claro de fato o que faz a base da necessidade daquele deslocamento e termos de supor uma noccedilatildeo leibniziana de acontecimento a partir de singularidades adjacentes

27 Eis o motivo porque Derrida achou necessaacuterio criticar em ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo (Escritura e diferenccedila) de 1967 as noccedilotildees leibnizianas de livro e histoacuteria criticar a noccedilatildeo de repeticcedilatildeo associada aos destinos depositados no palaacutecio dos destinos (Teodiceia sect414) ou no livro dos destinos (Teodiceia sect275) Certamente o que faria eco agrave recusa por parte de Badiou quanto agrave inclusatildeo de Mallarmeacute em A dobra E talvez aqui possamos pensar que tendo em vista que

226 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Somente assim Jupiacuteter natildeo se torna o culpado do destino de Sextus e natildeo

nos perdemos nessa regiatildeo do labirinto da liberdade Seja como for a

partir de seu conhecimento infinito e infaliacutevel Deus criou fez vir agrave

existecircncia exatamente Adatildeo pecador e de um soacute golpe o mundo em que

ele pecaraacute

Natildeo vemos outra maneira de interpretar o final da Teodiceia a natildeo

ser que queiramos e contra o que estabelece a filosofia leibniziana nos

perder no labirinto da liberdade e necessidade Daiacute que natildeo vemos como

corroborar aquela divisatildeo em seleccedilotildees28 que faz a base da hipoacutetese

interpretativa formulada no segundo momento da nota 4 da 16ordf seacuterie de

Loacutegica do sentido e que nos obrigaria aceitar aquele deslocamento e

ordem de dependecircncia Seraacute mesmo que precisamos pensar ldquouma unidade

objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo

de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo

infinitordquo base daquela necessidade de deslocamento e ordem de

dependecircncia que nos levaria para muito longe do que afirmava a nota agrave

carta a Arnauld de 13 de maio de 1686 que jaacute mencionamos em nota para

compreender os paraacutegrafos finais da Teodiceia

Deleuze natildeo menciona Derrida em a Loacutegica do sentido publicada um ano apoacutes Escritura e diferenccedila ou em A dobra a menccedilatildeo a Husserl e a inclusatildeo de Mallarmeacute podem ser indicadoras de sua oposiccedilatildeo agravequela interpretaccedilatildeo De qualquer modo tanto Derrida quanto Badiou recusam ou recusariam a opiniatildeo que permanecemos leibnizianos especialmente se queremos fazer Mallarmeacute estar de acordo conosco Se o leitor quiser entender melhor o que estamos tentando dizer aqui teraacute de cruzar nossos artigos ldquoLeibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agrave teoria tradicional da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegadardquo e ldquoDerrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeordquo e se perguntar se Leibniz natildeo tem de ser colocado naquele momento preacute Mallarmeacute e Goumldel em que se acreditava na completude sistecircmica da linguagem

28 Nos referimos agrave seguinte afirmaccedilatildeo ldquo[I momento] Distinguimos pois trecircs seleccedilotildees (seacutelections) conforme ao tema

leibniziano uma que define um mundo por convergecircncia uma outra que define neste mundo indiviacuteduos completos uma outra enfim que define elementos incompletos ou entes ambiacuteguos comuns a vaacuterios mundos e aos indiviacuteduos correspondentes [II momento] Sobre esta terceira seleccedilatildeo ou sobre Adatildeo lsquovagorsquo constituiacutedo por um pequeno nuacutemero de predicados (ser o primeiro homem etc) que devem ser completados diferentemente em diferentes mundos cf Leibniz lsquoObservaccedilotildees sobre a carta de M Arnauldrsquo [que citamos na nota 15] [] Eacute verdade que neste texto Adatildeo vago natildeo tecircm existecircncia por si mesmo vale somente com relaccedilatildeo ao nosso entendimento finito seus predicados natildeo satildeo mais que generalidades Mas ao contraacuterio no texto ceacutelebre da Teodiceia (sectsect414-416) os diferentes Sextus nos mundos diversos tecircm uma unidade objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo infinito Muito cedo Leibniz havia elaborado uma teoria dos lsquosignos ambiacuteguosrsquo em relaccedilatildeo com os pontos singulares tomando por exemplo as seccedilotildees cocircnicas [les diffeacuterents Sextus dans les mondes diverses ont une uniteacute objective tregraves speacuteciale qui repose sur 1a nature ambigueuml de la notion de singulariteacute et sur la cateacutegorie de problegraveme du point de vue drsquoun calcul infini Tregraves tocirct Leibniz avait eacutelaboreacute une theacuteorie des lsquosignes ambigusrsquo en rapport avec les points singuliers prenant pour exemple les sections coniques] cf lsquoDo meacutetodo da universalidadersquo (Opuacutesculos Couturat [p 97-144])rdquo (DELEUZE 2003 p 118 grifo nosso)

William de Siqueira Piauiacute | 227

Dito isso nos parece que o que faltou a Deleuze foi buscar

compreender melhor as noccedilotildees de ideia e representaccedilatildeo associadas agrave de

noccedilatildeo completa de um individuo singular tanto no Discurso e

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld quanto nos paraacutegrafos finais

da Teodiceia e como o uso indistinto que ele proacuteprio faz do filosofema o

comprova pouco importa os detalhes do desenvolvimento do conceito de

mocircnada humana individual Mas isso se pareceria muito com a criacutetica que

fez Derrida a Foucault e que jaacute mencionamos no iniacutecio Eacute como se Deleuze

tivesse ficado parado na parte da ficccedilatildeo em que Lorenzo Valla fala de um

querer ainda indeterminado uma singularidade preacute-individual apenas

que permitiria bifurcaccedilatildeo e soacute posterior inclusatildeo base de sua gecircnese

estaacutetica ontoloacutegica como um pecar ainda indeterminado um verbo-

atributo que permitiria falar em inclusatildeo do que ainda natildeo estava

totalmente ldquodeterminadordquo natildeo exatamente determinado o em bifurcaccedilatildeo

base daquela ldquounidade objetiva muito especialrdquo a partir de um mundo de

singularidades adjacentes um mundo regido por uma espeacutecie de siacutentese

disjuntiva que permitiria falar em ldquonatureza ambiacutegua da noccedilatildeo de

singularidaderdquo e em ldquocategoria do ponto de vista de um caacutelculo infinitordquo e

permitiria pensar indiviacuteduos possiacuteveis lsquovagosrsquo constituiacutedos ldquopor um

pequeno nuacutemero de predicados que devem ser completados

diferentemente em diferentes mundosrdquo mas tivesse se esquecido que

trata-se para Leibniz de uma ficccedilatildeo falsa que teria desconsiderado o

segundo aspecto do tipo de conhecimento que Apolo-Juacutepiter-Palas-Atena

teria ou seja soacute teria considerado algo semelhante agrave ciecircncia divina de

visatildeo (que vecirc as existecircncias o mundo ou os corpos) e esquecido a ciecircncia

da simples inteligecircncia (que vecirc todos os possiacuteveis sem precedecircncia ou

preferecircncia) neste caso justamente contra ao que advertia o proacuteprio

Leibniz a saber a ciecircncia da simples inteligecircncia eacute ldquoonde eacute preciso

procurar a fonte de todas as coisasrdquo (Idem p 416 [sect417]) tanto dos

mundos ou seacuteries universo quanto dos indiviacuteduos possiacuteveis

Segundo de qualquer modo pouco antes de morrer Leibniz afirmava

para Samuel Clarke

228 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

[sect6] Mas nem essa presciecircncia nem essa preordenaccedilatildeo atentam contra a

liberdade De fato Deus levado pela suprema razatildeo [que pode ser comparada

agrave suprema perfeiccedilatildeo do sect31 do Discurso de metafiacutesica] a fazer a escolha

entre muitas sequecircncias [ou seacuteries] de coisas ou mundos possiacuteveis daquele

em que as criaturas livres tomassem tais e tais resoluccedilotildees ainda que natildeo sem

seu concurso tornou assim todo acontecimento certo e determinado uma vez

por todas (tout eacuteveacutenement certain et determine une fois pour toutes) [] esse

simples decreto da escolha natildeo muda mas apenas atualiza as suas naturezas

[as das criaturas livres] vistas por ele em suas ideias (LEIBNIZ 1983 [Quinta

carta] p 194)29

Tanto Arnauld quanto o teoacutelogo Clarke teriam se incomodado com o

mesmo Novamente tendo em vista que a criaccedilatildeo do mundo eacute uma

atualizaccedilatildeo das naturezas das criaturas livres que foram vistas por Deus

em suas ideias e que eacute a partir do conhecimento preacutevio presciecircncia ou

ciecircncia da simples inteligecircncia de ldquotodasrdquo as resoluccedilotildees que elas tomaratildeo

que podemos falar em pontos de vistas de um mundo que as compreende

e que seraacute atualizado junto com elas tendo em vista tudo isso natildeo haacute

motivo para falar em precedecircncia de mundo que resulte em singularidades

preacute-individuais ou que Deus cria ou vecirc primeiro o mundo onde Adatildeo eacute

pecador que levaria a crer que Deus natildeo vecirc ou cria um Adatildeo exatamente

pecador Ou seja nada aponta para uma ldquounidade objetiva muito especialrdquo

que nos obrigaria a diferenciar a noccedilatildeo de individuo possiacutevel com relaccedilatildeo

ao Adatildeo da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld ou do Discurso

da com relaccedilatildeo aos Sextus dos paraacutegrafos finais da Teodiceia Se levarmos

a seacuterio as obras que mencionamos ateacute aqui e principalmente a histoacuteria

contada ao final da Teodiceia mesmo os mundos possiacuteveis tecircm como

conteuacutedo as noccedilotildees completas ou perfeitas de pessoas possiacuteveis e natildeo haacute

por que falar em anterioridade ou preferecircncia do mundo com relaccedilatildeo ao

seu conteuacutedo

29 Mais ny cette prescience ny cette preordination ne derogent point agrave la liberteacute Car Dieu porte par la supremo raison agrave choisir plusieurs suites des choses ou mondes possibiles celuy ougrave les creatures libres prendroient telles ou telles resolutions quoyque non sans son concours a rendu par lagrave tout evenement certain et determine une fois pour toutes sans deroger por lagrave a liberte de ces creatures ce simple decret du choix ne changeant point mais actualisant seulement leur natures libres quirsquoil y voyoit dans ses ideacutees

William de Siqueira Piauiacute | 229

Agora fica claro que ateacute o final da sua vida Leibniz defendeu natildeo soacute

uma noccedilatildeo de pessoa espiritual (previamente conhecida) daiacute de mocircnada

humana individual que de modo nenhum se assemelha agrave noccedilatildeo de uma

pessoa vaga mas tambeacutem de acontecimento (previamente conhecido e

ordenado) que de modo nenhum se assemelha agrave ideia de caos ou que

lembre siacutenteses disjuntivas portanto ambas nada tecircm a ver com as boas

novas que Deleuze viu seja nas trecircs obras de Carroll seja na filosofia dos

Estoicos Na verdade se obedecemos seja agrave ordem de argumentaccedilatildeo do

Discurso seja agrave da Monadologia quem ilumina a noccedilatildeo de

acontecimento mudanccedila ou movimento eacute a de substacircncia individual ou

mocircnada e natildeo o contraacuterio aleacutem disso o que permite compreender o

conhecimento preacutevio que o deus leibniziano teria do mundo a ser

efetivado daiacute criado depende do que ele considerava ser a ciecircncia de

simples inteligecircncia e natildeo de visatildeo

Do nosso ponto de vista o que dissemos ateacute aqui jaacute nos impediria de

aceitar a natildeo ser com muitas ressalvas e natildeo vemos qualquer vantagem

nisso o deslocamento exigido por Deleuze seja na 16ordf seacuterie de Loacutegica do

sentido seja no capiacutetulo ldquoIndividuaccedilatildeo e especificaccedilatildeordquo de A dobra ou

seja inclusive por que natildeo vimos motivo para aceitar a defesa daquela

ldquounidade objetiva muito especialrdquo nos uacuteltimos paraacutegrafos da Teodiceia os

textos que mencionamos parecem fornecer prova suficiente que natildeo eacute

necessaacuterio nos encaminhar para as noccedilotildees de compossibilidade ou

incompossibilidade e regra de convergecircncia ou divergecircncia se queremos

compreender adequadamente o que Leibniz entendia por pessoa ou

indiviacuteduo possiacutevel associado a acontecimento e que seria muito diferente

do que o tinha visto Husserl Ao inveacutes de comeccedilarmos por aceitar tal

deslocamento preferimos nos perguntar Mas quais entatildeo seriam as

principais fontes do deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo de Deleuze ou

da peculiaridade daquela unidade objetiva Nossa hipoacutetese eacute que a Loacutegica

do sentido e mesmo A dobra Leibniz e o barroco estariam associados agrave

excessiva importacircncia que ele deu agrave seguinte parte do sect414 da Teodiceia

230 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

E quando as condiccedilotildees natildeo estiverem determinadas o bastante haveraacute tanto

quanto se quiser de tais mundos diferentes entre si que responderatildeo

diferentemente agrave mesma questatildeo de tantas maneiras quanto eacute possiacutevel Vocecirc

aprendeu geometria quando era ainda jovem como todos os gregos bastante

elevados Vocecirc sabe entatildeo que quando as condiccedilotildees de um assunto que se

pergunta natildeo o determinam o bastante e que haacute uma infinidade deles e ao

menos esse lugar que frequentemente eacute uma linha seraacute determinado Desse

modo vocecirc pode afigurar uma sequecircncia regrada de mundos que conteratildeo

todos ou somente o caso de que se trata e nisso variaratildeo as circunstacircncias e

as consequecircncias Mas se vocecirc coloca um caso que natildeo difere do mundo

atual exceto numa uacutenica coisa definida e na sua sequecircncia um certo

mundo determinado lhe corresponderaacute esses mundos estatildeo aqui [no

palaacutecio dos destinos] quero dizer em ideias (LEIBNIZ 2103 p 413 grifo

nosso)

Novamente os mundos enquanto ideias estatildeo naquele ambiente

regido pela ciecircncia de simples inteligecircncia Mas talvez tenhamos aqui o

uacutenico caso em que uma variedade de mundos eacute posta antes dos indiviacuteduos

possiacuteveis ou da determinaccedilatildeo completa dos acontecimentos com suas

circunstacircncias e permitiria falar em uma unidade objetiva especial

entretanto eacute preciso lembrar que trata-se de uma suposiccedilatildeo em que ldquoas

condiccedilotildees natildeo estejam determinadasrdquo exatamente com o mesmo sentido

de suposiccedilatildeo da menccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pessoa vaga da nota agrave carta de Arnauld

ndash que jaacute mencionamos tantas vezes de qualquer modo tal suposiccedilatildeo deve

ser compreendida com a ajuda de noccedilotildees tiradas de uma geometria que jaacute

era conhecida dos gregos30 e no miacutenimo natildeo justifica simplesmente o

apelo ou passagem para uma topologia de superfiacutecie ou para a defesa da

tese que em Leibniz podemos encontrar a defesa da noccedilatildeo completa ou

perfeita de uma substacircncia particular a partir da de singularidade

subjacente ou de uma unidade objetiva especial Todavia e em primeiro

lugar tambeacutem eacute preciso lembrar o que vem logo em seguida e que

grifamos no texto acima justamente o que permite a consequecircncia e

30 Vejam que aqui o proacuteprio Leibniz natildeo faz qualquer referecircncia agraves novidades que havia descoberto em matemaacutetica seja com relaccedilatildeo ao infinito agraves singularidades ou aos signos ambiacuteguos o que ele faz ou daacute a entender em outros momentos da Teodiceia ele prefere tendo em vista a eacutepoca em que viveria o personagem Teodoro se referir ao que jaacute era conhecido a partir da geometria dos gregos

William de Siqueira Piauiacute | 231

comparaccedilatildeo que viratildeo a seguir ou seja neste palaacutecio dos destinos Palas

Atena diz que mostraraacute a Teodoro ldquoonde (ougrave) ele [Sextus] se encontraraacuterdquo

ao que se seguira a advertecircncia ldquonatildeo completamente o mesmo Sextus que

vocecirc viu isto natildeo pode ser pois ele leva sempre consigo aquilo que ele

seraacute mas outros Sextus semelhantesrdquo mas tambeacutem totalmente

determinados ldquoque teratildeo o que vocecirc jaacute conhece do verdadeiro Sextusrdquo

Tudo segue no sentido de que haacute presciecircncia das ldquosequecircncias [ou seacuteries]

de coisas ou mundos possiacuteveisrdquo nos quais tais ou tais ldquocriaturas livres

tomassem tais e tais resoluccedilotildeesrdquo Claro que aquele ldquoonderdquo se refere a um

lugar que deve ser pensado no plano das ideias e aqui sim poderiacuteamos

utilizar a topologia leibniziana (Caracteriacutestica Geomeacutetrica ou Analysis

situs) ou a doutrina do espaccedilo e tempo relacionais para compreender o

que seria a noccedilatildeo individual completa e perfeita de um tal Sextus Seja

como for jaacute podemos dizer que tal ou tais Sextus nada tecircm a ver com o

Fang de ldquoO jardim de caminhos que se birfurcamrdquo31 de Borges daiacute de Silvia

e Bruno ou das Alices de Carroll ou seja apesar de estar de acordo que

Leibniz eacute um antigeneralista quando se trata das noccedilotildees completas ou

perfeitas isso natildeo traz a consequecircncia que por isso ele teria de defender a

constituiccedilatildeo de indiviacuteduos a partir de singularidades adjacentes A natildeo

necessidade da consequecircncia pode ser pensada natildeo soacute a partir do que de

fato lemos no sect414 da Teodiceia mas ainda mais explicitamente nos dois

momentos do sect9 do Discurso eacute verdade que ali Leibniz se mostra um

antigeneralista e nesse sentido um antitomista mas tambeacutem eacute verdade

que manteacutem a noccedilatildeo tomista das inteligecircncias separadas para a

compreensatildeo adequada do que ele havia defendido no sect8 da mesma obra

a saber quod ibi omne individuum sit specie infima Concordamos que

para pensar a noccedilatildeo leibniziana de espeacutecie a partir dessa antigeneralidade

eacute preciso opor a noccedilatildeo matemaacutetica de espeacutecie agrave noccedilatildeo fiacutesica de espeacutecie

mas novamente isso natildeo eacute razatildeo suficiente para recusar o que ele mesmo

afirma no sect9 e que faz o fundo de grande parte da oposiccedilatildeo dele ao

nominalismo de um Locke nos Novos ensaios E quanto ao que Leibniz

31 Cf BORGES 2005 [Ficciones] p 80

232 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

diz da existecircncia das espeacutecies no sentido matemaacutetico prefeririacuteamos

interpretaacute-la a partir do embate que ele teve com Newton quanto agrave

realidade e materialidade dos objetos matemaacuteticos que pode ser

depreendida do que eacute afirmado em Sobre o peso ndash a gravitaccedilatildeo ndash e

equiliacutebrio dos fluidos (De gravitatione et aequipondio fluidorum)32

Cremos que para o alematildeo as figuras matemaacuteticas natildeo precisam existir

para que falemos em verdade ou em movimentos em acordo com elas a

verdade de tais objetos eacute de outra ordem satildeo verdades eternas que

tambeacutem mas diferentemente das noccedilotildees de indiviacuteduos fazem o conteuacutedo

do intelecto divino Mas isso natildeo eacute o fundamental aqui

De qualquer forma parece-nos que foi justamente a excessiva

importacircncia que Deleuze conferiu a aquela parte tendo sido separada de

seu final consequecircncia e comparaccedilatildeo que conduziu Deleuze ao final do

texto ldquoSobre o meacutetodo universalrdquo33 o que seraacute mantido e de certa forma

intensificado em A dobra o que mais uma vez seraacute chamado para

fundamentar a exigecircncia de parte daquele deslocamento isto eacute o

pensamento generalista de Leibniz conduziria diretamente agrave exigecircncia do

uso geral das regras de convergecircncia e divergecircncia ndash e mesmo a um caacutelculo

do infinito ou agrave noccedilatildeo de signo ambiacuteguo ndash para as singularidades

adjacentes e o consequente delas para as noccedilotildees de compossibilidade e

incompossibilidade34

Do nosso ponto de vista talvez associada a essa importacircncia

exagerada e por que natildeo interpretaccedilatildeo equivocada outro problema talvez

ainda mais grave de exegese parece ter tido origem no lugar de parada que

Deleuze fez ou permite que faccedilamos no iniacutecio do sect47 da Quinta carta a

Clarke texto que de fato soacute pode ser interpretado a partir de parte da

32 Para um comeccedilo de conversa indicariacuteamos o nosso artigo ldquoQuerela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo agrave filosofia modernardquo

33 Cf LEIBNIZ 1903 [Opuscules et fragments ineacutedits de Leibniz] p 145

34 Vale relembrar a ordem de dependecircncia das suposiccedilotildees ldquoEacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na filosofia de Leibniz Pois (III) a inerecircncia de predicados na mocircnada expressiva supotildee primeiro (II) a compossibilidade do mundo expresso e esta por sua vez supotildee (I) a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdaderdquo (DELEUZE 2003 p 115)

William de Siqueira Piauiacute | 233

topologia leibniziana e da doutrina do espaccedilo e tempo relacionais quer

dizer ele teria parado justamente no modo como os homens

semelhantemente a Newton pensam a noccedilatildeo de movimento (daiacute mudanccedila

referente aos corpos por consequecircncia acontecimento) situaccedilatildeo e

possiacutevel teria parado e pensado a noccedilatildeo de indiviacuteduo apenas a partir de

uma topologia posicional que desconsidera justamente a necessidade de os

acidentes natildeo passearem fora das mocircnadas Neste caso Deleuze teria

esquecido de separar e mesmo teria invertido a importacircncia as duas

partes do texto ou seja a que comeccedila com ldquoEis como os homens chegam

a formar a noccedilatildeo de espaccedilordquo e a que comeccedila com ldquoE eacute bom considerar aqui

a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa

o lugarrdquo que continua com ldquodois sujeitos diferentesrdquo ldquonatildeo poderiam ter

precisamenterdquo de modo completamente determinado ldquoa mesma situaccedilatildeo

individual natildeo podendo um mesmo acidente individual encontrar-se em

dois sujeitos nem passar de sujeito para sujeitordquo Onde pois colocar o

Fang de Borges se natildeo queremos ir contra a doutrina leibniziana do espaccedilo

e tempo relacionais ou fazer esquecer a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo

de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugar ou que um mesmo acidente

individual natildeo pode encontrar-se em dois sujeitos Trata-se de retomada

explicita do sect7 da Monadologia que deve ser compreendida a partir de

uma noccedilatildeo de mocircnada fechada e natildeo vemos outro jeito do princiacutepio do

predicado inerente ao sujeito ou de predicados acontecimento (sentido

claacutessico) dados de uma vez por todas e natildeo atributos verbais que se

associem a uma espeacutecie de siacutentese disjuntiva ou exijam uma unidade

objetiva muito especial

Uma interpretaccedilatildeo atenta agrave inversatildeo necessaacuteria teria permitido a

Deleuze compreender o motivo da afirmaccedilatildeo de Leibniz no sect61 da

Monadologia segundo a qual os corpos les composeacutes apenas simbolizam

(symbolisent) no sentido que apenas ldquoconcordam comrdquo e que remeteria

ao convencionalismo no sentido que sozinhos careceriam de fundamento

defendido no sect1 do De interpretatione de Aristoacuteteles os fenocircmenos bem

234 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

fundados apenas simbolizam os simples35 e natildeo o contraacuterio o que mais

uma vez parece colocar Deleuze em dificuldades se se pretende afirmar a

precedecircncia do mundo ou dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees completas de

indiviacuteduos ou agrave necessidade de recorrer agraves singularidades adjacentes

E aqui do nosso ponto de vista chegamos ao ponto central do

deslocamento exigido por Deleuze desde a Loacutegica do sentido ele toma

seu pleno sentido somente se invertermos o plano argumentativo da

Monadologia ou seja se recusamos o caminho sinteacutetico do simples para

o composto dito de outro modo se pensarmos o conceito de mocircnada a

partir de uma matemaacutetica uma topologia que utilizariacuteamos para dar

conta das mudanccedilas que ocorreriam no plano dos corpos mas sem

individuaccedilatildeo preacutevia isto eacute a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos corpos viria em

primeiro lugar e comporia a seacuterie universo mas isso eacute inverter a ordem

de importacircncia entre a metafiacutesica e dinacircmica ndash ir contra o que diz o sect18

do Discurso ndash e eacute preciso estar muito atento para natildeo defender sem o

saber uma distinccedilatildeo que funciona muito bem no plano dos corpos mas

que eacute solo nuacutemero com relaccedilatildeo ao que de fato resolve o problema da

mudanccedila dito de outro modo tal inversatildeo desconsideraria justamente o

fundamento da ldquorelaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo

A proacutepria ordem dos capiacutetulos de A dobra evidenciaria tal inversatildeo as

consideraccedilotildees sobre as redobras na mateacuteria vecircm antes das sobre as dobras

nas almas e seu capiacutetulo 5 estaacute repleto de consideraccedilotildees que tomam o

corpo ou o mundo antes daquilo que faz o fundamento ldquoda relaccedilatildeo de

situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo

35 ldquoEt les composeacutes symbolisent en cela avec le simplesrdquo (LEIBNIZ 2004 p 235) Mais natildeo eacute o exato contraacuterio que defendiam os estoicos nesse sentido invertendo o valor da ldquoexpressatildeordquo do expresso do lekton Seria estranho que algueacutem que defendeu muitas vezes tanto o fato que os estoicos foram os criadores da filosofia da linguagem quanto que sua diferenciaccedilatildeo e dependecircncia entre lekton e corpo eram baacutesicas para a loacutegica do sentido e do acontecimento defendesse o contraacuterio mas aqui mantemos a suposiccedilatildeo de uma mudanccedila de ponto de vista que parece ter ocorrido por volta da elaboraccedilatildeo de Mil platocircs e que ficaria mais evidente nos capiacutetulos de tiacutetulo ldquoPostulados da linguiacutesticardquo e ldquoSobre alguns regimes de signosrdquo ou seja a partir de 1980 o conceito de palavra de ordem (le mot drsquoordre) o registro do lekton passa a assumir o mesmo valor causal que os corpos mais forccedila ainda para o plano da expressatildeo Marca inconteste da ldquogenialidaderdquo do francecircs teriacuteamos permanecido ainda mais leibnizianos ndash um Leibniz deleuzeano natildeo nos esqueccedilamos ndash a partir da deacutecada de 80 portanto talvez o principal motivo que levou Deleuze a voltar aos textos de Leibniz e intensificar os pontos principais da 16ordf seacuterie de a Loacutegica do sentido

William de Siqueira Piauiacute | 235

Do nosso ponto de vista tal inversatildeo que consideramos ser o

fundamento real da exigecircncia daquele deslocamento eacute o problema mais

grave da interpretaccedilatildeo que Deleuze faz da filosofia leibniziana ela teria

desconsiderado a resposta que Leibniz teria dado a um outro problema

levantado por Newton em De gravitatione et aequipondio fluidorum

mas que se associava agrave caracterizaccedilatildeo cartesiana do movimento e que fica

explicito no uso da expressatildeo affectiones locorum ou the properties of

places por parte do inglecircs Problema que para Leibniz tem de ser

resolvido para que possamos falar em mudanccedila ou movimento real Isso

nos permite formular um questionamento para a interpretaccedilatildeo geral

empreendida por Deleuze seja em A dobra seja em Loacutegica do sentido

Como diferenciar a noccedilatildeo newtoniana de individuaccedilatildeo (solo numero) da

leibniziana se nos mantemos apenas nas affectiones locorum36 Vale

lembrar que a filosofia natural de Newton e sua matemaacutetica tambeacutem

permitem singularidades adjacentes Com as agravantes Como o

equacionou Leibniz natildeo eacute justamente por seu fechamento que o conceito

de mocircnada resolve o problema cartesiano do movimento Dito de outro

modo Como o conceito de mocircnada baseado em singularidades adjacentes

tatildeo semelhante ao de vizinhanccedila imediata resolveria o problema da causa

proacutexima do movimento Assim cremos que a leitura de Deleuze aproxima

perigosamente Leibniz de Newton sem ter respondido suficientemente agrave

pergunta geral Por que a preferecircncia pelo alematildeo se em termos de

descoberta e grande parte do tipo de uso que ambos fizeram do caacutelculo

diferencial e integral de uma geometria de posiccedilatildeo e mesmo das regras de

convergecircncia e divergecircncia nada impediria de ver tambeacutem na filosofia do

inglecircs uma topologia de superfiacutecies37 E terminariacuteamos com as

provocaccedilotildees oacutebvias Permanecemos leibnizianos ou newtonianos

36 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect47 da uacuteltima carta a Clarkerdquo ou ldquoLeibniz y el papel de la imaginacioacuten en la geacutenesis de la nocioacuten de espacio newtonianordquo

37 Referimo-nos ao que eacute defendido entre outros no excelente livro De Newton y los newtonianos entre Descartes e Berkeley de Laura Benitez Grobet e Joseacute A Robles Garciacutea cf Bibliografia De qualquer modo o que estamos tentando dizer aqui agravaria ainda mais tais questionamentos desde que a hipoacutetese defendida por Benitez Grobet e Robles Garciacutea eacute a de que Newton precisava de um outro modelo de predicaccedilatildeo que natildeo a aristoteacutelica e por que natildeo da recusa do princiacutepio in-esse para levar a cabo sua filosofia natural e nesse sentido vale lembrar as muitas vezes em que Leibniz pergunta a Clarke que papel em termos de predicaccedilatildeo aristoteacutelica em termos de sujeito predicado

236 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Conclusatildeo

Do nosso ponto de vista em primeiro lugar a tese ceacutelebre de Leibniz

segundo a qual cada mocircnada individual exprime o mundo pode e deve ser

compreendida a partir do princiacutepio de inerecircncia do predicado no sujeito

obviamente um grande desafio para o inteacuterprete em segundo lugar natildeo

eacute verdade que para Leibniz Deus criou o mundo antes das ou de

preferecircncia agraves mocircnadas ao menos natildeo no sentido que haveria de fato

inclusatildeo posterior de algum acidente (enquanto predicado um adjetivo)

natildeo jaacute preacute-vista nas noccedilotildees completas de indiviacuteduos ou pessoas ou mesmo

na seacuterie possiacutevel de um mundo em terceiro lugar se aquela precedecircncia

ou preferecircncia for pensada em termos de compossibilidade e

incompossibilidade ndash que oferecesse alguma alternativa para o princiacutepio

de contradiccedilatildeo ndash eacute preciso lembrar que o entendimento divino eacute fora da

ordem do tempo e mais uma vez natildeo podemos falar em precedecircncia ou

preferecircncia de partes de suas operaccedilotildees e por fim natildeo vemos como as

regras de convergecircncia e divergecircncia nos ajudariam ou seria necessaacuterio

recorrer a elas para corroborar a interpretaccedilatildeo de Deleuze se aquela

precedecircncia ou preferecircncia natildeo se viu confirmada Assim natildeo vemos

motivos para aceitar a necessidade do deslocamento que Deleuze pretende

impor desde a Loacutegica do sentido Vale lembrar que nossa oposiccedilatildeo nada

tem a ver com o uso do caacutelculo diferencial e integral e as regras de

convergecircncia e divergecircncia para pensar o conceito de mocircnada ldquofechadardquo

e mesmo de uma topologia de superfiacutecie jaacute mostramos em outro lugar38 o

como a matemaacutetica criada por Leibniz pode ajudar a pensar um conceito

de mocircnada humana individual fechada e de seacuterie universo fechado em

e acidente desempenharia o tempo e espaccedilo absolutos de Newton Sendo que o sect47 da quinta resposta que deu a Clarke deve ser considerado justamente natildeo soacute como uma tentativa de se manter fiel aacute metafiacutesica que fundamenta a loacutegica aristoteacutelica e o inicio da Monadologia mas tambeacutem sem perder de vista seja os princiacutepios de sua topologia (Caracteriacutestica Geometrica ou Analysis situs) seja de sua doutrina do espaccedilo e tempo relacionais

38 Cf nossos artigos ldquoMatemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e Integral e o processo psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeordquo e ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo

William de Siqueira Piauiacute | 237

pleno acordo com sua metafiacutesica e sua dinacircmica em uma palavra em

pleno acordo com a histoacuteria contada ao final da Teodiceia

Por fim se na ldquoobra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduordquo

ldquoque descobre o sentido e jaacute pressente o natildeo-senso remontando agrave

superfiacutecie a partir de um mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que

se envolve nela e lhe impotildee a dura lei das misturasrdquo ela nada tem a ver

com o conceito leibniziano de mocircnada humana individual ou substacircncia

particular e se novamente na ldquoobra de Carrollrdquo ldquoSilvia e Bruno seriam

antes como as pessoas lsquovagasrsquo que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila

ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo comum a vaacuterios mundos mundo dos

homens e mundo das fadasrdquo a proacutepria referecircncia agrave noccedilatildeo lsquopessoa vagarsquo

deveria ser prova suficiente que natildeo podem ser melhor compreendidas a

partir das noccedilotildees leibnizianas de mocircnada humana individual ou

substacircncia particular Mas natildeo eacute justamente porque queremos estar com

Carroll ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de sujeito ou contestaccedilatildeo da

identidade pessoal ndash e Mallarmeacute ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de

livro ou texto ndash que natildeo somos leibnizianos e nem mesmo newtonianos

E aqui deixamos algo mais que a simples discordacircncia entre os ldquofiloacutesofosrdquo

Badiou e Deleuze

Referecircncias39

BADIOU Alain A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX Trad Antonio Teixeira e

Gilson Iannini Belo Horizonte MG Autecircntica 2015

BENITEZ GROBET Laura e GARCIacuteA Joseacute A Robles De Newton y loacutes newtonianos entre

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BORGES Jorge Luis O jardim de caminhos que se bifurcam In _____ Ficccedilotildees Trad

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39 Tendo em vista que se tratava inicialmente de um minicurso cremos ser justificativa suficiente para oferecermos uma Bibliografia ao inveacutes de apenas referecircncias bibliograacuteficas

238 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

_____ El jardiacuten de senderos que se bifurcan In _____ Ficiones Buenos Aires Emeceacute

Editores 2005

CARROLL Lewis (Charles Lutwidge Dodgson) As aventuras de Alice no paiacutes das

maravilhas e Atraveacutes do espelho e o que Alice encontrou laacute Trad Sebastiatildeo

Uchoa Leite Satildeo Paulo Ed Summus 1980

_____ Algumas aventuras de Siacutelvia e Bruno Trad Seacutergio Medeiros Satildeo Paulo

Iluminuras 1997

_____ Complete Works Nova York Vintage Books 1976

_____ Diaries Londres Cassell 1953

_____ The selected letters Londres Macmillan 1989

DELEUZE Gilles A dobra Leibniz e o barroco Trad Luiz B L Orlandi Campinas SP

Papirus 1991

_____ Loacutegica do sentido Trad Luiz Roberto Salinas Fortes Satildeo Paulo Ed Perspectiva

2003

_____ Diferenccedila e repeticcedilatildeo Trad Luiz Orlandi e Roberto Machado Rio de Janeiro

Graal 2006

_____ Exasperacioacuten de la filosofiacutea el Leibniz de Deleuze Trad equipe editorial Cactus

Buenos Aires Ed Cactus 2006

_____ Conversaccedilotildees Trad Peter Paacutel Pelbart Rio de Janeiro Ed 34 2013

DELEUZE Gilles e GUATTARI Feacutelix O anti-Eacutedipo capitalismo e esquizofrenia Trad Luiz

B L Orlandi Rio de Janeiro Ed 34 2011

DERRIDA Jacques ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo In _____ A escritura e a diferenccedila Trad

Maria Beatriz Marques Nizza da Silva et al Satildeo Paulo Ed Perspectiva 2014

HUISMAN Denis Dicionaacuterio de filoacutesofos Trad Claudia Berlinder et al Satildeo Paulo Martins

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William de Siqueira Piauiacute | 239

HUSSERL Edmund Meditaccedilotildees cartesiana introduccedilatildeo agrave fenomenologia Trad Frank de

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_____ Die philosophischen Schriften (GP IV Letter to Molanus (p 297-303) On God

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_____ Mathematische Schriften (GM) Hildesheim Olms 1962

_____ Anaacutelisis infinitesimal Trad Teresa Martin Santos Madri Tecnos 1987

_____ Sobre a anaacutelise da situaccedilatildeo Trad Homero Santiago Cadernos de filosofiacutea alematilde

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_____ La caracteacuteristica geacuteomeacutetrique Trad Marc Parmentier Paris J Vrin 1995

_____ Discurso de metafiacutesica Monadologia Correspondecircncia com Clarke Trad

Marilena de Souza Chauiacute e Carlos Lopes de Mattos Satildeo Paulo Ed Abril Cultural

1983

_____ Discurso de metafiacutesica e outros textos Trad Marilena Chauiacute e Alexandre da Cruz

Bonilha Satildeo Paulo Ed Martins Fontes 2004

_____ Discours de metaphysique suivi de Monadologia et autres textes Estabelecido

apresentado e com notas de Michel Fichant Paris Gallimard 2004

_____ La monadologiacutea Trad Virginia Naughton Buenos Aires Quadrata 2005

_____ Novos ensaios Trad Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Abril Cultural 1984

_____ Nouveaux essais Paris Flamarion 1990

240 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

_____ Correspondencia con Arnauld Trad Vicente P Quintero Buenos Aires Ed

Losada 2004

_____ Correspondance de Leibniz et drsquoArnauld In _____ Œuvres philosophiques de

Leibniz aos cuidados de Paul Janet) Paris Alcan 1900

_____ Observaccedilotildees quanto ao livro sobre a origem do mal publicado haacute pouco na

Inglaterra (sectsect 18-22) [Leibniz e a metafiacutesica das diferenccedilas qualitativas dos

possiacuteveis] Theoria revista eletrocircnica de filosofia v 4 n 11 p 151-60 2012

_____ Ensaios de Teodiceia Trad William de Siqueira Piauiacute e Juliana Cecci Silva Satildeo

Paulo Ed Estaccedilatildeo Liberdade 2013

_____ Essais de theacuteodiceacutee Paris Flamarion 1969

_____ Escritos Filosoacuteficos Org Ezequiel Olaso Buenos Aires Ed Charcas 1982

PIAUIacute William de Siqueira Leibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da

criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartes Prometeus ano 10 n 22 p 49-64 2017

_____ Derrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeo

Prometeus ano 10 n 24 p 178-93 2017

_____ Leibniz y el papel de la imaginacioacuten em la geacutenesis de la nocioacuten de espacio

newtoniano Imaginacioacuten y conocimiento de Descartes a Freud NASR Zuraya

Monroy e RODRIacuteGUEZ-SALAZAR Luis Mauriacutecio Meacutexico Ed Corinter e Ed Gedisa

p 33-49 2016

_____ Leibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologia Prometeus ano 9 n 19 p 100-26

2016

_____ Querela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo aacute filosofia

moderna Kalagatos v 11 n 21 p 523-49 2014

_____ Leibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect 47 da uacuteltima carta a Clarke

Prometeus ano 6 n 11 p 9-34 2013

_____ Noccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibniz Cadernos de

histoacuteria e filosofia da ciecircncia v 21 n 1 p 257-87 2011

William de Siqueira Piauiacute | 241

_____ Matemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e integral e o processo

psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeo Theoria ndash Revista eletrocircnica de Filosofia Pouso

Alegre v 5 p 1-16 2010

_____ Leibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeo Aacutegora filosoacutefica

Pernambuco Universidade Catoacutelica ano 6 n 1 p 117-36 2006

PIAUIacute William de Siqueira e CECCI SILVA Juliana Leibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agraves

teorias tradicionais da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegada O

Mutum revista de literatura e pensamento (Dossiecirc Literatura escrever o pensar)

Org por Piero Eyben Brasiacutelia UnB n 1 v 1 p 183-203 2013

SARTRE Jean-Paul A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica

Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Cadernos

espinosanos n 22 2010 p 183-228

_____ A transcendecircncia do ego esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica Trad Joatildeo

Batista Kreuch Petroacutepolis RJ Ed Vozes 2013

Sobre os Organizadores

Natural de Brasiacutelia Marcus Joseacute Alves de

Souza eacute Doutor em Filosofia pela

Universidade Federal da Paraiacuteba

Professor do Instituto de Ciecircncias

Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes e do

Mestrado em Filosofia da Universidade

Federal de Alagoas Liacuteder do Grupo de

Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo

Potiguar de Mossoroacute Maxwell Morais de

Lima Filho eacute Doutor em Filosofia pela

Universidade Federal do Cearaacute e

Professor do Instituto de Ciecircncias

Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes da

Universidade Federal de Alagoas desde

2011

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Para Bia Jorginho

Tissi Camu e o Ecossistecircmico Rudaacute

Sumaacuterio

Apresentaccedilatildeo 11

Marcus Joseacute Alves de Souza

1 14

Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica

Manfredo Arauacutejo de Oliveira

2 40

Encheiriacutedion Capiacutetulo I Traduccedilotildees e Comentaacuterios

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio

3 53

A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva da Filosofia Analiacutetica da Mente

Taacuterik de Athayde Prata

4 69

A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico A Criacutetica de John Searle agraves Principais

Correntes da Filosofia da Mente

Maxwell Morais de Lima Filho

5 98

Da Natureza Humana As Perspectivas Epistemoloacutegicas de Piaget Chomsky e

Foucault

Argus Romero Abreu de Morais

6 116

Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche A Leitura de Guumlnter Abel

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa

7 133

Habermas e o Problema do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira

8 146

Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes para se Pensar a Natureza de Sistemas

Formais Uma Abordagem Wittgensteiniana

Marcos Silva

9 158

Revisitando o Argumento da Linguagem Privada

Marcus Joseacute Alves de Souza

10 172

O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico

Ricardo S Rabenschlag

11 184

A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo

Sagid Salles

12 201

O Leibniz de Deleuze Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido

William de Siqueira Piauiacute

Sobre os Organizadores 242

Apresentaccedilatildeo

Marcus Joseacute Alves de Souza

O empreendimento filosoacutefico eacute uma atividade coletiva especialmente

por seu caraacuteter corretivo estabelecido em debate puacuteblico Eacute claro que haacute

momentos de reflexatildeo solitaacuteria mas mesmo estes satildeo momentos de

organizaccedilatildeo discursiva que visam agrave correccedilatildeo em debate e o debate com

os autores eacute fundamental para o desenvolvimento do empreendimento

filosoacutefico Ao apresentar este novo volume da seacuterie Escritos de Filosofia

Linguagem e Cogniccedilatildeo gostariacuteamos de enfatizar estes dois aspectos

sugeridos no iniacutecio o aspecto coletivo e o corretivo deste trabalho Na

dimensatildeo coletiva este eacute mais um fruto da atividade do Grupo de Pesquisa

Linguagem e Cogniccedilatildeo da Universidade Federal de Alagoas Ele resulta da

continuidade de um trabalho que desde 2014 reuacutene profissionais de

Filosofia de variadas instituiccedilotildees para apresentarem e debaterem suas

pesquisas Num Estado com pouca tradiccedilatildeo em realizaccedilatildeo deste tipo de

atividade a reuniatildeo coletiva para divulgaccedilatildeo de pesquisas eacute uma conquista

que deve ser ressaltada pois fortaleceu o Grupo de Pesquisa e originou

uma linha do receacutem-criado Mestrado Acadecircmico de Filosofia da UFAL

(2018) Mas filoacutesofos se reuacutenem especialmente para apresentar ideias e

debatecirc-las numa perspectiva de autocorreccedilatildeo entre pares Isso vem se

dando nas atividades do Grupo inclusive nos Encontros seis ateacute agora

mas sobretudo atraveacutes desta seacuterie de publicaccedilotildees Aqui o aspecto

corretivo ganha relevo A perspectiva eacute incrementar ainda mais uma

tradiccedilatildeo de publicaccedilotildees que mantenha o debate de ideias vivo

contribuindo para o avanccedilo das discussotildees filosoacuteficas daqueles que

tomarem contato com cada publicaccedilatildeo da seacuterie Escritos de Filosofia

Linguagem e Cogniccedilatildeo Possibilitando assim a acareaccedilatildeo criacutetica dos vaacuterios

12 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

escritos e animando o avanccedilo do conhecimento filosoacutefico num acircmbito da

Filosofia que reuacutene temas relacionados agraves aacutereas de Loacutegica da Filosofia da

Linguagem da Filosofia da Mente e da Epistemologia

Os textos aqui apresentados satildeo resultado do IV Encontro Linguagem

e Cogniccedilatildeo realizado em novembro de 2017 que reuniu mais uma vez

profissionais de vaacuterias instituiccedilotildees (UFAL UFAM UFPI UFS UFC UFPE

UFSJ PUC-Rio UnB dentre outras) no intuito de avanccedilarmos a pesquisa

filosoacutefica nos contextos alagoano e nordestino Como nas outras ediccedilotildees

as temaacuteticas de investigaccedilatildeo estatildeo relacionadas agrave loacutegica agrave linguagem agrave

consciecircncia e ao conhecimento

Eacute importante afirmarmos que para aleacutem de uma possiacutevel

organicidade temaacutetica dos textos este livro eacute resultado tambeacutem de

confluecircncias de amizades construiacutedas pelo interesse filosoacutefico Nisso

nossos Encontros tecircm se mostrado frutiacuteferos ao mostrar a forccedila da

tradiccedilatildeo de associar a ldquoamizade ao saberrdquo

Esta eacute a terceira coletacircnea da seacuterie Escritos de Filosofia Linguagem e

Cogniccedilatildeo mostrando continuidade e esforccedilo em darmos publicidade ao

trabalho de pesquisa realizado Reforccedilando e aprofundando laccedilos teoacutericos

de investigaccedilatildeo este volume eacute composto de 12 capiacutetulos escritos por 14

pesquisadores de 8 instituiccedilotildees (UFAM UFPI UFC UECE UFPE UFAL

UFS e UFSJ) O leitor teraacute oportunidade de refletir e avaliar criticamente

sobre uma diversidade de temas filosoacuteficos Neste ponto eacute interessante

destacar que os temas abarcados vatildeo aleacutem daquilo que ficou conhecido

como ldquoFilosofia Analiacuteticardquo haja vista a salutar heterogeneidade de autores

e abordagens jaacute presente nos outros volumes

O leitor poderaacute pensar a trajetoacuteria histoacuterico-filosoacutefica da conhecida

ldquoreviravolta linguiacutesticardquo e avaliar se efetivamente saiacutemos de um marco

reflexivo da subjetividade para o da linguagem em Filosofia Ler um

trabalho cuidadoso de traduccedilatildeo comentada de um capiacutetulo do Encheiriacutedion

de Epicteto Tomar contato com uma reflexatildeo sobre o conceito de

consciecircncia em Sartre numa perspectiva analiacutetica Compreender a criacutetica

de John Searle agraves principais correntes da Filosofia da Mente Revisitar o

Marcus Joseacute | 13

tema da natureza humana a partir de trecircs autores natildeo-analiacuteticos Piaget

Foucault e Chomsky Rediscutir os temas da consciecircncia da linguagem e

da natureza em Nietzsche a partir da avaliaccedilatildeo de Guumlnter Abel

Aprofundar no conhecimento da temaacutetica da objetividade dentro do

pensamento de Habermas Refletir sobre o conceito de jogo em sistemas

loacutegicos formais Retomar a discussatildeo do argumento da linguagem privada

de Wittgenstein Avaliar aspectos filosoacuteficos do pensamento dos ldquonovos

ateusrdquo Aproximar-se da problemaacutetica da vagueza numa avaliaccedilatildeo criacutetica

da teoria trivalente da vagueza e as dificuldades loacutegico-filosoacuteficas do

estabelecimento da precisatildeo conceitual Analisar de modo criacutetico a

interpretaccedilatildeo que Deleuze faz de Leibniz Enfim o leitor teraacute oportunidade

de pensar temas autores e abordagens variadas neste volume Esperamos

que seja de proveito para conhecimento inicial ou mesmo de

aprofundamento para o leitor experiente em Filosofia e que todos tenham

uma leitura filosoficamente estimulante

Agradecemos aos participantes que gentilmente forneceram os textos

para a composiccedilatildeo deste trabalho coletivo Agradecemos agrave agecircncia de

fomento agrave pesquisa de Alagoas FAPEAL (Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa

do Estado de Alagoas) pelo apoio financeiro ao evento que deu origem a

este volume Ao apoio do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e

Artes (ICHCA) e do Curso de Filosofia da UFAL A todos que contribuem

com as atividades o Grupo de Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo da UFAL Agrave

Editora Fi pela parceria nesta publicaccedilatildeo

Maceioacute setembro de 2019

1

Centralidade da Linguagem e a Nova Proposta

de Articulaccedilatildeo da Teoria Filosoacutefica

Manfredo Arauacutejo de Oliveira 1

A filosofia se encontra hoje diante de um desafio que tem a ver com

a proacutepria forma de sua configuraccedilatildeo enquanto teoria ou seja o desafio da

articulaccedilatildeo de um novo paradigma teoacuterico O ponto de partida desta

situaccedilatildeo foi certamente a reviravolta linguiacutestica ou seja a substituiccedilatildeo no

pensamento de Frege da anaacutelise de sensaccedilotildees representaccedilotildees e juiacutezos pela

anaacutelise das expressotildees linguiacutesticas Quine (1981 p 23) ao fazer um

balanccedilo dos resultados que marcaram positivamente a filosofia do seacuteculo

XX afirmou que o evento decisivo e irreversiacutevel da filosofia depois de

Hume foi a reviravolta linguiacutestica Que significa isto para a filosofia Hoje

haacute pensadores que defendem que ela apenas significou uma radicalizaccedilatildeo

da reviravolta transcendental da filosofia moderna Faremos uma breve

apresentaccedilatildeo da proposta da fenomenologia transcendental no

pensamento de Husserl que levantou a pretensatildeo de articular o paradigma

transcendental da forma mais rigorosa possiacutevel para poder depois mostrar

que a reviravolta linguiacutestica natildeo necessariamente se deve entender como

uma radicalizaccedilatildeo deste paradigma mas articula antes um quadro teoacuterico

propriamente poacutes-transcendental

1 Graduado pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR) Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Gregoriana de Roma (PUG) Doutor em Filosofia pela Ludwig-Maximilian de Munique (LMU) e Professor Emeacuterito da Universidade Federal do Cearaacute (UFC)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 15

A Filosofia Transcendental Preacute-Linguiacutestica O Mundo se nos Daacute em

Intuiccedilotildees Puras A Fenomenologia Husserliana

Para Husserl a filosofia exige uma mudanccedila radical de postura o que

revela o caraacuteter ingecircnuo da atitude da postura natural Essa transformaccedilatildeo

radical de postura nos vai mostrar que todos os entes soacute nos podem ser

dados na esfera da subjetividade transcendental atraveacutes de muacuteltiplos

modos de manifestaccedilatildeo que satildeo em princiacutepio variaacuteveis e ilimitados Neste

sentido fenomenologia natildeo eacute simples descriccedilatildeo do que aparece sem que

possa haver uma decisatildeo sobre o que o ente eacute em sua essecircncia e seu ser

mas ela eacute precisamente o esclarecimento dos entes em sua essecircncia em

seu sentido e em seu ser Nesta perspectiva se deve dizer que a questatildeo

central da fenomenologia natildeo eacute o ser mas o sentido embora natildeo seja claro

como Husserl interpreta o sentido De qualquer modo ele sempre tematiza

o sentido e natildeo o ser mesmo (PUNTEL 2011 p 305)

Isto se faz atraveacutes do retorno agraves vivecircncias intencionais nas quais os

sentidos vecircm agrave doaccedilatildeo Dessa forma o tema especiacutefico da fenomenologia

eacute a correlatividade entre as ldquoformas de doaccedilatildeordquo dos objetos e os momentos

intencionais das vivecircncias (dos atos intencionais) em suas inuacutemeras

modificaccedilotildees (TUGENDHAT 1967 p 172)2 Numa palavra fenomenologia

eacute anaacutelise da correlaccedilatildeo entre objeto intencional e ato intencional ou seja

trata-se de determinar a partir da intenccedilatildeo o sentido do ldquointendidordquo

Portanto o que temos eacute sempre um objeto num modo determinado de nos

dar-se natildeo haacute objeto sem a mediaccedilatildeo de seu modo de dar-se Fenocircmeno

eacute entatildeo aqui um correlato intencional da consciecircncia (FINK 1976 p 83)

e a subjetividade eacute o princiacutepio da originariedade (FINK 1976 p 91)

Ser eacute entatildeo ser para a consciecircncia esta eacute a tese baacutesica da filosofia

transcendental e natildeo se pode entender o projeto husserliano de filosofia

sem vinculaacute-lo agrave tradiccedilatildeo do pensamento transcendental de Kant e

sobretudo de Fichte3 no giro reflexivo da filosofia na expressatildeo de

2 A respeito do caminho que vai de Bolzano a Husserl cf PORTA (2003 p 85-106)

3 Essa eacute a tese baacutesica de Siemek Cf SIEMEK (2001 p 190 e ss) Cf OLIVEIRA (1973 p 139-220)

16 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Tugendhat (1976 p 16 e ss) aceita e radicalizada por Husserl Isto significa

dizer que o sentido e o ser de qualquer objeto que conservamos enquanto

idecircntico atraveacutes das diferentes formas de consciecircncia se formam atraveacutes

de nossas accedilotildees sinteacuteticas no como de sua doaccedilatildeo isto eacute nos diferentes

tipos de objetualidade (HABERMAS 1984 p 37) Para a postura

fenomenoloacutegica todos os entes abstratos ou concretos reais ou ideais tecircm

seus modos de doaccedilatildeo (HUSSERL 1963 p 169) Numa palavra tudo se

revela na consciecircncia como objeto constituiacutedo por atos constituintes e

portanto a subjetividade emerge como a fonte uacuteltima de toda doaccedilatildeo de

sentido

Husserl rejeita este meacutetodo regressivo natildeo no sentido da pergunta

pelas condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento objetivo mas no sentido

de que esta pergunta no pensamento de Kant natildeo realiza um retorno agrave

intuiccedilatildeo e neste sentido eacute em uacuteltima anaacutelise uma construccedilatildeo atraveacutes de

deduccedilatildeo Com isto todo o procedimento se radica em suposiccedilotildees natildeo

intuiacutedas o que tem como consequecircncia que desta forma natildeo eacute possiacutevel

atingir a autodoaccedilatildeo da subjetividade em seu ser em si ela eacute apenas

ldquoconstruiacutedardquo num pensamento vazio

O grande ausente no pensamento de Kant eacute precisamente a intuiccedilatildeo

que Husserl denomina o ldquoPrinciacutepio dos Princiacutepiosrdquo entendida como a

fonte originaacuteria a evidecircncia fundante de todo conhecimento (HUSSERL

1950 p 25 e STROumlKER 1987 p 1-34) Desta forma a tese central da

fenomenologia eacute que soacute o retorno aos atos intencionais pode produzir

aquela autodoaccedilatildeo em evidecircncia intuitiva que constitui o cerne da

fenomenologia Assim as coisas mesmas natildeo satildeo objetos no sentido de

uma ldquoposiccedilatildeo transcendente de serrdquo mas o que eacute intuiacutedo na satisfaccedilatildeo de

atos intencionais (GADAMER 1987 p 118)

Um confronto com a tese fundamental da fenomenologia a respeito

da forma suprema do dar-se da realidade a noacutes pode iniciar-se com a

criacutetica articulada por E Tugendhat (1976 p 85-87) conhecido eacute para

Husserl precisamente o que nos eacute imediatamente dado Para Tugendhat

justamente nisto se mostra o caraacuteter unilateral da concepccedilatildeo husserliana

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 17

de conhecimento a funccedilatildeo do conceito para o que eacute sensivelmente preacute-

dado perde importacircncia frente ao papel da intuiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao que eacute

significado de tal modo que ascensatildeo no conhecimento significa

exclusivamente maior proximidade da coisa e natildeo igualmente aumento

em diferenciaccedilatildeo e distinccedilatildeo

Este preacute-conceito da fenomenologia ou seja de que a simples

presenccedila garante por si mesma o cumprimento uacuteltimo de uma intenccedilatildeo

significante tem para Tugendhat enormes consequecircncias na concepccedilatildeo

husserliana da filosofia Em primeiro lugar isto eacute decisivo para o modelo

de filosofia transcendental que ele articulou e para a concepccedilatildeo da

consciecircncia pura como o campo absoluto precisamente porque o campo

do que se daacute adequadamente Em segundo lugar para a consequecircncia

metoacutedica de que a anaacutelise fenomenoloacutegica se restringe ao que eacute

simplesmente dado intuitivamente na intuiccedilatildeo originaacuteria (HUSSERL

1950 p 52) A natildeo consideraccedilatildeo da questatildeo da determinaccedilatildeo tem como

resultado que o determinado eacute aceito ingenuamente e natildeo eacute considerado

expressamente mas por outro lado ele eacute o ponto de chegada de um

processo de determinaccedilatildeo que se faz atraveacutes de sua relaccedilatildeo agrave forma de seu

dar-se Isto conduz sempre a uma absolutizaccedilatildeo da experiecircncia em

questatildeo

De fato aqui se situa a questatildeo fundamental de confronto com o

pensamento de Husserl e sua proposta de articular a filosofia enquanto

fenomenologia transcendental mesmo na sua formulaccedilatildeo uacuteltima de

filosofia do mundo vivido como o originariamente dado Trata-se para ele

de atingir a dimensatildeo mais originaacuteria do pensamento enquanto tal e esta

eacute para ele a intuiccedilatildeo que se daacute originariamente e que constitui a fonte de

justificaccedilatildeo de todo conhecimento Isso leva segundo E Fink (1976 p 85)

a uma postura ldquointencionalistardquo na concepccedilatildeo do ser e da verdade

enquanto posiccedilatildeo especiacutefica da fenomenologia enquanto filosofia Na

realidade aqui natildeo se articula propriamente uma justificaccedilatildeo mas se

defende a tese de que se trata em uacuteltima instacircncia de um ver de um

mostrar-se a dimensatildeo originaacuteria se mostra daacute-se

18 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Como diz Habermas (1984 p 47-59) em Husserl a intuiccedilatildeo sensiacutevel

serve de modelo para pensar qualquer outro tipo de intuiccedilatildeo possiacutevel pois

aqui aparece em niacutevel elementar o que constitui a intuiccedilatildeo a autodoaccedilatildeo

de um objeto Sua suposiccedilatildeo fundamental eacute que temos na experiecircncia

sensiacutevel acesso intuitivo a algo dado imediata e evidentemente Para E

Fink (1976 p 84) em Husserl a percepccedilatildeo intuitiva constitui de fato o

modo originaacuterio de autodoaccedilatildeo Sua tese eacute que em Husserl isto natildeo

significa um intuicionismo inimigo do pensamento mas defesa do

ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo e do caraacuteter secundaacuterio do pensamento Habermas

aponta para a dificuldade de defesa desta tese do ldquoprimado da intuiccedilatildeordquo a

partir inclusive de consideraccedilotildees do proacuteprio Husserl (1964) em sua obra

ldquoErfahrung und Urteilrdquo A razatildeo fundamental eacute que em cada intuiccedilatildeo

originaacuteria jaacute estatildeo presentes determinaccedilotildees categoriais o que para ele

significa que o modelo de uma filosofia da consciecircncia tem que ser

substituiacutedo pelo modelo de uma filosofia enquanto teoria centralizada na

linguagem

Que significa isto para a filosofia Em primeiro lugar que depois da

reviravolta linguiacutestica natildeo podemos mais analisar nossa capacidade de

conhecimento independentemente de nossa capacidade de falar e agir uma

vez que noacutes enquanto sujeitos cognoscentes jaacute sempre nos encontramos

no horizonte de nossas praacuteticas no mundo vivido Linguagem e realidade

estatildeo mutuamente imbricadas de tal modo que toda experiecircncia humana

eacute linguisticamente impregnada Com isto supera-se definitivamente o

ldquomito do dadordquo uma vez que mesmo a experiecircncia sensiacutevel jaacute eacute mediada

linguisticamente de tal modo que ela perde a autoridade epistecircmica

daquela instacircncia que nos daria imediatamente a realidade pura Para

Habermas (1984 p 20) foi meacuterito de W Sellars (2003 p 23 ss) em sua

criacutetica ao empirismo do Ciacuterculo de Viena de ter explicitado esta

consequecircncia da reviravolta linguiacutestica

Isto tem como consequecircncia a eliminaccedilatildeo do primado da

intencionalidade e de sua substituiccedilatildeo pelo primado de uma compreensatildeo

linguiacutestica Neste caso a urgecircncia de uma fundamentaccedilatildeo que eacute central na

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 19

filosofia natildeo pode satisfazer-se atraveacutes de uma consideraccedilatildeo

fenomenoloacutegica da histoacuteria da originaccedilatildeo do mundo vivido mas atraveacutes

da acareaccedilatildeo das pretensotildees de validade que levantamos em nossas

praacuteticas simboacutelicas ordinaacuterias Natildeo intuiccedilatildeo mas argumentos eacute o que pode

justificar a aceitaccedilatildeo ou natildeo das pretensotildees de validade e por conseguinte

eacute neste niacutevel que se situa uma teoria filosoacutefica

Em direccedilatildeo semelhante Apel rearticula a filosofia transcendental

claacutessica a partir do diaacutelogo com as filosofias que saiacuteram da reviravolta

linguiacutestica a filosofia analiacutetica e a filosofia hermenecircutica Para ele essa

reviravolta provocou uma transformaccedilatildeo daquilo que constitui a questatildeo

central desta tradiccedilatildeo de pensamento filosoacutefico ou seja a pergunta pelas

condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento vaacutelido Foi nesse contexto que

Tugendhat (1976 p 16) 4 interpretou a reviravolta linguiacutestica como

radicalizaccedilatildeo do movimento do pensamento que constitui o cerne da

filosofia transcendental que ele denomina de ldquoreviravolta reflexivardquo cujo

cerne consiste em dizer que a filosofia natildeo tem como tarefa o

conhecimento direto dos objetos do mundo mas sua especificidade eacute uma

reflexatildeo sobre como os objetos do mundo enquanto tais nos podem ser

dados

Eacute neste sentido estrito que K-O Apel afirma ser a filosofia da

linguagem a nova ldquofilosofia primeirardquo ou seja natildeo uma filosofia primeira

enquanto pergunta pelo ente enquanto tal ou pela estrutura da

consciecircncia transcendental enquanto fundamento do conhecimento

vaacutelido mas uma filosofia primeira agrave altura da consciecircncia criacutetica alcanccedilada

em nossos dias o que neste contexto significa a consciecircncia da

inevitabilidade da mediaccedilatildeo linguiacutestica de nosso acesso ao mundo

Neste sentido eacute que natildeo haacute como diz J McDowell (2005 p 64)

qualquer experiecircncia originaacuteria que esteja fora da esfera conceitual natildeo

haacute uma fronteira exterior para aleacutem da esfera conceitual como ele diz

comentando Wittgenstein

4 ldquoSie konzipiert ihre Fragestellungen nicht in direkter Thematizierung jeweiliger Gegenstaumlnde sondern in der gleichzeitigen Reflexion darauf wie uns diese Gegenstaumlnde gegeben sein koumlnnenwie sie uns zugaumlnglich werdenrdquo

20 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

natildeo existe lacuna ontoloacutegica entre o tipo de coisa que podemos querer dizer

ou de modo geral entre o tipo de coisa em que podemos pensar e o tipo de

coisa que pode ocorrer Quando algueacutem pensa de modo verdadeiro aquilo em

que ele pensa eacute aquilo que ocorre Como o mundo eacute tudo que ocorre (como ele

proacuteprio escrevera) natildeo haacute lacuna entre o pensamento enquanto tal e o

mundo

Natildeo haacute portanto nenhuma lacuna entre o pensamento enquanto tal

e o mundo mas um jogo reciacuteproco entre conceitos e intuiccedilotildees entre

receptividade e espontaneidade (McDOWELL 2005 p 40) o que poreacutem

natildeo nos impede de falar de uma realidade independente que exerce um

controle racional sobre nosso pensamento Isso natildeo significa contudo que

o mundo seja completamente no espaccedilo de um sistema de conceitos

Precisamos de um trabalho longo e paciente o que implica uma obrigaccedilatildeo

permanente de reflexatildeo O importante aqui eacute afirmaccedilatildeo de que a realidade

natildeo estaacute fora da esfera conceitual e a rejeiccedilatildeo do ldquomito do dadordquo significa

precisamente que natildeo existe uma presenccedila pura originaacuteria fora da esfera

conceitual Eacute isto que McDowell chama de ldquoo caraacuteter indelimitado do

conceitualrdquo

A Posiccedilatildeo da Filosofia-Sistemaacutetico-Estrutural de L B Puntel

A questatildeo do papel exercido pela linguagem na filosofia constitui

certamente para L B Puntel uma questatildeo central partindo-se de uma nova

forma de articular a filosofia e suas questotildees que eacute resultado do que se

convencionou denominar de ldquogiro ou reviravolta linguiacutesticardquo da filosofia

(OLIVEIRA 2015) Natildeo se trata aqui de um novo objeto ou um novo campo

de investigaccedilatildeo para uma teoria filosoacutefica mas da filosofia mesma em sua

configuraccedilatildeo teoacuterica Isto significa dizer que a tematizaccedilatildeo da linguagem

natildeo constitui uma disciplina filosoacutefica nova mas sua consideraccedilatildeo faz

parte da tematizaccedilatildeo dos pressupostos irrenunciaacuteveis da articulaccedilatildeo da

filosofia enquanto uma forma de atividade teoacuterica na vida humana jaacute que

o que estaacute em jogo aqui eacute a instacircncia imprescindiacutevel de articulaccedilatildeo de uma

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 21

teoria filosoacutefica sem ela nada eacute dado a uma teoria filosoacutefica o que seria

dizer que a teoria seria inviaacutevel

A tese baacutesica da reviravolta linguiacutestica eacute de que natildeo eacute mais possiacutevel

pensar a filosofia sem a mediaccedilatildeo da linguagem e isto tem consequecircncias

fundamentais em sua articulaccedilatildeo o que se configura como tese da

centralidade da linguagem na filosofia Na proposta da filosofia

sistemaacutetico-estrutural de Puntel (OLIVEIRA 2014 p 190 ss) esta eacute

elucidada no contexto de uma ldquorevoluccedilatildeo copernicanardquo da revoluccedilatildeo

transcendental que caracteriza o pensamento moderno e desemboca

numa filosofia poacutes-transcendental Que significa propriamente isto

Uma filosofia sistemaacutetico-estrutural na proposta de Puntel (2008 p

97 ss) radica-se na concepccedilatildeo fundamental de que filosofia eacute uma

atividade humana que se distingue de outras atividades em razatildeo de seu

objetivo baacutesico isto eacute a elaboraccedilatildeo e a apresentaccedilatildeo de teorias Teoria eacute a

forma de discurso metoacutedico e rigorosamente ordenado que se compotildee de

sentenccedilas puramente declarativas Nesta posiccedilatildeo em oposiccedilatildeo a vaacuterias

propostas hoje existentes a filosofia eacute concebida como um

empreendimento estritamente teoacuterico Esta ldquoatividaderdquo e seu ldquoprodutordquo

tecircm a ver com o ldquomundordquo compreendido como a totalidade ilimitada dos

ldquoobjetosrdquo ou ldquocamposrdquo ou ldquoacircmbitosrdquo a totalidade do que eacute dado na

linguagem

A uniatildeo desses trecircs fatores baacutesicos nos autoriza a falar da ldquodimensatildeo

expositivardquo como sendo o especiacutefico da atividade filosoacutefica Por esta razatildeo

seu primeiro trabalho consiste precisamente no esclarecimento da

dimensatildeo da teoricidade e da explicitaccedilatildeo do conceito de uma teoria

filosoacutefica pela apresentaccedilatildeo de seus componentes irrenunciaacuteveis Numa

palavra sendo a filosofia uma atividade que se efetiva na esfera da

linguagem tendo assim a linguagem como seu pressuposto primeiro

exige-se para o cumprimento de sua tarefa a tematizaccedilatildeo de seus

pressupostos linguiacutesticos o que eacute uma decorrecircncia da reflexividade que

caracteriza a atividade teoacuterica neste niacutevel de sua efetivaccedilatildeo Isto implica

22 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

dizer que uma filosofia deve comeccedilar pela consideraccedilatildeo de sua mediaccedilatildeo

linguiacutestica

Num sentido programaacutetico Puntel elabora uma quase-definiccedilatildeo de

filosofia que serviraacute de fio condutor para toda a exposiccedilatildeo ldquoa filosofia

sistemaacutetico-estrutural eacute a teoria das estruturas universais (mais gerais) do

universo do discurso [universe of discourse] ilimitadordquo (PUNTEL 2008

p 33) ldquoUniverso do discursordquo pode ser explicitado por conceitos mais

determinados do ponto de vista do conteuacutedo como ldquomundordquo ldquouniversordquo

ldquorealidaderdquo e em uacuteltima instacircncia ldquoserrdquo A dimensatildeo do universo do

discurso eacute o dado abrangente dado eacute compreendido aqui como o

ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila portanto algo linguisticamente articulado

precisamente aquilo que eacute dado para ser compreendido ou explicado pela

filosofia seu objeto sua temaacutetica especiacutefica tudo o que eacute candidato a um

tratamento teoacuterico-filosoacutefico

A pretensatildeo proacutepria de qualquer teoria eacute assim compreender um

dado um setor do mundo ou o mundo enquanto tal no caso de uma teoria

filosoacutefica Desta forma eacute tarefa do filoacutesofo sistemaacutetico-estrutural tentar

integrar numa teoria compreensiva todos estes dados que num primeiro

momento emergem justamente como candidatos agrave compreensatildeo como

candidatos agrave teoria Daiacute porque a formaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica

consiste em trabalhar a interconexatildeo entre a dimensatildeo dos dados e a

dimensatildeo das estruturas isto eacute os componentes irrecusaacuteveis da

linguagem enquanto os pressupostos irrenunciaacuteveis para a compreensatildeo

de qualquer dado de tal forma que as estruturas afinal se revelam como

estruturas dos dados e os dados enquanto incluiacutedos na dimensatildeo das

estruturas

Uma pergunta se revela aqui como fundamental Que eacute entatildeo

compreender Que implica o compreender Esta eacute uma questatildeo que

subjaz a todo empreendimento teoacuterico uma vez que compreender um

determinado X constitui a tarefa especiacutefica de qualquer empreendimento

teoacuterico ldquosendo que ldquocompreenderrdquo neste caso eacute um conceito geral para

ldquoentenderrdquo ldquoexplicarrdquo ldquoarticularrdquo (PUNTEL 2008 p 205) O X por sua

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 23

vez designa a coisa a temaacutetica o objeto do compreender o dado em

questatildeo

Neste contexto um procedimento teoacuterico se revela muito produtivo

as diferentes posiccedilotildees filosoacuteficas (PUNTEL 2008 p 206) podem ser

consideradas a partir de como elas pensam a relaccedilatildeo entre o compreender

e a coisa a ser compreendida A pergunta baacutesica aqui eacute entatildeo se o

compreender se determina a partir da coisa a ser compreendida ou ao

contraacuterio De acordo com a primeira posiccedilatildeo (PUNTEL 1990 p 266 ss)

noacutes natildeo criamos produzimos ou constituiacutemos o mundo efetivo mas antes

o encontramos o mundo efetivo nos eacute preacute-dado Isto significa dizer que

apreendemos a realidade sem conceito sem linguagem5 sem teorias o

que segundo esta posiccedilatildeo se mostra em muitas experiecircncias Assim nesta

perspectiva uma coisa eacute a apreensatildeo da realidade outra a sua

compreensatildeo de tal forma que a verdadeira tarefa de uma atividade teoacuterica

consiste em descobrir o mundo em si mesmo aprendecirc-lo descrevecirc-lo e

explicaacute-lo O mundo portanto situa-se fora do conceitual isto constitui o

cerne do que se denomina de ldquorealismordquo

A posiccedilatildeo contraposta (normalmente denominada pelos realistas de

idealista hoje se fala mais de antirrealismo) procura desvelar a

ingenuidade desta primeira posiccedilatildeo ressaltando a mediaccedilatildeo irrecusaacutevel de

um sistema conceitual em toda atividade teoacuterica assim que admitir uma

realidade inteiramente desprovida de esquemas conceituais se mostra

impossiacutevel Realidade mundo universo soacute tecircm sentido no interior de um

esquema conceitual por noacutes articulado Distinguimos os objetos

justamente atraveacutes da introduccedilatildeo deste ou daquele esquema conceitual Jaacute

sempre estamos em relaccedilatildeo com o mundo pela atividade conceitual de tal

modo que fora desta relaccedilatildeo o mundo eacute simplesmente ininteligiacutevel Desta

forma falar de independecircncia do mundo natildeo significa afirmar que ele se

coloque para aleacutem da esfera conceitual

5 Haacute filoacutesofos que distinguem entre significado linguiacutestico e conteuacutedos mentais Cf Miller (2010 p 208) ldquoFiloacutesofos chamam estados mentais tais como crenccedilas desejos vontades intenccedilotildees esperanccedilas e assim por diante de atitudes proposicionais Podemos dizer que enquanto sentenccedilas possuem significado linguiacutestico atitudes proposicionais possuem conteuacutedo mentalrdquo Cf a respeito Branquinho (2006 p 72-78)

24 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Neste contexto McDowell (2005 p 65) estabelece uma distinccedilatildeo

fundamental

Pensamento pode significar o ato de pensar mas pode significar tambeacutem o

conteuacutedo que eacute pensado ndash aquilo que algueacutem pensa6 Ora se quisermos dar o

devido reconhecimento agrave independecircncia da realidade precisamos de uma

coerccedilatildeo exterior ao pensamento e ao juiacutezo entendidos enquanto exerciacutecios de

espontaneidade Esta coerccedilatildeo natildeo precisa vir de um lugar exterior aos

conteuacutedos pensaacuteveis7

Foram aqui apresentadas duas posiccedilotildees extremas que habitualmente

natildeo se articulam desta forma uma vez que as diferentes propostas

filosoacuteficas satildeo normalmente formas mistas portadoras de elementos de

ambas as posturas o que se pode mostrar mesmo no pensamento de Kant

fundamentalmente marcado pela dicotomia radical entre sujeito e objeto

Putnam empenhou-se em caracterizar com rigor a primeira posiccedilatildeo

Ele defende a partir de 1976 a posiccedilatildeo denominada por ele mesmo de

ldquorealismo internordquo que levanta a pretensatildeo de articular uma posiccedilatildeo

intermediaacuteria entre o que ele chama de ldquorealismo metafiacutesicordquo8 da tradiccedilatildeo

e o ldquorelativismordquo muito difundido em nossos dias A primeira o realismo

metafiacutesico (PUTNAM 1996 p 205) eacute o que Moore e Russell teriam

retomado depois de ter sido recusado pelo idealismo moderno de Kant e

Hegel Putnam (1993 p 213) atribui ao proacuteprio Kant a distinccedilatildeo entre

estes dois tipos de realismo

Outros autores falam simplesmente de ldquorealismordquo ou como eacute caso de

Puntel (PUNTEL 1990 p 269) de ldquorealismo transcendenterdquo Para ele

pode-se distinguir aqui duas variantes a) O realismo transcendente

absoluto que afirma existir um uacutenico sistema conceitual correto

considerando os demais como algo puramente subjetivo 2) O realismo

6 Na perspectiva da filosofia sistemaacutetico-estrutural pensamento proposiccedilatildeo e estado-de-coisas satildeo expressotildees sinocircnimas e constituem o ldquoexpressumrdquo de uma sentenccedila Cf Puntel (2008 p 214-216)

7 McDowell (2005 p 73) tambeacutem afirma o seguinte ldquoO objeto de uma experiecircncia [] eacute entendido como parte do mundo pensaacutevel tomado como um todordquo

8A respeito das raiacutezes teoacutericas do realismo metafiacutesico no pensamento de Putnam cf Engel (1994 p 363-364)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 25

transcendente moderado que admite uma pluralidade de sistemas

conceituais e os interpreta como tambeacutem as teorias como diferentes

aproximaccedilotildees ao uacutenico mundo efetivo

Em nossos dias o realismo metafiacutesico para Putnam constitui a tese

especiacutefica dos materialistas9 Sua tese baacutesica eacute que a fiacutesica constitui uma

configuraccedilatildeo de uma teoria verdadeira e acabada da estrutura do mundo

Putnam admite ter sido precisamente esta sua primeira posiccedilatildeo teoacuterica jaacute

que tambeacutem ele defendeu a tese de que as ciecircncias descrevem e explicam

uma realidade inteiramente independente de noacutes Constituiu um

argumento decisivo para ele neste momento o fato de que a transformaccedilatildeo

de significaccedilatildeo dos termos teoacutericos natildeo demanda que se deixe de falar de

uma uacutenica e mesma realidade o que seria impossiacutevel se ela natildeo se situasse

para aleacutem de nossas teorias

O realismo metafiacutesico se fundamenta entatildeo na crenccedila de que haacute

apenas uma teoria verdadeira capaz de expor exaustivamente a estrutura

do mundo como ele eacute em si mesmo independente de noacutes de nossas

concepccedilotildees a seu respeito Numa palavra o realista metafiacutesico afirma que

podemos falar de coisas e pensar nelas como elas satildeo em si mesmas em

sua constituiccedilatildeo intriacutenseca independentemente de nosso espiacuterito de nossa

linguagem de nossas teorias A razatildeo disto eacute a relaccedilatildeo de correspondecircncia

entre as expressotildees de nossa linguagem e certos tipos de entidades

independentes Nesta perspectiva o mundo eacute entendido enquanto a

totalidade invariaacutevel de objetos independentes de nosso espiacuterito de nossa

linguagem de nossas teorias (PUTNAM 1993 p 156) Hoje se defende a

tese de que estas entidades tecircm nos objetos materiais seu paradigma e de

que a correspondecircncia em tela eacute uma relaccedilatildeo causal

Numa palavra o mundo efetivo nos eacute preacute-dado enquanto plenamente

estruturado em si mesmo (ldquoa ready-made worldrdquo expressatildeo sugerida por

N Goodman) e o objetivo fundamental de toda e qualquer atividade

9 Cf Putnam (1996 p 208) ldquoMetaphysics or the enterprise of describing the ldquofurniture of the worldrdquo the ldquothings in themselvesrdquo apart from our conceptual imposition has been rejected by many analytic philosophers (though not as I remarked by Russell) and by all the leading brands of continental philosophy Today apart from relics it is virtually only materialists (or ldquophysicalistsrdquo as they like to call themselves) who continue the traditional enterpriserdquo

26 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

teoacuterica consiste em apresentar o mundo como ele eacute em si mesmo da

maneira mais fiel possiacutevel Putnam denomina esta posiccedilatildeo de

ldquoexternaliacutesticardquo jaacute que sua postura pressupotildee que noacutes podemos dispor do

ldquoponto de vista de Deusrdquo (ldquoGodacutes-Eye Viewrdquo) que teria condiccedilotildees de

alcanccedilar os dois lados do abismo entre linguagem e mundo de tal modo

que fosse possiacutevel comparar linguagem e mundo e decidir se haacute

correspondecircncia entre os dois

Neste caso tornar-se-ia possiacutevel distinguir claramente entre o que

realmente eacute o caso e o que se julga ser o caso (PUTNAM 1990 p 102) Esta

eacute a razatildeo pela qual uma teoria correspondencial da verdade eacute um elemento

essencial desta posiccedilatildeo uma teoria que segundo ele foi contestada por

Kant (PUTNAM 1990 p 92-93) Putnam (1990 p 85) chama a teoria da

correspondecircncia de ldquoteoria da semelhanccedila de relaccedilatildeordquo precisamente por

ela sustentar que a relaccedilatildeo vigente entre nossas representaccedilotildees e os

objetos externos eacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila

Satildeo vaacuterias as razotildees que levaram Putnam a abandonar esta posiccedilatildeo

Puntel (2008 p 480) enumera as trecircs mais importantes 1) A

compreensatildeo de que a crenccedila de que poderiacuteamos dispor de uma

perspectiva de Deus eacute uma presunccedilatildeo e uma ilusatildeo 2) O realismo

metafiacutesico produz uma consequecircncia inadmissiacutevel uma vez que o abismo

entre linguagem (teoria) e mundo eacute insuperaacutevel para seres finitos natildeo se

pode afastar a possibilidade de que mesmo uma teoria ideal por noacutes

elaborada possa enganar-se em relaccedilatildeo ao mundo e isto eacute certamente

ininteligiacutevel 3) O contato com o uacuteltimo Wittgenstein o levou a considerar

o realismo metafiacutesico uma teoria ingecircnua quanto ao sentido que

simplesmente natildeo se sustenta mais

Na perspectiva pragmaacutetica aberta por Wittgenstein a referecircncia a um

jogo de linguagem eacute essencial o que significa dizer que o significado

linguiacutestico natildeo se esgota na esfera da semacircntica Isto conduz agrave afirmaccedilatildeo

da primazia da dimensatildeo pragmaacutetica na linguagem e consequentemente a

uma articulaccedilatildeo das questotildees filosoacuteficas de forma inteiramente diferente

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 27

Como diz Zilhatildeo (1993 p 204) para descrever a mudanccedila radical de

perspectiva

[hellip] soacute no interior dos jogos de linguagem correspondentes eacute que

determinadas expressotildees mesmo quando apresentam uma estrutura formal

declarativa adquirem o caraacutecter de ldquopensamentosrdquo e ldquoproposiccedilotildeesrdquo isto eacute a

sua simples aparecircncia formal considerada independentemente do uso que

elas tenham num contexto determinado natildeo nos autoriza a classificaacute-las de

acordo com qualquer categoria

No entanto para Puntel a posiccedilatildeo alternativa articulada por Putnam

o ldquorealismo internordquo que eacute uma versatildeo da posiccedilatildeo antirrealista apesar de

ter um aspecto profundamente correto tem tambeacutem uma dimensatildeo

inaceitaacutevel Certamente a tese de que o mundo (a natureza a realidade o

universo as coisas mesmas) existe ou possa existir em absoluta

independecircncia do espiacuterito respectivamente da linguagem enquanto tal se

autodestroacutei em sua enunciaccedilatildeo portanto natildeo eacute inteligiacutevel e por isto

inaceitaacutevel (PUNTEL 1990 p 271-72) Antes de tudo porque

inteligibilidade implica algo conceitual

Na realidade um tal mundo natildeo passa de um constructo

contraditoacuterio por um lado o mundo eacute aceito como algo independente de

qualquer elemento conceitual por outro lado se fala de mundo relaciona-

se com o mundo o que inclui elementos conceituais em muacuteltiplas formas

linguisticamente expressos A Keller defende a tese de que a palavra em

contraposiccedilatildeo a siacutelabas sem sentido caracteriza-se por ser uma sequecircncia

de sons com significado A partir daqui ele justifica a vinculaccedilatildeo entre

ldquoconceito e linguagemrdquo afirmando que jaacute que natildeo existe significado sem

uma sequecircncia de sons pelo menos pensada natildeo existe conceito sem uma

sequecircncia de sons sem palavra nenhum conceito (KELLER 1979 p93)

Esta tese antirrealista eacute para Puntel correta mas insuficiente porque

ele natildeo mostrou em que sentido exatamente a tese de uma realidade

concebida deste modo seria nua O argumento aqui eacute que questotildees a

respeito da dicotomia entre pensamentoatos

constituintesespiacuteritolinguagem e mundonaturezarealidadecoisa

28 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

mesma natildeo podem ser elucidadas sem a referecircncia clara a uma tese

ontoloacutegica central que eacute o pressuposto de qualquer empreendimento

teoacuterico o que possa ser aquela dimensatildeo que habitualmente se denomina

mundorealidadecoisa mesma ela eacute portadora de qualquer forma de uma

estruturaccedilatildeo imanente fundamental ou seja de uma expressabilidade

plena sem a qual a teoria seria privada de sentido

Puntel (2008 p 482) emprega o termo ldquoexpressabilidaderdquo como uma

espeacutecie de foacutermula abreviada de uma seacuterie de termos como

inteligibilidade conceituabilidade compreensibilidade explicabilidade

articulabilidade etc Portanto se o ser enquanto tal eacute expressaacutevel e eacute isto

que todo empreendimento teoacuterico em princiacutepio pressupotildee sob pena de ou

ser autocontraditoacuterio ou natildeo ter sentido entatildeo a esta universalidade

corresponde uma instacircncia de sua expressatildeo igualmente universal uma

instacircncia expressante a linguagem de modo que parafraseando Gadamer

se pode dizer ldquoo ser que pode ser entendido eacute o universo do discursordquo

(PUNTEL 2008 p 526-527) o que implica uma relaccedilatildeo essencial entre o

ser e a linguagem

Em contraposiccedilatildeo ao realismo metafiacutesico a posiccedilatildeo aqui eacute que a

expressabilidade do mundo pressuposta por nossos empreendimentos

teoacutericos natildeo eacute compreensiacutevel sem uma instacircncia que a exprima ou seja a

tese de um ldquomundo nurdquo sem qualquer relaccedilatildeo a algo como linguagem

espiacuterito conceitualidade etc numa palavra a tese de um mundo

enclausurado em si mesmo eacute uma impossibilidade metafiacutesica e por esta

razatildeo ininteligiacutevel

Quando se afirma [] a ldquoindependecircncia absolutardquo do mundo (do universo

etc) isso daacute a impressatildeo de que se estaacute afirmando algo natildeo inteligiacutevel a saber

um ldquomundo natildeo conceitualizadordquo ldquonatildeo estruturadordquo totalmente

incompreendido e incompreensiacutevel situado fora do alcance do compreensiacutevel

do articulaacutevel etc Esta eacute a aporia em que incorre o realista (metafiacutesico)

(PUNTEL 2008 p 498)

Portanto a linguagem diz o mundo ela eacute a instacircncia intransponiacutevel

da expressabilidade do mundo e por isto seu lugar na filosofia eacute

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 29

absolutamente central Partindo das teses da antropologia do iniacutecio do

seacuteculo XX A Keller apresenta esta problemaacutetica afirmando que o ser

humano enquanto ldquoser biologicamente carenterdquo natildeo estaacute contudo preso

por seus instintos a um meio ambiente especiacutefico mas eacute relacionado ao

mundo em seu todo Ele natildeo conhece contudo esta totalidade

simplesmente atraveacutes de um conjunto desordenado de impressotildees mas a

capta atraveacutes de esquemas aprendidos o que se pode denominar a

ldquoestrutura-enquantordquo porque ele sempre capta algo enquanto algo

determinado isto eacute linguisticamente delimitado Daiacute porque para o ser

humano a linguagem eacute tatildeo vitalmente necessaacuteria como o instinto para o

animal (KELLER 1979 p 121 129)

Em segundo lugar para Puntel Putnam como os antirrealistas em

geral sempre afirma que a realidade (o mundo o universo) se refere a

ldquonosso espiacuteritordquo aldquonossa linguagemrdquo Isto significa dizer que a maneira

como o mundo estaacute estruturadodepende da linguagem em que ele se

expressa e essa linguagem para ele eacute sempre ldquonossa linguagemrdquo Desta

forma nem tudo se pode dizer em cada linguagem trata-se aqui de uma

grandeza limitada Nossas visotildees do mundo satildeo sempre diferentemente

relativas agraves nossas diferentes linguagens Eacute por isto afirma Humboldt

(1903a p 14-15) que soacute atraveacutes da linguagem captamos o mundo seus

objetos propriedades e relaccedilotildees e a linguagem eacute sempre um todo uma

estrutura cujas partes devem ser consideradas em seu papel no todo

Realizamos isso no entanto sempre numa linguagem determinada

de uma forma determinada Cada linguagem efetiva uma transformaccedilatildeo

do mundo em linguagem (HUMBOLDT 1903b p 28) articula uma visatildeo

do mundo (Weltansicht) uma concepccedilatildeo peculiar do mundo e de sua

estrutura10 uma ontologia proacutepria Assim se a cultura engendra a

linguagem a linguagem entatildeo eacute frente ao indiviacuteduo uma potecircncia que

determina seu pensamento e sua experiecircncia configurando sua visatildeo do

mundo Desta forma cada linguagem eacute em si mesma uma individualidade

espiritual (HUMBOLDT 1903b p 151) que delimita o caraacuteter nacional de

10 A respeito das questotildees epistemoloacutegicas que marcam essa posiccedilatildeo cf Kutschera (1975 p 332 e ss)

30 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

tal forma que o ser humano natildeo fala como ele fala simplesmente porque

deseja falar assim mas porque tem que falar assim11 Nele a maneira de

falar eacute um constrangimento de sua natureza intelectual (HUMBOLDT

1903b p 127) Na perspectiva da concepccedilatildeo pragmaacutetica contudo nada haacute

aqui de necessaacuterio

[hellip] nada haacute de necessaacuterio no facto de usarmos os nossos sinais do modo como

os usamos isto eacute em vez de uma forma loacutegica que espelha a forma da

realidade a gramaacutetica eacute algo de arbitraacuterio [hellip] Natildeo se pode assim falar de uma

gramaacutetica errada mas tatildeo soacute de uma desadequaccedilatildeo de uma linguagem ou jogo

de linguagem em funccedilatildeo de determinadas necessidades praacuteticas [hellip] na

linguagem tal como no xadrez se seguirmos outras regras gramaticais

estaremos respectivamente ou a dizer outra coisa qualquer noutro sistema de

regras ou a jogar outro jogo (ZILHAtildeO 1993 p 205-206)

Aqui se manifesta uma conexatildeo muacutetua entre pensamento e palavra

(HUMBOLDT 1903a p 27) pensando a partir da consciecircncia Humboldt

defende o caraacuteter inseparaacutevel da consciecircncia e da linguagem humanas

uma vez que a linguagem eacute o oacutergatildeo que estrutura o pensamento Neste

sentido a linguagem natildeo eacute apenas meio de expressatildeo e comunicaccedilatildeo de

conteuacutedos de pensamento portanto de uma verdade jaacute articulada sem ela

mas antes pensamento e linguagem instituem uma unidade indissoluacutevel

(HUMBOLDT 1903b p 22 ss)12

O grande problema aqui e que toca o cerne das filosofias da

subjetividade inclusive as que fizeram a reviravolta linguiacutestica eacute o

seguinte estas afirmaccedilotildees levam a estabelecer a subjetividade como

instacircncia doadora de sentido a tudo A questatildeo se potildee igualmente numa

filosofia pragmaacutetica jaacute que o elemento central da pragmaacutetica (OLIVEIRA

2012 p 87-106) consiste na consideraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre linguagem e

falantes ou da linguagem na perspectiva da maneira como os falantes a

usam o que significa que aqui eacute determinante a accedilatildeo dos falantes Nesse

11 Uma tese que foi desenvolvida por Sapir (1929 p 209) ldquoHuman beings do not live in the objective world alone not alone in the world of social activity as ordinarily understood but are very much at the mercy of the particular language which has become the medium of expression for their societyrdquo

12 Cf Sellars (1973 p 82) ldquoThinking at the distinctly human level [hellip] is essentially verbal activityrdquo

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 31

sentido a passagem da subjetividade para a intersubjetividade proposta

como mudanccedila de paradigma na realidade natildeo resulta na superaccedilatildeo do

caraacuteter determinante da subjetividade na filosofia ou seja da postura em

que a subjetividade eacute a instacircncia teoacuterica que determina tudo

Ora noacutes somos entes puramente contingentes entatildeo

inevitavelmente se levanta a questatildeo ldquoComo poderiam entatildeo os lsquoentes

humanosrsquo (mesmo em sua totalidade como quer que esta seja pensada)

ser tomados como lsquoparacircmetrorsquo para o que eacute o mundordquo (PUNTEL 2008

p 482-483) Como nesta postura natildeo se pode falar de forma coerente do

grande mundo uma soluccedilatildeo razoaacutevel poderia ser reduzir a grande

dimensatildeo do mundo ao nosso mundo entendido como nosso mundo

vivido com a consequecircncia de ter que avaliar como sem sentido ou como

ficccedilatildeo tudo aquilo que natildeo for compatiacutevel com este mundo como por

exemplo muito do que eacute elaborado pelas ciecircncias

A implausibilidade desta posiccedilatildeo aponta para a verdadeira questatildeo

neste contexto como entender a linguagem (espiacuterito) a fim de que se

legitime a afirmaccedilatildeo de que natildeo tem sentido falar de um mundo sem

nenhuma relaccedilatildeo a ela Esta eacute a questatildeo irrefutaacutevel em primeiro lugar

para a articulaccedilatildeo de uma teoria filosoacutefica precisamente enquanto uma

atividade teoacuterica Numa palavra trata-se antes de tudo da determinaccedilatildeo

de um criteacuterio universal de teoricidade e justamente de um criteacuterio

linguiacutestico pois a linguagem eacute o primeiro pressuposto de uma teoria que

se compotildee de sentenccedilas especificamente de sentenccedilas teoacutericas em

segundo lugar para o enfrentamento da questatildeo do lugar central atribuiacutedo

agrave subjetividade pela filosofia moderna A resposta a esta questatildeo implica

uma virada no pensamento moderno que vai justificar falar de uma

despontencializaccedilatildeo da subjetividade

A primeira etapa nesta direccedilatildeo consiste para Puntel na diferenciaccedilatildeo

entre duas formas diferentes de compreensatildeo da linguagem Quando

familiarmente nos referimos a signos linguiacutesticos entatildeo o ser humano

com sua histoacuteria obras e contingecircncias se revela seu autor e nesta

32 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

perspectiva haacute razatildeo para falar de ldquonossardquo linguagem uma vez que sem o

ser humano natildeo se pode falar de siacutembolos linguiacutesticos bem determinados

Eacute justamente nesse sentido que A Keller (1979 p 42) entende a

linguagem como um sistema de formas de proferimentos produzido pelo

ser humano que para expressar-se para entender-se para organizar seus

conhecimentos e comunicaacute-los e para defrontar-se de diferentes formas

com a realidade Numa palavra na medida em que a linguagem se

constitui de siacutembolos linguiacutesticos assim compreendidos ela eacute uma

produccedilatildeo histoacuterico-contingente de sujeitos humanos de tal forma que a

referecircncia a estes sujeitos eacute ineliminaacutevel Nisto tecircm razatildeo os pragmaacuteticos

aqui a accedilatildeo humana eacute simplesmente decisiva ldquoisto eacute o modo particular

atraveacutes do qual intervimos na realidaderdquo (ZILHAtildeO 1993 p 207) embora

se deva afirmar tambeacutem como o faz Kutschera que a linguagem eacute natildeo soacute

uma criaccedilatildeo da comunidade e da cultura humanas mas igualmente sua

condiccedilatildeo de possibilidade Nela com uma quantidade finita de expressotildees

e uma quantidade finita de regras gramaticais pode-se comunicar uma

quantidade infinita de informaccedilotildees que possibilitam a forma determinada

de comunicaccedilatildeo que gera a comunidade e a cultura A linguagem eacute assim

a pressuposiccedilatildeo da qualidade especificamente humana de uma

comunidade (KUTSCHERA 1998 p 105 ss)

No entanto a linguagem entendida no sentido maximal ou seja

como linguagem absolutamente universal natildeo eacute um produto humano

mas jaacute estaacute dada com o mundo entendido como ser em seu todo Ela eacute a

instacircncia da expressabilidade universal enquanto esfera correlata agrave

expressabilidade do ser enquanto tal

ldquoexpressabilidaderdquo eacute uma relaccedilatildeo que soacute eacute explicaacutevel e desse modo

compreensiacutevel se tambeacutem seu reverso for reconhecido X eacute expressaacutevel se e

somente se houver um Y que eacute a instacircncia expressante de X [hellip] a

expressabilidade universal do mundo tem como pressuposto ou [hellip] como

implicaccedilatildeo uma instacircncia expressante universal [hellip] uma linguagem

(PUNTEL 2008 p 501)

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 33

Isto significa dizer que o relacionamento com a realidade soacute ocorre

linguisticamente Numa palavra a expressabilidade universal implica uma

instacircncia expressante universal uma linguagem universal que

consequentemente tem que ter um caraacuteter diferente da ldquonossardquo

linguagem Neste sentido ela natildeo eacute um produto humano puramente

contingente mas uma estruturalidade imanente ou seja um momento

estrutural do mundo entendido como ser em seu todo e dessa maneira ela

jaacute estaacute dada com o mundo em sentido do todo da realidade Enquanto tal

ela eacute um sistema semioacutetico objetivo (PUNTEL 1990 p 135)

O ser na medida em que eacute expressaacutevel enquanto tal possui uma

relaccedilatildeo imanente essencial com a linguagem que eacute precisamente a

instacircncia correlata a esta expressabilidade universal uma caracteriacutestica

imanente do ser em si mesmo Neste contexto linguagem eacute entendida

como um sistema semioacutetico abstrato que conteacutem uma quantidade

inumeraacutevel de expressotildees Este eacute para Puntel o ldquolocus originariusrdquo da

compreensatildeo da linguagem ou melhor da linguisticidade Ele denomina

por esta razatildeo a linguagem assim entendida como ldquolinguagem originaacuteriardquo

e eacute ela que ocupa a posiccedilatildeo primordial na filosofia

Assim a linguagem enquanto linguisticidade do ser enquanto tal eacute a

linguagem absolutamente universal e designa precisamente o lado inverso

da expressabilidade universal do ser em seu todo Esta linguagem assim

entendida eacute coextensiva ao ser em seu todo pois o mundo (o universo o

ser) em seu todo eacute expressaacutevel o pressuposto ineliminaacutevel de qualquer

passo teoacuterico Nada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser articulado em

forma de linguagem

Neste sentido a expressabilidade eacute um momento estrutural imanente

do mundoe desse modo coextensional com o mundo como o eacute

consequentemente a linguagem Isso significa dizer que todo conteuacutedo

conceitual eacute articulado no seio da linguagem e eacute precisamente nesse

sentido que a linguagem emerge como meio indispensaacutevel da expressatildeo

ou da exposiccedilatildeo no sentido de que conteuacutedos conceituais natildeo existem sem

sua articulaccedilatildeo linguiacutestica

34 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

[hellip] linguagem constitui meio indispensaacutevel da expressatildeo ou exposiccedilatildeo no

seguinte sentido se compreendidos adequada e rigorosamente os assim

chamados ldquoconteuacutedos conceituaisrdquo natildeo existem sem sua articulaccedilatildeo (ou

articulabilidade) linguiacutestica (PUNTEL 2008 p 226)

Eacute nessa oacutetica que tem sentido a afirmaccedilatildeo de Kutschera articulada na

linguagem da semacircntica e da ontologia composicionais natildeo conhecemos

o mundo primeiro no pensamento e depois exprimimos o conhecido na

linguagem mas captamos a realidade os objetos suas diferenccedilas

propriedades e relaccedilotildees em forma linguiacutestica Pensamento e linguagem se

desenvolvem sempre juntos os pensamentos soacute se exprimem em forma

linguiacutestica A linguagem eacute o ldquomeacutediumrdquo do pensamento (KUTSCHERA

1998 p 111) Uma consequecircncia primeira fundamental aqui eacute que eacute na

articulaccedilatildeo linguiacutestica que eacute possiacutevel apreender o que eacute o conteuacutedo

conceitual como ele eacute estruturado

Quando se entende poreacutem linguagem como siacutembolos linguiacutesticos

entra em jogo o ser humano com sua histoacuteria ou seja aqui a linguagem eacute

produccedilatildeo humana e eacute isto que explica a contingecircncia histoacuterica dessas

linguagens13 Ela entatildeo se revela como a pressuposiccedilatildeo na expressatildeo de

V Kutschera (1998 p 113) de todas as nossas produccedilotildees culturais de

nossa autocompreensatildeo de nossa autoconsciecircncia e de nosso pensamento

Mas quando se leva em consideraccedilatildeo a estruturalidade semacircntico-

ontoloacutegica da linguagem entatildeo ela eacute o resultado da expressabilidade da

proacutepria realidade e ldquofalantes e sujeitos satildeo determinados e entendidos a

partir da linguagem e natildeo a linguagem a partir dos falantes ou sujeitosrdquo

(PUNTEL 2008 p 130)

Entendendo assim a linguagem no sentido maximal ou seja como

um sistema semioacutetico composto de uma quantidade infinita natildeo

enumeraacutevel de expressotildees isto eacute quando a linguagem eacute entendida como

13 Cf Zilhatildeo (1993 p 206) ldquoA analogia adequada que nos permite compreender a ligaccedilatildeo que Wittgenstein entendia existir entre linguagem ou pensamento e mundo eacute-nos dada pela consideraccedilatildeo das ferramentas que usamos Se soubermos olhar para elas poderemos ficar a saber tudo o que haacute para saber tanto acerca da lsquoformarsquo do mundo como do comportamento e da vida de quem as usa [hellip]rdquo

Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 35

o reverso da expressabilidade do mundo entatildeo a fala sobre o mundo (a

realidade) a partir do interior da linguagem de nenhuma forma implica

sua reduccedilatildeo ao mundo da nossa linguagem e com isto cai tambeacutem por

terra a dicotomia ldquoem si e para noacutesrdquo Uma primeira consequecircncia desta

tese eacute que natildeo pode haver entidades excluiacutedas da dimensatildeo da linguagem

pois isto implicaria que tais entidades natildeo seriam expressaacuteveis Assim a

quantidade de sentenccedilas deve corresponder pelo menos ao nuacutemero de

entidades ou de fatos do mundo

O caraacuteter unilateral da posiccedilatildeo antirrealista se mostra justamente

nareduccedilatildeo da linguagem a uma criaccedilatildeo humana e consequentemente agrave

ldquonossa linguagemrdquo no desconhecimento total da linguagem maximal ou

absolutamente universal Isto significa dizer que falta aqui uma visatildeo para

o ldquotodordquo do fenocircmeno da linguagem e consequentemente a compreensatildeo

de que ldquonossardquo linguagem eacute apenas um segmento de uma linguagem

muito mais abrangente ou seja de um sistema semioacutetico composto de

uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees que eacute o ldquoinversordquo

da expressabilidade universal do ser em seu todo Nesse sentido a

linguagem possui um poder de expressatildeo muitiacutessimo maior do que a

linguagem entendida como sistema semioacutetico de comunicaccedilatildeo

Na consideraccedilatildeo da linguagem maximal a referecircncia agrave subjetividade

se torna simplesmente supeacuterflua uma tese que Apel (1973 p 240 ss) jaacute vecirc

presente na posiccedilatildeo de Wittgenstein Ele defende a tese de que o Tractatus

de Wittgenstein eacute uma filosofia transcendental sem sujeito uma vez que

Wittgenstein identifica o sujeito com a operaccedilatildeo formal constitutiva da

linguagem Com isto a referecircncia ao sujeito se torna supeacuterflua Em

contraposiccedilatildeo a esta posiccedilatildeo Apel defende a tese do caraacuteter irrecusaacutevel

pelo menos implicitamente de uma autorreferecircncia da linguagem a si

mesma que eacute depois da reviravolta linguiacutestica a nova forma de auto-

reflexividade Com isto se daacute a referecircncia a um sujeito individual como

suporte da forma loacutegica a fim de que ela possa exercer sua funccedilatildeo

transcendental Portanto a referecircncia ao sujeito eacute ineliminaacutevel

36 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Puntel (2008 p 129) denomina a linguagem maximal que de

nenhuma forma eacute tematizada pelas diferentes formas de filosofia

antirrealista como a de Apel de originaacuteria ou antes o ldquolocus originariusrdquo

de compreensatildeo da linguagem ldquono sentido de sistema semioacutetico que se

baseia na ideia da expressabilidade universal do mundo (do universo do

ser)rdquo Neste contexto uma observaccedilatildeo eacute absolutamente fundamental

a linguagem filosoacutefica e cientiacutefica infinita natildeo enumeraacutevel natildeo eacute compreendida

como se fosse uma grandeza ldquomanipulaacutevelrdquo ela eacute antes uma espeacutecie de ideia

reguladora ou emolduradora em qualquer caso uma assunccedilatildeo metafiacutesica cuja

funccedilatildeo principal consiste em desempenhar um importante papel explanatoacuterio

(PUNTEL 2008 p 522)

Uma pergunta que emerge neste contexto inevitavelmente eacute o que eacute

mesmo essa linguagem maximal essa linguagem universal Para Puntel

(2008 p 527) se tem que dizer em primeiro lugar que ela por um lado

natildeo existe em lugar algum mas por outro lado existe em toda parte no

sentido de que ldquonada existe que natildeo seja ou natildeo possa ser lsquoarticulado em

forma de linguagemrsquordquo Ocorre que o falante escolhe um certo ldquosegmentordquo

desta linguagem para se adequar a seus objetivos poreacutem este segmento

de nenhuma forma se identifica simplesmente com a totalidade da

linguagem o que tambeacutem vale para uma linguagem artificial que conteacutem

uma quantidade infinita natildeo enumeraacutevel de expressotildees direcionadas ao

objetivo da exposiccedilatildeo e natildeo da comunicaccedilatildeo Eacute esta a razatildeo porque se fala

aqui de linguagem maximal e ela natildeo soacute constitui o lugar originaacuterio da

compreensatildeo da linguagem mas soacute a partir daqui se pode compreender

adequadamente o que significa propriamente falar de centralidade da

linguagem na filosofia

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KELLER A Sprachphilosophie FreiburgMuumlnchen Verlag Karl Alber 1979

KUTSCHERA F v Sprachphilosophie 2 ed Muumlnchen Wilhelm Fink Verlag 1975

_____ Die teile der philosophie und das ganze der wirklichkeit BerlinNew York W

de Gruyter 1998

McDOWELL J Mente e mundo Aparecida Ideias amp Letras 2005

38 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

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OLIVEIRA M A de Subjektivitaumlt und vermittlung studien zur entwicklung des

transzendentalen denkens bei I Kant E Husserl und H Wagner Muumlnchen Wilhelm

Fink Verlag 1973

_____ A centralidade da intersubjetividade uma leitura pragmaacutetica da filosofia

transcendental em J Habermas In _____ Antropologia filosoacutefica

contemporacircnea subjetividade e inversatildeo teoacuterica Satildeo Paulo Paulus 2012

_____ A ontologia em debate no pensamento contemporacircneo Satildeo Paulo Paulus 2014

_____ A reviravolta linguiacutestico-pragmaacutetica na filosofia contemporacircnea4 ed Satildeo

Paulo Loyola 2015

PORTA M A G Platonismo e intencionalidad a propoacutesito de Bernard Bolzano (2ordf Parte)

Siacutentese v 30 n 96 p 85-106 2003

PUNTEL L B Grundlagen einer theorie der wahrheit BerlinNew York de Gruyter

1990

_____ Estrutura e ser um quadro referencial teoacuterico para uma filosofia sistemaacutetica Satildeo

Leopoldo Editora Unisinos 2008

_____ Ser e Deus um enfoque sistemaacutetico em confronto com M Heidegger Eacute Leacutevinas e

J-L Marion Satildeo Leopoldo Editora Unisinos 2011

PUTNAM HVernunft wahreit und geschichte Frankfurt am Main Suhrkamp 1990

_____ Auf messers schneide interner realismus und relativismus In Von einem

realistischen standpunkt schriften zu sprache und wirklichkeit Ed e trad por V

C Muumlller Reinbek bei Hamburg Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH 1993

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Papers vol 3 Cambridge Cambridge University Press 1996

QUINE W V O The pragmatists` place in empiricism In MULVANEY R J amp ZELTNER

P M (Orgs) Pragmatism its sources and prospects University of South California

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Manfredo Arauacutejo de Oliveira | 39

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SELLARS W Conceptual change In PEARCE G amp MAYNARD P (Orgs) Conceptual

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_____ Empirismo e filosofia da mente Com uma introduccedilatildeo de Richard Rorty e um guia

de estudos de Robert Brandom Petroacutepolis Vozes 2003

SIEMEK M J Husserl e a heranccedila da filosofia transcendental Siacutentese v 28 n 91 p 189-

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1967

_____ Vorlesungen zur einfuumlhrung in die sprachanalytische Philosophie Frankfurt

am Main Suhrkamp 1976

ZILHAtildeO A Linguagem da filosofia e filosofia da linguagem estudos sobre

Wittgenstein Lisboa Ediccedilotildees Colibri 1993

2

Encheiriacutedion Capiacutetulo I

Traduccedilotildees e Comentaacuterios

Aldo Dinucci 1

Alfredo Julien 2

Antonio Carlos Tarquiacutenio 3

O Encheiriacutedion termo que em grego significa ldquoadaga punhal arma

portaacutetil ou livro portaacutetil manualrdquo foi composto por Luacutecio Flaacutevio Arriano

de Nicomeacutedia4 tomando por base suas compilaccedilotildees das aulas de Epicteto

Consistindo em um conjunto de apotegmas para que o seguidor do

Estoicismo tenha sempre ao alcance da matildeo os princiacutepios para enfrentar

as dificuldades da vida e vencecirc-las o Encheiriacutedion tornou ceacutelebre o nome

de Epicteto Seguem breves mas importantes traduccedilotildees e comentaacuterios

sobre o primeiro capiacutetulo do Encheiriacutedion de Epicteto A primeira traduccedilatildeo

comentada foi realizada por Aldo Dinucci e Alfredo Julien pesquisadores

que dedicaram alguns anos agrave traduccedilatildeo da obra culminando com uma

ediccedilatildeo em Coimbra da mesma pelos Classica Digitalia A segunda por

Antonio Carlos Tarquiacutenio filoacutesofo radicado em Satildeo Paulo que tem se

dedicado intensamente nas uacuteltimas deacutecadas ao estudo de Epicteto

publicando em 2017 o livro Uma filosofia do desapego a askesis de

desapropriaccedilatildeo epictetiana agrave luz da katharsis do Feacutedon de Platatildeo resultado

1 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

2 Professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Doutor em Histoacuteria pela Universidade de Satildeo Paulo (USP)

3 Doutor em Filosofia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP)

4 Ca 86-160

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 41

de suas pesquisas de doutorado sobre o velho de Nicoacutepolis Imediatamente

abaixo temos o texto em grego estabelecido pela primeira vez por Boter

em 1999

[11] Τῶν ὄντων τὰ μέν ἐστιν ἐφ ἡμῖν τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἐφ ἡμῖν μὲν

ὑπόληψις ὁρμή ὄρεξις ἔκκλισις καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα ἡμέτερα ἔργα οὐκ ἐφ

ἡμῖν δὲ τὸ σῶμα ἡ κτῆσις δόξαι ἀρχαὶ καὶ ἑνὶ λόγῳ ὅσα οὐχ ἡμέτερα

ἔργα[12]καὶ τὰ μὲν ἐφ ἡμῖν ἐστι φύσει ἐλεύθερα ἀκώλυτα παραπόδιστα

τὰ δὲ οὐκ ἐφ ἡμῖν ἀσθενῆ δοῦλα κωλυτά ἀλλότρια[13] μέμνησο οὖν ὅτι

ἐὰν τὰ φύσει δοῦλα ἐλεύθερα οἰηθῇς καὶ τὰ ἀλλότρια ἴδια ἐμποδισθήσῃ

πενθήσεις ταραχθήσῃ μέμψῃ καὶ θεοὺς καὶ ἀνθρώπους ἐὰν δὲ τὸ σὸν

μόνον οἰηθῇς σὸν εἶναι τὸ δὲ ἀλλότριον ὥσπερ ἐστίν ἀλλότριον οὐδείς σε

ἀναγκάσει οὐδέποτε οὐδείς σε κωλύσει οὐ μέμψῃ οὐδένα οὐκ ἐγκαλέσεις

τινί ἄκων πράξεις οὐδὲ ἕν οὐδείς σε βλάψει ἐχθρὸν οὐχ ἕξεις οὐδὲ γὰρ

βλαβερόν τι πείσῃ [14] τηλικούτων οὖν ἐφιέμενος μέμνησο ὅτι οὐ δεῖ

μετρίως κεκινημένον ἅπτεσθαι αὐτῶν ἀλλὰ τὰ μὲν ἀφιέναι παντελῶς τὰ δ

ὑπερτίθεσθαι πρὸς τὸ παρόν ἐὰν δὲ καὶ ταῦτ ἐθέλῃς καὶ ἄρχειν καὶ

πλουτεῖν τυχὸν μὲν οὐδ αὐτῶν τούτων τεύξῃ διὰ τὸ καὶ τῶν προτέρων

ἐφίεσθαι πάντως γε μὴν ἐκείνων ἀποτεύξη δι ὧν μόνων ἐλευθερία καὶ

εὐδαιμονία περιγίνεται [15] εὐθὺς οὖν πάσῃ φαντασίᾳ τραχείᾳ μελέτα

ἐπιλέγειν ὅτι lsquoφαντασία εἶ καὶ οὐ πάντως τὸ φαινόμενονrsquo ἔπειτα ἐξέταζε

αὐτὴν καὶ δοκίμαζε τοῖς κανόσι τούτοις οἷς ἔχεις πρώτῳ δὲ τούτῳ καὶ

μάλιστα πότερον περὶ τὰ ἐφ ἡμῖν ἐστιν ἢ περὶ τὰ οὐκ ἐφ ἡμῖν κἂν περί τι

τῶν οὐκ ἐφ ἡμῖν ᾖ πρόχειρον ἔστω τὸ διότι lsquoοὐδὲν πρὸς ἐμέrsquo

Encheiriacutedion Capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Aldo Dinucci e

Alfredo Julien)

[11] Das coisas existentes algumas satildeo encargos nossos outras natildeo Satildeo

encargos nossos o juiacutezo o impulso o desejo a repulsa ndash em suma tudo quanto

seja accedilatildeo nossa Natildeo satildeo encargos nossos o corpo as posses a reputaccedilatildeo os

cargos puacuteblicos ndash em suma tudo quanto natildeo seja accedilatildeo nossa [12] Por

natureza as coisas que satildeo encargos nossos satildeo livres5 desobstruiacutedas6 sem

5 Eleutheros livre por oposiccedilatildeo a escravo Para Epicteto quem deseja o que natildeo eacute encargo seu necessariamente torna-se escravo pois voluntariamente submete-se aos que podem proporcionar-lhe ou impedir-lhe o acesso agrave coisa desejada (cf Diatribes I 419)

6 Akolytos adjetivo verbal de privaccedilatildeo da accedilatildeo relacionada ao verbo kolyo que significa ldquoafastar desviarrdquo adquirindo o sentido de ldquoimpedirrdquo Bailly (2000) apresenta o substantivo neutro to kolyon com o significado de ldquoobstaacuteculordquo

42 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

entraves7 As que natildeo satildeo encargos nossos satildeo deacutebeis8 escravas obstruiacutedas9

de outrem10 [13] Lembra entatildeo que se pensares11 livres as coisas escravas por

natureza e tuas as de outrem tu te faraacutes entraves12 tu te afligiraacutes13 tu te

inquietaraacutes14 censuraraacutes tanto os deuses como os homens Mas se pensares

teu unicamente o que eacute teu e o que eacute de outrem como o eacute de outrem ningueacutem

jamais te constrangeraacute15 ningueacutem te faraacute obstaacuteculos natildeo censuraraacutes

ningueacutem nem acusaraacutes quem quer que seja de modo algum agiraacutes

constrangido ningueacutem te causaraacute dano natildeo teraacutes inimigos pois natildeo seraacutes

persuadido em relaccedilatildeo a nada nocivo [14] Entatildeo almejando coisas de

tamanha importacircncia lembra que eacute preciso que natildeo te empenhes de modo

comedido mas que abandones completamente algumas coisas e por ora

deixes outras para depois Mas se quiseres aquelas coisas e tambeacutem ter cargos

e ser rico talvez natildeo obtenhas estas duas uacuteltimas por tambeacutem buscar as

primeiras e absolutamente natildeo atingiraacutes aquelas coisas por meio das

quaisunicamente resultam a liberdade e a felicidade16 [15] Entatildeo pratica dizer

prontamente a toda representaccedilatildeo bruta17 ldquoEacutes representaccedilatildeo e de modo

algum lteacutesgt o que se afigurardquo18 Em seguida examina-a e testa-a com essas

mesmas regras que possuis em primeiro lugar e principalmente se eacute sobre

ldquoimpedimentordquo Assim a-kolytos refere-se a algo para o que natildeo haacute impedimento quanto agrave sua obtenccedilatildeo sendo portanto ldquodesimpedidordquo

7 Aparapodistos optamos traduzir o termo por ldquosem entravesrdquo pois trata-se de um adjetivo verbal que nega a accedilatildeo relacionada ao verbo podizo que significa ldquosujeitar os peacutes com travasrdquo referindo-se principalmente a armadilhas para animais Cf o substantivo feminino podistra que pode significar tanto ldquoarmadilha que prende pelos peacutesrdquo (Antologia Palatina 6 107) quanto ldquoteia de aranhardquo (Antologia Palatina 9 372)

8 Asthene privado de forccedila no sentido de ldquoforccedila fiacutesica vigorrdquo

9 Kolytos Cf nota acima sobre akolutos

10 Arriano assim relaciona os adjetivos empregados para qualificar o que eacute encargo nosso e o que natildeo eacute o que eacute encargo nosso eacute livre desobstruiacutedo sem entraves o que natildeo eacute encargo nosso eacute deacutebil escravo de outrem

11 Oio ldquopensarrdquo no sentido de ldquopresumirrdquo referindo-se a coisas incertas ndash daiacute ldquopressentir crer estimarrdquo

12 Empodizo significa literalmente ldquometer os peacutes em uma armadilhardquo

13 Pentheo verbo relacionado ao substantivo to penthos que siginifica ldquodor afliccedilatildeordquo

14 Tarasso significa primariamente ldquoremexerrdquo ldquoagitarrdquo no sentido concreto de preparar um medicamento agitando os ingredientes que o compotildeem

15 Anankazo ldquoforccedilarrdquo ldquoconstrangerrdquo

16 Felicidade traduz eudaimoniacutea No contexto do paganismo grego daimoniacuteos eacute um adjetivo que qualifica tudo o que proveacutem da divindade ou eacute enviado por um deus Associado ao prefixo ldquoeṷrdquo (ldquobemrdquo no sentido de coisas boas) esse vocaacutebulo tem significaccedilatildeo proacutexima agrave de ldquobem-aventuranccedilardquo na acepccedilatildeo cristatilde

17 Trata-se do adjetivo trachys apresentado por Bailly (2000) com o significado de ldquoruderdquo adquirindo diversos sentidos dependendo do substantivo ao qual esteja ligado ldquoAacutesperordquo ao se tratar de uma pedra ldquopedregosordquo ao se referir a um rio ou a um terreno ldquoroucardquo ao qualificar um tipo voz ldquogrosseiro duro cruel violento e irasciacutevelrdquo ao se referir ao comportamento de algueacutem Simpliacutecio (Comentaacuterio ao Encheiriacutedion de Epicteto V 15) observa que tal representaccedilatildeo eacute chamada tracheiacutea (dura bruta) por ser contraacuteria agrave razatildeo tornando ldquoaacutesperardquo a vida Oldfather (2000) e White (1983) traduzem esse adjetivo por ldquoharshrdquo Gourinat (1998) por ldquopeacuteniblerdquo Garciacutea (1995) por ldquobrutardquo

18 Phainoacutemenon ldquoo que estaacute se manifestando ou se mostrandordquo particiacutepio presente meacutedio do verbo phaaino

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 43

coisas que satildeo encargos nossos ou natildeo E caso esteja entre as coisas que natildeo

sejam encargos nossos tem agrave matildeo que ldquoNada eacute para mimrdquo

A expressatildeo ephi hemin que ora traduzimos por ldquosob nosso encargordquo

ou ldquoencargo nossordquo natildeo possui equivalente direto que possa dar conta de

seu significado Literalmente poderiacuteamos traduzi-la por ldquoalgumas coisas

estatildeo sobre noacutes outras natildeordquo Henrique Murachco traduz expressatildeo

semelhante (to epi emoi) por ldquono que estaacute sobre mimrdquo no sentido ldquode

quanto a mimrdquo ldquono que me concernerdquo (2001 p 573) No caso do

Encheiridion de Epicteto a traduccedilatildeo poderia ser ldquoalgumas coisas nos

concernem outras natildeordquo Bailly (2000) citando a mesma expressatildeo

acentua a ideia de dependecircncia e de poder que ela expressa traduzindo-a

por ldquoautant qursquoil est em mon pouvoirrdquo enfatizando assim a ideia de

controle (cf Xenofonte Ciropeacutedia 54 11) A expressatildeo possui imagem

concreta e clara referindo-se a algo que eacute colocado sobre noacutes sustentado

por noacutes pois nos encontramos embaixo fornecendo seu apoio A opccedilatildeo

por ldquoencargo nossordquo acentua a ideia de responsabilidade que temos quanto

a isso que estaacute sobre noacutes (e do que somos a causa primaacuteria)

A expressatildeo eacute diferentemente vertida por diferentes tradutores

Oldfather a traduz por ldquothings under our controlrdquo (2000) White por

ldquowhat is up to usrdquo (1983) Gourinat por ldquochoses qui deacutependent de nousrdquo

(1998)

Como dissemos epi expressa uma relaccedilatildeo de dependecircncia Satildeo

portanto coisas que dependem de noacutes Como Epicteto diraacute na continuaccedilatildeo

do texto eacute preciso que nos concentremos sobre as coisas que estatildeo sob

nosso controle em trecircs sentidos Em relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo (phantasia)

retirando dela todo juiacutezo (hypolepsis) equivocado a partir da

compreensatildeo de que nada que natildeo depende de noacutes eacute por si mesmo um

bem ou um mal Em relaccedilatildeo ao impulso (horme) uma vez cientes de que

produzimos nosso bem e nosso mal eacute preciso moderar os impulsos e

encontrar o modo de agir segundo a natureza Em relaccedilatildeo ao desejo

(orexis) e agrave repulsa (ekklisis) partindo mais uma vez da compreensatildeo de

que nada externo eacute por si soacute um bem ou um mal eacute preciso que o desejo e

44 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

a repulsa se apliquem natildeo mais agraves coisas que natildeo dependem de noacutes

(sendo-nos necessaacuterio desejaacute-las como satildeo) mas agraves coisas que estatildeo sob

nosso controle

Traduzimos por juiacutezo o vocaacutebulo grego hypolepsis que eacute substantivo

relacionado ao verbo hypolambano que expressa a ideia de sucessatildeo e de

substituiccedilatildeo adquirindo os sentidos de ldquoreacuteplica resposta concepccedilatildeo e

pensamentordquo O vocaacutebulo ldquojuiacutezordquo empregado aqui para traduzir essa

noccedilatildeo deve ser entendido como um parecer ou uma opiniatildeo que orienta

nossa conduta diante de um acontecimento que se nos apresenta Vale a

pena ressaltar que no contexto deste capiacutetulo o vocaacutebulo estaacute associado

ao verbo oiocedil traduzido aqui por ldquopensarrdquo No capiacutetulo 20 do Encheiriacutedion

apresenta-se uma associaccedilatildeo clara entre hypolepsis e dogma (opiniatildeo) No

capiacutetulo 5 apresenta-se tambeacutem uma associaccedilatildeo entre dogma (opiniatildeo) e

phantasiacutea (representaccedilatildeo) por meio do verbo phainomai (afigurar-se) Eacute

interessante notar que o juiacutezo nesses exemplos envolve a ponderaccedilatildeo ndash

como a consideraccedilatildeo sobre se algo eacute livre ou escravo - mas tambeacutem

sentimentos relacionados agraves nossas recusas medos e desejos Oldfather

(2000) traduz hypolepsis por ldquoconceptionrdquo White (1993) por ldquoopinionrdquo

Gourinat (1998) por ldquojugementrdquo e Garciacutea (1995) por ldquojuiciordquo

A noccedilatildeo de phantasiacutea que ora traduzimos por representaccedilatildeo eacute de

fundamental importacircncia para a compreensatildeo da filosofia estoica por

relacionar-se tanto a questotildees loacutegicas quanto epistemoloacutegicas e eacuteticas

Embora tanto Cleanto quanto Crisipo considerem a phantasiacutea uma

modificaccedilatildeo da faculdade diretriz eles divergem ao explicar essa mudanccedila

Para Lesses (1998 p 6) Crisipo parece criticar Cleanto por aceitar uma

concepccedilatildeo ingecircnua de representaccedilatildeo mental segundo a qual as phantasiacuteai

perceptivas satildeo coacutepias de qualidades que os objetos representados

possuem (cf Dioacutegenes Laeacutercio 7504) Aleacutem disso Annas (1991 p 74-75)

compreende estar implicado nas observaccedilotildees de Crisipo que as phantasiacuteai

satildeo proposicionais ou articulaacuteveis em forma linguiacutestica Ora quanto agraves

alternativas para traduzirmos o termo phantasiacutea parece-nos que

impressatildeo estaacute mais proacuteximo de Cleanto que de Crisipo pois a metaacutefora

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 45

utilizada por Cleanto para introduzir o conceito em questatildeo eacute justamente

agrave da impressatildeo sobre a cera metaacutefora que eacute criticada por Crisipo por seu

caraacuteter imageacutetico A concepccedilatildeo de Crisipo sobre a phantasiacutea ndash adotada

desde entatildeo pelo Estoicismo ndash eacute que ela tem duas facetas uma sensiacutevel

(pois como dissemos trata-se de uma modificaccedilatildeo da faculdade diretriz)

e outra virtual (pois a essa modificaccedilatildeo eacute afixado um juiacutezo que descreve e

avalia aquilo que efetuou a modificaccedilatildeo) Assim sendo parece-nos que a

palavra ldquorepresentaccedilatildeordquo (que possui de acordo com o Aureacutelio o sentido

filosoacutefico geral de ldquoconteuacutedo concreto apreendido pelos sentidos pela

imaginaccedilatildeo pela memoacuteria ou pelo pensamentordquo) serve para o nosso

propoacutesito e por ela traduziremos phantasiacutea

Traduzimos por lsquoimpulsorsquo o termo grego horme que eacute substantivo

relacionado ao verbo ornumi (ldquolevantar-serdquo) designando o primeiro bote

de um assalto ou ataque adquirindo os sentidos de elatilde e de impulso Entre

as traduccedilotildees consultadas para este trabalho a uacutenica exceccedilatildeo a ldquoimpulsordquo

como vocaacutebulo para traduzir horme eacute a opccedilatildeo de Oldfather (2000) que

emprega ldquochoicerdquo (ldquoescolhardquo) Horme deve ser entendido no contexto do

pensamento epictetiano como o iacutempeto para a accedilatildeo a tendecircncia para agir

desta ou daquela maneira diante de determinada coisa

Traduzimos por lsquodesejorsquo o termo grego orexis que eacute o nome da accedilatildeo

do verbo orego que apresenta o significado de ldquoestender ou tender na

direccedilatildeo de algordquo (por exemplo estender as matildeos para o ceacuteu ou para pedir

algo a algueacutem) de onde ldquodesejordquo ldquoapetiterdquo Eacute uma palavra difiacutecil para ser

transportada ao contexto cultural presente Embora sua traduccedilatildeo por

ldquodesejordquo seja corrente eacute preciso ter cautela com ela pois natildeo se deve

entender orexis no sentido do emaranhado de pulsotildees originadas em niacutevel

inconsciente que caracteriza a visatildeo moderna da subjetividade humana

Orexis descreve a accedilatildeo de tender em direccedilatildeo a algo Uma forma de

apreender da maneira mais precisa possiacutevel seu significado eacute ter em conta

que orexis se opotildee a ekklisis que expressa o movimento contraacuterio o de

afastar-se Para Epicteto desejamos as coisas que consideramos boas (cf

Diatribes I42-3)

46 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

lsquoRepulsarsquo eacute nossa escolha para traduzir eacutekklisis termo grego que

identifica a accedilatildeo de declinar expressando o movimento contraacuterio de klisis

que significa a accedilatildeo de inclinar-se Eacute empregado para descrever o

movimento da tropa que evita o combate ou para descrever o decliacutenio de

um astro Oldfather (2000) White (1983) e Gourinat (1998) optaram

traduzi-lo por ldquoaversatildeordquo Garciacutea (1998) por ldquorechazordquo No Aureacutelio

ldquoaversatildeordquo apresenta os significados de ldquooacutedio rancor antipatiardquo que natildeo

cabem no presente caso Optamos entatildeo por ldquorepulsardquo para expressar a

ideia de repelir afastar ou evitar algo sem a conotaccedilatildeo de aversatildeo Para

Epicteto repudiamos as coisas que consideramos ruins (cf Diatribes

I42-3)

Encheiriacutedion capiacutetulo 1 (Traduccedilatildeo e comentaacuterios Antonio Carlos

Tarquiacutenio)

(1-1) Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes19 outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute

propriamente nosso20 julgamento de valor21 impulso para agir desejo

aversatildeo - em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa

alccedilada22 o corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos

- em uma palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem

propriamente (1-2) E as coisas que nos competem satildeo por natureza livres

sem impedimentos sem entraves e as que natildeo satildeo fracas escravas

impedidas de outrem (1-3) Lembra entatildeo que se consideras as coisas

escravas por natureza livres e as coisas alheias proacuteprias seraacutes impedido

estaraacutes triste e perturbado censuraraacutes tanto os deuses como tambeacutem os

homens Mas se consideras ser teu somente o teu e o alheio como eacute alheio

ningueacutem te obrigaraacute nem te impediraacute natildeo censuraraacutes a ningueacutem tampouco

acusaraacutes a algueacutem nenhuma accedilatildeo contra vontade ningueacutem te prejudicaraacute

natildeo teraacutes inimigo uma vez que ningueacutem te convenceraacute de algo danoso23 (1-

4) Lembra-te enfim de que aspirando coisas de tal tamanho24 natildeo eacute preciso

19 Satildeo de nossa alccedilada

20 Eacute de nossa competecircncia

21 Aceito a traduccedilatildeo de Pierre Hadot da palavra hypolepsis

22 Natildeo satildeo de nossa competecircncia natildeo satildeo propriamente nossos

23 Ou seja que tenha sofrido algo de danoso Ningueacutem nos convenceraacute de havermos sido prejudicados

24 Isto eacute tatildeo grandes Elevadas

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 47

se mover moderadamente para alcanccedilaacute-las25 mas umas abandonar

completamente e outras abandonar ante o presente para se dedicar depois

Mas se queres tambeacutem essas coisas (isto eacute as elevadas e grandes) e mandar e

enriquecer talvez natildeo obtenhas dessas mesmas (riqueza e autoridade) por

tambeacutem demandares as primeiras (as elevadas e grandes) erraraacutes o alvo

totalmente pelo menos daquelas (coisas) atraveacutes das quais tatildeo somente

dominarias a liberdade e a felicidade (1-5) Enfim exercita-te rapidamente em

acrescentar a toda fantasia26 que ldquoeacutes impressatildeo e de modo algum o que se

mostra (sendo)rdquo A seguir investiga-a e submeta-a a esses cacircnones os quais

tens e em primeiro lugar esse e sobretudo qual dos dois se a respeito das

coisas sobre noacutes ou a respeito das coisas que natildeo estatildeo sobre noacutes e se for algo

a respeito das que natildeo estatildeo sobre noacutes por isso esteja agrave matildeo ldquonada perante

a mimrdquo

O primeiro capiacutetulo do Enquiriacutedio de Epicteto enfeixa ideias preciosas

que auxiliam o acesso agrave compreensatildeo de sua proposta filosoacutefica Nele

encontramos pontos essenciais de sua doutrina de seu ensinamento Se

no seguimento da obra outros temas surgem e encontram em tempo

oportuno explicaccedilatildeo eacute nos seus cinco itens iniciais (1-1 a 1-5 acima) que

vemos traccedilado o panorama de pensamento do filoacutesofo estoico

Desde o iniacutecio do Enquiriacutedio de Epicteto vecirc-se o estabelecimento de

uma linha divisoacuteria que possui como principal objetivo demarcar a zona

do eu - do verdadeiro eu - distinguindo-a da regiatildeo em que se situam as

coisas em relaccedilatildeo estreita com o corpo Eis a afirmativa de Epicteto a este

respeito

Das coisas que satildeo umas estatildeo sobre noacutes outras natildeo estatildeo sobre noacutes Eacute

propriamente nosso julgamento de valor impulso para agir desejo aversatildeo

- em uma palavra - quantas sejam nossas obras Natildeo satildeo de nossa alccedilada o

25 Tocaacute-las obtecirc-las

26 Optamos por traduzir phantasiacutea por fantasia em vez de usar os habituais termos ldquorepresentaccedilatildeordquo e ldquoimpressatildeordquo que carreiam consigo interpretaccedilotildees tatildeo incompatiacuteveis entre si que para utilizaacute-los se faria necessaacuteria uma elucidaccedilatildeo criacutetica de cada uma delas De acordo com Sexto Empiacuterico a traduccedilatildeo de phantasiacutea para ldquoimpressatildeordquo (typosis) eacute compatiacutevel com o pensamento de Cleantes conforme a metaacutefora com que procura explicar a forma como o mundo exterior atua sobre o hegemocircnico agrave feiccedilatildeo de um sinete sobre a cera Jaacute Crisipo entende a he phantasiacutea ao modo de uma alteraccedilatildeo (heteroiosis) da alma Sexto Empiacuterico M VII 228-230 Doravante citado com a sigla SE

48 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

corpo os teres as opiniotildees dos outros sobre noacutes os cargos puacuteblicos - em uma

palavra ndash quantas sejam as obras que natildeo nos pertencem propriamente27

Se pararmos para pensar um pouco nos tempos atuais agrave face dessa

tese epictetiana parece verdadeira loucura sustentar que posses fama

riquezas inclusive nossos corpos natildeo devam ser situados no campo de

nossas preocupaccedilotildees habituais por natildeo nos pertencerem propriamente

Pois essas satildeo coisas que se no passado jaacute se procuravam hoje muito mais

Em contrapartida o desejar o julgar o agir e o evitar natildeo causam

indignaccedilatildeo como fazeres nossos apesar da descoberta nos uacuteltimos seacuteculos

do inconsciente que parece gerar consequecircncias seriacutessimas em torno das

faculdades aniacutemicas do homem

Notemos que o corpo aparece como primeiro na lista das coisas ldquonatildeo

sobre noacutesrdquo e continuaraacute aparecendo principalmente nas Liccedilotildees de

Epicteto28 toda vez que ele se referir agrave distinccedilatildeo essencial em que figura o

campo de responsabilidade especiacutefica humana Vejamos por exemplo este

trecho das Liccedilotildees

Pois o corpo nos eacute estranho seus membros nos satildeo estranhos nossos teres

nos satildeo estranhos Se por conseguinte tu te prendes a alguma dessas coisas

como a alguma coisa pessoal receberaacutes o castigo que merece aquele que deseja

aquilo que lhe eacute estranho29

Se o corpo e seus amigos natildeo nos pertencem propriamente as obras

da alma satildeo nossas30 natildeo soacute como propriedades inalienaacuteveis mas

sobretudo porque satildeo livres desimpedidas e isentas de qualquer

obstaacuteculo como o Enquiriacutedio de Epicteto inicia separando esferas de

27 E I 1

28 Traduzo Epiktetoi diatribai por Liccedilotildees de Epicteto Seratildeo representadas com a sigla L

29 L IV 1 130-131

30 ldquoE as obras da alma satildeo o impulso para agir o impulso de se afastar o desejar o preparar o intentar o assentirrdquo L IV 11 6 O termo ldquoobras da almardquo demonstra que a real distinccedilatildeo eacute entre a psykhe e o corpo Ora as obras da alma satildeo as obras do hegemocircnico ldquoOs estoicos afirmam que o hegemocircnico eacute a parte mais alta da alma aquela que produz as fantasias os assentimentos as sensaccedilotildees as tendecircncias (hormas) e que eles chamam o pensamento (logismos) 847 Aeacutecio IV 21 1-4 = Pseudo-Plutarque 903A12c-10 Crisipo Oeuvre Philosophique Doravante citado com a sigla Chrys OC

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 49

responsabilidade aquilo por que sou responsaacutevel daquilo pelo que natildeo sou

responsaacutevel nem sempre se consegue perceber a questatildeo de fundo por

traacutes da divisatildeo Entretanto quando Epicteto trata do assunto por outro

acircngulo notamos aquilo que estaacute em jogo na separaccedilatildeo a centralizaccedilatildeo da

vida humana nos valores da alma

Em uma declaraccedilatildeo visceral contra Epicuro surpreendemos Epicteto

se perguntando sobre quem no filoacutesofo do Jardim produziu seus escritos

deixou que sua barba crescesse e tambeacutem quem nele afirmou certa vez

viver seus uacuteltimos dias em estado de felicidade E conclui sua indagaccedilatildeo

com a pergunta A carne (sarks) ou a escolha (prohairesis)31 ou seja

se Epicuro escolheu escrever a prohairesis eacute aquele ato espiritual que o

define mesmo que sua filosofia negue isso Na passagem que segue se

clareia por inteira a noccedilatildeo de que o bem humano eacute por excelecircncia e

essencialmente de ordem espiritual Digo ldquoespiritualrdquo no sentido de

indicar o hegemocircnico em uma das suas funccedilotildees primordiais32 mesmo

sabendo se tratar de um pneuma corpoacutereo uma vez que o proacuteprio Epicteto

compara-o ao corpo utilizando termos antiteacuteticos

A divindade eacute uacutetil mas o bem tambeacutem eacute Entatildeo eacute verossiacutemil onde a essecircncia

da divindade laacute tambeacutem a do bem Entatildeo qual eacute a essecircncia da divindade A

carne Natildeo viria a ser Campo Natildeo viria a ser Fama Natildeo viria a ser A mente

a ciecircncia o pensamento correto Logo procura nessas coisas simplesmente a

essecircncia do bem33

Na introduccedilatildeo ao livro Le Manuel drsquoEacutepicteacutete Pierre Hadot se refere agrave

concentraccedilatildeo do eu qual exerciacutecio espiritual que se poderia derivar

diretamente da separaccedilatildeo sugerida por Epicteto Seria a separaccedilatildeo do eu

do natildeo-eu34 e natildeo discordamos

31 L II 23 21

32 O ato de escolher a prohairesis

33 L II 8 1-3

34 Na medida em que se potildee em operaccedilatildeo a distinccedilatildeo entre as coisas dependentes de noacutes e as coisas independentes de noacutes o eu eacute como que recolocado dentro de seus limites porque natildeo avanccedila mais sobre o que natildeo lhe diz respeito O eu reposicionado deixa para fora de si o natildeo-eu ou seja todo um universo de coisas que segundo os estoicos deve ser considerado como indiferente

50 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Distinguir o que depende de noacutes e o que natildeo depende de noacutes a causalidade

interior e a causalidade exterior eacute finalmente distinguir o eu do natildeo-eu Eacute um

exerciacutecio de concentraccedilatildeo e de delimitaccedilatildeo do eu eu natildeo sou os objetos que

me circundam e que por vezes me satildeo caros esta marmita ou este cavalo ou

esta lacircmpada eu natildeo sou pode-se dizer os atributos gramaticais que o

Destino me impotildee rico ou pobre saudaacutevel ou doente senhor ou escravo

poderoso ou miseraacutevel eu natildeo sou os meus membros eu natildeo sou o meu corpo

nem a emoccedilotildees involuntaacuterias que podem emocionaacute-lo35

O que estaacute no cerne da cisatildeo preceituada por Epicteto eacute a fixaccedilatildeo de

um lugar o estabelecimento de um onde para o qual o homem deve se

voltar a fim de concentrar todos os seus esforccedilos Na verdade a

concentraccedilatildeo do eu demarca dois itineraacuterios bem definidos um em que a

parte dirigente da alma36 eacute assentada a tiacutetulo de oficina e outro em que eacute

definida a principal tarefa do homem ou seja o seu ofiacutecio

Oficina e ofiacutecio juntam-se num mesmo caminho espiritual Enquanto

a primeira diz respeito ao princiacutepio diretor da alma ao hegemocircnico como

lugar de trabalho a segunda se define como o proacuteprio trabalho no cuidado

dele

Referecircncias

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EdiUFS 2007

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2008

35 Hadot (2000 p 44-45) Cf L III 24 56 IV 1 129-130

36 Crisipo se refere ao hegemocircnico como o verdadeiro ldquoeurdquo Cf Galeno Sobre as doutrinas de Hipoacutecrates e de Platatildeo II 2 9 1-11 6

Aldo Dinucci Alfredo Julien Antonio Carlos Tarquiacutenio | 51

_____ O Encheiridion de Epicteto Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra

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3

A Consciecircncia (de) Si Sartriana na Perspectiva

da Filosofia Analiacutetica da Mente

Taacuterik de Athayde Prata 1

Alguns Problemas a Respeito da Consciecircncia

Enquanto escrevo estas palavras estou consciente Isso significa que

estou desperto e assim capaz de interagir com meu ambiente imediato

atraveacutes de percepccedilotildees bem como de accedilotildees Sinto a temperatura desta sala

ao mesmo tempo em que vejo as letras surgindo na tela do computador

enquanto sinto a textura das teclas ao deslizar meus dedos sobre elas

Assim entendida minha consciecircncia eacute algo que diz respeito ao

funcionamento de meu organismo e dessa forma pertence a aqueles que

David Chalmers chamou de ldquoproblemas faacuteceisrdquo (easy problems) isto eacute

problemas que se referem a (i) funccedilotildees de modo que se precisa apenas

buscar o (ii) mecanismo que as desempenha (cf CHALMERS 1995 p

202) De acordo com ele ldquoPara uma explanaccedilatildeo do sono e da vigiacutelia seraacute

suficiente uma adequada explanaccedilatildeo neurofisioloacutegica dos processos

responsaacuteveis pelo comportamento contrastante do organismo nesses

estadosrdquo (CHALMERS 1995 p 201) E a diferenccedila entre sono e vigiacutelia eacute

constitutiva da consciecircncia como uma propriedade de um organismo

Mas se eu enquanto organismo posso ser qualificado como

ldquoconscienterdquo natildeo eacute difiacutecil perceber que haacute um uso plenamente legiacutetimo

desse adjetivo em relaccedilatildeo agrave minha vida psicoloacutegica em seus detalhes mais

1 Professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

54 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

especiacuteficos ou seja em relaccedilatildeo a meus estados eventos e processos

mentais entidades psiacutequicas que podem tambeacutem ser conscientes Minhas

percepccedilotildees (da temperatura da sala das letras na tela da textura das

teclas) minhas intenccedilotildees (de digitar certas palavras de escrever um texto

para um evento acadecircmico) assim como meus pensamentos (p ex a

respeito do tema filosoacutefico da consciecircncia) ou minhas eventuais emoccedilotildees

(como a ansiedade de concluir o texto a tempo) tudo isso satildeo fenocircmenos

mentais que podem ou natildeo se tornar conscientes

Entra aqui em cena a distinccedilatildeo proposta por David Rosenthal entre

(a) consciecircncia de criatura (que seria um tema mais permeaacutevel agrave pesquisa

empiacuterica do funcionamento orgacircnico) e (b) consciecircncia de estado (que

seria um tema mais especiacutefico da investigaccedilatildeo filosoacutefica)2 Eacute interessante

notar que Rosenthal eacute um filoacutesofo que assume uma perspectiva anti-

cartesiana no sentido de recusar a ideia defendida pelo filoacutesofo francecircs

da consciecircncia como a essecircncia da mente3 Para ele natildeo haacute grande

dificuldade para se perceber que diversos estados mentais existem

desprovidos de consciecircncia por exemplo quando ldquosabemos sem que nos

seja dito o que outra pessoa estaacute pensando ou sentindo E algumas vezes

sabemos isso mesmo quando a pessoa na verdade natildeo estaacute ciente [aware]

pelo menos a princiacutepio de ter esses sentimentos e pensamentosrdquo

(ROSENTHAL 1986 p 329)

Uma visatildeo como essa segundo a qual os fenocircmenos mentais satildeo em

si mesmos inconscientes tem para Rosenthal a importante vantagem de

2 ldquoDois assuntos satildeo frequentemente confundidos nas discussotildees sobre a consciecircncia Uma questatildeo eacute o que eacute para um estado mental ser consciente Supondo que nem todos os estados mentais satildeo conscientes noacutes queremos saber como os estados conscientes se diferenciam daqueles que natildeo satildeo E ainda que todos os estados mentais fossem conscientes noacutes ainda perguntariacuteamos em que consiste a sua consciecircncia Denominamos essa a questatildeo da consciecircncia de estado Esse seraacute meu principal tema no texto que segue Mas noacutes natildeo descrevemos apenas estados mentais como sendo conscientes ou natildeo noacutes tambeacutem atribuiacutemos consciecircncia a criaturas Assim existe uma segunda questatildeo a questatildeo sobre o que eacute para uma pessoa ou outra criatura ser consciente ou seja como criaturas conscientes se diferenciam daquelas que natildeo satildeo conscientes Denominamos esta a questatildeo da consciecircncia de criaturardquo (ROSENTHAL 1997 p 729)

3 Descartes caracterizou o pensamento para ele a propriedade essencial do mental como ldquotudo quanto estaacute de tal modo em noacutes que somos imediatamente conscientes [consci]rdquo (DESCARTES 1979 p 169 [AT VII p 160 AT IX p 124]) E em conformidade a isso ele entendeu que ldquonenhum pensamento pode existir em noacutes do qual nos natildeo estejamos conscientes [fit conscia] no exato momento em que ele existe em noacutesrdquo (cf AT VII p 246 AT IX p 190) Os nuacutemeros romanos datildeo as referecircncias nos volumes em latim (volume VII) e em francecircs (volume IX) da ediccedilatildeo completa das obras de Descartes feita por Charles Adam e Paul Tannery (AT)

Taacuterik de Athayde Prata | 55

possibilitar uma explanaccedilatildeo informativa da consciecircncia como uma

propriedade de estados mentais pois se a consciecircncia jaacute caracteriza de

saiacuteda todos os fenocircmenos psiacutequicos como pensava Descartes ldquotoda

tentativa de explanar a consciecircncia formulando condiccedilotildees necessaacuterias e

suficientes para um estado mental ser consciente vatildeo fracassar

automaticamente Se a consciecircncia jaacute estaacute embutida na mentalidade toda

explanaccedilatildeo seraacute natildeo informativardquo (ROSENTHAL 1986 p 330) E eu

acrescentaria que essa perspectiva tem a vantagem adicional de ser

compatiacutevel com os incontaacuteveis e no meu entender muito convincentes

indiacutecios de que a maior parte de nossa vida mental ocorre

independentemente da consciecircncia (cf por exemplo SEARLE 1992 p

164 1997 p 236 2004 p 244-45)

Entretanto esse tipo de perspectiva sobre a consciecircncia que a

considera natildeo essencial para o psiacutequico natildeo foi aceita por importantes

filoacutesofos do seacuteculo passado entre os quais se encontra Jean-Paul Sartre

(1905-1980) um dos mais influentes intelectuais do seacuteculo XX que

produziu uma obra de enorme abrangecircncia se estendendo desde a

escritura em diversos gecircneros literaacuterios passando pela filosofia pelos

textos de cunho poliacutetico4 e que na juventude empreendeu

interessantiacutessimas reflexotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia e os

fundamentos da psicologia5 Em sua mais importante obra anterior a O

ser e o nada (1943) o livro O imaginaacuterio psicologia fenomenoloacutegica da

imaginaccedilatildeo (1940) Sartre (1996 p 36) afirma sem reservas que ldquoa

existecircncia de um fenocircmeno psiacutequico e o sentido que ele tem para a

consciecircncia satildeo uma coisa soacuterdquo o que o leva admitir em nota de rodapeacute que

ldquoessas constataccedilotildees nos obrigam a rejeitar inteiramente a existecircncia de um

inconscienterdquo (SARTRE 1996 p 36 nota no 13)

4 Como afirma Annie Cohen-Solal (2007 p 16) a mais conhecida bioacutegrafa de Sartre ele ldquoabordou todos os domiacutenios da escrita (romance novela filosofia teatro cinema biografia autobiografia ensaio criacutetico reportagem jornaliacutestica canccedilatildeo entre outros)rdquo

5 Em uma entrevista concedida jaacute no final de sua vida Sartre declarou que no iniacutecio de sua carreira filosoacutefica ldquoo que eu chamava de lsquofilosofiarsquo era pura e simplesmente psicologiardquo (COHEN-SOLAL 1986 p 90)

56 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Apesar das diversas passagens de sua obra que atacam a ideia de

inconsciente6 existem inteacuterpretes que questionam se Sartre de fato estava

comprometido com a rejeiccedilatildeo a essa ideia (cf GENNARO 2002 p 299-301)

Mas o fato eacute que ela natildeo eacute (pelo menos agrave primeira vista) compatiacutevel com sua

perspectiva pois de acordo com ele quando a consciecircncia (de algo) e uma

autoconsciecircncia impliacutecita natildeo satildeo concebidas como unificadas somos

confrontados com graves problemas No meu entendimento Sartre parte da

constataccedilatildeo de que introduzir uma dualidade na consciecircncia a torna

incompreensiacutevel pois leva a teorias insustentaacuteveis Em termos sumaacuterios a

dualidade nos deixa diante de um dilema

Ou paramos em um termo qualquer da seacuterie conhecido ndash cognoscente

conhecido ndash cognoscente conhecido pelo cognoscente etc e entatildeo a totalidade

do fenocircmeno cai no desconhecido quer dizer esbarramos sempre com uma

reflexatildeo natildeo consciente de si como derradeiro termo ndash ou entatildeo afirmamos a

necessidade de regressatildeo ao infinito (idea ideae ideae etc) o que eacute absurdo

(SARTRE 1943 p 18-19 SARTRE 1997 p 23)

Se haacute uma dualidade entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a

autoconsciecircncia entatildeo ou (I) esta autoconsciecircncia eacute inconsciente ou (II) a

autoconsciecircncia exige (para se tornar consciente) uma outra consciecircncia a

respeito dela que por sua vez exige outra e assim ad infinitum dois

resultados que parecem insatisfatoacuterios ndash pois uma consciecircncia

inconsciente parece uma contradiccedilatildeo em termos7 e um regresso ao

6 Jaacute em A transcendecircncia do ego (1937) seu primeiro texto escrito sob a influecircncia husserliana ele escreveu ldquoSem mesmo se dar conta os teoacutericos do amor-proacuteprio supotildeem que o refletido eacute anterior original e dissimulado no inconsciente Eacute penoso precisar evidenciar a absurdidade de uma tal hipoacutetese Mesmo se o inconsciente existisse o que nos faria acreditar ser ele o depositaacuterio de espontaneidades da forma refletida A definiccedilatildeo do refletido natildeo eacute a do que eacute colocado por uma consciecircnciardquo (SARTRE 1966 p 40-41 SARTRE 2010 p 198-99)

7 Eacute interessante notar que Franz Brentano um dos mais importantes pensadores da virada do seacuteculo XX (JACQUETTE 2004 p 1) autor que sem duacutevida atraveacutes de sua influecircncia sobre Husserl estaacute na raiz de muitas das concepccedilotildees de Sartre natildeo concordava com a visatildeo de que o inconsciente eacute uma noccedilatildeo contraditoacuteria apesar de Brentano ter sido um ferrenho opositor dessa noccedilatildeo Nas palavras de Brentano ldquoAlgumas pessoas iriam apenas balanccedilar a cabeccedila diante dessa questatildeo Supor uma consciecircncia inconsciente parece a elas absurdo Mesmo eminentes psicoacutelogos como por exemplo Locke e John Stuart Mill consideravam essa ideia uma contradiccedilatildeo direta Mas algueacutem que presta atenccedilatildeo agraves determinaccedilotildees feitas a seguir dificilmente iraacute julgar assim Esse algueacutem reconheceraacute que quem levanta a questatildeo sobre a existecircncia de uma consciecircncia inconsciente natildeo estaacute sendo ridiacuteculo como algueacutem que perguntasse se existe um vermelho natildeo vermelho Uma consciecircncia inconsciente eacute tatildeo pouco uma contraditio in adjecto quanto uma visatildeo natildeo vistardquo (BRENTANO 1924 p 143-4 [102-3])

Taacuterik de Athayde Prata | 57

infinito significa que a consciecircncia permanece natildeo explicada (aleacutem do fato

de que a proacutepria ideia de que haacute um regresso infinito parece insustentaacutevel

ndash de modo que a concepccedilatildeo comprometida com um regresso se mostra

absurda) Eacute interessante notar que essas dificuldades ndash (I) e (II) ndash satildeo

aplicaacuteveis ao tipo de teoria proposta por Rosenthal Ao conceber a

consciecircncia de um estado mental como decorrente do monitoramento

deste estado por um outro estado mental a respeito do primeiro

Rosenthal se expotildee ao perigo do regresso ao infinito e eacute para evitar esse

regresso que ele concebe o estado mental de ordem superior como

inconsciente o que evidentemente o leva a recair no primeiro termo do

dilema apontado por Sartre o pensamento que gera a consciecircncia do

estado mental de niacutevel inferior eacute ele proacuteprio inconsciente8

Devido a essas dificuldades Sartre conclui que ldquoConsciecircncia de si natildeo

eacute dualidade Se quisermos evitar regressatildeo ao infinito tem de ser relaccedilatildeo

imediata e natildeo cognitiva de si a sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24)

Exatamente por isso ele opta por colocar o ldquoderdquo da expressatildeo ldquoconsciecircncia

de sirdquo entre parecircnteses de modo a indicar que essa partiacutecula eacute empregada

por imposiccedilatildeo da gramaacutetica (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25) e natildeo

deve ser entendida como sugerindo uma dualidade entre a lsquoconsciecircnciarsquo e

o lsquosirsquo E a ideia da consciecircncia como uma relaccedilatildeo imediata a si mesma

constitui aquele que Kathleen Wider (1997 p 1) considera ser a alegaccedilatildeo

fundamental de Sartre sobre a consciecircncia a saber a alegaccedilatildeo de que

ldquotoda consciecircncia eacute por sua proacutepria natureza autoconsciecircnciardquo No ensaio

sobre A transcendecircncia do ego Sartre defendera que ldquoo tipo de existecircncia

da consciecircncia implica ser consciecircncia de si E ela toma consciecircncia de si

na exata medida em que eacute consciecircncia de um objeto transcendenterdquo

(SARTRE 1966 p 23-4 2010 p 188) Tomando o exemplo de uma

percepccedilatildeo ndash ou seja nos termos dele uma ldquoconsciecircncia perceptivardquo ndash

Sartre afirma em O ser e o nada que a consciecircncia de si enquanto uma

8 A respeito da teoria de Rosenthal sobre a consciecircncia de estados mentais Uriah Kriegel afirma ldquoO estado de segunda ordem S2 em virtude do qual [o estado de primeira ordem] S1 eacute consciente eacute ele mesmo um estado inconsciente Assim o fato de que S2 representa o eu natildeo implica que por ter S2 o eu eacute consciente de si mesmo pois S2 natildeo eacute uma representaccedilatildeo consciente do eurdquo (KRIEGEL 2002 p 522-23) Cf tambeacutem Kriegel (2005 p 28)

58 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoconsciecircncia espontacircneardquo da percepccedilatildeo ldquoeacute constitutiva de minha

consciecircncia perceptivardquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p 24) e tomando o

exemplo da accedilatildeo de contar alguns cigarros afirma que ldquoa consciecircncia natildeo

teacutetica de contar eacute condiccedilatildeo mesma de minha atividade aditivardquo (SARTRE

1943 p 19 1997 p 24)

Mas se a assunccedilatildeo de uma dualidade na consciecircncia nos leva a um

dilema entre duas posiccedilotildees insustentaacuteveis a concepccedilatildeo por assim dizer

unitaacuteria da consciecircncia que a entende como uma unidade indissoluacutevel

entre uma (i) consciecircncia de algo e uma (ii) autoconsciecircncia natildeo estaacute livre

de suas proacuteprias dificuldades A concepccedilatildeo sartriana que vecirc essa

autoconsciecircncia como constitutiva ou como condiccedilatildeo de toda consciecircncia

intencional de objetos parece tornar a consciecircncia um fenocircmeno

misterioso inexplicaacutevel pois natildeo conseguimos formar uma noccedilatildeo clara de

qual seja a sua estrutura jaacute que ldquoa consciecircncia de si que caracteriza toda

consciecircncia de algo parece estar de algum modo misturada a esta

consciecircncia de algo de maneira que natildeo eacute nada faacutecil discerni-lasrdquo (PRATA

2017 p 460) e se essas noccedilotildees natildeo podem ser discernidas natildeo eacute possiacutevel

articular uma explicaccedilatildeo do que seja propriamente a consciecircncia

Consciecircncia Posicional e Consciecircncia Natildeo Posicional

Antes de examinar a dificuldade de explicar a consciecircncia tal como

concebida por Sartre eacute importante compreender uma distinccedilatildeo

importante proposta por ele a distinccedilatildeo entre (i) a consciecircncia posicional

ou teacutetica (cf SARTRE 1966 p 28 2010 p 191) por um lado e (ii) a

consciecircncia natildeo posicional (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou natildeo

teacutetica (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) por outro lado A consciecircncia

posicional eacute aquela que potildee um objeto de determinado modo Por exemplo

uma consciecircncia perceptiva potildee seu objeto como existente jaacute que a

percepccedilatildeo se articula enquanto apreensatildeo de algo que existe previamente

a ela ao passo que uma consciecircncia em imagem potildee seu objeto

(imaginado) de diferentes formas (p ex como ausente ou como

Taacuterik de Athayde Prata | 59

inexistente ndash cf SARTRE 1996 p 26) que pressupotildeem que a consciecircncia

eacute a criadora dessa imagem mental E eacute importante notar que o que cada

consciecircncia potildee eacute um objeto que portanto eacute concebido implicitamente

como algo que transcende a consciecircncia existindo para aleacutem de toda

consciecircncia que se possa ter dele9 Jaacute a consciecircncia natildeo posicional natildeo potildee

um objeto pois ela eacute um tipo especial de relaccedilatildeo que natildeo se volta para algo

contra-posto (ob-jectum) agrave consciecircncia mas eacute uma relaccedilatildeo desta

consciecircncia consigo mesma (cf SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)

A respeito dessa distinccedilatildeo a importante inteacuterprete Kathleen Wider

entende que as duas formas de consciecircncia a posicional e a natildeo posicional

podem ser elucidadas em termos do foco da atenccedilatildeo do sujeito consciente

em cada caso enquanto a consciecircncia posicional implica em uma atenccedilatildeo

focada em um objeto (distinto da proacutepria consciecircncia) a consciecircncia natildeo

posicional apreende aquilo em que o sujeito natildeo concentra a sua atenccedilatildeo

Nas palavras de Wider (1997 p 41)

Por um lado qualquer coisa que cai no campo de ciecircncia [awareness] de

algueacutem e para a qual sua atenccedilatildeo estaacute direcionada eacute um objeto que eacute posto

pela consciecircncia Por isso Sartre chama a consciecircncia desse objeto de

consciecircncia teacutetica ou posicional Por outro lado algueacutem tem apenas uma

consciecircncia natildeo teacutetica ou natildeo posicional de qualquer coisa que cai em seu

campo de ciecircncia mas ao qual ele natildeo estaacute presentemente prestando atenccedilatildeo

Se percebo um objeto ou imagino uma paisagem posiciono essa

referecircncia transcendente agrave minha consciecircncia de determinada maneira ndash

como existente no caso da percepccedilatildeo ou como p ex existente em outro

lugar no caso da imaginaccedilatildeo ndash e minha atenccedilatildeo eacute absorvida por essa

referecircncia transcendente Mas ao mesmo tempo em que minha atenccedilatildeo se

absorve na coisa ndash percebida ou imaginada ndash eu apreendo implicitamente

minha proacutepria consciecircncia perceptiva ou imaginativa pois se percebo

apreendo implicitamente ndash na periferia da atenccedilatildeo ndash minha percepccedilatildeo

9 De acordo com Sartre haacute ldquoalgo de excessivo no mundo das lsquocoisasrsquo a cada instante haacute sempre infinitamente mais do queo que podemos ver para esgotar a riqueza de minha percepccedilatildeo atual seria necessaacuterio um tempo infinitordquo (SARTRE 1996 p 22)

60 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

como passiva ao passo que se imagino apreendo implicitamente minha

imaginaccedilatildeo como criadora (cf PRATA 2016 p 81-82) Essa apreensatildeo

impliacutecita pode ser transformada em uma consciecircncia posicional de

consciecircncia ndash uma consciecircncia posicional da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo

Mas nesse caso estamos diante de uma reflexatildeo ou seja uma consciecircncia

reflexiva (cf abaixo)

A Opacidade da Consciecircncia na Teoria de Sartre

A avaliaccedilatildeo de que a teoria de Sartre natildeo eacute capaz de fornecer uma

explicaccedilatildeo da consciecircncia parece ser confirmada pela maneira como ele

em diversas passagens se refere ao fenocircmeno da consciecircncia atraveacutes de

metaacuteforas o que de fato sugere que ele natildeo dispunha de conceitos claros

sobre a estrutura da consciecircncia Penso que a necessidade do uso de

metaacuteforas surge de uma estrutura conceitual obscura como encontramos

em determinada passagem de O ser e o nada na qual apoacutes afirmar a

autoconsciecircncia ldquonatildeo teacuteticardquo10 como constitutiva de todo ato mental (como

uma operaccedilatildeo de contar) nega que isso implique um ciacuterculo vicioso mas

se exprime em termos relativamente nebulosos

Contudo natildeo haacute esse ciacuterculo vicioso ou se preferirmos eacute da proacutepria natureza

da consciecircncia existir ldquoem ciacuterculordquo O que se pode exprimir assim toda existecircncia

consciente existe como consciecircncia de existir Compreendemos agora porque a

consciecircncia primeira de consciecircncia natildeo eacute posicional eacute uma soacute com [un avec] a

consciecircncia da qual eacute consciecircncia (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25)

A autoconsciecircncia eacute una com a consciecircncia de algo a respeito da qual

ela eacute e justamente essa unidade parece tornar o fenocircmeno opaco a uma

explicaccedilatildeo conceitual E logo em seguida ele se exprime em termos que

tornam essa opacidade ainda mais flagrante Nas palavras de Sartre

10 Conforme discutido acima uma consciecircncia ldquonatildeo-teacuteticardquo (cf SARTRE 1966 p 30 2010 p 192) equivale a uma consciecircncia ldquonatildeo-posicionalrdquo (cf SARTRE 1966 p 24 2010 p 189) ou seja trata-se de uma consciecircncia que natildeo potildee seu objeto como algo distinto de si mesma (cf SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)

Taacuterik de Athayde Prata | 61

Natildeo haacute antes uma consciecircncia que recebesse depois [grifado no original] a

afecccedilatildeo ldquoprazerrdquo tal como se colore a aacutegua ndash do mesmo modo como natildeo haacute

antes um prazer (inconsciente ou psicoloacutegico) que recebesse depois a

qualidade de consciente como um feixe de luz Haacute um ser indivisiacutevel

indissoluacutevel [grifo meu] ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas

qualidades como seres menores mas um ser que eacute existecircncia de ponta a ponta

(SARTRE 1943 p 21 1997 p 26)

Aqui ele rejeita a ideia de que a relaccedilatildeo entre a (i) consciecircncia de algo

e a (ii) autoconsciecircncia seja comparaacutevel agrave relaccedilatildeo entre um sujeito e seu

predicado fazendo dela um ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo cuja

compreensatildeo se torna muito difiacutecil Desse modo natildeo parece restar

alternativa para Sartre aleacutem de recorrer a metaacuteforas para exprimir esse

modo de existecircncia peculiar da consciecircncia como quando ele afirma que a

autoconsciecircncia

Natildeo deve ser considerada uma nova consciecircncia mas o uacutenico modo de

existecircncia possiacutevel para uma consciecircncia de alguma coisa Assim como um

objeto extenso estaacute obrigado a existir segundo as trecircs dimensotildees tambeacutem uma

intenccedilatildeo um prazer uma dor natildeo poderiam existir exceto como consciecircncia

imediata de si mesmos (SARTRE 1943 p 20 1997 p 25 grifado no original)

Neste trecho o modo de existecircncia da consciecircncia (enquanto

essencialmente marcada por uma autoconsciecircncia) eacute simplesmente

comparado a um fato bruto a saber o de que objetos espaciais

necessariamente existem nas trecircs dimensotildees E jaacute anos antes no ensaio

sobre A transcendecircncia do ego ele se expressara em termos semelhantes

ao dizer que o fato de a consciecircncia irrefletida ser consciecircncia de ser

consciecircncia de um objeto eacute ldquoa lei de sua existecircnciardquo (SARTRE 1966 p 24

2010 p 188-89 grifo meu)

Vejamos agora de modo mais detalhado a maneira como Sartre

concebe a consciecircncia atraveacutes de uma segunda distinccedilatildeo fundamental a

distinccedilatildeo entre (arsquo) consciecircncia irrefletida tida por ele como a forma

fundamental e (brsquo) consciecircncia reflexiva tida por ele como derivada

62 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Consciecircncia Irrefletida e Consciecircncia Reflexiva

Para articular adequadamente a relaccedilatildeo entre a consciecircncia e o eu no

esforccedilo de negar a noccedilatildeo husserliana de um eu transcendental Sartre

desenvolveu uma distinccedilatildeo entre (arsquo) a consciecircncia irrefletida (irreacutefleacutechie)

a forma mais fundamental originaacuteria e (brsquo) a consciecircncia reflexiva

(reacuteflexive) derivada da primeira na qual o fenocircmeno do ldquoeurdquo teria sua

origem (cf SARTRE 1966 p 37 2010 p 196) Na consciecircncia reflexiva

temos duas manifestaccedilotildees de consciecircncia11 a consciecircncia reflexionante

(reacutefleacutechissante) e a consciecircncia refletida (reacutefleacutechie) onde uma se debruccedila

sobre a outra colocando esta uacuteltima como seu objeto Entretanto essa

forma de consciecircncia (cindida entre duas manifestaccedilotildees) natildeo poderia ser

a forma mais fundamental pois a consciecircncia reflexionante que faz da

consciecircncia refletida um objeto jaacute eacute uma consciecircncia (mesmo quando essa

consciecircncia reflexionante natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo ulterior o que eacute

sempre possiacutevel ndash cf SARTRE 1966 p 29 2010 p 191) Portanto deve

haver algo nela (assim como tambeacutem nas manifestaccedilotildees de consciecircncia

voltadas para objetos exteriores) que jaacute a torne consciecircncia

Isso leva Sartre a articular sua concepccedilatildeo a respeito da consciecircncia

irrefletida a consciecircncia que natildeo eacute objeto de uma reflexatildeo que se investe

completamente no visar um objeto para aleacutem dela proacutepria e eacute nesse

contexto que surge a tese basilar da teoria de Sartre a respeito da

consciecircncia (cf WIDER 1997 p 1) que podemos designar como a tese da

autoreferencialidade da consciecircncia irrefletida que pode ser formulada

nos seguintes termos ldquotoda consciecircncia posicional do objeto eacute ao mesmo

tempo consciecircncia natildeo posicional de sirdquo (SARTRE 1943 p 19 1997 p

24)12 Eacute exatamente por isso que a consciecircncia irrefletida eacute por si mesma

consciecircncia independentemente da reflexatildeo pois a consciecircncia irrefletida

11 Temos aqui um uso de ldquoconsciecircnciardquo que se refere a cada episoacutedio particular de vivecircncia consciente (cf SARTRE 1996 p 13) isto eacute nesse sentido cada episoacutedio de percepccedilatildeo cada episoacutedio de imagem mental cada episoacutedio de emoccedilatildeo eacute uma consciecircncia Esse uso eacute diferente de um outro aceito por sartre um uso mais globalizante no qual ldquoconsciecircnciardquo se refere agrave ldquomocircnada e o conjunto de suas estruturas psiacutequicasrdquo (SARTRE 1996 p 13)

12 Sartre caracteriza a noccedilatildeo de ldquoposicionalrdquo nos seguintes termos ldquoToda consciecircncia eacute posicional na medida em que se transcende para alcanccedilar um objeto e ela esgota-se nessa posiccedilatildeo [position] mesmardquo (SARTRE 1943 p 18 1997 p 22)

Taacuterik de Athayde Prata | 63

(na medida em que eacute intencional) eacute uma relaccedilatildeo com um objeto

transcendente a ela que eacute simultaneamente uma relaccedilatildeo a si mesma

Para que se possa construir uma compreensatildeo teoacuterica adequada dessa

autoconsciecircncia preacute-reflexiva tal como concebida por Sartre eacute necessaacuterio no

meu modo de entender um modelo no qual os elementos constituintes dessa

autoconsciecircncia possam ser conceitualmente discernidos ao mesmo tempo

em que a sua unidade por assim dizer orgacircnica se mostre de maneira

inteligiacutevel Seguindo uma indicaccedilatildeo do professor Andreacute Leclerc13 me

proponho a investigar o modelo integrativo da consciecircncia articulado por

Uriah Kriegel para verificar se ele pode servir como um modelo adequado

para se compreender a teoria sartriana da consciecircncia (de) si

O Modelo Integrativo de Kriegel

Kriegel articula o seu modelo integrativo na tentativa de naturalizar

aquilo que ele denomina de ldquocaraacuteter subjetivordquo da experiecircncia consciente

visto por ele como um aspecto constituinte daquilo que ele chama de

ldquocaraacuteter fenomenalrdquo dessa experiecircncia Esse caraacuteter fenomenal pensado por

Kriegel corresponde a aquilo que Thomas Nagel (1974 p 436 2005 p 247)

chamou de subjetividade a saber lsquoo modo como eacute vivenciar um estado

mental x para a criatura que o vivenciarsquo Kriegel propotildee analisar esse caraacuteter

fenomenal em dois aspectos constituintes (a) o modo como eacute vivenciar o

estado mental x ndash que ele denomina caraacuteter qualitativo ndash e (b) o fato desse

modo se doar ao sujeito que vivencia esse estado mental ndash que Kriegel

denomina o caraacuteter subjetivo desse estado Na visatildeo de Kriegel (2005 p 24)

ldquoo caraacuteter qualitativo de uma experiecircncia consciente determina qual

experiecircncia consciente ela eacute mas eacute o caraacuteter subjetivo da experiecircncia que

determina se ela eacute de algum modo [at all] uma experiecircncia conscienterdquo

E eacute importante perceber que esse caraacuteter subjetivo se encontra em

uma relaccedilatildeo essencial com o conceito de ciecircncia [awareness] pois na exata

13 Aproveito para agradecer por essa observaccedilatildeo que o professor fez no debate de uma apresentaccedilatildeo que fiz sobre a teoria de Sartre no IX Encontro Interinstitucional de Filosofia em 2015 no Recife

64 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

medida em que uma experiecircncia se doa ndash ou se manifesta ndash ao sujeito

consciente este sujeito tem que estar ciente [aware] dessa experiecircncia (cf

KRIEGEL 2005 p 25)14 Mas Kriegel enfatiza que o modo como o sujeito

estaacute ciente de suas proacuteprias experiecircncias eacute bastante peculiar pois essa

ciecircncia normalmente natildeo estaacute focada na proacutepria experiecircncia mas sim

nos objetos ou estados de coisas extra-psiacutequicos que satildeo o tema dessa

experiecircncia Sendo assim ele se vecirc levado a introduzir uma distinccedilatildeo entre

(I) estar ciente de algo de modo focado e (II) estar ciente disso de modo

perifeacuterico15 A ideia baacutesica eacute do mesmo modo que em uma percepccedilatildeo

visual estamos cientes de maneira focada do objeto que estaacute no centro do

campo visual e estamos cientes de maneira perifeacuterica dos objetos que se

afastam desse centro no que diz respeito agraves nossas proacuteprias experiecircncias

estamos normalmente16 cientes delas de modo perifeacuterico ao mesmo

tempo em que temos uma ciecircncia focada dos objetos extra-psiacutequicos

dessas experiecircncias Como esclarece Kriegel (2005 p 26)

Minha sugestatildeo eacute que nossa ciecircncia de nossas experiecircncias conscientes eacute

normalmente uma forma de tal ciecircncia perifeacuterica natildeo-perceptiva Experiecircncias

conscientes exibem caraacuteter subjetivo em virtude do fato de que sempre que

temos uma experiecircncia consciente noacutes estamos perifericamente cientes de tecirc-la

Ele entende que o problema do caraacuteter subjetivo ldquoeacute o problema de

compreender como um estado mental pode incluir em si uma ciecircncia de si

proacutepriordquo (KRIEGEL 2005 p 30) E para explicar isso ele propotildee um

modelo teoacuterico baseado na integraccedilatildeo de informaccedilotildees que por essa razatildeo

eu denomino um modelo ldquointegrativordquo Para Kriegel a inclusatildeo de uma

ciecircncia de si mesmo no interior do proacuteprio estado mental consciente pode

14 Em um texto bastante conhecido no debate sobre a consciecircncia David Woodruff Smith (1986 p 149) escreveu ldquoum estado mental eacute consciente se o sujeito desse estado estaacute ciente [aware] de sua ocorrecircnciardquo

15Natildeo eacute difiacutecil perceber que essa maneira como Kriegel procura esclarecer o caraacuteter impliacutecito da ciecircncia que temos de nossas experiecircncias coincide com a maneira como Kathleen Wider (1997 p 41) interpreta a distinccedilatildeo sartriana entre consciecircncia posicional e natildeo posicional discutida na seccedilatildeo 2 acima

16A exceccedilatildeo satildeo os casos de reflexatildeo ndash no dizer de Sartre (1966 p 27-28 2010 p 190-91) ndash ou introspecccedilatildeo ndash no dizer de Rosenthal (1986 p 336-37 1997 p 730) caso que satildeo menos comuns do que os de consciecircncia natildeo reflexiva (cf KRIEGEL 2002 p 518 2003 p 105)

Taacuterik de Athayde Prata | 65

ser explicada atraveacutes da presenccedila de um tipo peculiar de conteuacutedo no

estado consciente conteuacutedo que conecta (a) a ciecircncia de um objeto ndash ou

estado de coisas ndash externo agrave mente com (b) a ciecircncia do proacuteprio estado

mental que se direciona a aquele objeto ndash ou estado de coisas ndash tornando-

se entatildeo necessaacuterio explicar como esse conteuacutedo eacute produzido E eacute aiacute que

entra em cena o modelo integrativo Nas palavras de Kriegel (2005 p 46)

A abordagem que pretendo introduzir sugere que esse tipo de conteuacutedo

representacional pode ser produzido simplesmente atraveacutes da integraccedilatildeo da

informaccedilatildeo carregada por o que eram inicialmente estados mentais separados

Quando os conteuacutedos desses estados mentais separados satildeo apropriadamente

integrados surge um (uacutenico) estado mental que possui exatamente o tipo

correto de conteuacutedo representacional

Apoacutes essa sinteacutetica exposiccedilatildeo do modelo de Kriegel somos obrigados

por motivos de espaccedilo a passar diretamente a uma discussatildeo da teoria de

Sartre

Consideraccedilotildees Finais

Se a visatildeo cartesiana da consciecircncia como a essecircncia da mente sofreu

fortes contestaccedilotildees ao longo do seacuteculo XX vimos que a perspectiva

sartriana ndash influenciada por Descartes ndash da autoconsciecircncia (impliacutecita)

como constitutiva de todo estado intencional parece inviabilizar uma

compreensatildeo teoacuterica adequada da consciecircncia Sartre defende uma

unidade essencial entre (i) a consciecircncia de algo e (ii) a autoconsciecircncia

porque a separaccedilatildeo desses elementos levaria a um dilema entre (I) uma

autoconsciecircncia inconsciente e (II) um regresso ao infinito (cf SARTRE

1943 p 18-19 1997 p 23 cf KRIEGEL 2005 p 28) Entretanto essa

visatildeo unitaacuteria tambeacutem eacute problemaacutetica pois torna a consciecircncia algo

inexplicaacutevel deixando a Sartre apenas a opccedilatildeo de recorrer a metaacuteforas ndash

como a do ldquociacuterculordquo e a das ldquotrecircs dimensotildeesrdquo (cf SARTRE 1943 p 20

1997 p 25) ou ainda a da ldquolei de existecircnciardquo (cf SARTRE 1966 p 24

2010 p 188-89) ndash ou entatildeo recorrer a conceitos obscuros ndash como o de um

66 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoser indivisiacutevel e indissoluacutevelrdquo (cf SARTRE 1943 p 21 1997 p 26) ndash para

tentar exprimir o que a consciecircncia eacute

Em outras palavras natildeo resta duacutevida de que o terreno em que esse

debate sobre a consciecircncia eacute travado eacute extremamente movediccedilo pois a

exposiccedilatildeo feita acima mostrou que se a visatildeo da consciecircncia como

essencialmente conectada a uma autoconsciecircncia eacute obscura a visatildeo que

separa a consciecircncia de algo da autoconsciecircncia tambeacutem natildeo funciona

pois recai no dilema acima mencionado ndash entre (I) e (II) Eacute aqui que o

modelo de Kriegel se mostra promissor pois a ideia de uma efetiva

integraccedilatildeo de estados mentais que existiam originalmente separados por

um lado nos fornece a distinccedilatildeo entre conceitos ndash o conceito da (i) ciecircncia

[awareness] do objeto por um lado e o conceito da (ii) ciecircncia do proacuteprio

estado mental por outro lado ndash que possibilita a articulaccedilatildeo de uma

explanaccedilatildeo propriamente dita jaacute que a unidade proposta por Sartre

concebida de uma maneira natildeo predicativa17 como vimos parece

inviabilizar qualquer explanaccedilatildeo conceitual E por outro lado a ideia da

integraccedilatildeo real de estados mentais (originalmente distintos) nos fornece

uma unidade diferente daquela que encontramos nos escritos do filoacutesofo

francecircs pois aleacutem de evitar o regresso ao infinito (como faz a unidade

misteriosa de Sartre) ela permanece permeaacutevel a uma explanaccedilatildeo

conceitual tornando-se assim uma opccedilatildeo mais atraente no cenaacuterio das

elaboraccedilotildees filosoacuteficas sobre a consciecircncia

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17 ldquoHaacute um ser indivisiacutevel indissoluacutevel ndash natildeo uma substacircncia que conservasse suas qualidades como seres menoresrdquo (SARTRE 1943 p 21 1997 p 26 grifos meus) Temos aqui uma terminologia ontoloacutegica que pressupotildee o discurso sujeito-predicado (cf IMAGUIRE 2007 p 274)

Taacuterik de Athayde Prata | 67

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68 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

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4

A Consciecircncia Eacute um Fenocircmeno Bioloacutegico

A Criacutetica de John Searle agraves Principais Correntes

da Filosofia da Mente

Maxwell Morais de Lima Filho 1

Parece muito doce aquela cana

Descasco-a provo-a chupo-ahellip ilusatildeo treda

Augusto dos Anjos

Para Searle (2006 p 7-9) nem eacute verdade que o problema mente-

corpo seja insoluacutevel nem que seja necessaacuterio um projeto de naturalizaccedilatildeo

para atacaacute-lo pois basta reconhecermos que os fenocircmenos mentais satildeo

caracteriacutesticas de niacutevel superior causadas e realizadas no sistema nervoso

para resolvecirc-lo2

O famoso problema mente-corpo fonte de tanta controveacutersia ao longo dos

dois uacuteltimos milecircnios tem uma soluccedilatildeo simples [] Aqui estaacute ela os

fenocircmenos mentais satildeo causados por processos neurofisioloacutegicos no ceacuterebro

e satildeo eles proacuteprios caracteriacutesticas do ceacuterebro

[]

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) e Professor do Instituto de Ciecircncias Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes (ICHCA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

2 Em Intencionalidade Searle (1995 p 21-2) critica tanto os dualistas quanto os fisicalistas por tentarem resolver um problema que sequer existe ldquoOs dualistas que percebem corretamente o papel causal do mental consideram que precisamente por esta razatildeo devem postular uma categoria ontoloacutegica separada Muitos fisicalistas que percebem corretamente que tudo o que temos no cracircnio eacute um ceacuterebro acham que por esta razatildeo devem negar a eficaacutecia causal dos aspectos mentais do ceacuterebro ou mesmo a existecircncia desses aspectos mentais irredutiacuteveis Acredito que ambas as visotildees estejam equivocadas Ambas tentam resolver o problema mente-corpo quando a abordagem correta eacute perceber que tal problema natildeo existe O lsquoproblema mente-corporsquo natildeo eacute um problema mais real que o do lsquoestocircmago-digestatildeorsquordquo

70 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Os dualistas de propriedades pensam que o problema mente-corpo eacute

espantosamente difiacutecil talvez completamente insoluacutevel Os materialistas

concordam que se a intencionalidade e a consciecircncia realmente existem e satildeo

irredutiacuteveis a fenocircmenos fiacutesicos entatildeo de fato haveria um difiacutecil problema

mente-corpo mas eles pretendem ldquonaturalizarrdquo a intencionalidade e talvez

tambeacutem a consciecircncia Por ldquonaturalizaccedilatildeordquo de fenocircmenos mentais eles

entendem a sua reduccedilatildeo a fenocircmenos fiacutesicos

Perpassando as incontaacuteveis divergecircncias teoacutericas entre dualistas e

fisicalistas se encontra um liame terminoloacutegico herdado de Descartes que

contrapotildee o fiacutesico ao mental essa distinccedilatildeo substancial do mundo por sua

vez teria sido uacutetil para superar o aparente conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia

no seacuteculo XVII Sendo assim os assuntos concernentes agrave alma e agrave moral

humanas seriam tratados exclusivamente pela Religiatildeo enquanto os

cientistas se debruccedilariam sobre os mais diversos fenocircmenos naturais ndash

fiacutesicos quiacutemicos bioloacutegicos etc Em realidade natildeo houve uma completa

superaccedilatildeo do conflito como o proacuteprio Searle adverte (2010c) haja vista

que Galileu se retratou perante a Igreja e Descartes se mudou para a mais

tolerante Holanda Interessante notarmos que o filoacutesofo britacircnico Gilbert

Ryle tambeacutem menciona os pensadores italiano e francecircs na origem do erro

categorial presente na doutrina do fantasma na maacutequina Poreacutem no que

se refere ao conflito entre Religiatildeo e Ciecircncia Ryle (1970 p 18-9) o

restringe agrave esfera pessoal de Descartes que aceitou o mecanicismo

galilaico somente na esfera corpoacuterea

[Q]uando Galileu mostrou que os seus meacutetodos de descoberta cientiacutefica eram

capazes de estabelecer uma teoria mecacircnica que abrangeria todos os

ocupantes do espaccedilo Descartes encontrou em si proacuteprio duas razotildees em

conflito Como homem de gecircnio cientiacutefico natildeo tinha outro remeacutedio senatildeo

sancionar as descobertas da mecacircnica ao passo que como homem religioso e

moral natildeo poderia aceitar como Hobbes aceitou os desencorajantes

corolaacuterios dessas descobertas ou seja que a natureza humana difere apenas

em grau de complexidade do mecanismo de um reloacutegio O mental natildeo poderia

ser uma variedade do mecacircnico

Maxwell Morais de Lima Filho | 71

Eacute justamente contra essa visatildeo que o autor drsquoA Redescoberta da

Mente defende que o passo que devemos dar antes mesmo de iniciar a

investigaccedilatildeo eacute abandonar o dualismo conceitual que estaacute presente nas

concepccedilotildees mais diacutespares do espectro da Filosofia da Mente o dualismo

de substacircncia o dualismo de propriedade o materialismo o monismo o

behaviorismo a teoria da identidade o funcionalismo e a inteligecircncia

artificial forte Se largarmos o dualismo conceitual dissolveremos o falso

dilema que nos faz acreditar que ou defendemos uma concepccedilatildeo dualista

ou uma fisicalista como ostenta Searle (2002a p 15) nesta passagem

Os filoacutesofos analiacuteticos juntamente com o restante da tradiccedilatildeo cartesiana

assumiram de modo caracteriacutestico que ldquomentalrdquo implica ldquonatildeo-materialrdquo ou

ldquoimaterialrdquo e que ldquomaterialrdquo ou ldquofiacutesicordquo implica ldquonatildeo mentalrdquo No entanto

quando se reflete sobre o modo como o ceacuterebro opera tem-se a impressatildeo de

que ambos os pressupostos satildeo obviamente falsos

Feitas essas ressalvas exporemos as criacuteticas que Searle tece agraves

principais correntes da Filosofia da Mente comeccedilando pelo dualismo de

substacircncia Em relaccedilatildeo agrave Histoacuteria da Filosofia rastreamos versotildees dessa

concepccedilatildeo sendo defendidas por pensadores desde a Greacutecia Antiga sendo

Platatildeo o mais insigne entre eles Tambeacutem registramos brevemente que o

dualismo de substacircncia se configurou como uma posiccedilatildeo-padratildeo tanto na

Patriacutestica como na Escolaacutestica e foi defendido por eruditos do porte de

Agostinho e de Tomaacutes de Aquino Em que pesem todos esses antecedentes

a versatildeo do dualismo de substacircncia que eacute levada em consideraccedilatildeo pela

maioria dos filoacutesofos da mente eacute aquela consumada na obra de Reneacute

Descartes Em resumo o filoacutesofo francecircs propunha uma cisatildeo entre o

domiacutenio fiacutesico res extensa (substacircncia material ou fiacutesica) e o domiacutenio

mental res cogitans3 (alma mente ou substacircncia mental) Para

fundamentar a dualidade ontoloacutegica o filoacutesofo francecircs parte do princiacutepio

de distinccedilatildeo para afianccedilar a possibilidade de concebermos claramente que

3 Cottingham (1999 p 26) nos adverte para natildeo nos desencaminharmos pelo significado religioso ou espiritual que foi imputado ao termo ldquoalmardquo tendo em conta que Descartes utiliza os vocaacutebulos ldquolrsquoacircme (ldquoalmardquo) e lrsquoesprit (ldquomenterdquo) mais ou menos indiferentemente simplesmente para se referir ao que quer que seja consciente []rdquo

72 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

a discriminaccedilatildeo e a independecircncia entre corpo e alma decorrem do fato de

eles assim terem sido produzidos por Deus Mas afinal de contas em que

reside a diferenccedila fundamental entre esses dois domiacutenios ontoloacutegicos

Descartes (1996 p 326) responde a esse questionamento afirmando que

a caracteriacutestica crucial dos corpos eacute a extensatildeo e a da alma o pensamento

E embora [] eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente

conjugado todavia jaacute que de um lado tenho uma ideacuteia clara e distinta de mim

mesmo na medida em que sou apenas uma coisa pensante [res cogitans] e

inextensa e que de outro tenho uma ideacuteia distinta do corpo na medida em

que eacute apenas uma coisa extensa [res extensa] e que natildeo pensa eacute certo que este

eu isto eacute minha alma pela qual eu sou o que sou eacute inteira e verdadeiramente

distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele [independecircncia

entre alma e corpo]

Seguindo o raciociacutenio cartesiano ao examinar o meu corpo (ou outro

qualquer como uma mesa por exemplo) constatariacuteamos que ele tem uma

extensatildeo e a partir disso posso falar algo como ldquomeccedilo 174 mrdquo

Conquanto natildeo faria sentido algum aferirmos ao peacute da letra o

comprimento da minha crenccedila na democracia Logo haacute uma diferenciaccedilatildeo

ontoloacutegica entre o meu corpo (coisa fiacutesicasubstacircncia extensa) e a minha

mente (coisa natildeo fiacutesicasubstacircncia pensante) a coisa extensa eacute natildeo

pensante e a coisa pensante eacute natildeo extensa Decorre diretamente dessa

distinccedilatildeo a irredutibilidade e a independecircncia do mental em relaccedilatildeo ao

fiacutesico e entre outras coisas isso significa que natildeo haacute nenhum

impedimento para a persistecircncia de minha alma apoacutes a morte do meu

corpo Para Descartes (2004 p 227)

o corpo humano na medida em que difere dos outros corpos eacute constituiacutedo

por certa configuraccedilatildeo de membros e de outros acidentes desse modo ao

passo que a mente humana natildeo eacute constituiacuteda dessa maneira a partir de

acidentes nenhuns mas eacute pura substacircncia Pois embora todos os seus

acidentes se modifiquem ndash ela entende umas coisas quer outras sente outras

etc ndash nem por isso a proacutepria mente torna-se uma outra Ao passo que o corpo

humano torna-se outro em virtude apenas de que se modifique a figura de

qualquer uma de suas partes Disto se segue que tal corpo morre muito

Maxwell Morais de Lima Filho | 73

facilmente enquanto a mente ou a alma do homem (o que natildeo distingo) eacute

imortal por sua natureza

Jaacute em sua eacutepoca o filoacutesofo francecircs foi criticado por defender a

interaccedilatildeo entre esses dois tipos totalmente diferentes de substacircncia porque

restou inexplicado como algo fiacutesico causaria algo mental e inversamente

como o mental atuaria sobre o fiacutesico Na tentativa de resguardar seu

posicionamento interacionista ele recorreu agrave glacircndula pineal e aos

espiacuteritos animais resguardando agravequela a sede da alma e conferindo a estes

uacuteltimos a funccedilatildeo comunicativa entre as duas substacircncias Todavia

Descartes (1996 p 328-9) nos alerta para natildeo olvidarmos que o contraste

metafiacutesico entre espiacuterito e mateacuteria natildeo impede a sua iacutentima conjunccedilatildeo

como uma totalidade coerente

A natureza me ensina tambeacutem por esses sentimentos de dor fome sede etc

que natildeo somente estou alojado em meu corpo como um piloto em seu navio

mas que aleacutem disso lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo

confundido e misturado que componho com ele um uacutenico todo

Para Cottingham (1989) seria incorreto enquadrar a posiccedilatildeo de

Descartes como um dualismo pois existem atributos humanos que natildeo se

encaixariam nem como modos de extensatildeo nem como modos de

pensamento haja vista que seriam o resultado da uniatildeo de ambos Sendo

assim como os fenocircmenos psicofiacutesicos natildeo se identificariam nem aos

fenocircmenos fiacutesicos (res extensa) nem aos mentais (res cogitans)

estariacuteamos diante de um ldquotrialismo cartesianordquo Para justificar sua linha

de raciociacutenio Cottingham (1989 p 172) menciona uma carta que

Descartes enviou agrave rainha Elizabeth em 1643 na qual o filoacutesofo francecircs

reconhece a existecircncia de ldquotrecircs categorias ou noccedilotildees primitivasrdquo a forma

e o movimento se relacionam agrave extensatildeo a compreensatildeo e a vontade ao

pensamento e as sensaccedilotildees e paixotildees agrave uniatildeo entre o corpo e a alma

Independentemente de qual leitura exegeacutetica prevaleccedila ndash dualismo ou

trialismo ndash o ponto eacute que os expedientes da glacircndula pineal e dos espiacuteritos

animais utilizados por Descartes estatildeo longe de serem satisfatoacuterios Por um

74 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

lado eacute incoerente delimitar a alma na glacircndula pineal porque a res cogitans

eacute uma substacircncia natildeo extensa e portanto sem localizaccedilatildeo espacial por

outro ainda que se considere que os espiacuteritos animais sejam constituiacutedos de

uma substacircncia fiacutesica bastante delicada permanece aberta a questatildeo

original como os espiacuteritos animais que possuem massa e satildeo espacialmente

situados satildeo capazes de interatuar com uma substacircncia imaterial Natildeo

obstante as criacuteticas direcionadas ao dualismo de substacircncia ao longo dos

seacuteculos e o fato de ele ser minoritaacuterio no ambiente acadecircmico atual natildeo

devemos esquecer que essa concepccedilatildeo estaacute intimamente afinada tanto com

o senso comum quanto com o pensamento religioso pois a maioria das

Religiotildees ndash se natildeo todas ndash defende uma separaccedilatildeo entre a alma e o corpo

Para o autor drsquoA Redescoberta da Mente no entanto essa corrente seria

inconciliaacutevel com o arcabouccedilo conceitual proveniente das Ciecircncias da

Natureza segundo o qual as caracteriacutesticas de niacutevel superior se

fundamentam na microestrutura o que nos impede de tratarmos a

consciecircncia como se fosse uma substacircncia distinta ou uma entidade

adicional ao substrato fiacutesico Nesse sentido Searle (2010a p 4-5) assevera

que por ser causada e realizada neurofisiologicamente eacute que a consciecircncia

natildeo passa de uma caracteriacutestica de niacutevel superior do sistema nervoso

O cheiro da flor o som da sinfonia os pensamentos sobre os postulados da

geometria euclidiana ndash tudo eacute causado por processos bioloacutegicos de niacutevel

inferior no ceacuterebro e ateacute onde sabemos os elementos cruciais satildeo os

neurocircnios e as sinapses

[]

Assim eacute possiacutevel resumir da seguinte maneira as duas relaccedilotildees cruciais entre

consciecircncia e ceacuterebro os processos neurocircnicos de niacutevel inferior no ceacuterebro

causam a consciecircncia e a consciecircncia eacute apenas uma caracteriacutestica de niacutevel

superior de um sistema composto de elementos neurocircnicos de niacutevel inferior

Obviamente esse modo de pensar vai de encontro agrave tese central do

dualismo de substacircncia de que a distinccedilatildeo ontoloacutegica4 entre os dois

4 Por motivos distintos o eliminativista Rorty (1994 p 133) tambeacutem critica as categorias cartesianas ldquoEssas assim chamadas categorias ontoloacutegicas [de lsquomentalrsquo e de lsquofiacutesicorsquo] satildeo simplesmente os modos de embalar noccedilotildees deveras heterogecircneas de fontes histoacutericas deveras heterogecircneas que eram convenientes aos propoacutesitos do proacuteprio Descartes

Maxwell Morais de Lima Filho | 75

domiacutenios sustenta que o fiacutesico tem um modo de existecircncia diferente do

mental Portanto ao defender que a consciecircncia eacute uma caracteriacutestica

emergente do sistema nervoso o filoacutesofo estadunidense estaacute propondo

que o acircmbito fiacutesico eacute mais abrangente do que o dualista de substacircncia

poderia supor pois a mentalidade eacute fiacutesica Eacute somente a partir disso que

compreendemos a revisatildeo do adaacutegio cartesiano pretendida por Searle

(2006 p 26) quando afirma que ldquosou um ser pensante portanto sou um

ser fiacutesicordquo Mais do que isso como a consciecircncia emerge da organizaccedilatildeo e

da complexidade fiacutesicas Searle (2010d p 98) tambeacutem discorda do

posicionamento cartesiano de que os animais natildeo humanos satildeo

autocircmatos haja vista que o grau de semelhanccedila5 conosco ndash principalmente

com os primatas ndash leva-nos na direccedilatildeo contraacuteria

Do ponto de vista anatocircmico as semelhanccedilas satildeo grandes demais para que

essa especulaccedilatildeo [da ausecircncia de intencionalidade e de pensamento nos

animais natildeo humanos] pareccedila plausiacutevel ainda que remotamente do ponto de

vista fisioloacutegico como sabemos os mecanismos que produzem a

intencionalidade e o pensamento nos humanos tecircm estreitos paralelos com os

que se verificam em outros animais

Foi com o intuito de fugir das dificuldades que se impotildeem ao

dualismo de substacircncia que alguns filoacutesofos comprometidos com a

irredutibilidade dos fenocircmenos mentais propuseram o dualismo de

propriedade Essa abordagem postula a existecircncia de uma uacutenica

substacircncia a substacircncia fiacutesica (monismo fiacutesico) e de dois tipos de

propriedade mutuamente excludentes as fiacutesicas e as mentais Ao

observarmos uma pessoa qualquer diria o dualista de propriedade

Mas os seus propoacutesitos natildeo satildeo os nossos Os filoacutesofos natildeo devem pensar em seu conglomerado artificial como se fosse uma descoberta de algo preacute-existente ndash uma descoberta que por lsquointuitivarsquo ou lsquoconceitualrsquo ou lsquocategoacutericarsquo estabelece paracircmetros permanentes para a ciecircncia e a filosofiardquo

5 Changeux (1985 p 74) assegura que natildeo haacute diferenccedila significativa entre ldquoas peccedilas e parafusosrdquo que compotildeem por exemplo os ceacuterebros dos ratos e dos homens ldquoTanto ao niacutevel da anatomia macroscoacutepica do coacutertex como da sua arquitectura microscoacutepica natildeo ocorre qualquer brutal reorganizaccedilatildeo lsquoqualitativarsquo que leve do ceacuterebro lsquoanimalrsquo ao ceacuterebro lsquohumanorsquo Deu-se pelo contraacuterio uma evoluccedilatildeo quantitativa e contiacutenua do nuacutemero total de neuroacutenios da diversidade das aacutereas do nuacutemero de possibilidades conexionais entre neuroacutenios e por conseguinte da complexidade das redes de neuroacutenios que constituem a maacutequina cerebralrdquo

76 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

constatamos que o seu corpo ndash cabeccedila pernas braccedilos etc ndash tem um modo

de existecircncia fiacutesico poreacutem se analisarmos o ceacuterebro dela veremos que

aleacutem de possuir propriedades fiacutesicas ndash muitas delas semelhantes agraves que

satildeo encontradas na cabeccedila nas pernas e nos braccedilos ndash tal oacutergatildeo tambeacutem

possui propriedades mentais

Dessa maneira poderiacuteamos afirmar que esse enrugado oacutergatildeo

formado por bilhotildees de ceacutelulas e que pesa um quilo e meio possui

propriedades que se distinguem e natildeo se reduzem a nenhuma dessas

propriedades fiacutesicas Em geral contrapotildeem-se os aspectos subjetivo

qualitativo e privado das propriedades mentais agrave precisatildeo intersubjetiva

com que mensuramos os objetos e propriedades fiacutesicos o acesso direto agrave

dor estaacute restrito ao sujeito que a experiencia mas que ele pese oitenta

quilos eacute um dado objetivo quantitativo e publicamente acessiacutevel a

qualquer um que disponha de uma balanccedila Como explica Pereira (2013)

os filoacutesofos da mente se valem dos termos quale (singular) e qualia6

(plural) para se referir ao caraacuteter subjetivo e qualitativo dos fenocircmenos

mentais que experienciamos quando saboreamos o azedume do

tamarindo vemos a beleza de um flamboyant ouvimos uma bela canccedilatildeo

tocamos na pessoa querida ou cheiramos um bebecirc Abrantes (2005 p

226) nos alerta entretanto que os uacutenicos estados mentais

consensualmente considerados qualia satildeo as sensaccedilotildees Nesse sentido

muitos filoacutesofos negam ndash diferentemente de Searle ndash que haja qualquer

tipo de aspecto qualitativo envolvido na realizaccedilatildeo de uma operaccedilatildeo

matemaacutetica como a adiccedilatildeo por exemplo

Para o dualista de propriedade as propriedades mentais satildeo especiais

em dois sentidos em primeiro lugar por conta de sua singularidade

bioloacutegica apesar de os objetos serem constituiacutedos basicamente pelos

6 Por salvaguardar que a consciecircncia eacute qualitativa Searle (2010b p 34) julga como absurda a tentativa daqueles que pretendem apartar o que para ele eacute inseparaacutevel ldquoNatildeo haacute dois problemas separados ndash o problema da consciecircncia e entatildeo um problema subsidiaacuterio o dos qualia O problema da consciecircncia eacute idecircntico ao dos qualia porque os estados conscientes satildeo acima de tudo estados qualitativosrdquo Em outras palavras Searle (2010c p 57-8) considera o termo qualia dispensaacutevel porque todos os fenocircmenos conscientes satildeo qualitativos ldquo[T]al como entendo esses termos qualia eacute somente uma designaccedilatildeo coletiva dos estados conscientes Na medida em que a lsquoconsciecircnciarsquo e os qualia satildeo coextensivos natildeo haacute razatildeo para introduzir um termo especiacuteficordquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 77

mesmos ldquoblocos de construccedilatildeordquo (aacutetomos) somente algumas estruturas

fiacutesicas possuem propriedades mentais a saber ceacuterebros complexos Em

segundo lugar a despeito de dependerem ontologicamente dos sistemas

fiacutesicos que as produzem as propriedades mentais satildeo irredutiacuteveis e

inexplicaacuteveis a partir dos conceitos provenientes das Ciecircncias Naturais

como a Fiacutesica a Quiacutemica e a Biologia

Para mostrar isso o filoacutesofo Frank Jackson (1986 2004) propocircs um

importante experimento de pensamento objetivando sustentar a

irredutibilidade dos qualia Imaginemos que Mary seja uma neurocientista

que sabe tudo acerca dos aspectos fiacutesicos e neurofisioloacutegicos das cores isto

eacute que ela domine o conhecimento sobre as leis oacutepticas das reflectacircncias

de luz bem como da anatomia e da fisiologia das ceacutelulas fotorreceptoras e

do coacutertex visual Natildeo obstante seu profundo conhecimento cientiacutefico ela

vive em um mundo preto e branco e portanto nunca experenciou

visualmente cores que natildeo estas duas Imaginemos ainda que um dia ela

saiu do seu laboratoacuterio alvinegro e percebeu pela primeira vez a cor

vermelha de uma maccedilatilde De acordo com essa linha de pensamento essa

experiecircncia visual traria um novo tipo de conhecimento a Mary a saber a

experiecircncia qualitativa de ver vermelho Ora argumenta Jackson se Mary

possuiacutea todo o conhecimento fiacutesico sobre as cores agrave sua disposiccedilatildeo e

mesmo assim aprende um novo fato cromaacutetico concluiacutemos que a sensaccedilatildeo

de ver vermelho (fato novo) aleacutem de natildeo ser fiacutesica eacute irredutiacutevel

ontologicamente a qualquer tipo de estado ou propriedade material Com

isso Jackson (2004 p 765) quer defender que as propriedades mentais

estatildeo acima e aleacutem da realidade fiacutesica e que se mantecircm intocadas pela

explicaccedilatildeo fiacutesico-bioloacutegica da visatildeo

A conclusatildeo [] eacute que os qualia satildeo deixados de fora da histoacuteria fisicalista E a

forccedila polecircmica do argumento do Conhecimento eacute que eacute tatildeo difiacutecil negar a sua

afirmaccedilatildeo central de que se pode ter toda a informaccedilatildeo fiacutesica sem ter todas as

informaccedilotildees que haacute para ter

78 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Searle (2000) natildeo admite essa diferenciaccedilatildeo e advoga que o mental eacute

fiacutesico por ser bioloacutegico ou seja os fenocircmenos mentais satildeo fenocircmenos

bioloacutegicos tais quais outros processos encontrados no mundo vivo como

a digestatildeo a fotossiacutentese e a mitose Portanto para sermos exitosos na

superaccedilatildeo do dualismo de propriedade devemos rejeitar a terminologia

que exclui a consciecircncia do mundo natural e a trata como se natildeo fosse

bioloacutegica Com o intuito de denunciar o quanto esse sistema de categorias

eacute problemaacutetico ele assevera que o dualista inevitavelmente estaraacute diante

de uma encruzilhada se pressupuser que as propriedades mentais estatildeo

acima e aleacutem das propriedades fiacutesicas Se levarmos em consideraccedilatildeo o

fechamento causal fiacutesico do Universo ndash todo evento fiacutesico possui como

causa suficiente outro evento fiacutesico ndash teriacuteamos como resultado que as

propriedades natildeo fiacutesicas satildeo causalmente ineficazes ou seja o mental

subsistiria como um domiacutenio epifenomecircnico

Nesse cenaacuterio as nossas sensaccedilotildees crenccedilas e desejos seriam

totalmente irrelevantes para o nosso comportamento assim como seria

ilusoacuteria a causaccedilatildeo mental O caminho alternativo eacute igualmente

problemaacutetico porque se comprometeria ndash na contramatildeo do que

pressupotildeem as melhores teorias cientiacuteficas ndash com a tese de que o Universo

natildeo eacute fisicamente fechado Essa conjuntura asseguraria a eficaacutecia causal

do mental em troca de acatarmos a sobreposiccedilatildeo causal de certos eventos

isto eacute comprometer-nos-iacuteamos com a sobredeterminaccedilatildeo causal por

afirmar que um evento fiacutesico F eacute duplamente produzido por um evento

fiacutesico F e por um evento mental M Segundo Searle7 (2014 p 107)

sabemos [] que quando eu levanto meu braccedilo haacute uma histoacuteria a ser contada

no niacutevel de disparos de neurocircnios neurotransmissores e contraccedilotildees

musculares que eacute suficiente para descrever [] o movimento do meu braccedilo

Entatildeo se supusermos que a consciecircncia tambeacutem funciona no movimento do

meu braccedilo entatildeo parece que temos duas histoacuterias causais distintas nenhuma

redutiacutevel agrave outra e para colocar muito brevemente a questatildeo meus

7 Em Lima Filho (2010b) analisamos em detalhes o problema da causaccedilatildeo mental no naturalismo bioloacutegico

Maxwell Morais de Lima Filho | 79

movimentos corporais tecircm muitas causas Noacutes temos [sobredeterminaccedilatildeo]

causal

O autor drsquoA Redescoberta da Mente eacute da opiniatildeo que apesar da

relutacircncia o dualista de propriedade acaba por cair na ldquovelhardquo dualidade

substancial como fica patente no uso de metaacuteforas que insinuam a

separaccedilatildeo entre os fenocircmenos conscientes a consciecircncia se origina do

ceacuterebro mas estaacute acima e aleacutem dos processos cerebrais por ser uma

propriedade emergente Esse modo de pensar nos conduz agrave imagem da

consciecircncia como uma cereja que por estar acima do bolo dele difere

Searle (2014 p 114) enxerga uma inconsistecircncia nessa posiccedilatildeo segundo a

qual a consciecircncia (cereja) eacute uma propriedade que estaacute acima e aleacutem do

ceacuterebro (bolo) afirmando que essa incongruecircncia acaba por minar o

monismo fiacutesico e passa a incidir em alguma versatildeo do dualismo de

substacircncia

A imagem verdadeira se vamos persistir na metaacutefora do bolo eacute que a

consciecircncia eacute o estado em que o bolo (ceacuterebro) estaacute Oficialmente o dualista

de propriedades diz que a consciecircncia eacute uma propriedade do ceacuterebro mas se

vocecirc considerar propriedades incontroversas do ceacuterebro como peso forma

cor solidez etc ningueacutem diz que elas ldquosurgem dordquo [hellip] ou estatildeo ldquoaleacutemrdquo [hellip]

do ceacuterebro e somente num sentido especial algumas delas podem ser descritas

como ldquoemergentesrdquo [hellip] e certamente natildeo como ldquoemergentes dordquo [hellip] ceacuterebro

Uma corrente que se opocircs fortemente ao dualismo foi o behaviorismo

analiacutetico8 Muitos estudiosos consideram como marco da Filosofia da

Mente Contemporacircnea o livro de Gilbert Ryle (1970 p 11) Concept of

Mind publicado originalmente em 1949 que principia resumindo a

posiccedilatildeo a ser combatida o ldquomito de Descartesrdquo ou o ldquodogma do fantasma

na maacutequinardquo

8 Natildeo devemos confundi-lo com a corrente psicoloacutegica associada aos nomes de John Watson Ivan Pavlov e Burrhus Frederic Skinner Como esclarece Blackburn (1997 p 39) em vez de levar em consideraccedilatildeo a introspecccedilatildeo e a subjetividade o behaviorismo psicoloacutegico inicialmente se orientou pela perspectiva metodoloacutegica de mensuraccedilatildeo das causas comportamentais Posteriormente sobretudo com Skinner passou a vigorar o empreendimento de se gerir a accedilatildeo humana por meio de estiacutemulos e reforccedilos

80 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A doutrina oficial que vem principalmente de Descartes eacute qualquer coisa

como isto com as exceccedilotildees duvidosas dos idiotas e das crianccedilas de colo todo

ser humano tem um corpo e um espiacuterito Alguns prefeririam dizer que todo

ser humano eacute simultaneamente corpo e espiacuterito O seu corpo e o seu espiacuterito

estatildeo geralmente reunidos mas depois da morte do corpo o espiacuterito pode

continuar a existir e a funcionar

O intento de Ryle eacute imunizar todos contra o ldquopatoloacutegicordquo legado

cartesiano valendo-se de anaacutelises conceituais com o duplo objetivo de

criticar as operaccedilotildees realizadas pelos defensores da ldquodoutrina oficialrdquo e de

situar o conceito mental no tipo loacutegico adequado Com o intuito de ilustrar

sua argumentaccedilatildeo contra o dualismo ele daacute o seguinte exemplo de erro

categorial Se apoacutes termos apresentado a Reitoria as Unidades

Acadecircmicas as Faculdades o Restaurante Universitaacuterio e os Museus que

compotildeem a nossa instituiccedilatildeo o que responderiacuteamos ao estrangeiro que

persistisse perguntando pela localizaccedilatildeo da Universidade haja vista que

ele afirma ter visto somente os departamentos administrativos as salas de

aula e os aparelhos de divulgaccedilatildeo cientiacutefica Ora diz Ryle (1970 p 16)

devemos mostrar que o nosso colega se equivoca ao natildeo observar que a

Universidade eacute constituiacuteda pela coordenaccedilatildeo conjunta dos oacutergatildeos

burocraacuteticos espaccedilos didaacuteticos laboratoacuterios etc que ele observou em sua

visita ao campus

O seu erro [do estrangeiro] assenta na suposiccedilatildeo inocente de que era correto

falar da Christ Church da Bodleian Library do Ashmolean Museum e da

Universidade como se a ldquoUniversidaderdquo significasse um membro extra da

classe da qual estas outras unidades satildeo membros Ele estava a situar

erroneamente a Universidade na mesma categoria a que as outras instituiccedilotildees

pertencem

Consoante o behaviorista algo semelhante ocorre quando nos

emocionamos ao ler um poema sentimos dor de dente desejamos um

chocolate ou cremos na Biacuteblia tendo em conta que natildeo estariacuteamos nos

referindo a eventos mentais interiores mas tatildeo somente ao nosso

comportamento seja ele real ou potencial Eacute justamente por esse motivo

Maxwell Morais de Lima Filho | 81

que ele pretende preservar a equivalecircncia semacircntica quando traduz a

crenccedila de Tomeacute no Cristianismo nas seguintes descriccedilotildees

comportamentais

(i) Se lhe oferecerem de presente a Biacuteblia ou o Coratildeo ele optaraacute pelo primeiro

(ii) Se lhe perguntarem em qual livro Deus se revela ele responderaacute que eacute na Biacuteblia

(iii) Se lhe questionarem sobre a autoria dos Dez Mandamentos ele afirmaraacute que

foram escritos por Deus

(iv) Se houver oportunidade ele pregaraacute a mensagem biacuteblica

Uma criacutetica inicial a essa proposta teoacuterica se reflete no repuacutedio de

sermos reduzidos agrave pura e simples mecacircnica comportamental

desconsiderando-se para tal fim a totalidade dos fenocircmenos subjetivos e

qualitativos que constituem a rica vida mental que todos noacutes inclusive os

behavioristas experimentamos Em outras palavras haacute uma distinccedilatildeo de

tipo9 entre a crenccedila cristatilde e a observaccedilatildeo comportamental de Tomeacute Para

ser consistente essa anaacutelise deveria levar em consideraccedilatildeo a

indeterminaccedilatildeo e o nuacutemero potencialmente infinito de vias relacionadas agrave

crenccedila religiosa de Tomeacute e natildeo apenas os quatro condicionais listados

anteriormente

Esse tipo de exame tambeacutem padece de circularidade porque o

behaviorista deve lanccedilar matildeo de hipoacuteteses adicionais natildeo explicitadas para

sustentar que a crenccedila no Cristianismo se traduz comportamentalmente

na inclinaccedilatildeo de ser presenteado por uma Biacuteblia Caso Tomeacute possua dez

traduccedilotildees comentadas da Biacuteblia em diferentes liacutenguas seria provaacutevel que

ele preferisse ganhar o Coratildeo de presente ndash na verdade a lista de regalos

passiacuteveis de corroborar a crenccedila de Tomeacute eacute deveras extensa sendo muito

difiacutecil determinaacute-la precisamente A disposiccedilatildeo comportamental de

preferir a Biacuteblia tambeacutem assume sub-repticiamente que Tomeacute sabe e gosta

de ler o que obviamente natildeo eacute necessaacuterio Por fim querer ganhar uma

9 Searle (2010h p 337) realccedila essa dessemelhanccedila entre os fenocircmenos mentais conscientes e a anaacutelise comportamental a partir desse exemplo da dor gaacutestrica ldquoO fato de sentir essa dor eacute completamente diferente ndash aliaacutes um tipo de fato completamente diferente ndash de quaisquer fatos inclusive condicionais que digam respeito a meu comportamento Ter uma dor de estocircmago eacute uma coisa adotar este ou aquele tipo de comportamento adequado a uma dor de estocircmago eacute algo totalmente diferenterdquo

82 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Biacuteblia soacute faz sentido se Tomeacute acreditar que ela natildeo viraacute com paacuteginas em

branco que ela estaacute redigida em liacutengua compreensiacutevel que sua mensagem

natildeo foi corrompida por editores inescrupulosos etc

A tentativa de se explicar a crenccedila de Tomeacute no Cristianismo

(analysandum) atraveacutes de sua conduta de pregaccedilatildeo evangeacutelica (analysans)

eacute malograda porque o comportamento que pretende esclarecer o estado

psicoloacutegico eacute ele proacuteprio intencional10 Ou seja os movimentos corporais

de pegar a Biacuteblia e sair de porta em porta anunciando que Jesus eacute a nossa

salvaccedilatildeo e a soluccedilatildeo para todos os nossos problemas soacute podem ser

denominados accedilotildees se forem causados por intenccedilotildees que satildeo tatildeo mentais

quanto o que se pretende elucidar a crenccedila de Tomeacute Eacute guiado por linha

de raciociacutenio semelhante que Searle (2010h p 339) afirma que o

behaviorista estaria diante de um dilema pois ou ele considera que o

comportamento eacute intencional ou natildeo por um lado permaneceria o

elemento mental se se admitir que o comportamento eacute intencionalmente

causado por outro caso natildeo se defenda isso

temos de interpretar o comportamento como uma seacuterie de movimentos

corporais descritos tatildeo somente como movimentos corporais e nenhuma

anaacutelise dos enunciados sobre crenccedilas desejos e intenccedilotildees em funccedilatildeo de

enunciados sobre movimentos corporais jamais seraacute suficiente porque os

movimentos ainda natildeo satildeo accedilotildees humanas e a noccedilatildeo de um movimento

corporal em si mesmo eacute insuficiente para qualquer anaacutelise dos estados

mentais

Desse modo o filoacutesofo estadunidense reitera que soacute podemos

acreditar em algo ou desejarmos alguma coisa se tivermos uma Rede

(Network) com diversas crenccedilas e desejos Poreacutem como o conteuacutedo

intencional natildeo eacute autointerpretativo Searle (2010g p 249-50) postula que

a Rede necessita de um Pano de Fundo (Background)11 constituiacutedo por

habilidades preacute-intencionais

10 Consoante Leclerc (2015) Roderick Chisholm defendeu na deacutecada de 50 que eacute impossiacutevel transpormos o ciacuterculo das noccedilotildees intencionais haja vista que a intencionalidade eacute indefiniacutevel a partir de termos natildeo intencionais

11 Vimos que a intransponibilidade do ciacuterculo intencional eacute sustentada por Chisholm porque os termos natildeo intencionais satildeo inuacuteteis para definir a intencionalidade Apesar de reconhecer a importacircncia da Rede Searle (1995

Maxwell Morais de Lima Filho | 83

Todos os fenocircmenos intencionais quer sejam crenccedilas desejos esperanccedilas

medos ou outros pressupotildeem capacidades natildeo intencionais de background

para que possam funcionar Com isso quero dizer que os estados intencionais

somente determinam suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo e portanto somente

funcionam como estados intencionais se for pressuposto um conjunto de

capacidades que nos permitem aplicar os estados intencionais A

intencionalidade natildeo eacute por assim dizer autointerpretante ou autoaplicativa

[hellip] [O] ponto importante dessas habilidades de background eacute que elas

mesmas natildeo satildeo representacionais Natildeo consistem num conjunto de regras

crenccedilas ou outros tipos de representaccedilotildees

Nos anos 50 e 60 do seacuteculo XX pouco apoacutes a proposta behaviorista

de Ryle filoacutesofos como Herbert Feigl Ullin Thomas Place John Jamieson

Carswell Smart e David Malet Armstrong defenderam uma teoria da

identidade mente-ceacuterebro segundo a qual os estados mentais nada mais

satildeo do que estados fiacutesicos que ocorrem no sistema nervoso Portanto

estamos diante de um monismo fiacutesico que identifica ontologicamente o

domiacutenio psicoloacutegico ao neurobioloacutegico como ocorre na identificaccedilatildeo entre

a dor e a descarga de fibras C Em artigo publicado originalmente em 1956

Place (2002) defende a hipoacutetese cientiacutefica de que a consciecircncia eacute um

processo cerebral sem se comprometer com a suposiccedilatildeo adicional de que

a linguagem neurobioloacutegica sirva para descrever os sonhos as fantasias e

as sensaccedilotildees Eacute justamente porque a assunccedilatildeo da identidade mente-

ceacuterebro eacute anaacuteloga agravequela das Ciecircncias Naturais ndash que se reflete por sua

vez na ausecircncia de equivalecircncia semacircntica entre as descriccedilotildees dos

fenocircmenos fiacutesicos e mentais ndash que natildeo seria irracional se Royce afirmasse

p 198) recua um passo ao advogar que o Pano de Fundo preacute-intencional eacute a condiccedilatildeo de possibilidade de todo e qualquer estado intencional ldquoO Background eacute lsquopreacute-intencionalrsquo no sentido de que embora natildeo seja uma forma ou formas de Intencionalidade eacute natildeo obstante uma precondiccedilatildeo ou um conjunto de precondiccedilotildees de Intencionalidaderdquo Portanto se a definiccedilatildeo de intencionalidade empregada por Searle eacute circular natildeo deixa de ser verdade que ela se explica a partir do Pano de Fundo Ressaltamos que os obstaacuteculos impostos por determinadas praacuteticas humanas situadas podem ser transpostos devido ao compartilhamento de um Background profundo Eis dois exemplos do proacuteprio Searle (2006 p 277) ldquoDiferenccedilas de Backgrounds locais tornam difiacutecil a traduccedilatildeo de uma liacutengua para outra a generalidade do Background profundo torna-a possiacutevel de qualquer modo Se vocecirc lecirc a descriccedilatildeo de um jantar festivo na casa dos Guermantes em Proust provavelmente deve achar alguns aspectos da descriccedilatildeo enigmaacuteticos Isso tem a ver com diferenccedilas de praacuteticas culturais locais Mas existem certas coisas que vocecirc pode dar por certas Por exemplo os participantes natildeo comem enfiando a comida em seus ouvidosrdquo

84 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que sente dor e que as suas fibras C natildeo disparam haja vista que o

enunciado ldquoRoyce estaacute com dorrdquo natildeo eacute sinocircnimo de ldquoas fibras C de Royce

estatildeo disparandordquo do mesmo modo que natildeo seria um absurdo declarar

que a aacutegua deste copo natildeo eacute composta por H2O

Como Searle defende que os fenocircmenos mentais satildeo causados e

realizados no sistema nervoso ele natildeo veria problema algum em localizaacute-

los espaacutecio-temporalmente nos processos cerebrais subjacentes desde que

levemos em conta que uns e outros satildeo ontologicamente distintos ou seja

que aqueles fenocircmenos possuem caracteriacutesticas intriacutensecas que os tornam

irredutiacuteveis a padrotildees sinaacutepticos estes sim descritiacuteveis a partir do

vocabulaacuterio neurocientiacutefico de terceira pessoa Dito isso vemos o porquecirc

de Searle (2010e p 129-30) criticar a identificaccedilatildeo ontoloacutegica do

fisicalismo redutivo

Assim quando o teoacuterico da identidade nos diz que os estados mentais satildeo

somente estados cerebrais haacute um modo de compreender essa tese que eacute

perfeitamente compatiacutevel com nossa pressuposiccedilatildeo de senso comum sobre o

caraacuteter intriacutenseco e irredutiacutevel da consciecircncia e de outras formas de

intencionalidade [hellip] Mas em geral natildeo eacute isso o que os teoacutericos da identidade

querem dizer Um exame cuidadoso dos textos [hellip] revela que em geral os

teoacutericos da identidade [hellip] acabam por negar a existecircncia das caracteriacutesticas

intrinsecamente mentais do mundo

Outra objeccedilatildeo eacute feita agrave contundente asserccedilatildeo de que os estados

mentais compartilhados por duas pessoas implicam que eles satildeo

necessariamente determinados por processos neurofisioloacutegicos de tipo

idecircntico Assim sendo os mesmos estados fiacutesicos devem ocorrer nos

ceacuterebros de Jacoacute e de Luiz para que eles compartilhem a crenccedila de que

Januaacuterio eacute o maior dos sanfoneiros Ora jaacute que somos cercados por

estruturas bioloacutegicas e por artefatos que satildeo multiplamente realizaacuteveis do

ponto de vista fiacutesico por que o mesmo natildeo ocorreria com os estados

mentais Em outras palavras se olhos asas reloacutegios e cadeiras satildeo

compostos e organizados fisicamente de mais de um modo por que algo

semelhante natildeo se daria com a mentalidade Destarte nada impede que a

Maxwell Morais de Lima Filho | 85

mesma crenccedila na grandiosidade musical de Januaacuterio seja realizada por

padrotildees neurocircnicos de tipo X no velho Jacoacute e de tipo Y em seu filho Searle

(2010h p 344) se vale de outros exemplos para corroborar a tese da

realizaccedilatildeo muacuteltipla do mental e para explicitar o que faz com que dois

estados psicoloacutegicos sejam do mesmo tipo

Assim vocecirc e eu podemos ter cada qual a mesma crenccedila de que estaacute nevando

sem que nossas neurofisiologias sejam necessariamente de tipo idecircntico assim

como meu carro e o seu podem ter cada qual um carburador embora o meu

seja de accedilo e o seu de latatildeo Mas entatildeo o que os estados mentais tecircm em

comum capaz de tornaacute-los de tipo idecircntico Creio que a resposta oacutebvia eacute que

eles satildeo de tipo idecircntico por causa de suas caracteriacutesticas mentais comuns

sejam elas caracteriacutesticas de consciecircncia da intencionalidade ou de ambas ou

ainda outras espeacutecies de caracteriacutesticas mentais

Aliaacutes foi motivado por esse tipo de criacutetica ao fisicalismo redutivo que

surgiu nos anos 60 a teoria funcionalista que talvez ainda hoje seja a

concepccedilatildeo de maior prestiacutegio acadecircmico De acordo com uma de suas

vertentes os fenocircmenos mentais podem ser produzidos artificialmente

pelos chips de siliacutecio de computador o que demonstraria a inexistecircncia de

um viacutenculo necessaacuterio entre ceacuterebros complexos e estados mentais Como

natildeo seriam essencialmente bioloacutegicos o aspecto relevante residiria no

papel funcional envolvido nas relaccedilotildees entre os proacuteprios estados mentais

bem como destes com as informaccedilotildees provenientes do ambiente e que

direcionam o comportamento Essa centralidade do papel funcional estaacute

por traacutes do pressuposto metodoloacutegico do teste de Turing (1950) de que se

uma maacutequina manifesta um comportamento linguiacutestico tatildeo complexo

quanto o do ser humano eacute porque nos eacute similar em inteligecircncia e

mentalidade

Com o fito de atacar esse pressuposto behaviorista do funcionalismo

e para asseverar que toda e qualquer maacutequina de Turing eacute incapaz de

compreender os siacutembolos que manipula Searle12 (1980a) propocircs o

12 Apresentamos o ataque de Searle ao funcionalismo computacional em Lima Filho (2010a)

86 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

experimento de pensamento do quarto chinecircs Em linhas gerais podemos

expor o famoso Gedankenexperiment do seguinte modo confinado em um

quarto Searle passa a receber folhas escritas em chinecircs liacutengua da qual ele

natildeo conhece um soacute ideograma e que eacute incapaz de falar quaisquer palavras

tambeacutem o fornecem um manual com regras escritas em inglecircs que lhe

permite relacionar pelo formato os siacutembolos recebidos com outras folhas

redigidas em chinecircs que ele passa por debaixo da porta Esse processo

ocorre repetidamente ndash recebimento do texto em chinecircs consulta ao

manual e devoluccedilatildeo do siacutembolo correspondente ndash e sem que o filoacutesofo se

aperceba disso o falante de chinecircs julga que estaacute entabulando uma

conversaccedilatildeo porque dele recebeu respostas satisfatoacuterias sobre o seu nome

a sua origem e a sua profissatildeo O ponto nevraacutelgico da argumentaccedilatildeo eacute que

a manipulaccedilatildeo simboacutelica natildeo eacute suficiente para a compreensatildeo semacircntica e

que o maacuteximo alcanccedilaacutevel por um programa de computador eacute a simulaccedilatildeo13

ndash mas natildeo a duplicaccedilatildeo ndash de estados mentais Eis como Searle (1998a p

38-9) posteriormente resume o seu argumento

1 Programas satildeo totalmente sintaacuteticos

2 As mentes tecircm uma capacidade semacircntica

3 A sintaxe natildeo eacute a mesma coisa que a semacircntica nem eacute por si soacute suficiente

para garantir um conteuacutedo semacircntico

Consequentemente programas natildeo satildeo mentes

Para golpear o cognitivismo ndash linha para a qual os processos

cognitivos satildeo inconscientes e computacionais ndash Searle propotildee um

argumento assentado na tese de que a computaccedilatildeo eacute relativa ao

observador e eacute exclusivamente sintaacutetica Consoante Moural (2003)

podemos resumi-lo nessas quatro asserccedilotildees

13 Analogamente Searle (2007 p 66) afirma que um programa computacional simulador da digestatildeo eacute incapaz de decompor fiacutesico-quimicamente um pedaccedilo de pizza ldquo[U]m computador realiza um modelo ou uma simulaccedilatildeo de um processo E a simulaccedilatildeo computacional de uma mente eacute como a simulaccedilatildeo computacional da digestatildeo Eu natildeo sei por qual motivo as pessoas cometem um erro tatildeo bobo Veja se fizermos uma simulaccedilatildeo computacional perfeita da digestatildeo ningueacutem poderia pensar lsquovamos comprar uma pizza e pocirc-la no computadorrsquo Eacute um modelo uma fotografia da digestatildeo Nos mostra que a estrutura formal de funcionamento de fato natildeo digere nada Isso eacute o que ocorre com um computador Um modelo computacional do que eacute apaixonar-se ler um romance ou embriagar-se natildeo se apaixona nem lecirc um romance nem se embriaga de fato Somente faz uma representaccedilatildeo dessas coisasrdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 87

(i) Por definiccedilatildeo computaccedilatildeo consiste em uma manipulaccedilatildeo formal de siacutembolos

(ii) No entanto como nem a sintaxe nem os siacutembolos satildeo definidos em termos fiacutesicos

natildeo podemos consideraacute-los intriacutensecos agrave Fiacutesica

(iii) Como o significado da sintaxe e dos siacutembolos soacute podem ser atribuiacutedos perante

um observador segue-se que o mesmo deva se dar com a computaccedilatildeo

(iv) Consequentemente a possibilidade de realizarmos uma interpretaccedilatildeo

computacional do ceacuterebro natildeo nos autoriza a conjecturar que esse oacutergatildeo seja

intrinsecamente um computador

A distinccedilatildeo capital que permeia esse argumento eacute aquela entre as

caracteriacutesticas que independem e as que dependem do observador14 como

o satildeo respectivamente a massa da moleacutecula de aacutegua e a funccedilatildeo

cronomeacutetrica do reloacutegio Com isso Searle (2002b) faz uma discriminaccedilatildeo

entre estados mentais humanos e aqueles atribuiacutedos ao computador o

estado de consciecircncia de Searle eacute intrinsecamente intencional porque

existe independentemente do que pensemos a seu respeito diversamente

dos estados mentais que outorgamos agrave maacutequina e que possuem uma

intencionalidade relativa ao observador15 Portanto o medo expresso por

14 Para Searle (1998a p 42) as Ciecircncias da Natureza se distinguem das Ciecircncias Sociais pelo estudo dessas caracteriacutesticas ldquoAs ciecircncias naturais lidam com essas propriedades da natureza que satildeo intriacutensecas ou independentes do observador no sentido de sua existecircncia natildeo depender do que pensamos sobre ela Exemplos dessas propriedades satildeo a massa a fotossiacutentese a carga eleacutetrica e a mitose As ciecircncias sociais em geral lidam com propriedades que satildeo dependentes do observador ou relativas ao observador no sentido de que sua existecircncia depende de como os seres humanos tratam usam ou ao menos pensam a respeito delas Exemplos tiacutepicos satildeo o dinheiro a propriedade e o casamentordquo

15 Estamos diante de uma intencionalidade intriacutenseca quando adicionamos mentalmente dois e dois e obtemos quatro jaacute quando expressamos esse caacutelculo pela linguagem falada ou escrita referimo-nos agrave intencionalidade derivada por fim temos tambeacutem a intencionalidade ldquocomo serdquo quando falamos que o gramado ou o carro estatildeo

sedentos Como adverte Searle (2010f p 189-90) a sede do gramado ou do automoacutevel natildeo eacute intencional mas tatildeo somente metafoacuterica ldquoa intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo eacute intencionalidade de modo nenhum Quando afirmo que um sistema tem uma intencionalidade lsquocomo sersquo natildeo lhe atribuo intencionalidade Estou afirmando apenas que o sistema se comporta como se tivesse intencionalidade embora natildeo a tenha de fatordquo Como a intencionalidade intriacutenseca precede a linguagem poderiacuteamos encontraacute-la em bebecircs humanos e em outras espeacutecies animais Eacute nesse sentido que as carecircncias de aacutegua e de alimento causariam os primordiais desejos de beber e de comer como assinala Searle (2000 p 91-2) ldquoAs formas biologicamente mais primitivas de intencionalidade satildeo as formas de desejo que envolvem necessidades fiacutesicas como a fome e a sede Ambas satildeo intencionais porque ambas satildeo formas de desejo A fome eacute um desejo de comer a sede um desejo de beberrdquo Searle (2012 p 24) vai aleacutem e advoga que esses estados mentais preacute-linguiacutesticos satildeo indissociaacuteveis de suas condiccedilotildees de satisfaccedilatildeo ldquoEssas formas preacute-linguiacutesticas de intencionalidade jaacute possuem algumas propriedades loacutegicas cruciais Porque percepccedilotildees intenccedilotildees crenccedilas desejos e assim por diante satildeo formas de intencionalidade elas trazem em si especificamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees de sucesso ou fracasso Por exemplo um animal faminto tem o desejo de comer e patologias agrave parte assim ele tem a capacidade de reconhecer quando esse desejo eacute satisfeito e quando natildeo o eacuterdquo No entanto essa alegada intrinsecalidade dos estados mentais eacute posta em duacutevida por Gauker (2012 p 154) ldquoO fato de que os bebecircs os animais natildeo humanos e os hominiacutedeos preacute-linguiacutesticos possuam estados intencionais se isso fosse um fato natildeo mostraria

88 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Hal 9000 quando David Bowman estava desativando seus processos

superiores natildeo passa de uma fobia metafoacuterica Para Searle (1980a) natildeo haacute

qualquer arbitrariedade no criteacuterio que se funda na intencionalidade

intriacutenseca para diferenciar a mentalidade da decisatildeo de Bowman do pavor

figurado de Hal 9000 se assim o fosse estaria subjugado a nosso bel-

prazer encarar os nossos semelhantes como zumbis e a estiagem como

mental

Os argumentos levantados por Searle de que a sintaxe eacute insuficiente

para a semacircntica e de que ela natildeo eacute intriacutenseca agrave Fiacutesica natildeo raras vezes tem

conduzido agrave interpretaccedilatildeo de que ele seja repulsivo ao projeto de um

ceacuterebro e de uma mente artificiais No entanto essa chave de leitura eacute

injusta porque ambos os argumentos do filoacutesofo estadunidense satildeo

voltados para o programa do computador ndash e natildeo para o hardware

Justamente por se apoiar nas Ciecircncias da Natureza Searle natildeo nega que

uma funccedilatildeo possa ser multiplamente realizada como eacute o caso do voo

executaacutevel bioloacutegica ndash insetos aves e morcegos ndash ou tecnologicamente ndash

balotildees aviotildees helicoacutepteros e foguetes Por mais distintas que sejam as asas

da mosca e as do 14-bis elas compartilham poderes causais que permitem

ao animal e ao aviatildeo sobrepujarem a forccedila da gravidade Ora se a

consciecircncia eacute uma caracteriacutestica sistecircmica do ceacuterebro e desejamos

produzi-la artificialmente basta que dupliquemos os poderes causais

desse oacutergatildeo Nas palavras de Searle (2000 p 56)

Quando digo que o ceacuterebro eacute um oacutergatildeo bioloacutegico e a consciecircncia um processo

bioloacutegico eacute claro que natildeo estou dizendo ou sugerindo que seria impossiacutevel

produzir um ceacuterebro artificial a partir de materiais natildeo bioloacutegicos que tambeacutem

pudessem ser causa da consciecircncia e sustentaacute-la [] O ponto que deve ser

enfatizado eacute que tal ceacuterebro artificial teria de reproduzir as verdadeiras causas

dos ceacuterebros humanos e animais para produzir estados de consciecircncia

internos qualitativos e subjetivos A produccedilatildeo de comportamentos similares

por si soacute natildeo seria suficiente

que a intencionalidade dos estados mentais eacute lsquointriacutensecarsquo em qualquer sentido mas mostraria que a capacidade para pensar com as propriedades semacircnticas natildeo depende da posse de uma linguagem ao contraacuterio de minha hipoacuteteserdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 89

Dessa maneira o autor drsquoA Redescoberta da Mente aceita uma versatildeo

bem mais branda da tese de realizaccedilatildeo muacuteltipla em comparaccedilatildeo com a que

eacute acatada pelos funcionalistas pois nem todo material seria capaz de

efetuar a funccedilatildeo em questatildeo Como Searle (1984) diz abertamente o

ceacuterebro eacute uma maacutequina viva e portanto a sua constituiccedilatildeo bioloacutegica eacute

relevante para a produccedilatildeo e para a realizaccedilatildeo da mente ou seja eacute de nosso

conhecimento que os padrotildees sinaacutepticos satildeo efetivos para a emergecircncia de

estados intencionalmente intriacutensecos Contudo diferentemente do que se

daacute com o voo a nossa atual ignoracircncia sobre os detalhes bioquiacutemicos e

fisioloacutegicos nos impede por enquanto de duplicar os estados mentais em

estruturas natildeo bioloacutegicas

Para fechar o nosso itineraacuterio pela Filosofia da Mente apresentamos

a seguir o fisicalismo eliminativista corrente defendida por Paul

Feyerabend Richard Rorty Patricia e Paul Churchland Diferentemente da

abordagem fisicalista de Feigl Place Smart e Armstrong o eliminativista

rejeita a identificaccedilatildeo entre os fenocircmenos neurofisioloacutegicos e os mentais

haja vista que estes uacuteltimos natildeo passam de ilusatildeo Para defender a tese do

irrealismo do mental e a sua necessaacuteria eliminaccedilatildeo teoacuterica o fisicalista

eliminativo lanccedila matildeo da seguinte analogia histoacuterica no tempo das

Inquisiccedilotildees sustentava-se a necessidade de caccedilar e de queimar na fogueira

a mulher que pactuava com Satanaacutes mas atualmente nenhuma pessoa

sensata admitiria a existecircncia de bruxas Essa mudanccedila de perspectiva se

daacute porque o progresso epistecircmico revelou a falsidade do conceito de bruxa

e o eliminou do arcabouccedilo terminoloacutegico da Ciecircncia como aconteceraacute ndash

alega Paul Churchland (2004 p 79) ndash com os termos da Psicologia

Popular

[N]atildeo podemos esperar que uma explicaccedilatildeo realmente adequada de nossa vida

interior feita pela neurociecircncia revele categorias teoacutericas que correspondam

exatamente agraves categorias do arcabouccedilo de senso comum [posiccedilatildeo anti-

reducionista] Dessa forma devemos esperar que o antigo arcabouccedilo seja

simplesmente eliminado e natildeo reduzido por uma neurociecircncia amadurecida

90 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Consoante Teixeira (2008) a Psicologia Popular eacute a teoria que nos

permite explicar o comportamento humano evocando conceitos como

crenccedila desejo e intenccedilatildeo Desse modo o avanccedilo neurocientiacutefico natildeo

acarretaraacute a reduccedilatildeo da Psicologia Popular pois natildeo haacute uma

correspondecircncia um-a-um entre essas duas aacutereas o que demonstraria a

necessidade de suprimir os termos psicoloacutegicos que representam de modo

distorcido os estados neurofisioloacutegicos e as causas do comportamento Por

conseguinte uma Neurociecircncia16 avanccedilada e precisa propiciaraacute

eliminaccedilotildees teoacutericas como a de algueacutem que mencione a ativaccedilatildeo de suas

fibras C em tal regiatildeo do ceacuterebro no lugar de falar que estaacute com dor como

expotildee Churchland (2004 p 82)

Nossas explicaccedilotildees sobre os comportamentos uns dos outros iratildeo recorrer a

coisas como nossos estados neurofarmacoloacutegicos nossa atividade neural em

aacutereas anatocircmicas especiacuteficas e a outros estados que forem relevantes para a

nova teoria Nossa introspecccedilatildeo individual tambeacutem seraacute transformada e

poderaacute ser profundamente aprimorada em razatildeo de um arcabouccedilo conceitual

mais penetrante e preciso com o qual ela teraacute de trabalhar []

Searle (2006) trata com sarcasmo os eliminativistas ao perguntar se

deveria beliscaacute-los para provar que satildeo conscientes e que sentem dor

advogando que o fato de os estados mentais dependerem ontologicamente

dos processos neurobioloacutegicos natildeo os tornam aparentes ou ilusoacuterios Em

outras palavras por mais que conheccedilamos todos os pormenores

bioquiacutemicos e fisioloacutegicos dos processos cerebrais isso natildeo baniraacute ndash nem

ontoloacutegica nem explicativamente ndash o niacutevel dos fenocircmenos psicoloacutegicos

Estes fenocircmenos inexistiriam se houvesse uma distinccedilatildeo entre a aparecircncia

e a realidade17 mas esse natildeo eacute o caso como pontua Searle (2000 p 59)

16 Rorty (1997 p 158) pinta o hipoteacutetico progresso neurocientiacutefico com essas tintas ldquoNoacutes esperamos que a fisiologia possa algum dia traccedilar um caminho a partir da distribuiccedilatildeo de descargas eleacutetricas em meu ceacuterebro ateacute as interfaces [neuromusculares] em minha garganta e por conseguinte nos viabilizar predizer elocuccedilotildees por sobre a base dos estados cerebraisrdquo

17 Em outro texto Searle (1998c p 224) faz a seguinte comparaccedilatildeo ldquoReduccedilotildees eliminatoacuterias exigem uma distinccedilatildeo entre a realidade e a aparecircncia Por exemplo o Sol parece se pocircr mas na realidade eacute a Terra que realiza o movimento de rotaccedilatildeo Mas vocecirc natildeo pode fazer este movimento para a consciecircncia porque no que diz respeito agrave consciecircncia a realidade eacute a aparecircncia Se conscientemente tenho a impressatildeo de ser consciente entatildeo sou conscienterdquo

Maxwell Morais de Lima Filho | 91

Natildeo podemos fazer uma reduccedilatildeo eliminatoacuteria da consciecircncia porque o padratildeo

das reduccedilotildees eliminatoacuterias eacute mostrar que o fenocircmeno reduzido eacute apenas uma

ilusatildeo No entanto no que diz respeito agrave consciecircncia a existecircncia da ldquoilusatildeordquo eacute

a proacutepria realidade Isso quer dizer que se me parece que estou consciente

entatildeo eu estou Natildeo haacute nada na consciecircncia aleacutem de uma sequumlecircncia de

ldquoaparecircnciasrdquo desse tipo A esse respeito a consciecircncia eacute diferente dos poentes

porque eu posso ter a ilusatildeo de que o sol estaacute se pondo por traacutes das montanhas

quando na verdade ele natildeo estaacute fazendo isso

Dessa maneira os processos neurofisioloacutegicos satildeo capazes de explicar

minuciosamente a causa da dor mas isso natildeo significa deixaacute-la de lado

como um conceito preacute-cientiacutefico muito pelo contraacuterio haja vista que a

sensaccedilatildeo dolorosa possui uma ontologia de primeira pessoa no sentido de

ser experienciada por um sujeito e de possuir um modo de existecircncia

qualitativo que a diferencia dos disparos neurocircnicos que a causam Essa

caracteriacutestica real e ineliminaacutevel da mentalidade eacute expressa por Searle

(1998b p 57-8) ao declarar que

a pura sensaccedilatildeo qualitativa de dor eacute uma propriedade do ceacuterebro bem

diferente das descargas neuronais que causam a dor Logo em se tratando de

descargas neuronais vocecirc pode obter uma reduccedilatildeo causal de dor mas natildeo

uma reduccedilatildeo ontoloacutegica Isto eacute vocecirc pode fornecer uma anaacutelise causal

completa da razatildeo de sentirmos dores mas isso natildeo mostra que as dores natildeo

existam realmente

Fazendo um apanhado geral do que apresentamos constatamos que

o filoacutesofo estadunidense critica severamente todas as principais correntes

recusando igualmente o dualismo a reduccedilatildeo ontoloacutegica e a eliminaccedilatildeo da

Psicologia Popular Para ele a criacutetica ao dualismo acabou jogando o bebecirc

junto com a aacutegua suja do banho pois os fenocircmenos mentais conscientes

foram descartados juntamente com a alma imaterial Eacute como se o pavor

pelo conceito de alma justificasse a eliminaccedilatildeo de toda e qualquer

92 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

subjetividade18 do seio da natureza O polo oposto tambeacutem eacute desalentador

pois a defesa da mentalidade se faz agraves custas de uma consciecircncia natildeo fiacutesica

Searle (2006 p 23-4) pinta com essas tintas o quadro sinoacuteptico da

Filosofia da Mente

Relutamos em reconhecer qualquer dos fatos consensuais que soam

ldquocartesianosrdquo porque parece que se aceitarmos os fatos teremos de aceitar

toda a metafiacutesica cartesiana Qualquer espeacutecie de mentalismo que reconheccedila

os fatos oacutebvios de nossa existecircncia eacute considerada automaticamente suspeita

[hellip] De um modo talvez mais exasperante ainda eles satildeo auxiliados nesse erro

por aqueles filoacutesofos que de bom grado reconhecem a existecircncia da consciecircncia

e assim fazendo supotildeem estar afirmando a existecircncia de algo natildeo fiacutesico

Ao recusar ambas as posiccedilotildees Searle (2006 p 26-7) pretende articular

uma concepccedilatildeo que natildeo apenas leve em consideraccedilatildeo a subjetividade do

mental mas que a fundamente nas Ciecircncias Naturais deixando de lado

quaisquer ldquoaparatos cartesianosrdquo haja vista que o mental eacute fiacutesico

[O] fato de uma caracteriacutestica ser mental natildeo implica que natildeo seja fiacutesica o fato

de uma caracteriacutestica ser fiacutesica natildeo implica que natildeo seja mental Revisitando

Descartes [] poderiacuteamos dizer natildeo somente ldquopenso logo existordquo e ldquosou um ser

pensanterdquo mas tambeacutem sou um ser pensante portanto sou um ser fiacutesicordquo

[]

Minhas proacuteprias concepccedilotildees natildeo se encaixam em nenhum dos roacutetulos

tradicionais mas para muitos filoacutesofos a ideia de que algueacutem possa defender

um ponto de vista que natildeo se encaixe nessas categorias parece incompreensiacutevel

Pior ainda talvez haacute diversos substantivos e verbos que parecem ter significados

claros como se realmente apresentassem objetos e atividades bem definidos ndash

ldquomenterdquo ldquoegordquo e ldquointrospecccedilatildeordquo satildeo exemplos oacutebvios

A concepccedilatildeo positiva de Searle (1980b p 455) ndash por ele denominada

de naturalismo bioloacutegico ndash surgiu pela primeira vez quando rebateu as

criacuteticas feitas a Mentes Ceacuterebros e Programas no artigo Intencionalidade

Intriacutenseca ocasiatildeo na qual comparou os estados mentais agraves propriedades

18 Para mais informaccedilotildees sobre o importante papel da subjetividade no naturalismo bioloacutegico consultar Lima Filho (2017c)

Maxwell Morais de Lima Filho | 93

de um pneu Na ocasiatildeo seu principal alvo era atacar o funcionalismo

computacional ao apontar as limitaccedilotildees intriacutensecas ao programa de

computador ao mesmo tempo em que destacava a relevacircncia do estofo

bioloacutegico para a mentalidade No entanto tambeacutem vislumbramos nesse

texto o seu repuacutedio ao irrealismo do mental propugnado pelos fisicalistas

redutivos e eliminativos e ao caraacuteter natildeo fiacutesico resguardado pelos dualistas

de substacircncia e de propriedade Natildeo consiste nenhuma surpresa que a

estrateacutegia ofensiva de Searle tenha gerado contra-ataques dos mais

variados vieses dualistas e fisicalistas os quais o impulsionaram em parte

a desenvolver cada vez mais a sua posiccedilatildeo ancorada em dois grandes

compromissos teoacutericos a saber a subjetividade e a biologicidade do

mental Os fenocircmenos mentais ndash ontologicamente subjetivos ndash satildeo

bioloacutegicos tanto na acepccedilatildeo evolutiva quanto na funcional De acordo com

esta uacuteltima os processos neurofisioloacutegicos causam e sustentam a

mentalidade a qual surgiu historicamente devido aos processos evolutivos

que atuaram sobre linhagens animais no decorrer das eras geoloacutegicas19

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94 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

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TURING Alan Computing machinery and intelligence Mind v 59 n 236 p 433-60 1950

5

Da Natureza Humana

As Perspectivas Epistemoloacutegicas

de Piaget Chomsky e Foucault

Argus Romero Abreu de Morais 1

Consideraccedilotildees Iniciais

Em 1971 convidados pelo apresentador holandecircs Fons Elders para

um debate televisivo Noam Chomsky e Michel Foucault aceitaram

esclarecer suas perspectivas a respeito dos conceitos de natureza humana

justiccedila e poder (CHOMSKY 2014) Poucos anos apoacutes em 1975 Jean Piaget

e Noam Chomsky se reuniram com renomados pesquisadores do mundo

na Abadia de Royaumont na Franccedila para discutirem as questotildees

vinculadas agrave aquisiccedilatildeo e agrave aprendizagem da linguagem humana

(PIATELLI-PALMARINI 1983)

A nosso ver aproximar tais debates torna-se interessante por

permitir elucidar os pressupostos epistemoloacutegicos de autores acadecircmicos

tatildeo relevantes do seacuteculo XX e com isso demarcar as linhas de tensatildeo entre

seus campos e as escolhas teoacutericas das suas pesquisas Nesse sentido no

presente trabalho Chomsky funciona como uma espeacutecie de elo virtual

entre Foucault e Piaget os quais natildeo produziram um debate particular

Natildeo obstante entendemos que os apontamentos feitos por estes dois

1 Professor colaborador do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Cultura Educaccedilatildeo e Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGCELUESB) e poacutes-doutorando no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Teoria Literaacuteria e Criacutetica da Cultura da Universidade Federal de Satildeo Joatildeo del-Rei (PROMELUFSJ) Email argusromeroyahoocombr

Argus Romero Abreu de Morais | 99

uacuteltimos teoacutericos durante a defesa de seus pilares conceituais permitem

contrastaacute-los sendo marcante a distinccedilatildeo entre ambos no que diz respeito

agrave gecircnese do conhecimento humano nos indiviacuteduos por consequecircncia agrave

Histoacuteria das Ciecircncias

Assim pretendemos colocar face a face os vieses da autorregulaccedilatildeo em

Piaget do inatismo da linguagem em Chomsky e de um certo empirismo

histoacuterico em Foucault Evidentemente cada um desses pensadores natildeo soacute

possui uma enorme produccedilatildeo teoacuterica sobre distintos temas acadecircmicos

como tambeacutem apresentou mudanccedilas de perspectiva nas deacutecadas seguintes

Apesar disso entendemos que os fundamentos epistecircmicos das suas aacutereas de

pesquisa natildeo se alteraram significativamente ao longo do tempo garantindo

certa coerecircncia aos seus projetos de estudo

Natildeo eacute nosso intuito portanto em um breve texto dar conta da

amplitude das contribuiccedilotildees desses pensadores seja pela nossa incapacidade

de cumprir com tal propoacutesito seja pelos limites impostos pelo nosso recorte

investigativo o qual prioriza avaliar os argumentos dos trecircs estudiosos em

torno da existecircncia ou natildeo de uma natureza humana Cumpre-nos destacar

que nos vinculamos agrave epistemologia da Anaacutelise do Discurso Francesa (AD) a

qual pressupotildee a determinaccedilatildeo histoacuterica das formaccedilotildees sociais humanas

inclusive a do proacuteprio pensamento Foucault eacute considerado um dos

principais expoentes desse campo de estudos sendo por conseguinte a

partir do seu olhar discursivo que concluiremos o presente escrito tecendo

comentaacuterios criacuteticos aos demais domiacutenios Antes disso apresentaremos a

perspectiva piagetiana em seguida a abordagem chomskyana

A Funccedilatildeo Sensoacuterio-Motora como Fundamento da Formaccedilatildeo da Linguagem2

Eacute verdade que a auto-regulaccedilatildeo eacute em parte inata mas a tiacutetulo mais de

funcionamento do que de estrutura

Jean Piaget

2 Almejando tornar o texto mais fluido colocaremos as citaccedilotildees diretas ndash ipsis litteris ndash que fundamentam os nossos raciociacutenios em notas de rodapeacute Ressaltamos todavia que utilizaremos um nuacutemero expressivo de notas permitindo o acesso do leitor aos argumentos dos proacuteprios debatedoresautores Esperamos com isso possibilitar o esclarecimento e aprofundamento teoacutericos que o tema exige

100 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Segundo Piaget os estudos que definem a aprendizagem humana

pela associaccedilatildeo entre percepccedilotildees dos indiviacuteduos e objetos se mostraram

ineficientes na tentativa de explicar a formaccedilatildeo do conhecimento humano

(criacutetica ao meacutetodo empirista) Para o epistemoacutelogo esse modelo teoacuterico

tem por principal falha natildeo considerar a atividade do sujeito na construccedilatildeo

do proacuteprio conhecimento engendrado por dois processos

interdependentes o processo de assimilaccedilatildeo no qual os indiviacuteduos

assimilariam novos objetos a esquemas previamente conformados nas

suas estruturas cognitivas e no sentido inverso o processo de

acomodaccedilatildeo no qual os antigos esquemas se acomodam de acordo com as

particularidades dos novos objetos produzindo com isso novos esquemas

(PIATELLI-PALMARINI 1983)3

Busca-se assim definir os constructos cognitivos como frutos de

uma relaccedilatildeo dinacircmica entre o ser e o mundo desconstruindo a

necessidade de um a priori universal inato ndash criacutetica ao Gerativismo ndash em

prol de um pensamento dinacircmicosistecircmico Desse modo a um soacute tempo

Piaget renega o empreendimento empirista segundo o qual o sujeito se

ajusta ao mundo pelas experiecircncias (o sujeito seria uma taacutebula rasa) e

descarta a empreitada gerativista chomskyana na qual a forma do sujeito

eacute preacutevia agrave experiecircncia e agrave forma do mundo (PIATELLI-PALMARINI 1983)4

Consoante Piaget apenas o funcionamento da inteligecircncia humana eacute

hereditaacuterio sendo essa definida como o mecanismo capaz de gerar

3 Ao criticar o Empirismo Behaviorista campo teoacuterico tambeacutem renegado por Chomsky Piaget destaca ldquoNenhum conhecimento se deve somente agraves percepccedilotildees pois estas satildeo sempre dirigidas e enquadradas por esquemas de accedilotildees O conhecimento procede pois da accedilatildeo e toda a accedilatildeo que se repete ou se generaliza por aplicaccedilatildeo a novos objetos gera por isso mesmo um lsquoesquemarsquo ou seja uma espeacutecie de conceito praacutexico A ligaccedilatildeo fundamental constitutiva de todo o conhecimento natildeo eacute portanto uma simples associaccedilatildeo entre objetos mas a assimilaccedilatildeo dos objetos a esquemas desse indiviacuteduo Esse processo prolonga aliaacutes diversas formas de lsquoassimilaccedilotildeesrsquo bioloacutegicas das quais a assimilaccedilatildeo cognitiva eacute um caso particular enquanto processo funcional de integraccedilatildeo Em contrapartida quando os objetos satildeo assimilados aos esquemas de accedilatildeo haacute a obrigaccedilatildeo de uma acomodaccedilatildeo agraves particularidades desses objetos (cf os lsquoaccommodatsrsquo fenotiacutepicos em biologia) e essa acomodaccedilatildeo resulta de dados exteriores logo da experiecircnciardquo (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor)

4No dizer de Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 39 Itaacutelicos do autor) ldquoCinquenta anos de experiecircncias ensinaram-nos que natildeo existem conhecimentos resultantes de um simples registro de observaccedilotildees Mas tampouco existem (no homem) estruturas cognitivas a priori ou inatas soacute o funcionamento da inteligecircncia eacute hereditaacuterio e soacute gera estruturas mediante uma organizaccedilatildeo de accedilotildees sucessivas exercidas sobre objetosrdquo

Argus Romero Abreu de Morais | 101

continuamente estruturas conceituais atraveacutes de operaccedilotildees sobre os

objetos A seu ver assim como a Psicanaacutelise de Jung o projeto gerativista

se equivoca ao confundir as estruturas gerais do espiacuterito com a existecircncia

de estruturas inatas base da suposiccedilatildeo da linguagem como faculdade

hereditaacuteria alocada no ceacuterebro humano Segundo aponta eacute possiacutevel a

existecircncia das primeiras sem que haja as segundas

Definida como construtivista a Epistemologia Geneacutetica piagetiana

expotildee aleacutem do argumento da confusatildeo entre universalidade e inatismo

dois motivos principais para negar a hipoacutetese nativista do Gerativismo

primeiro na forma como estaacute posta a Gramaacutetica Universal (GU) supotildee

que a linguagem humana seria resultado de mutaccedilotildees exclusivas agrave espeacutecie

humana sem que consiga contudo dar explicaccedilotildees plausiacuteveis sobre o(s)

porquecirc(s) desse privileacutegio segundo conseguir-se-ia chegar agraves mesmas

conclusotildees de existecircncia de estruturas universais caso se concebesse a

linguagem como produto de um processo de autorregulaccedilatildeo dispensando

com isso os problemas dos universais modulares de Chomsky (PIATELLI-

PALMARINI 1983)

A autorregulaccedilatildeo funciona portanto como o conceito-chave do

Construtivismo na medida em que eacute o mecanismo responsaacutevel tanto pela

construccedilatildeo humana do conhecimento quanto pela organizaccedilatildeo da

realidade natildeo caoacutetica do mundo Ambos tecircm em comum o fato de se

disporem em forma loacutegico-matemaacutetica Ademais diferentemente da

recursividade algoriacutetmica tal como proposta por Chomsky o pensamento

sistecircmico de Piaget sugere que o retorno agraves estruturas cognitivas de base

natildeo ocorre sobre as regras iniciais como se os componentes primeiros

fossem estaacuteveis na relaccedilatildeo entre o ser e o mundo5

5 Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 83) expressa do seguinte modo seu pensamento sistecircmico ldquoA auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio do organismo limita-se em geral e normalmente a conservar um certo estado de equiliacutebrio e em caso de desvio ou de nova formaccedilatildeo a reconduzi-lo ao estado inicial Enquanto que pelo contraacuterio a auto-regulaccedilatildeo no domiacutenio dos comportamentos impele incessantemente o organismo o sujeito se se trata de comportamento cognitivo para novos avanccedilos O organismo fisioloacutegico natildeo tem razatildeo de espeacutecie alguma para variar [] A conservaccedilatildeo eacute a norma suprema para o equiliacutebrio fisioloacutegico Ao passo que pelo contraacuterio quando se aborda o terreno do comportamento este persegue dois objetivos o primeiro eacute a extensatildeo do meio superar o meio no qual o organismo estaacute atualmente mergulhado por exploraccedilotildees e pesquisas em novos meios e o segundo o reforccedilo dos poderes do organismo sobre o meiordquo

102 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Para Piaget haacute a superaccedilatildeo contiacutenua do modelo antecedente pelos

modelos subsequentes na mente da crianccedila que embora mais complexos

estavam presentes no anterior como possibilidade ndash latente ndash de

existecircncia e que quando concretizados superam o anterior englobando-

o a saber sensoacuterio-motor de 0 a 1824 meses periacuteodo que antecede a

proacutepria linguagem preacute-operatoacuterio de 162 anos a 78 anos periacuteodo

marcado pelo desenvolvimento das representaccedilotildeessiacutembolos o

operatoacuterio-concreto de 78 anos a 1112 anos periacuteodo da construccedilatildeo

loacutegica e por fim operatoacuterio-formal de 1112 anos em diante periacuteodo em

que a crianccedila eacute capaz de raciociacutenios hipoteacutetico-dedutivos (PIATELLI-

PALMARINI 1983)6

Logo todo sistema se torna subsistema de um novo sistema isto eacute uma

subestrutura da nova estrutura organizadora seguindo um movimento em

direccedilatildeo agrave maior complexidade No caso do pensamento humano quanto

mais proacuteximo da organizaccedilatildeo loacutegica do real melhor o sistema recriado pelas

suas estruturas intelectivas Nesse vieacutes supotildee-se que o ceacuterebro humano seja

capaz de reproduzir internamente a mesma complexidade que o mundo

produz de forma dessubjetivada externamente Isto eacute concluiacutedas as etapas

de amadurecimento cognitivo no indiviacuteduo este seria capaz de reproduzir

ainda que inconscientemente o mesmo niacutevel de complexidade das estruturas

do mundo na forma de conhecimento (matemaacutetico por excelecircncia)

(PIATELLI-PALMARINI 1983)7

Destarte conforme o epistemoacutelogo suiacuteccedilo tanto o pensamento

humano como as ideias cientiacuteficas parecem funcionar por meio da

6 No que diz respeitos agraves etapas de maturaccedilatildeo do conhecimento humano Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 40) especifica ldquoEm primeiro lugar um periacuteodo sensoacuterio-motor anterior agrave linguagem vecirc constituir-se uma loacutegica das accedilotildees (relaccedilotildees de ordem concatenaccedilatildeo de esquemas intersecccedilotildees estabelecimentos de correspondecircncia etc) fecunda em descobertas e mesmo invenccedilotildees (objetos permanentes organizaccedilatildeo do espaccedilo causalidade etc) Dos 2 aos 7 anos haacute uma conceptualizaccedilatildeo das accedilotildees logo representaccedilotildees com descoberta de funccedilotildees entre as co-variaccedilotildees de fenocircmenos identidades etc mas ainda sem operaccedilotildees reversiacuteveis nem conservaccedilotildees Estas duas uacuteltimas constituem-se ao niacutevel das operaccedilotildees concretas (7-10 anos) com lsquoagrupamentosrsquo logicamente estruturados mas ainda ligados agrave manipulaccedilatildeo de objetos Finalmente por volta dos 11-12 anos constitui-se uma loacutegica proposicional hipoteacutetico-dedutiva sem combinatoacuterio lsquoconjunto de partesrsquo grupos de quaternidade etcrdquo

7 A respeito da relaccedilatildeo entre conhecimento e realidade Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 81) assevera ldquoRecuso-me terminantemente por minha parte a pensar que as estruturas matemaacutetico-loacutegicas tivessem uma origem aleatoacuteria elas nada tecircm de fortuito natildeo eacute por seleccedilotildees de sobrevivecircncia que puderam constituir-se mas por uma adequaccedilatildeo propriamente dita e detalhada agrave realidaderdquo

Argus Romero Abreu de Morais | 103

acumulaccedilatildeo de saberes No primeiro caso atraveacutes da capacidade loacutegico-

matemaacutetica ndash capacidade racional ndash de interagir com o ambiente os

indiviacuteduos adquirem estruturas de comportamento ou morfoloacutegicas via

fenoacutetipo que ainda desprovidas de hereditariedade passam a modificar o

proacuteprio genoma humano de modo que a mudanccedila nos niacuteveis inferiores

incorre por consequecircncia nos niacuteveis superiores do meio epigeneacutetico Essa

aquisiccedilatildeo de ldquofenocoacutepiasrdquo seria de acordo com Piaget a responsaacutevel por

selecionar as variaccedilotildees ou mutaccedilotildees no proacuteprio genoma passando a serem

hereditaacuterias Isso explicaria no seu dizer o modo pelo qual a proacutepria

linguagem teria evoluiacutedo na espeacutecie humana8

No segundo caso pela forma como a realidade parece se organizar

por leis que em uacuteltima instacircncia seguem a loacutegica matemaacutetica Associada

agrave pureza das formas a praacutetica cientiacutefica seria a principal responsaacutevel por

intermediar a relaccedilatildeo entre o homem e o mundo criando instrumentais

teoacutericos que possam fazer com que aquele compreenda e transforme o seu

habitat Ademais como vimos o processo de desenvolvimento da

linguagem na crianccedila repetiria com alta semelhanccedila a evoluccedilatildeo das

proacuteprias descobertas cientiacuteficas (PIATELLI-PALMARINI 1983)9

Ao sugerir uma oacutetica sistecircmica para a construccedilatildeo do conhecimento

Piaget avanccedila agrave sua maneira na proposta de um sujeito processual

dinacircmico em detrimento da imutabilidade do sujeito cartesiano em

8 O conceito de fenocoacutepia eacute um dos principais vetores do debate Piaget-Chomsky Piaget (apud PIATELLI-

PALMARINI 1983 p 81-2) explica tal categoria da seguinte forma ldquoFenocoacutepia eacute um processo bioloacutegico em que certos comportamentos (eacute sobretudo vaacutelido no domiacutenio dos comportamentos) ou entatildeo uma certa forma ou estrutura morfoloacutegica satildeo primeiramente adquiridos pelo fenoacutetipo mas sem hereditariedade O fenoacutetipo pelo contraacuterio modifica o meio interior e modifica os niacuteveis superiores pelo meio epigeneacutetico e entatildeo as variaccedilotildees ou as mutaccedilotildees que podem produzir-se no genoma seratildeo selecionadas natildeo pelo meio exterior mas por esse meio interior ou epigeneacutetico que vai canalizaacute-las na mesma direccedilatildeo da conduta jaacute adquirida pelo fenoacutetipo por outras palavras haveria uma reconstruccedilatildeo geneacutetica ou gecircnica de uma aquisiccedilatildeo feita pelo fenoacutetipordquo

9 Sobre o tema Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 48) conclui ldquoPara periacuteodos mais vastos da histoacuteria eacute evidente que natildeo se encontra um paralelismo estaacutegio por estaacutegio mas eacute possiacutevel encontrar mecanismos comuns [] Ora deparamo-nos com um processo anaacutelogo [agrave histoacuteria da geometria ocidental] embora em escala reduzida nas crianccedilas as quais comeccedilam naturalmente pelo intrafigural mas descobrem por volta dos 7 anos que para determinar um ponto num plano natildeo basta uma medida sendo precisas duas que estejam dispostas de maneira ortogonal A essa etapa lsquointerfiguralrsquo (necessaacuteria tambeacutem para a construccedilatildeo de horizontais) sucede aquela que podemos denominar lsquotransfiguralrsquo em que as propriedades a descobrir natildeo podem ler-se numa uacutenica figura mas requerem uma deduccedilatildeo e um caacutelculo as curvas mecacircnicas os movimentos relativos etcrdquo

104 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Chomsky10 o qual antecede a experiecircncia Desse modo por um lado sua

perspectiva de geraccedilatildeo da funccedilatildeo simboacutelica da linguagem a partir dos

significantes sensoacuterio-motores ndash associaccedilatildeo de objetos a esquemas de accedilatildeo

ndash o opotildee ao modo pelo qual Chomsky entende o ldquonuacutecleo fixordquo da

linguagem por outro ao prescindir da opacidade do mundo em relaccedilatildeo agrave

linguagem bem como das rupturas e contradiccedilotildees advindas da histoacuteria

contrasta indiretamente sua teoria com a perspectiva do pensamento

sustentada por Foucault

O Algoritmo eacute o Sujeito

Se qualquer coisa fosse possiacutevel entatildeo nada seria possiacutevel

Noam Chomsky

Para Chomsky (1979) o ceacuterebro humano eacute arquitetado por diferentes

subsistemas inatos em interaccedilatildeo limitada os quais decorrem de distintos

processos evolutivos no Homo sapiens A linguagem seria uma dessas

faculdades isto eacute um subsistema da inteligecircncia humana que permite a

interface com o moacutedulo conceptual-intencional (semacircntico-pragmaacutetico) e

o perceptual-articulatoacuterio (sensoacuterio-motor) Sendo a forma da linguagem

restrita evolutivamente agraves formas representacionais possiacuteveis no ceacuterebro

humano pode-se adquirir apenas o que eacute biologicamente previsto11

Nesse vieacutes o empreendimento gerativista se baseia em pelo menos

trecircs hipoacuteteses importantes para as Ciecircncias Cognitivas em particular no

que toca agrave Linguiacutestica (I) a estrutura representacional do pensamento

humano eacute preacutevia a toda experiecircncia do corpo de modo que a linguagem

10 Sobre esse toacutepico Piaget (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 45) destaca ldquoMas o que os inatistas parecem esquecer de maneira surpreendente eacute que existe um mecanismo tatildeo geral quanto a hereditariedade e que num sentido ateacute a comanda eacute a auto-regulaccedilatildeo a qual desempenha um papel em todas as escalas desde o genoma e um papel tanto mais importante quanto mais se avizinha dos niacuteveis superiores e do comportamento A auto-regulaccedilatildeo cujas raiacutezes satildeo evidentemente orgacircnicas eacute assim comum aos processos vitais e mentais e suas accedilotildees tecircm aleacutem disso a grande vantagem de ser diretamente controlaacuteveis portanto eacute nessa direccedilatildeo e natildeo na da simples hereditariedade que conveacutem buscar a explicaccedilatildeo bioloacutegica das construccedilotildees cognitivas tanto mais que pelo jogo das regulaccedilotildees de regulaccedilotildees a auto-regulaccedilatildeo eacute por sua proacutepria natureza eminentemente construtivista (e dialeacutetica)rdquo

11 Para aprofundar essas questotildees sugerimos a leitura de Chomsky (2006 2008) e de Berwick e Chomsky (2017) Utilizaremos algumas passagens dessas obras no presente texto

Argus Romero Abreu de Morais | 105

deve ser explicada com relaccedilatildeo agrave heranccedila bioloacutegica da espeacutecie humana (II)

a linguagem humana eacute constituiacuteda por um conjunto de algoritmos ndash regras

de formaccedilatildeo ndash implementados no nosso ceacuterebro os quais fundariam o

ldquoestado inicial S0 geneticamente determinadordquo12 tambeacutem conhecido como

Gramaacutetica Universal (GU) a qual conteacutem os princiacutepios pelos quais pode-

se adquirir uma dada liacutengua natural ndash condicionada agrave experiecircncia humana

ndash ateacute chegar a um ldquoestado estacionaacuteriordquo (steady state) (III) a Linguiacutestica

deve se formalizar de modo a explicar como um indiviacuteduo eacute capaz de gerar

um nuacutemero infinito de frases em sua liacutengua vernaacutecula a partir de um

conjunto limitado de regras sintaacuteticas (infinitude discreta) em vista disso

a teoria chomskyana eacute chamada de Gramaacutetica Gerativa13

Se tanto Chomsky como Piaget parecem concordar com a existecircncia

de um ldquonuacutecleo fixordquo da linguagem o linguista norte-americano se afasta

do bioacutelogo suiacuteccedilo ao responder as duas principais criacuteticas piagetianas ao

seu modelo teoacuterico quais sejam (a) a inexplicabilidade das mutaccedilotildees na

espeacutecie humana responsaacuteveis por lhe dotar dessas estruturas inatas (b) a

consideraccedilatildeo da inteligecircncia sensoacuterio-motora na formaccedilatildeo da inteligecircncia

simboacutelica seria tatildeo eficiente quanto a hipoacutetese do inatismo na explicaccedilatildeo

da formaccedilatildeo desse ldquonuacutecleo fixordquo

12 Consoante Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoO desenvolvimento dessa pessoa (em um ambiente natural) efetua-se a partir do estado inicial S0 geneticamente determinado passa por uma sequecircncia de estados S1 S2 e atinge finalmente um lsquoestado estacionaacuteriorsquo (steady state) S8 o qual soacute parece entatildeo modificar-se de maneira secundaacuteria (digamos por acreacutescimo de vocabulaacuterio novo) O estado estacionaacuterio eacute alcanccedilado numa idade relativamente fixa aparentemente na puberdade ou um pouco antesrdquo

13 De acordo com Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 52) ldquoEle [investigador independente] abordaraacute ou deveria abordar o estudo das estruturas cognitivas como eacute o caso da linguagem humana de uma forma anaacuteloga agravequela como estudaria um oacutergatildeo do corpo ndash o olho ou o coraccedilatildeo por exemplo ndash a fim de determinar (I) as suas caracteriacutesticas num dado indiviacuteduo (II) suas propriedades gerais invariantes de uma espeacutecie agrave outra abstraccedilatildeo feita de todo o deacuteficit flagrante (III) seu lugar num sistema de estruturas desse tipo (IV) o curso do seu desenvolvimento no indiviacuteduo em questatildeo (V) o fundamento geneticamente determinado desse desenvolvimento (VI) os fatores que deram origem a esse oacutergatildeo no decorrer da evoluccedilatildeordquo No que concerne aos aspectos matemaacuteticos dos estudos da mente humana Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 2014 p 16) complementa ldquoEntendo por isso [teoria matemaacutetica da mente] simplesmente uma teoria abstrata articulada com precisatildeo e formulada com clareza que tenha consequecircncias empiacutericas que nos permita saber se a teoria estaacute certa ou errada ou se estaacute no caminho errado ou certo E que ao mesmo tempo tenha as propriedades da ciecircncia matemaacutetica isto eacute as propriedades do rigor e da precisatildeo e uma estrutura que nos permita deduzir conclusotildees a partir de hipoacuteteses e assim por dianterdquo Por fim Berwick e Chomsky (2017 p 108) esclarecem o que entendem por infinitude discreta ldquoDiscreta porque haacute frases de cinco palavras e frases de seis palavras mas nenhuma frase de cinco palavras e meia infinita porque natildeo haacute [virtualmente] uma frase que seja a frase mais longa da liacutenguardquo

106 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A esse respeito Chomsky responde que apesar de haver brechas na

teoria evolutiva no que concerne ao entendimento da seleccedilatildeo natural em

relaccedilatildeo ao corpo humano natildeo haacute outra compreensatildeo possiacutevel para

considerar a constituiccedilatildeo dos seus oacutergatildeos Nesse sentido considera-se que

a estrutura interna dos distintos oacutergatildeos do organismo bem como seu

desenvolvimento e funcionamento satildeo independentes das experiecircncias

ontogeneacuteticas do ser Isso o impede de concordar com a hipoacutetese das

fenocoacutepias a qual sugere que estruturas adquiridas poderiam ser

absorvidas pelo genoma

Como universalizar no desenvolvimento dos indiviacuteduos algo

adquirido Essa eacute uma questatildeo que de acordo com Chomsky natildeo pode

ser resolvida pelo mecanismo construtivo da autorregulaccedilatildeo o qual natildeo

limitaria o nuacutemero de estados possiacuteveis na relaccedilatildeo mente-ceacuterebro A

soluccedilatildeo seria considerar que a mente se reduz causalmente ao ceacuterebro

Ademais a derivaccedilatildeo do sistema simboacutelico do estaacutegio sensoacuterio-motor na

crianccedila e a sua estabilizaccedilatildeo via processo de autorregulaccedilatildeo seriam

insuficientes para explicar o caraacuteter especiacutefico desse moacutedulo da

linguagem suas regras limites e relaccedilotildees com os demais aparatos da

inteligecircncia humana14

Chomsky (1977) relembra o curioso fato de tanto ele quanto Foucault

terem conseguido aproximar as suas opiniotildees acerca do tema da ldquonatureza

14 No dizer de Chomsky (apud PIATELLI-PALMARINI 1983 p 51) ldquoSe eacute verdade que ignoramos completamente como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias dotaram a espeacutecie humana da capacidade especiacutefica de aprender uma linguagem humana eacute igualmente verdadeiro que tambeacutem ignoramos como e por que mutaccedilotildees aleatoacuterias conduziram ao desenvolvimento das estruturas particulares do olho dos mamiacuteferos ou do coacutertex cerebral Natildeo concluiacutemos portanto

que essas estruturas em sua natureza fundamental no indiviacuteduo que chegou agrave maturidade satildeo determinadas por interaccedilatildeo com o meio ambiente []rdquo Berwick e Chomsky (2017 p 104 Itaacutelico dos autores) detecircm-se exclusivamente sobre o fato de a linguagem humana ser exclusiva agrave nossa espeacutecie e de sua breve existecircncia ser possiacutevel dentro de uma teoria evolucionista que considere aleacutem dos processos seletivos e adaptativos claacutessicos as mutaccedilotildees e os efeitos estocaacutesticos da Biologia Moderna ldquoDe maneira completamente desconhecida nossos antepassados desenvolveram conceitos humanos Em algum momento no passado muito recente ao que parece algum tempo antes de 80 mil anos atraacutes se pudermos julgar a partir de nossos representantes simboacutelicos indiviacuteduos em um pequeno grupo de hominiacutedeos na Aacutefrica Oriental sofreram uma pequena mudanccedila bioloacutegica que favoreceu o surgimento da operaccedilatildeo Merge ndash uma operaccedilatildeo que toma conceitos humanos como aacutetomos computacionais [leacutexico] e produz expressotildees estruturadas que sistematicamente interpretadas pelo sistema conceitual fornecem uma rica linguagem do pensamento [] A inovaccedilatildeo teve vantagens oacutebvias e se disseminou pelo pequeno grupo Em algum estaacutegio posterior a linguagem do pensamento interna estava ligada ao sistema sensoacuterio-motor []rdquo De acordo com essa abordagem a linguagem emerge como ldquoferramentardquo para o pensamento (foco na internalizaccedilatildeo) e natildeo para a comunicaccedilatildeo (foco na externalizaccedilatildeo) garantindo agravequeles que a possuem as vantagens da abstraccedilatildeo inferecircncia interpretaccedilatildeo organizaccedilatildeo da accedilatildeo e do planejamento em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que natildeo a possuem

Argus Romero Abreu de Morais | 107

humanardquo enquanto que o mesmo natildeo ocorreu com relaccedilatildeo agravequele

relacionado ao ldquoaspecto poliacutetico do saberrdquo A seu ver isso pode ser

explicado pela seguinte metaacutefora ldquoQuanto ao conceito de natureza

humana pareceu-me que cavaacutevamos a mesma montanha a partir de

direccedilotildees opostasrdquo (CHOMSKY 1977 p 78-9)

Embora seja difiacutecil supor um consenso entre o pesquisador norte-

americano defensor do inatismo da linguagem e o filoacutesofo francecircs um

dos principais nomes da empreitada filosoacutefica do ldquodescentramento do

sujeitordquo o primeiro supotildee que no fim das contas isso eacute possiacutevel pelo fato

de eles se deterem sobre as mesmas questotildees embora partindo de pontos

diferentes Para Chomsky (1977) a pesquisa cientiacutefica eacute devedora de dois

aspectos 1) as propriedades constituintes do espiacuterito e 2) as condiccedilotildees

sociais e intelectuais que possibilitam a emergecircncia e a consolidaccedilatildeo dos

saberes em um dado periacuteodo histoacuterico Natildeo se trataria de excluir um ou

outro pois ambos estatildeo relacionados Ele se deteria sobre o primeiro

abordando os processos de aquisiccedilatildeo e de desenvolvimento da linguagem

nos indiviacuteduos enquanto Foucault priorizaria a anaacutelise das condiccedilotildees

histoacutericas que possibilitam a conformaccedilatildeo social do conhecimento em

meio agraves relaccedilotildees de saber-poder (CHOMSKY 1977)15

15 Apesar de essa argumentaccedilatildeo parecer dirimir as distinccedilotildees epistemoloacutegicas dos autores via complementaridade o vieacutes chomskyano prioriza sempre os argumentos relacionados agraves estruturas cerebrais humanas em detrimento do vieacutes sociocultural foucaultiano inclusive quando tratam dos paracircmetros de cientificidade na produccedilatildeo do conhecimento humano como nos deixa entrever o seguinte raciociacutenio ldquoOra quando por felicidade acontece de algum aspecto da realidade conter a propriedade de uma das estruturas existentes em nossa mente entatildeo temos um

exemplo do conhecimento Isso quer dizer que afortunadamente a estrutura da nossa mente e a estrutura de algum aspecto da realidade coincidem o bastante para que possamos desenvolver um conhecimento inteligiacutevel Eacute exatamente essa limitaccedilatildeo inicial que existe em nossa mente quanto a certo tipo de conhecimento possiacutevel que proporciona a enorme riqueza e criatividade do conhecimento cientiacuteficordquo (CHOMSKY 2014 p 34) A ldquocoincidecircncia suficienterdquo entre as propriedades da mente e as propriedades do mundo parece curiosamente aproximar Chomsky de Piaget ou pelo menos do que o linguista norte-americano denomina de ldquodoutrinas do referencialismordquo abrindo a nosso ver uma possiacutevel contradiccedilatildeo teoacuterica com as seguintes passagens ldquoOs siacutembolos da linguagem humana e do pensamento satildeo muito diferentes [em relaccedilatildeo ao dos chimpanzeacutes] Seu uso natildeo estaacute automaticamente condicionado por estados emocionais e eles natildeo dependem de objetos independentes da mente ou eventos no mundo externo Para a linguagem e o pensamento ao que parece natildeo haacute uma relaccedilatildeo de referecircncia no sentido de Frege Peirce Tarski Quine e da filosofia contemporacircnea da linguagem e da menterdquo (BERWICK CHOMSKY 2017 p 102 Itaacutelico dos autores) Pouco depois Berwick e Chomsky (2017 p 103 Itaacutelicos dos autores) redefinem a referecircncia como um ldquoideal normativordquo para a ciecircncia ldquoPara a ciecircncia o conceito de referecircncia no sentido teacutecnico eacute um ideal normativo esperamos que os conceitos inventados de foacuteton ou de sintagma verbal se refiram a alguma coisa real dono mundo E eacute claro que o conceito de referecircncia eacute muito bom para o contexto para o qual foi inventado na loacutegica moderna para os sistemas formais em que a relaccedilatildeo de referecircncia eacute estipuladardquo Resta-nos perguntar qual o paracircmetro para

108 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Se Chomsky recorre a Descartes para estabelecer parte dos

fundamentos filosoacuteficos do Gerativismo notadamente no que concerne

ao entendimento da relaccedilatildeo entre sujeito cognoscente e objeto

cognosciacutevel16 pauta-se no corte copeacuternico-galileano da fundaccedilatildeo da ciecircncia

moderna para definir o modelo hipoteacutetico-dedutivo na pesquisa

linguiacutestica17 Logo o problema do conhecimento no sujeito eacute tambeacutem o

problema do que pode ser conhecido no mundo almejando compreender

tanto como as estruturas cognitivas humanas permitem o desvendamento

das estruturas da realidade vivenciada como a melhor forma de organizar

as primeiras no intuito de desenvolver programas investigativos

sistemaacuteticos Esse problema epistemoloacutegico eacute transversal a Piaget

Chomsky e Foucault em suas empreitadas teoacutericas de modo que eacute nesse

ponto em que suas distintas teorias sobre a formaccedilatildeo do ser tocam no

entendimento da Histoacuteria das Ciecircncias englobando a constituiccedilatildeo dos

campos disciplinares a validade das proposiccedilotildees cientiacuteficas e a

transformaccedilatildeo dos seus pressupostos ao longo do tempo

distinguir quais conceitos coincidem com a realidade e quais natildeo Quais os limites do imaginaacuterio humano em relaccedilatildeo ao simboacutelico e ao real

16 Nesse ponto Chomsky (2008 p 28) por vezes se ancora em Descartes Kant e Leibniz aproximando suas contribuiccedilotildees filosoacuteficas daquelas de Franccedilois Jacob e Jacques Monod ndash tambeacutem presentes no debate Piaget-Chomsky ndash para o entendimento da neurofisiologia da linguagem ldquoAcho que Monod estaacute certo ao comentar que lsquoessas descobertas [sobre um sistema analiacutetico primitivo em animais natildeo-humanos] apoiam num sentido novo as teses de Descartes e Kant contrariamente ao empirismo radical que tem dominado a ciecircncia por dois seacuteculos e que lanccedila suspeitas sobre qualquer hipoacutetese que postule a natureza inata das formas de conhecimentorsquo Ateacute onde sabemos os animais aprendem de acordo com um programa determinado geneticamente Natildeo haacute razatildeo para duvidar que isto seja verdade tambeacutem no que se refere lsquoagraves categorias fundamentais do conhecimento humanorsquo []rdquo Sobre o papel da experiecircncia na aprendizagem lembra ldquoQue a experiecircncia seja um requisito para colocar em funcionamento estruturas inatas ou para ativar um sistema de ideias inatas eacute algo admitido de modo bastante expliacutecito por Descartes

Leibniz e outros como parte de teorias que dificilmente podem ser consideradas lsquoempiristasrsquo []rdquo (CHOMSKY 2008 p 32-3) Em outra passagem afirma ldquoA ideia eacute lsquoinato agrave mentersquo no sentido em que Descartes argumentou que lsquoa ideia de um triacircngulo verdadeirorsquo eacute inatardquo (CHOMSKY 2008 p 48)

17 Sobre a importacircncia do corte copeacuternico-galileano para o estabelecimento do meacutetodo cientiacutefico moderno e consequentemente para a formaccedilatildeo de teorias cientiacuteficas Chomsky (2006 p 121) ressalta ldquoO que foi notaacutevel com respeito a Galileu e considerado muito ofensivo na eacutepoca foi que ele rejeitou muitos dados Ele estava disposto a dizer lsquoVejam se os dados refutam a teoria os dados provavelmente estatildeo erradosrsquo E os dados que descartou natildeo eram insignificantes Por exemplo ele defendia a tese de Copeacuternico mas natildeo era capaz de explicar porque os corpos natildeo se desprendiam da Terra se a Terra estaacute girando por que tudo natildeo estaacute solto no espaccedilordquo Em seguida complementa ldquoBem tudo isso eacute parte do que vocecirc poderia chamar de lsquoestilo galileanorsquo dedicaccedilatildeo agrave busca do entendimento natildeo apenas do registro O registro dos fenocircmenos em si eacute insignificante [] [] O reconhecimento de que esse eacute o caminho que a ciecircncia deve seguir se quisermos buscar o entendimento [] eacute um passo bastante grande e que tem muitas partes como a estrateacutegia galileana de descartar fenocircmenos recalcitrantes quando isso implicar um aumento de compreensatildeo a maior preocupaccedilatildeo poacutes-newtoniana com a inteligibilidade das teorias do que com o mundo e assim por dianterdquo (CHOMSKY 2006 p 125-6)

Argus Romero Abreu de Morais | 109

Para Foucault (CHOMSKY 2014) o problema da perspectiva

argumentativa de Chomsky (1977) estaria em natildeo reconhecer o fato de que

os lados da montanha natildeo podem ser separados de forma estanque pondo

o indiviacuteduo-sujeito de um lado e a constituiccedilatildeo histoacuterica do saber de

outro Isso ocasionaria um vieacutes metafiacutesico na explicaccedilatildeo da subjetividade

humana a qual poderia transformar sem ser transformada De certo

modo de tatildeo racionalista o vieacutes chomskyano entraria no campo do

idealismo rompendo com o vieacutes materialista da anaacutelise teoacuterica Tomando

por base esse raciociacutenio perguntamo-nos os domiacutenios histoacutericos do saber

possibilitam a constituiccedilatildeo e a emergecircncia das propriedades constituintes

do espiacuterito em um dado indiviacuteduo Passaremos a essa questatildeo na seccedilatildeo

seguinte

Pensamento e Discurso

E se o intelecto fosse uma estrutura complexa muacuteltipla e natildeo individual natildeo

lsquosujeita ao sujeitorsquo que produzisse resultados autecircnticos

Michel Foucault

O projeto filosoacutefico foucaultiano se interessa pelo entendimento

daquilo que ele chama de saber discursivo de modo a estabelecer uma

perspectiva da Histoacuteria das Ciecircncias ou das Ideias que natildeo se atenha agrave

criatividade centrada no indiviacuteduo no sujeito falante e no cientista assim

como na continuidade cumulativa do conhecimento Destarte o que se

estabelece como verdadeiro em cada periacuteodo histoacuterico depende da

maneira como uma dada sociedade organiza a validade ndash inclusive a

cientificidade ndash de determinados dizeres e por consequecircncia exclui a de

outros criando mecanismos sociais de controle do que se pode ou deve

dizer sobre um dado objeto

Para Foucault a liacutengua como sistema de signos criado socialmente

conforme definida por Saussure (2006) natildeo se reduz ao discurso

possuindo uma ordem simboacutelica proacutepria com sua loacutegica e suas regras

Consoante o linguista suiacuteccedilo a liacutengua seria uma forma sendo equivocado

110 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

consideraacute-la como uma substacircncia visto que como fato social ela

funciona tambeacutem como instituiccedilatildeo estabelecendo normas classificaccedilotildees e

nomenclaturas Ela seria aleacutem disso o principal sistema organizador da

linguagem humana sendo o signo a junccedilatildeo de um conceito (significado) a

uma imagem acuacutestica (significante) ambos psiacutequicos e em relaccedilatildeo

negativa com o mundo em si O valor de um dado signo se daacute por oposiccedilatildeo

aos demais maneira pela qual estabelece suas relaccedilotildees no sistema

linguiacutestico

Segundo Foucault (2008) a liacutengua natildeo se materializa no vaacutecuo pois

para que possa produzir sentido eacute recortada pela funccedilatildeo discursiva um

modo histoacuterico de organizaacute-la em zonas do conhecimento atribuindo-lhe

conceitos isto eacute objetos Liacutengua e discurso se atravessam pela funccedilatildeo

enunciativa18 constituindo os limites da cogniccedilatildeo humana Tratar-se-ia

portanto natildeo do pensamento do sujeito mas do pensaacutevel no sujeito natildeo

do dizer do falante mas do diziacutevel pelo falante os quais necessitam de preacute-

formaccedilotildees do saber histoacuterico para que possam constituir os estados

mentais e as possibilidades de fala nos indiviacuteduos19 Natildeo haacute assim

anterioridade do pensamento em relaccedilatildeo agrave linguagem sob pena de o

18 Nesta seccedilatildeo em alguns momentos remeteremos aos raciociacutenios de Foucault (2008) como forma de aprofundar sua perspectiva e instrumentais teoacutericos os quais natildeo satildeo trabalhados precisamente em Chomsky (2014) Sobre a singularidade do enunciado em relaccedilatildeo agraves demais categorias de estudos da linguagem Foucault (2008 p 103 Itaacutelicos nossos) esclarece ldquoUm enunciado natildeo tem diante de si (e numa espeacutecie de conversa) um correlato - ou uma ausecircncia de correlato assim como uma proposiccedilatildeo tem um referente (ou natildeo) ou como um nome proacuteprio designa um indiviacuteduo (ou ningueacutem) Estaacute antes ligado a um lsquoreferencialrsquo que natildeo eacute constituiacutedo de lsquocoisasrsquo de lsquofatosrsquo de lsquorealidadesrsquo ou de lsquoseresrsquo mas de leis de possibilidade de regras de existecircncia para os objetos que aiacute se encontram nomeados designados ou descritos para as relaccedilotildees que aiacute se encontram afirmadas ou negadas O referencial do enunciado forma o lugar a condiccedilatildeo o campo de emergecircncia a instacircncia de diferenciaccedilatildeo dos indiviacuteduos ou dos

objetos dos estados de coisas e das relaccedilotildees que satildeo postas em jogo pelo proacuteprio enunciado define as possibilidades de aparecimento e de delimitaccedilatildeo do que daacute agrave frase seu sentido agrave proposiccedilatildeo seu valor de verdaderdquo

19 Sobre o assunto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 23 Itaacutelicos nossos) destaca ldquoQuando estudamos a histoacuteria do conhecimento percebemos que existem duas linhas gerais de anaacutelise de acordo com uma delas deve-se demonstrar como sob que condiccedilotildees e por que razotildees o intelecto se modifica no que diz respeito a suas regras formadoras sem passar por um lsquoinventorrsquo que descobre a verdade e de acordo com a outra deve-se demonstrar como o funcionamento das regras de um intelecto pode produzir num indiviacuteduo conhecimento novo e ineacutedito Aqui meu objetivo junta-se com meacutetodos imperfeitos e de uma forma bem inferior ao projeto do sr Chomsky ao explicar o fato de que algumas poucas regras ou elementos precisos totalidades desconhecidas que nunca foram nem produzidas podem ser elucidadas pelos indiviacuteduos Para resolver este problema o sr Chomsky tem de reintroduzir o dilema do sujeito no campo da anaacutelise gramatical Para resolver um problema anaacutelogo no campo da histoacuteria com o qual me encontro envolvido eacute preciso fazer o oposto de certo modo introduzir o ponto de vista do intelecto de suas regras de seus sistemas de suas transformaccedilotildees de totalidades no jogo do conhecimento individual Tanto em um como no outro caso o problema da criatividade natildeo pode ser resolvido da mesma maneira ou melhor natildeo pode ser formulado nos mesmos termos dada a condiccedilatildeo das disciplinas em cujo interior ele eacute colocadordquo

Argus Romero Abreu de Morais | 111

primeiro funcionar como uma instacircncia imaterial pura sem

temporalidade nem espacialidade

Sendo a linguagem uma produccedilatildeo social anterior ndash externalizada ndash

aos indiviacuteduos (seres orgacircnicos) deve-se considerar que as formas

simboacutelicas satildeo as responsaacuteveis pela instituiccedilatildeo do sujeito (aquele que

concretiza o enunciado) natildeo sendo os primeiros a dizerem o que dizem

natildeo satildeo tambeacutem o locus da gecircnese semacircntica Engajar-se numa situaccedilatildeo

de produccedilatildeo de sentidos eacute necessariamente posicionar-se ndash ou ser

posicionado ndash de acordo com as regras enunciativas vivenciadas e

institucionalizadas em sociedade Os enunciados representam as regras

historicizadas da forma de pensar e natildeo o revelar da intencionalidade e

do conhecimento em si por vezes tidos como a priori universais em

relaccedilatildeo agravequelas20 Logo como emergecircncia das organizaccedilotildees histoacutericas do

pensamento em distintas praacuteticas sociais o sujeito irrompe fragmentado

visto que sua internalidade decorre das descontinuidades dos saberes que

lhe atravessam natildeo sendo possiacutevel encontrar sua essecircncia nem na

interioridade do espiacuterito (FOUCAULT 2008) O sujeito torna-se portanto

uma instacircncia simboacutelica fugidia e clivada uma forma natildeo uma substacircncia

Agora pode-se compreender com mais clareza o motivo pelo qual

Foucault (CHOMSKY 2014) sustenta que a competecircncia natildeo eacute inata assim

como as regras do pensamento humano natildeo satildeo matemaacuteticas As

regularidades se devem aos sistemas enunciativos e estes satildeo submetidos

agraves contradiccedilotildees histoacutericas decorrentes das diversas formas de organizaccedilatildeo

dos homens em sociedade A proacutepria verdade sobre um objeto portanto

20 No que concerne agrave criatividade na linguagem conceito central na abordagem chomskyana Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 27 Itaacutelicos nossos) afirma ldquoO que de fato existe satildeo criaccedilotildees possiacuteveis inovaccedilotildees possiacuteveis Em termos de linguagem ou de conhecimento soacute se pode criar algo novo aplicando determinado nuacutemero de regras que definiratildeo a aceitabilidade ou a gramaticalidade dessas afirmaccedilotildees ou que definiratildeo no caso do conhecimento o caraacuteter cientiacutefico das afirmaccedilotildeesrdquo Em seguida acrescenta ldquoTambeacutem natildeo vejo problema em dizer que essas regras devem permitir que compreendamos aquilo que eacute falado ou pensado por esses indiviacuteduos Mas dizer que essas regulamentaccedilotildees estatildeo conectadas como precondiccedilatildeo da existecircncia agrave mente humana ou [agrave] sua natureza eacute algo difiacutecil de aceitar para mim Parece-me que antes de chegar a esse ponto ndash e seja como for estou me referindo apenas ao conhecimento ndash devemos reinseri-las no acircmbito de outras praacuteticas humanas como a economia a tecnologia a poliacutetica a sociologia que podem servir-lhes como condiccedilotildees de formaccedilatildeo de modelos de lugar de surgimento etc Gostaria de saber por que natildeo se pode descobrir o sistema de regularidade de limitaccedilatildeo ndash que torna a ciecircncia possiacutevel ndash em outro lugar mesmo fora da mente humana nos sistemas sociais nas relaccedilotildees de produccedilatildeo na luta de classes etcrdquo (FOUCAULT apud CHOMSKY 2014 p 36)

112 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

estaria submetida agrave temporalidade da histoacuteria e natildeo a uma descoberta

apesar da histoacuteria Assim em uacuteltima instacircncia a verdade estaria

condicionada agrave historicidade das ideias visto que a veracidade de um dado

referente decorre dos regimes de verdade os quais satildeo criados e

reproduzidos pelos grupos e instituiccedilotildees sociais bem como pelas relaccedilotildees

de forccedila instituiacutedas entre eles em cada sociedade (FOUCAULT 2008)

Para o filoacutesofo a proacutepria noccedilatildeo de ldquonatureza humanardquo natildeo se

configuraria como um conceito cientiacutefico funcionando mais como uma

espeacutecie de ldquoindicador epistemoloacutegicordquo que organiza distintas incursotildees

cientiacuteficas ao longo do seacuteculo XX21 Nesse sentido podemos entender que em

uma abordagem discursiva da relaccedilatildeo pensamentolinguagemmundo a

proacutepria forma deve ceder espaccedilo ao funcionamento22 Isso significa que

Foucault almeja desconstruir a psicologia interna dos sujeitos nos seguintes

termos constituiccedilatildeo social da linguagem (externalismo em oposiccedilatildeo ao

internalismoinatismo) rarr regras de enunciaccedilatildeo histoacutericas rarr

discursividades rarr pensamento rarr fala rarr condiccedilotildees de enunciaccedilatildeo rarr

sujeito do discurso (subjetividade imanente agrave linguagem em oposiccedilatildeo agrave

subjetividade transcendente) rarr praacutetica discursiva (FOUCAULT 2008)

A singularidade de uma produccedilatildeo discursiva decorre do fato de a

liacutengua(gem) por consequecircncia o proacuteprio pensamento soacute se materializar

em uma dada praacutetica constrangida por possibilidades que natildeo satildeo da sua

proacutepria ordem23 A infinidade de possibilidades para a realizaccedilatildeo de um

21 Ao comentar sobre a ldquonatureza humanardquo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 8 Itaacutelicos nossos) pondera ldquoNatildeo foi estudando a natureza humana que os linguistas descobriram as leis da mutaccedilatildeo consonantal que Freud descobriu

os princiacutepios da anaacutelise dos sonhos ou que os antropoacutelogos culturais descobriram as estruturas dos mitos Tenho a impressatildeo de que na histoacuteria do conhecimento a ideia de natureza humana desempenhou principalmente o papel de um indicador epistemoloacutegico [semelhante ao ideal normativo de Berwick e Chomsky (2017)] para designar certos tipos de discurso relacionados ou contraacuterios agrave teologia agrave biologia ou agrave histoacuteria Para mim seria difiacutecil ver nisso um conceito cientiacuteficordquo

22 Sobre esse aspecto Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 36) pontua ldquoTalvez a diferenccedila entre o sr Chomsky e eu seja que quando fala de ciecircncia ele provavelmente estaacute pensando na organizaccedilatildeo formal do conhecimento enquanto eu estou falando do conhecimento em si ou seja eu penso no conteuacutedo de diversos conhecimentos que se encontram dispersos numa sociedade especiacutefica que permeiam a sociedade e que se afirmam como o fundamento da educaccedilatildeo das teorias das praacuteticas etcrdquo

23 Segundo Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 21 Itaacutelicos nossos) ldquoO que me preocupa eacute a substituiccedilatildeo das transformaccedilotildees do intelecto pela histoacuteria das descobertas do conhecimento Desse modo eu tenho ao menos aparentemente uma atitude completamente diferente da do sr Chomsky a propoacutesito da criatividade porque para mim a questatildeo eacute eliminar o dilema do sujeito cognoscente enquanto para ele a questatildeo eacute permitir que o dilema do sujeito falante reapareccedila Poreacutem se ele o fez reaparecer se ele o descreveu eacute porque tem condiccedilotildees de fazecirc-lo Jaacute faz

Argus Romero Abreu de Morais | 113

enunciado natildeo representa a sua aleatoriedade pois esse gozaria de uma

caracteriacutestica semelhante agrave linguagem em Chomsky tendendo agrave raridade

das suas regras A diferenccedila entre o algoritmo no Gerativismo e a funccedilatildeo

enunciativa na perspectiva discursiva de Foucault eacute que esta uacuteltima se

constitui externamente ao espiacuterito sendo adquirida pelas experiecircncias em

sociedade Essa espeacutecie de empirismo histoacuterico natildeo se associa ao

comportamentalismo skinneriano dado que natildeo se funda na

transparecircncia da relaccedilatildeo entre o sistema perceptual e o mundo e na

consequente abstraccedilatildeo das relaccedilotildees dos objetos pela induccedilatildeo direta A

linguagem eacute opaca ndash indeterminada ndash em sua estrutura fundamental

sendo o sujeito sua consequecircncia

Eacute nesse ponto que Chomsky pode ter visto semelhanccedila entre a sua

abordagem e a de Foucault de modo que o filoacutesofo francecircs natildeo abandona

necessariamente as capacidades da inteligecircncia humana apenas se opotildee agrave

reduccedilatildeo dos conceitos a sistemas loacutegicos a priori no espiacuterito Ambos

parecem concordar que a linguagem funda um limite do possiacutevel no ser

considerando-a como instacircncia que aponta recursivamente para si mesma

e que demarca os estados finitos do dizer e de suas propriedades de

encadeamento diferentemente do sujeito tendencialmente onipotente

piagetiano e de seu ajuste em relaccedilatildeo agraves estruturas loacutegicas do mundo

Por fim podemos concluir que Chomsky e Foucault satildeo

antirreferencialistas na medida em que negam a relaccedilatildeo direta entre

palavra e objeto24 Opotildeem-se contudo na associaccedilatildeo ao estruturalismo

saussureano para o qual a liacutengua eacute uma entidade coletiva fundada em uma

espeacutecie de contrato social e natildeo um objeto bioloacutegico internalizado como

pretende o Gerativismo Em semelhanccedila com Piaget para Foucault

(2008) o sujeito natildeo eacute uma preacute-formaccedilatildeo do espiacuterito pois se constitui na

relaccedilatildeo dinacircmica entre estruturas simboacutelicas natildeo-inatas e experiecircncias em

sociedade embora segundo o estudioso francecircs a gecircnese deva ceder

muito tempo que os linguistas tecircm analisado a linguagem como um sistema que possui valor coletivo [dentre os quais Saussure] O intelecto como uma soma coletiva de regras que possibilitam que tais conhecimentos sejam produzidosem determinado periacuteodo mal foi estudado ateacute agorardquo

24 Ver aparente paradoxo em Chomsky na nota 15

114 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

espaccedilo agrave singularidade os universais semacircnticos agraves contingecircncias o

indiviacuteduo agrave subjetividade e a loacutegica matemaacutetica agrave dinacircmica histoacuterica Em

siacutentese Foucault sustenta que tanto o pensamento humano quanto os

sistemas de pensamento se organizam pela descontinuidade das ideias

frutos da emergecircncia de possiacuteveis histoacutericos e de horizontes de validade

dos conhecimentos25

Consideraccedilotildees Finais

Cada praacutetica teoacuterica constroacutei os seus limites e as suas potencialidades

dentro de um domiacutenio mais vasto dos saberes Tais diaacutelogos natildeo satildeo

desinteressados pois propotildeem construir ou desconstruir pontes do

conhecimento autorizar ou desautorizar o olhar do outro definir enfim

a si e ao outro enquanto campo do saber No que concerne a este trabalho

retomamos os debates entre Piaget Chomsky e Foucault para demonstrar

que a AD natildeo estaacute alheia aos aspectos cognitivos dos sujeitos apenas os

incorpora a uma perspectiva de historicidade radical da linguagem Pode-

25 No dizer de Foucault (apud CHOMSKY 2014 p 32 Itaacutelicos do autor) ldquoExiste haacute muito tempo a ideia de que as ciecircncias e o conhecimento seguiam certa linha de lsquoprogressorsquo obedecendo ao princiacutepio de lsquocrescimentorsquo e ao princiacutepio de convergecircncia de todos os tipos de saber [] Cada nova versatildeo torna o conhecimento completamente diferente em suas funccedilotildees em sua organizaccedilatildeo em suas relaccedilotildees internas O que se tem aiacute eacute um princiacutepio de divergecircncia muito mais do que de crescimento Eu diria antes que existem muitas maneiras diferentes de tornar possiacuteveis simultaneamente alguns tipos de conhecimento Portanto existe sempre de certo ponto de vista um excesso de informaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos possiacuteveis sistemas em determinado periacuteodo o que faz com que eles sejam conhecidos dentro de seus limites mesmo em sua deficiecircncia o que significa que natildeo se consegue perceber sua criatividade E de outro ponto de vista o do historiador existe um excesso uma proliferaccedilatildeo de sistemas para uma pequena quantidade de informaccedilatildeo daiacute a ideia amplamente difundida de que o que determina o movimento na histoacuteria da

ciecircncia eacute a descoberta de novos fatosrdquo Eacute notoacuteria a proximidade entre a perspectiva foucaultiana de saber descontinuidade e acontecimento discursivo na Histoacuteria das Ciecircncias e aquela de paradigma descontinuidade e revoluccedilatildeo cientiacutefica desenvolvida por Kuhn (1998 [1962] p 20-1) como podemos notar a seguir ldquoPreocupado com o desenvolvimento cientiacutefico o historiador parece entatildeo ter duas tarefas principais De um lado deve determinar quando e por quem cada fato teoria ou lei cientiacutefica contemporacircnea foi descoberta ou inventada De outro lado deve explicar os amontoados de erros mitos e supersticcedilotildees que inibiram a acumulaccedilatildeo mais raacutepida dos elementos constituintes do moderno texto cientiacutefico [] Contudo nos uacuteltimos anos alguns historiadores estatildeo encontrando mais e mais dificuldades para preencher as funccedilotildees que lhe satildeo prescritas pelo conceito de desenvolvimento-por-acumulaccedilatildeo [] Talvez a ciecircncia natildeo se desenvolva pela acumulaccedilatildeo de descobertas e invenccedilotildees individuaisrdquo No capiacutetulo ldquoAs revoluccedilotildees como concepccedilotildees de mundordquo o fiacutesico acrescenta ldquoGuiados por um novo paradigma os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direccedilotildees E o que eacute ainda mais importante durante as revoluccedilotildees os cientistas veem coisas novas e diferentes quando empregando instrumentos familiares olham para os mesmos pontos jaacute examinados anteriormente Eacute como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta onde objetos familiares satildeo vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidosrdquo (KUHN 1998 p 145-6)

Argus Romero Abreu de Morais | 115

se com isso demonstrar os limites das abordagens logicizantes da relaccedilatildeo

pensamentolinguagemmundo aspecto transversal ao Construtivismo e

ao Gerativismo No sentido contraacuterio entendemos que a AD deve testar

seus fundamentos teoacutericos a partir da problemaacutetica da aquisiccedilatildeo da

linguagem a qual continuaremos a explorar em trabalhos futuros tendo

por foco avaliar os fundamentos epistemoloacutegicos de uma aquisiccedilatildeo do

discurso

Referecircncias

BERWICK R CHOMSKY N Por que apenas noacutes Linguagem e evoluccedilatildeo Satildeo Paulo

Editora Unesp 2017 [2016]

CHOMSKY N Diaacutelogos com Mitsuo Ronat Satildeo Paulo Cultrix 1977

_____ Sobre o minimalismo In CHOMSKY N Sobre natureza e linguagem Satildeo Paulo

Martins Fontes 2006 [1999] p 113-200

_____ Problemas do conhecimento e da liberdade Rio de janeiro Record 2008 [1971]

_____ Natureza humana justiccedila vs poder o debate entre Chomsky e Foucault Satildeo

Paulo Editora WMF Martins Fontes 2014 [1974]

FOUCAULT M A arqueologia do saber Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 2008

[1969]

KUHN T A estrutura das revoluccedilotildees cientiacuteficas Satildeo Paulo Editora Perspectiva 1998

[1962]

PIATELLI-PALMARINI M (Org) Teorias da linguagem teorias da aprendizagem o

debate entre Jean Piaget amp Noam Chomsky Satildeo Paulo Cultrix Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 1983 [1979]

SAUSSURE F Curso de linguiacutestica geral Satildeo Paulo Cultrix 2006 [1916]

6

Consciecircncia Linguagem e Natureza em Nietzsche

A Leitura de Guumlnter Abel

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa 1

O presente texto esboccedila uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento de

Nietzsche e a filosofia da mente no que diz respeito ao tratamento de

algumas questotildees centrais aiacute presentes ndash em particular o problema da

consciecircncia no debate entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo

entre processos fiacutesicos e mentais Para a compreensatildeo de tais questotildees o

pensamento nietzscheano ndash aqui mediado pela interpretaccedilatildeo de Guumlnter

Abel ndash mostra sua relevacircncia e atualidade no sentido de uma superaccedilatildeo

daquela dicotomia

Em ldquoConsciecircncia ndash linguagem ndash natureza a filosofia da mente em

Nietzscherdquo (ABEL 2005 p 1-41)2 Abel parte da anaacutelise de alguns aspectos

da investigaccedilatildeo atual em filosofia da mente para a partir de uma exegese

do corpus nietzscheano3 apontar para sua pertinecircncia e relevacircncia dentro

desse contexto As reflexotildees de Nietzsche acerca dos acircmbitos e das relaccedilotildees

entre consciecircncia natureza e linguagem ndash a limitaccedilatildeo do consciente pelo

natildeo consciente a formaccedilatildeo de conceitos e da memoacuteria a ideia de natureza

como conjunto complexo de forccedilas por exemplo ndash mostram a importacircncia

que essa triacuteade tem para o seu pensamento

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e professor adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Cearaacute (UECE)

2 Esse texto foi originalmente publicado nos Nietzsche-Studien 30 (2001) Berlim De Gruyter

3 Em particular trechos da Gaia ciecircncia e Aleacutem de bem e mal bem como fragmentos poacutestumos de 1884 a 1887 contidos em KSA nos vols X XI XII e XIII da ediccedilatildeo criacutetica de G Colli e M Montinari (1999a 1999b 1999c 1999d)

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 117

O foco da anaacutelise de Abel recai sobre o debate ndash renovado na

atualidade apoacutes a chamada ldquoreviravolta linguiacutesticardquo iniciada por

Wittgenstein e a ldquoredescoberta da consciecircnciardquo (ABEL 2005 p 199) pela

filosofia analiacutetica ndash entre materialismo e mentalismo acerca da relaccedilatildeo

entre processos fiacutesicos e mentais em particular os processos consciente-

mentais Segundo Abel de uma maneira geral duas posturas antagocircnicas

podem daqui emergir de um lado a tese do materialismo fisicalismo

monista a defender que estados e processos mentais satildeo tatildeo somente

fenocircmenos da mateacuteria de outro a tese do mentalismo dualista que

defende a irredutibilidade daqueles a estes Ambas as posturas no entanto

por suas proacuteprias limitaccedilotildees natildeo poderiam ser superadas uma pela outra

Precisamente pela ldquoarmaccedilatildeo conceitual que implica ou tem como

consequecircncia essa natildeo resoluccedilatildeordquo (ABEL 2005 p 206) ter-se-ia entatildeo um

impasse E soacute uma modificaccedilatildeo na arquitetura mesma dessa armaccedilatildeo

conceitual tornaria possiacutevel um encaminhamento do problema de modo a

indicar as condiccedilotildees sob as quais ele natildeo poderia mais ocorrer

Os elementos de interpretaccedilatildeo apropriados a essa modificaccedilatildeo

poderiam ser encontrados segundo Abel no pensamento nietzscheano A

tese que defende e que aqui procuraremos expor eacute a de que as criacuteticas

realizadas por Nietzsche agrave questatildeo da consciecircncia expondo seus limites

apontam para uma reinterpretaccedilatildeo do fenocircmeno que natildeo se deixa reduzir

a um mero fisicalismo naturalista nem tampouco se deixa levar por uma

hipoacutestase do conceito-modelo ldquoConsciecircnciardquo A triacuteade acima citada seria

nesse sentido natildeo soacute de fundamental importacircncia para a compreensatildeo do

pensamento nietzscheano como por outro lado seu pensamento a esse

respeito ndash ao acentuar o papel da praacutexis interpretativa e das funccedilotildees

simboacutelicas linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas na constituiccedilatildeo da consciecircncia e

da autoconsciecircncia ndash mostra sua relevacircncia no sentido de uma superaccedilatildeo

daquela dicotomia Tais elementos foram reconstruiacutedos pelo autor em seis

seccedilotildees que seratildeo apresentadas a seguir princiacutepio do continuum modelo

do processo organizaccedilatildeo funcional consciecircncia e linguagem

fenomenalismo da experiecircncia interna e consciecircncia e corporeidade

118 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

O Princiacutepio do Continuum

Abel parte da compreensatildeo de que a superaccedilatildeo das dicotomias entre

mentalismo e materialismofisicalismo soacute pode ocorrer a partir de um

modo de ver natildeo dualista E Nietzsche segundo Abel defende tal

concepccedilatildeo a partir do que chama de princiacutepio do continuum o mundo

para Nietzsche constitui-se como um espectro de continuidade que vai do

inorgacircnico passando pelo orgacircnico ateacute as atividades cognitivas e aos

projetos e consecuccedilatildeo das accedilotildees O que significa que por um lado o

homem seria entendido como corporificaccedilatildeo de todas as atividades

ldquointeligentesrdquo que jaacute se encontram no orgacircnico e com as quais o ser

humano seria retraduzido na natureza por outro o ldquocaraacuteter espiritualrdquo

das atividades vivas poderia ser encontrado nas formas de manifestaccedilatildeo

orgacircnica e ateacute para aleacutem destas

Natildeo se trata aqui de uma superaccedilatildeo redutora ou derivativa do modelo

dualista na relaccedilatildeo entre o orgacircnico e o consciente No modelo do

continuum a consciecircncia desponta como um fenocircmeno gradual que surge

a partir de ldquodiferenciaccedilotildees filogeneacuteticas e ontogeneacuteticas no acircmbito do

orgacircnicordquo (ABEL 2005 p 209) e cujos elementos jaacute se encontram

presentes em animais enquanto o tornar-se consciente e a autoconsciecircncia

somente no homem seriam encontrados Dois pressupostos do princiacutepio

nietzscheanos satildeo aqui delineados em primeiro lugar formas de vida preacute-

conscientes e orgacircnicas devem ser vistas como ldquoprocessos dinacircmicosrdquo jaacute

inteligentes e basilares para a formaccedilatildeo da consciecircncia por outro ldquoestados

mentais conscientesrdquo devem ser distintos dos ldquoinconscientesrdquo sendo este

acircmbito mais amplo e a partir do qual aquele pode ser explicado Em todo

caso por peticcedilatildeo de princiacutepio ldquoa consciecircncia mesma natildeo estaacute em condiccedilatildeo

de indicar uma lsquocausa objetivarsquo para sua proacutepria origemrdquo (ABEL 2005 p

209)

O que seria entatildeo o ldquoeurdquo da consciecircncia ou o lsquoSi mesmorsquo [Selbst] do

corpo humano Dois aspectos devem ser aqui observados por um lado

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 119

como o modelo do continuum abre-se a possibilidade de que esse ldquoeurdquo

ldquoinfluencie num certo sentido os processos orgacircnicosrdquo (ABEL 2005 p

208) ou seja que determinados pensamentos possam ser ldquoincorporadosrdquo

organicamente por outro o sujeito da consciecircncia ndash ou o que Abel chama

de ldquoeu consciente e lsquoindexicalrsquordquo ndash surge como uma delimitaccedilatildeo dentro da

ldquocorrente contiacutenua de acontecimentosrdquo e natildeo mais como uma coisa

individual que precede a consciecircncia de algo O Eu aparece assim como a

ponta de um processo da qual por isso mesmo prescinde o todo restante

Daiacute a formulaccedilatildeo de Nietzsche ldquoPara que em geral consciecircncia se ela eacute

no geral supeacuterfluardquo e agrave qual ele mesmo responde ldquouma rede de ligaccedilatildeo

entre homem e homemrdquo que teve de ldquodesenvolver-se somente enquanto

talrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354)

Modelo do Processo

Enquanto continuum que vai do orgacircnico ao consciente o mundo de

Nietzsche eacute um conjunto de ldquoefeitos cambiantes dinacircmicos altamente

complexos de variadas organizaccedilotildees de forccedilas vivas e inteligentesrdquo (ABEL

2005 p 215) ndash luta e arregimentaccedilatildeo de impulsos cujo pathos se mostra a

ele como vontade de poder [der Wille zur Macht] Os elementos da

natureza nesse sentido natildeo podem mais ser tomados coisas ndash corpos

materiais ocupando posiccedilotildees no espaccedilo-tempo mas ldquoeventosrdquo ou ldquoobjetos-

processordquo (ABEL 2005 p 216)4 Tal concepccedilatildeo certamente traz

consequecircncias natildeo somente para o status do conceito de ldquocoisardquo mas

tambeacutem para a ideia de ldquosujeitordquo A questatildeo que Abel aqui se coloca eacute os

processos devem ainda pressupor um sujeito ou eacute possiacutevel partir de

processos sem sujeito

A ideia de um sujeito da consciecircncia que a represente e organize seus

conteuacutedos parece implicada no momento mesmo em que a consciecircncia

4 Abel salienta aqui a proximidade da concepccedilatildeo nietzscheana com a fiacutesica contemporacircnea (objetos como uma identidade de eventos) e com as pesquisas em filosofia da linguagem (em particular as ideias de Reichenbach e Davidson)

120 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

enquanto consciecircncia-de-algo transitiva designada por meio da

intencionalidade manifesta-se Ocorre que tambeacutem o ldquoeurdquo o sujeito da

consciecircncia soacute se manifesta em virtude do surgimento desta uacuteltima5

Como afirma Nietzsche em Aleacutem do bem e do mal a ideia de um ldquosujeito

lsquoeursquordquo como condiccedilatildeo do predicado ldquopensordquo seria uma ldquofalsificaccedilatildeo dos

fatosrdquo (NIETZSCHE 2005 sect17) Ora com isso dois postulados expostos

na seccedilatildeo anterior comeccedilam a ser esclarecidos

(a) de que o eu (sujeito) que surge no interior da consciecircncia jaacute depende de

uma amaacutelgama de processos sem sujeito e (b) que o estado e fenocircmeno da

consciecircncia repousa genealogicamente jaacute sobre estados mentais [eventos

processos] natildeo conscientes (ABEL 2005 p 218)

Haveria nesse sentido uma implicaccedilatildeo muacutetua entre a ideia de um

ldquosujeito da consciecircnciardquo e a figura de ldquoprocessos sem sujeitordquo A pergunta

ldquoquem pensardquo deve ser respondida com ldquoalgo pensardquo no sentido de que

esse ldquoalgordquo jaacute natildeo eacute um ldquoeurdquo objeto e representaccedilatildeo mas um processo e

uma interpretaccedilatildeo ndash ou citando Nietzsche ldquouma interpretaccedilatildeo do processo

que natildeo pertence ao processo mesmordquo (NIETZSCHE 2005 sect17) ndash

designada com a palavra indexical ldquoeurdquo funccedilatildeo desse processo Da mesma

forma no plano linguiacutestico as sentenccedilas de processo natildeo seriam mais

vinculadas a um sujeito gramatical (ABEL 2005 p 221)6 A ideia de sujeito

enquanto ldquoindiviacuteduo-coisardquo dissolve-se nesse sentido pelo ldquoretorno do

sujeito da consciecircncia em si mesmo como sua consequecircncia internardquo

(ABEL 2005 p 220) Em seu lugar surgem o indiviacuteduo-evento e o eu-

interpretaccedilatildeo

A suspeita de uma contaminaccedilatildeo categorial [] de que somente indiviacuteduos-

coisa fornecem o modelo de referecircncia parece banida atraveacutes da passagem ao

esquema do evento e uma teoria natildeo dualista natildeo estaacute mais aprisionada ao

5 Veremos adiante (na seccedilatildeo ldquoFenomenalismo da experiecircncia internardquo) que o eu-consciecircncia a perspectiva da primeira pessoa surge no momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a consciecircncia

6 O autor faz aqui atraveacutes de Lichtenberg um paralelo entre a concepccedilatildeo nietzscheana (com o exemplo das expressotildees impessoais) e a criacutetica ao eu-portador feita por Wittgenstein (o do Tractatus assim como o das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas na comparaccedilatildeo entre olho e o campo visual)

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 121

leito de Procrusto do sujeito da consciecircncia Somente um modelo de referecircncia

baseado em indiviacuteduos-evento abre essa possibilidade (ABEL 2005 p 222)

A partir daqui abre-se o caminho para se pensar eventos mentais

conscientes e natildeo conscientes em uma ldquoco-pertenccedila natildeo dualistardquo com

processos orgacircnicos e corporais

Organizaccedilatildeo Funcional

A ideia de processo implicaria tambeacutem uma passagem do modelo de

organismo ao de organizaccedilatildeo Com efeito o orgacircnico em Nietzsche eacute

entendido como uma ldquoestrutura de organizaccedilatildeordquo na qual a consciecircncia o

pensamento consciente e outros processos mentais resultam como

ldquopropriedades e consequecircncias emergentes da co-relaccedilatildeo muacuteltipla e

altamente complexa dos componentes do sistema inteiro que constituem

a organizaccedilatildeo e garantem sua funcionalidaderdquo Aqui natildeo se trata

propriamente de uma relaccedilatildeo entre parte e todo ndash entre particular e

universal mas de uma combinaccedilatildeo de ldquomuacuteltiplas organizaccedilotildees de forccedilas

das partesrdquo cujos efeitos fazem surgir aqueles estados mentais e emergir

a ldquoespiritualidade viva e inteligenterdquo jaacute presente no orgacircnico (ABEL 2005

p 223)

Tambeacutem aqui haveria uma proximidade com a concepccedilatildeo

atualmente defendida e aceita nas pesquisas sobre o ceacuterebro ndash em

particular ao modelo dos ldquomultiple draftsrdquo desenvolvido por Dennett

(1991 cap 5 apud ABEL 2005 p 224) ndash de que estados mentais

conscientes e natildeo conscientes satildeo resultados da organizaccedilatildeo e da

complexa dinacircmica de configuraccedilotildees de neurocircnios ndash o que vale ser aqui

salientado dado que tal modelo vai de encontro agrave concepccedilatildeo cartesiana

centralista da consciecircncia na qual o ceacuterebro teria um centro ndash um ldquoolho

internordquo para as experiecircncias conscientes Por outro lado a proacutepria ideia

de um ldquofluxo da consciecircnciardquo natildeo pode ser vista como uma sequecircncia

unificada mas ao contraacuterio processos de conformaccedilotildees dinacircmicas e

muacuteltiplas combinaccedilotildees das partes do sistema envolvidas

122 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Na concepccedilatildeo nietzscheana diz Abel esse aspecto eacute enfatizado no

sentido da dependecircncia do ldquoperfil funcionalrdquo do orgacircnico em relaccedilatildeo agraves

combinaccedilotildees de suas partes A ldquoorganizaccedilatildeo processualrdquo pode ser

entendida como configuraccedilotildees de forccedilas que preponderam e dominam ndash

ldquoregentesrdquo mas que satildeo ao mesmo tempo ldquodependentes das forccedilas

particulares funcionaisrdquo ndash e forccedilas ldquoregidasrdquo As partes ndash eventos e

processos por sua vez jaacute natildeo podem ser representadas como elementos

atomiacutesticos mas como ldquoconsecuccedilatildeo efetivo-relacional do acontecerrdquo

(ABEL 2005 p 227) Para Nietzsche esse eacute um evento fundamental de

tudo o que eacute efetivo e vivo E eacute nesse sentido que para ele a vida pode ser

definida como ldquolsquouma forma duradoura do processo de afirmaccedilatildeo da forccedila

onde os lutadores crescem de modo desigual entre sirsquordquo (COLLI

MONTINARI 1999b KSA-XI 36 [22])

A centralidade que o aspecto da organizaccedilatildeo funcional ocupa na

concepccedilatildeo nietzscheana permite caracterizaacute-la segundo Abel como um

funcionalismo entendido no sentido de que estados e processos mentais ndash

em particular estados e processos natildeo conscientes exercem papeacuteis

funcionais e referem-se agrave organizaccedilatildeo funcional de um sistema podendo

ser descritos por uma terminologia funcionalista No entanto natildeo seria

possiacutevel aqui uma associaccedilatildeo ao funcionalismo defendido por Putnam

(1975 apud ABEL 2005 p 228) com base em um modelo computacional

de descriccedilatildeo do funcionamento e individuaccedilatildeo de estados mentais Isso

porque entraria na concepccedilatildeo nietzscheana um ldquoelemento de liberdade e

criatividaderdquo que permite ao eu da consciecircncia dispor dos conteuacutedos e

subsumi-los a um ldquotratamento imaginativo ou planejado do agirrdquo

Um uacuteltimo aspecto quanto agrave organizaccedilatildeo funcional em Nietzsche e

na filosofia da mente diz respeito a uma possiacutevel interpretaccedilatildeo

teleoloacutegico-normativa dos papeacuteis funcionais exercidos pelos processos

mentais Na concepccedilatildeo nietzscheana os processos de organizaccedilatildeo de

forccedilas satildeo eventos de autorregulaccedilatildeo e otimizaccedilatildeo das relaccedilotildees de forccedilas

atuando tanto na organizaccedilatildeo como nas partes nela envolvidas Essas

muacuteltiplas combinaccedilotildees soacute posteriormente apareceriam agrave consciecircncia como

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 123

em conformidade a um fim Natildeo haveria nesse sentido nenhuma

teleologia na coisa mesma mas apenas em como ela aparece agrave consciecircncia

ldquoA organizaccedilatildeo e a dinacircmica dos processos complexos de forccedilas se

realizam () de modo ateleoloacutegicordquo (ABEL 2005 p 231) Seria preciso

distinguir entre duas espeacutecies de finalidade seja a ideia de fim entendida

como um motivo ndash uma ldquoteleologia do atuar exoacutegenordquo ou no como uma

consequecircncia ndash uma ldquofuncionalidade e regularidade endoacutegenardquo Nesse

sentido soacute como expressatildeo de um ldquoolhar que observa posteriormenterdquo

uma conformidade a fins seria possiacutevel

Consciecircncia e Linguagem

Os modelos e organizaccedilotildees acima natildeo estariam bem esclarecidos sem

a compreensatildeo de que por detraacutes das representaccedilotildees sobre as quais a

consciecircncia se efetiva estatildeo os signos linguiacutesticos e funccedilotildees gramaticais

que por sua vez exercem-se no contexto de uma praacutexis interpretativa Em

outras palavras na base do fenocircmeno da consciecircncia aparece o

fundamento linguiacutestico-gramatical e interpretativo de todo pensar Para

Nietzsche soacute podemos pensar ldquode forma linguiacutesticardquo (COLLI

MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22]) O ldquopensar racionalrdquo eacute nesse sentido

um ldquointerpretar segundo um esquema que natildeo podemos dispensarrdquo

(COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 5[22])

Para Abel o que assume significaccedilatildeo fundamental nos dias de hoje eacute

que se por um lado a consciecircncia apresenta a linguagem ndash enquanto uso

dos signos (linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticos) por outro na base mesma de

seu surgimento consecuccedilatildeo e desenvolvimento ela revela tambeacutem com a

linguagem o seu caraacuteter puacuteblico e social A consciecircncia (e suas

especificidades) nesse sentido eacute tematizada agora ldquona interseccedilatildeo dos

desenvolvimentos no acircmbito do natural-orgacircnico [] com os processos

nas esferas do social do histoacuterico e do culturalrdquo (ABEL 2005 p 233)

Jaacute em seus primeiros escritos postumamente publicados Nietzsche

aponta para o cerne comunicativo constitutivo da consciecircncia Na forma

124 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

como apresentado em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral o

homem natildeo apreende coisas objetos mas sensaccedilotildees ndash marcas de

excitaccedilotildees externas que satildeo por meio de transposiccedilatildeo metafoacutericas ndash do

objeto em imagem e da imagem em conceito ndash simplificadas

antropomorfizadas e restituiacutedas pela linguagem na forma de signos Por

uma ldquotransposiccedilatildeo artiacutesticardquo entatildeo a linguagem opera uma identificaccedilatildeo

do natildeo idecircntico da qual surge o conceito Mais ainda eacute nessa identificaccedilatildeo

que se constitui o objeto e tambeacutemo sujeito criador como esfera a ele

oposta com o qual natildeo pode ter senatildeo uma ldquorelaccedilatildeo esteacuteticardquo que eacute a sua

proacutepria criaccedilatildeoconstituiccedilatildeo

Tal processo nesse sentido soacute se justifica do ponto de vista de uma

praacutexis social ou seja por uma necessidade de comunicaccedilatildeo e de

ldquoestabilizaccedilatildeo de sistemas sociaisrdquo (ABEL 2005 p 235) A proacutepria

ldquoverdaderdquo nada mais eacute que uma metaacutefora cristalizada e aceita socialmente

isto eacute pelo rebanho Nietzsche ressalta as condiccedilotildees fisioloacutegicas e

histoacutericas do ldquoinstinto (ou impulso) de verdaderdquo que marca nossa

civilizaccedilatildeo e cujo cerne ilusoacuterio e metafoacuterico revela antes uma crenccedila na

verdade como valor incondicional ldquoas verdades satildeo ilusotildees cuja origem

estaacute esquecidardquo (NIETZSCHE 2007 1 30)

Essa compreensatildeo eacute retomada posteriormente em A gaia ciecircncia

Para Nietzsche na constituiccedilatildeo mesma da consciecircncia aparece uma

ldquonecessidade de comunicaccedilatildeordquo que pressupotildee por sua vez uma

ldquocapacidade [entendida como forccedila e arte] de comunicaccedilatildeordquo

[] posso apresentar a conjectura de que a consciecircncia desenvolveu-se apenas

sob a pressatildeo da necessidade de comunicaccedilatildeo () Consciecircncia eacute na realidade

apenas uma rede de ligaccedilatildeo entre as pessoas () o pensar que se torna

consciente eacute apenas a parte menor a mais superficial a pior digamos ndash pois

apenas esse pensar consciente ocorre em palavras ou seja em signos de

comunicaccedilatildeo com o que se revela a origem da proacutepria consciecircncia

(NIETZSCHE 2004 sect 354)

O pensar conceitual e a experiecircncia consciente efetivam-se nesse

sentido enquanto ldquosignos de comunicaccedilatildeordquo ou ldquoformaccedilotildees e abreviaccedilotildees

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 125

de signos sobre signosrdquo Segundo Abel a constituiccedilatildeo de um sistema

conceitual ndash pelo qual o eu da consciecircncia se efetiva ndash ocorre no momento

em que ela proacutepria eacute capaz de diferenciar conceitualmente algo de algo e

com essa delimitaccedilatildeo constituir objetos e a si proacutepria como objeto

O caraacuteter interpretativo da consciecircncia no entanto natildeo se restringe

a um aspecto de suas funccedilotildees simboacutelicas mas eacute sua proacutepria condicionante

no sentido de que os processos orgacircnicos mesmos jaacute pressupotildeem um

ldquointerpretar contiacutenuordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII 2 [148])

sendo por ele caracterizados A consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo soacute procede

de modo interpretativo em sua consecuccedilatildeo mas tambeacutem jaacute repousa em

processos de interpretaccedilatildeo natildeo conscientesrdquo (ABEL 2005 p 237) sendo

jaacute um resultado dessas relaccedilotildees Daqui se tem como consequecircncia que ela

natildeo pode ser nem causa sui nem finis sui no sentido de que permanece

sem acesso a seu proacuteprio fundamento A tarefa de uma filosofia da mente

nesse sentido consistiria principalmente em destacar o caraacuteter simboacutelico

e principalmente interpretativo subjacente a estados processos e

fenocircmenos da consciecircncia

Sempre haveria no entanto o perigo de a consciecircncia de modo auto-

causal e auto-teleoloacutegico hipostasiar-se a si proacutepria e mascarar o caraacuteter

problemaacutetico de as representaccedilotildees que surgem na consciecircncia estarem agrave

disposiccedilatildeo e poder do eu-consciecircncia como se esta as antecedesse e

pudesse com elas relacionar-se de outro modo Uma suposta

autocertificaccedilatildeo da autoconsciecircncia compensaria a incerteza quanto ao

objeto e ao sujeito que ela representa Eacute a tendecircncia proacutepria agrave consciecircncia

de querer ir aleacutem natildeo soacute do fenomenalismo da experiecircncia exterior como

tambeacutem da interior (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 15 [90]) Esse

ponto seraacute abordado na proacutexima seccedilatildeo

Fenomenalismo da Experiecircncia Interna

Vimos que pela articulaccedilatildeo linguiacutestica a consciecircncia opera uma

simplificaccedilatildeo esquematizaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo (ABEL 2005 p 237) de

126 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

tudo o que ateacute ela chega do mundo exterior Da mesma forma na

experiecircncia interna natildeo deparamos com fatos como sendo algo primaacuterio

mas eles proacuteprios ldquotecircm de ser o resultado de interpretaccedilotildeesrdquo Sensaccedilotildees de

prazer e dor por exemplo bem como aquilo que costumamos chamar de

ldquosentido internordquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 14 [152]) satildeo

para Nietzsche segundo Abel ldquofenocircmenos tardios derivados

interpretados intelectualmente de processos de forccedilas que estatildeo ao fundordquo

(ABEL 2005 p 238-239)

Duas perspectivas aqui se abrem para a caracterizaccedilatildeo

dessefenomenalismo da percepccedilatildeointerior em primeiro lugar a ordem e

cronologia de causa e efeito eacute continuamente invertida de forma que por

meio da memoacuteria das experiecircncias internas passadas a causa eacute imaginada

ndash em adequaccedilatildeo agrave causa real ndash depois de o efeito jaacute ter sucedido Em

segundo lugar a relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem (conforme exposta

acima) conduz tambeacutem a uma relaccedilatildeo entre fenomenalismo e

perspectivismo de forma que as experiecircncias internas ndash que satildeo uacutenicas e

individuais satildeo pela linguagem traduzidas para a consciecircncia como

estados internos conhecidos delimitados e tangiacuteveis ao indiviacuteduo7

Natildeo podemos assim transgredir o mundo fenomenal Mas isso natildeo

quer dizer que aquilo a que natildeo temos acesso seja o mundo ldquoverdadeirordquo

e sim tatildeo somente o ldquoinformulaacutevel mundo sem forma do caos de

sensaccedilotildeesrdquo ldquouma outra espeacutecie de mundo fenomenal para noacutes

incognosciacutevelrdquo (COLLI MONTINARI 1999d KSA XIII 9 [106]) Haveria

aqui segundo Abel uma forte criacutetica ao princiacutepio mesmo da racionalidade

moderna a autoconsciecircncia cartesiana ndash ou mais precisamente agrave ldquoideia de

uma autocertificaccedilatildeo fundamentalista numa experiecircncia pura preacute-

linguiacutestica preacute-conceitual e independente da interpretaccedilatildeordquo ABEL 2005

p 241) Na base desse fundamentalismo epistemoloacutegico ldquoo ponto de

partida errado ndash como se houvesse lsquofatos da consciecircnciarsquo ndash e nenhum

fenomenalismo na observaccedilatildeo de si mesmordquo Erro que resultaria em seis

7 Processo esse que como vimos natildeo subsiste independentemente de uma praacutexis social

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 127

pressuposiccedilotildees nenhuma delas para Nietzsche (COLLI MONTINARI

1999d KSA XIII 15 [90]) plena de sentido

(1) transparecircncia completa da consciecircncia (2) manutenccedilatildeo da ideia do dado

ao menos para o acircmbito da experiecircncia interna da consciecircncia (3) a

experiecircncia humana eacute independente da linguagem da descriccedilatildeo e por fim ateacute

mesmo da interpretaccedilatildeo (4) o fenomenalismo eacute restrito somente ao mundo

exterior () (5) haacute um ponto de observaccedilatildeo fixo (6) a consciecircncia tem acesso

imediato a seus proacuteprios estados de experiecircncia interna de si (ABEL 2005 p

238-239)

Com ofenomenalismo e perspectivismo da experiecircncia interna entra

em cena o eu-consciecircncia ndash a perspectiva da primeira pessoa que surge no

momento mesmo em que algo eacute pela linguagem traduzido para a

consciecircncia Tambeacutem com ele o ldquocaraacuteter subjetivo qualitativo e

fenomenal da vivecircncia conscienterdquo (ABEL 2005 p 241) Tais aspectos satildeo

segundo Abel discutidos na atual filosofia da mente a partir de duas teses

(1) que os aspectos subjetivos qualitativos e fenomenais satildeo fundamentais

para a experiecircncia interna (2) [que] esses aspectos subjetivos qualitativos e

fenomenais ligados agrave perspectiva da vivecircncia na primeira pessoa natildeo podem

ser reduzidos agrave conformidade a leis fiacutesicas [que satildeo] explicadas da perspectiva

neutra da [] intersubjetividade [Esta] no entanto eacute precisamente aquilo

que natildeo somente eacute dado na vivecircncia factual subjetiva qualitativa e fenomenal

mas tambeacutem sistematicamente excluiacuteda (ABEL 2005 p 242)

Consciecircncia e Corporeidade

Apesar de natildeo poder representar ou sequer distanciar-se da rede natildeo

consciente de seus condicionamentos a consciecircncia ndash enquanto eu-

consciecircncia tem no entanto a ldquopossibilidade de abrir-se retroagindo a si

mesma em contraposiccedilatildeo ao complexo de suas condiccedilotildeesrdquo (ABEL 2005

p 244) Transiccedilatildeo essa que segundo Abel pode ser vista como a passagem

de uma consciecircncia autoteleoloacutegica e autocausal para um eu-consciecircncia

que sem perder a autoconsciecircncia eacute o proacuteprio si-mesmo do corpo ndash aquilo

que Nietzsche chama de grande razatildeo Isso implicaria a transiccedilatildeo de uma

128 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ldquoontologia moralrdquo (COLLI MONTINARI 1999b KSA XI 7 [4]) a uma

ldquofilosofia do corpordquo que comeccedila quando a pequena razatildeo se volta sobre si

por sua proacutepria autoconservaccedilatildeo em contraposiccedilatildeo a seus

condicionamentos O que natildeo deve ser confundido como uma reduccedilatildeo a

um naturalismo ou biologismo ndash nem tampouco de uma ldquoneurofilosofiardquo

como em Churchland (1998) Natildeo se trata na filosofia do corpo de

Nietzsche de organismos corpos e neurocircnios mas do corpo-organizaccedilatildeo

Natildeo haacute aqui um ldquoalgordquo a ser estudado mas uma ldquocombinaccedilatildeo dinacircmica e

altamente complexa de [] inteligecircncias em processordquo (ABEL 2005 p

244) A passagem do eu-consciecircncia ao si-mesmo (o ldquodominador do eurdquo)

eacute nesse sentido a passagem de uma ldquosubjetividade produtorardquo para a

ldquoindividualidade no sentido da organizaccedilatildeo do corpo [Leib] () que cada

um eacute enquanto ser que interpretardquo ABEL 2005 p 246-7) Isto natildeo implica

um retorno da individualidade ao sujeito racional universal mas a

subsunccedilatildeo em uma ldquoindividualidade-corpordquo

Dois aspectos satildeo salientados aqui por Abel em primeiro lugar a

ldquocorporeidade preacute-cognitiva preacute-linguiacutestica e preacute-racional em seus

estados esteacuteticos pode ser vista como o lugar de surgimento dos signos

simbolizadores linguiacutesticos e natildeo linguiacutesticosrdquo (ABEL 2005 p 247) em

cuja invenccedilatildeo estatildeo envolvidos estados corporais Na abertura do eu-

consciecircncia agrave rede de seus condicionantes revela-se ldquoo caraacuteter dos signos e

da interpretaccedilatildeo em sua posiccedilatildeo fundamentalrdquo (ABEL 2005 p 248) Por

outro lado o modo de consideraccedilatildeo do ldquofio-condutor do corpordquo apresenta-

se como um ldquofenocircmeno mais ricordquo (COLLI MONTINARI 1999c KSA-XII

40 [15]) no sentido de que se situa no interior mesmo da posiccedilatildeo criticista

A posiccedilatildeo da consciecircncia bem como da criacutetica da linguagem eacute nesse

sentido aprofundada Trata-se nas palavras de Nietzsche ldquodo corpo em

todo o desenvolvimento do espiacuterito ele eacute a histoacuteria que se torna sensiacutevel

de que um corpo superior se formardquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X

24 [16]) Em que o mental por outro lado eacute a ldquolinguagem simboacutelica do

corpordquo (COLLI MONTINARI 1999a KSA-X 7 [126])

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 129

Criacutetica da Consciecircncia e Criacutetica da Linguagem

Dois aspectos devem ser salientados quanto a este toacutepico por um

lado a importacircncia da consciecircncia e da linguagem nas relaccedilotildees humanas

ndash com o mundo com o outro e consigo ndash e por outro o reconhecimento

de seus limites ndash em uacuteltima instacircncia do limite-corpo que subjaz a ambas

linguagem e consciecircncia

No caso da linguagem os limites parecem ser bastante sutis no

sentido de que ela proacutepria enquanto ldquogramaacuteticardquo atua como preacute-

formadora do pensamento consciente e nesse sentido ldquoo que pode ser

pensado e dito em geral tem de estar jaacute na gramaacutetica de uma linguagemrdquo

(ABEL 2005 p 249) Como afirma Nietzsche em Crepuacutesculo dos iacutedolos

ldquoA lsquorazatildeorsquo na linguagem oh que velha e enganadora senhora Receio que

natildeo nos livremos de Deus porque ainda acreditamos na gramaacuteticardquo

(NIETZSCHE 2006 III sect5) Tais limites que a tornam suscetiacutevel a uma

petrificaccedilatildeo estatildeo precisamente pelo caraacuteter de universalidade das

sentenccedilas e palavras Principalmente quando estas se tornam conceitos

frutos da ldquoidentificaccedilatildeo do natildeo idecircnticordquo (NIETZSCHE 2007 1) e jaacute

distantes de sua ldquovivecircncia original uacutenica e totalmente individualizadardquo Haacute

aqui o risco de se fazer mitologia com o ldquomundo dos signosrdquo e de tornaacute-lo

o ldquoem si das coisasrdquo (NIETZSCHE 2005 sect21)

Uma superaccedilatildeo no pensamento dos ldquoerrosrdquo da razatildeo petrificados na

linguagem ndash ou em uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo (NIETZSCHE 2006

III sect5) ndash seria no entanto impossiacutevel porque noacutes ldquonecessitamos do errordquo

O problema crucial aqui como aponta Abel eacute que o indiviacuteduo uma

sensaccedilatildeo ou o proacuteprio inefaacutevel jaacute pressupotildeem a linguagem quando satildeo

expressos comunicados Como entatildeo conciliar o caraacuteter individual de uma

sensaccedilatildeo com a pretensatildeo agrave universalidade e o caraacuteter comunicativo e

social da linguagem que a expressa

No acircmbito da consciecircncia por sua vez por intermeacutedio e constituiccedilatildeo

da linguagem tudo perde a individualidade e eacute traduzido para o acircmbito do

universal O que impede um acesso agrave profundidade e deixa agravequela apenas

130 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

um ldquomundo de superfiacutecies e signosrdquo (NIETZSCHE 2004 sect354) A

consciecircncia nesse sentido ldquonatildeo pertence propriamente agrave existecircncia

individual do homemrdquo A relaccedilatildeo entre consciecircncia e linguagem mostra-se

uma relaccedilatildeo de constituiccedilatildeo universalizaccedilatildeo simplificaccedilatildeo e

superficializaccedilatildeo Os limites se datildeo em que nessa relaccedilatildeo com a iminecircncia

de uma ldquometafiacutesica da linguagemrdquo a consciecircncia corre de vaacuterias formas o

risco de hipostasiar-se a si mesma

Em primeiro lugar na medida em que ela pretende identificar-se com a ampla

situaccedilatildeo total de um homem Entatildeo conforme ela considera seu eu isto eacute o

sujeito como substacircncia ela assumiria como sujeito uma posiccedilatildeo aprioriacutestica

face aos conteuacutedos da consciecircncia Por fim na medida em que o eu isto eacute o

sujeito da consciecircncia vecirc suas determinaccedilotildees das representaccedilotildees da consciecircncia

dos objetos da experiecircncia como determinaccedilotildees ontoloacutegicas Aleacutem disso haacute o

risco de hipoacutestase no sentido de que [] a consciecircncia e a mente tendem a

entenderem a si mesmas de modo autoteleoloacutegico e autocausal como finis sui e

causa sui e que elas jaacute natildeo podem abrir-se desse modo agrave rede abarcante das

condiccedilotildees de sua proacutepria existecircncia (ABEL 2005 p 252)

A criacutetica de Nietzsche em suma natildeo se refere propriamente agrave

consciecircncia ndash erro necessaacuterio ndash nem tampouco tem caraacuteter reducionista

Antes dirige-se ao modelo cartesiano hipostasiado de reflexatildeo da

consciecircncia e da autoconsciecircncia em seus seis erros ou pressuposiccedilotildees

Filosofia Simboacutelica e Interpretativa da Mente

Pode-se formular a advertecircncia articulada na criacutetica da consciecircncia e da

linguagem do seguinte modo natildeo se confunda a circunstacircncia de que noacutes

temos a ver na consciecircncia assim como na autoconsciecircncia com signos e

interpretaccedilotildees com a concepccedilatildeo de que noacutes nos deparariacuteamos com as ldquocoisas

mesmasrdquo ou com as coisas-em-si-mesmas Assumir essa uacuteltima significa

recair no sofisma naturalista da consciecircncia (ABEL 2005 p 253-4)

Do que foi exposto quanto aspectos acima atenccedilatildeo especial deve ser

dada ao caraacuteter simboacutelico e interpretativo ndash semioacutetico ndash dos estados e

processos da consciecircncia da autoconsciecircncia e dos outros processos

Gustavo Bezerra do Nascimento Costa | 131

mentais conscientes e natildeo conscientes Consciecircncia eacute consciecircncia de signos

cujos elementos (sintaacuteticos semacircnticos e pragmaacuteticos) natildeo os precedem

mas satildeo eles mesmos constituiacutedos em sua ldquoorientaccedilatildeo a algo ou a outras

pessoasrdquo ndash orientaccedilatildeo que tem o caraacuteter de uma ldquointerpretaccedilatildeo

construcionalrdquo (ABEL 2005 p 253-4) As funccedilotildees da interpretaccedilatildeo

constituem assim o fundamento dos signos Todos os estados processos

e fenocircmenos mentais bem como a comunicaccedilatildeo desses conteuacutedos

realizam-se em e como signos e interpretaccedilotildees O ponto chave nessa

concepccedilatildeo pragmaacutetica simboacutelica e interpretativa diz Abel eacute que ldquonoacutes

temos consciecircncia mente e pensamento natildeo por meio mas por forccedila dos

processos de signos e interpretaccedilotildeesrdquo (ABEL 2005 p 256) A

interpretaccedilatildeo nesse sentido ldquoeacute condiccedilatildeo e natildeo opccedilatildeo para o emprego

bem-logrado dos signosrdquo (ABEL 2005 p 257)

Para o autor a construccedilatildeo nos dias de hoje de uma teoria da

consciecircncia que parta dessa tese ou seja para aleacutem da dicotomia

materialismofisicalismo e mentalismo deve levar em consideraccedilatildeo cinco

aspectos (1) uma postura contra o fisicalismo das funccedilotildees simboacutelicas dos

signos e interpretaccedilotildees (2) a introduccedilatildeo de sistemas e signos e

interpretaccedilotildees natildeo linguiacutesticos e natildeo proposicionais revelando a

insuficiecircncia dos siacutembolos linguiacutesticos e proposicionais como uacutenico meio

de representaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo mentais (3) a consideraccedilatildeo aleacutem de

Nietzsche do pragmatismo de Peirce da teoria geral do siacutembolo de

Goodman e a teoria das formas simboacutelicas de Cassirer (4) a ideia de uma

relaccedilatildeo ou uma ligaccedilatildeo interna entre signos interpretaccedilotildees e

possibilidade de accedilatildeo (5) a consideraccedilatildeo dos valores avaliaccedilotildees e normas

(sentido e dever) no emprego dos signos e nas accedilotildees

Assim o fundamental na concepccedilatildeo de uma filosofia da mente a

partir do pensamento de Nietzsche deve estar na ideia de que os processos

de interpretaccedilatildeo estatildeo implicados desde o iniacutecio tatildeo logo se trate de

submeter o que estaacute na consciecircncia a uma delimitaccedilatildeo ordenaccedilatildeo

classificaccedilatildeo coerecircncia ou comunicaccedilatildeo O orgacircnico mesmo jaacute eacute para

Nietzsche uma interpretaccedilatildeo contiacutenua

132 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Referecircncias

ABEL Guumlnter ldquoConsciecircncia-Linguagem-Natureza ndash A filosofia da mente em Nietzscherdquo In

MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo

Discurso Editorial 2005

_____ ldquoVerdade e interpretaccedilatildeordquo In MARTON S (org) Nietzsche na Alemanha Trad

Clademir Luiacutes Araldi Satildeo Paulo Discurso Editorial 2005a

CHURCHLAND Paul Mateacuteria e consciecircncia Trad Maria C Cescato Satildeo Paulo UNESP 1998

COLLI G MONTINARI M (orgs) Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe

(KSA v X) Berlim Munique Nova York Walter de Gruyter 1999a

_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XI) Berlim

Munique Nova York Walter de Gruyter 1999b

_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XII) Berlim

Munique Nova York Walter de Gruyter 1999c

_____ Nietzsche Saumlmtliche Werke - Kritische Studienausgabe (KSA v XIII) Berlim

Munique Nova York Walter de Gruyter 1999d

NIETZSCHE Friedrich W Genealogia da moral (GM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo

Paulo Companhia das Letras 1998

_____ A gaia ciecircncia (FWGC) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia das

Letras 2004

_____ Aleacutem de bem e mal (GBBM) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo Companhia

de Bolso 2005

_____ Crepuacutesculo dos iacutedolos (GDCI) Trad Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2006

_____ Sobre verdade e mentira no sentido extramoral (WLVM) In Sobre verdade e

mentira Trad e Org Fernando de Moraes Barros Satildeo Paulo Hedra 2007

7

Habermas e o Problema do Mundo Objetivo

em Verdade e Justificaccedilatildeo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira 1

Introduccedilatildeo

O objetivo deste artigo eacute investigar a questatildeo do mundo objetivo a

partir da recente distinccedilatildeo que Habermas realiza entre verdade e

justificaccedilatildeo na obra de mesmo tiacutetulo Eacute preciso entatildeo entendermos o

lugar que o mundo objetivo passa a ter no pensamento habermasiano

sobretudo a partir da diferenccedila entre verdade e justificaccedilatildeo algo outrora

inexistente

Verdade e justificaccedilatildeo de 1999 reuacutene trabalhos escritos entre 1996 e

1998 que retomam o fio de uma reflexatildeo interrompida em Conhecimento

e Interesse (1987) Apesar de a pragmaacutetica da linguagem que Habermas

desenvolveu nos anos 1970 ter feito uso de conceitos como verdade

referecircncia validade objetividade realidade e racionalidade estes natildeo

foram abordados agrave luz da filosofia teoacuterica como em Verdade e justificaccedilatildeo

Habermas (2012) nos tempos da Teoria do agir comunicativo obra

de 1971 definia o sentido de verdade a partir da situaccedilatildeo ideal de fala

atraveacutes dos pressupostos idealizantes de 1) publicidade e total inclusatildeo de

todos os envolvidos 2) distribuiccedilatildeo equitativa dos direitos de

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Cearaacute (UFC) com Doutorado Sanduiacuteche pela Ludwig-Maximilian-Universitaumlt (LMU) em Munique Alemanha Poacutes-doutorando pela Universidade Federal do Piauiacute (UFPI) e Bolsista Capes Email julianocordeiro81gmailcom

134 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

comunicaccedilatildeo 3) caraacuteter natildeo violento de uma situaccedilatildeo que admite apenas

a forccedila natildeo coerciva do melhor argumento e 4) a probidade dos

proferimentos de todos os participantes Nesse sentido a verdade

relacionava-se diretamente com o consenso construiacutedo pelos sujeitos

atraveacutes da situaccedilatildeo ideal de fala

Entretanto Habermas em Verdade e justificaccedilatildeo partindo das

criacuteticas que recebeu por igualar o conceito de verdade agrave justificaccedilatildeo ao

longo de seu projeto teoacuterico afirma hoje em dia que a verdade natildeo pode

mais ser assimilada simplesmente agrave situaccedilatildeo ideal de fala agrave justificaccedilatildeo

pragmaacutetica dos sujeitos ldquoDe laacute para caacute percebi que essa assimilaccedilatildeo natildeo

pode dar certo Reformulei o antigo conceito discursivo de verdade que

natildeo eacute errado mas eacute pelo menos incompletordquo (HABERMAS 2004 p 60)

A verdade agora tem a ver com o mundo objetivo que temos

inevitavelmente de pressupor nos atos de fala e nas nossas accedilotildees A

justificaccedilatildeo por sua vez seria um criteacuterio pragmaacutetico relacionado

unicamente aos sujeitos falantes natildeo podendo ser assimilado agrave verdade

como Habermas conceituava antes A verdade por assim dizer relaciona-

se com um pressuposto formal que os sujeitos precisam admitir sob pena

de natildeo falar nem agir no mundo

Poreacutem mesmo com a distinccedilatildeo habermasiana entre os conceitos de

verdade e justificaccedilatildeo continua natildeo estando em questatildeo a representaccedilatildeo

correta da realidade ou a estrutura ontoloacutegica do mundo Eacute impossiacutevel

determinar a significaccedilatildeo das palavras sem uma consideraccedilatildeo do contexto

social em que satildeo usadas porque eacute o uso que decide a significaccedilatildeo das

expressotildees linguiacutesticas caracteriacutestica central do pragmatismo No

Segundo Wittgenstein e tambeacutem em Habermas a ecircnfase eacute dada

sobretudo agrave pragmaacutetica

Como entatildeo entender o novo lugar que o mundo objetivo passou a

ter no pensamento habermasiano haja vista que ele continua a ser criacutetico

da noccedilatildeo representacionista de verdade Como conciliar a tese da

pressuposiccedilatildeo irrecusaacutevel de um mundo objetivo independente de nossas

descriccedilotildees e idecircntico para todos os observadores com a tese baacutesica da

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 135

reviravolta linguiacutestica de que natildeo temos acesso diretamente isto eacute natildeo

linguisticamente mediado a uma realidade ldquonuardquo Eacute o que veremos a

seguir

A Necessaacuteria Diferenccedila entre Verdade e Justificaccedilatildeo

Inicialmente Habermas conceituava a verdade como sinocircnimo de

justificaccedilatildeo Ou seja a verdade era aquilo que os sujeitos estabeleciam

consensualmente nas deliberaccedilotildees Wellmer (apud ALVARENGA 1999)

por exemplo numa criacutetica a Habermas destaca que racionalidade e

verdade natildeo necessariamente coincidem Para ele natildeo podemos afirmar

que havendo consenso racional exista verdade de imediato Nada impede

que no futuro seja considerado falso um consenso atual o que natildeo

implica que agimos irracionalmente A verdade eacute sempre algo maior do

que a racionalidade dos consensos situados Todo consenso encontra-se

sob reserva podendo no futuro ser posto em questatildeo mediante razotildees

Wellmer argumenta referindo-se agrave primeira concepccedilatildeo de verdade

de Habermas que um conceito de verdade como consenso eacute insuficiente

por natildeo abranger o aspecto da correspondecircncia da verdade Seria preciso

esse complemento na teoria discursiva de Habermas Mesmo que se

cumpram as condiccedilotildees ideais de fala tal fato natildeo significa que as razotildees

alegadas no processo deliberativo tenham sido boas Um consenso falso

pode ser racional no sentido de que foi alcanccedilado sob condiccedilotildees formais

de uma situaccedilatildeo ideal

Habermas a partir de tais criacuteticas reformulou sua concepccedilatildeo de

verdade distinguindo verdade de justificaccedilatildeo Ele assume que o consenso

natildeo pode ser considerado como um criteacuterio mas deve ser visto como um

mecanismo de certificaccedilatildeo da verdade Ele relaciona o conceito discursivo

mantido de aceitabilidade racional com um conceito de verdade

pragmaacutetico natildeo epistecircmico sem assimilar a verdade agrave assertibilidade

ideal ou seja agrave justificaccedilatildeo

136 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Inicialmente Habermas (2012) na Teoria do agir comunicativo

apresentou uma teoria consensual da verdade o consenso era o criteacuterio de

verdade O que eacute verdadeiro seria aquilo advindo de um consenso racional

e universal como consequecircncia de um diaacutelogo numa situaccedilatildeo ideal de fala

Entretanto como demonstra Puntel (2013) Habermas viu as dificuldades

dessa concepccedilatildeo uma vez que haacute uma incapacidade de explicar por que

mesmo as asserccedilotildees mais exaustivamente justificadas podem ser falsas

Habermas trabalha atualmente com uma concepccedilatildeo de verdade orientada

realisticamente denominada de realismo epistemoloacutegico pragmaacutetico

Os principais passos de Habermas na apresentaccedilatildeo e explicaccedilatildeo de

sua nova concepccedilatildeo pragmaacutetico-realista da verdade segundo Puntel

(2013) satildeo os seguintes 1) o ponto de partida satildeo pretensotildees de verdade

feitas no mundo da vida 2) a verdade eacute conceitualmente (natildeo

epistemologicamente) desconectada da justificaccedilatildeo a verdade eacute

transcendente agrave justificaccedilatildeo 3) a verdade implica uma referecircncia a um

mundo objetivo independente 4) a verdade articula a conexatildeo entre a

sentenccedilaproposiccedilatildeo qualificada como verdadeira e o mundo

Habermas (2004) explica que argumentos que nos convencem da

verdade de ldquoprdquo podem se revelar falsos em outra situaccedilatildeo epistecircmica Ou

seja por mais que ldquoprdquo seja bem justificado ele pode ainda revelar-se falso

A argumentaccedilatildeo permanece reforccedila ele como o uacutenico meio disponiacutevel

para se certificar da verdade de modo que natildeo haacute outra maneira de

examinar as pretensotildees de validade tornadas problemaacuteticas Entretanto a

justificaccedilatildeo natildeo pode ser validada ainda como verdade Habermas entatildeo

pretende salvar a dimensatildeo do mundo objetivo em sua teoria

relacionando-a com a verdade

Ele estabelece um conceito de verdade em que as pretensotildees de

validade transcendam toda justificaccedilatildeo ldquo() depois da

destranscendentalizaccedilatildeo do sujeito cognoscente continua a existir uma

lacuna entre o que eacute verdadeiro e o que conta como justificado ou

racionalmente aceitaacutevel para noacutesrdquo (HABERMAS 2002 p 44) Habermas

pretende assegurar a diferenccedila entre verdade e aceitabilidade racional

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 137

Contudo tal diferenccedila coloca os sujeitos numa situaccedilatildeo paradoxal De um

lado sem acesso direto agraves condiccedilotildees de verdade eles soacute podem resgatar as

pretensotildees de validade por meio de boas razotildees de outro as melhores

razotildees satildeo tambeacutem faliacuteveis Portanto Habermas defende que o abismo

entre aceitabilidade racional e verdade natildeo pode ser transposto uma vez

que todo acordo alcanccedilado pela justificaccedilatildeo eacute tambeacutem faliacutevel

Habermas (2004) destaca que verdade e falibilidade satildeo dois lados de

uma mesma moeda Ele entende que falta agrave justificaccedilatildeo no sentido por

exemplo de Richard Rorty uma referecircncia aos objetos Nesse sentido as

pretensotildees de validade devem transcender o contexto natildeo se satisfazendo

apenas com a justificaccedilatildeo alcanccedilada O verdadeiro para Habermas deve

ser defendido em todos os contextos possiacuteveis

Segundo ele uma concepccedilatildeo que faccedila justiccedila agrave intuiccedilatildeo realista de um

mundo que existe independentemente de noacutes mesmo sem a

representaccedilatildeo de uma correspondecircncia entre proposiccedilotildees e fatos favorece

o projeto de explicar os aspectos nos quais a verdade e a justificaccedilatildeo ao

mesmo tempo assemelham-se e distinguem-se Em suma a verdade eacute um

conceito que transcende toda justificaccedilatildeo natildeo podendo ser identificada

com o conceito de assertibilidade idealmente justificada

De acordo com Habermas a conexatildeo interna entre verdade e

justificaccedilatildeo natildeo eacute uma questatildeo epistemoloacutegica pois natildeo estaacute em jogo a

representaccedilatildeo correta da realidade mas uma praacutexis que natildeo pode vir

abaixo O entendimento muacutetuo natildeo pode funcionar sem que os envolvidos

se refiram a um uacutenico mundo objetivo dentro de um espaccedilo puacuteblico

intersubjetivamente partilhado O conceito discursivo de verdade natildeo eacute

exatamente falso mas insuficiente ele natildeo explica o que nos autoriza a ter

por verdadeiro um enunciado suposto como idealmente justificado Dessa

forma asserccedilotildees bem justificadas podem se revelar falsas porque a

verdade deve transcender qualquer contexto de justificaccedilatildeo

Puntel (2013) destaca uma criacutetica a Habermas apontando-nos uma

dimensatildeo natildeo aprofundada por este Puntel com razatildeo critica Habermas

agrave medida que este rejeita a teoria tradicional da verdade sem oferecer uma

138 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

explanaccedilatildeo miacutenima do que ele chama de conexatildeo ou entrelaccedilamento de

verdade e mundo Sua concepccedilatildeo realista pragmaacutetica permaneceria vaga

Se Habermas acertou por um lado em separar verdade de

justificaccedilatildeo ele simultaneamente tambeacutem criou um novo problema em

sua filosofia O que realmente Habermas chama de mundo objetivo O que

de fato significa verdade em Habermas visto que esta se relaciona com um

mundo objetivo que apenas podemos pressupor mas natildeo tematizar tal

qual uma praacutexis que natildeo pode vir abaixo Que dimensatildeo eacute essa que

transcende a justificaccedilatildeo

O Estatuto do Mundo Objetivo em Verdade e Justificaccedilatildeo de um Novo

Acerto a um Novo Problema

Segundo Cliacutestenes Franccedila (2015) Habermas em Verdade e

justificaccedilatildeo substitui sua outrora teoria da verdade por uma teoria da

justificaccedilatildeo deixando de oferecer-nos uma teoria da verdade genuiacutena

Uma teoria da verdade e uma teoria da justificaccedilatildeo satildeo empreendimentos

teoacutericos distintos A primeira teoria da verdade de Habermas dos tempos

do Agir comunicativo era uma teoria antirrealista pois como vimos antes

a verdade era algo sinocircnimo de justificaccedilatildeo Ela natildeo dependia da

ocorrecircncia no mundo de um estado de coisas tendo a ver com a

legitimaccedilatildeo das pretensotildees de validade dos falantes

Jaacute em Verdade e justificaccedilatildeo a verdade natildeo se circunscreve agrave esfera

do discurso ela sempre o ultrapassa Portanto o maacuteximo que podemos

afirmar sobre a aceitabilidade racional de uma asserccedilatildeo eacute que muito

provavelmente ela eacute verdadeira mas natildeo podemos garantir que isso ocorra

de fato Criteacuterios de autorizaccedilatildeo entretanto satildeo formulados por teorias da

justificaccedilatildeo e natildeo por teorias da verdade Franccedila (2015) levanta a hipoacutetese

de que em Verdade e justificaccedilatildeo Habermas apresenta uma teoria da

justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade Habermas natildeo pode mais

dizer em que a verdade consiste mas apenas indicar o que nossas intuiccedilotildees

pragmaacuteticas realistas nos afirmam que ela seja

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 139

Para Franccedila (2015) agrave luz de Kirkham uma teoria da verdade seria

uma teoria metafiacutesica que buscaria fixar uma definiccedilatildeo do que seja a

verdade Uma teoria metafiacutesica da verdade contudo natildeo procuraria

oferecer mecanismos que nos auxiliassem a determinar quando nos

encontramos de posse de um conhecimento verdadeiro Jaacute uma teoria da

justificaccedilatildeo busca indicar as evidecircncias e garantias que algo deve possuir

para ser considerado como provavelmente verdadeiro Criteacuterios de

autorizaccedilatildeo satildeo formulados por teorias da justificaccedilatildeo e natildeo por teorias

da verdade

Habermas apresentaria em Verdade e justificaccedilatildeo uma teoria da

justificaccedilatildeo e natildeo mais uma teoria da verdade A incorporaccedilatildeo de aspectos

realistas ao conceito da verdade na pragmaacutetica formal de Habermas

resultou no abandono de se oferecer uma definiccedilatildeo positiva do que eacute a

verdade de fato Como pensar a partir disso o problema do mundo

objetivo

Habermas chega ao mundo objetivo somente atraveacutes de anaacutelises das

accedilotildees e discursos que os falantes e agentes realizam no processo

comunicativo Mas isso natildeo transcende a dimensatildeo da comunicaccedilatildeo

Segundo Puntel (2013) Habermas sempre privilegia a dimensatildeo

pragmaacutetica em relaccedilatildeo agrave semacircntica embora defenda que satildeo duas

dimensotildees co-originaacuterias

Ele supotildee que o ldquoproacuteprio mundordquo eacute o ldquoproacuteprio mundordquo apenas se

permanecer completamente intocado pela linguagem Habermas separa

fatos de objetos Ele natildeo menciona a perspectiva de que ao identificarmos

os objetos como elementos do ldquoproacuteprio mundordquo noacutes jaacute estamos falando

acerca desses objetos pertencentes ao ldquoproacuteprio mundordquo Aqui haacute como

pano de fundo a claacutessica criacutetica de Hegel a Kant

Se os fatos acerca dos objetos natildeo tecircm um status ontoloacutegico entatildeo somos

confrontados com uma declaraccedilatildeo incorreta Com efeito para que tenha um

significado inteligiacutevel lsquoser acerca de um objetorsquo deve ser entendido como

lsquoalcanccedilarrsquo ou lsquoatingirrsquo ou lsquoconcernirrsquo o proacuteprio objeto eacute algo sem sentido

declarar um fato acerca de um objeto e entatildeo defender que este fato nada tem

a ver com o objeto Se o fato expresso nada tem a ver com o objeto o objeto

140 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

permaneceria em um esplecircndido isolamento desconhecido inarticulado O

processo de aprendizagem que torna possiacutevel a expressatildeo de fatos acerca dos

objetos natildeo teria qualquer sentido (PUNTEL 2013 p 206)

Habermas (2004) por sua vez defende uma concepccedilatildeo nominalista

do mundo o mundo eacute a totalidade de objetos dos quais podemos

estabelecer fatos Segundo Habermas os fatos satildeo o que noacutes declaramos

acerca dos objetos Ele enfatiza que o nominalismo eacute menos suspeito do

que outras posiccedilotildees ontoloacutegicas especialmente as posiccedilotildees que atribuem

um status ontoloacutegico aos fatos De acordo com Puntel (2013) o argumento

de Habermas eacute incoerente visto que se os fatos tecircm uma relaccedilatildeo essencial

com a linguagem o mesmo deve ser dito dos objetos Se os fatos estatildeo

entrelaccedilados com a linguagem porque podem ser expressos o mesmo

ocorre com os objetos haja vista que podem ser referidos a algo

Habermas poreacutem defende que apenas os fatos satildeo tocados pela

linguagem natildeo os objetos

Podemos dizer que haacute um abismo que separa a dimensatildeo pragmaacutetica

da semacircntica em Habermas embora ele sempre argumente que satildeo duas

perspectivas inseparaacuteveis Esse eacute um aspecto a ser criticado no

pensamento de Habermas agrave medida que ele natildeo concilia de fato a

pragmaacutetica e a semacircntica Segundo Manfredo Oliveira (2010) do

pressuposto metodoloacutegico fundamental da razatildeo comunicativa Habermas

deriva uma consequecircncia temaacutetica draacutestica isto eacute a restriccedilatildeo do tema da

filosofia agrave dimensatildeo pragmaacutetica Dessa forma como tambeacutem aponta

Puntel (2013) a abordagem pragmaacutetica habermasiana considera que as

estruturas e praacuteticas da comunicaccedilatildeo satildeo a base uacutenica uacuteltima e decisiva

do pensar filosoacutefico privilegiando a linguagem natural em sua

integralidade

Habermas (2004) em Verdade e justificaccedilatildeo distingue entre as

funccedilotildees expositiva (Darstellung) e comunicativa (Kommunikation) da

linguagem natural afirmando que elas se pressupotildeem mutuamente

aceitando a tese de Michael Dummett Poreacutem Habermas privilegia

claramente a dimensatildeo pragmaacutetica colocando a semacircntica em segundo

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 141

plano O resultado eacute que o problema do mundo objetivo em Habermas

natildeo eacute explorado suficientemente em sua teoria aparecendo apenas como

pressuposiccedilatildeo formal

Natildeo haacute uma clareza acerca da relaccedilatildeo entre verdade e mundo

objetivo apesar de este ser determinante na sua nova teoria da verdade

Nesse sentido podemos dizer que haacute um deacuteficit ontoloacutegico em Habermas

pois a ontologia aparece sempre agrave sombra em sua teoria mas nunca como

algo tematizado e sim pressuposto formalmente Ou seja haacute uma

postulaccedilatildeo da dimensatildeo ontoloacutegica e natildeo propriamente da ontologia que

eacute a teoria dessa dimensatildeo A semacircntica eacute reduzida agrave pragmaacutetica (ou pelo

menos articulada em funccedilatildeo da pragmaacutetica e a ela submetida) referecircncia

central de toda a filosofia de Habermas

Como vimos antes Habermas diz que a justificaccedilatildeo natildeo pode ser mais

um criteacuterio de verdade mas ela continua sendo um mecanismo de

certificaccedilatildeo da verdade De acordo com Puntel poreacutem quando uma

sentenccedila eacute qualificada como verdadeira supotildee-se a correspondecircncia com

algo no mundo levantando-se a questatildeo de como deve ser concebido esse

algo

Se assim eacute ele [Habermas] deveria reconhecer que esta articulaccedilatildeo ou

conexatildeo eacute exprimiacutevel e portanto natildeo somente pode mas deve ser explicitada

ndash caso contraacuterio falar dela seria vazio e autocontraditoacuterio Mas isto eacute algo que

Habermas poderia ou deveria aceitar De fato ele natildeo apresenta qualquer

explicaccedilatildeo relevante da dimensatildeo da conexatildeo ou entrelaccedilamento e isto deve

ser considerado como resultado de sua posiccedilatildeo poacutes-metafiacutesica (PUNTEL

2013 p 198)

Segue-se daiacute que a articulaccedilatildeo teoacuterica da dimensatildeo pressuposta ndash do

entrelaccedilamentoconexatildeo de verdade e mundo ndash natildeo pode ser realizada

pelo discurso pragmaacutetico ou dentro de seu quadro referencial teoacuterico

pragmaacutetico Isso torna claro que a afirmaccedilatildeo de Habermas a respeito de

uma verdade incondicional eacute extremamente restrita Em suma eacute uma

afirmaccedilatildeo dentro do acircmbito da pragmaacutetica que torna Habermas incapaz

de articular uma verdade genuinamente incondicional

142 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Ele fala da importacircncia de se reconhecer a dimensatildeo da validade

incondicionada mas natildeo avanccedila para aleacutem de tal afirmaccedilatildeo Se haacute a

necessidade de separar verdade de justificaccedilatildeo ele teria que aprofundar e

tematizar o que estaacute chamando de verdadee mundo objetivo Ou seja que

algo eacute esse que se encontra para aleacutem da justificaccedilatildeo e que ao mesmo

tempo pode pocircr abaixo as justificaccedilotildees no mesmo instante em que soacute

temos acesso ao mundo objetivo pelas proacuteprias justificaccedilotildees

A mesma criacutetica de Puntel a Habermas pode ser feita a toda a tradiccedilatildeo

transcendental oriunda de Kant Este afirma que a representaccedilatildeo das

coisas como nos satildeo dadas deve regular-se como fenocircmenos e natildeo como

coisas em si Em Kant natildeo eacute possiacutevel no conhecimento a priori

acrescentar aos objetos nada a natildeo ser o que o sujeito pensante toma de si

mesmo Todavia Kant exemplifica que se natildeo eacute possiacutevel conhecermos os

objetos como coisas em si mesmas podemos contudo pensaacute-los

Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa natildeo tanto

com objetos mas com o nosso modo de conhecimento de objetos na medida

em que ele deva ser possiacutevel a priori Um sistema de tais conceitos denominar-

se-ia filosofia transcendental (KANT 1974 p 33)

Habermas segue a mesma perspectiva de Kant postulando a

intersubjetividade destranscendentalizada no lugar do sujeito

transcendental Poreacutem a orientaccedilatildeo continua a mesma quando Habermas

afirma que podemos conhecer apenas os fatos natildeo os objetos do mundo

O mundo em Habermas natildeo nos impotildee sua linguagem ele natildeo fala e soacute

responde em sentido figurado

Habermas elabora uma teoria filosoacutefica centrada na dimensatildeo

comunicativa (pragmaacutetica) Seria a partir dela que outras dimensotildees

poderiam ser compreendidas Percebemos que a dimensatildeo expositiva

(semacircntica) eacute posta em segundo plano Em Habermas o modo como as

coisas do mundo satildeo apreendidas e denominadas se orienta no contato

comunicativo entre pessoas O mundo objetivo para ele soacute eacute conhecido

com base na relaccedilatildeo com o quadro referencial da comunicaccedilatildeo Ele eacute

Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 143

apenas considerado de tal modo que a interaccedilatildeo entre pessoas se faccedila

possiacutevel Contudo Habermas natildeo se interroga pela condiccedilatildeo de

inteligibilidade da proacutepria pragmaacutetica sendo sua consideraccedilatildeo do mundo

objetivo algo vago

Conclusatildeo

Habermas como vimos distingue verdade de justificaccedilatildeo

entendendo verdade tal qual demonstra Puntel de alguma maneira no

sentido da teoria da correspondecircncia relacionada ao mundo objetivo Uma

pergunta contudo permanece sem resposta em Habermas o que significa

compreender algo Eacute preciso destacar contra ele que haacute um deacuteficit acerca

de uma consideraccedilatildeo da linguagem em sua dimensatildeo estruturalno que diz

respeito agrave dimensatildeo ontoloacutegica

Se Habermas acerta na proposta de separar a verdade da justificaccedilatildeo

haja vista o problema da universalidade e da objetividade (de um mesmo

mundo para todos) ele ao mesmo tempo natildeo consegue esclarecer como

ocorre a relaccedilatildeo da co-originaridade entre exposiccedilatildeo e comunicaccedilatildeo natildeo

aprofundando o estatuto que o mundo objetivo possui em sua filosofia

teoacuterica Habermas natildeo avanccedila de forma mais profunda acerca de questotildees

ontoloacutegicas exigidas por sua nova posiccedilatildeo realista-pragmaacutetica

Ele ignora ou tenta fazer desaparecer questotildees filosoacuteficas que

tradicionalmente seriam chamadas de metafiacutesicas como a tematizaccedilatildeo do

mundo objetivo A virada radicalmente epistecircmica de toda a filosofia

moderna como no esquema transcendental deslocou o sujeito para o

centro de toda a empresa teoacuterica e desse modo tambeacutem da filosofia Fala-

se como sabemos no acircmbito da modernidade de uma filosofia do sujeito

No caso de Habermas e de seu kantismo pragmaacutetico revirado

linguisticamente podemos falar de uma filosofia centralizada na

intersubjetividade e na pragmaacutetica mas que manteacutem ainda a dicotomia

entre sujeitos e mundo

144 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Em Verdade e justificaccedilatildeo os sujeitos supotildeem em comum um

mundo objetivo como totalidade dos objetos que podem ser tratados e

apreciados Eacute justamente o conceito de fracasso performativo que nos

conduz em Habermas a uma pressuposiccedilatildeo formal de nossas accedilotildees

linguiacutesticas e de nossas intervenccedilotildees no mundo objetivo entendido como

sistema de possiacuteveis referecircncias e possiacuteveis manipulaccedilotildees

Trata-se em Habermas de um postulado que inevitavelmente temos

de fazer caso contraacuterio a fala e a intervenccedilatildeo no mundo se tornariam

impossiacuteveis Os participantes do discurso assumem a mesma

pressuposiccedilatildeo formal de um mundo independente de noacutes de nossas

descriccedilotildees de nossos esquemas conceituais

Nesse sentido em Habermas a referecircncia ao mundo natildeo eacute

apresentada como constituindo uma caracteriacutestica componente da

semacircntica da linguagem mas como um pressuposto acrescentado para

que possamos explicar nossas falas e nossas intervenccedilotildees Habermas fala

de semacircntica apenas como dimensatildeo da linguagem (Darstellung der

Welt) mas nunca a analisa Como ressalta Puntel (2013) as tentativas de

Habermas de abordar questotildees filosoacuteficas centrais sem deixar de ser fiel

ao pensamento poacutes-metafiacutesico conduziram-no a problemas

fundamentais obscuridades incoerecircncias ausecircncias de esclarecimentos e

soluccedilotildees

Referecircncias

ALVARENGA N Verdade contingecircncia e falibilismo a teoria discursiva da verdade de J

Habermas agrave luz das criacuteticas de A Wellmer Siacutentese Belo Horizonte v 26 n 86 p

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Juliano Cordeiro da Costa Oliveira | 145

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Filosofia Belo Horizonte v 40 n 127 p 173-223 2013

8

Por que Jogos Satildeo Filosoficamente Relevantes

para se Pensar a Natureza de Sistemas Formais

Uma Abordagem Wittgensteiniana

Marcos Silva 1

I want to say an education quite different from ours

might also be the foundation for quite different concepts

(Wittgenstein Zettel 387)

Em 1930 segundo algumas conversas documentadas em

Wittgenstein (1984a)2 estava discutindo com alguns membros influentes

do Ciacuterculo de Viena aspectos importantes de sua filosofia Essas

discussotildees pretendiam esclarecer novidades e dificuldades advindas da

revisatildeo e aprofundamento de toacutepicos de seu Tractatus (1984b) Neste

contexto histoacuterico fica claro pela dinacircmica das conversas que Waismann

conduziu as discussotildees para a filosofia da matemaacutetica uma vez que

Wittgenstein estava preparando-o para um painel a tomar lugar em

Koumlnigsberg naquele mesmo ano O painel trataria justamente de

diferentes perspectivas a respeito dos desafios filosoacuteficos concernentes agrave

crise dos fundamentos na matemaacutetica Nesta discussatildeo em Koumlnisberg Von

Neumann representaria o formalismo Carnap o logicismo e Heyting a

escola intuitionista Jaacute Waismann o quarto membro ilustre da mesa de

1 Professor Adjunto do curso de Filosofia da UFAL e bolsista de produtividade do CNPq (2018-2021) Agradeccedilo aos comentaacuterios valiosos de Luiz Henrique da Silva Santos a este trabalho

2 Estas discussotildees foram documentadas por Waismann e organizadas para publicaccedilatildeo por McGuinness em Wittgenstein und Wiener Kreis doravante WWK

Marcos Silva | 147

discussotildees sobre o estado da arte da filosofia da matemaacutetica seria

responsaacutevel por representar a filosofia de Wittgenstein

A literatura secundaacuteria sobre estes toacutepicos de discussatildeo acerca da

natureza da matemaacutetica no WWK de maneira frequente e acertada a meu

ver aborda os comentaacuterios de Wittgenstein como sendo muito criacuteticos em

relaccedilatildeo ao programa de Hilbert A criacutetica tinha como alvo a meta do

programa que consistia na procura por uma prova absoluta para a

consistecircncia da matemaacutetica (Hacker 1986 Engelmann 2013) Segundo

Wittgenstein provocativamente afirma a tentativa de se fornecer uma prova

absoluta da consistecircncia da aritmeacutetica seria anaacuteloga agrave procura por uma

ldquodoenccedila escondidardquo em um corpo funcional (WITTGENSTEIN 1984a p

120) Contudo acredito que o ponto faltante nesta literatura seja a observaccedilatildeo

de que nesta altura Wittgenstein natildeo foi de forma alguma criacutetico de uma

tese central da tradiccedilatildeo formalista Essa tese diz respeito agrave arbitrariedade da

sintaxe Assim como as regras de um jogo as regras da sintaxe de sistemas

formais seriam para formalistas arbitraacuterias ou seja natildeo residiriam na

essecircncia da linguagem da mente ou do mundo Com efeito Wittgenstein

teria afirmado contundentemente nas discussotildees com os membros do

Ciacuterculo de Viena que ldquoa verdade no formalismo eacute que toda sintaxe pode ser

concebida como se fosse um sistema de regras de um jogo (hellip) Eu gostaria

de afirmar que natildeo somente os axiomas da matemaacutetica mas toda a sintaxe eacute

arbitraacuteriardquo (WITTGENSTEIN 1984a p103 minha traduccedilatildeo)

Minha hipoacutetese de trabalho para se entender esta formulaccedilatildeo forte

de Wittgenstein eacute a de que ela ilustra a sua reaccedilatildeo agrave visatildeo de Frege esta

muito criacutetica ao formalismo Esta reaccedilatildeo me parece ser baseada em uma

ainda incipiente aplicaccedilatildeo da noccedilatildeo de jogos para se entender de maneira

geral a natureza das regras da sintaxe e particularmente a proacutepria noccedilatildeo

de sistemas formais Em junho de 1930 Wittgenstein e Waismann estavam

lendo Grundgetsetze II de Frege em Viena como a entrada ldquoo que dizer

em Koumlnigsbergrdquo do WWK nos mostra No Grundgesetze II Frege (1903

sect106-119) defendeu inter alia contra teses formalistas que identificam a

natureza de sistemas formais com jogos que 1) nuacutemeros da aritmeacutetica natildeo

148 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

podem ser reduzidos a meros sinais ou marcas fiacutesicas porque por

exemplo lsquo0rsquo natildeo tem a propriedade de resultar no sinal lsquo1rsquo quando

adicionado ao sinal lsquo1rsquo ou seja sinais fiacutesicos eles mesmos em uma folha

de papel por exemplo natildeo possuem propriedades matemaacuteticas 2) que

uma contradiccedilatildeo um conceito propriamente loacutegico pode somente ocorrer

nas regras do jogo de xadrez e natildeo nas configuraccedilotildees baacutesicas isto eacute em

nenhum arranjo fiacutesico atual de peccedilas (do xadrez) e 3) que eacute impossiacutevel

inferir regras de um sistema formal pela mera inspeccedilatildeo de posiccedilotildees de

alguns sinais assim como seria impossiacutevel inferir as regras de um jogo de

tabuleiro dado a partir da mera disposiccedilatildeo de suas peccedilas

Nesta altura nas discussotildees com Waismann Wittgenstein parece

concordar com todas essas criacuteticas de Frege ao formalismo contudo vale

notar que Wittgenstein (1984a p 105) acusou indiretamente Frege de ter

cometido uma espeacutecie de falaacutecia do falso dilema se loacutegica e matemaacutetica

natildeo satildeo uma questatildeo de mera inspeccedilatildeo de sinais fiacutesicos ou da disposiccedilatildeo

de marcas materiais em um folha de papel por exemplo o significado de

seus sinais natildeo precisam ser fundados em seu Bedeutung ou seja em sua

referecircncia a entidades abstratas como Frege argumentou Wittgenstein

critica o seguinte raciociacutenio Se o significado de sinais em um sistema

formal natildeo pode ser dado pela mera configuraccedilatildeo de suas marcas fiacutesicas

entatildeo o seu significado deveria ser dado pela sua referecircncia a

determinados objetos especiais Wittgenstein parece ter defendido que ou

bem Bedeutung ou bem meramente sinais fiacutesicos natildeo satildeo todas as

alternativas neste horizonte De fato noacutes precisamos de sinais isto eacute de

algumas marcas fiacutesicas organizadas para a elaboraccedilatildeo de sistemas formais

variados mas noacutes precisamos ainda de regras para manipular estes sinais

Como consequecircncia uma compreensatildeo adequada da metaacutefora de jogos

dos formalistas deveria redundar na assimilaccedilatildeo da ideia que noacutes natildeo

precisamos nos engajar com algum Bedeutung transcendente ao jogo ele

mesmo para garantirmos que os sinais de um sistema formal tenham

significado Em outras palavras sinais seriam sim necessaacuterios mas natildeo

suficientes para a constituiccedilatildeo de um sistema formal mas nem por isso

Marcos Silva | 149

deveriacuteamos postular uma referecircncia a coisas fora do sistema ele mesmo

para dotaacute-lo de significado caso compreendamos a natureza das regras

que organizam o sistema e governam a manipulaccedilatildeo dos seus sinais

Eacute importante notar que Wittgenstein depois desta criacutetica

imediatamente comeccedila a usar o vocabulaacuterio que Frege introduziu ao criticar

formalistas a saber sistemas formais como jogos mas natildeo a posiccedilatildeo de

Frege de que a loacutegica deveria representar leis de uma realidade abstrata

Parece que Frege assumiu o vocabulaacuterio formalista como o de regras e

jogos para mostrar em uacuteltima instacircncia seu absurdo ou ao menos sua

implausibilidade para se entender a aritmeacutetica e a loacutegica Acredito que

Wittgenstein assumiu o vocabulaacuterio formalista de Frege mas condenou seu

falso dilema a saber ou bem somente sinais ou bem a necessidade de um

Bedeutung ao mostrar que formalistas fazem um bom ponto ao defenderem

que toda a sintaxe eacute arbitraacuteria como as regras de jogos Wittgenstein

assumiu o vocabulaacuterio formalista de jogos para mostrar que quaisquer

regras sintaacuteticas poderiam ser outras as regras de sistemas formais natildeo

precisam estar ancoradas na realidade mesmo que rejeitemos que natildeo

devem ser redutiacuteveis a meros sinais ou marcas fiacutesicas Nestas discussotildees

documentadas em WWK Wittgenstein natildeo parecia estar preocupado com

nenhuma lei loacutegica da realidade ou do pensamento mas sim com as regras

para manipular sinais que satildeo estipuladas quando noacutes estipulamos um

sistema loacutegico Ao se entender sistemas como jogos deveriacuteamos entendecirc-los

como independentes de uma realizaccedilatildeo material especiacutefica uma vez que o

fato de o rei num jogo de xadrez ser de plaacutestico madeira ou ateacute mesmo uma

bola de papel eacute irrelevante para a constituiccedilatildeo do proacuteprio sistema Os

sistemas formais como jogos deveriam ser compostos de marcas fiacutesicas sim

mas que possam exercer funccedilotildees variadas no sistema sempre determinadas

pelas regras de manipulaccedilatildeo do jogo

Neste periacuteodo histoacuterico no comeccedilo da deacutecada de 1930 a discussatildeo de

Wittgenstein estaacute ainda circunscrita agrave natureza de sistemas formais e natildeo

eacute desenvolvida para um entendimento geral da linguagem ou das

atividades humanas como um todo Wittgenstein eacute um pensador radical

150 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Eacute razoaacutevel defender que o desenvolvimento de sua filosofia madura possa

ser visto como o desenvolvimento proacuteprio das consequecircncias radicais

desta metaacutefora de jogos natildeo somente para entender matemaacutetica e loacutegica

mas para se entender a linguagem a intencionalidade e a normatividade

peculiares de atividades de seres humanos

No que se segue eu gostaria de responder a pergunta acerca do

porquecirc e de como a noccedilatildeo de jogos desenvolvida por Wittgenstein em 1930

(e nāo de jogos de linguagem porque ele natildeo tinha ainda este conceito

nesta eacutepoca) poderia ainda ser relevante para a filosofia da loacutegica Esta

questatildeo fica ainda mais premente ao considerarmos os problemas

contemporacircneos associados agrave emergecircncia de tantos sistemas natildeo-claacutessicos

legiacutetimos e seu desafio agrave natureza da racionalidade

Eu natildeo pretendo apresentar aqui um quadro nem original e nem

exaustivo de caracteriacutesticas filosoficamente importantes de sistemas

formais ao serem vinculadas a natureza de jogos Mas em vez disso eu

espero defender algumas intuiccedilotildees de Wittgenstein no comeccedilo da deacutecada

de 1930 sobre jogos e regras antes mesmo de suas noccedilotildees maduras (e

elusivas) de jogos de linguagem e semelhanccedila de famiacutelia Minhas

preocupaccedilotildees natildeo redundam em avanccedilar e defender todas as ideias

associadas agrave loacutegica como jogos mas restringir minhas ambiccedilotildees a

promover esta visatildeo filosoacutefica como cogente

Eacute importante evidenciar que os primeiros sistemas de ldquodeduccedilatildeo

naturalrdquo como introduzidos por Jaskowski (1934) e Gentzen (1934-35)

foram desenvolvidos na deacutecada de 1930 Nestes sistemas axiomas

foacutermulas bem formadas e pretensamente evidentes de onde se partem as

derivaccedilotildees satildeo substituiacutedos por conjuntos de inferecircncias que definem o

significado do vocabulaacuterio loacutegico de maneira que natildeo faz sentido dizer que

um sistema loacutegico descreve alguma coisa na realidade Embora as

conexotildees entre diferentes abordagens da loacutegica na deacutecada de 1930 e o

embate contemporacircneo entre teoria da prova e teoria de modelos sejam

histoacuterica e conceitualmente importantes seu exame natildeo estaacute no escopo

deste trabalho

Marcos Silva | 151

Com efeito muito mais poderia ser dito a respeito de jogos e seu uso

em abordagens anti-realistas na loacutegica e na epistemologia A teoria de

jogos foi oficialmente apresentada em 1944 mas foi antecipada por Borel

na deacutecada de 1920 Aleacutem disso a analogia com jogo de xadrez foi

frequentemente usada por exemplo por Weyl (1944) para criticar o

formalismo de Hilbert Vale tambeacutem notar que depois da segunda guerra

mundial o loacutegico Paul Lorenzen (1961) desenvolveu uma influente loacutegica

baseada em jogos dialoacutegicos materiais Estes jogos natildeo foram

influenciados por Wittgenstein mas por outras sugestotildees filosoacuteficas de

natureza construtivista Estes exemplos mostram a seminalidade filosoacutefica

e teacutecnica em se aplicar a metaacutefora do jogo agrave loacutegica independentemente de

uma abordagem wittgensteiniana Um projeto de pesquisa mais

abrangente a respeito disto parece ser bem-vindo

No que se segue eu natildeo estou interessado diretamente na exegese da

filosofia de Wittgenstein3 portanto natildeo vou me concentrar em seu

desenvolvimento filosoacutefico Eu proponho em vez disso oferecer uma

abordagem filosoacutefica mais geral sobre a loacutegica que tambeacutem poderia ser uacutetil

para se entender a natureza do vocabulaacuterio loacutegico

De fato a seguir eu seleciono e brevemente discuto algumas

caracteriacutesticas filosoficamente atraentes a respeito de se pensar loacutegica em

termos de regras em jogos isto eacute em tomar loacutegica como um conjunto de

praacuteticas governadas por regras engajadas por agentes racionais A

motivaccedilatildeo principal aqui eacute a respeito de como esta abordagem poderia ser

filosoficamente seminal para se entender loacutegica e racionalidade em um

ambiente de uma grande pluralidade de jogos Em outras palavras eu vou

mostrar como ao aceitarmos a ideia de sistemas loacutegicos como jogos

poderiacuteamos nos prover de ferramentas filosoacuteficas e loacutegicas para se avanccedilar

discussotildees contemporacircneas em filosofia da loacutegica

Um primeiro ponto relevante em se desenvolver a metaacutefora formalista

a respeito de sistemas formais como jogos eacute o anti-representacionismo

3 Estes problemas conceituais e histoacutericos satildeo tatildeo importantes quanto controversos por um nuacutemero grande razotildees Ver Engelmann (2013) para uma apresentaccedilatildeo mais detalhada Algum anacronismo seraacute cometido no presente trabalho

152 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Regras de um jogo natildeo precisam descrever a experiecircncia e nem a realidade

Regras natildeo podem ser falsificadas e nem verificadas pela experiecircncia uma

vez que natildeo satildeo proposiccedilotildees empiacutericas e natildeo descrevem nada

(WITTGENSTEIN 1984b 61222) De fato noacutes testamos nossa experiecircncia

do mundo usando regras como criteacuterio mas a regra ela mesma natildeo pode

ser testada pela experiecircncia como uma proposiccedilatildeo descrevendo-a pode ser

testada Uma distinccedilatildeo deve ser feita aqui por um lado noacutes testamos uma

proposiccedilatildeo a partir da experiecircncia porque a proposiccedilatildeo descreve o que

ocorre falsa ou verdadeiramente por outro lado proposiccedilotildees empiacutericas satildeo

diferentes de regras na medida em que noacutes testamos ou avaliamos a

qualidade de nossas descriccedilotildees usando algumas regras como criteacuterios Os

criteacuterios eles mesmo natildeo satildeo nem verdadeiros nem falsos Criteacuterios podem

contudo ser tomados como adequados ou inadequados para um

determinado contexto ou uso mas eles natildeo podem ser falsificados a partir

da comparaccedilatildeo com a realidade O motivo da recusa ou rejeiccedilatildeo de criteacuterios

para avaliar a qualidade de nossas praacuteticas discursivas satildeo quase sempre

pragmaacuteticas ou seja baseados na sua legitimidade ou adequaccedilatildeo conceitual

em contextos variados de accedilatildeo e natildeo metafiacutesicos

Outro ponto relevante envolvido na abordagem da loacutegica a partir da

noccedilatildeo de jogos eacute a ecircnfase na generalidade ao inveacutes da universalidade do

conhecimento Regras satildeo gerais isto eacute noacutes podemos compreender um

sistema complexo com um nuacutemero pequeno de regras simples e gerais e

estas natildeo satildeo e natildeo precisam ser universais ou seja ser vaacutelidas para o

domiacutenio de todas as coisas Regras satildeo aplicadas a muitos casos por pessoas

diferentes em contextos diferentes e em muitos periacuteodos diferentes Neste

sentido uma regra natildeo eacute conectada com uma situaccedilatildeo particular mas sim

com uma multiplicidade de situaccedilotildees possiacuteveis Noacutes podemos muito bem

entender um sistema complexo em um momento pela compreensatildeo das

regras que governam seu comportamento De fato a partir do entendimento

comum da noccedilatildeo de regras noacutes podemos pensaacute-las como uma foacutermula geral

que pode determinar um nuacutemero infinito de aplicaccedilotildees

Marcos Silva | 153

Ademais como em uma perspectiva funcionalista para o

entendimento do comportamento de sistemas complexos podemos

associar o desenvolvimento da metaacutefora formalista de jogos com uma

reaccedilatildeo criacutetica ao essencialismo uma vez que natildeo precisamos entender a

essecircncia do mundo para entender o funcionamento de sistemas loacutegicos

Por outro lado esta metaacutefora tambeacutem redunda em uma criacutetica ao

fisicalismo uma vez que a base material eacute irrelevante para o entendimento

da constituiccedilatildeo do significado a partir das regras de um dado sistema O

que Wittgenstein defende eacute um desenvolvimento importante da analogia

formalista de sistemas formais com jogos a saber assim como a base

material de um jogo de tabuleiro natildeo define o significado de suas peccedilas os

sinais na folha de papel por exemplo natildeo determinam o significado destas

marcas Satildeo contudo as regras que fixam o significado tanto das peccedilas do

jogo quanto dos sinais em um sistema formal

Vale notar tambeacutem que um jogo ou uma atividade regrada natildeo

precisa nem ter uma justificaccedilatildeo e nem ter uma fundamentaccedilatildeo Hacker

(1986) apresenta esta caracteriacutestica de jogos como a autonomia ou

arbitrariedade da sintaxe Isto significa que noacutes natildeo precisamos pensar ou

entender a essecircncia da linguagem ou do mundo para aprender como jogar

um jogo Jogos sāo auto-contidos o que eacute dito ou feito em um jogo natildeo

precisa ter nenhuma relaccedilatildeo com o que eacute feito num outro jogo Aqui noacutes

podemos ter uma interessante liberaccedilatildeo de restriccedilotildees metafiacutesicas

relacionadas agrave exigecircncia de referecircncia ao mundo para que estruturas

linguiacutesticas tenham significado uma vez que jogos natildeo precisam ser

pensados em relaccedilatildeo a alguma coisa isto eacute eles natildeo precisam ser

comportar de acordo com um fato determinado no mundo

Em se jogando jogos noacutes temos um claro aspecto de Handlung

dentro de sua dinacircmica loacutegica Ou seja para entendermos o que eacute um jogo

noacutes somos obrigados a pensarmos em termos de alguma accedilatildeo passos

(ldquomovesrdquo) operaccedilotildees ou em uma palavra praacuteticas em atividades regradas

(geregelte Handlung) Existe um niacutevel performativo mandataacuterio em jogos

Regras satildeo instruccedilotildees para atividades (jogos) ou para a construccedilatildeo de algo

154 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

por exemplo A ecircnfase filosoacutefica deve estar no procedimento pelo qual ou

a teacutecnica a partir da qual alguma performance eacute desempenhada e natildeo no

conhecimento proposicional a partir do qual o mundo eacute conhecido

verdadeiramente Natildeo eacute acidental que regras com frequecircncia funcionem

como normas para a accedilatildeo uma vez que expressam o que eacute considerado

adequado ou inadequado correto ou incorreto aceitaacutevel ou inaceitaacutevel

legiacutetimo ou ilegiacutetimo Um operador loacutegico neste contexto pode ser

tomado apenas como um procedimento tomado como legiacutetimo pelo qual

manipulamos sinais ou como uma seacuterie de manipulaccedilotildees permitidas que

contribui com o significado para proposiccedilotildees complexas

Nesta visatildeo que enfatiza o elemento humano em sistemas formais

como atividades regradas de seres humanos uma via de compatibilidade

com o pluralismo loacutegico a tese contemporacircnea que defende a

possibilidade de vaacuterios sistemas loacutegicos conflitantes serem legiacutetimos

conjuntamente pode ser pavimentada Ao se manter que sistemas loacutegicos

satildeo jogos noacutes podemos falar de maneira muito natural a respeito de vaacuterios

caacutelculos sem que precisemos nos comprometer com a verdade ou a

falsidade de alguns deles Com efeito caacutelculos natildeo podem ser falsos no

mesmo sentido que uma proposiccedilatildeo empiacuterica pode ser falsa Mesmo a

loacutegica proposicional entendida classicamente natildeo pode ser verdadeira ou

falsa Como eacute defendido aqui um jogo natildeo pode ser nem falso nem

verdadeiro uma vez que natildeo precisa descrever nada

Aleacutem disso vale notar que natildeo haacute nem um jogo sem regra ou seja

num certo sentido natildeo haacute um jogo anaacuterquico nenhuma regra sem jogo

ou uma regra sem o sistema em que ela deva estar situada Em outras

palavras regras satildeo mortas sem um sistema e um sistema sem regras natildeo

eacute realmente um sistema Aqui noacutes temos uma motivaccedilatildeo para introduzir

o que podemos chamar de holismo loacutegico para cada passo (ldquomoverdquo) ou

operaccedilatildeo em uma atividade governada eles devem estar inseridos em um

sistema Analogamente em sistemas formais operaccedilotildees ganham

significado em relaccedilatildeo a muitas outras Como resultado desta visatildeo

Marcos Silva | 155

mudar uma regra formal significa mudar o jogo uma vez que natildeo haacute

mudanccedila local que natildeo impactaria globalmente no sistema formal inteiro

O desenvolvimento da visatildeo formalista inspirada por Wittgenstein

tambeacutem permite as propriedades muito seminais de sistemas formais

como flexibilidade e plasticidade a partir da noccedilatildeo de jogos Em principio

noacutes podemos rejeitaraceitar ou mudar qualquer regraprinciacutepio em um

sistema loacutegico (claro evitando trivializaccedilāo com notado por Da Costa

1958) Em outras palavras operar em um sistema loacutegico eacute um Handlung

com signos governado por regras que satildeo convencionais no sentido que

poderiam ser outras

Consequentemente noacutes podemos rejeitar a visatildeo tiacutepica a respeito da

normatividade oferecida pelo realista monista Se noacutes temos apenas uma

uacutenica loacutegica verdadeira natildeo importando aqui qual e se a loacutegica determinar

as condiccedilotildees de inteligibilidade de nossas praacuteticas e os limites de nossa

racionalidade entatildeo eacute faacutecil transformar a discussatildeo loacutegica em uma discussatildeo

normativa qualquer desvio da supostaloacutegica verdadeira (como qualquer

outra loacutegica com outros princiacutepios) deveria ser tomado como contrassensual

Desvios sob o ponto de vista de um monista satildeo instacircncias de mau raciociacutenio

ou mesmo ilustraccedilotildees de nenhum raciociacutenio ou seja de que nenhum

raciociacutenio foi de fato feito Se noacutes levarmos a noccedilatildeo de jogos devidamente a

seacuterio a resposta para a normatividade da loacutegica fica encapsulada em normas

de accedilatildeo ou em instruccedilotildees para praacuteticas associadas com uma finalidade

particular Eacute evidente que noacutes poderiacuteamos ter outras normas como de fato

outras comunidades tecircm Com efeito existem outras comunidades que

obedecem outras regras uma comunidade de matemaacuteticos de orientaccedilatildeo

intuicionista por exemplo (LOumlF 1996 2013)

Como um uacuteltimo ponto para a relevacircncia filosoacutefica de se pensar

sistemas formais como jogos vale se destacar que regras satildeo puacuteblicas e

natildeo fundamentadas em representaccedilotildees privadas mentais ou em quaisquer

leis da mente Regras devem ser aprendidas em um ambiente social e a

partir de interaccedilotildees sociais Aqui a noccedilatildeo de educaccedilatildeo ou de iniciaccedilatildeo em

uma praacutetica naturalmente ganha importacircncia dentro do escopo da

156 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

discussatildeo em filosofia da loacutegica e da matemaacutetica Esta visatildeo encoraja

consequentemente uma virada antropoloacutegica na abordagem de sistemas

formais uma vez que enfatiza o niacutevel institucional e social na performance

de um jogo A questatildeo natural eacute Quem joga o jogo Quem aplica os

sistemas autocircnomos ao mundo Responder a esta questatildeo propondo um

sujeito metafiacutesico imaterial fora do mundo ou mesmo um

transcendental impondo estruturas a priori as suas representaccedilotildees

parece ser altamente inadequado Uma resposta natural deveria ser que

indiviacuteduos materiais com uma histoacuteria natural e social jogam os jogos ou

performam atividades regradas em uma comunidade de outros

indiviacuteduos Com efeito regras devem ser sempre associadas com uma

forma de vida Um indiviacuteduo radicalmente isolado natildeo pode jogar um jogo

ou seguir uma regra se noacutes aceitarmos as consequecircncias do famoso

argumento contra a linguagem privada de Wittgenstein em suas

Investigaccedilotildees filosoacuteficas Um jogo jogado objetivamente deve poder ser

ensinado para outros indiviacuteduos a partir dos criteacuterios puacuteblicos pelos quais

se corrigem passos inadequados ou ilegiacutetimos em atividades regradas

Com estas observaccedilotildees neste curto ensaio pretendi mostrar como a

noccedilatildeo de jogos pode ainda ser relevante filosoficamente para se entender a

natureza de sistemas formais a partir de uma abordagem wittgensteiniana

usando principalmente os textos compilados como WWK

Referecircncias

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Marcos Silva | 157

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Suhrkamp 1984a

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untersuchungen Werkausgabe Band 1 Frankfurt am Main Suhrkamp 1984b

9

Revisitando o Argumento da Linguagem Privada

Marcus Joseacute Alves de Souza 1

Introduccedilatildeo

Falar de ldquolinguagem privadardquo aponta para um conceito intuitivamente

ou aparentemente contraditoacuterio como pode existir uma linguagem privada

uma vez que a linguagem de um ponto de vista simplista pressupotildee

comunicaccedilatildeo interaccedilatildeo entre falantes Linguagem privada parece um

oxiacutemoro patente Entretanto do ponto de vista teoacuterico a depender de qual

moldura teoacuterica do significado se adere ldquolinguagem privadardquo natildeo eacute algo tatildeo

contraditoacuterio assim Deste modo ao se falar de ldquoargumento da linguagem

privadardquo natildeo se estaacute pensando num argumento que demonstre a

plausibilidade da linguagem privada Na acepccedilatildeo corrente dos estudos sobre

o pensamento de Wittgenstein objeto desta reflexatildeo ldquoargumento da

linguagem privadardquo eacute o argumento mais especificamente os argumentos

que tecircm a linguagem privada como objeto a rigor argumentos contra a

linguagem privada Segundo Hacker (2010 p 616) o que a expressatildeo indica

natildeo satildeo argumentos claros que o filoacutesofo apresenta na verdade satildeo

argumentos de tortuosa interpretaccedilatildeo e formalizaccedilatildeo presentes nos

paraacutegrafos de 243 a 315 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

A proposta deste artigo eacute modesta Primeiro apresentar um possiacutevel

modo de estruturaccedilatildeo do argumento que tornaria plausiacutevel uma

linguagem privada argumento se de enquadra no acircmbito de uma

1 Professor de Filosofia da UFAL Liacuteder do Grupo Linguagem e Cogniccedilatildeo-UFAL

Marcus Joseacute Alves de Souza | 159

compreensatildeo mental de caraacuteter privatista A seguir indicar trecircs pontos de

ataques contra o argumento extraiacutedos dos paraacutegrafos das Investigaccedilotildees

Filosoacuteficas tentando mostrar falhas nas premissas do argumento

formalizado da plausibilidade da linguagem privada Feito isso encerra-

se o artigo anunciando brevemente alguns elementos desdobrados da

proposta do filoacutesofo para pensar o mental dentro do quadro da

compreensatildeo de linguagem do filoacutesofo

Argumento a Favor da Linguagem Privada

Natildeo eacute claro que Wittgenstein tenha em mente um alvo apenas de ataque

nos trechos indicados como referecircncia do que ficou conhecido como

ldquoargumento da linguagem privadardquo2 todavia eacute possiacutevel determinar que o

filoacutesofo busca atacar certa imagem de privacidade que podemos chamar de

moderna e o modelo de teoria do significado subjacente a tal privacidade

modelo mentalista de significado Nesta imagem existe o mundo da proacutepria

mente e o mundo exterior agrave mente dos objetos materiais e da mente das

outras pessoas O mundo da proacutepria mente eacute privado inicialmente

encapsulado em si e acessiacutevel privadamente de modo direto ao sujeito mental

e de modo indireto por outros sujeitos mentais (outras mentes)

Numa acepccedilatildeo cartesiana a mente eacute uma substacircncia imaterial ligada

ao corpo do portador da mente mas o corpo poderia existir por si proacuteprio

Na mente cartesiana se desenrola os pensamentos sentimentos

sensaccedilotildees Estes satildeo fundamentalmente privados Tal compreensatildeo cria

um problema efetivo quanto ao conhecimento de outras mentes

Tal imagem tambeacutem sobrevive numa acepccedilatildeo empirista mesmo que

o candidato a mente seja algo empiricamente observaacutevel o ceacuterebro Parece

existir uma dificuldade em transpor das operaccedilotildees neuroloacutegicas toda a

gama de manifestaccedilotildees comportamentais e toda a gama de capacidades

2 Eacute possiacutevel perceber que o ataque eacute claro para uma imagem cartesiana de mente bem como o modelo linguagem x designaccedilatildeo no ldquoargumento da linguagem privadardquo mas eacute possiacutevel perceber pelo itineraacuterio reflexivo do filoacutesofo que mesmo uma compreensatildeo empiacuterica mentalista da linguagem ou mesmo o ataque pode se conectar com problemas detectados naquilo que foi o projeto de linguagem fenomenoloacutegica Cf Nielsen 2008 Parte I

160 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

intelectuais disposiccedilotildees etc da nossa espeacutecie e de outras semelhantes o

que faz com que se estabeleccedila uma independecircncia de esferas mental e

fiacutesica (manifestaccedilotildees comportamentais x operaccedilotildees neuronais) que

alimenta a mesma imagem de mente

A compreensatildeo que a mente eacute algo privado e que a linguagem eacute

expressatildeo externa do que estaacute interno eacute a concepccedilatildeo em termos gerais

comum tanto do idealismoracionalismo quanto do

fisicalismoempirismo Isso cria um problema para o conhecimento de

outras mentes sendo que o encaminhamento da soluccedilatildeo se estabeleccedila por

analogia entre minha mente que tenho acesso direto e a mente dos

outros que numa hipoacutetese otimista tenho acesso indireto

Assim um dos alvos talvez o principal dos trechos das Investigaccedilotildees

Filosoacuteficas seja a compreensatildeo privada da mente e associada a esta a

teoria do significado que decorre desta privacidade que daacute condiccedilotildees para

se pensar uma linguagem privada No sect 243 Wittgenstein (1999) daacute as

bases para esta linguagem Natildeo se trata de uma linguagem

circunstancialmente privada algo como monoacutelogos criptografados mas

uma linguagem radicalmente privada A indicaccedilatildeo do filoacutesofo eacute uma

linguagem que diga respeito agraves proacuteprias ocorrecircncias mentais vivecircncias

interiores que seriam nesta moldura radicalmente privadas

Mas seria tambeacutem pensaacutevel uma linguagem na qual algueacutem pudesse para seu

uso proacuteprio anotar ou exprimir suas vivecircncias interiores ndash seus sentimentos

seus estados de espiacuterito ndash Natildeo podemos fazer isso em nossa linguagem

costumeira ndash acho que natildeo As palavras dessa linguagem devem referir-se

agravequilo que apenas o falante pode saber agraves suas sensaccedilotildees imediatas privadas

Um outro pois natildeo pode compreender esta linguagem (WITTGENSTEIN

1999 p 98 sect 243)

Assim aquilo sobre de que a linguagem se compotildee signos regras

referecircncia enfim todos seus elementos seriam privados apenas o criador-

usuaacuterio definiria o significado e apenas ele saberia o significado dos signos

De modo esquemaacutetico o argumento a favor da possibilidade de uma

linguagem privada poderia ser feito assim

Marcus Joseacute Alves de Souza | 161

- ldquoSensaccedilotildees satildeo privadas da mente da pessoa que as temrdquo (premissa 1 = P1)

- ldquoAs sensaccedilotildees satildeo inacessiacuteveis a outras pessoas uma vez que os outros natildeo tecircm

certeza se algueacutem tem ou natildeo uma sensaccedilatildeo particularrdquo (premissa 2 = P2)

- ldquoAlgueacutem pode dar um nome a uma sensaccedilatildeo particular na privacidade de sua mente

e usar este nome e o acerto deste nome nunca seria acessado por ningueacutem a

natildeo ser o usuaacuterio privadordquo (premissa 3 = P3)

- ldquoO significado de um termo nesta linguagem nada mais eacute que a referecircncia de uma

ocorrecircncia mental (sensaccedilatildeo) e seu modo de expressatildeo (signo) sobre uma

sensaccedilatildeo presente ou passada eacute a simples indicaccedilatildeo privada (ostensatildeo) desta

ocorrecircncia mentalrdquo (premissa 4 = P4)

rarr ldquoA linguagem privada eacute possiacutevel seria a linguagem de nossas ocorrecircncias

mentaisrdquo (Conclusatildeo)

Fazendo uma avaliaccedilatildeo inicial dessas premissas se pode estabelecer

sobretudo dentro de uma moldura privatista da mente e uma concepccedilatildeo

mentalista do significado que existe uma certa plausibilidade do argumento

A premissa 1 (P1) parece ser verdadeira as ocorrecircncias mentais as

sensaccedilotildees satildeo privadas ldquoningueacutem sente a minha dorrdquo por exemplo eacute uma

afirmaccedilatildeo claramente verdadeira o que aponta para a verdade da

premissa 1

A premissa 3 (P3) parece ser verdadeira tambeacutem parece ser

plausiacutevel admitir sua verdade Sendo privadas e sendo algo as sensaccedilotildees

podem ser nomeadas como qualquer objeto exterior na linguagem puacuteblica

(mesmo que passe por um processo mental de representaccedilatildeo) Como

apenas o criador e usuaacuterio conhece o termo soacute ele conhece sua associaccedilatildeo

referencial com o objeto e soacute ele conhece o objeto logo eacute possiacutevel admitir

que soacute ele sabe se acertou ou natildeo no uso deste termo

A premissa 4 (P4) tambeacutem pode ser plausiacutevel uma vez que pode se

admitir que o ato de ostensatildeo eacute fundamental para a instanciaccedilatildeo do

significado de um termo eacute possiacutevel admitir que semanticamente o

significado de um termo eacute sua substituiccedilatildeo por ostensatildeo no plano da

linguagem e como os elementos satildeo privados tal mecanismo pode ser

executado privadamente

162 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

A premissa 2 (P2) parece ser a problemaacutetica pois parece existir uma

seacuterie de situaccedilotildees que claramente sabemos que uma pessoa tem dor por

exemplo o que aponta para uma implausibilidade da premissa Claro que

existem situaccedilotildees de simulaccedilatildeo de sensaccedilotildees mas seraacute possiacutevel duvidar que

ao enfiar um prego debaixo da unha de uma pessoa ela natildeo tenha dor Os

mais aferrados agrave moldura privatista da mente podem pensar que no maacuteximo

o que posso fazer eacute dado agraves reaccedilotildees da pessoa (comportamento) supor que

ela estaacute tendo dor pois natildeo sinto a dor dela logo natildeo tenho condiccedilotildees de

dizer com certeza que ela tem ou natildeo dor Assim mesmo que se possa pensar

que haacute uma inconfundiacutevel expressatildeo comportamental de dor natildeo existe clara

e confiaacutevel regularidade entre causa e efeito no caso das sensaccedilotildees Por mais

regular que seja a relaccedilatildeo entre enfiar um prego debaixo de uma unha de

algueacutem e este algueacutem gritar chorar se contorcer parece possiacutevel pensar

contra-exemplos desta regularidade algueacutem que fique impassiacutevel por

exemplo Assim parece natildeo existir uma correlaccedilatildeo perfeita entre tiacutepica causa

do comportamento de dor a dor e o comportamento de dor o que torna mais

plausiacutevel a premissa 2

Esta avaliaccedilatildeo preliminar tem como objetivo reforccedilar as bases da

plausibilidade da admissatildeo da linguagem privada P1 aponta para o

aspecto da natureza privada das ocorrecircncias mentais P2 para a dimensatildeo

epistemoloacutegica das ocorrecircncias mentais P3 e P4 para o mecanismo

semacircntico da proposta de linguagem privada

O exemplo recorrente de Wittgenstein eacute o da dor em algumas

ocasiotildees trabalha tambeacutem com o exemplo das cores Natildeo se pretende fugir

desses exemplos pois dado a sua vivacidade e forccedila retoacuterica servem

melhor para esclarecer a questatildeo e desdobrar para outros exemplos

Pontos de Ataque ao Argumento

A seguir tentaremos indicar a partir das reflexotildees de Wittgenstein o

ataque a este argumento na verdade indicando a inadmissibilidade do

argumento proposto para embasar a possibilidade da linguagem privada

Marcus Joseacute Alves de Souza | 163

A Engrenagem Solta

Este ponto de ataque pode ser detectado na sequecircncia dos paraacutegrafos

271 272 279 e 293 das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

Eacute uma das metaacuteforas recorrentes de Wittgenstein para explicar a

linguagem a das engrenagens Assim aponta para o fato do significado ser

uma articulaccedilatildeo de uma seacuterie de elementos

Para a formulaccedilatildeo deste ataque os paraacutegrafos apontam para a

ambiguumlidade possiacutevel na denotaccedilatildeo do significado de palavras de cores

Nos paraacutegrafos eacute possiacutevel perceber a alegaccedilatildeo de que cada pessoa processa

seu exemplar de cor na sua mente e que existe a possibilidade de confusatildeo

na denotaccedilatildeo das cores Eacute possiacutevel que eu e parte da humanidade tenham

uma sensaccedilatildeo de vermelho e outra parte tenha outra sensaccedilatildeo cromaacutetica

(WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 272)

Um empirista como Locke admite a mesma situaccedilatildeo mas

sabiamente ele aponta (como Wittgenstein) que eacute uma situaccedilatildeo

inverificaacutevel Ou seja se vocecirc tem um exemplar privado na memoacuteria que

vocecirc chama de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute verde e eu tenho um

exemplar privado que eu chamo de ldquovermelhordquo mas na realidade eacute azul e

um terceiro chama seu exemplar privado de ldquovermelhordquo e ele na realidade

eacute vermelho Dado a privacidade efetiva natildeo posso verificar os exemplares

privados dos trecircs A questatildeo mais problemaacutetica entra pela porta dos fundos

pela linguagem Para Locke ndash e aqui eacute a oportunidade de expor uma teoria

mentalista standart do significado - os nomes satildeo marcas sensiacuteveis de ideias

armazenadas na memoacuteria assim as palavras estatildeo em associaccedilatildeo com ideias

da mente Se uma palavra natildeo ldquoexecutardquo a mesma ideia armazenada na

mente de duas pessoas ou mais pessoas ela natildeo seraacute significativa

Quando um homem fala com outro o faz para que possa ser entendido e o fim

da fala implica que estes sons como marcas devem tornar conhecidas suas

ideias ao ouvinte Essas palavras entatildeo satildeo as marcas das ideias de quem fala

ningueacutem pode aplicaacute-las como marcas imediatamente a nenhuma outra coisa

164 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

exceto agraves ideias que ele mesmo possui jaacute que isto as tornaria sinais de suas

proacuteprias concepccedilotildees e ao contraacuterio aplicaacute-las a outras ideias faria com que elas

fossem e natildeo fossem ao mesmo tempo sinais de suas ideias e deste modo natildeo

teriam de nenhum modo qualquer significado (LOCKE 1983 p 222)

Assim no uso puacuteblico o desacordo eacute detectaacutevel uma vez que um dos

falantes mostre publicamente o que eacute que ele tem como exemplar de

ldquovermelhordquo do mesmo modo o outro e assim aleacutem de detectar o desacordo

superaacute-lo isso mantendo a moldura mentalista Cores a princiacutepio satildeo

elementos ou aspectos fiacutesicos de objetos fiacutesicosmateriais uma vez que se

tem a vantagem de poder ldquomostrarrdquo exteriormente um exemplar fiacutesico

similar ou idecircntico com a cor para superar a ambiguumlidade Transpor esta

problemaacutetica para o exemplo da dor torna a situaccedilatildeo bem mais problemaacutetica

e complexa Dor eacute uma sensaccedilatildeo sendo privada ningueacutem que natildeo tenha a

experiecircncia da sensaccedilatildeo de dor saberaacute o que significa o signo qualquer que

o designa Se o usuaacuterio e falante do signo dor usa-o para significar X num

momento e noutro para significar Y natildeo haveraacute desacordo nem

possibilidade de verificaccedilatildeo Na verdade seraacute tomado pelo usuaacuterio da

linguagem privada como significando a mesma coisa A mesma situaccedilatildeo

pode ser pensada em uso comum Suponha que algueacutem se queixa de uma

dor sendo privada a sensaccedilatildeo pode variar de pessoa para pessoa se for

diferente de pessoa para pessoa a duacutevida eacute sem sentido pois eacute radicalmente

insuperaacutevel a privacidade o que afeta o uso puacuteblico da palavra ldquodorrdquo como

palavra significativa Tal situaccedilatildeo aponta para a ideia de engrenagem solta

no uso do termo torna-se irrelevante se este algueacutem tem dor ou natildeo para a

significaccedilatildeo do termo em uso privado e para a comunicaccedilatildeo em uso puacuteblico

ldquo[] a roda que se pode mover sem que mais nada se mova natildeo pertence a

maacutequinardquo (WITTGENSTEIN 1999 p 103 sect 271)

A este respeito Wittgenstein (1997 p 427 ndash traduccedilatildeo nossa) diz nas

notas para conferecircncia de filosofia3 ldquoNatildeo eacute um ato oculto nomear um

objeto que possa dar significado a uma palavrardquo

3 Este texto que ficou com o tiacutetulo Conferecircncia Filosoacutefica (MS 166) eacute um conjunto de notas segundo Von Wright de em 1935 ou 1936 denotando uma conferecircncia natildeo realizada pelo filoacutesofo que segundo Anthony Kenny deveria ser realizada em 1941 supostamente para Academia Britacircnica Essas notas dizem respeito agraves reflexotildees de Wittgenstein

Marcus Joseacute Alves de Souza | 165

O que significa essa reflexatildeo para o argumento a favor da linguagem

privada Natildeo eacute um reforccedilo agrave privacidade como uma esfera inexpugnaacutevel

mas para mostrar que eacute irrelevante o objeto referecircncia da sensaccedilatildeo numa

moldura mentalista que na verdade supostamente funciona como

elemento fundamental para a significaccedilatildeo Nisso mesmo sem entrar no

meacuterito de que as sensaccedilotildees satildeo privadas (P1) sendo inacessiacuteveis aos outros

(P2) elas natildeo jogam papel algum para a significaccedilatildeo o que tira a

plausibilidade de P3 Entretanto no uso comum natildeo eacute possiacutevel supor que

estejamos num permanente engano ou mal entendido do significado dos

termos de sensaccedilatildeo evidecircncia que ataca a premissa 2 (P2)

Ausecircncia de Criteacuterio

No sect 258 Wittgenstein (1999) cria uma hipoteacutetica situaccedilatildeo de algueacutem

que quer escrever em um diaacuterio sobre a repeticcedilatildeo de uma sensaccedilatildeo Diz

ele ldquoPara tanto associo-a com o signo lsquoSrsquo e escrevo este signo num

calendaacuterio todos os dias em que tenho a sensaccedilatildeordquo A ideia eacute que faccedilo isso

por uma espeacutecie de ostensatildeo privada concentro-me na sensaccedilatildeo como

um apontar interior e a nomeio A pergunta que surge eacute ldquopara que tal

ritualrdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 100 sect 258) Se ele serve para

estabelecer o significado de ldquoSrdquo deve-se dizer que toda vez que a sensaccedilatildeo

surgir e nomeaacute-la isso se deu porque me recordo da ligaccedilatildeo pois gravei

em mim a associaccedilatildeo de ldquoSrdquo e a sensaccedilatildeo Escreve-se ldquoSrdquo para expressar

minha certeza interior dessa associaccedilatildeo Esta seria uma possiacutevel

justificativa para o ldquoritualrdquo mas ela eacute claramente insuficiente Pensemos

que significa tal situaccedilatildeo Um dos aspectos que mostra a insuficiecircncia eacute o

fato de que pode existir uma falha na instanciaccedilatildeo por erro de memoacuteria

por exemplo Ou seja marco no diaacuterio ldquoSrdquo no dia X quando tenho a

sensaccedilatildeo S no mesmo dia X tenho a mesma sensaccedilatildeo e por familiaridade

interior tenha a certeza de que a sensaccedilatildeo foi a mesma e marco ldquoSrdquo no

sobre a linguagem privada sua implausibilidade Mesmo pouco sistemaacutetico o escrito eacute um grande auxiacutelio para a compreensatildeo e da evoluccedilatildeo do tema no pensamento do filoacutesofo

166 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

calendaacuterio Passados 15 dias tenho a sensaccedilatildeo mas natildeo estou tatildeo certo

fico titubeante tenho duacutevidas de mim para mim se eacute a mesma sensaccedilatildeo

minha memoacuteria natildeo me daacute a certeza que precisaria mas depois de um

pouco mais de introspecccedilatildeo e esforccedilo de lembranccedila a certeza vem e anoto

ldquoSrdquo no calendaacuterio No dia seguinte tenho a sensaccedilatildeo desta vez ela me

pareceu niacutetida e familiar e escrevo sem titubear ldquoSrdquo

A pergunta que surge eacute como se pode sustentar a correccedilatildeo deste uso

denotativo interno Algueacutem mais apegado ao quadro criado atribuiria agrave

sinceridade ou agrave honestidade do ldquousuaacuteriordquo Mas novamente como aferir

tal sinceridade ou honestidade desta associaccedilatildeo Em tese apenas o usuaacuterio

da definiccedilatildeo extensional seria o avaliador de tal sinceridade ou

honestidade Seria algo como ldquoserei sincero com minha honesta

associaccedilatildeordquo ldquoserei sincero comigo mesmo e por isso garanto que natildeo erro

(intencionalmente) ao associar repetidas sensaccedilotildees ao signo lsquoSrsquordquo Mas ser

vocecirc o avalizador de sua sinceridade serum sincero e honesto avalizador

de sua sinceridade e honestidade eacute expressatildeo de um sem sentido de falta

de engrenagem significativa desta situaccedilatildeo E segundo Wittgenstein (1997

p 427-438) nas notas para conferecircncia filosoacutefica se o objeto interno

muda e nossa memoacuteria nos engana o que eacute possiacutevel e usamos a expressatildeo

privada de boa-feacute para significar o objeto usamos a mesma expressatildeo a

cada vez para significar algo distinto Falar de sinceridade honestidade e

boa feacute neste contexto eacute sem sentido exatamente porque boa-feacute

honestidade e sinceridade satildeo conceitos puacuteblicos natildeo faz sentido a natildeo

ser figuradamente e em uso puacuteblico dizer que se eacute honesto consigo

mesmo natildeo existe honestidade ou sinceridade privada Isso marca o

aspecto da falta de criteacuterio de correccedilatildeo desta situaccedilatildeo Aleacutem disso se pode

pensar voltando ao exemplo que se houvesse uma falha na memoacuteria que

criasse a incerteza o usuaacuterio natildeo deveria escrever ldquoSrdquo no dia em que ficou

com duacutevida isso eacute expressatildeo de que seria possiacutevel evitar o erro ou o

engano desde que o usuaacuterio fosse diligente epistemologicamente no

reconhecimento da sensaccedilatildeo e na sua posterior nomeaccedilatildeo Mas a questatildeo

natildeo eacute de capacidade memoriacutestica de reconhecimento A memoacuteria eacute uma

Marcus Joseacute Alves de Souza | 167

habilidade construiacuteda numa linguagem puacuteblica natildeo um ldquobauacuterdquo privado de

vivecircncias acumuladas Neste caso se o ldquousuaacuteriordquo competente ou natildeo em

termos de memoacuteria associar a sensaccedilatildeo ao signo ldquoSrdquo e disser que associou

corretamente seraacute correto Se ele associar incorretamente e disser que

associou corretamente seraacute correto tambeacutem Ou mesmo numa hipoacutetese

de desonestidade se ele natildeo tiver sensaccedilatildeo alguma mas se disser que ldquoSrdquo

significou tal sensaccedilatildeo assim seraacute tido como correto Isso fica claro em

trechos dos sectsect 258 e 259 ldquoCorreto eacute aquilo que sempre me parecer

correto E isto significa apenas que natildeo se pode falar de corretordquo ou ldquoA

balanccedila na qual se pesa as impressotildees natildeo eacute a impressatildeo da balanccedilardquo

(WITTGENSTEIN 1999 p 101 sectsect 258 e 259)

Tal situaccedilatildeo aponta para o fato de que criteacuterio privado de correccedilatildeo

natildeo eacute criteacuterio eacute impressatildeo de criteacuterio Parece haver criteacuterio mas satildeo

impressotildees de criteacuterio natildeo se descrimina nem corrige nada

O interessante eacute que todo o ldquoritualrdquo descrito anteriormente se faz a

semelhanccedila de procedimentos regrados publicamente transpostos par

uma esfera privada numa clara hipostasia de significado

Esta reflexatildeo ataca diretamente a premissas 3 (P3) e 4 (P4) do

argumento em favor da linguagem privada Do mesmo modo que a

inscriccedilatildeo ldquoSrdquo natildeo denota a sensaccedilatildeo necessariamente eacute possiacutevel como

decorrecircncia atacar a premissa 1 (P1) uma vez que se for o caso nem o

usuaacuterioportador da sensaccedilatildeo ldquosaberdquo se a tem isso pela situaccedilatildeo criada

pelo diaacuterio

TransiccedilatildeoDescritibilidade

No modelo cartesiano seria possiacutevel algo como o que Wittgenstein

aventa no sect 257 da crianccedila gecircnio que descobre por si mesma o nome de

uma sensaccedilatildeo ldquolsquoComo seria se os homens natildeo manifestassem suas dores

(natildeo gemessem natildeo fizessem caretas etc) Entatildeo natildeo se poderia ensinar

a uma crianccedila o uso das palavras lsquodor de dentersquo ndash Ora imaginemos que

uma crianccedila seja um gecircnio e descubra por si proacutepria um nome para a

168 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

sensaccedilatildeordquo (WITTGENSTEIN 1999 p 101) Seria uma situaccedilatildeo em que se

aprende o que eacute dor sentindo-a De novo seria algo como ao me

machucar concentro-me na sensaccedilatildeo e imprimo em mim o que eacute ldquodorrdquo

com um signo qualquer Como vimos pela argumentaccedilatildeo anterior falta

criteacuterios para identificar corretamente as minhas proacuteprias dores por

exemplo Mas deixemos isso de lado por enquanto pois no sect 265 haacute um

interessante desdobramento Admitindo a princiacutepio ser possiacutevel

identificar minhas proacuteprias dores corretamente entatildeo rigorosamente eu

natildeo poderia ser capaz de entender proferimentos como ldquoX tem dorrdquo

Podemos supor que descrevo dores a partir da minha proacutepria dor por

introspecccedilatildeo (ostensatildeo interior) mas se eacute assim isso natildeo me permite

ensinar aos outros como descrever a sensaccedilatildeo para uma pessoa particular

a rigor nem a mesma pois isso natildeo foi feito privadamente (Hume jaacute

assinalava que o ldquoeurdquo natildeo eacute objeto de introspecccedilatildeo) Assim quando sinto

dor natildeo eacute meu ego sente dor nem uma parte especial de mim como meu

ceacuterebro Isso eacute claramente uma falaacutecia (falaacutecia do homuacutenculo4) Mas o

ponto aqui eacute o da transcriccedilatildeo de ldquohaacute doresrdquo de ldquoeu tenho doresrdquo uma vez

que satildeo identificadas como sendo a mesma descriccedilatildeo pois natildeo posso sair

de mim dado a privacidade radical das sensaccedilotildees Do mesmo modo ldquoele

tem dorrdquo natildeo significa que eu designei ldquodorrdquo como algo que acontece num

lugar que natildeo seja o da minha privacidade ou seja o corpo ou a mente de

outra pessoa Se o modelo cartesiano estaacute certo ldquodorrdquo eacute um evento

privado captado introspectivamente enquanto ldquodorrdquo no corpo ou na

mente de outrem natildeo eacute algo introspectivamente captaacutevel por mim Assim

falar de dor a partir de mim como ldquodorrdquo de outra pessoa eacute no miacutenimo

uma significaccedilatildeo indevida Natildeo haacute garantia alguma de identidade entre os

significados (WITTGENSTEIN 1999 p 107 sect 292) Sendo assim natildeo

posso descrever dores que sinto em mim como dores que outro sente Em

sect302 Wittgenstein diz ldquoSe precisamos representar-nos a dor dos outros

segundo modelo de nossa proacutepria dor entatildeo isso natildeo eacute coisa faacutecil pois

4 KENNY J P The homunculus fallacy Cf KENNY J P (org) The legacy of Wittgenstein Oxford Blackwell 1984 p 124-136

Marcus Joseacute Alves de Souza | 169

devo representar-me dores que natildeo sinto segundo dores que sintordquo

(WITTGENSTEIN 1999 p 108)

O objetivo deste ponto eacute destacar agraves avessas que o fundamento

privado de constituiccedilatildeo da linguagem eacute implausiacutevel Ele cria uma seacuterie de

dificuldades para o argumento por analogia para conhecimento de outras

mentes numa perspectiva puacuteblica mostra que pela ausecircncia de criteacuterios

para constituiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel estabelecer qualquer descriccedilatildeo sobre algo

que ocorra na mente de outro tal linguagem aleacutem de ser privada deve

ser autocontida o que se mostra sem sentido pois mesmo as

descriccedilotildeesnomeaccedilotildees privadas perdem toda funccedilatildeo como descriccedilatildeo ou

nomeaccedilatildeo Nomear natildeo eacute um ato privado e oculto para que o termo tenha

significado Segundo Wittgenstein nas notas para conferecircncia filosoacutefica

nomear estaacute dentro de uma teacutecnica de uso nomear natildeo eacute espeacutecie de

batismo maacutegico privado ldquonatildeo serve para nada dizer que temos um objeto

privado ante a mente e damos um nomerdquo (WITTGENSTEIN 1999 p 129

sect 428) Soacute existe nome segundo ele quando haacute uma teacutecnica para usaacute-lo e

esta teacutecnica natildeo pode ser privada Isso atesta agraves avessas que para que as

descriccedilotildeesnomeaccedilotildees sejam significativas devem ser puacuteblicas O que

ataca especialmente a premissa 2 do argumento (P2) as sensaccedilotildees natildeo satildeo

autocontidas indescritiacuteveis e inacessiacuteveis a outrem logo nem sempre terei

duacutevidas sobre se o outro tem ou natildeo determinada sensaccedilatildeo pois para que

a nomeaccedilatildeodescriccedilatildeo qualquer seja significativa ela deve ser puacuteblica o

que aponta para a noccedilatildeo de que se algum termo ou descriccedilatildeo de sensaccedilatildeo

eacute significativo ele se construiu publicamente logo as sensaccedilotildees natildeo satildeo

inacessiacuteveis e natildeo vivemos numa permanente duacutevida sobre se o outro tem

ou natildeo uma sensaccedilatildeo qualquer como dor

Argumento da Linguagem Privada e Filosofia da Mente em

Wittgenstein

Argumento da linguagem privada eacute o esforccedilo de levar ao extremo das

contradiccedilotildees uma concepccedilatildeo privada e representacional de mente que

170 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

ganha forccedila ou eacute caudataacuteria de uma concepccedilatildeo referencialista de

significado (objeto ndash representaccedilatildeo ndash signo) Os argumentos apontam para

a perspectiva de fazer uma terapia de tal entendimento de apontar

deficiecircncias conceituais e de buscar suprimi-las com outro registro de

significado e mente

Este novo registro se encontra na concepccedilatildeo de linguagem como uso

como conjunto de accedilotildees puacuteblicas e regradas Nisso emergem conceitos natildeo

referencialistas de linguagem como jogos padrotildees regras criteacuterios

aprendizado e treinamento Tal conjunto de elementos numa avaliaccedilatildeo

panoracircmica dos usos de um termo e seus aparentados faz com que surja

a ldquogramaacuteticardquo de um conceito que abre espaccedilo para o entendimento da

filosofia da mente de Wittgenstein

A proposta de filosofia da mente do filoacutesofo se associa agrave gama de

conceitos surgidos do uso especialmente do uso de verbos intencionais

crer querer conhecer lembrar memorizar imaginar pensar etc cada

um com sua gramaacutetica Sendo assim mente natildeo eacute uma instacircncia

metafiacutesica privada e pneumaacutetica A configuraccedilatildeo dos elementos

conceituais extraiacutedo dos usos dos conceitos mentais traz uma explicaccedilatildeo

de uma seacuterie de fenocircmenos mentais a partir de

Nisso emergem conceitos de explicaccedilatildeo de uma seacuterie de fenocircmenos

mentais como

a) paracircmetros conceituais de definiccedilatildeo de conceitos mentais articulaccedilotildees e

exclusotildees pragmaacuteticas de uso que traccedilam o limite da gramaacutetica dos conceitos

mentais

b) assimetria pronominais de primeira e terceira pessoa como elementos

pragmaacuteticos que explicam a diferenccedila entre o interno e o externo como jogos

de linguagem entre auto e heacutetero descriccedilotildees ou expressotildees caracteriacutesticas de

exteriorizaccedilotildees (primeira pessoa) e afirmaccedilotildees sobre dimensotildees mentais de

outrem (terceira pessoa) diluindo o problema das outras mentes no formato

mentalista Assim interno e externo natildeo satildeo instacircncias metafiacutesicas o externo

natildeo eacute fachada do interno satildeo conceitos que tem um papel fundamental na nossa

imagem de pessoa como um conceito puacuteblico

c) comportamentos caracteriacutesticos associados pragmaticamente como conceitos

mentais

Marcus Joseacute Alves de Souza | 171

Outros aspectos da investigaccedilatildeo de Wittgenstein poderiam ser

levantados e aprofundados mas estes trecircs sumaacuterios elementos apontam

para onde se desenvolve a reflexatildeo do filoacutesofo A proposta aqui foi apenas

apresentar a discussatildeo sobre a plausibilidade da linguagem privada e

apontar elementos da filosofia da mente de Wittgenstein Do mesmo

modo compreender que o argumento contra a linguagem privada eacute de

fundamental importacircncia para o entendimento da filosofia da mente de

Wittgenstein

Referecircncias

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A companion to epistemology 2 ed Oxford Wiley-Blackwell 2010 p 616-621

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NIELSEN K S The evolution of the private language argument Hampshire UK

Ashgate Publishing Company 2007

SCHROEDER S Private language and private experience In GLOCK H-J Wittgenstein

a critical reader Oxford Backwell Publishers 2001 p 174-198

WITTGENSTEIN L Ocasiones filosoacuteficas 1912-1951 Trad Angel Garcia Rodrigues

Madrid Ediciones Caacutetedra 1997

______ Investigaccedilotildees filosoacuteficas Trad Joseacute Carlos Bruni Satildeo Paulo Nova Cultural

1999

10

O que Haacute de Errado com o Pensamento Criacutetico

Ricardo S Rabenschlag 1

No capiacutetulo que publiquei nesta mesma seacuterie de livros que registram

parte da produccedilatildeo acadecircmica do grupo de pesquisa Linguagem e

Cogniccedilatildeo afirmei que seria inuacutetil tentar extrair uma concepccedilatildeo coerente

de ciecircncia a partir da anaacutelise das principais obras publicadas pelos Novos

Ateus Embora minha convicccedilatildeo a este respeito permaneccedila inalterada natildeo

creio ser inuacutetil a tentativa de identificar os principais equiacutevocos

epistemoloacutegicos que este e outros grupos de autodeclarados pensadores

criacuteticos cometem em sua cruzada contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo

Em sua acepccedilatildeo vulgar ter uma atitude criacutetica significa suspender o

juiacutezo acerca de uma ideia a menos que tenhamos argumentos logicamente

vaacutelidos e bem fundados seja para afirmaacute-la seja para negaacute-la

Compreendido dessa forma o pensamento ou a atitude criacutetica se opotildeem

de um lado ao raciociacutenio falacioso e de outro agrave atitude dogmaacutetica Por

que devemos preferir raciociacutenios vaacutelidos agrave raciociacutenios falaciosos eacute algo que

dispensa maiores explicaccedilotildees Com efeito o proacuteprio conceito de falaacutecia jaacute

conteacutem um elemento pejorativo e o mesmo se daacute em relaccedilatildeo agrave atitude

dogmaacutetica compreendida natildeo apenas como indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave

busca de razotildees para se afirmar ou negar certas ideias mas sobretudo

como recusa em fazecirc-lo mesmo quando a afirmaccedilatildeo ou a negaccedilatildeo destas

ideais entra em flagrante contradiccedilatildeo com aquilo que acreditamos com

base em argumentos vaacutelidos e bem fundados

1 Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Ricardo S Rabenschlag | 173

Mas se eacute assim o que poderia haver de errado com o Pensamento

Criacutetico Como jaacute disse natildeo creio que haja nada de errado com a ideia de que

devemos sempre que possiacutevel suspender nosso juiacutezo antes que tenhamos

boas razotildees quer para negar quer para afirmar algo A ressalva eacute importante

porque no acircmbito praacutetico nem sempre podemos nos dar ao luxo de

suspender nosso juiacutezo sobretudo quando as consequecircncias desta indecisatildeo

satildeo moralmente graves O problema com o Pensamento Criacutetico natildeo diz

respeito a esta atitude criacutetica moderada e sim a um conjunto mais ou menos

bem definido de crenccedilas largamente difundidas por autores que se

identificam como pensadores criacuteticos entre eles os principais

representantes do novo ateiacutesmo2 Neste breve capiacutetulo examinarei uma das

maacuteximas mais populares entre os autoproclamados pensadores criacuteticos3

Qualquer um que jaacute tenha passado dos cinquenta anos e que tenha

amor pela ciecircncia se lembra com carinho das noites em que assistiu pela

primeira vez e ao longo de vaacuterias semanas aos treze capiacutetulos da seacuterie

Cosmos apresentada por Carl Sagan Natildeo foi o primeiro programa do tipo

e nem o melhor segundo muitos criacuteticos4 mas sob um aspecto ele foi

uacutenico pois nenhum outro programa de divulgaccedilatildeo cientiacutefica alcanccedilou uma

audiecircncia tatildeo vasta Seja pela beliacutessima trilha sonora pelos efeitos

especiais inovadores ou pelo carisma do seu apresentador a seacuterie Cosmos

foi um marco na divulgaccedilatildeo cientiacutefica audiovisual

Uma das caracteriacutesticas principais da seacuterie Cosmos posteriormente

publicada em forma de livro com o mesmo tiacutetulo e que teve enorme

sucesso de vendas em todo o mundo eacute que ela natildeo visava apenas

2 Estou me referindo aqui aos Quatro Cavaleiros do Natildeo-Apocalipse Richard Dawkins Christopher Hitchens Daniel Dennett e Sam Harris

3 Esta eacute apenas uma pequena parte de um projeto mais amplo cujos resultados pretendo publicar num livro com o mesmo tiacutetulo do presente capiacutetulo

4 Muitos incluindo o autor deste capiacutetulo consideram a seacuterie A Escalada do Homem apresentada por Jacob Bronowski como sendo superior sobretudo em razatildeo do maior escopo profundidade e interdisciplinaridade

174 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

transmitir a moderna visatildeo cientiacutefica do mundo ela buscava tambeacutem

promover o espiacuterito cientiacutefico moderno que tornara possiacutevel aos cientistas

modernos descobrirem tudo aquilo que Carl Sagan nos apresentava de

maneira tatildeo cativante Em outras palavras uma parte substancial do

programa tinha como foco a proacutepria ciecircncia sua histoacuteria seus meacutetodos e

sobretudo a atitude criacutetica que segundo Carl Sagan estaacute na raiz dessa

inovadora e bem-sucedida maneira de buscar respostas para questotildees

fundamentais como a origem da vida a origem do homem e do pequeno

planeta que ele habita e ateacute mesmo a origem do proacuteprio Universo

Na tentativa de explicar para o grande puacuteblico os traccedilos essenciais da

atitude criacutetica que caracterizaria o pensamento cientiacutefico Carl Sagan fez

uso5 do seguinte aformismo que rapidamente foi adotado pelos

autoproclamados pensadores criacuteticos como um princiacutepio metodoloacutegico

essencial a toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica6

Princiacutepio de Sagan alegaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias

extraordinaacuterias7

Embora muitos educadores e divulgadores da ciecircncia entre eles

vaacuterios cientistas e alguns filoacutesofos interpretem o aforismo tornado ceacutelebre

por Carl Sagan como expressando um princiacutepio metodoloacutegico essencial a

toda investigaccedilatildeo que se pretenda cientiacutefica vejamos o que a

Epistemologia da Ciecircncia tem a dizer sobre essa suposta peacuterola do

pensamento criacutetico Nunca eacute demais lembrar que a Epistemologia da

Ciecircncia natildeo eacute uma ciecircncia que investiga a proacutepria ciecircncia como satildeo a

Histoacuteria da Ciecircncia e a Sociologia da Ciecircncia e sim uma disciplina filosoacutefica

que estuda a natureza a origem e os limites do conhecimento cientiacutefico

5 O aforismo eacute provavelmente uma adaptaccedilatildeo de uma frase praticamente idecircntica publicada num artigo de 1978 de autoria do socioacutelogo italiano Marcello Truzzi Com efeito em seu artigo ldquoOn the Extraordinary An Attempt at Clarification ele afirma que an extraordinary claim requires extraordinary proof

6 Uma busca raacutepida no Google Scholar revela que o aforismo na versatildeo tornada ceacutelebre por Sagan eacute usado em mais de 1000 publicaccedilotildees acadecircmicas

7 O aformismo orignal em inglecircs ldquoExtraordinary claims requery extraordinary evidencerdquo pode ser traduzido tambeacutem como ldquoAfirmaccedilotildees extraordinaacuterias requerem evidecircncias extraordinaacuteriasrdquo

Ricardo S Rabenschlag | 175

Antes de tudo eacute importante deixar claro que embora Carl Sagan

tenha empregado o aforismo para descartar explicaccedilotildees pseudocientiacuteficas

em momento algum ele afirmou que se tratava de um princiacutepio

metodoloacutegico e nem se deu ao trabalho de explicar seu sentido preciso e

a menos que se faccedila isso o tatildeo celebrado aforismo aparenta ser uma

apenas uma consequecircncia ilegiacutetima do fato psicoloacutegico de que em geral eacute

mais difiacutecil convencer algueacutem da verdade de uma crenccedila que contraria

suas expectativas do que da verdade de uma crenccedila que natildeo se contraria

suas expectativas Poderiacuteamos expressar essa compreensatildeo vulgar e

psicologista do Princiacutecio de Sagan do seguinte modo

Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas

requerem evidecircncias mais robustas

A consequecircncia eacute obviamente ilegiacutetima jaacute que da proposiccedilatildeo que

descreve o fato psicoloacutegico de que tendemos a rejeitar aquilo que contraria

nossas expectativas e a aceitar aquilo a que estamos acostumados natildeo se

segue o princiacutepio metodoloacutegico de que devemos ser mais exigentes em

relaccedilatildeo agraves evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que

contrariam nossas expectativas e menos exigentes em relaccedilatildeo agraves

evidecircncias que usamos para fundamentar alegaccedilotildees que natildeo contrariam

nossas expectativas Mais importante que isso esta interpretaccedilatildeo

independentemente da sua origem natildeo eacute aceitaacutevel uma vez que se de fato

estamos naturalmente precavidos em relaccedilatildeo agraves alegaccedilotildees que

consideramos extraordinaacuterias nesse sentido psicoloacutegico do termo

ldquoextraordinaacuteriordquo o mais correto do ponto de vista metodoloacutegico seria

requerermos evidecircncias mais robustas justamente em relaccedilatildeo agraves

alegaccedilotildees que natildeo consideramos extraodinaacuterias

Outra possiacutevel leitura psicologista do Princiacutepio de Sagan resultaria de

uma interpretaccedilatildeo em que ambas as ocorrecircncias do termo

ldquoextraordinaacuteriasrdquo teriam a mesma acepccedilatildeo psicoloacutegica caso em que ele

assumiria a seguinte forma

176 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Interpretaccedilatildeo psicoloacutegica alegaccedilotildees que contrariam nossas expectativas

requerem evidecircncias igualmente contraacuterias as nossas expectativas

Em primeiro lugar cumpre observar que se o caraacuteter surpreendente

de uma evidecircncia for definido pelos seus efeitos isto eacute pelo caraacuteter

surpreendente daquilo que ela evidencia o aforismo natildeo passa de um

truiacutesmo pois nesse caso qualquer evidecircncia em favor de uma alegaccedilatildeo

que contrariasse nossas expectativas seria por definiccedilatildeo uma evidecircncia

contraacuteria as nossas expectativas Mais importante que isso por natildeo se

tratar de uma trivialidade evidecircncias cientiacuteficas possuem um caraacuteter

peculiar que deriva do fato de que as explicaccedilotildees cientiacuteficas operam por

meio de teorias Em razatildeo dessa dependecircncia muacutetua que existe entre as

teorias cientiacuteficas e as evidecircncias cientiacuteficas uma evidecircncia cientiacutefica

nunca deve ser considerada de modo independente Daiacute que mesmo os

eventos mais corriqueiros e ateacute mesmo banais aos olhos do cientista isto

eacute quando examinados a partir de um refencial teoacuterico particular possam

adquirir um significado surpreendente Lembro ainda hoje do espanto que

senti quando li pela primeira vez sobre o Paradoxo da Noite Escura8 Este

famoso paradoxo trata das implicaccedilotildees cosmoloacutegicas da escuridatildeo

noturna Ao menos para a maioria de noacutes eacute difiacutecil encontrar algo mais

banal do que a escuridatildeo noturna9 e no entanto Johannes Kepler

considerou justamente a escuridatildeo da noite como sendo uma evidecircncia da

finitude espacial do Universo

Em linhas gerais o raciociacutenio de Kepler foi o seguinte suponha que

as estrelas estejam distribuiacutedas regularmente e que o Universo seja

espacialmente infinito Para um observador em qualquer ponto deste

espaccedilo infinito haacute uma esfera com centro nele cujo volume aumenta com

o quadrado do seu raio Portanto agrave medida que nos dintanciamos deste

observador hipoteacutetico o nuacutemero de estrelas que intercepta o seu raio de

visatildeo cresce com o quadrado da distacircncia Como resultado natildeo importa

8 Tambeacutem conhecido como Paradoxo de Olbers

9 Os Esquimoacutes sabem muito bem que nem toda noite eacute escura

Ricardo S Rabenschlag | 177

para onde ele olhe haveraacute sempre uma estrela interceptando o seu raio de

visatildeo Portanto se nosso Universo fosse espacialmente infinto e estivesse

repleto de estrelas regularmente distribuiacutedas como defendia Giordano

Bruno o ceacuteu noturno deveria ser tatildeo brilhante quanto a superfiacutecie de uma

estrela meacutedia Como isso natildeo ocorre a conclusatildeo do argumento eacute falsa o

que implica que ao menos uma das premissas do argumento eacute igualmente

falsa ou seja ou o Universo eacute espacialmente infinito ou as estrelas natildeo

estatildeo regularmente distribuiacutedas ou ambos Como a distribuiccedilatildeo das

estrelas se mostrava regular Kepler inferiu que o Universo deveria ser

espacialmente finito mostrando que algo tatildeo coriqueiro como a escuridatildeo

da noite pode ser legitimamente tomado como evidecircncia de uma alegaccedilatildeo

absolutamente extraodinaacuteria10

Este eacute apenas um entre muitos exemplos em que eventos ou fatos

nada extraordinaacuterios serviram de evidecircncia para afirmaccedilotildees

extraordinaacuterias o que mostra claramente a inadequaccedilatildeo desta segunda

interpretaccedilatildeo psicoloacutegica do Princiacutepio de Sagan Outro que me traz boas

recordaccedilotildees eacute o do chuvisco que aparecia nos antigos televisores de tubo

quando as emissoras de TV encerravam a sua programaccedilatildeo diaacuteria e que

hoje sabemos ser causado pela Radiaccedilatildeo Coacutesmica de Fundo que teve

origem no Big Bang Em outras palavras uma evidecircncia de que o Universo

teve iniacutecio haacute bilhotildees de anos numa ldquogrande explosatildeordquo estava agrave vista de

todos sem que ningueacutem suspeitasse

Em resumo interpretado psicologicamente o tatildeo celebrado Princiacutepio

de Sagan ou eacute trivial ou deriva de uma concepccedilatildeo profundamente

equivocada acerca da natureza do conhecimento cientiacutefico moderno Em

ambos os casos o Princiacutepio de Sagan natildeo deve ser considerado vaacutelido e

seu uso como guia para a investigaccedilatildeo cientiacutefica tem consequecircncias

desastrosas para ciecircncia

10 A soluccedilatildeo atualmente aceita para o paradoxo eacute diferente daquela proposta por Kepler Atualmente o paradoxo eacute resolvido com base em duas descobertas a) que o Universo tem uma idade finita e b) a luz tem uma velocidade finita a luz das estrelas mais distantes ainda natildeo teve tempo de chegar ateacute noacutes Portanto o Universo que enxergamos eacute limitado no espaccedilo por ser finito no tempo A escuridatildeo da noite eacute uma prova de que o Universo teve um iniacutecio

178 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Mas natildeo haveria alguma interpretaccedilatildeo ao mesmo tempo natildeo trivial e

natildeo psicologista do Princiacutepio de Sagan No intuito de nos livrarmos de

uma leitura pscicologista da formulaccedilatildeo tornada ceacutelebre por Carl Sagan

poderiacuteamos reformular o Princiacutepio de Sagan como expressando a ideia de

que deve haver uma proporcionalidade entre a forccedila das nossas alegaccedilotildees

e a forccedila das evidecircncias que apresentamos em favor delas Uma maneira

de expressar isso poderia ser a seguinte

Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees extraordinariamente fortes requerem

evidecircncias extraordinariamente fortes

Com base nessa reinterpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan poder-se-ia

alegar por exemplo que acreditar na existecircncia de discos voadores com

base apenas no fato de que algueacutem afirma ter visto um disco voador seria

uma violaccedilatildeo do princiacutepio jaacute que a forccedila da alegaccedilatildeo medida pelo impacto

que ela tem sobre o conhecimento cientiacutefico exigiria evidecircncias mais

robustas como por exemplo a exibiccedilatildeo dos destroccedilos do disco voador que

a pessoa alega ter visto e natildeo o simples relato de uma testemunha

afirmando ter visto um disco metaacutelico voando em baixa altitude No

primeiro caso tudo o que temos eacute o relato do avistamento de um OVNI

(Objeto Voador Natildeo Indentificado) no segundo temos uma evidecircncia

material a saber o proacuteprio objeto avistado o que nos permite uma

avaliccedilatildeo direta e possiacutevel identificaccedilatildeo do objeto que iraacute ou natildeo confirmar

a afirmaccedilatildeo de que o objeto avistado era uma nave alieniacutegena O mais

provaacutevel eacute que a pilha de destroccedilos por mais extraordinaacuteria que pareccedila

aos olhos de um leigo seja imediatamente reconhecida por um especialista

como sendo os restos de um balatildeo meteoroloacutegico ou algum outro aparato

tecnoloacutegico humano como de fato aconteceu no famoso incidente ocorrido

em Roswell Novo Meacutexico em 1947

Mas seraacute que esta reformulaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan tem o mesmo

sentido que os autoproclamados pensadores criacuteticos conferem a sua

Ricardo S Rabenschlag | 179

formulaccedilatildeo original E ainda que a aceitemos como uma traduccedilatildeo razoaacutevel

do Princiacutepio de Sagan o sentido da expressatildeo ldquoextraordinariamete fortesrdquo

que aparece nas expressotildees ldquoalegaccedilotildees extraordinariamente fortesrdquo e

ldquoevidecircncias extraordinariamente fortesrdquo eacute o mesmo em ambos os casos E

ainda que se diga que elas tecircm o mesmo sentido eacute mesmo verdadeiro que

toda alegaccedilatildeo que tem grande impacto em nossa atual visatildeo cientiacutefica do

mundo requer evidecircncias igualmente extraordinaacuterias Natildeo poderia haver

evidecircncias absolutamente conformes agrave visatildeo cientiacutefica do mundo e que natildeo

obstante isso seriam uma soacutelida evidecircncia para alegaccedilotildees extraodinaacuterias

como a finitude espacial do Universo A forccedila de uma evidecircncia eacute medida

pelas suas consequecircncias ou haacute um criteacuterio intriacutenseco como sugere a

comparaccedilatildeo entre evidecircncias testemunhais e materiais Alegaccedilotildees

conformes a nossa visatildeo de mundo podem ser aceitas com base apenas em

testemunhos ao passo que as que contrariam o que acreditamos saber

requerem evidecircncias materiais Nesse uacuteltimo caso que admitimos ser o

mais promissor qual a relevacircncia da forccedila de nossas alegaccedilotildees no que diz

respeito ao tipo de evidecircncia que devemos exigir para aceitaacute-la

Uma vez mais nos vemos em meio a uma dupla confusatildeo De um lado

natildeo temos clareza sobre o significado do enunciado do princiacutepio de outro

natildeo temos uma concepccedilatildeo clara sobre e natureza do conhecimneto

cientiacutefico Visando sanar estes problemas poderiacuteamos interpretar a ideia de

forccedila de uma alegaccedilatildeo ou de uma evidecircncia como uma referecircncia agravequilo que

poderiacuteamos chamar de estatuto epistecircmico de uma proposiccedilatildeo definido

como o grau de confiabilidade de uma proposiccedilatildeo Assim compreendido o

Princiacutepio de Sagan seria um corolaacuterio da ideia de que o estatuto epistecircmico

das premissas de um argumento deve ser igual ao estatuto epistecircmico da

sua conclusatildeo e poderia ser enunciado do seguinte modo

Interpretaccedilatildeo espistecircmica alegaccedilotildees com alto grau de confiabilidade

requerem evidecircncias com alto grau de confiabilidade

Reneacute Descartes certamente concordaria com essa interpretaccedilatildeo do

Princiacutepio de Sagan afinal toda sua filosofia estaacute baseada na ideia de que

180 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

somente evidecircncias indubitaacuteveis podem servir de base para afirmaccedilotildees

indubitaacuteveis11 Natildeo foi outra a razatildeo que o levou numa das passagens mais

memoraacuteveis da histoacuteria da filosofia12 a apresentar o Cogito como a uacutenica

saiacuteda para o que ele chamou de duacutevida hiperboacutelica e tomaacute-lo como o uacutenico

fundamento aceitaacutevel para a filosofia Ainda que Descartes esteja longe de

ser um iacutecone dos ldquopensadores criacuteticosrdquo um projeto fundacionista anaacutelogo

ao cartesiano estaacute na raiz do Positivismo Loacutegico uma das fontes de

inspiraccedilatildeo da grande maioria dos autoproclamados pensadores criacuteticos

Rudolf Carnap o maior expoente desta corrente neopositivista buscou

ancorar todo o conhecimento humano no que ele chamou de enunciados

protocolares descritos por ele como sendo registros em primeira pessoa

de dados sensiacuteveis elementares (sense data) que estariam na base de toda

a experiecircncia humana

O problema com essa interpretaccedilatildeo do Princiacutepio de Sagan eacute que

embora a nova formulaccedilatildeo do princiacutepio seja mais promissora ela

obviamnete natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo plausiacutevel do Princiacutepio de Sagan jaacute

que o grau de confiabilidade de alegaccedilotildees extraordinaacuterias natildeo eacute alto e sim

extremamente baixo daiacute que a maioria de noacutes esteja naturalmente

precavido contra elas

Uma terceira interpretaccedilatildeo epistecircmica do Princiacutepio de Sagan resulta

de uma leitura indutivista humeana da ideia de estatuto epistecircmico de uma

proposiccedilatildeo A ciecircncia segundo David Hume eacute um empreendimento

essencialmente indutivo e provisoacuterio e sua grandeza reside precisamente

no fato de que a ciecircncia natildeo busca verdades absolutas Do fato de que todo

conhecimento eacute provisoacuterio e por conseguinte dubitaacutevel natildeo se segue

contudo que nossas crenccedilas tenham todas elas o mesmo grau de

confiabilidade Obviamente uma afirmaccedilatildeo que jaacute tenha sido refutada natildeo

eacute nem um pouco confiaacutevel Mas o que dizer das que ainda natildeo foram

refutadas Segundo David Hume o grau de confiabilidade de uma crenccedila

11 No caso do coacutegito a proacutepria afirmaccedilatildeo ou mais precisamente o pensamento que ela expressa eacute evidecircncia da sua veracidade

12 Iniacutecio da Segunda Meditaccedilatildeo das Meditaccedilotildees Metafiacutesicas de Reneacute Descartes

Ricardo S Rabenschlag | 181

eacute proporcional ao nuacutemero de vezes em que ela foi experimentalmente

confirmada Seguindo essa linha de raciociacutenio poder-se-ia interpretar o

Princiacutepio de Sagan como a recomendaccedilatildeo de que afirmaccedilotildees que

contrariem crenccedilas que tenham sobrevivido a inuacutemeras e variadas

tentativas de refutaccedilatildeo e que satildeo nesse sentido extraordinaacuterias devam

ser igualmente submetidas a um longo e variado processo de testes

acumulando assim uma quantidade igualmente extraordinaacuteria de

evidecircncias em seu favor antes de serem consideradas mais confiaacuteveis que

agraves antigas crenccedilas que elas pretendem substituir

Interpretaccedilatildeo epistecircmica alegaccedilotildees que contrariam crenccedilas

corroboradas por uma extraordinaacuteria quantidade de evidecircncias requerem um

nuacutemero igualmente extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis

A longa disputa entre os sistemas ptolomaico e copernicano que

marca o iniacutecio da ciecircncia moderna eacute um bom exemplo de como devemos

ser cautelosos em relaccedilatildeo a afirmaccedilotildees extraordinaacuterias como por

exemplo a afirmaccedilatildeo de que a Terra natildeo estaacute parada no centro do

Universo e sim girando em uma grande velocidade em torno do Sol Tenho

certeza de que a maioria dos Novos Ateus endossaria aliviado esta leitura

indutivista do Princiacutepio de Saganrdquo e natildeo ficaria de modo algum surpreso

se Richard Dawkins acrescentasse de forma desdenhosa a observaccedilatildeo de

que era exatamente isso que ele estava querendo dizer o tempo todo

embora nunca o tivesse feito por achar oacutebvio demais Infelizmente as

coisas natildeo satildeo tatildeo simples quanto parecem a um leigo em Espistemologia

da Ciecircncia como Richard Dawkins Em primeiro lugar mesmo nos casos

mais promissores como o da disputa entre geocentrismo e

heliocentrismo a interpretaccedilatildeo mencionada acima apresenta seacuterios

problemas jaacute que o que pocircs fim a disputa em favor do heliocentrismo natildeo

foi um nuacutemero extraordinaacuterio de evidecircncias favoraacuteveis e sim a criaccedilatildeo da

primeira teoria fiacutesica moderna capaz de explicar de maneira unificada

fenocircmenos corriqueiros como o movimento dos corpos terrestres e o

movimento dos corpos celestes

182 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Uma vez mais o problema aqui eacute o de como evitar a confusatildeo entre

o loacutegico e o psicoloacutegico Natildeo resta duacutevida de que a repeticcedilatildeo de uma mesma

ocorrecircncia aumente nossa confianccedila em relaccedilatildeo ao enunciado universal

que a descreve a questatildeo contudo eacute saber se ela aumenta o nosso

conhecimento e natildeo as nossas expectativas Eacute provaacutevel que um iacutempeto

indutivista esteja na base de parte importante do apoio ao Princiacutepio de

Sagan embora natildeo devamos esquecer que boa parte dos seus apoiadores

em especial os autoproclamados pensadores criacuteticos tem imensa adoraccedilatildeo

pelo racionalismo popperiano e que Karl Popper considerava ilegiacutetima

qualquer tentativa de justificar indutivamente uma crenccedila De qualquer

modo tanto o fundacionismo como o indutivismo satildeo extremamente

problemaacuteticos razatildeo pela qual foram haacute muito tempo descartados e natildeo

haacute hoje muitos especialistas que defendam quer a ideia de um fundamento

inabalaacutevel para as ciecircncias quer a ideia de uma loacutegica indutiva

Pode-se contra-argumentar dizendo que natildeo haacute verdades ou

conhecimento em sentido absoluto que natildeo haacute um mundo ou uma realidade

independente do sujeito que tudo eacute relativo provisoacuterio e incerto e que

portanto uma loacutegica indutiva eacute tatildeo boa quanto uma dedutiva Mas

obviamente que se adotarmos esta estrateacutegia de defesa o problema assume

uma feiccedilatildeo ainda mais sombria pois a menos que ser possa conciliar esta

concepccedilatildeo relativista com a objetividade cientiacutefica natildeo haacute como evitar que o

ceticismo moderado que caracteriza a atitude cientiacutefica se transforme num

ceticismo radical e portanto numa nova e poderosa forma de irracionalismo

Se o Princiacutepio de Sagan eacute assim tatildeo inadequado por que ele eacute

considerado por muitos como uma das regras de ouro do pensamento

criacutetico Como dissemos anteriormente o enunciado do princiacutepio eacute vago

deliberadamente vago a ponto de comportar interpretaccedilotildees muito diferentes

e ateacute mesmo antagocircnicas o que certamente contribui para o seu sucesso Haacute

contudo uma outra razatildeo que julgamos ser ainda mais importante a saber

Ricardo S Rabenschlag | 183

que ele natildeo eacute uma ferramenta cientiacutefica e sim ideoloacutegica Ele natildeo eacute utilizado

por cientistas em suas investigaccedilotildees e sim por ativistas que podem ou natildeo

ser cientistas em sua luta contra os ldquoinimigos da Ciecircnciardquo

O combate agraves pseudociecircncias eacute um combate justo e necessaacuterio e a

atitude criacutetica tem um papel fundamental nesse processo natildeo temos

duacutevida quanto a isso Nossa criacutetica natildeo busca desencorajar o combate agraves

pseudociecircncias ela busca apenas mostrar por um lado que a ciecircncia natildeo

estaacute inume ao irriacionalismo e por outro que o irracionalismo na ciecircncia

se manifesta sob a forma de pseudofilosofias e natildeo de pseudociecircncias

Evidentemente esta natildeo eacute uma tarefa faacutecil e este pequeno capiacutetulo natildeo

esgota de forma alguma o assunto Ainda assim espero que esta breve

criacutetica do tatildeo aclamado Princiacutepio de Sagan tenha despertado a atenccedilatildeo dos

leitores para a importacircncia de uma criacutetica do Pensamento Criacutetico13

Referecircncias

CARNAP R The Logical Structure of the World Open Court New York 2003

DAWKINS R The God Delusion Transworld Pub London 2016

DENNETT D Breaking the Spell Penguim London 2007

DESCARTES R Meacuteditations Meacutetaphysiques Nabu Press Paris 2014

HARRIS S The End of Faith WW Norton London 2005

HITCHENS C God Is Not Great Atlantic Books London 2008

HUME D On Miracles Open Court London 1985

POPPER K Conjectures and Refutations Routledge New York 2002

SAGAN C Cosmos Ballantine Books New York 2013

13 Talvez seja o caso de cunharmos a expressatildeo ldquoNovo Pensamento Criacuteticordquo a exemplo do que se fez em relaccedilatildeo aos Novos Ateus seja para reforccedilar o viacutenculo entre as duas correntes seja para diferenciar este Novo Pensamento Criacutetico da Filosofia Criacutetica de Kant No presente texto optamos por usar a expressatildeo empregada na literatura existente

11

A Teoria Trivalente da Vagueza e o Problema da Precisatildeo

Sagid Salles 1

Introduccedilatildeo

Haacute pelo menos duas coisas que tornam o fenocircmeno da vagueza

interessante Primeiro a vagueza estaacute espalhada por toda a linguagem

natural Uma parte significativa das expressotildees de nossa linguagem satildeo

vagas e podemos encontrar a vagueza em expressotildees de diferentes

categorias loacutegicas como termos singulares predicados e quantificadores

Por razotildees de simplicidade contudo ao longo deste artigo considero

apenas o caso dos predicados vagos Segundo o fenocircmeno da vagueza estaacute

por traacutes de um difiacutecil paradoxo conhecido como Paradoxo Sorites

Atualmente haacute muitas tentativas de explicar esse fenocircmeno e resolver o

Sorites sendo uma delas a Teoria Trivalente da Vagueza Essa teoria eacute

interessante natildeo apenas porque fornece uma explicaccedilatildeo elegante da

vagueza acompanhada de uma soluccedilatildeo engenhosa para o paradoxo em

questatildeo mas tambeacutem porque serve de base para a compreensatildeo de outras

teorias claacutessicas da vagueza Tanto o Gradualismo como o

Supervalorativismo por exemplo incorporam parte significativa de suas

ideias centrais A despeito disso existem alguns seacuterios obstaacuteculos para a

Teoria Trivalente Acredito que o principal deles eacute que ela falha em

satisfazer pelo menos um dos trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria

1 Sagid Salles eacute graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto Mestre e Doutor pelo Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Loacutegica e Metafiacutesica da UFRJ com sanduiacuteche realizado em University of Miami Atualmente eacute professor substituto de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas (E-mail sagidsallesgmailcom)

Sagid Salles | 185

ideal da vagueza o criteacuterio da precisatildeo Meu objetivo eacute apresentar essa

teoria e mostrar como essa dificuldade surge para ela

O artigo seraacute dividido em quatro seccedilotildees Na primeira apresento o

problema da vagueza ressaltando os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma

teoria ideal o criteacuterio do Sorites o criteacuterio da coerecircncia e o criteacuterio da

precisatildeo Na segunda e terceira apresento respectivamente os aspectos

centrais da Teoria Trivalente e uma das soluccedilotildees da mesma para o Sorites

Por fim defendo que apesar de satisfazer os dois primeiros criteacuterios de

adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente falha com respeito ao criteacuterio da precisatildeo

Vagueza Sorites e os Trecircs Criteacuterios de Adequaccedilatildeo

A palavra ldquovaguezardquo eacute usada cotidianamente em diferentes sentidos

mas o interesse filosoacutefico pela vagueza eacute direcionado a um fenocircmeno

especiacutefico O que mais chama a atenccedilatildeo sobre esse fenocircmeno eacute que ele estaacute

por traacutes do que eacute conhecido como Paradoxo Sorites Esse paradoxo foi

descoberto por Eubulides de Mileto ainda no seacuteculo IV ac mas eacute

argumentaacutevel que somente recentemente (talvez nos uacuteltimos 60 ou 70

anos) ele venha recebendo a atenccedilatildeo que merece Aliaacutes atualmente existe

uma grande variedade de versotildees diferentes do paradoxo (HYDE 2011)

uma delas a versatildeo quantificada seraacute apresentada a seguir

Seja ldquoCrdquo o predicado ldquocarecardquo ldquoardquo um nome arbitraacuterio de pessoas e

deixe os nuacutemeros na direita inferior indicarem o nuacutemero de cabelos que a

tem na cabeccedila Nesse contexto a versatildeo quantificada do Sorites para

ldquocarecardquo pode ser formulada como segue

(SC)

(1) Ca0

(2) foralln (CanrarrCan+1)

_______________

(3) Ca10000

186 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

(SC) parte da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa

com 0 fios de cabelo na cabeccedila eacute careca para a conclusatildeo claramente falsa

de que uma pessoa com 10000 fios de cabelo na cabeccedila tambeacutem eacute careca

A conclusatildeo (3) se segue de (1) e (2) por repetidas aplicaccedilotildees de

Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens

Agora repare que podemos facilmente formular o Sorites na direccedilatildeo

inversa partindo da suposiccedilatildeo claramente verdadeira de que uma pessoa

com 10000 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca para a conclusatildeo

claramente falsa de que uma pessoa com 0 fios tambeacutem natildeo eacute careca

(notSC)

(1) notCa10000

(2)foralln (notCan+1rarrnotCan)

______________

(3) notCa0

A conclusatildeo de (notSC) tambeacutem eacute obtida por repetidas aplicaccedilotildees de

Instanciaccedilatildeo Universal e Modus Ponens Enquanto argumentos como (SC)

nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute careca argumentos como

(notSC) nos permite mostrar que cada indiviacuteduo natildeo eacute careca Se tomadas

em conjunto os argumentos nos permitem mostrar que cada indiviacuteduo eacute

careca e natildeo eacute careca ao mesmo tempo Resultado o predicado ldquocarecardquo eacute

incoerente Se isso jaacute nos parece absurdo a coisa fica muito pior quando

lembramos que o mesmo paradoxo pode ser formulado para muitos

outros predicados ldquoaltordquo ldquobaixordquo ldquoricordquo ldquopobrerdquo ldquovivordquo ldquomortordquo

ldquoraacutepidordquo ldquolentordquo ldquomonterdquo etc Em uacuteltima instacircncia aceitar a conclusatildeo

do Sorites implicaria em aceitar que cada um desses predicados eacute

incoerente

A premissa (1) de cada argumento acima eacute claramente verdadeira

enquanto a conclusatildeo se segue de (1) e (2) por regras de inferecircncia que

Sagid Salles | 187

natildeo gostariacuteamos de rejeitar Isso torna (2) a premissa quantificada na

principal suspeita Nesse contexto algueacutem poderia pensar que a soluccedilatildeo

do paradoxo reside na simples negaccedilatildeo da premissa (2) Infelizmente essa

estrateacutegia eacute mais difiacutecil do que parece Suponhamos por exemplo que a

premissa quantificada de (SC) eacute falsa Se esse eacute o caso entatildeo eacute verdade que

notforalln (CanrarrCan+1) Isso eacute logicamente equivalente a Ǝn (Can˄notCan+1) que

diz que haacute um nuacutemero natural n tal que a com n fios de cabelo na cabeccedila

eacute careca e a com n+1 fios de cabelo na cabeccedila natildeo eacute careca O problema eacute

que esse resultado eacute difiacutecil de engolir Para qualquer valor que se atribua a

n a suposiccedilatildeo de que uma pessoa com n fios de cabelo eacute careca e uma

pessoa com n+1 natildeo eacute careca pareceraacute altamente contraintuitiva

O ponto fica mais claro se pensarmos em termos de sequecircncias

Imagine uma sequecircncia como segue

lta0 a1 a2 a5000 a5001 a9998 a9999 a10000gt

Intuitivamente o predicado ldquocarecardquo se aplica a a0 a1 a2 etc e natildeo se

aplica a a10000 a9999 a9998 etc Entretanto natildeo haacute um uacuteltimo caso na

sequecircncia ao qual ldquocarecardquo se aplica seguido por um primeiro caso ao qual

o predicado natildeo se aplica nenhuma linha divisoacuteria eacute traccedilada Se

simplesmente negarmos a premissa quantificada aceitando que Ǝn

(Can˄notCan+1) teremos de assumir que o predicado ldquocarecardquo estabelece

uma linha divisoacuteria desse tipo2 Isso implicaria que ldquocarecardquo eacute um

predicado preciso e portanto natildeo vago O mesmo vale para todos os

predicados vagos Na verdade ser vago e ser preciso satildeo propriedades

incompatiacuteveis de modo que nenhuma expressatildeo linguiacutestica pode ser vaga

e precisa ao mesmo tempo

2 Iago Bozza chamou minha atenccedilatildeo para o fato de que aceitar que Ǝn (CanʌnotCan+1) natildeo implica que haja um par de itens na sequecircncia que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo careca e o primeiro natildeo careca Considere uma analogia com caso dos nuacutemeros naturais Todos podemos aceitar que existe um nuacutemero n tal que n eacute iacutempar e n+1 natildeo eacute iacutempar Disso natildeo se segue que haacute um par de itens adjacentes na sequecircncia dos nuacutemeros naturais que marca a divisatildeo entre o uacuteltimo iacutempar e o primeiro natildeo iacutempar da mesma Quando falamos que tal divisatildeo entre os carecas e os natildeo carecas se segue de Ǝn (CanʌnotCan+1) estamos adicionalmente assumindo que certas restriccedilotildees oacutebvias para a aplicaccedilatildeo do predicado ldquocarecardquo estatildeo em jogo Sobre tais restriccedilotildees veja-se GraffFara (2000 p 57)

188 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Por fim repare que essa breve apresentaccedilatildeo do Paradoxo Sorites nos

sugere trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria ideal da vagueza Satildeo

eles

a) O criteacuterio do Sorites resolver o Paradoxo Sorites

b) O criteacuterio da coerecircncia natildeo implicar que predicados vagos satildeo incoerentes

c) O criteacuterio da precisatildeo natildeo implicar que predicados vagos satildeo precisos

Ao alegar que (a)-(c) satildeo trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo para uma teoria

ideal da vagueza quero dizer que a falha em satisfazer algum deles deve

ser interpretado como um defeito para qualquer teoria da vagueza Noacutes

queremos uma teoria da vagueza que explique os predicados vagos de

forma a resolver o Sorites mas sem implicar que eles satildeo incoerentes ou

precisos (Uma defesa desses criteacuterios pode ser encontrada em Salles

2016) Eacute dentro desse pano de fundo que a Teoria Trivalente seraacute avaliada

Teoria Trivalente da Vagueza

Por ldquoTeoria Trivalente da Vaguezardquo entendo uma famiacutelia de teorias

que explicam a vagueza em termos de um terceiro valor de verdade ou

uma lacuna entre os dois valores claacutessicos verdadeiro e falso Apesar de

requererem uma loacutegica trivalente nem toda teoria da vagueza que faz uso

dessa loacutegica eacute uma instacircncia da Teoria Trivalente da Vagueza O traccedilo

distintivo dessas teorias eacute colocar o terceiro valorlacuna no centro da

explicaccedilatildeo das expressotildees vagas

A motivaccedilatildeo de base para essa teoria eacute a intuiccedilatildeo dos casos de

fronteira os predicados vagos admitem casos de fronteira casos a respeito

dos quais sua aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara A existecircncia desses casos serve como

um indiacutecio a favor da Teoria Trivalente Considere a frase (1)

Sagid Salles | 189

1 Joatildeo eacute careca

Se Joatildeo tem 0 fios de cabelo em sua cabeccedila entatildeo (1) expressa uma

proposiccedilatildeo verdadeira se Joatildeo tem todo o couro cabeludo coberto por

cabelo entatildeo (1) expressa uma proposiccedilatildeo falsa Mas o que dizer do caso

em que ele tem 85 do couro cabeludo coberto por cabelo (se quiser

pense em uma porcentagem que ache mais favoraacutevel ao exemplo)

Intuitivamente seria incorreto dizer que (1) eacute verdadeira nesse caso assim

como seria incorreto dizer que eacute falsa Uma explicaccedilatildeo para isso eacute que de

fato natildeo eacute verdadeira e de fato natildeo eacute falsa (1) eacute nem verdadeira nem falsa

ou como prefere Tye (1994) indefinida

Haacute duas interpretaccedilotildees de indefinido Pode-se interpretaacute-lo como um

terceiro valor de verdade ou como uma lacuna entre o verdadeiro e o falso

A vantagem de interpretaacute-lo como um terceiro valor eacute que fica mais faacutecil

explicar como (1) pode expressar uma proposiccedilatildeo Afinal proposiccedilotildees satildeo

tradicionalmente concebidas como os portadores dos valores de verdade

Por outro lado ficamos com o difiacutecil problema metafiacutesico de explicar o que

eacute esse terceiro valor o indefinido A vantagem da concepccedilatildeo da lacuna eacute

que natildeo carrega esse problema metafiacutesico pois natildeo aceita um terceiro

valor de verdade A desvantagem eacute que natildeo eacute claro como (1) nesse caso

poderia expressar uma proposiccedilatildeo Tanto quanto for possiacutevel manter-me-

ei neutro quanto ao ponto Para simplificar vou falar em uma frase sendo

indefinida e o leitor pode interpretar isso como significando que expressa

uma proposiccedilatildeo com o valor indefinido ou que falha em expressar uma

proposiccedilatildeo

A pergunta mais importante eacute como o apelo a frases indefinidas nos

leva a uma teoria dos predicados vagos A resposta se revela ao olharmos

para as expressotildees que constituem a frase Tradicionalmente entende-se

que uma frase como (1) eacute verdadeira se o objeto referido por ldquoJoatildeordquo

pertence ao conjunto de coisas selecionado pelo predicado ldquoeacute careca e

falsa de outro modo Nessa imagem o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de um

predicado pode ser dividido em duas partes (i) as coisas agraves quais o

190 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

predicado se aplica a sua extensatildeo positiva (ii) as coisas agraves quais o

predicado natildeo se aplica a sua extensatildeo negativa Cada elemento do

domiacutenio pertenceraacute a um ou a outro Se Joatildeo for um elemento da extensatildeo

positiva de ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute verdadeira se for um elemento da

extensatildeo negativa entatildeo eacute falsa natildeo haacute outra opccedilatildeo De acordo com a

Teoria Trivalente os predicados vagos natildeo se encaixam nessa imagem

O problema eacute que os predicados vagos natildeo dividem o seu domiacutenio em

duas partes Eacute verdade que eles tecircm uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo

negativa Mas fosse essa toda a histoacuteria cada frase como (1) seria

verdadeira ou falsa natildeo havendo espaccedilo para o nem verdadeiro nem falso

ou indefinido Para aleacutem da extensatildeo positiva e a extensatildeo negativa de um

predicado vago existe tambeacutem o que eacute chamado de ldquopenumbrardquo A

penumbra eacute formada pelos casos fronteira do predicado aqueles com

relaccedilatildeo aos quais a aplicaccedilatildeo natildeo eacute clara Se Joatildeo estaacute na penumbra de

ldquocarecardquo entatildeo (1) eacute indefinida ou nem verdadeira nem falsa

Pode haver divergecircncia sobre se a explicaccedilatildeo para o fato de que os

predicados vagos admitem penumbra eacute linguiacutestica ou metafiacutesica Tye

assume uma concepccedilatildeo metafiacutesica De acordo com ele satildeo os proacuteprios

conjuntos que satildeo vagos e os predicados satildeo vagos apenas porque os

conjuntos satildeo Nesse sentido o conjunto dos carecas eacute tal que para

algumas pessoas eacute indefinido se elas satildeo ou natildeo elementos do conjunto

(TYE 1994 p 195) Tye gosta de expressar isso dizendo que natildeo haacute uma

questatildeo de fato sobre se essas pessoas satildeo ou natildeo elementos do conjunto

dos carecas Predicados vagos satildeo vagos apenas porque satildeo associados a

conjuntos vagos Haacute tambeacutem aqueles que preferem uma explicaccedilatildeo

linguiacutestica para a penumbra Concepccedilotildees linguiacutesticas geralmente se datildeo

em termos das condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo do predicado Pode-se sustentar que

um predicado admite penumbra devido a alguma caracteriacutestica nas suas

condiccedilotildees de aplicaccedilatildeo De acordo com Soames (1999 p 163) ndash que no

entanto natildeo defende a Teoria Trivalente da Vagueza ndash os predicados que

admitem penumbra tecircm condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida e

condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida Essas condiccedilotildees satildeo mutuamente

Sagid Salles | 191

exclusivas mas natildeo conjuntamente exaustivas Como as condiccedilotildees satildeo

mutuamente exclusivas se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-

sucedida de ldquocarecardquo entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-

sucedida e se algo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida

entatildeo natildeo satisfaz as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida Como natildeo

satildeo conjuntamente exaustivas haacute casos que nem satisfazem as condiccedilotildees

de aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem satisfazem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo

mal-sucedida os casos indefinidos Para criacuteticas agrave proacutepria ideia de um

terceiro valorlacuna veja-se Glanzberg (2009) Para os nossos

propoacutesitos contudo natildeo precisamos ir aleacutem do que jaacute fomos

Em resumo os predicados vagos natildeo cortam seu domiacutenio de

aplicaccedilatildeo apenas em uma extensatildeo positiva e uma extensatildeo negativa Eles

tambeacutem admitem uma penumbra formada pelos casos fronteira do

predicado Eacute isso que explica o suposto fato de algumas frases contendo

predicados vagos serem nem verdadeiras nem falsas Quando a estaacute na

penumbra de ldquoFrdquo ldquoFardquo eacute indefinida A Teoria Trivalente assume que a

propriedade caracteriacutestica dos predicados vagos eacute encaixar-se na descriccedilatildeo

acima

Teoria Trivalente e a Soluccedilatildeo do Sorites

O modo como a Teoria Trivalente da Vagueza resolve o Paradoxo

Sorites depende dos detalhes de cada versatildeo Mais especificamente

depende do tratamento dado aos conectivosquantificadores e da

concepccedilatildeo de validade adotada A introduccedilatildeo de um terceiro valor ndash ou de

uma lacuna entre os dois valores claacutessicos ndash implica na necessidade de

reformular algumas definiccedilotildees Pode-se adotar uma concepccedilatildeo de validade

que nos permita rejeitar a validade do argumento Sorites mas a soluccedilatildeo

mais simples eacute manter a validade como preservaccedilatildeo de verdade e rejeitar

alguma premissa (KEEFE 2000 p104 e 107) Isto pode ser feito olhando

apenas para os conectivos e quantificadores Existem diferentes

interpretaccedilotildees dos conectivos Primeiro podem ser interpretados

192 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

verofuncionalmente (TYE 1994) ou natildeo verofuncionalmente (RICHARD

2009) Segundo mesmo que adotemos uma das duas haveraacute divergecircncia

sobre qual seraacute a interpretaccedilatildeo correta de cada um Natildeo vou entrar em

qualquer discussatildeo deste tipo aqui No que segue assumo a interpretaccedilatildeo

verofuncional de Tye e apresento a sua soluccedilatildeo do paradoxo

Tye (1994 p 194) adota uma das interpretaccedilotildees propostas por Kleene

(1952 p 332-340) dos conectivos

Natildeo eacute difiacutecil ver a motivaccedilatildeo por traacutes de cada tabela escolhida

Quando as frases componentes da frase mais complexa possuem apenas

valores claacutessicos os conectivos funcionam precisamente como funcionam

na leitura claacutessica ndash esse eacute o chamado ldquorequisito de normalidaderdquo (KEEFE

2000 p 86 MACHINA 1976 p 55) Assim as diferenccedilas relevantes

ocorrem apenas quando uma das frases componentes eacute indefinida

A negaccedilatildeo de uma frase indefinida A eacute ela mesma indefinida Por um

lado se notA fosse verdadeira entatildeo A seria falsa e consequentemente natildeo

seria indefinida Por outro lado se notA fosse falsa entatildeo A seria verdadeira

e portanto natildeo seria indefinida Para que uma disjunccedilatildeo seja verdadeira

A B notA AvB A˄B ArarrB

V V F V V V

V I F V I I

V F F V F F

I V I V I V

I I I I I I

I F I I F I

F V V V F V

F I V I F V

F F V F F V

Sagid Salles | 193

basta que uma disjunta seja verdadeira e para que seja falsa basta que

todas as disjuntas sejam falsas Nos outros casos a disjunccedilatildeo eacute indefinida

Uma conjunccedilatildeo eacute verdadeira se todas conjuntas satildeo verdadeiras falsa se

pelo menos uma conjunta eacute falsa e indefinida nos outros casos A

condicional eacute como se espera um caso problemaacutetico A uacutenica motivaccedilatildeo

notada por Tye eacute que ArarrB deve ser equivalente a notAvB Por fim AharrB

pode ser definido como (ArarrB) ˄ (BrarrA)

O quantificador existencial eacute definido como segue ƎxFx eacute verdadeiro

se tem uma instacircncia verdadeira falsa se todas as suas instacircncias satildeo

falsas e indefinida nos outros casos A intuiccedilatildeo por traacutes da definiccedilatildeo eacute que

uma afirmaccedilatildeo existencial seraacute indefinida quando nenhuma instacircncia for

verdadeira e pelo menos algumas forem indefinitas o mesmo que

ocorreria com a disjunccedilatildeo de todas as instacircncias Fa1vFa2vFa3v Fan O

quantificador universal eacute definido como segue forallxFx eacute verdadeira se todas

as suas instacircncias satildeo verdadeiras falsa se alguma instacircncia eacute falsa e

indefinida nos outros casos A ideia aqui eacute que uma afirmaccedilatildeo universal eacute

indefinida apenas quando nenhuma instacircncia eacute falsa e algumas satildeo

indefinidas o mesmo que ocorreria com a conjunccedilatildeo de todas as instacircncias

Fa1˄Fa2˄Fa3˄Fan

Essa leitura dos conectivos nos leva a alguns resultados

contraintuitivos quanto ao valor de verdade de certas frases Por exemplo

intuitivamente toda frase da forma A˄notA eacute falsa e toda frase da forma

AvnotA eacute verdadeira mas na leitura de Tye ambas as intuiccedilotildees estatildeo

erradas Quando A eacute indefinido tanto A˄notA quanto AvnotA seratildeo

indefinidos Tudo que Tye (1994 p 194) consegue reter de nossas

intuiccedilotildees eacute que nenhuma frase da primeira forma seraacute verdadeira (trata-

se de uma quase-contradiccedilatildeo) e nenhuma da segunda forma seraacute falsa

(trata-se de uma quase-tautologia) Agora imagine que Joatildeo eacute mais alto do

que Marcos mas ambos estatildeo na penumbra de ldquoaltordquo Nossa intuiccedilatildeo eacute que

a condicional ldquoSe Marcos eacute alto entatildeo Joatildeo eacute altordquo eacute verdadeira Na leitura

de Tye dos conectivos contudo a condicional seraacute indefinida Exemplos

do tipo podem ser multiplicados (KEEFE 2000 p 96-97 SANTOS 2015

194 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

p 5-6) Por fim problemas similares aparecem para diferentes

interpretaccedilotildees verofuncionais dos conectivos (WILLIAMSON 1994 cap

4)

Em todo caso o que nos interessa aqui eacute como Tye resolve o Paradoxo

Sorites A sua soluccedilatildeo consiste em rejeitar a premissa quantificada sem

com isso aceitar a sua negaccedilatildeo Na versatildeo para ldquocarecardquo a premissa

quantificada era foralln (CanrarrCan+1) Nenhuma instacircncia dessa premissa seraacute

falsa de modo que ela proacutepria natildeo seraacute falsa Por outro lado algumas

instacircncias seratildeo indefinidas dado que teratildeo antecedente e consequente

indefinidos Lembre-se de acordo com a Teoria Trivalente o predicado

ldquocarecardquo admite uma penumbra um conjunto de casos aos quais a sua

aplicaccedilatildeo eacute indefinida Eacute plausiacutevel supor que para algum n tanto Can

quanto Can+1 seratildeo indefinidas e nesse caso a condicional CanrarrCan+1 seraacute

tambeacutem indefinida Ora uma afirmaccedilatildeo universal com nenhuma instacircncia

falsa e algumas indefinidas eacute ela mesma indefinida Logo a premissa

quantificada eacute indefinida Assim Tye consegue rejeitar a premissa

quantificada sem precisar assumir que ela seja falsa e portanto sem

precisar aceitar a sua negaccedilatildeo

Teoria Trivalente e o Criteacuterio da Precisatildeo

Vimos que uma teoria ideal da vagueza satisfaria trecircs criteacuterios

resolver o Paradoxo Sorites natildeo implicar que os predicados vagos satildeo

incoerentes e natildeo implicar que eles satildeo precisos Na seccedilatildeo anterior vimos

que a Teoria Trivalente fornece uma resposta ao Sorites Aleacutem disso estaacute

claro que ela natildeo implica que os predicados vagos satildeo incoerentes Seu

principal problema eacute com o criteacuterio da precisatildeo

Na concepccedilatildeo tradicional o domiacutenio de um predicado eacute dividido em

uma extensatildeo positiva e uma negativa e todo objeto do domiacutenio estaacute ou

em uma ou na outra Supondo que o domiacutenio de aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo seja

o domiacutenio das pessoas cada pessoa ou estaacute na extensatildeo positiva ou estaacute

na extensatildeo negativa de ldquocarecardquo Isso implica que uma sequecircncia para

Sagid Salles | 195

ldquocarecardquo seria dividida de modo a haver um nuacutemero n tal que uma pessoa

com n fios eacute careca e uma pessoa com n+1 natildeo eacute O resultado pode ser

representado como segue

Extensatildeo Positiva Extensatildeo negativa

|a0 a1 a2 a3 an | an+1 an+2hellip an+m|

Verdadeiro Falso

Fica evidente que na concepccedilatildeo acima ldquocarecardquo eacute um predicado

preciso Existe um uacuteltimo caso ao qual ldquocarecardquo se aplica e um primeiro

caso ao qual natildeo se aplica A Teoria Trivalente evita isto por meio da

postulaccedilatildeo de uma penumbra entre a extensatildeo positiva e a negativa O

resultado pode ser representado como segue

Ext Positiva Penumbra Ext negativa

|a0 a1 an | an+1an+m | an+m+1 an+m+k|

Verdadeiro Indefinido Falso

Esta imagem no entanto natildeo evita o problema da anterior Eacute

verdade que a Teoria Trivalente eacute capaz de separar os casos nos quais a

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo gera uma verdade dos casos nos quais ela gera uma

falsidade Existe um uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo na sequecircncia an e

existe um primeiro caso negativo an+m+1 Entre eles contudo haacute um

conjunto de casos nos quais a aplicaccedilatildeo gera o valorlacuna indefinido

Chamemos-lhes de ldquocasos indefinidosrdquo Nada disso evita a consequecircncia

de que predicados vagos satildeo precisos Na imagem acima o predicado

ldquocarecardquo continua cortando a sequecircncia de forma ciruacutergica A uacutenica

diferenccedila relevante eacute que ao inveacutes de haver apenas uma fronteira ndash a

fronteira entre os casos positivos e negativos ndash agora haacute duas fronteiras a

fronteira positivoindefinido e a fronteira indefinidonegativo O item an eacute

o uacuteltimo caso positivo de ldquocarecardquo seu vizinho imediato an+1 eacute o primeiro

caso indefinido Portanto haacute uma fronteira precisa entre os casos positivos

e os casos indefinidos de ldquocarecardquo O item an+m eacute o uacuteltimo caso indefinido

e seu vizinho imediato an+m+1 eacute o primeiro negativo Portanto haacute tambeacutem

uma fronteira precisa entre os casos indefinidos e os negativos de ldquocarecardquo

196 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Comeccedilamos com uma fronteira e terminamos com duas Ao inveacutes de

ldquocarecardquo cortar o seu domiacutenio cirurgicamente em um ponto corta em dois

A Teoria Trivalente natildeo satisfaz o criteacuterio da precisatildeo

O resultado acima eacute que a Teoria Trivalente implica que os

predicados vagos satildeo de fato precisos Assumindo a intuiccedilatildeo de que ser

preciso e ser vago satildeo propriedades incompatiacuteveis o resultado eacute que as

expressotildees aparentemente vagas natildeo satildeo realmente vagas Isso ainda nos

deixaria com o que chamei de ldquoproblema fundacional da precisatildeordquo

(SALLES 2016 p 163) Se os predicados vagos satildeo precisos entatildeo como a

sua extensatildeo eacute determinada Essa pergunta eacute ainda mais difiacutecil de ser

respondida pela Teoria Trivalente do que pela concepccedilatildeo tradicional

Afinal agora temos de explicar como cada uma das duas fronteiras de

ldquocarecardquo por exemplo eacute determinada Nossos usos desse predicado seriam

refinados o bastante para estabelecer um corte entre os casos

positivoindefinidos e outro entre os indefinidonegativos de ldquocarecardquo

No que segue considero duas respostas disponiacuteveis ao defensor da

Teoria Trivalente A primeira sustenta que o erro do argumento acima eacute

supor que todos os objetos do domiacutenio de aplicaccedilatildeo do predicado ou estatildeo

na extensatildeo positiva ou estatildeo na negativa ou estatildeo na penumbra Natildeo se

trata aqui de aumentar ainda mais o nuacutemero de fronteiras Pelo

contraacuterio o ponto eacute questionar que soacute existam aquelas trecircs opccedilotildees sem

no entanto afirmar que existam mais Essa eacute a estrateacutegia de Tye (1994 p

195) para quem devemos assumir o seguinte

bull Os predicados vagos admitem casos positivos indefinidos e negativos e natildeo

existe uma questatildeo de fato acerca de se esses satildeo ou natildeo os uacutenicos casos

A tese acima natildeo afirma que existem mais do que as trecircs opccedilotildees

consideradas Mas ela impede que suponhamos que existam somente as

trecircs Uma vez que o argumento contra a Teoria Trivalente depende dessa

suposiccedilatildeo ele falha

O argumento de Tye a favor dessa tese eacute como segue Considere a

pergunta existem apenas trecircs opccedilotildees Suponha que sim Nesse caso

Sagid Salles | 197

como vimos o predicado ldquocarecardquo eacute preciso Suponha que natildeo Nesse caso

existe ainda uma quarta opccedilatildeo Pode-se entatildeo perguntar satildeo essas quatro

opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo caiacutemos no mesmo problema de antes e

predicados vagos seratildeo de fato precisos Se natildeo entatildeo precisaremos de

uma quinta opccedilatildeo Satildeo as cinco opccedilotildees as uacutenicas Se sim entatildeo predicados

vagos satildeo precisos Se natildeo entatildeo precisamos de uma sexta opccedilatildeo e assim

por diante Por um lado natildeo eacute verdade que existam apenas trecircs opccedilotildees

pois isso implica que predicados vagos satildeo precisos Por outro natildeo eacute falso

que existam apenas trecircs opccedilotildees pois isso implica em esquisitices

metafiacutesicas (o proacuteprio quarto valor) ou regresso ao infinito Conclusatildeo

natildeo haacute uma questatildeo de fato sobre se existe ou natildeo uma quarta opccedilatildeo Isso

pode ser expresso dizendo-se que eacute em si mesmo indefinido se ou natildeo

existem apenas trecircs opccedilotildees

Keefe (2000 p 121) apresenta uma objeccedilatildeo que me parece decisiva

contra o argumento acima Podemos explicitar o argumento de Tye como

segue

α Natildeo eacute verdadeiro que existem apenas trecircs opccedilotildees

β Natildeo eacute falso que existem apenas trecircs opccedilotildees

γ Logo eacute indefinido se existem apenas trecircs opccedilotildees

Como (γ) se segue de (α) e (β) Suponha por exemplo que existe

uma quarta opccedilatildeo indefinido Nesse caso o maacuteximo que poderiacuteamos

concluir a partir de (α) e (β) eacute que eacute indefinido ou indefinido que existem

apenas trecircs opccedilotildees De fato para que a inferecircncia de (γ) no argumento

acima seja permitida eacute preciso que haja apenas trecircs opccedilotildees verdadeiro

falso e indefinido Para mostrar que eacute indefinido que existem apenas trecircs

opccedilotildees Tye assume justamente que existem apenas trecircs opccedilotildees No fim

das contas Tye assume aquilo que pretende rejeitar

Mark Richard (2009 p 476) sustenta que o erro do argumento contra

a Teoria Trivalente estaacute em assumir que existe um uacuteltimo caso positivo de

ldquocarecardquo e um primeiro caso indefinido A sua resposta passa pelas noccedilotildees

de penumbra e indefinido Primeiro ele adota uma concepccedilatildeo linguiacutestica do

198 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que eacute para um predicado possuir uma penumbra Seguindo Soames um

predicado possui uma penumbra quando haacute objetos que nem satisfazem as

condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida nem as condiccedilotildees para a aplicaccedilatildeo

mal-sucedida3 Se Joatildeo estaacute na penumbra de ldquocarecardquo entatildeo as condiccedilotildees de

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo nada dizem sobre se ele deve ser incluiacutedo na extensatildeo

positiva ou na extensatildeo negativa desse predicado Como as condiccedilotildees de

aplicaccedilatildeo de ldquocarecardquo natildeo determinam em qual lado estaacute Joatildeo eacute indefinido

se (1) eacute verdadeira ou falsa Por outras palavras (1) eacute indefinida (Richard

prefere indeterminada) Segundo indefinido natildeo eacute entendido como um

terceiro valor de verdade Nessa concepccedilatildeo soacute existem dois valores de

verdade mas pode estar indefinido qual deles uma frase tem

Agora o argumento procede como segue Uma vez que an+1estaacute na

penumbra de ldquocarecardquo natildeo estaacute definido se ele eacute careca ou natildeo Mas se natildeo

estaacute definido se an+1 eacute careca ou natildeo entatildeo natildeo podemos assumir que aneacute

o uacuteltimo caso de ldquocarecardquo na sequecircncia Por outro lado tambeacutem natildeo

podemos assumir que an natildeo seja o uacuteltimo item careca da sequecircncia Pois

soacute poderiacuteamos assumir isso se estivesse definido que o proacuteximo item an+1

eacute careca Mas isso tambeacutem estaacute indefinido Portanto natildeo haacute um caso que

possamos justificadamente apontar como sendo o uacuteltimo caso positivo de

ldquocarecardquo Um argumento similar nos permitiria mostrar que tambeacutem natildeo

haacute um que possamos apontar como sendo o primeiro caso negativo de

ldquocarecardquo Tatildeo logo entendemos corretamente no que consiste ser

indefinido se um item eacute ou natildeo careca percebemos que ldquocarecardquo natildeo

estabelece fronteiras e portanto natildeo eacute preciso

Natildeo acredito esse argumento evite a violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo

Mesmo aceitando tudo que foi dito continua sendo o caso de ldquocarecardquo

3 Haacute diferenccedilas entre Soames e Richard no que diz respeito ao mecanismo que faz com que um predicado acabe por ter uma penumbra De acordo com Soames isso ocorre porque o predicado (i) tem condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) condiccedilotildees suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) essas condiccedilotildees satildeo mutuamente exclusivas mas (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas Richard (2009 p 465-467) pensa que essa definiccedilatildeo natildeo eacute boa o bastante para justificar uma lacuna entre os dois valores claacutessicos de verdade propondo uma pequena modificaccedilatildeo De acordo com ele um predicado ldquoFrdquo tem uma penumbra quando (i) tem um conjunto C de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo bem-sucedida (ii) tem um conjunto Crsquo de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a aplicaccedilatildeo mal-sucedida (iii) C e Crsquo satildeo mutuamente exclusivas e (iv) natildeo satildeo conjuntamente exaustivas

Sagid Salles | 199

cortar o seu domiacutenio de forma precisa em trecircs partes Retorne agrave imagem

acima da divisatildeo tripartida do domiacutenio de ldquocarecardquo O item an eacute o uacuteltimo

para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo se aplica enquanto an+1 eacute o primeiro

para o qual estaacute indefinido Haacute uma fronteira precisa entre os casos

definidos e os indefinidos de ldquocarecardquo Do mesmo modo an+m eacute o ultimo

caso para o qual estaacute indefinido se ldquocarecardquo se aplica ou natildeo e an+m+1 eacute o

primeiro caso para o qual estaacute definido que ldquocarecardquo natildeo se aplica Haacute uma

fronteira precisa entre os casos indefinidos e os definidos de ldquonatildeo-carecardquo

Novamente temos duas fronteiras precisas onde deveria haver nenhuma

O proacuteprio Richard reconhece essa objeccedilatildeo e apela a uma soluccedilatildeo

epistecircmica para a mesma (2009 p 476-477) Apesar dos predicados vagos

possuiacuterem fronteiras no sentido acima frequentemente natildeo eacute possiacutevel

para noacutes sabermos onde ela se situa Nesse caso natildeo eacute claro se natildeo seria

mais plausiacutevel rejeitar de uma vez por todas a Teoria Trivalente e aceitar

a Teoria Epistecircmica em seu lugar Seja como for essa soluccedilatildeo aceita a

violaccedilatildeo do criteacuterio da precisatildeo

Conclusatildeo

A principal conclusatildeo deste texto eacute que embora a Teoria Trivalente

satisfaccedila os criteacuterios do Sorites e da coerecircncia tem claros problemas em

satisfazer o criteacuterio da precisatildeo Em todo caso estou convencido de que

satisfazer a todos os trecircs criteacuterios eacute algo dificiacutelimo e que as outras teorias

tradicionais da vagueza (Gradualismo Supervalorativismo Incoerentismo

Epistemicismo etc) tambeacutem falham em satisfazer pelo menos algum deles

Se isso estiver correto fica em aberto a possibilidade de a Teoria Trivalente

ainda ser a nossa melhor opccedilatildeo Afinal nem sempre a melhor opccedilatildeo de que

dispomos eacute a opccedilatildeo ideal Por outro lado se houver uma teoria que satisfaccedila

conjuntamente a todos os trecircs criteacuterios de adequaccedilatildeo a Teoria Trivalente

estaraacute em desvantagem quanto a mesma Eu de fato penso que exista tal

teoria mas essa eacute uma histoacuteria para outro momento

200 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Referecircncias

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WILLIAMSON T Vagueness Routledge 1994

12

O Leibniz de Deleuze

Uma Introduccedilatildeo agrave Loacutegica do Sentido1

William de Siqueira Piauiacute 2

Introduccedilatildeo

O que gostariacuteamos ao menos de comeccedilar a fazer em nosso mini-curso

eacute semelhante ao que fez Derrida em ldquoCogito e Histoacuteria da Loucurardquo

(Escritura e diferenccedila de 1967) com o trabalho exegeacutetico realizado por

Foucault quando este havia tentado localizar nas Meditaccedilotildees de Descartes

uma recusa ou exclusatildeo criticaacutevel da loucura tratava-se de mostrar que

um especialista em modernidade naquele momento jaacute autor de As

palavras e as coisas (de 1966) podia natildeo ter compreendido corretamente

o texto cartesiano acusaccedilatildeo grave e que por isso exigia natildeo soacute um novo

trabalho exegeacutetico do texto em questatildeo mas tambeacutem a explicitaccedilatildeo dos

pontos mais importantes e o centro da argumentaccedilatildeo da hipoacutetese

interpretativa a ser criticada3 Assim em termos comparativos o que

pretendemos mostrar eacute quais seriam os pontos principais e mesmo o

1 Texto-aula do minicurso que de iniacutecio tinha o nome O Leibniz de Deleuze problemas de exegese ministrado no IV Encontro Linguagem e Cogniccedilatildeo realizado junto agrave 8ordf Bienal Internacional do Livro de Alagoas em outubro de 2017 texto que com algumas alteraccedilotildees serviu de base para a palestra Deleuze e a noccedilatildeo leibniziana de sujeito apresentada no III Congresso Ibero-americano Leibniz realizado na Universidade Federal do Paranaacute (UFPR) Curitiba em novembro de 2017 palestra que foi um desenvolvimento das hipoacuteteses interpretativas que levantamos no V Encontro do Grupo Subjetividade no Pensamento Contemporacircneo realizado em junho de 2017 na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

2 Professor do Departamento de Filosofia (DFL) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) E-mail piauiuspgmailcom

3 E nos parece que Derrida faz o mesmo com Jean-Pierre Vernant em Khora cf por exemplo 1995 p 7

202 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

centro do trabalho exegeacutetico de Deleuze com relaccedilatildeo a Leibniz mostrar

que mesmo um ldquoespecialistardquo do seu quilate pode natildeo ter compreendido

bem a filosofia leibniziana ao fazer uma apropriaccedilatildeo elogiosa poreacutem

equivocada principalmente dos seus conceitos de mocircnada individual ou

substacircncia particular Deus mundo corpo e principalmente ao defender a

necessidade de certo deslocamento que corroboraria a hipoacutetese que

Leibniz teria ido muito longe naquilo que o francecircs compreendia como

gecircnese estaacutetica ontoloacutegica etapa fundamental de sua Loacutegica do sentido

obra que seraacute nosso principal ponto de partida Do nosso ponto de vista eacute

o que estaacute em jogo principalmente no seguinte trecho de sua 16ordf seacuterie

Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada

mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente

compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia dos

predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo expresso

natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas mocircnadas como

a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos verdade entretanto

que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas [ou seja Deus criou natildeo

exatamente Adatildeo-pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou] e [tambeacutem eacute

verdade] que o expresso natildeo se confunde com sua expressatildeo mas insiste ou

subsiste [] Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na

filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na mocircnada

expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo expresso e

esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo

as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma

loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e

da verdade Leibniz foi muito longe nesta primeira etapa da gecircnese [de um

certo campo transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades

entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentais o indiviacuteduo

constituiacutedo como centro de envolvimento como envolvendo singularidades

em um mundo e sobre seu corpo (DELEUZE 2003 p 114-5 grifo nosso)

Do nosso ponto de vista natildeo eacute necessaacuterio afirmar o deslocamento

defendido por Deleuze que corroboraria a obrigatoriedade do

encadeamento de I a III e natildeo do seu contraacuterio Em nossa opiniatildeo a

apropriaccedilatildeo equivocada da filosofia leibniziana fica mais evidente

William de Siqueira Piauiacute | 203

especialmente em parte do trabalho exegeacutetico que Deleuze faz do Discurso

de metafiacutesica em associaccedilatildeo com a Correspondecircncia de Leibniz e de

Arnauld dos sect408 sect409 e sect414 da Teodiceia na menccedilatildeo natildeo explicitada

de parte do sect47 da quinta carta da Correspondecircncia Leibniz Clarke ndash

que faz a base da noccedilatildeo de coexistecircncia ndash e inclusive no alcance que supocircs

do texto ldquoSobre o meacutetodo da universalidaderdquo ndash o que seraacute mantido em A

dobra ndash ao mencionar um suposto uso geral que Leibniz faria da noccedilatildeo de

ldquosigno ambiacuteguordquo e principalmente para defender que por conta de seu

antigeneralismo o alematildeo forneceria as bases para pensarmos um ldquocampo

transcendental impessoal e preacute-individual ou das singularidades

entendidas como verdadeiros acontecimentos transcendentaisrdquo Para noacutes

Deleuze teria criado dado o uso que supocircs dos atributos verbais uma

ficccedilatildeo falsa a la Lorenzo Valha que se sobrepotildee ao que de fato eacute afirmado

no final da Teodiceia ndash talvez por ter decidido parar em seu sect408 ou pela

excessiva importacircncia que conferiu a uma parte de seu sect414 Tudo

apontando para uma aproximaccedilatildeo excessiva entre Leibniz e Newton

inclusive a partir de certa caracterizaccedilatildeo de um mundo expresso feito de

relaccedilotildees diferenciais e de singularidades adjacentes que acabariam por

conduzir a uma dinacircmica sem causa proacutexima

Quanto aos motivos que nos levam a rever a leitura de Deleuze jaacute haacute

tantos anos publicada e criticada temos que dizer que eles satildeo de caraacuteter

regional recentemente em 2015 vimos publicado no Brasil a traduccedilatildeo do

livro de Alain Badiou A aventura da filosofia francesa no seacuteculo XX que

conteacutem um capiacutetulo de tiacutetulo ldquoGilles Deleuze Sobre A dobra Leibniz e o

barrocordquo e a publicaccedilatildeo em 2016 do excelente artigo de Gonzalo

Montenegro ldquoDeleuze em diaacutelogo com Freacutemont tentativas de ler Leibnizrdquo

tais textos deixam claro que ainda haacute muito que problematizar quanto agraves

interpretaccedilotildees de Deleuze mesmo quanto agrave sua afirmaccedilatildeo que

permanecemos leibnizianos e eacute com esse trabalho que gostariacuteamos de

contribuir voltando especialmente ao texto que serviu de base para A

dobra Mesmo natildeo desconsiderando o ldquobrilhantismordquo ou a ldquogenialidaderdquo

da interpretaccedilatildeo do francecircs ndash o que tenta nos mostrar Badiou ndash para que

204 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

o leitor natildeo se engane quanto ao nosso ponto de vista de fundo fazendo

outros caminhos estamos mais de acordo com grande parte das objeccedilotildees

que Freacutemont fez agrave leitura deleuziana especialmente se tomarmos a Loacutegica

do sentido como ponto de partida inclusive consideramos a pertinecircncia

daquelas objeccedilotildees como o motivo mais forte para a obra A dobra ter

demorado vinte anos para ser confeccionada Para noacutes em termos de

comentaacuterio de obra a leitura de Fremoacutent eacute muito mais bem fundamentada

e corresponde mais apropriadamente com o que o texto leibniziano

permitiria concluir principalmente se natildeo aceitarmos o deslocamento

exigido em a Loacutegica do sentido ou se recusamos a inversatildeo do caminho

argumentativo da Monadologia bases da argumentaccedilatildeo defendida em A

dobra de qualquer modo natildeo nos parece que Gonzalo deixa claro com que

interpretaccedilatildeo estaria mais de acordo Eacute por aiacute portanto que caminharaacute

nossa tentativa de problematizar o trabalho interpretativo feito na Loacutegica

do sentido e que em grande medida prepara todo o trabalho realizado em

A dobra Por fim e em termos da leitura de Badiou mesmo que estejamos

de acordo com a opiniatildeo que A dobra eacute ldquoum livro rarordquo ldquoadmiraacutevelrdquo e que

ldquopropotildee-nos uma visatildeo e um pensamento do nosso mundordquo pretendemos

ainda uma vez voltar agraves querelas genealoacutegicas agrave agrimensura dos textos

especialmente daquele que lanccedila as bases da argumentaccedilatildeo defendida em

A dobra quem sabe tal empreitada nos permita recolocar a pergunta o

que vemos como ou pensamos ser o nosso mundo

I Parte ndash Entre Literatura Psicanaacutelise Linguiacutestica e Loacutegica Deleuze

de Loacutegica do Sentido e a Filosofia Contemporacircnea

Como nos diz Pierre Franccedilois Marietti (HUISMAN 2001 p 255) em

geral se costuma distinguir trecircs periacuteodos da filosofia do francecircs Gilles

Deleuze (1925-1995) O primeiro entre 1953 ou 52 e 1968 que

compreenderia a produccedilatildeo de vaacuterios trabalhos sobre filoacutesofos e literatos

o periacuteodo das monografias tais como sobre Hume em Hume sua vida e

sua obra de 1952 e em Empirismo e subjetividade de 1953 sobre

William de Siqueira Piauiacute | 205

Nietzsche em Nietzsche e a filosofia de 1962 ou simplesmente Nietzsche

de 1965 sobre Proust em Proust e os signos de 1964 sobre Bergson em

Bergsonismo de 1966 sobre Espinosa em Espinosa ou o problema da

expressatildeo de 1968 ano que marcaria o final deste periacuteodo O segundo

periacuteodo 1968-1972 teria iniacutecio com as produccedilotildees mais autocircnomas e

propriamente filosoacuteficas de Deleuze tais como os volumosos Diferenccedila e

repeticcedilatildeo de 1968 e Loacutegica do sentido de 1969 Mas eacute preciso dizer que

aquele primeiro tipo de produccedilatildeo caracteriacutestico do primeiro periacuteodo natildeo

seraacute abandonado e seratildeo produzidas dentre outras mais duas obras sobre

Espinosa (em 1970 e 1981) a obra Foucault de 1986 e a famosa A dobra

Leibniz e o Barroco de 1988 (publicado quase 20 anos depois de a Loacutegica

do sentido e que foi o resultado de aulas dadas nos anos 80 86 e 87)

Tambeacutem nesse periacuteodo se intensificaratildeo seus estudos sobre psicanaacutelise e

literatura isto eacute a produccedilatildeo das obras escritas em parceria com o

psicanalista Feacutelix Guattari (1930-1992) tais como O anti-Eacutedipo e mesmo

Kafka por uma literatura menor ambas de 1972 o primeiro estudo

marca o iniacutecio do que se costuma chamar de a grande ruptura que

certamente faz o pano de fundo de obras como O que eacute filosofia jaacute de

1991 e Criacutetica e Cliacutenica de 1997 este uacuteltimo publicado jaacute dois anos depois

da morte de Deleuze

Dito isso e como jaacute o indicamos a obra principal sobre a qual

falaremos neste minicurso seraacute a Loacutegica do sentido praticamente o tema

da nossa III Semana de Filosofia da Linguagem4 obra que foi publicada

em 1969 e que faria parte daquele segundo periacuteodo obra que segundo

Marietti mais que Diferenccedila e repeticcedilatildeo ldquoextrapola em muito os cacircnones

universitaacuterios vigentes na eacutepoca com seu interesse pelas meninasrdquo pelos

poetas ldquoe pelos esquizofrecircnicosrdquo ndash certamente uma referecircncia agrave 13ordf seacuterie

do livro ndash ldquocomrdquo completa ele uma ldquoreflexatildeo profunda sobre a linguagem

e a literaturardquo (HUISMAN 2001 p 255) e acrescentariacuteamos uma reflexatildeo

sobre o estruturalismo e ainda mais especifica sobre a loacutegica a qual

4 Evento ocorrido no DFL-UFS em marccedilo de 2017 e que teve por tema ldquoGilles Deleuze Loacutegica e Sentidordquo onde tambeacutem ministramos um minicurso sobre a Loacutegica do sentido

206 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

acompanharaacute Deleuze certamente ateacute o final de sua vida como o

comprova o capiacutetulo II (Prospectos e Conceitos) da parte II (Filosofia

Ciecircncia Loacutegica e Arte) do livro escrito em parceria com Guattari O que eacute

filosofia

O que extrapola os cacircnones universitaacuterios vigentes certamente natildeo

se associa somente a certas figuras que despertam o interesse de Deleuze

mas o proacuteprio assunto e a forma como ele seraacute exposto ou como nos diz

o proacuteprio tratar-se-aacute da ldquoconstituiccedilatildeo paradoxal da teoria do sentidordquo

teoria que seraacute apresentada em 34 seacuteries (espeacutecie de capiacutetulos) que

receberatildeo mais 2 apecircndices subdivididos em 5 tiacutetulos seacuteries em que

veremos a elaboraccedilatildeo de uma espeacutecie de histoacuteria ldquouma lsquohistoacuteria

embrulhadarsquordquo por fim a obra seraacute apresentada como um ldquoensaio de

romance loacutegico e psicanaliacuteticordquo Falar de loacutegica a partir do gecircnero

romance misturando tal tema com psicanaacutelise e ensaiando compor uma

histoacuteria embrulhada obra em que em muitos de seus capiacutetulos tratam do

tema ldquoparadoxordquo certamente tambeacutem significava extrapolar os cacircnones

universitaacuterios vigentes basta pensarmos em obras sobre loacutegica ou

linguagem como as de Frege (a Conceitografia por exemplo) Russell

(Principia mathematica) Carnap (Da construccedilatildeo loacutegica do mundo)

Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus) Husserl (Investigaccedilotildees

loacutegicas) e mesmo a de Heidegger (Princiacutepios metafiacutesicos da loacutegica) ou

Merleau-Ponty (A prosa do mundo) ou ainda a de Foucault (As palavras

e as coisas uma arqueologia das ciecircncias humanas) e de Derrida

(Gramatologia) para imaginarmos quatildeo grande era aquela extrapolaccedilatildeo

Toda essa extrapolaccedilatildeo ou abandono daquele rigor claacutessico rigor

ainda presente segundo Marietti em Diferenccedila e repeticcedilatildeo jaacute garantiria

um lugar de destaque agrave obra Loacutegica do sentido junto agrave filosofia

contemporacircnea ou dos modernos como quer Badiou o que seraacute

intensificado pela valorizaccedilatildeo de um tipo de filosofia que jaacute tinha aceitado

a ponto de se misturar com elas seja a intromissatildeo da literatura seja a da

psicanaacutelise seja a da linguiacutestica Quanto agrave uacuteltima eacute faacutecil perceber a

importacircncia natildeo costumeiramente afirmada em livros de loacutegica que

William de Siqueira Piauiacute | 207

assumiratildeo as consideraccedilotildees de um Benveniste (de Problemas de

linguiacutestica geral por exemplo) de Jakobson (de dentre outros ldquoO signo

zerordquo) e mesmo que indiretamente de Sausurre (de Curso de linguiacutestica

geral) para a elaboraccedilatildeo das ldquotrecircs relaccedilotildees distintas da proposiccedilatildeo

(designaccedilatildeo ou indicaccedilatildeo manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo) tema da 3ordf seacuterie

Mais do que isto a contribuiccedilatildeo geral da linguiacutestica e estruturalismo seratildeo

enunciadas na 12ordf seacuterie do seguinte modo

Os autores que se costuma atualmente chamar de estruturalistas [tais como

Benveniste e Jakobson] natildeo tecircm talvez outro ponto em comum ndash poreacutem

essencial ndash aleacutem do seguinte o sentido natildeo como aparecircncia mas como efeito

de superfiacutecie e de posiccedilatildeo produzido pela circulaccedilatildeo da casa vazia nas seacuteries

da estrutura [le sens non pas du tout comme apparence mais comme effet de

surface et de position produit par la circulation de la case vide dans les seacuteries

de la structure] ([] significante flutuante valor zero cantonada ou causa

ausente etc) O estruturalismo conscientemente ou natildeo celebra novos

achados de inspiraccedilatildeo estoica ou carrolliana [] (DELEUZE 2003 p 73-4

grifo nosso)

Ora natildeo eacute o elogio de tipo semelhante que veremos em muitos outros

filoacutesofos contemporacircneos Ao menos podemos dizer que eacute o caso

inclusive dito de modo muito semelhante de Derrida em Escritura e

diferenccedila especialmente no capiacutetulo ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo E a noccedilatildeo do

sentido como superfiacutecie certamente marca uma das viradas mais

conscientemente assumidas e feita jaacute no iniacutecio de a Loacutegica do sentido ou

seja na atualidade ou a partir daqueles achados o ldquoProfundo deixou de

ser um elogiordquo (Idem p 16) Eacute preciso pois se aproximar da filosofia da

literatura ou da arte da psicologia ou psicanaacutelise das teorias da linguagem

ou dos estruturalismos que natildeo simulam mais a profundidade e vivem dos

incorporais ou da superfiacutecie Jaacute antecipamos que a obra buscaraacute

justamente tornar mais explicito e de modo talvez mais consciente o que

a literatura produzida por Carroll e a filosofia produzida pelos Estoicos

podem nos inspirar mas voltemos ao que diziacuteamos

208 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Haacute outros dois tipos de produccedilatildeo que jaacute haviam aceitado se

embrulhar na investigaccedilatildeo do sentido associada agrave superfiacutecie Deleuze natildeo

procura em Nietzsche ldquoum profeta da reviravolta nem da superaccedilatildeordquo nem

em Freud ldquoum explorador da profundidade humanardquo pois

Se haacute um autor para o qual a morte de Deus a queda em altura do ideal

asceacutetico natildeo tem nenhuma importacircncia enquanto eacute compensada pelas falsas

profundidades do humano maacute consciecircncia e ressentimento eacute sem duacutevida

Nietzsche [] Natildeo procuramos em Freud um explorador da profundidade

humana e do sentido originaacuterio mas o prodigioso descobridor da maquinaria

do inconsciente[ e vale lembrar que o paradoxo eacute a potecircncia do inconsciente]5

por meio do qual o sentido eacute produzido sempre produzido em funccedilatildeo do natildeo-

senso [] O que haacute de burocraacutetico nestas maacutequinas fantasmas que satildeo os

povos e os poemas [] Basta que nos dissipemos um pouco que saibamos

estar na superfiacutecie que estendamos nossa pele como um tambor para que a

ldquogrande poliacuteticardquo comece [] Fazer circular a casa vazia e fazer falar as

singularidades pre-individuais e natildeo pessoais [faire parler las singulariteacutes preacute-

individuelles non personnelle] [que natildeo satildeo nem da ordem do geral nem da

ordem do individual nem pessoais nem universais] em suma produzir o

sentido eacute a tarefe de hoje (Idem p 75-6)

Nenhuma novidade quanto agrave menccedilatildeo a Nietzsche e Freud geste que

tambeacutem lembraraacute Derrida em ldquoLa diffeacuterancerdquo6 trata-se de autores

fundamentais para pensar filosofia contemporacircnea ao menos a produzida

no continente Mantermo-nos na superfiacutecie naquele algo que insiste em

subsistir deixar de elogiar o profundo compreender ao menos em termos

gerais o que pretendiam os estruturalistas bem como Nietzsche e Freud

fazer comeccedilar a grande poliacutetica (incluiriacuteamos tambeacutem aiacute a justiccedila) e natildeo

apenas relembrar ou comentar mas produzir o sentido satildeo portanto as

tarefas da filosofia contemporacircnea defendida por Deleuze em Loacutegica do

sentido Mas assim como ao seu modo os Estoicos natildeo realizaram tal

tarefa eacute preciso estar atento ao fato que para Deleuze tambeacutem Nietzsche

teria se desviado dela ou como ele mesmo nos dizia

5 Cf op cit p 82

6 Cf Margens da filosofia 1991 p 49

William de Siqueira Piauiacute | 209

Nietzsche esteve primeiramente entre estes [Boehme Schelling etc] disciacutepulo

de Schopenhauer no Nascimento da trageacutedia quando ele faz falar Dioniacutesio

sem fundo opondo-o agrave individuaccedilatildeo divina de Apolo e natildeo menos agrave pessoa

humana de Soacutecrates [] Assim a descoberta de Nietzsche estaacute alhures[ em

outro lugar em outra parte] quando tendo se livrado de Schopenhauer e de

Wagner explora um mundo de singularidades impessoais e preacute-

individuais [un monde de singulariteacutes impersonnelles et preacute-individuelles]

mundo que chama agora de dionisiacuteaco ou da vontade de potecircncia energia livre

e natildeo ligada [] Estranho discurso que devia renovar a filosofia e que

trata o sentido enfim natildeo como predicado [ou] como propriedade mas

como acontecimento [traite le sens enfin non pas comme preacutedicat comme

proprieacuteteacute mais comme eacuteveacutenement] [] Na sua descoberta Nietzsche entreviu

como em um sonho o meio de pisar a [superfiacutecie da] terra de roccedilaacute-la de

danccedilar e de trazer de volta agrave superfiacutecie o que restava dos monstros do fundo e

das figuras do ceacuteu Mas eacute verdade que ele foi tomado por uma ocupaccedilatildeo mais

profunda mais perigosa tambeacutem na sua descoberta ele viu um novo meio de

explorar o fundo [] correndo o risco de ser tragado por essa profundidade

(Idem p 110 grifo nosso)

Em sua avaliaccedilatildeo da filosofia nietzscheana embalado pela renovaccedilatildeo

da filosofia que ela sugeria Deleuze menciona uma espeacutecie de condiccedilatildeo da

tarefa fundamental de sua teoria do sentido ou seja aquele ldquoestranho

discursordquo deve nos conduzir a tratar ldquoo sentido enfim natildeo como

predicadordquo ou ldquocomo propriedade mas como acontecimentordquo para entatildeo

explorarmos ldquoum mundo de singularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo

inspiraccedilatildeo expliacutecita do Nietzsche de Nascimento da trageacutedia mas claro

tambeacutem que a noccedilatildeo freudiana de inconsciente e limite dado seu elemento

paradoxal limite do horizonte de saber (e talvez a grande poliacutetica e a

justiccedila tivessem justamente que assumir tal pressuposto) inclusive recusa

da profundidade das filosofias da intencionalidade satildeo fundamentais aqui

E vale repetir fonte inclusive da estranheza de seu discurso e que parece

ser a principal responsaacutevel pela distacircncia que separa ldquocontinentaisrdquo e

ldquoanaliacuteticosrdquo Nietzsche teria sonhado com o outro aspecto fundamental das

filosofias contemporacircneas que se embaralham com o problema do

significado e sentido o sentido natildeo deve ser tratado como predicado como

210 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

propriedade mas como acontecimento como eacuteveacutenement conceito

fundamental das filosofias e teorias da linguagem contemporacircneas

especialmente as continentais Tambeacutem eacute por causa deste aspecto que se

exigiraacute toda uma nova maneira de pensar a loacutegica do sentido que por isso

mesmo deveraacute ultrapassar aquelas trecircs relaccedilotildees distintas na proposiccedilatildeo

e seraacute especialmente associada agrave primeira a da designaccedilatildeo que Deleuze

formularaacute o problema mais geral de tal loacutegica

[] de que serviria elevarmo-nos da esfera do verdadeiro agrave do sentido se fosse

para encontrar entre o sentido e o natildeo-senso [le sens et non-sens] uma relaccedilatildeo

anaacuteloga agrave do verdadeiro e do falso () A loacutegica dos sentidos vecirc-se

necessariamente determinada a colocar entre sentido e o natildeo-senso um tipo

original de relaccedilatildeo intriacutenseca um modo de co-presenccedila [] (Idem p 71)

Muitos foram os autores que esbarraram neste problema ou seja o

de determinar um novo e original tipo de relaccedilatildeo que permitisse

diferenciar de uma vez por todas os problemas de significaccedilatildeo ou

relacionados diretamente ao verdadeiro e falso dos de sentido e que ao

menos em termo de designaccedilatildeo adotaram ao menos a postura de aceitar

sua complexidade e dificuldade nem perto da radicalidade de um Deleuze

evidentemente foi esse o caso de Bertrand Russell em Significaccedilatildeo e

verdade7 em que afrontou dentre outras a noccedilatildeo de Carnap de sentido-

significado seja como for a descoberta da necessidade de um novo e

original tipo de relaccedilatildeo mais proacutepria ao sentido uma outra dimensatildeo ou

relaccedilatildeo jaacute havia sido descoberta haacute muito tempo ou como lembrava

Deleuze

O sentido eacute a quarta dimensatildeo da proposiccedilatildeo [aleacutem de designaccedilatildeo

manifestaccedilatildeo e significaccedilatildeo] Os estoicos a descobriram com o acontecimento

o sentido eacute o expresso da proposiccedilatildeo este incorporal na superfiacutecie das coisas

entidade complexa irredutiacutevel [que natildeo pode ser simplificada separada do

natildeo-senso] acontecimento puro (eacuteveacutenement pur) que insiste ou subsiste na

proposiccedilatildeo (Idem p 20)

7 Cf tambeacutem DELEUZE 2003 [Loacutegica do sentido] p 18-9

William de Siqueira Piauiacute | 211

E tal descoberta se repetiu na histoacuteria no medievo pelos

nominalistas da escola de Ockham Gregoacuterio de Rimini (1300-1358) e

Nicolas de Autrecourt (1299-1369) e depois pela loacutegica dos objetos

inexistentes de Alexius Meinong (1853-1920) que foi duramente atacada

pelo mesmo Russell E tal dimensatildeo teria sido chamada pelo fenomenoacutelogo

Edmund Husserl (1859-1938) de ldquoexpressatildeordquo quanto a quem e ao que

Deleuze afirmava ldquoHusserl natildeo menos que Meinong reencontra as fontes

vivas de uma inspiraccedilatildeo estoicardquo (Idem p 21) Ateacute certo ponto afinado com

aquela boa nova aquela inspiraccedilatildeo contudo semelhantemente a

Nietzsche Husserl tambeacutem teria sido tragado pelas profundezas neste

caso natildeo soacute por natildeo ter compreendido os atributos como verbos-

acontecimentos e sim como predicados-conceitos (Idem p 100) mas por

ter pecado em sua interpretaccedilatildeo contra uma filosofia propriamente da

expressatildeo supostamente defensora das ldquosingularidades nocircmades

impessoais e preacute-individuaisrdquo (Idem p 113) daiacute que em pleno acordo com

aquela tarefa de uma loacutegica do sentido Deleuze afirmasse

[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida

em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e

sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de

Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como

veremos uma mudanccedila muito importante [] A ideia de singularidades

logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-

individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste

domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)

Como era de se esperar dado a menccedilatildeo ao conceito de mocircnada para

fazer avanccedilar a determinaccedilatildeo daquele domiacutenio e constituir uma nova

noccedilatildeo de tal campo Deleuze trataraacute em seguida na 16ordf seacuterie (a da gecircnese

estaacutetica ontoloacutegica) da Loacutegica do sentido da filosofia de Leibniz Com o

que dissemos ateacute aqui fica evidenciado o quatildeo central seraacute a reavaliaccedilatildeo

da filosofia leibniziana especialmente de seu conceito de mocircnada

individual tendo vista que seraacute justamente ele que permitiraacute a base da

212 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

hipoacutetese ou seja a estruturaccedilatildeo da ldquoideia de singularidades logo de anti-

generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-individuaisrdquo daquelas

ldquosingularidades nocircmades impessoais e preacute-individuaisrdquo isto eacute daquilo

que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do sentido de qualquer

modo a conclusatildeo de tal seacuterie seraacute

Na obra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduo a mocircnada que descobre

o sentido e jaacute presente o natildeo-senso remontando agrave superfiacutecie a partir de um

mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que se envolve nela e lhe impotildee a

dura lei das misturas [jaacute] Silvia e Bruno seriam antes como as pessoas lsquovagasrsquo

que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo

comum a vaacuterios mundos mundo dos homens e mundo das fadas (Idem p

121)

O que novamente atesta o papel central que o conceito leibiziano de

mocircnada desempenha para toda a Loacutegica do sentido inclusive pela

apropriaccedilatildeo que ela faz da obra de Carroll ou seja o conteuacutedo da 16ordf seacuterie

deveraacute servir para voltar a compreender parte daquela boa nova agora

associada mais propriamente agraves obras Aventuras de Alice no paiacutes das

maravilhes Atraveacutes do espelho e o que Alice viu laacute e As aventuras de

Silvia e Bruno de Lewis Carroll que junto com a teoria dos incorporais

dos Estoicos satildeo os grandes temas de a Loacutegica do sentido Assim o que

trataremos a seguir eacute da reconstituiccedilatildeo deleuzeana do conceito de mocircnada

individual

II Parte ndash Interpretaccedilatildeo Deleuziana da Filosofia Leibniziana uma

Ficccedilatildeo Falsa

Como noacutes indicamos eacute jaacute a partir de 1968 que o filoacutesofo francecircs Gilles

Deleuze demonstra seu apreccedilo pela filosofia leibniziana como fica

evidente em alguns momentos da obra Diferenccedila e repeticcedilatildeo mas na

obra que escreve um ano depois Loacutegica do sentido tal seraacute sua

importacircncia que ela se tornaraacute o tema principal de toda uma seacuterie a 16ordf

seacuterie justamente um dos momentos mais cruciais de seu romance ou

William de Siqueira Piauiacute | 213

histoacuteria embrulhada momento em que veremos Deleuze caracterizar as

Alices e Silvia e Bruno de Carroll a partir do suposto8 conceito leibniziano

de pessoa vaga e do de mocircnada individual conceitos que ofereceriam as

bases para pensar aquilo que ele chamou de gecircnese estaacutetica ontoloacutegica de

um certo campo transcendental Satildeo certamente as consideraccedilotildees feitas

aqui que forneceratildeo a direccedilatildeo principal das leituras que Deleuze faraacute de

Leibniz nos trecircs cursos que deu na deacutecada de oitenta (1980 86 e 87) aulas

que receberatildeo o tiacutetulo de Exasperaccedilatildeo da filosofia e que com algumas

poucas mudanccedilas substanciais teratildeo como resultado a obra A dobra

Leibniz e o barroco publicada em 1988 Assim o que pretendemos eacute

problematizar a compreensatildeo dos conceitos leibnizianos que serviriam

para caracterizar os personagens de Carroll tentando apontar alguns dos

problemas da leitura de Deleuze especialmente se levarmos em conta

dentre outros textos a carta que Leibniz escreve a Molanus em 1679 bem

antes do Discurso de metafiacutesica este nosso principal ponto de partida e

o que faz a base do capitulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou diversidaderdquo

dos Novos ensaios (II XXVII) posterior ao Discurso e anterior tanto agrave

Teodiceia quanto agrave Monadologia Com isso esperamos lanccedilar luz sobre

a noccedilatildeo de fato leibniziana de sujeito ou indiviacuteduo e as bases do

deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo deleuziana Vejamos entatildeo como a

filosofia de Leibniz aparece na obra de 1969

Como jaacute o dissemos em Loacutegica do sentido tudo parece comeccedilar

com a criacutetica a Husserl em sua 14ordf seacuterie Deleuze considera que

[] o problema natildeo avanccedilou [o da determinaccedilatildeo de certo domiacutenio] na medida

em que Husserl inscreve no campo transcendental centros de individuaccedilatildeo e

sistemas individuais mocircnadas e pontos de vista vaacuterios Eus agrave maneira de

Leibniz antes que uma forma de Eu agrave maneira kantiana Haacute contudo como

veremos uma mudanccedila muito importante9 [] A ideia de singularidades

8 Dizemos ldquosupostordquo tendo em vista que em nossa opiniatildeo Deleuze forccedila demais a oposiccedilatildeo entre o que Leibniz afirmou na correspondecircncia que travou com Arnauld especialmente a nota agrave carta de 13 de maio de 1686 e teria querido dizer nos paraacutegrafos finais da Teodiceia especialmente o sect414 Cf DELEUZE 2003 p 118 [nota 4]

9 A expressatildeo ldquoHaacute contudo como veremos uma mudanccedila muito importanterdquo parece apontar para uma interpretaccedilatildeo diferente da de Husserl e que seraacute parte do motivo de retornar agrave filosofia leibniziana nas seacuteries seguintes diferenccedila

214 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

logo de anti-generalidades que satildeo entretanto impessoais e preacute-

individuais deve agora nos servir de hipoacutetese para a determinaccedilatildeo deste

domiacutenio e de sua potencia geneacutetica (Idem p 102 grifo nosso)

Segundo Deleuze Husserl teria construiacutedo um campo transcendental

sem atentar para as condiccedilotildees impostas por Sartre em seu famoso artigo de

1937 intitulado ldquoA transcendecircncia do Egordquo e natildeo teria vislumbrado a ideia

de ldquosingularidades impessoais e preacute-individuaisrdquo que jaacute estariam

suficientemente desenvolvidas na filosofia de Leibniz10 em uma palavra

Husserl teria se mantido kantiano demais11 talvez inclusive por natildeo ter

compreendido uma suposta precedecircncia do mundo com relaccedilatildeo agrave mocircnada

expressiva e a arbitrariedade da aplicaccedilatildeo irrestrita do princiacutepio de inclusatildeo

do predicado no sujeito dito de outra forma por Husserl natildeo ter visto em

Leibniz uma loacutegica do acontecimento ou topologia de superfiacutecie que

permitiria a ldquodeterminaccedilatildeo daquele domiacutenio e de sua potecircncia geneacuteticardquo e

ainda de outra forma por natildeo ter visto nos textos de Leibniz os elementos

para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese segundo a qual as ldquosingularidadesrdquo ou ldquoanti-

generalidadesrdquo devem ser consideradas ldquoimpessoais e preacute-individuaisrdquo

Como era de se esperar dada a associaccedilatildeo ao conceito de mocircnada Deleuze

trataraacute na 16ordf seacuterie (ldquoDa gecircnese estaacutetica ontoloacutegicardquo) da Loacutegica do sentido

da filosofia de Leibniz e como esta permitiria compreender a constituiccedilatildeo de

tal campo e tal ideia e que se tornaraacute a base de sua argumentaccedilatildeo em A

dobra ndash o que fica evidente especialmente em seu capiacutetulo 5 trata-se aqui

de levar adiante aquilo que seria a proacutepria possibilidade de uma loacutegica do

sentido ou do acontecimento12

Entatildeo nos voltando para a conclusatildeo da 16ordf seacuterie e parte da sua

hipoacutetese geral A primeira pergunta que devemos fazer eacute Qual eacute o

que causou muita estranheza a muitos interpretes de Leibniz Gonzalo deixa claro em seu artigo jaacute mencionado os termos em que se deu a polecircmica entre Fremont e Deleuze

10 Certamente o que permitiraacute a Deleuze terminar A dobra dizendo que permanecemos leibnizianos (DELEUZE 1991 p 208) posicionamento filosoacutefico com o qual esse sim Alain Badiou se potildee em desacordo ao defender a ldquooutra escolha ontoloacutegicardquo (BADIOU 2015 p 39-44)

11 DELEUZE 2003 p 101

12 Idem todo o final da 14ordf seacuterie

William de Siqueira Piauiacute | 215

imperativo do uso das obras de Carroll que marcaria as nuacutepcias da

linguagem e do inconsciente A resposta eacute a contestaccedilatildeo da identidade

pessoal (Idem p 3) Pressuposto que permitia a circulaccedilatildeo da ldquocasa vaziardquo

e o falar das ldquosingularidades pre-individuais e natildeo pessoaisrdquo ldquoque natildeo satildeo

nem da ordem do geral nem da ordem do individual nem pessoais nem

universaisrdquo ldquoem sumardquo o que possibilitaria a produccedilatildeo do sentido Se

deixar arrastar pelos verbos de puro devir natildeo deixar que a noccedilatildeo de

atributo verbal seja confundida e assimilada pela de predicado da loacutegica

formal (claacutessica-aristoteacutelica) dai que evidente e novamente se queremos

tomaacute-lo como ponto de partida tenha de ser arbitraacuterio na filosofia de

Leibniz a inerecircncia do predicado no sujeito (Idem p 115) o que deve levar

agravequeles conceitos de pessoa ou indiviacuteduo que permitiriam comparar Alice

com uma mocircnada e Silvia e Bruno com pessoas vagas Mas seraacute mesmo

arbitraacuterio

Assim e para o que nos interessa em Loacutegica do sentido os pontos

principais e o centro da interpretaccedilatildeo de Deleuze da filosofia leibniziana

estariam na seguinte afirmaccedilatildeo

Efetuar-se eacute tambeacutem ser expresso Leibniz sustenta uma tese ceacutelebre cada

mocircnada individual exprime o mundo Mas esta tese natildeo eacute suficientemente

compreendida enquanto a interpretamos como significando a inerecircncia

dos predicados na mocircnada expressiva Pois eacute bem verdade que o mundo

expresso natildeo existe fora das mocircnadas que o exprimem logo existe nas

mocircnadas como a seacuterie dos predicados que lhe satildeo inerentes Natildeo eacute menos

verdade entretanto que Deus cria o mundo antes que as mocircnadas (Dieu

creacutee le monde plutocirct que les monades)13 e [tambeacutem eacute verdade] que o expresso

13 Outra traduccedilatildeo possiacutevel dessa afirmaccedilatildeo e que afasta o problema da anterioridade temporal seria ldquoDeus cria o mundo e natildeo (plutocirct que) as mocircnadasrdquo A expressatildeo francesa plutocirct nos arrastaria inclusive para o que parece ser o contraacuterio da anterior ldquoDeus cria o mundo sobretudo (plutocirct) as mocircnadasrdquo Nossa interpretaccedilatildeo vai se basear na afirmaccedilatildeo e nota correspondente o que tambeacutem consideramos ser uma intensificaccedilatildeo feitas em A dobra Leibniz e o barroco ldquoEstas natildeo satildeo as generalidades mas acontecimentos gotas de acontecimento Nem por isso deixam [os acontecimentos as gotas de acontecimento] de ser preacute-individuais uma vez que o mundo eacute virtualmente primeiro em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que o expressam (Deus criou natildeo Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou) O indiviacuteduo nesse sentido eacute atualizaccedilatildeo de singularidades preacute-individuais [Elles nrsquoen sont pas moins preacute-individuelles dans la mesure ougrave le monde est virtuellement premier par rapport aux individus qui lrsquoexpriment (Dieu a creacuteeacute non pas Adam peacutecheur mais le monde ougrave Adam a peacutecheacute) Lrsquoindividu en ce sens est lrsquoactualisation de singulariteacutes preacute-individuelles et nrsquoimplique aucune speacutecification preacutealable Il faut mecircme dire le contraire et constater que la speacutecification suppose elle-mecircme lrsquoindividuation]rdquo (DELEUZE 1991 p 101) Podemos mesmo falar em

216 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

natildeo se confunde com sua expressatildeo mas [partindo de um ponto de vista

estoico] insiste ou subsiste () Eacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos

predicados na filosofia de Leibniz Pois [III] a inerecircncia de predicados na

mocircnada expressiva supotildee [II] primeiro a compossibilidade do mundo

expresso e esta por sua vez supotildee [I] a distribuiccedilatildeo de puras

singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que

pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a]

uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdade Leibniz foi muito longe nesta

primeira etapa da gecircnese [ontoloacutegica de um certo campo transcendental

impessoal e preacute-individual ou das singularidades entendidas como

verdadeiros acontecimentos transcendentais14] o indiviacuteduo constituiacutedo

como centro de envolvimento como envolvendo singularidades em um

mundo e sobre seu corpo (Idem p 114-5 grifo nosso)15

Como jaacute indicamos ao falar da associaccedilatildeo de Husserl com os achados

estoicos para aleacutem da noccedilatildeo de sujeito indiviacuteduo ou pessoa o outro tema

cariacutessimo agrave Loacutegica do sentido e que tambeacutem deve ter contribuiacutedo para a

escolha da filosofia leibniziana eacute o de ldquoexpressatildeordquo tema que leva agrave

pergunta Como as mocircnadas expressariam o mundo e qual a ordem de

precedecircncia ou preferecircncia seja com relaccedilatildeo a Deus ao mundo ou aos

corpos De qualquer modo com relaccedilatildeo agrave polecircmica entre ambos natildeo eacute

preciso muito para compreender a insistecircncia de Fremoacutent na reconstruccedilatildeo

anterioridade virtual do mundo em Leibniz Seria isso suficiente para aceitarmos o deslocamento proposto por Deleuze desde a Loacutegica do sentido

14 Cf a p 105 da mesma obra

15 ldquoSrsquoeffectuer crsquoest aussi ecirctre exprimeacute Leibniz soutient une thegravese ceacutelegravebre chaque monade individuelle exprime le monde Mais cette thegravese nrsquoest pas suffisamment comprise tant qursquoon lrsquointerpregravete comme signifiant lrsquoinheacuterence des predicats dans la monade expressive Car il est bien vrai que le monde exprimeacute nrsquoexiste pas hors des monades qui

lrsquoexpriment donc existe dans les monades comme la seacuterie des preacutedicats qui leur sont inheacuterents Il nrsquoest pas moins vrai cependant que Dieu creacutee le monde plutocirct que les monades et que lrsquoexprimeacute ne se confond pas avec son expression mais insiste ou subsiste [nota 1] [] Il est arbitraire de privileacutegier lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la philosophie de Leibniz Car lrsquoinheacuterence des preacutedicats dans la monade expressive suppose drsquoabord la compossibiliteacute du monde exprimeacute et celle-ci agrave son tour suppose la distribution de pures singulariteacutes drsquoapregraves des regravegles de convergence et de divergence qui appartiennent encore agrave une logique du sens et de lrsquoeacuteveacutenement non pas agrave une logique de la preacutedicacion et de la veacuteriteacute Leibniz a eacuteteacute tregraves loin dans cette premiegravere eacutetape de la genegravese lrsquoindividu constitueacute comme centre drsquoenveloppement comme enveloppant des singulariteacutes dans un monde et sur son corps et Adammiddotnon peacutecheur deacutecoule de lrsquoincompossibiliteacute des mondes ougrave Adam pegraveche et ne pegraveche pas Dans chaque monde les monades individuelles expriment toutes les singulariteacutes de ce monde - une infiniteacute - comme dans un murmure ou un eacutevanouissement mais chacune nrsquoenveloppe ou nrsquoexprime laquoclairementraquo qursquoun certain nombre de singulariteacutes celles au voisinage desquelles elle se constitue et qui se combinent avec son corpsrdquo (DELEUZE 1969 p 134-5) Ao que segue o comentaacuterio da nota 1 ldquoTema constante das cartas de Leibniz a Arnauld Deus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecou (Theme constant des lettres de Leibniz agrave Arnauld Dieu a creacuteeacute non pas exactament Adam-pecheur mais le monde ouacute Adam peacutecheacute)rdquo

William de Siqueira Piauiacute | 217

dos conceitos leibnizianos de Deus e de indiviacuteduo fica evidente com a

citaccedilatildeo feita acima que esses deveriam fazer a base da argumentaccedilatildeo do

proacuteprio Deleuze que muitas vezes prefere recorrer aos textos esparsos e

de difiacutecil interpretaccedilatildeo em que Leibniz fala de compossibilidade ou

incompossibilidade da universalidade ou generalidade e singularidade ou

especificaccedilatildeo das regras de convergecircncia ou divergecircncia e mesmo do

caacutelculo diferencial e integral mas natildeo tanto aos em que o alematildeo fala

propriamente dos conceitos de substacircncia particular ou mocircnada

individual Todavia natildeo eacute nossa intenccedilatildeo remontar tal embate Assim eacute

nossa pretensatildeo problematizar ainda uma vez a partir dos textos onde

Leibniz de fato trata deles inclusive os associando os assuntos ldquoinerecircncia

do predicado no sujeitordquo ldquoDeusrdquo ldquomocircnada individualrdquo ou ldquosubstacircncia

particularrdquo e ldquoacontecimentordquo tentando remontar o que do nosso ponto

de vista parece ser um dos principais problemas da leitura deleuziana

certa cadeia argumentativa e associaccedilatildeo inevitaacutevel de temas presentes nos

textos leibnizianos

Dito isso em primeiro lugar mesmo que acreditemos que a leitura

que faz Russell da filosofia de Leibniz eacute purista demais com relaccedilatildeo agrave sua

vinculaccedilatildeo agrave loacutegica aristoteacutelica se eacute arbitraacuterio a inerecircncia do predicado no

sujeito com relaccedilatildeo agrave mocircnada individual expressiva ndash que devemos fazer

preceder da noccedilatildeo de uma substacircncia individual16 ndash Deleuze deveria ter se

explicado melhor quanto agrave afirmaccedilatildeo feita no sect8 do Discurso de

metafiacutesica que trata justamente do conceito de Deus e de ldquoem que

consiste uma substacircncia individualrdquo a saber

Ora eacute bem constante que toda predicaccedilatildeo tem algum fundamento verdadeiro

na natureza da coisa e quando uma proposiccedilatildeo natildeo eacute idecircntica isto eacute quando

o predicado natildeo estaacute compreendido expressamente no sujeito eacute preciso que

esteja compreendido nele virtualmente A isto chamam os filoacutesofos in-esse

16 Com relaccedilatildeo ao modo como compreendemos a associaccedilatildeo do conceito de mocircnada humana com o de substacircncia individual indicamos nossos artigos ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo e ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e Infinito em Leibnizrdquo seja como for eacute no sentido do conceito de substacircncia individual ou noccedilatildeo de indiviacuteduo singular ou noccedilatildeo individual completa ou mesmo de pessoa possiacutevel que Deleuze entende o conceito de mocircnada individual ou humana

218 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

dizendo estar o predicado no sujeito Eacute preciso pois o termo do sujeito

conter sempre o do predicado de tal forma que quem entender

perfeitamente a noccedilatildeo do sujeito julgue tambeacutem que o predicado lhe

pertencerdquo (LEIBNIZ 1983 p 124 grifo nosso)

Afirmaccedilatildeo que fundamentaraacute as seguintes consequecircncias

Isto posto podemos dizer que a natureza de uma substacircncia individual ou

de um ser complexo consiste em ter uma noccedilatildeo tatildeo perfeita que seja

suficiente para deduzir de si todos os predicados do sujeito a que se

atribui estaacute noccedilatildeo [] [Daiacute que] Deus vendo a noccedilatildeo individual ou

ecceidade de Alexandre nela vecirc ao mesmo tempo o fundamento e a razatildeo

de todos os predicados que verdadeiramente dele se podem afirmar []

(Idem grifo nosso)

Apesar do deslocamento quanto agrave noccedilatildeo de criaccedilatildeo antes ou depois

de preferecircncia ou natildeo com relaccedilatildeo ao mundo ateacute aqui nada aponta para

uma restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse a natildeo ser a menccedilatildeo ao virtual

(virtuellement) ou seja nada aponta para a restriccedilatildeo do princiacutepio de

inerecircncia do predicado no sujeito especialmente quando se trata de pensar

a natureza de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo individual

completa ou perfeita noccedilatildeo individual ou ecceidade bem como nada

parece apontar para algo que permitisse concluir que ldquoDeus criou natildeo

exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo talvez no

sentido que a qualidade o adjetivo ldquopecadorrdquo o predicado natildeo seria

previa e propriamente ldquoinerenterdquo ao sujeito Adatildeo Restaria pois

compreender o que seria essa visatildeo sem precedecircncia ou preferecircncias e ldquoao

mesmo tempordquo da noccedilatildeo individual ou ecceidade O que quer dizer este

ldquoao mesmo tempordquo esta simultaneidade e como compreender este

fundamento e razatildeo de todos os predicados que verdadeiramente se

podem afirmar de uma substacircncia individual ou particular noccedilatildeo

individual completa ou perfeita de um ser complexo (talvez o misteacuterio

mencionado em A dobra) Mas natildeo resta duacutevida que a verdade entra em

jogo aqui jaacute que se trata tambeacutem do fundamento de ldquotoda predicaccedilatildeordquo

por isso mesmo podemos colocar o problema no mesmo registro da

William de Siqueira Piauiacute | 219

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld17 quando o alematildeo afirma jaacute

na carta de 14 de julho de 1686 que semper enim notio praedicati inest

subjecto in propositione vera18 Nesse sentido a questatildeo seria perguntar se

o conhecimento que Deus tem de uma substacircncia individual noccedilatildeo

individual completa ou perfeita um noccedilatildeo individual ou ecceidade eacute certo

ndash infaliacutevel ndash a ponto de dizermos que as proposiccedilotildees formadas com relaccedilatildeo

a elas tecircm de ser ditas verdadeiras ou falsas mas claro que para Leibniz o

conhecimento de Deus eacute infaliacutevel e mesmo que em termos de predicaccedilatildeo

tiveacutessemos que levar a anaacutelise de tais noccedilotildees ao infinito temos de lembrar

que aquele conhecimento tambeacutem compreende o infinito Restaria ainda

perguntar se tal conhecimento se prenderia a uma caracteriacutestica

semelhante a um atributo verbal no sentido deleuzeano ou a um predicado

no sentido claacutessico De qualquer modo no sect31 do Discurso de metafiacutesica

que trata justamente da ldquorazatildeo que fez Deus chamar agrave existecircncia tal pessoa

possiacutevelrdquo tal substacircncia individual noccedilatildeo individual completa ou perfeita

noccedilatildeo individual ou ecceidade possiacuteveis e dos acontecimentos relacionados

a tais pessoas possiacuteveis ao menos parte da questatildeo eacute resolvida com a

seguinte consequecircncia geral

[] creio mais exato e seguro dizer segundo nossos princiacutepios e como jaacute notei

ser forccediloso haver entre os entes possiacuteveis a pessoa de Pedro ou Joatildeo cuja

noccedilatildeo ou ideia conteacutem toda esta seacuterie de graccedilas ordinaacuterias e todo o resto

destes acontecimentos (eacuteveacutenements) com suas circunstacircncias e que entre

uma infinidade de outras pessoas igualmente possiacuteveis agradou a Deus

escolhecirc-la para existir atualmente (actuellement) (Idem p 147 grifo nosso)19

17 Insistindo pois naquele lugar onde esse tema teria sido tatildeo debatido cf DELEUZE 2003 [nota 1] p 114

18 ldquoDe fato [ou manifestamente] na proposiccedilatildeo verdadeira sempre a noccedilatildeo do predicado lsquoinerersquo ao sujeitordquo

19 De pleno acordo com o que Leibniz defende na nota agrave carta de Arnauld com relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma noccedilatildeo vaga de sujeito ldquo[primeira resposta] que minha suposiccedilatildeo natildeo eacute simplesmente que Deus tenha querido criar um Adatildeo cuja noccedilatildeo seja vaga e incompleta mas que Deus quis criar um tal Adatildeo suficientemente determinado para um indiviacuteduo Esta noccedilatildeo individual completa encerra [ou envolve] em minha opiniatildeo relaccedilotildees com toda a serie das coisas o qual deve parecer tanto mais razoaacutevel quanto que o Sr Arnauld me concede aqui o enlace que haacute entre as resoluccedilotildees de Deus a saber que Deus ao resolver-se a criar determinado Adatildeo tem em conta todas as resoluccedilotildees que toma sobre toda a seria do universo agrave maneira de uma pessoa prudente que ao tomar uma resoluccedilatildeo com respeito a um propoacutesito tem em vista em sua totalidade dito propoacutesito jaacute que pode decidir-se melhor quando se resolve sobre todas as partes (que ma supposition nrsquoest paacutes simplement que Dieu a voulu creacuteer un Adam dont la notion soit vague et incomplegravete mais que Dieu a voulu creacuteer un tal Adam assez deacutetermineacute agrave un individu Et cette notion individuelle complete selon moi enveloppe decircs rapport agrave toute la suite des choses ce qui doit paraicirctre

220 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Fica evidente inclusive que mesmo quanto aos acontecimentos

(eacuteveacutenements) todos jaacute com suas circunstacircncias devem ser considerados

incluiacutedos nas ideias das pessoas possiacuteveis ou nas noccedilotildees completas das

pessoas possiacuteveis ou seja nas noccedilotildees das substacircncias individuais ou

particulares noccedilotildees individuais ou ecceidades possiacuteveis Em que sentido

portanto interpretar a afirmaccedilatildeo ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo

pecador mas o mundo em que Adatildeo pecourdquo Talvez ou no sentido que haacute

uma ruptura no desenvolvimento da filosofia de Leibniz entre o conceito

de substacircncia individual e mocircnada como querem muitos comentadores

ou concedendo que em Leibniz haveria a afirmaccedilatildeo do conceito de pessoa

vaga o que natildeo vemos como corroborar tendo em vista o que eacute afirmado

na nota agrave carta que mencionamos em nota mais acima mas poderia ser

um problema com relaccedilatildeo agrave hipoacutetese interpretativa que o sect414 da

Teodiceia exige uma ldquounidade objetividade muito especialrdquo para ser

compreendido e neste caso voltariacuteamos a uma saiacuteda semelhante agrave

daqueles comentadores Mas se nos mantemos na eacutepoca do Discurso

certamente podemos dizer que aquela consequecircncia seraacute seguida da

explicaccedilatildeo que parte dos princiacutepios fundamentais que guiam a

argumentaccedilatildeo de Leibniz satildeo 1) o da perfeiccedilatildeo ou completude das

operaccedilotildees de Deus e 2) o da noccedilatildeo individual completa ou perfeita (uma

noccedilatildeo natildeo vaga e natildeo incompleta) que encerra in-esse todos os

acontecimentos com todas as suas circunstacircncias Ateacute este momento o do

Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld

portanto nada parece apontar para o acontecimento ou gota de

acontecimento no sentido deleuziano mesmo que o revolucionaacuterio artigo

drsquoautant plus raisonnable que M Arnauld mrsquoaccorde ici la liaison qursquoil y a entre les reacutesolutions de Dieu savoir que Dieu prenant la reacutesolutions de creacuteer un tel Adam a eacutegard agrave toutes lecircs reacutesolutions qursquoil prend touchand toute la suiacutete de lrsquouniverse agrave peu pregraves comme une persone sage qui prend une reacutesolutions agrave lrsquoegard drsquoune partie de son dessein lrsquoa tout entier em vue et se reacutesoudra drsquoautant mieux si elle pourra se reacutesoudre drsquoautant mieux si elle pourrra se resoudre sur toutes lecircs parties agrave la fois)rdquo (LEIBNIZ 1900 p 182) Cf tambeacutem DELEUZE 2003 p 118 [e tambeacutem a nota 4] Vale lembrar que a questatildeo da escolha entre uma infinidade de pessoas possiacuteveis leva o problema do conhecimento do infinito natildeo mais para uma anaacutelise infinita de uma noccedilatildeo e sim para a de uma infinidade de noccedilotildees uma multidatildeo ou conjunto infinitos nesse sentido agrave de compossibilidade e incompossibilidade quanto ao que pensamos sobre a ligaccedilatildeo desse detalhe com o labirinto da liberdade gostariacuteamos de indicar novamente nosso artigo ldquoNoccedilatildeo completa de uma substacircncia individual e infinito em Leibnizrdquo

William de Siqueira Piauiacute | 221

sobre ldquoUm novo meacutetodo para os maacuteximos e miacutenimos assim como para as

tangentes que natildeo para ante quantidades fracionaacuterias ou irracionais e eacute

um gecircnero singular de caacutelculo para estes problemasrdquo jaacute esteja pronto

comprovadamente desde 1684 Na verdade cremos que a melhor

estrateacutegia para pensar uma topologia da superfiacutecie em Leibniz a partir de

1684 seria reconstituir sua noccedilatildeo de funccedilatildeo e se voltar para a sua

dinacircmica20 mas se distanciando de sua noccedilatildeo de mocircnada humana e

afirmando inclusive diferenccedilas importantes entre o conceito de substacircncia

individual do Discurso e o de mocircnada na Monadologia

De qualquer modo e em sentido contraacuterio agora a noccedilatildeo de pessoa

defendida no Discurso parece ser um desenvolvimento da de pessoa

espiritual que Leibniz defendia jaacute na carta a Molanus de 167921 justamente

contra a moral Estoica ndash o que deveria ter chamado a atenccedilatildeo do jovem

Deleuze ndash e a de Descartes e natildeo eacute diferente da utilizada na

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld portanto ambas as seacuteries de

cartas estariam em pleno acordo com o Discurso Mais que isso do nosso

ponto de vista trava-se desde a carta a Molanus daquilo que permitiraacute

compreender a peculiaridade e novidade do fatum christianum do iniacutecio

da Teodiceia novamente contra o fatum stoiumlcum vale lembrar Aleacutem

disso a noccedilatildeo individual completa ou perfeita eacute reafirmada nos Novos

ensaios justamente no capiacutetulo de tiacutetulo ldquoO que eacute identidade ou

diversidaderdquo ndash capiacutetulo curiosamente natildeo analisado por Deleuze seja em

Loacutegica do sentido seja em A dobra ndash onde jaacute aparece o conceito de

mocircnada que a partir dali assimilaraacute grande parte das caracteriacutesticas do

conceito de noccedilatildeo individual completa ou perfeita capiacutetulo que deveria ter

sido interpretado por Deleuze ou ao menos mencionado dado que tanto

em A dobra e mais ainda em Loacutegica do sentido se tratava do problema

da identidade pessoal Assim ateacute por conta da boa nova que representaria

a obra carrolliana quanto agrave dissoluccedilatildeo da identidade pessoal nos parece

20 Quanto ao que pensamos sobre o conceito leibniziano de funccedilatildeo associado ao de continuidade e histoacuteria gostariacuteamos de indicar nosso artigo ldquoLeibniz e Darwin Histoacuteria Religiatildeo e Biologiardquo

21 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e o incomparaacutevel manual de Epicteto a propoacutesito da criacutetica agrave arte da paciecircncia de Descartesrdquo

222 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

que teria faltado um agrupamento mais cuidadoso dos textos a partir do

tema geral da noccedilatildeo individual completa ou perfeita De qualquer modo

ateacute esse momento o do Discurso ou em torno dos Novos ensaios e com

relaccedilatildeo seja ao conceito de mocircnada humana individual seja o de noccedilatildeo

individual completa natildeo vemos a utilizaccedilatildeo dos avanccedilos alcanccedilados com o

artigo de 1684 ou que nos obrigue a leitura do texto ldquoSobre o meacutetodo da

universalidaderdquo de conforme Couturat o mais tardar 167422 o que parece

deixar sem fundamento o deslocamento exigido por Deleuze ao menos em

a Loacutegica do sentido A partir de quais textos que tratem propriamente do

problema do sujeito indiviacuteduo e mocircnada humana com as associaccedilotildees que

mencionamos acima fundamentariacuteamos aquela exigecircncia de recusarmos

o princiacutepio inesse e a de estarmos obrigados a apelar para as regras de

divergecircncia e convergecircncia ou para outro tipo de singularidade

Arriscariacuteamos dizer que por conta do todo da obra apenas os sect6 que

menciona a noccedilatildeo de funccedilatildeo e sect17 a sect22 que trabalham o conceito de

forccedila e causalidade final do Discurso poderiam fornecer algum

fundamento para tal deslocamento mas todo o resto da obra seria prova

suficiente que a adoccedilatildeo de tais regras em nada invalida o princiacutepio inesse

principalmente se as questotildees tiverem a ver com a tentativa de pensar a

noccedilatildeo completa de indiviacuteduo ou aquele conceito de mocircnada humana

defendido nos Novos ensaios e mesmo os conceitos de acontecimento e

suas circunstacircncias ou o conteuacutedo do intelecto divino23

Dito assim voltando ainda uma vez ao Discurso de metafiacutesica o

sect14 que trata das perspectivas do universo que Deus decide criar e que

corresponderiam ao que acontece agraves substacircncias individuais ndash talvez

daquilo que sem nenhuma menccedilatildeo expliacutecita de Leibniz permitiria falar

da aplicaccedilatildeo das regras de convergecircncia e divergecircncia ou ao novo meacutetodo

para os maacuteximos e miacutenimos ndash natildeo deixa duacutevidas quanto agrave noccedilatildeo de

22 Anterior agrave carta a Molanus portanto

23 Vale lembrar o tiacutetulo que recebeu o sect6 do Discurso ldquoDeus nada faz fora de ordem e nem eacute possiacutevel forjar acontecimentos (eacuteveacutenements) que natildeo sejam regularesrdquo Neste caso os outros paraacutegrafos que mencionamos encaminham a pergunta que talvez impediria aquele deslocamento Com relaccedilatildeo ao conteuacutedo do intelecto divino o que faz o fundamento ou substacircncia da continuidade da mudanccedila Problema que no nosso entender eacute o principal que aparece jaacute desde o iniacutecio da Monadologia cf sect8 e que exige a noccedilatildeo de mocircnada individual fechada

William de Siqueira Piauiacute | 223

acontecimento e emprego irrestrito do princiacutepio da inclusatildeo do predicado

no sujeito com relaccedilatildeo agraves ideias de pessoas ou noccedilotildees completas ali

Leibniz afirmava

De certo modo e no bom sentido embora afastado do usual poder-se-aacute dizer

que nunca uma substacircncia particular atua (agit) sobre uma outra substacircncia

particular e tampouco padece se os eventos24 de cada um satildeo considerados

apenas como consequecircncia de sua simples ideia ou noccedilatildeo completa pois

esta ideia [ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular] encerra jaacute

todos os predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime

(exprime) todo o universo Com efeito nada pode acontecer-nos (arriver)

aleacutem de pensamentos e percepccedilotildees e todos os nossos futuros pensamentos e

percepccedilotildees natildeo passam de consequecircncias embora contingentes

(contingentes) dos nossos pensamentos e percepccedilotildees anteriores de tal modo

que se eu fosse capaz de considerar distintamente tudo quanto nesta hora

me acontece ou aparece nessa percepccedilatildeo poderia ver tudo quanto me

aconteceraacute e apareceraacute sempre o que natildeo falharia e aconteceria da mesma

maneira embora tudo quanto existisse fora de mim fosse destruiacutedo desde que

restasse Deus e eu (LEIBNIZ 1983 p 129-30)

A ideia ou noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular encerra jaacute

todos os predicados ou acontecimentos e exprime todo o universo E

exprime jaacute enquanto ideia ou noccedilatildeo completa todo o universo Claro que

um grande problema eacute compreender aquela contingecircncia mas natildeo no

esqueccedilamos da intensificaccedilatildeo que vem a seguir ldquodesde que restasse

apenas eu e Deusrdquo Apesar da necessidade de problematizar quatildeo longe

vai a impossibilidade de distinccedilatildeo completa dos nossos pensamentos e

percepccedilotildees certamente associada agrave necessidade de uma anaacutelise infinita

para a compreensatildeo total ou perfeita de uma noccedilatildeo individual o que pode

apontar para aquela contingecircncia em nenhum momento da Carta a

Molanus do Discurso de metafiacutesica e da Correspondecircncia de Leibniz

e de Anauld vimos Leibniz afirmar a precedecircncia ou preferecircncia do

mundo e mesmo dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees de pessoas

24 Aqui podemos ter um problema de traduccedilatildeo de fato soacute mais agrave frente surgiraacute no original francecircs a palavra lsquoeventorsquo ou lsquoacontecimentorsquo ou seja eacuteveacutenement

224 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

especialmente no sentido que haveria singularidades que precederiam as

individualidades o que justificaria a necessidade de recorrermos agraves suas

noccedilotildees de compossibilidade e incompossibilidade ou agraves regras de

convergecircncia e de divergecircncia Parece-nos que a afirmaccedilatildeo ldquoesta ideiardquo ou

noccedilatildeo completa de uma substacircncia particular ldquoencerra jaacute todos os

predicados (preacutedicats) ou acontecimentos (eacuteveacutenement) e exprime

(exprime) todo o universordquo vai justamente no sentido contraacuterio ao

pretendido por Deleuze De qualquer modo o problema da significaccedilatildeo do

conceito de expressatildeo seu campo semacircntico parece nos obrigar a passar

para a regiatildeo dos possiacuteveis e vai mais no sentido das noccedilotildees completas

para o universo do que o contraacuterio Assim eacute preciso atentar para o fato

que ao menos aqui ldquopredicadordquo ldquoacontecimentordquo e ldquoexpressatildeordquo satildeo

colocados no mesmo registro daquelas ideias e nada aponta para uma

restriccedilatildeo do princiacutepio in-esse ou para a anterioridade ou preferecircncia do

mundo com relaccedilatildeo agraves ideias ou noccedilotildees completas de substacircncias

particulares ou mocircnadas individuais De qualquer modo e essa eacute nossa

opiniatildeo os paraacutegrafos finais da Teodiceia e a uacuteltima carta que Leibniz

escreveu a Samuel Clarke parecem ser decisivos Primeiro

Vocecirc vecirc [afirma a deusa Palas Atena] que meu pai [Juacutepiter] natildeo fez Sextus

mau ele [Sextus] o foi [mau] desde toda a eternidade ele o foi sempre

livremente [meu pai] soacute fez lhe consentir a existecircncia que sua sabedoria

natildeo podia recusar ao mundo em que ele estaacute compreendido ele o fez

passar da regiatildeo dos possiacuteveis para a dos seres atuais (LEIBNIZ 2013

[Teodiceia] sect416 p 415 grifo nosso)

Aqui eacute afirmada a necessidade de uma determinada pessoa possiacutevel

dever estar compreendida em um determinado mundo possiacutevel25 que

Deus ou na histoacuteria que termina a Teodiceia Juacutepiter faz ou consente vir

agrave existecircncia suposto ser o melhor dos mundos possiacuteveis ldquopassar da regiatildeo

dos possiacuteveis para a dos seres atuaisrdquo e certamente podiacuteamos pensar tal

25 A partir da perfeiccedilatildeo das operaccedilotildees do intelecto divino Leibniz natildeo soacute natildeo defende que haacute pessoas possiacuteveis vagas mas tambeacutem natildeo haacute propriamente falando mundos possiacuteveis vagos

William de Siqueira Piauiacute | 225

necessidade nos valendo da noccedilatildeo de compossibilidade e

incompossibilidade mas natildeo nos adiantemos Eacute preciso voltar ao que diz

o texto e lembrar que Juacutepiter apenas consentiu a existecircncia a Sextus

existecircncia que eacute precedida portanto de uma noccedilatildeo completa individual

que faz parte do conteuacutedo do intelecto divino e que se relaciona com as

perfeiccedilotildees de suas operaccedilotildees daiacute sua eternidade perfeiccedilatildeo ou completude

(em oposiccedilatildeo a vago) e precedecircncia com relaccedilatildeo agrave existecircncia isto eacute agrave

posterior atualizaccedilatildeo Em que sentido portanto interpretar a afirmaccedilatildeo

ldquoDeus criou natildeo exatamente Adatildeo pecador mas o mundo em que Adatildeo

pecourdquo Contra parte da interpretaccedilatildeo de Deleuze pois Apolo-Juacutepiter natildeo

criou Sextus mau ou fez a inclusatildeo de tal predicado ou atributo verbal a

partir de uma seacuterie universo ou mundo determinado de singularidades

adjacentes preacute-individuais natildeo eacute nesse sentido que o mundo precede ou

tem preferecircncia com relaccedilatildeo a Sextus De todo modo e no mesmo sentido

das trecircs obras que mencionamos mais acima nem o Deus cristatildeo criou

Adatildeo pecador nem Juacutepiter criou o Sextus violador (de Lucreacutecia)26 eles o

foram de modo completo e perfeito desde sempre e seus acontecimentos

com todas as circunstacircncia estavam registrados no livro dos destinos ou

das verdades eternas no palaacutecio dos destinos ou na regiatildeo dos possiacuteveis

no mesmo ldquolugarrdquo em que Leibniz diz muitas vezes deveriacuteamos ldquobuscarrdquo

os mundos possiacuteveis as seacuteries que corresponderiam aos universos etc

Deus ou Juacutepiter os teriam visto como ideias ou noccedilotildees completas e sem

precedecircncia de tempo ou preferecircncia moral ao mesmo tempo e antes do

decreto da criaccedilatildeo Justamente o que permite dizer do diabo que ldquoporque

estava escrito no livro das verdades eternas que conteacutem tambeacutem os

possiacuteveis antes de todo o decreto de Deus que essa criatura [o diabo] se

dirigiria livremente para o mal se ela fosse criadardquo (Idem p 329)27

26 A partir disso perguntariacuteamos O Deus leibniziano a partir de sua ciecircncia de simples inteligecircncia natildeo vecirc desde sempre na ideia da natureza das criaturas livres Adatildeo e Sextus que elas satildeo pecadoras e violadoras (ou preguiccedilosa) Se sim natildeo fica claro de fato o que faz a base da necessidade daquele deslocamento e termos de supor uma noccedilatildeo leibniziana de acontecimento a partir de singularidades adjacentes

27 Eis o motivo porque Derrida achou necessaacuterio criticar em ldquoForccedila e significaccedilatildeordquo (Escritura e diferenccedila) de 1967 as noccedilotildees leibnizianas de livro e histoacuteria criticar a noccedilatildeo de repeticcedilatildeo associada aos destinos depositados no palaacutecio dos destinos (Teodiceia sect414) ou no livro dos destinos (Teodiceia sect275) Certamente o que faria eco agrave recusa por parte de Badiou quanto agrave inclusatildeo de Mallarmeacute em A dobra E talvez aqui possamos pensar que tendo em vista que

226 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Somente assim Jupiacuteter natildeo se torna o culpado do destino de Sextus e natildeo

nos perdemos nessa regiatildeo do labirinto da liberdade Seja como for a

partir de seu conhecimento infinito e infaliacutevel Deus criou fez vir agrave

existecircncia exatamente Adatildeo pecador e de um soacute golpe o mundo em que

ele pecaraacute

Natildeo vemos outra maneira de interpretar o final da Teodiceia a natildeo

ser que queiramos e contra o que estabelece a filosofia leibniziana nos

perder no labirinto da liberdade e necessidade Daiacute que natildeo vemos como

corroborar aquela divisatildeo em seleccedilotildees28 que faz a base da hipoacutetese

interpretativa formulada no segundo momento da nota 4 da 16ordf seacuterie de

Loacutegica do sentido e que nos obrigaria aceitar aquele deslocamento e

ordem de dependecircncia Seraacute mesmo que precisamos pensar ldquouma unidade

objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo

de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo

infinitordquo base daquela necessidade de deslocamento e ordem de

dependecircncia que nos levaria para muito longe do que afirmava a nota agrave

carta a Arnauld de 13 de maio de 1686 que jaacute mencionamos em nota para

compreender os paraacutegrafos finais da Teodiceia

Deleuze natildeo menciona Derrida em a Loacutegica do sentido publicada um ano apoacutes Escritura e diferenccedila ou em A dobra a menccedilatildeo a Husserl e a inclusatildeo de Mallarmeacute podem ser indicadoras de sua oposiccedilatildeo agravequela interpretaccedilatildeo De qualquer modo tanto Derrida quanto Badiou recusam ou recusariam a opiniatildeo que permanecemos leibnizianos especialmente se queremos fazer Mallarmeacute estar de acordo conosco Se o leitor quiser entender melhor o que estamos tentando dizer aqui teraacute de cruzar nossos artigos ldquoLeibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agrave teoria tradicional da traduccedilatildeo ou agraves metafiacutesicas da liacutengua de saiacuteda e de chegadardquo e ldquoDerrida e a capacidade superior de formalizaccedilatildeo da literatura uma introduccedilatildeordquo e se perguntar se Leibniz natildeo tem de ser colocado naquele momento preacute Mallarmeacute e Goumldel em que se acreditava na completude sistecircmica da linguagem

28 Nos referimos agrave seguinte afirmaccedilatildeo ldquo[I momento] Distinguimos pois trecircs seleccedilotildees (seacutelections) conforme ao tema

leibniziano uma que define um mundo por convergecircncia uma outra que define neste mundo indiviacuteduos completos uma outra enfim que define elementos incompletos ou entes ambiacuteguos comuns a vaacuterios mundos e aos indiviacuteduos correspondentes [II momento] Sobre esta terceira seleccedilatildeo ou sobre Adatildeo lsquovagorsquo constituiacutedo por um pequeno nuacutemero de predicados (ser o primeiro homem etc) que devem ser completados diferentemente em diferentes mundos cf Leibniz lsquoObservaccedilotildees sobre a carta de M Arnauldrsquo [que citamos na nota 15] [] Eacute verdade que neste texto Adatildeo vago natildeo tecircm existecircncia por si mesmo vale somente com relaccedilatildeo ao nosso entendimento finito seus predicados natildeo satildeo mais que generalidades Mas ao contraacuterio no texto ceacutelebre da Teodiceia (sectsect414-416) os diferentes Sextus nos mundos diversos tecircm uma unidade objetiva muito especial que repousa sobre a natureza ambiacutegua da noccedilatildeo de singularidade e sobre a categoria do ponto de vista de um caacutelculo infinito Muito cedo Leibniz havia elaborado uma teoria dos lsquosignos ambiacuteguosrsquo em relaccedilatildeo com os pontos singulares tomando por exemplo as seccedilotildees cocircnicas [les diffeacuterents Sextus dans les mondes diverses ont une uniteacute objective tregraves speacuteciale qui repose sur 1a nature ambigueuml de la notion de singulariteacute et sur la cateacutegorie de problegraveme du point de vue drsquoun calcul infini Tregraves tocirct Leibniz avait eacutelaboreacute une theacuteorie des lsquosignes ambigusrsquo en rapport avec les points singuliers prenant pour exemple les sections coniques] cf lsquoDo meacutetodo da universalidadersquo (Opuacutesculos Couturat [p 97-144])rdquo (DELEUZE 2003 p 118 grifo nosso)

William de Siqueira Piauiacute | 227

Dito isso nos parece que o que faltou a Deleuze foi buscar

compreender melhor as noccedilotildees de ideia e representaccedilatildeo associadas agrave de

noccedilatildeo completa de um individuo singular tanto no Discurso e

Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld quanto nos paraacutegrafos finais

da Teodiceia e como o uso indistinto que ele proacuteprio faz do filosofema o

comprova pouco importa os detalhes do desenvolvimento do conceito de

mocircnada humana individual Mas isso se pareceria muito com a criacutetica que

fez Derrida a Foucault e que jaacute mencionamos no iniacutecio Eacute como se Deleuze

tivesse ficado parado na parte da ficccedilatildeo em que Lorenzo Valla fala de um

querer ainda indeterminado uma singularidade preacute-individual apenas

que permitiria bifurcaccedilatildeo e soacute posterior inclusatildeo base de sua gecircnese

estaacutetica ontoloacutegica como um pecar ainda indeterminado um verbo-

atributo que permitiria falar em inclusatildeo do que ainda natildeo estava

totalmente ldquodeterminadordquo natildeo exatamente determinado o em bifurcaccedilatildeo

base daquela ldquounidade objetiva muito especialrdquo a partir de um mundo de

singularidades adjacentes um mundo regido por uma espeacutecie de siacutentese

disjuntiva que permitiria falar em ldquonatureza ambiacutegua da noccedilatildeo de

singularidaderdquo e em ldquocategoria do ponto de vista de um caacutelculo infinitordquo e

permitiria pensar indiviacuteduos possiacuteveis lsquovagosrsquo constituiacutedos ldquopor um

pequeno nuacutemero de predicados que devem ser completados

diferentemente em diferentes mundosrdquo mas tivesse se esquecido que

trata-se para Leibniz de uma ficccedilatildeo falsa que teria desconsiderado o

segundo aspecto do tipo de conhecimento que Apolo-Juacutepiter-Palas-Atena

teria ou seja soacute teria considerado algo semelhante agrave ciecircncia divina de

visatildeo (que vecirc as existecircncias o mundo ou os corpos) e esquecido a ciecircncia

da simples inteligecircncia (que vecirc todos os possiacuteveis sem precedecircncia ou

preferecircncia) neste caso justamente contra ao que advertia o proacuteprio

Leibniz a saber a ciecircncia da simples inteligecircncia eacute ldquoonde eacute preciso

procurar a fonte de todas as coisasrdquo (Idem p 416 [sect417]) tanto dos

mundos ou seacuteries universo quanto dos indiviacuteduos possiacuteveis

Segundo de qualquer modo pouco antes de morrer Leibniz afirmava

para Samuel Clarke

228 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

[sect6] Mas nem essa presciecircncia nem essa preordenaccedilatildeo atentam contra a

liberdade De fato Deus levado pela suprema razatildeo [que pode ser comparada

agrave suprema perfeiccedilatildeo do sect31 do Discurso de metafiacutesica] a fazer a escolha

entre muitas sequecircncias [ou seacuteries] de coisas ou mundos possiacuteveis daquele

em que as criaturas livres tomassem tais e tais resoluccedilotildees ainda que natildeo sem

seu concurso tornou assim todo acontecimento certo e determinado uma vez

por todas (tout eacuteveacutenement certain et determine une fois pour toutes) [] esse

simples decreto da escolha natildeo muda mas apenas atualiza as suas naturezas

[as das criaturas livres] vistas por ele em suas ideias (LEIBNIZ 1983 [Quinta

carta] p 194)29

Tanto Arnauld quanto o teoacutelogo Clarke teriam se incomodado com o

mesmo Novamente tendo em vista que a criaccedilatildeo do mundo eacute uma

atualizaccedilatildeo das naturezas das criaturas livres que foram vistas por Deus

em suas ideias e que eacute a partir do conhecimento preacutevio presciecircncia ou

ciecircncia da simples inteligecircncia de ldquotodasrdquo as resoluccedilotildees que elas tomaratildeo

que podemos falar em pontos de vistas de um mundo que as compreende

e que seraacute atualizado junto com elas tendo em vista tudo isso natildeo haacute

motivo para falar em precedecircncia de mundo que resulte em singularidades

preacute-individuais ou que Deus cria ou vecirc primeiro o mundo onde Adatildeo eacute

pecador que levaria a crer que Deus natildeo vecirc ou cria um Adatildeo exatamente

pecador Ou seja nada aponta para uma ldquounidade objetiva muito especialrdquo

que nos obrigaria a diferenciar a noccedilatildeo de individuo possiacutevel com relaccedilatildeo

ao Adatildeo da Correspondecircncia de Leibniz e de Arnauld ou do Discurso

da com relaccedilatildeo aos Sextus dos paraacutegrafos finais da Teodiceia Se levarmos

a seacuterio as obras que mencionamos ateacute aqui e principalmente a histoacuteria

contada ao final da Teodiceia mesmo os mundos possiacuteveis tecircm como

conteuacutedo as noccedilotildees completas ou perfeitas de pessoas possiacuteveis e natildeo haacute

por que falar em anterioridade ou preferecircncia do mundo com relaccedilatildeo ao

seu conteuacutedo

29 Mais ny cette prescience ny cette preordination ne derogent point agrave la liberteacute Car Dieu porte par la supremo raison agrave choisir plusieurs suites des choses ou mondes possibiles celuy ougrave les creatures libres prendroient telles ou telles resolutions quoyque non sans son concours a rendu par lagrave tout evenement certain et determine une fois pour toutes sans deroger por lagrave a liberte de ces creatures ce simple decret du choix ne changeant point mais actualisant seulement leur natures libres quirsquoil y voyoit dans ses ideacutees

William de Siqueira Piauiacute | 229

Agora fica claro que ateacute o final da sua vida Leibniz defendeu natildeo soacute

uma noccedilatildeo de pessoa espiritual (previamente conhecida) daiacute de mocircnada

humana individual que de modo nenhum se assemelha agrave noccedilatildeo de uma

pessoa vaga mas tambeacutem de acontecimento (previamente conhecido e

ordenado) que de modo nenhum se assemelha agrave ideia de caos ou que

lembre siacutenteses disjuntivas portanto ambas nada tecircm a ver com as boas

novas que Deleuze viu seja nas trecircs obras de Carroll seja na filosofia dos

Estoicos Na verdade se obedecemos seja agrave ordem de argumentaccedilatildeo do

Discurso seja agrave da Monadologia quem ilumina a noccedilatildeo de

acontecimento mudanccedila ou movimento eacute a de substacircncia individual ou

mocircnada e natildeo o contraacuterio aleacutem disso o que permite compreender o

conhecimento preacutevio que o deus leibniziano teria do mundo a ser

efetivado daiacute criado depende do que ele considerava ser a ciecircncia de

simples inteligecircncia e natildeo de visatildeo

Do nosso ponto de vista o que dissemos ateacute aqui jaacute nos impediria de

aceitar a natildeo ser com muitas ressalvas e natildeo vemos qualquer vantagem

nisso o deslocamento exigido por Deleuze seja na 16ordf seacuterie de Loacutegica do

sentido seja no capiacutetulo ldquoIndividuaccedilatildeo e especificaccedilatildeordquo de A dobra ou

seja inclusive por que natildeo vimos motivo para aceitar a defesa daquela

ldquounidade objetiva muito especialrdquo nos uacuteltimos paraacutegrafos da Teodiceia os

textos que mencionamos parecem fornecer prova suficiente que natildeo eacute

necessaacuterio nos encaminhar para as noccedilotildees de compossibilidade ou

incompossibilidade e regra de convergecircncia ou divergecircncia se queremos

compreender adequadamente o que Leibniz entendia por pessoa ou

indiviacuteduo possiacutevel associado a acontecimento e que seria muito diferente

do que o tinha visto Husserl Ao inveacutes de comeccedilarmos por aceitar tal

deslocamento preferimos nos perguntar Mas quais entatildeo seriam as

principais fontes do deslocamento exigido na interpretaccedilatildeo de Deleuze ou

da peculiaridade daquela unidade objetiva Nossa hipoacutetese eacute que a Loacutegica

do sentido e mesmo A dobra Leibniz e o barroco estariam associados agrave

excessiva importacircncia que ele deu agrave seguinte parte do sect414 da Teodiceia

230 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

E quando as condiccedilotildees natildeo estiverem determinadas o bastante haveraacute tanto

quanto se quiser de tais mundos diferentes entre si que responderatildeo

diferentemente agrave mesma questatildeo de tantas maneiras quanto eacute possiacutevel Vocecirc

aprendeu geometria quando era ainda jovem como todos os gregos bastante

elevados Vocecirc sabe entatildeo que quando as condiccedilotildees de um assunto que se

pergunta natildeo o determinam o bastante e que haacute uma infinidade deles e ao

menos esse lugar que frequentemente eacute uma linha seraacute determinado Desse

modo vocecirc pode afigurar uma sequecircncia regrada de mundos que conteratildeo

todos ou somente o caso de que se trata e nisso variaratildeo as circunstacircncias e

as consequecircncias Mas se vocecirc coloca um caso que natildeo difere do mundo

atual exceto numa uacutenica coisa definida e na sua sequecircncia um certo

mundo determinado lhe corresponderaacute esses mundos estatildeo aqui [no

palaacutecio dos destinos] quero dizer em ideias (LEIBNIZ 2103 p 413 grifo

nosso)

Novamente os mundos enquanto ideias estatildeo naquele ambiente

regido pela ciecircncia de simples inteligecircncia Mas talvez tenhamos aqui o

uacutenico caso em que uma variedade de mundos eacute posta antes dos indiviacuteduos

possiacuteveis ou da determinaccedilatildeo completa dos acontecimentos com suas

circunstacircncias e permitiria falar em uma unidade objetiva especial

entretanto eacute preciso lembrar que trata-se de uma suposiccedilatildeo em que ldquoas

condiccedilotildees natildeo estejam determinadasrdquo exatamente com o mesmo sentido

de suposiccedilatildeo da menccedilatildeo agrave noccedilatildeo de pessoa vaga da nota agrave carta de Arnauld

ndash que jaacute mencionamos tantas vezes de qualquer modo tal suposiccedilatildeo deve

ser compreendida com a ajuda de noccedilotildees tiradas de uma geometria que jaacute

era conhecida dos gregos30 e no miacutenimo natildeo justifica simplesmente o

apelo ou passagem para uma topologia de superfiacutecie ou para a defesa da

tese que em Leibniz podemos encontrar a defesa da noccedilatildeo completa ou

perfeita de uma substacircncia particular a partir da de singularidade

subjacente ou de uma unidade objetiva especial Todavia e em primeiro

lugar tambeacutem eacute preciso lembrar o que vem logo em seguida e que

grifamos no texto acima justamente o que permite a consequecircncia e

30 Vejam que aqui o proacuteprio Leibniz natildeo faz qualquer referecircncia agraves novidades que havia descoberto em matemaacutetica seja com relaccedilatildeo ao infinito agraves singularidades ou aos signos ambiacuteguos o que ele faz ou daacute a entender em outros momentos da Teodiceia ele prefere tendo em vista a eacutepoca em que viveria o personagem Teodoro se referir ao que jaacute era conhecido a partir da geometria dos gregos

William de Siqueira Piauiacute | 231

comparaccedilatildeo que viratildeo a seguir ou seja neste palaacutecio dos destinos Palas

Atena diz que mostraraacute a Teodoro ldquoonde (ougrave) ele [Sextus] se encontraraacuterdquo

ao que se seguira a advertecircncia ldquonatildeo completamente o mesmo Sextus que

vocecirc viu isto natildeo pode ser pois ele leva sempre consigo aquilo que ele

seraacute mas outros Sextus semelhantesrdquo mas tambeacutem totalmente

determinados ldquoque teratildeo o que vocecirc jaacute conhece do verdadeiro Sextusrdquo

Tudo segue no sentido de que haacute presciecircncia das ldquosequecircncias [ou seacuteries]

de coisas ou mundos possiacuteveisrdquo nos quais tais ou tais ldquocriaturas livres

tomassem tais e tais resoluccedilotildeesrdquo Claro que aquele ldquoonderdquo se refere a um

lugar que deve ser pensado no plano das ideias e aqui sim poderiacuteamos

utilizar a topologia leibniziana (Caracteriacutestica Geomeacutetrica ou Analysis

situs) ou a doutrina do espaccedilo e tempo relacionais para compreender o

que seria a noccedilatildeo individual completa e perfeita de um tal Sextus Seja

como for jaacute podemos dizer que tal ou tais Sextus nada tecircm a ver com o

Fang de ldquoO jardim de caminhos que se birfurcamrdquo31 de Borges daiacute de Silvia

e Bruno ou das Alices de Carroll ou seja apesar de estar de acordo que

Leibniz eacute um antigeneralista quando se trata das noccedilotildees completas ou

perfeitas isso natildeo traz a consequecircncia que por isso ele teria de defender a

constituiccedilatildeo de indiviacuteduos a partir de singularidades adjacentes A natildeo

necessidade da consequecircncia pode ser pensada natildeo soacute a partir do que de

fato lemos no sect414 da Teodiceia mas ainda mais explicitamente nos dois

momentos do sect9 do Discurso eacute verdade que ali Leibniz se mostra um

antigeneralista e nesse sentido um antitomista mas tambeacutem eacute verdade

que manteacutem a noccedilatildeo tomista das inteligecircncias separadas para a

compreensatildeo adequada do que ele havia defendido no sect8 da mesma obra

a saber quod ibi omne individuum sit specie infima Concordamos que

para pensar a noccedilatildeo leibniziana de espeacutecie a partir dessa antigeneralidade

eacute preciso opor a noccedilatildeo matemaacutetica de espeacutecie agrave noccedilatildeo fiacutesica de espeacutecie

mas novamente isso natildeo eacute razatildeo suficiente para recusar o que ele mesmo

afirma no sect9 e que faz o fundo de grande parte da oposiccedilatildeo dele ao

nominalismo de um Locke nos Novos ensaios E quanto ao que Leibniz

31 Cf BORGES 2005 [Ficciones] p 80

232 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

diz da existecircncia das espeacutecies no sentido matemaacutetico prefeririacuteamos

interpretaacute-la a partir do embate que ele teve com Newton quanto agrave

realidade e materialidade dos objetos matemaacuteticos que pode ser

depreendida do que eacute afirmado em Sobre o peso ndash a gravitaccedilatildeo ndash e

equiliacutebrio dos fluidos (De gravitatione et aequipondio fluidorum)32

Cremos que para o alematildeo as figuras matemaacuteticas natildeo precisam existir

para que falemos em verdade ou em movimentos em acordo com elas a

verdade de tais objetos eacute de outra ordem satildeo verdades eternas que

tambeacutem mas diferentemente das noccedilotildees de indiviacuteduos fazem o conteuacutedo

do intelecto divino Mas isso natildeo eacute o fundamental aqui

De qualquer forma parece-nos que foi justamente a excessiva

importacircncia que Deleuze conferiu a aquela parte tendo sido separada de

seu final consequecircncia e comparaccedilatildeo que conduziu Deleuze ao final do

texto ldquoSobre o meacutetodo universalrdquo33 o que seraacute mantido e de certa forma

intensificado em A dobra o que mais uma vez seraacute chamado para

fundamentar a exigecircncia de parte daquele deslocamento isto eacute o

pensamento generalista de Leibniz conduziria diretamente agrave exigecircncia do

uso geral das regras de convergecircncia e divergecircncia ndash e mesmo a um caacutelculo

do infinito ou agrave noccedilatildeo de signo ambiacuteguo ndash para as singularidades

adjacentes e o consequente delas para as noccedilotildees de compossibilidade e

incompossibilidade34

Do nosso ponto de vista talvez associada a essa importacircncia

exagerada e por que natildeo interpretaccedilatildeo equivocada outro problema talvez

ainda mais grave de exegese parece ter tido origem no lugar de parada que

Deleuze fez ou permite que faccedilamos no iniacutecio do sect47 da Quinta carta a

Clarke texto que de fato soacute pode ser interpretado a partir de parte da

32 Para um comeccedilo de conversa indicariacuteamos o nosso artigo ldquoQuerela da realidade dos objetos loacutegico-matemaacuteticos uma introduccedilatildeo agrave filosofia modernardquo

33 Cf LEIBNIZ 1903 [Opuscules et fragments ineacutedits de Leibniz] p 145

34 Vale relembrar a ordem de dependecircncia das suposiccedilotildees ldquoEacute arbitraacuterio privilegiar a inerecircncia dos predicados na filosofia de Leibniz Pois (III) a inerecircncia de predicados na mocircnada expressiva supotildee primeiro (II) a compossibilidade do mundo expresso e esta por sua vez supotildee (I) a distribuiccedilatildeo de puras singularidades segundo as regras de convergecircncia e de divergecircncia que pertencem ainda a uma loacutegica do sentido e do acontecimento natildeo [a] uma loacutegica da predicaccedilatildeo e da verdaderdquo (DELEUZE 2003 p 115)

William de Siqueira Piauiacute | 233

topologia leibniziana e da doutrina do espaccedilo e tempo relacionais quer

dizer ele teria parado justamente no modo como os homens

semelhantemente a Newton pensam a noccedilatildeo de movimento (daiacute mudanccedila

referente aos corpos por consequecircncia acontecimento) situaccedilatildeo e

possiacutevel teria parado e pensado a noccedilatildeo de indiviacuteduo apenas a partir de

uma topologia posicional que desconsidera justamente a necessidade de os

acidentes natildeo passearem fora das mocircnadas Neste caso Deleuze teria

esquecido de separar e mesmo teria invertido a importacircncia as duas

partes do texto ou seja a que comeccedila com ldquoEis como os homens chegam

a formar a noccedilatildeo de espaccedilordquo e a que comeccedila com ldquoE eacute bom considerar aqui

a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa

o lugarrdquo que continua com ldquodois sujeitos diferentesrdquo ldquonatildeo poderiam ter

precisamenterdquo de modo completamente determinado ldquoa mesma situaccedilatildeo

individual natildeo podendo um mesmo acidente individual encontrar-se em

dois sujeitos nem passar de sujeito para sujeitordquo Onde pois colocar o

Fang de Borges se natildeo queremos ir contra a doutrina leibniziana do espaccedilo

e tempo relacionais ou fazer esquecer a diferenccedila entre o lugar e a relaccedilatildeo

de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugar ou que um mesmo acidente

individual natildeo pode encontrar-se em dois sujeitos Trata-se de retomada

explicita do sect7 da Monadologia que deve ser compreendida a partir de

uma noccedilatildeo de mocircnada fechada e natildeo vemos outro jeito do princiacutepio do

predicado inerente ao sujeito ou de predicados acontecimento (sentido

claacutessico) dados de uma vez por todas e natildeo atributos verbais que se

associem a uma espeacutecie de siacutentese disjuntiva ou exijam uma unidade

objetiva muito especial

Uma interpretaccedilatildeo atenta agrave inversatildeo necessaacuteria teria permitido a

Deleuze compreender o motivo da afirmaccedilatildeo de Leibniz no sect61 da

Monadologia segundo a qual os corpos les composeacutes apenas simbolizam

(symbolisent) no sentido que apenas ldquoconcordam comrdquo e que remeteria

ao convencionalismo no sentido que sozinhos careceriam de fundamento

defendido no sect1 do De interpretatione de Aristoacuteteles os fenocircmenos bem

234 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

fundados apenas simbolizam os simples35 e natildeo o contraacuterio o que mais

uma vez parece colocar Deleuze em dificuldades se se pretende afirmar a

precedecircncia do mundo ou dos corpos com relaccedilatildeo agraves noccedilotildees completas de

indiviacuteduos ou agrave necessidade de recorrer agraves singularidades adjacentes

E aqui do nosso ponto de vista chegamos ao ponto central do

deslocamento exigido por Deleuze desde a Loacutegica do sentido ele toma

seu pleno sentido somente se invertermos o plano argumentativo da

Monadologia ou seja se recusamos o caminho sinteacutetico do simples para

o composto dito de outro modo se pensarmos o conceito de mocircnada a

partir de uma matemaacutetica uma topologia que utilizariacuteamos para dar

conta das mudanccedilas que ocorreriam no plano dos corpos mas sem

individuaccedilatildeo preacutevia isto eacute a relaccedilatildeo de situaccedilatildeo dos corpos viria em

primeiro lugar e comporia a seacuterie universo mas isso eacute inverter a ordem

de importacircncia entre a metafiacutesica e dinacircmica ndash ir contra o que diz o sect18

do Discurso ndash e eacute preciso estar muito atento para natildeo defender sem o

saber uma distinccedilatildeo que funciona muito bem no plano dos corpos mas

que eacute solo nuacutemero com relaccedilatildeo ao que de fato resolve o problema da

mudanccedila dito de outro modo tal inversatildeo desconsideraria justamente o

fundamento da ldquorelaccedilatildeo de situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo

A proacutepria ordem dos capiacutetulos de A dobra evidenciaria tal inversatildeo as

consideraccedilotildees sobre as redobras na mateacuteria vecircm antes das sobre as dobras

nas almas e seu capiacutetulo 5 estaacute repleto de consideraccedilotildees que tomam o

corpo ou o mundo antes daquilo que faz o fundamento ldquoda relaccedilatildeo de

situaccedilatildeo que haacute no corpo que ocupa o lugarrdquo

35 ldquoEt les composeacutes symbolisent en cela avec le simplesrdquo (LEIBNIZ 2004 p 235) Mais natildeo eacute o exato contraacuterio que defendiam os estoicos nesse sentido invertendo o valor da ldquoexpressatildeordquo do expresso do lekton Seria estranho que algueacutem que defendeu muitas vezes tanto o fato que os estoicos foram os criadores da filosofia da linguagem quanto que sua diferenciaccedilatildeo e dependecircncia entre lekton e corpo eram baacutesicas para a loacutegica do sentido e do acontecimento defendesse o contraacuterio mas aqui mantemos a suposiccedilatildeo de uma mudanccedila de ponto de vista que parece ter ocorrido por volta da elaboraccedilatildeo de Mil platocircs e que ficaria mais evidente nos capiacutetulos de tiacutetulo ldquoPostulados da linguiacutesticardquo e ldquoSobre alguns regimes de signosrdquo ou seja a partir de 1980 o conceito de palavra de ordem (le mot drsquoordre) o registro do lekton passa a assumir o mesmo valor causal que os corpos mais forccedila ainda para o plano da expressatildeo Marca inconteste da ldquogenialidaderdquo do francecircs teriacuteamos permanecido ainda mais leibnizianos ndash um Leibniz deleuzeano natildeo nos esqueccedilamos ndash a partir da deacutecada de 80 portanto talvez o principal motivo que levou Deleuze a voltar aos textos de Leibniz e intensificar os pontos principais da 16ordf seacuterie de a Loacutegica do sentido

William de Siqueira Piauiacute | 235

Do nosso ponto de vista tal inversatildeo que consideramos ser o

fundamento real da exigecircncia daquele deslocamento eacute o problema mais

grave da interpretaccedilatildeo que Deleuze faz da filosofia leibniziana ela teria

desconsiderado a resposta que Leibniz teria dado a um outro problema

levantado por Newton em De gravitatione et aequipondio fluidorum

mas que se associava agrave caracterizaccedilatildeo cartesiana do movimento e que fica

explicito no uso da expressatildeo affectiones locorum ou the properties of

places por parte do inglecircs Problema que para Leibniz tem de ser

resolvido para que possamos falar em mudanccedila ou movimento real Isso

nos permite formular um questionamento para a interpretaccedilatildeo geral

empreendida por Deleuze seja em A dobra seja em Loacutegica do sentido

Como diferenciar a noccedilatildeo newtoniana de individuaccedilatildeo (solo numero) da

leibniziana se nos mantemos apenas nas affectiones locorum36 Vale

lembrar que a filosofia natural de Newton e sua matemaacutetica tambeacutem

permitem singularidades adjacentes Com as agravantes Como o

equacionou Leibniz natildeo eacute justamente por seu fechamento que o conceito

de mocircnada resolve o problema cartesiano do movimento Dito de outro

modo Como o conceito de mocircnada baseado em singularidades adjacentes

tatildeo semelhante ao de vizinhanccedila imediata resolveria o problema da causa

proacutexima do movimento Assim cremos que a leitura de Deleuze aproxima

perigosamente Leibniz de Newton sem ter respondido suficientemente agrave

pergunta geral Por que a preferecircncia pelo alematildeo se em termos de

descoberta e grande parte do tipo de uso que ambos fizeram do caacutelculo

diferencial e integral de uma geometria de posiccedilatildeo e mesmo das regras de

convergecircncia e divergecircncia nada impediria de ver tambeacutem na filosofia do

inglecircs uma topologia de superfiacutecies37 E terminariacuteamos com as

provocaccedilotildees oacutebvias Permanecemos leibnizianos ou newtonianos

36 Cf nosso artigo ldquoLeibniz e a gecircnese da noccedilatildeo de espaccedilo lendo o sect47 da uacuteltima carta a Clarkerdquo ou ldquoLeibniz y el papel de la imaginacioacuten en la geacutenesis de la nocioacuten de espacio newtonianordquo

37 Referimo-nos ao que eacute defendido entre outros no excelente livro De Newton y los newtonianos entre Descartes e Berkeley de Laura Benitez Grobet e Joseacute A Robles Garciacutea cf Bibliografia De qualquer modo o que estamos tentando dizer aqui agravaria ainda mais tais questionamentos desde que a hipoacutetese defendida por Benitez Grobet e Robles Garciacutea eacute a de que Newton precisava de um outro modelo de predicaccedilatildeo que natildeo a aristoteacutelica e por que natildeo da recusa do princiacutepio in-esse para levar a cabo sua filosofia natural e nesse sentido vale lembrar as muitas vezes em que Leibniz pergunta a Clarke que papel em termos de predicaccedilatildeo aristoteacutelica em termos de sujeito predicado

236 | Escritos de Filosofia III Linguagem e Cogniccedilatildeo

Conclusatildeo

Do nosso ponto de vista em primeiro lugar a tese ceacutelebre de Leibniz

segundo a qual cada mocircnada individual exprime o mundo pode e deve ser

compreendida a partir do princiacutepio de inerecircncia do predicado no sujeito

obviamente um grande desafio para o inteacuterprete em segundo lugar natildeo

eacute verdade que para Leibniz Deus criou o mundo antes das ou de

preferecircncia agraves mocircnadas ao menos natildeo no sentido que haveria de fato

inclusatildeo posterior de algum acidente (enquanto predicado um adjetivo)

natildeo jaacute preacute-vista nas noccedilotildees completas de indiviacuteduos ou pessoas ou mesmo

na seacuterie possiacutevel de um mundo em terceiro lugar se aquela precedecircncia

ou preferecircncia for pensada em termos de compossibilidade e

incompossibilidade ndash que oferecesse alguma alternativa para o princiacutepio

de contradiccedilatildeo ndash eacute preciso lembrar que o entendimento divino eacute fora da

ordem do tempo e mais uma vez natildeo podemos falar em precedecircncia ou

preferecircncia de partes de suas operaccedilotildees e por fim natildeo vemos como as

regras de convergecircncia e divergecircncia nos ajudariam ou seria necessaacuterio

recorrer a elas para corroborar a interpretaccedilatildeo de Deleuze se aquela

precedecircncia ou preferecircncia natildeo se viu confirmada Assim natildeo vemos

motivos para aceitar a necessidade do deslocamento que Deleuze pretende

impor desde a Loacutegica do sentido Vale lembrar que nossa oposiccedilatildeo nada

tem a ver com o uso do caacutelculo diferencial e integral e as regras de

convergecircncia e divergecircncia para pensar o conceito de mocircnada ldquofechadardquo

e mesmo de uma topologia de superfiacutecie jaacute mostramos em outro lugar38 o

como a matemaacutetica criada por Leibniz pode ajudar a pensar um conceito

de mocircnada humana individual fechada e de seacuterie universo fechado em

e acidente desempenharia o tempo e espaccedilo absolutos de Newton Sendo que o sect47 da quinta resposta que deu a Clarke deve ser considerado justamente natildeo soacute como uma tentativa de se manter fiel aacute metafiacutesica que fundamenta a loacutegica aristoteacutelica e o inicio da Monadologia mas tambeacutem sem perder de vista seja os princiacutepios de sua topologia (Caracteriacutestica Geometrica ou Analysis situs) seja de sua doutrina do espaccedilo e tempo relacionais

38 Cf nossos artigos ldquoMatemaacutetica e metafiacutesica em Leibniz O caacutelculo diferencial e Integral e o processo psiacutequico-metafiacutesico da percepccedilatildeordquo e ldquoLeibniz e Tomaacutes de Aquino o princiacutepio de individuaccedilatildeordquo

William de Siqueira Piauiacute | 237

pleno acordo com sua metafiacutesica e sua dinacircmica em uma palavra em

pleno acordo com a histoacuteria contada ao final da Teodiceia

Por fim se na ldquoobra de Carroll Alice seria antes como o indiviacuteduordquo

ldquoque descobre o sentido e jaacute pressente o natildeo-senso remontando agrave

superfiacutecie a partir de um mundo em que ela mergulha mas tambeacutem que

se envolve nela e lhe impotildee a dura lei das misturasrdquo ela nada tem a ver

com o conceito leibniziano de mocircnada humana individual ou substacircncia

particular e se novamente na ldquoobra de Carrollrdquo ldquoSilvia e Bruno seriam

antes como as pessoas lsquovagasrsquo que descobrem o natildeo senso e sua presenccedila

ao sentido a partir de lsquoalguma coisarsquo comum a vaacuterios mundos mundo dos

homens e mundo das fadasrdquo a proacutepria referecircncia agrave noccedilatildeo lsquopessoa vagarsquo

deveria ser prova suficiente que natildeo podem ser melhor compreendidas a

partir das noccedilotildees leibnizianas de mocircnada humana individual ou

substacircncia particular Mas natildeo eacute justamente porque queremos estar com

Carroll ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de sujeito ou contestaccedilatildeo da

identidade pessoal ndash e Mallarmeacute ndash certa dissoluccedilatildeo da noccedilatildeo claacutessica de

livro ou texto ndash que natildeo somos leibnizianos e nem mesmo newtonianos

E aqui deixamos algo mais que a simples discordacircncia entre os ldquofiloacutesofosrdquo

Badiou e Deleuze

Referecircncias39

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39 Tendo em vista que se tratava inicialmente de um minicurso cremos ser justificativa suficiente para oferecermos uma Bibliografia ao inveacutes de apenas referecircncias bibliograacuteficas

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PIAUIacute William de Siqueira e CECCI SILVA Juliana Leibniz e Benjamin uma introduccedilatildeo agraves

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Mutum revista de literatura e pensamento (Dossiecirc Literatura escrever o pensar)

Org por Piero Eyben Brasiacutelia UnB n 1 v 1 p 183-203 2013

SARTRE Jean-Paul A transcendecircncia do ego ndash esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica

Traduccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Cadernos

espinosanos n 22 2010 p 183-228

_____ A transcendecircncia do ego esboccedilo de uma descriccedilatildeo fenomenoloacutegica Trad Joatildeo

Batista Kreuch Petroacutepolis RJ Ed Vozes 2013

Sobre os Organizadores

Natural de Brasiacutelia Marcus Joseacute Alves de

Souza eacute Doutor em Filosofia pela

Universidade Federal da Paraiacuteba

Professor do Instituto de Ciecircncias

Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes e do

Mestrado em Filosofia da Universidade

Federal de Alagoas Liacuteder do Grupo de

Pesquisa Linguagem e Cogniccedilatildeo

Potiguar de Mossoroacute Maxwell Morais de

Lima Filho eacute Doutor em Filosofia pela

Universidade Federal do Cearaacute e

Professor do Instituto de Ciecircncias

Humanas Comunicaccedilatildeo e Artes da

Universidade Federal de Alagoas desde

2011

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