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DOI:10.5007/1807-1384.2011v8n2p215 ESTTICA E PSICANLISE: POR UMA CRTICA DA MODERNIDADE AESTHETICS AND PSYCHOANALYSIS: FOR A CRITICISM OF MODERNITY ESTTICA Y PSICOANLISIS: PARA UNA CRTICA DE LA MODERNIDAD Cristina Aparecida Tannure Cavalcanti1 Maria Cristina Candal Poli2 RESUMO: Opresenteartigosepropeafazerumpercorridosobrealgunsfundamentosdo estudodaesttica,desenvolvidanocernedamodernidadecomodisciplina acadmicaecomobasetericadacrticadaarte.Elaboradapeloromantismo,foi, nasequncia,adotadapelapsicanlise.Naobrafreudianaenafilosofiade Nietzschepodemosobservarcomobuscaremosdemonstrarsuafuno privilegiadanasustentaodeumacrticacultural.Issoporque,enquantolcus privilegiadodeexpressodatensoentrelogosepathos,naestticaquea psicanliseencontraoprincipaltestemunhodosparadoxosdeumacultura pretensamente assentada na conscincia de si. Palavras-chave: Psicanlise. Esttica. Nietzsche. Pulso. Crtica cultural. ABSTRACT: Thepresentarticleintendstocoversomefoundationsofthestudyofaesthetics, developedatthecoreofmodernityasanacademicdisciplineandastheoretical basisofartcriticism.Preparedbyromanticism,wassubsequentlyadoptedby psychoanalysis. In Freud and in the philosophy of Nietzsche we can observe - as we will try to demonstrate - its privileged function in support of a cultural criticism. This is because,whileprivilegedlocusofexpressionofthetensionbetweenpathosand logos,itisinaestheticsthatthepsychoanalysisfindsthemaincertificationofthe paradoxes of a culture allegedly seated in self-awareness. Key-words: Psychoanalysis. Aesthetics. Nietzsche. Drive. Cultural Criticism

1MestreemPsicanlise,SadeeSociedadepelaUniversidadeVeigadeAlmeida-UVA (2010), Especialista em Educao Esttica pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro- UNIRIO (2006).Bacharelem TurismopelaFACHA(1979),SecretriaExecutivadaUniversidadeFederaldo Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. E-mail: [email protected] Doutora em Psicologia, Universite de Paris XIII (Paris-Nord), U.P.XIII, Frana. Ps-doutorado, UFRJ. Psicanalista, Membro da APPOA, Professora do Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social e InstitucionaldaUFGRSedoMestradoInterdisciplinarPsicanlise,SadeeSociedadeda Universidade Veiga de Almeida - RJ, Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected] EstaobrafoilicenciadacomumaLicenaCreativeCommons-Atribuio3.0No Adaptada. 216 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 RESUMEN: Elpresenteartculoseproponeahacerunrecorridoporalgunosfundamentosdel estudiodelaesttica,desarrolladaenelcorazndelamodernidadcomouna disciplinaacadmicaycomobasetericadelacrticadelarte.Elaboradaporel romanticismo, fue despus adoptada por el psicoanlisis. En la obra freudiana y en lafilosofadeNietzschesepuedeobservar-comotrataremosdedemostrar-su funcinprivilegiadaenlasustentacindeunacrticacultural.Esoporque,mientras locus privilegiado de la expresin de la tensin entre logos y pathos, es en la esttica que el psicoanlisis encuentra el principal testimonio de las paradojas de una cultura que se pretende asentada en la conciencia de si mismo. Palabras clave: Psicoanlisis. Esttica. Nietzsche. Pulsin. Crtica Cultural. APRESENTAO O presente artigo se prope a fazer um percorrido sobre alguns fundamentos doestudodaesttica,desenvolvidanocernedamodernidadecomodisciplina acadmicaecomobasetericadacrticadaarte.Elaboradapeloromantismo,foi, nasequncia,adotadapelapsicanlise.NasobrasdeFreudedeNietzsche podemosobservarcomobuscaremosdemonstrarsuafunoprivilegiadana sustentaodeumacrticacultural.Issoporque,enquantolcusprivilegiadode expresso da tenso entre logos e pathos, na esttica que a psicanlise encontra oprincipaltestemunho(READ,2001;RANCIRE,2009)dosparadoxosdeuma cultura pretensamente assentada na concincia-de-si. A dimenso psicanaltica da esttica perpassa o discurso freudiano, includo a elaboraodealgunsconceitosfundamentais.Essesmesmosconceitos colaboraram na formao de uma viso crtica da modernidade, tal como sustentada apartirdaobradeFreud.Essespontosconstituemumaheranaculturalprxima, como indicaremos nesse artigo, daquela avanada pela filosofia de Nietzsche. ESTTICA Apalavraestticaderivadogregoasthesis,quesignificasentimento, sensao ou sensao sensvel, em completa oposio lgica, conhecida como a 217 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 cincia das regras do pensamento. Aesttica analisa o complexo das sensaes e dossentimentos,investigasuaintegraonasatividadesfsicasementaisdo homem,debruando-sesobreasprodues(artsticasouno)dasensibilidade, com o fim de determinar suas relaes sobre o conhecimento, a razo e a tica.Desta forma, a esttica situada como o estudo da complexidade do homem dasuacapacidadedeapreensoedeexpressoqueseorganizaatravsda interaoconsciente/inconscientenaconstruodelinguagens(GRANJA,2005). Ela permeia todas as reas de conhecimento, com uma trajetria de reflexo e que fornece a base para a construo no ser de compreenso dos aspectos da vida. AdisciplinaacadmicadaestticacomeanosculoXVIIIcoma investigaodofilsofoalemoAlexanderBaumgarten(1714-1762),quesegueas exignciasiluministasdaquelesculodedefinirelimitartodasasreasdosaber humano(Rosenfield,2006,p.8).Antesdele,asestticassempreestavam integradasemabordagenssistemticasdafilosofia,confundindo-semuitasvezes com reflexes auxiliares e iluminando problemas ticos ou a teoria do conhecimento. Entre 1750 e 1758, Baumgarten publica duas obras, as quais separam a doutrina da belezaestticadasoutraspartesdafilosofia.SegundoRancire(2009,p.12),o filsofosublinhaaautonomiadadisciplina,chamando-adeirmmaisjovemda lgicaedesignaaestticacomoodomniodoconhecimentosensvel,do conhecimento claro e distinto da lgica.No contexto do romantismo e do idealismo ps-kantiano, a esttica passar a designaropensamentodaarte.Oromantismoaceitae adotaoconceitodePlato elaborado pelos moralistas franceses e por Kant de que a paixo no uma emoo ouumestadoafetivoparticular,masodomniototaleprofundoqueumestado afetivo exerce sobre toda a personalidade ou subjetividade do sujeito. Durante sculos, a histria da arte se confundiu com a histria da cultura, as coisas belas estavam integradas aos cultos religiosos, polticos e sociais. s prticas da vida cotidiana e s tcnicas que sustentavam a sobrevivncia ou a conquista do espao vital. Em todos os domnios da construo do espao urbano vestimenta, doshbitosculinriosaoarmamento,aartepreencheufunessocialmente importantes.Osobjetosdaarteprimitivasoindissociveisda magia,dareligioe dos rituais; esculturas, armas ou jias arcaicas expressavam claramente o prestgio socialepolticodosseusproprietrios;e,aindanapocaclssica,aeducao grega gira em torno da idia de uma convergncia do valor esttico com os valores 218 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 ticos(utilidadesocialepoltica)dacomunidade.Essaidiadsentido formade educaoquejamaisdissociaaticaeapolticadaestticaedastcnicasde produo de belos objetos. Ao longo do sculo XIX, a esttica conquistou um ramo especfico do saber: o estudo do belo. A esttica j era pensada como parte da natureza do homem, esfera naqualpensamentoesentimentosereconciliavamdeformasuperior.Obelo, enquantoefeitosublimatrio-conceitoqueantesdapsicanlisejerautilizadona filosofia-temcomofunoperturbar,comovereindicaropara-almdaimagem, pois a intensidade da imagem-surpresa que lana o sujeito do desejo no simblico, porqueointerrogaeosolicita,operandoapossibilidadedecriaoatravsde inscrio de novos traos e de novas apresentaes dos objetos do desejo. EntreosintrpretesdosculoXX,segundoRosenfield(2006,p.37),hos queressaltamofatodequeosentimentodobelodecorredojulgamentoequea imaginaoouintuioapreendem,diantedoobjetobelo,umaimagemeum esquema, sem que o entendimento possa fornecer um conceito. ParaGranja(2005),arepresentaoeaapresentaoconstituemasduas facesouasduasposiescomplementaresdaexperinciaesttica.O desenvolvimentoea histriada arteformaramo processodialticoquepermiteao espritotomarconscinciadomundo(nasrepresentaes)edesimesmo(na apresentao dessas representaes). Osromnticosalemeseingleses,ossimbolistasfranceses,asvanguardas dosculoXX,descrevemcomprecisoosinmerosaspectosespecficosda experinciaestticaedassuasrelaescomomundoemprico,comoobjetode arte, com o prazer subjetivo, com os contextos sociais, polticos e econmicos, com o conhecimento e as idias religiosas, ticas ou cientficas. Embora fragmentada em incontveis abordagens, essa reflexo foi to rica, que terminou pondo em xeque a estticacomodisciplinaunificadaeprovocoutambmprofundasmudanasna histria e na crtica da arte. NasegundametadedosculoXX,asreflexessobreestticatendema associar-seaponderaessociolgicas,confundindo-se,muitasvezes,como gnerodacrticacultural.Osconceitosclssicosdaestticaedateoriadaarte raramente aparecem em textos crticos sobre literatura, cinema ou artes plsticas.Atualmente,aestticanosomenteoestudodobelo,mastambmo estudo dos esconderijos profundos do ser, da essncia que se esconde por trs do 219 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 sujeitoadequadosociedadeaqualpertence.Acincianotemaintenode opinar sobre o valor esttico das artes nem explicar este fenmeno. O foco est no processodaatividadecriadoraenoestudopsicolgicodaestruturadaproduo artstica. O objeto de estudo quem est por detrs da criao, da obra e por outro lado,tambm,quemainterpreta.SegundoSilveira(2003,p.143),oartistaum homem coletivo, que expressa a alma inconsciente e ativa da humanidade. A arte criao,comumaexpressocoletivaecultural.Aestticaainterpretaodesta criao. Apartirdaspercepesqueresultamemimagensesensaesquese transformamemsentimentosmateriaiselementaresapartirdosquaisosujeito constri o conceito do mundo e do prprio comportamento nesse mundo, que cada sujeito tem uma expresso esttica distinta diante de um objeto de arte. Levando em contatodaahistriadaarte,desdeaartepr-histricaeprimitivaatopresente, todasuadiversidadepodeserexplicadamedianteavariaonosujeitoemsua forma de perceber e sentir a obra de arte.Segundo Read (2001, p. 292), a arte de hoje testemunho de nossa cultura, desuasqualidadespositivasedesuaslimitaes,damesmaformaqueasartes representamasculturasdopassado,noqualoprocessodecriaohumana obedeceaumamalhaderelaes,ondeapsiquegeraformas,atravsda imaginaoedapercepo,quesetransformamemlinguagens,concretizando-se nomaterial(tela,literrio,cnico),eaprofundando-senatcnicaeseexpandindo atravsdacultura.Nesteprocessohaativaodoinconscienteeintegraoda conscincia, buscando a sintonia com a psique.Desta maneira, a conscincia pode ser definida como percepo da forma, e todo processo de adquirir conscincia um processo de criao. Na viso de Read (2001, p. 8):[...]EducaoEstticaaeducaodossentidosnosquaisaconscincia e,emltimainstncia,aintelignciaeojulgamentodoindivduohumano estobaseados.squandoessessentidossolevadosaumarelao harmoniosaehabitualcomomundoexternoqueseconstituiuma personalidade integrada. Apaixoeoamor,comoforasativas,integramoaprendizadodeforma constantenavidaenocomportamentodosujeito:aprenderadar,aagirea crescer. A paixo d coragem ao frustrado, inspira o poeta, estimula o encabulado ao,inibeoextrovertido.Amsica,asartesplsticas,apoesia,aliteraturaso 220 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 movidasporessaforainvisvel,maspoderosa.svezessuaveeconstante,s vezes avassaladora. A DIMENSO FREUDIANA DA ESTTICA Aestticaaparececlaramentenodiscursofreudiano,aoqualelededicaum texto:O estranho,de 1919.NoinciodotextoFreud(2006f,p.237)afirmaque,na visodeumpsicanalista,aestticaseentendenosimplesmenteateoriada beleza, mas a teoria das qualidades do sentir. Naverdade,Freudnuncasepropsaavaliaraqualidadedeumquadroou uma escultura. O que constituiu seu tema privilegiado a anlise do prprio artista enquantoseexpressaatravsdesuaproduo.Noentanto,adimensoesttica estpraticamentepresenteemtodosostrabalhosdeFreud,sejacolocandoos dizeresdepoetas,sejaexplicitamentededicandoartigosamestresdaarteouda literatura. Ao lanar mo dos poetas, como se Freud pressentisse que s a poesia suportariaoalcancedesuasidias,poissapalavrapoticapoderiacarregaros desdobramentos possveis contidos na riqueza dos seus ditos.Podeserverdadequeoestranho(Unheimlich)sejaalgoque secretamente familiar, que foi submetido represso e depois voltou, e que tudoaquiloqueestranhosatisfazessacondio.[...]Nemtudooque preencheessacondionemtudooqueevocadesejosreprimidose modossuperadosdepensamento,quepertencempr-histriado indivduo e da raa por causa disso estranho (FREUD, 2006f, p. 262). Esseestranhoprocededeumaperceponoego,comoquevindado exterior,equepromoveumaintensamovimentaonopsiquismodosujeito, levando-oaumaambivalnciapulsionalEroseThanatos.Esseconflitopulsional lanaosujeitoaumlugarquesepensadesconhecido,marcadopelaautoridade, ondeoestranhosempreoOutro.Valelembrarquearedeconceitualfreudiana apresenta o sujeito como sendo estruturalmente dividido e sua verdade descentrada doespaodaconscincia.Aaohumanacomportaumsentidodesconhecido,o que,deacordocomFreud,demonstraaespecificidadedaquestoestticaparaa psicanlise: a articulao da ao do sujeito com o desejo inconsciente que o habita, ou uma esttica fundada no desejo.221 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 A dimenso esttica da psicanlise revela o contexto da linguagem para alm da ordem, pois se abre para o discurso fragmentado e descontnuo, para a produo dos efeitos do belo que se situam entre percepo angustiante, que vai do fenmeno dacompulsorepetio-expressodapulsodemorte-ataimpresso marcante na estrutura, de uma ausncia, de um vazio determinante. Freud, enquanto representante da alta-cultura e das tradies do iluminismo, se nutre das especulaes romnticas de sua poca e traz para a reflexo ocidental temas como o sonho, o inconsciente e a sexualidade, questionando o lado at ento consideradoobscurodanaturezahumana,unindoapesquisacientficacoma descobertadessadimensosombria,poucoapresentvelnaquelacultura.A psicanlise surge, assim, como um saber singular e desafiador no seu tempo. Nesta concepo, um dos interesses de Freud relativo Esttica, intervir na idiadopensamentoinconscientequenormatizaasproduesdoregimeesttico daarte,prordemnamaneiracomoaarteeopensamentosobreaartejogam com as relaes do saber e do no-saber, do sentido e do sem-sentido, do logos e do pathos, do real e do fantstico (RANCIRE, 2009). Paradesenvolvermosesseaspectodacontribuiodapsicanliseparaa esttica precisaremos abordar alguns de seus principais conceitos em sua referncia a esse campo. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE UMA ESTTICA FREUDIANA Aangstia,apulsoeodesejosoostrsconceitosfundamentaisna metapsicologiafreudianaqueservemdebaseparaoestudodaestticaaqui proposto.Aangstia,comoconceitoparadoxal,seafirmaenquantoinvestimento motor propulsor do recalque, para alm do campo das representaes e tambm no campo da representao afetiva. Este paradoxo a identidade de Eros e Thanatos, do belo e do horror. A angstia seria a descarga, por outras vias somticas, de uma excitaosexualinsatisfeita,consistindonumasensaodeacmulodeumoutro estmuloendgenooestmuloqueimpeleoserarespirarequeignoraqualquer outra elaborao psquica.222 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 Nas palavras de Freud (2006c, p. 244): Porangstgeralmenteentendemosoestadosubjetivodequesomos tomadosaoperceberosurgimentodaansiedade,eaistochamamosde afeto.Eoqueumafeto,nosentidodinmico?[...]Umafetoinclui,em primeirolugar,determinadasinervaesoudescargasmotorase,em segundo lugar, certos sentimentos; estes so de dois tipos: percepes das aesmotorasqueocorreramesensaesdiretasdeprazeredesprazer que, conforme dizemos, do ao afeto seu trao predominante. O segundo conceito, a pulso, se articula com o primeiro, porque o impacto pulsionalqueimprimeocarterdoobjetofundamentalcomosendoodeumvazio determinante,quetestemunhadopeloafetodaangstia.Aspulsesproduzem rupturasnoscircuitosestabelecidosparasuasatisfao,causandouma desarrumaopermanentedaordemestabelecidapeloregistrosimblico.Desta forma,humaconstanteexignciadediferenciao.Oterceiroconceito fundamental um movimento chamado de desejo.Empsicanlise,portanto,podemosfalaremumaestticadapaixoedo desejo.Elarepresentadapelafunodobelo,quesustentaoimaginrioao mesmo tempo em que o faz falhar, como expresso da forma e do movimento. Este movimentointensodemonstraodesejoempermanentedeslocamento,sempre referidoaodesejoporoutroobjeto,caracterizandoodesejocomoapresenade uma ausncia. A filosofia, num primeiro momento, trata a teorizao das artes sob a forma de potica, inaugurada por Plato e Aristteles (CHAU, 1995, p. 320); num segundo, a partirdosculoXVIII,sobaformadaesttica.Nietzsche,porexemplo,vaarte comoumamanifestaodavontadedepotncia,comexaltaodosentimentode vida, que transborda para o mundo das imagens e do desejo. Oobjetododesejoumobjetoperdido,umafalta,eesseobjetoperdido continuapresentecomofalta,procurandorealizar-seatravsdeumasriede substitutosqueformamumaredecontingentemantendoapermannciadafaltae tornandoodesejo,navisofreudiana,comoirredutvel,vistoqueeleumdesejo inconsciente. Oafetoumtermoqueapsicanlisebuscounaterminologiapsicolgica alemequeexprimequalquerestadoafetivo,penosooudesagradvel,vagoou qualificado,querseapresentesobaformadeumadescargamacia.Segundo Freud,todapulsoseexprimenosdoisregistros,doafetoedarepresentao.O 223 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 afeto(Affekt)aexpressoqualitativadaquantidadedeenergiapulsionaledas suas variaes. Oafetoassemelha-semaisaoenamorar-seouapaixonar-seporalgum, denotandoumamorromntico,incontrolvelquantossuas manifestaesecego emrelaoaosseusobjetos.Sendoassim,aquelequeamapodemanterasua visointacta,pormaquelequeseapaixonacegoemrelaoaosdefeitosdo objeto amado, ainda que o ltimo recobre sua viso depois de um maior convvio ou aps o casamento. AoriginalidadedeFreudestemdeslocaraconcepodoafetodoregistro neurolgicoparaoregistropropriamentepsicolgicoeissograasaosprogressos ocorridosnaelaboraodoconceitofundamentaldapulsoedanoode representao pulsional. A especulao terica leva suspeita de que h dois instintos fundamentais que jazem ocultos por detrs dos instintos do ego e dos instintos do objeto manifesto: a saber, (a) Eros, o instinto que luta sempre por uma unio mais estreita, e (b) o instinto de destruio, que leva no sentido da destruio do queestvivo.Empsicanlised-seonomedelibidomanifestaoda fora de Eros (FREUD, 2006g, p. 255). A noo de afeto assume grande importncia logo nos primeiros trabalhos de Breuer e Freud (Estudos sobre a Histeria, de 1895) sobre a psicoterapia da histeria e adescobertadovalorteraputicodaab-reao-descargaemocionalpelaqualo sujeitoselibertadoafetoligadorecordaodeumacontecimentotraumtico, segundoLaplancheePontalis(2001,p.1).Aorigemdosintomahistrico procuradanumacontecimentotraumticoaquenocorrespondeuumadescarga adequada. Somente quando a evocao da recordao provoca a revivescncia do afetoqueestavaligadoaelanaorigemquearememoraoencontraasua eficcia teraputica. Freud indica possibilidades de transformao do afeto: [...]Conheotrsmecanismos:1)odaconversodosafetos(histeriade converso);2)ododescolamentodoafeto(obsesses);e3)oda transformaoemafetos,eespecialmenteemansiedade,dasenergias psquicas dos instintos (FREUD, 2006, p. 259). Apartirdesseperodo,anoodeafetoutilizadaemduasperspectivas: podeterapenasumvalordescritivo,designandoaressonnciaemocionaldeuma experinciageralmenteforte.Masamaiorpartedasvezeselapostulaumateoria quantitativadosinvestimentos,anicaquepodetraduziraautonomiadoafetoem relaossuasdiversasmanifestaes.OafetotratadoporFreudnosseus 224 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 escritos metapsicolgicos O Recalque e O Inconsciente, ambos de 1915. O afeto umadasvicissitudesdaspulsesdefinidocomoatransformaosubjetivae especialmente em ansiedade, das energias psquicas das pulses (FREUD, 2006a, p.158).Freuddistingueaquinitidamenteoaspectosubjetivodoafetoeos processosenergticosqueocondicionam.Note-seque,paralelamenteaotermo afeto,eleempregaquantumdeafeto(Affektbetrag)entendendodesignarassimo aspecto propriamente econmico. Geralmente a expresso quantum de afeto tem sido adotada para designar esseoutroelementodorepresentantepsquico.Correspondepulsona medida em que esta se afasta da idia e encontra expresso, proporcional suaquantidade,emprocessosquesosentidoscomoafetos(FREUD, 2006a, p. 158). Aoterateoriadoafetoencontradoassimseureferencialnaprimeiratpica freudiana,apresenta-seaquestodamudanadeperspectivaquenelaintroduz, aps 1920, a segunda tpica: tal mudana dir respeito interpretao da angstia. NostermosdeInibio,sintomaseangstias(FREUD,1926),aangstiaum afeto,queocupaumaposioexcepcionalentreosestadosafetivos(FREUD, 2006g,p.132).Nestemomento,aoaplicarahiptesedetrabalhoaoafetoda angstia,Freudainscrevedefatonaperspectivaeconmicadosprocessos,o quantum do afeto, relacionado situao arcaica da urgncia vital, sendo objeto de inferncia caracterstica. Verifica-sequeFreud formulou uma hiptesegenticadestinada atraduziro aspectovividodoafeto:Osafetosseriamreproduesdeacontecimentosantigos deimportnciavitaleeventualmentepr-individuaiscomparveisa[...]acessos histricos universais, tpicos e inatos (FREUD, 2006g, p. 132).Jnafilosofia,oafetovistocomoonomecomumeeruditodadoaos sentimentos, das paixes, das emoes, dos desejos de tudo o que afeta o ser de forma agradvel ou no. O corpo experimenta; a alma sente, e isso que se chama afeto. Nada acontece em um que o outro no sinta. O afeto o nome dessa unidade que exprime um aumento ou uma diminuio da potncia do indivduo de existir e de agir.As emoes so vistas como um afeto momentneo, que move o ser mais do queoestrutura(comofariaumsentimento)oudoqueoarrebata(comofariauma paixo).Araivaeomedosoemoes,masquepodemdesembocarempaixes 225 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 ou em sentimentos, como so o dio, a ansiedade ou o amor. Todapaixo fonte de emoes. Adoreoprazersodoisafetosfundamentaissentidospeloindivduo.Sem saber o que a dor o ser no saberia distingu-la do prazer e vice-versa. A alegria umprazerdaalma,enquantoqueatristeza,umsofrimento.Odesejoa polarizaoqueresultadaoposiorealouimaginriadeles.Daoprincpiodo prazer, como diz Freud, que a grande lei da vida afetiva do ser. Naculturapsicanaltica,literriaefilosficadelnguafrancesa,otermo desejo(Dsir)designaocampodeexistnciadosujeitohumanosexuado,em oposioatodaabordagemtericadohumanoqueselimitariaaobiolgico,aos comportamentosouaossistemasderelao.EmFreud,desejoumtermono plural, os desejos ou determinadodesejo, que, por um lado, particularizado por umobjetoempricoeporoutro,umaexpressocaractersticadaabordagem freudiana: Wunscherfllung ou realizao do desejo. O temo desejo, ou Wunsch em alemo, no se imps de imediato pena de Freud.Imps-sepoucoapouconahistriadeseupensamentoreferente sexualidade.NolivroAinterpretaodossonhos,de1900,quelevou conceitualizao do sexual, a realidade prpria do desejo invocada por Freud num contexto polmico concernente funo do sonho, sendo que o desejo no aparece isoladamente, mas na expresso Wunscherfllung ou realizao do desejo, portanto, a idia de realizao alucinatria que traz a de desejo. Essa nova noo do desejo comoaquiloqueseanuncianossonhosentoconfrontadamultiplicidadedos pensamentos e desejos que puderam ocasionar a formao do sonho. A relao do desejo com o objeto , na teoria psicanaltica, em tudo diferente daquelaquecaracterizaarelaodanecessidadecomoobjetonumateoria biolgica. O objeto do desejo uma falta e no algo que propiciar uma satisfao. A estrutura do desejo implica nessa inacessibilidade do objeto e precisamente isso queotornaindestrutvel,poisodesejojamaissatisfeito,elepoderealizar-seem objetos, mas no se satisfaz com esses objetos.Freudforneceomodelodeconstituiododesejocombasenaexperincia de satisfao. Um beb recm-nascido, premido pela fome, chora e agita os braos, numatentativaintildeafastaroestmulocausadordainsatisfao.Ainterveno dameoferecendo-lheoseiotemcomoefeitoareduodatensodecorrenteda necessidadeeumaconsequenteexperinciaouvivnciadesatisfao 226 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 (Befriedigungserlebnis).Dapordiante,umaimagemmnemnicapermanece associadaaotraodememriadaexcitaoproduzidapelanecessidade,detal forma que na vez seguinte em que essa necessidade emerge [...]surgirdeimediatoumamoopsquicaqueprocurarrecatexiara imagemmnnicadapercepoereevocaraprpriapercepo,isto, restabelecer a situao de satisfao original. Um impulso ou moo dessa espcie o que chamamos de desejo; o reaparecimento da percepo a realizao do desejo(FREUD, 2006b, p. 594-595). Aidiadeeternidadeoudeindestrutibilidadedodesejoaparececomoa formulao terica que explica o fato clnico da insistncia de umdesejo da infncia emcadasonho.Freudisolaodesejoinfantilinsatisfeitoqueconstituicomouma reservaeternamente produtoradesonhos; depoiseleretorna otemadarealizao de desejo como evento do sonho, no captulo VII do livro e define odesejo como a suspenso provisria, pelo pensamento, dessa realizao, quando os traos de uma primeira satisfao foram reinvestidos. Afirma que desejar procurar a identidade de percepo que permitiu, num tempo primitivo, uma satisfao. Comoapulso,apaixopodesersituadanolimiteentreopsquicoeo somtico.Comoestadodocorpo,elareativaodeexperinciasprimordiaisem queaquiloquecausaodesejoeaangstiadlugaraumaligaovitalmarcada pelaavidezdosprimeirosvnculos.Aomesmotempo,porm,essesujeitopadece em seu corpo quando est sob o imprio de um discurso que o aliena: a paixo do significantesegundoLacan,ouseja,ainscrionoinconscientedapartedogozo perdida.Nisso,cadapaixoatestaointricamentodavidaedamorte,umamesma figura podendo representar os dois. Como Freud o enuncia em A questo da anlise leiga:[...] decidir quando mais oportuno dominar as prprias paixes e curvar-serealidadeou,aocontrrio,aceit-lasepreparar-separadefend-las contra o mundo externo constitui o alfa e omegada experincia da vida (FREUD, 2006g, p. 196). Ocorpotambmlinguagemdo desejoporqueincluiosdiversosmodosde expresso afetiva, de apresentaes estticas que se associam ao verbal e torna-se falante porque um corpo num conjunto de elementos significantes: asimpresses, comotraosindiferenciados,elospossveisparaaproduosimblicaeparao movimento desejante e as inscries, os traos diferenciados e ligados entre si. 227 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 AESTTICAFREUDIANAENIETZSCHIANACOMOCRTICADA MODERNIDADE Comavisoeuropiadevalorizaodaalta-cultura(apogeudo desenvolvimentocomqualidadespreciosas),sobretudonaAlemanha,Freud marcadopelainflunciadoiluminismodesuapoca,eacreditavaquearazoiria vencerafaltadepensamento,deobscurismo.Apesardessaeducaoiluminista Freudseinteressouportodososfenmenosqueessaprpriarazodeixavade lado: o mito, a lenda, a literatura, a arte, os chistes e os atos falhos. Freud, atravs de vrios textos, como Totem e Tabu, O Futuro de uma Iluso, Mal-estardaCivilizaoePsicologiadeGrupoeAnlisedoEgo,trabalhoucoma culturadeformaexplcita,utilizandomaterialdaetnologia-histria(atravsda religio),arteearqueologia(comomediaoentreahistriaeaarte).Apartirda etnologia,Freudexploraototemismoeaproibiodoincesto.Numainterseco entrehistriaearte,Freudencontrouosentimentoreligioso,afantasia,oxtase, quepermitiuumdeslizamentoentreassriesdoscomponentespatolgicosea srie da anlise das culturas, que colaborou na base do que era considerado normal ou patolgico. A preocupao de Freud a respeito do evolucionismo era relativa ao processo de passagem do ser humano da forma primitiva para a civilizao. Esta uma idia que pulsava no ocidente desde o sculo XVII, atravs das idias do iluminismo, com o progresso da condio humana grande transformao da humanidade. Atensoentreacivilizaoeapermitividadejestavapresentenofinaldo sculoXVIIInopensamentoeuropeu.NosculoXIX,comaformaodo imperialismo, em que as grandes potnciasda poca, Frana, Espanha e Portugal, foramsendosubstitudaspelopredomniodaInglaterra,Holandaeoutras,surge claramente o testemunho do mundo primitivo de forma mais palpvel e tensa, com o totemismoeasregrasdeproibiodoincesto(quesecontrapunhasformasdo ocidente)queencontravamsuabaseuniversal,tornando-sefundamentaisna sociologia e na antropologia, na segunda metade do sculo XIX.Numpassadoarcaico,asforasdionisacasdaembriaguez,doxtase,da vontadedepotnciareinavamsempartilha.ParaNietzsche,estecultoaDionsio representaofimdoprincpiodaindividuao,avitriasobreaunidadeealei.A 228 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 crtica da modernidade assume em Nietzsche a forma devastadora, que desmascara o bem e o mal, o dever e a culpa, como simples mscaras da vontade de potncia, princpio fundamental que atravessa toda a histria do homem, de suas instituies e de suas produes culturais.NolivroParaalmdobemedomal,Nietzschetratanosomenteda sublimaodaspulsesdedestruio,mastambmdaquestodacrueldade, presentesnosescritostrgicos.Ofilsofovaialmdoshorizontesdacultura helnica e v a crueldade atuando onde quer que se encontre a civilizao: Quase tudo que denominamos civilizao repousa sobre a espiritualizao eoaprofundamentodacrueldadeestaaminhatese.Estafera selvagemnofoideformaalgumaabatida,elavive,elaprospera,fez somentediviniza-se.Oqueconstituiavoluptuosadordatragdiaa crueldade; o que age de maneira agradvel na pretensa compaixo trgica, emesmo,emltimaanlise,emtudoaquiloquesublime,ataosmais altosedelicadosfrmitos dametafsica,recebeasuadourasomentedo ingrediente da crueldade que est a misturado (NIETZSCHE, 2007, p. 149-150). Nietzscherealizaumacrticadarazo,emnomedapaixopelopoder,a WillezurMacht,noemsuaformacontempornea,degenerada,niilista,masem sua forma originria, herica, assumindo o ponto de vista dos poderes ativos contra os poderes meramente reativos da modernidade. Sob esta forma, a razo dominou o pensamentoocidental,vistadeformasoberana.Comrarasexcees,pensadores, filsofos, mdicos, telogos tm preconizado o controle daspaixes, principalmente asexualidade,mesmoquandoessecontrolenoobedeciaaargumentos racionalmente plausveis. Freud constri e fundamenta seu aparelho terico apoderando-se da crtica e do pensamento do totemismo e da proibio do incesto, indo alm da influncia do evolucionismo, e teve tambm a influncia tambm do romantismo (construo de si Bildung) e ao falar da representao da cultura, ele a insere na produo abstrata, tensaaquechegaamesmaapsumperododedesenvolvimentodaexperincia humana. At 1915, Freud acreditava que as luzes da razo iriam salvar o mundo. Aps aprimeiraguerramundial,elepassouaacreditarquehalgodeobscurono homem, que nem a razo daria conta, pois viu que, alm dos horrores da guerra, os intelectuais da poca foram a favor da guerra e aderiram ao nazismo.Acivilizaoconseguedominaraagressividadedosujeito,poiselea introjeta,levando-adevoltaparaoseuego,lugardeorigem,criandoumatenso 229 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 entreoseverosuperegoeoego,esobaformadeconscinciamoral,gerao sentimentodeculpa,queadvmdeumpensamentoouaoconsideradam, ameaandoosujeitopelapossvelpunio,sejaelainternaouexterna.Esteo cerne da crtica de Freud cultura, e quando ele rompe com a ideologia de que o homembomecorrompidopelasociedade,trazendotonaessaanimalidade natanele,eintroduz,nocontextodesuasegundatpica,apulsodemorteea pulsodevida,em1920.NaprimeiratpicadaconstruodaPsicanlise,Freud demonstraosconflitosentreaspulsesdo egoeaspulsessexuais.Pormeiodo reconhecimentodoslimitesdaracionalidade,Freudcriaapossibilidadedeum conhecimento da vida mental que leva em conta o inconsciente, ou seja, aquilo que s pode ser conhecido uma vez que deixa de serinconsciente. Freud acredita que, apesardenopoderconheceroinconscientecomotal,suaapresentao conscinciaofereceumacessoaessemundoinconscienteemesmouma possibilidade de sua transformao.Freudmostroucomoasconfiguraesexternasdepodermobilizamo aparelhopsquicoparabloquearoudeformaroprocessodoconhecimento. Obedecendoasinaisdomundoexterior,oegoacionadispositivosdedefesaque levamosujeitoafugirdiantedapercepooudopensamento,pelaaodo princpiodoprazer,quecolocaprovisoriamenteforadecircuitooprincpioda realidade.Essadistoroocorrenosdoisnveisprincipaisemquesed,para Freud,oprocessodoconhecimento:odapercepo,externa,omundosocialdas normas e instituies e interna, atravs do recalque, e o do pensamento, cuja funo coordenaraspercepesexternascomoscontedosinternos,afimdeproduzir modelos cognitivos adequados realidade. Nas palavras de Freud, (2006d, p. 167): Nossa maior esperana para o futuro que o intelecto esprito cientfico, a razo possa, com o decorrer do tempo, estabelecer seu domnio sobre avidamentaldohomem.Anaturezadarazoumagarantiadeque, depois,elanodeixardedaraosimpulsosemocionaisdohomem,e quiloqueestesdeterminam,aposioquemerecem.Acompulso comum exercida por um tal domnio da razo, contudo, provar ser o mais forteelodeunioentreoshomensemostrarocaminhoparaunies subseqentes. Amodernidadeoprodutodoprocessoderacionalizaoqueocorreuno ocidente desde o final do sculo XVIII e que implicou na modernizao da sociedade edacultura,quesedeuatravsdadiferenciaodaeconomiacapitalistaedas vises do mundo em especial, da religio. Em conseqncia desse processo, vo se 230 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 diferenciando trsesferas autnomas, at ento embutidas na religio: a cincia, a moral e a arte. A moral, inicialmente derivada da religio, agora coincide com os de determinadosgrupos.Osprincpiosmorais,internalizadospelosujeito,deram origem tica do trabalho e forneceram a base para o desenvolvimento capitalista. Umadascaractersticasdessamoralsecularizadafoiauniversalizao:as normasvaliamparatodosenoapenasparaoclouatribo,comoocorrianas sociedadestradicionais.DuranteamaiorpartedosculoXIX,essamoralsecular, universalista e supervisionada pela razo continuou prevalecendo. Ela bastava para asseguraraformaodepersonalidadescongruentescomasnecessidades funcionaisdosistemacapitalista.Emtermosfreudianos,orepresamentopulsional era suficiente para assegurar a ordem social, e os valores introjetados privilegiam o trabalho, essencial para o processo de acumulao. Pensar-se-iaserpossvelumreordenamentodasrelaeshumanasque removeria as fontes de insatisfao para com a civilizao pela renncia coeroerepressodosinstintos,desorteque,imperturbadospela discrdia interna, os homens pudessem dedicar-se aquisioda riqueza esuafruio.[...]Parece,antes,quetodacivilizaotemdeseerigir sobre a coero e a renncia pulso; [...] Acho que se tem que levar em contaofatodeestarempresentesemtodososhomenstendncias destrutivase,portanto,anti-sociaiseanti-culturais,eque,numgrande nmerodepessoas,essastendnciassosuficientementefortespara determinar o comportamento delas na sociedade humana (FREUD, 2006e, p. 17). No incio do sculo XX, comeou a delinear-se certa mutao moral. Pode-se mesmoafirmarqueapsicanlisecontribuiuparadestituirostradicionais mecanismosdarepresso.Simultaneamente,omodernismoestticopassoua valorizaraespontaneidade,adessublimao,avidapulsional.Osurrealismo passouaadvogaraestetizaodavida,suatransformaoemobradearte.Em contrastecomamoralburguesadoinciodocapitalismo,amoraldocapitalismo tardio tornou-se crescentemente anrquica, invertendo a hierarquia tradicional entre a razo e as paixes: a inteligncia era agora vista como secundria com relao ao desejo. Aracionalidadesetornaracionalidadeinstrumentaleoscamposdavida social,polticaemesmoartsticasoreduzidosaquestesdeeficincia.A dimensodosignificadoeasquestesdequalidadedevidaehumanidade desaparecememummundodominadoporcritriosdeeficinciaesucesso, medidos quantitativamente em termos financeiros. 231 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 Nassociedadesmodernas,opodernoseexercemaisprioritariamente atravsdasoberaniadereiscomonopassado,masatravsdeprticasinvisveis, que atravessam todo corpo social, sob a forma de disciplinas, e se concretizam em instituies de notao e registro, de observao e classificao a priso, a escola, afbrica,acaserna,oasilopsiquitrico.Humaindissociaodesaberepoder, onde o poder constitui a condio bsica para a constituio do saber. O ps-modernismo substituiu a justificao esttica da vida (caracterstica do modernismo)pelajustificaopulsional.Soimpulsoeoprazersoreaise afirmadoresdavida;orestoneuroseemorte.Amoral,ditamoderna,continua existindo,masperdeusuaposiodemonoplio.Hoje,humaatomizaode morais-culturasjovens,seitas,movimentosecologistasepacifistasentreoutros, que seria a condio ps-moderna da moralidade. Oapelodapublicidadeestetizadaatualmenteenvolveapersonalizaoea erotizaodomundodasmercadorias:ohomemseduzidopeloobjetoparase integrarnocircuitodocapitalismo.Huminvestimentolibidinalnosobjetos,um desejodeposseedestatus,queprojetaodesejodepoderedeumespao individualizado. Odiscurso,longedesertransparenteouneutro,noqualasexualidadese desarma e a poltica se pacifica, o lugar onde ele exerce seu poder. As interdies que atingem odiscurso revelam sua ligao com odesejo e o poder. A psicanlise mostra que o discurso no simplesmente aquilo que manifesta ou oculta o desejo; , tambm, aquilo que o objeto do desejo: a nsia pelo poder, na viso de Foucault (2008, p. 9-10). SegundoQuinet(2009),osdiscursosnosooratriasesimlaossociais, queLacantitulapordesejo,oqualunemaspessoasdentrodasociedadeeso tecidos de linguagem. Freud diz que na atual civilizao h trs formas dos sujeitos serelacionarem:governardiscursodomestre;educardiscursouniversitrioe psicanalizardiscursodoanalista.Lacanacrescentamaisuma:fazerdesejar discursodo histrico. Para Lacan, a sociedade formada por laos sociais e estes so delimitados, codificados, normatizados, no somente por conta da histria, mas por algo estrutural, pois para a Psicanlise o sujeito do coletivo o mesmo do sujeito individual. Esse sujeito do inconsciente no se distingue do sujeito do lao social que interagecomosoutros(amigos,pais,colegasdetrabalho).NotextoMal-Estarna Civilizao, Freud(2006e, p. 93)expe, como j visto, as trs fontes de sofrimento 232 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 humano,ondeaprincipalarelaoentreseuspares.Essemal-estarfazparte, estincludo,nohlaosocialsemomal-estar,ondeooutrofazparteda subjetividade do sujeito e do prprio conceito de sujeito.Entre as vrias especialidades exigidas por uma sociedade industrial moderna estacapacidade de seestabelecerinter-relaesinstantneasentrevriasreas do saber. Num mundo cada vez mais fragmentado pela diviso de trabalho, em que osujeitoconhececadavezmaissobrecadavezmenos,afiguradogeneralista competente,quenenhumcomputadorpodesubstituir,torna-seindispensvelpara evitar a total atomizao da vida. CONCLUSO A crtica racionalidade fundamental para as cincias em geral, pois o que est em pauta no a defesa de uma nova forma de racionalidade como uma forma disfarada de dominao.Sabe-se que a arte desempenha papel importante na estruturao do sujeito. Nietzschebaseia-seneste fatoparadistinguirosdoisprincpiosquecorrespondem na teoria psicanaltica a Eros pulso de vida e Thanatos pulso de morte. Ambas asforassovivenciadaspelosujeitodeformaconstanteeentrelaadas representativasdarazoedapaixo,cujoefeitotrgicovividonessaluta constante entre as duas. Elas, no entanto, so ambivalentes na medida em que Eros e Thanatos lutam um contra o outro, batem-se e se destroem mutuamente, mas, ao mesmotempo,co-operamnarepetioenadiferena,nasatisfaoena insatisfao, no prazer e no desprazer, na dilacerao e no gozo, revelando o duplo e paradoxal carter do desejo e, em ltima instncia, das pulses de vida e de morte edavontadedepotncia.quetantoErosquantoThanatosnopodemser pensados e nem concebidos, de maneira separada. Emtodasassuasformas,apaixodesejopostoemtensoeemoes intensificadas. No sentido do pathos, ela , no entanto mais subitamente sofrida que deliberadamenteatuada.Defato,pornosepossuirasimesmoqueumsujeito pode ser capturado por uma paixo que transborda os limites do eu, podendo lev-lo expansonarcsicaouameaadedissoluo.Emqualquercaso,osujeito 233 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 atravessaacadavezummomentodefascinaoemqueseduzidoeemqueo destinoparecelheacenar.Esseotraocomumquepermiteidentificarcomo paixo uma srie de fenmenos: o enamoramento, a entrada em transe, a crena, a excitao sbita, mas tambm a aposta do jogador, a obstinao do colecionador.Contemporneos,FreudeNietzschecompartilhavamumcenriohistrico comum.AorevisitaremoTeatroGrego,ambosautorestentaramresgatara experinciavividaatravsdastragdias,nasquaisaspaixeseramcolocadasem cena e que promoviam o extravasamento dessa desmedida, devolvendo ao sujeito o metron, o equilbrio. O estilo romntico, adotado por Freud aps 1920, pode ser entendido a partir deumagrandee profundacriseque ocorreuemtodosos domniosdaexperincia humana,entreofinaldosculoXVIIIemeadosdosculoXIX,quenutria esperanasnatentativadeencontrarrespostasrestauradorasdaunidadeeda harmonia, perdidasemtodososterrenosdavidasocialdapoca,emoposioao iluminismo,razogeomtrica,linear,voltadaparaaobjetivaoexternacontrao privilgio da parte. Esse movimento reflexivo se fez acompanhar de um olhar crtico para a realidade e para a histria do homem.Plato,Hegel,Schopenhauer,NietzscheeFreud.Emtodopensador,no existeumasntesedodesejo,queconstituiosujeitoenquantosujeito,poiseste, assimcomoaspulses,sedesenrolainfinitamente,numarenovadasatisfao-insatisfao,amoredio,vidaemorte,queelesprocuramnomear,significar,mas que no cessam de terminar, porque no cessam de recomear.O desencanto com a razo cartesiana, vivenciado por Freud e por Nietzsche, favoreceu a nfase s diversidades numa nova proposta de considerao ao Outro, comoformadeadmitireprotegerasdiferenas,queintegramnossasociedade multicultural, e que nos fazem repensar as idias de respeito e justia pelo outro. 234 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 REFERNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de filosofia. 5. ed. rev. e aum. So Paulo: Martins Fontes, 2007. ASSOUN, Paul-Laurent.Freud e Nietzsche: semelhanas e dessemelhanas. 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