Ética e Psicanálise. Por Uma Crítica Da Modernidade

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DOI:10.5007/1807-1384.2011v8n2p215 ESTÉTICA E PSICANÁLISE: POR UMA CRÍTICA DA MODERNIDADE AESTHETICS AND PSYCHOANALYSIS: FOR A CRITICISM OF MODERNITY ESTÉTICA Y PSICOANÁLISIS: PARA UNA CRÍTICA DE LA MODERNIDAD Cristina Aparecida Tannure Cavalcanti 1 Maria Cristina Candal Poli 2 RESUMO: O presente artigo se propõe a fazer um percorrido sobre alguns fundamentos do estudo da estética, desenvolvida no cerne da modernidade como disciplina acadêmica e como base teórica da crítica da arte. Elaborada pelo romantismo, foi, na sequência, adotada pela psicanálise. Na obra freudiana e na filosofia de Nietzsche podemos observar – como buscaremos demonstrar – sua função privilegiada na sustentação de uma crítica cultural. Isso porque, enquanto lócus privilegiado de expressão da tensão entre logos e pathos, é na estética que a psicanálise encontra o principal testemunho dos paradoxos de uma cultura pretensamente assentada na consciência de si. Palavras-chave: Psicanálise. Estética. Nietzsche. Pulsão. Crítica cultural. ABSTRACT: The present article intends to cover some foundations of the study of aesthetics, developed at the core of modernity as an academic discipline and as theoretical basis of art criticism. Prepared by romanticism, was subsequently adopted by psychoanalysis. In Freud and in the philosophy of Nietzsche we can observe - as we will try to demonstrate - its privileged function in support of a cultural criticism. This is because, while privileged locus of expression of the tension between pathos and logos, it is in aesthetics that the psychoanalysis finds the main certification of the paradoxes of a culture allegedly seated in self-awareness. Key-words: Psychoanalysis. Aesthetics. Nietzsche. Drive. Cultural Criticism 1 Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida - UVA (2010), Especialista em Educação Estética pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (2006). Bacharel em Turismo pela FACHA (1979), Secretária Executiva da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Psicologia, Universite de Paris XIII (Paris-Nord), U.P.XIII, França. Pós-doutorado, UFRJ. Psicanalista, Membro da APPOA, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFGRS e do Mestrado Interdisciplinar Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida - RJ, Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected] Esta obra foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 3.0 Não Adaptada.

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Artigo sobre ética e psicanálise.

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DOI:10.5007/1807-1384.2011v8n2p215 ESTTICA E PSICANLISE: POR UMA CRTICA DA MODERNIDADE AESTHETICS AND PSYCHOANALYSIS: FOR A CRITICISM OF MODERNITY ESTTICA Y PSICOANLISIS: PARA UNA CRTICA DE LA MODERNIDAD Cristina Aparecida Tannure Cavalcanti1 Maria Cristina Candal Poli2 RESUMO: Opresenteartigosepropeafazerumpercorridosobrealgunsfundamentosdo estudodaesttica,desenvolvidanocernedamodernidadecomodisciplina acadmicaecomobasetericadacrticadaarte.Elaboradapeloromantismo,foi, nasequncia,adotadapelapsicanlise.Naobrafreudianaenafilosofiade Nietzschepodemosobservarcomobuscaremosdemonstrarsuafuno privilegiadanasustentaodeumacrticacultural.Issoporque,enquantolcus privilegiadodeexpressodatensoentrelogosepathos,naestticaquea psicanliseencontraoprincipaltestemunhodosparadoxosdeumacultura pretensamente assentada na conscincia de si. Palavras-chave: Psicanlise. Esttica. Nietzsche. Pulso. Crtica cultural. ABSTRACT: Thepresentarticleintendstocoversomefoundationsofthestudyofaesthetics, developedatthecoreofmodernityasanacademicdisciplineandastheoretical basisofartcriticism.Preparedbyromanticism,wassubsequentlyadoptedby psychoanalysis. In Freud and in the philosophy of Nietzsche we can observe - as we will try to demonstrate - its privileged function in support of a cultural criticism. This is because,whileprivilegedlocusofexpressionofthetensionbetweenpathosand logos,itisinaestheticsthatthepsychoanalysisfindsthemaincertificationofthe paradoxes of a culture allegedly seated in self-awareness. Key-words: Psychoanalysis. Aesthetics. Nietzsche. Drive. Cultural Criticism

1MestreemPsicanlise,SadeeSociedadepelaUniversidadeVeigadeAlmeida-UVA (2010), Especialista em Educao Esttica pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro- UNIRIO (2006).Bacharelem TurismopelaFACHA(1979),SecretriaExecutivadaUniversidadeFederaldo Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. E-mail: [email protected] Doutora em Psicologia, Universite de Paris XIII (Paris-Nord), U.P.XIII, Frana. Ps-doutorado, UFRJ. Psicanalista, Membro da APPOA, Professora do Programa de Ps-Graduao em Psicologia Social e InstitucionaldaUFGRSedoMestradoInterdisciplinarPsicanlise,SadeeSociedadeda Universidade Veiga de Almeida - RJ, Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected] EstaobrafoilicenciadacomumaLicenaCreativeCommons-Atribuio3.0No Adaptada. 216 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 RESUMEN: Elpresenteartculoseproponeahacerunrecorridoporalgunosfundamentosdel estudiodelaesttica,desarrolladaenelcorazndelamodernidadcomouna disciplinaacadmicaycomobasetericadelacrticadelarte.Elaboradaporel romanticismo, fue despus adoptada por el psicoanlisis. En la obra freudiana y en lafilosofadeNietzschesepuedeobservar-comotrataremosdedemostrar-su funcinprivilegiadaenlasustentacindeunacrticacultural.Esoporque,mientras locus privilegiado de la expresin de la tensin entre logos y pathos, es en la esttica que el psicoanlisis encuentra el principal testimonio de las paradojas de una cultura que se pretende asentada en la conciencia de si mismo. Palabras clave: Psicoanlisis. Esttica. Nietzsche. Pulsin. Crtica Cultural. APRESENTAO O presente artigo se prope a fazer um percorrido sobre alguns fundamentos doestudodaesttica,desenvolvidanocernedamodernidadecomodisciplina acadmicaecomobasetericadacrticadaarte.Elaboradapeloromantismo,foi, nasequncia,adotadapelapsicanlise.NasobrasdeFreudedeNietzsche podemosobservarcomobuscaremosdemonstrarsuafunoprivilegiadana sustentaodeumacrticacultural.Issoporque,enquantolcusprivilegiadode expresso da tenso entre logos e pathos, na esttica que a psicanlise encontra oprincipaltestemunho(READ,2001;RANCIRE,2009)dosparadoxosdeuma cultura pretensamente assentada na concincia-de-si. A dimenso psicanaltica da esttica perpassa o discurso freudiano, includo a elaboraodealgunsconceitosfundamentais.Essesmesmosconceitos colaboraram na formao de uma viso crtica da modernidade, tal como sustentada apartirdaobradeFreud.Essespontosconstituemumaheranaculturalprxima, como indicaremos nesse artigo, daquela avanada pela filosofia de Nietzsche. ESTTICA Apalavraestticaderivadogregoasthesis,quesignificasentimento, sensao ou sensao sensvel, em completa oposio lgica, conhecida como a 217 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 cincia das regras do pensamento. Aesttica analisa o complexo das sensaes e dossentimentos,investigasuaintegraonasatividadesfsicasementaisdo homem,debruando-sesobreasprodues(artsticasouno)dasensibilidade, com o fim de determinar suas relaes sobre o conhecimento, a razo e a tica.Desta forma, a esttica situada como o estudo da complexidade do homem dasuacapacidadedeapreensoedeexpressoqueseorganizaatravsda interaoconsciente/inconscientenaconstruodelinguagens(GRANJA,2005). Ela permeia todas as reas de conhecimento, com uma trajetria de reflexo e que fornece a base para a construo no ser de compreenso dos aspectos da vida. AdisciplinaacadmicadaestticacomeanosculoXVIIIcoma investigaodofilsofoalemoAlexanderBaumgarten(1714-1762),quesegueas exignciasiluministasdaquelesculodedefinirelimitartodasasreasdosaber humano(Rosenfield,2006,p.8).Antesdele,asestticassempreestavam integradasemabordagenssistemticasdafilosofia,confundindo-semuitasvezes com reflexes auxiliares e iluminando problemas ticos ou a teoria do conhecimento. Entre 1750 e 1758, Baumgarten publica duas obras, as quais separam a doutrina da belezaestticadasoutraspartesdafilosofia.SegundoRancire(2009,p.12),o filsofosublinhaaautonomiadadisciplina,chamando-adeirmmaisjovemda lgicaedesignaaestticacomoodomniodoconhecimentosensvel,do conhecimento claro e distinto da lgica.No contexto do romantismo e do idealismo ps-kantiano, a esttica passar a designaropensamentodaarte.Oromantismoaceitae adotaoconceitodePlato elaborado pelos moralistas franceses e por Kant de que a paixo no uma emoo ouumestadoafetivoparticular,masodomniototaleprofundoqueumestado afetivo exerce sobre toda a personalidade ou subjetividade do sujeito. Durante sculos, a histria da arte se confundiu com a histria da cultura, as coisas belas estavam integradas aos cultos religiosos, polticos e sociais. s prticas da vida cotidiana e s tcnicas que sustentavam a sobrevivncia ou a conquista do espao vital. Em todos os domnios da construo do espao urbano vestimenta, doshbitosculinriosaoarmamento,aartepreencheufunessocialmente importantes.Osobjetosdaarteprimitivasoindissociveisda magia,dareligioe dos rituais; esculturas, armas ou jias arcaicas expressavam claramente o prestgio socialepolticodosseusproprietrios;e,aindanapocaclssica,aeducao grega gira em torno da idia de uma convergncia do valor esttico com os valores 218 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 ticos(utilidadesocialepoltica)dacomunidade.Essaidiadsentido formade educaoquejamaisdissociaaticaeapolticadaestticaedastcnicasde produo de belos objetos. Ao longo do sculo XIX, a esttica conquistou um ramo especfico do saber: o estudo do belo. A esttica j era pensada como parte da natureza do homem, esfera naqualpensamentoesentimentosereconciliavamdeformasuperior.Obelo, enquantoefeitosublimatrio-conceitoqueantesdapsicanlisejerautilizadona filosofia-temcomofunoperturbar,comovereindicaropara-almdaimagem, pois a intensidade da imagem-surpresa que lana o sujeito do desejo no simblico, porqueointerrogaeosolicita,operandoapossibilidadedecriaoatravsde inscrio de novos traos e de novas apresentaes dos objetos do desejo. EntreosintrpretesdosculoXX,segundoRosenfield(2006,p.37),hos queressaltamofatodequeosentimentodobelodecorredojulgamentoequea imaginaoouintuioapreendem,diantedoobjetobelo,umaimagemeum esquema, sem que o entendimento possa fornecer um conceito. ParaGranja(2005),arepresentaoeaapresentaoconstituemasduas facesouasduasposiescomplementaresdaexperinciaesttica.O desenvolvimentoea histriada arteformaramo processodialticoquepermiteao espritotomarconscinciadomundo(nasrepresentaes)edesimesmo(na apresentao dessas representaes). Osromnticosalemeseingleses,ossimbolistasfranceses,asvanguardas dosculoXX,descrevemcomprecisoosinmerosaspectosespecficosda experinciaestticaedassuasrelaescomomundoemprico,comoobjetode arte, com o prazer subjetivo, com os contextos sociais, polticos e econmicos, com o conhecimento e as idias religiosas, ticas ou cientficas. Embora fragmentada em incontveis abordagens, essa reflexo foi to rica, que terminou pondo em xeque a estticacomodisciplinaunificadaeprovocoutambmprofundasmudanasna histria e na crtica da arte. NasegundametadedosculoXX,asreflexessobreestticatendema associar-seaponderaessociolgicas,confundindo-se,muitasvezes,como gnerodacrticacultural.Osconceitosclssicosdaestticaedateoriadaarte raramente aparecem em textos crticos sobre literatura, cinema ou artes plsticas.Atualmente,aestticanosomenteoestudodobelo,mastambmo estudo dos esconderijos profundos do ser, da essncia que se esconde por trs do 219 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 sujeitoadequadosociedadeaqualpertence.Acincianotemaintenode opinar sobre o valor esttico das artes nem explicar este fenmeno. O foco est no processodaatividadecriadoraenoestudopsicolgicodaestruturadaproduo artstica. O objeto de estudo quem est por detrs da criao, da obra e por outro lado,tambm,quemainterpreta.SegundoSilveira(2003,p.143),oartistaum homem coletivo, que expressa a alma inconsciente e ativa da humanidade. A arte criao,comumaexpressocoletivaecultural.Aestticaainterpretaodesta criao. Apartirdaspercepesqueresultamemimagensesensaesquese transformamemsentimentosmateriaiselementaresapartirdosquaisosujeito constri o conceito do mundo e do prprio comportamento nesse mundo, que cada sujeito tem uma expresso esttica distinta diante de um objeto de arte. Levando em contatodaahistriadaarte,desdeaartepr-histricaeprimitivaatopresente, todasuadiversidadepodeserexplicadamedianteavariaonosujeitoemsua forma de perceber e sentir a obra de arte.Segundo Read (2001, p. 292), a arte de hoje testemunho de nossa cultura, desuasqualidadespositivasedesuaslimitaes,damesmaformaqueasartes representamasculturasdopassado,noqualoprocessodecriaohumana obedeceaumamalhaderelaes,ondeapsiquegeraformas,atravsda imaginaoedapercepo,quesetransformamemlinguagens,concretizando-se nomaterial(tela,literrio,cnico),eaprofundando-senatcnicaeseexpandindo atravsdacultura.Nesteprocessohaativaodoinconscienteeintegraoda conscincia, buscando a sintonia com a psique.Desta maneira, a conscincia pode ser definida como percepo da forma, e todo processo de adquirir conscincia um processo de criao. Na viso de Read (2001, p. 8):[...]EducaoEstticaaeducaodossentidosnosquaisaconscincia e,emltimainstncia,aintelignciaeojulgamentodoindivduohumano estobaseados.squandoessessentidossolevadosaumarelao harmoniosaehabitualcomomundoexternoqueseconstituiuma personalidade integrada. Apaixoeoamor,comoforasativas,integramoaprendizadodeforma constantenavidaenocomportamentodosujeito:aprenderadar,aagirea crescer. A paixo d coragem ao frustrado, inspira o poeta, estimula o encabulado ao,inibeoextrovertido.Amsica,asartesplsticas,apoesia,aliteraturaso 220 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 movidasporessaforainvisvel,maspoderosa.svezessuaveeconstante,s vezes avassaladora. A DIMENSO FREUDIANA DA ESTTICA Aestticaaparececlaramentenodiscursofreudiano,aoqualelededicaum texto:O estranho,de 1919.NoinciodotextoFreud(2006f,p.237)afirmaque,na visodeumpsicanalista,aestticaseentendenosimplesmenteateoriada beleza, mas a teoria das qualidades do sentir. Naverdade,Freudnuncasepropsaavaliaraqualidadedeumquadroou uma escultura. O que constituiu seu tema privilegiado a anlise do prprio artista enquantoseexpressaatravsdesuaproduo.Noentanto,adimensoesttica estpraticamentepresenteemtodosostrabalhosdeFreud,sejacolocandoos dizeresdepoetas,sejaexplicitamentededicandoartigosamestresdaarteouda literatura. Ao lanar mo dos poetas, como se Freud pressentisse que s a poesia suportariaoalcancedesuasidias,poissapalavrapoticapoderiacarregaros desdobramentos possveis contidos na riqueza dos seus ditos.Podeserverdadequeoestranho(Unheimlich)sejaalgoque secretamente familiar, que foi submetido represso e depois voltou, e que tudoaquiloqueestranhosatisfazessacondio.[...]Nemtudooque preencheessacondionemtudooqueevocadesejosreprimidose modossuperadosdepensamento,quepertencempr-histriado indivduo e da raa por causa disso estranho (FREUD, 2006f, p. 262). Esseestranhoprocededeumaperceponoego,comoquevindado exterior,equepromoveumaintensamovimentaonopsiquismodosujeito, levando-oaumaambivalnciapulsionalEroseThanatos.Esseconflitopulsional lanaosujeitoaumlugarquesepensadesconhecido,marcadopelaautoridade, ondeoestranhosempreoOutro.Valelembrarquearedeconceitualfreudiana apresenta o sujeito como sendo estruturalmente dividido e sua verdade descentrada doespaodaconscincia.Aaohumanacomportaumsentidodesconhecido,o que,deacordocomFreud,demonstraaespecificidadedaquestoestticaparaa psicanlise: a articulao da ao do sujeito com o desejo inconsciente que o habita, ou uma esttica fundada no desejo.221 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 A dimenso esttica da psicanlise revela o contexto da linguagem para alm da ordem, pois se abre para o discurso fragmentado e descontnuo, para a produo dos efeitos do belo que se situam entre percepo angustiante, que vai do fenmeno dacompulsorepetio-expressodapulsodemorte-ataimpresso marcante na estrutura, de uma ausncia, de um vazio determinante. Freud, enquanto representante da alta-cultura e das tradies do iluminismo, se nutre das especulaes romnticas de sua poca e traz para a reflexo ocidental temas como o sonho, o inconsciente e a sexualidade, questionando o lado at ento consideradoobscurodanaturezahumana,unindoapesquisacientficacoma descobertadessadimensosombria,poucoapresentvelnaquelacultura.A psicanlise surge, assim, como um saber singular e desafiador no seu tempo. Nesta concepo, um dos interesses de Freud relativo Esttica, intervir na idiadopensamentoinconscientequenormatizaasproduesdoregimeesttico daarte,prordemnamaneiracomoaarteeopensamentosobreaartejogam com as relaes do saber e do no-saber, do sentido e do sem-sentido, do logos e do pathos, do real e do fantstico (RANCIRE, 2009). Paradesenvolvermosesseaspectodacontribuiodapsicanliseparaa esttica precisaremos abordar alguns de seus principais conceitos em sua referncia a esse campo. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE UMA ESTTICA FREUDIANA Aangstia,apulsoeodesejosoostrsconceitosfundamentaisna metapsicologiafreudianaqueservemdebaseparaoestudodaestticaaqui proposto.Aangstia,comoconceitoparadoxal,seafirmaenquantoinvestimento motor propulsor do recalque, para alm do campo das representaes e tambm no campo da representao afetiva. Este paradoxo a identidade de Eros e Thanatos, do belo e do horror. A angstia seria a descarga, por outras vias somticas, de uma excitaosexualinsatisfeita,consistindonumasensaodeacmulodeumoutro estmuloendgenooestmuloqueimpeleoserarespirarequeignoraqualquer outra elaborao psquica.222 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 Nas palavras de Freud (2006c, p. 244): Porangstgeralmenteentendemosoestadosubjetivodequesomos tomadosaoperceberosurgimentodaansiedade,eaistochamamosde afeto.Eoqueumafeto,nosentidodinmico?[...]Umafetoinclui,em primeirolugar,determinadasinervaesoudescargasmotorase,em segundo lugar, certos sentimentos; estes so de dois tipos: percepes das aesmotorasqueocorreramesensaesdiretasdeprazeredesprazer que, conforme dizemos, do ao afeto seu trao predominante. O segundo conceito, a pulso, se articula com o primeiro, porque o impacto pulsionalqueimprimeocarterdoobjetofundamentalcomosendoodeumvazio determinante,quetestemunhadopeloafetodaangstia.Aspulsesproduzem rupturasnoscircuitosestabelecidosparasuasatisfao,causandouma desarrumaopermanentedaordemestabelecidapeloregistrosimblico.Desta forma,humaconstanteexignciadediferenciao.Oterceiroconceito fundamental um movimento chamado de desejo.Empsicanlise,portanto,podemosfalaremumaestticadapaixoedo desejo.Elarepresentadapelafunodobelo,quesustentaoimaginrioao mesmo tempo em que o faz falhar, como expresso da forma e do movimento. Este movimentointensodemonstraodesejoempermanentedeslocamento,sempre referidoaodesejoporoutroobjeto,caracterizandoodesejocomoapresenade uma ausncia. A filosofia, num primeiro momento, trata a teorizao das artes sob a forma de potica, inaugurada por Plato e Aristteles (CHAU, 1995, p. 320); num segundo, a partirdosculoXVIII,sobaformadaesttica.Nietzsche,porexemplo,vaarte comoumamanifestaodavontadedepotncia,comexaltaodosentimentode vida, que transborda para o mundo das imagens e do desejo. Oobjetododesejoumobjetoperdido,umafalta,eesseobjetoperdido continuapresentecomofalta,procurandorealizar-seatravsdeumasriede substitutosqueformamumaredecontingentemantendoapermannciadafaltae tornandoodesejo,navisofreudiana,comoirredutvel,vistoqueeleumdesejo inconsciente. Oafetoumtermoqueapsicanlisebuscounaterminologiapsicolgica alemequeexprimequalquerestadoafetivo,penosooudesagradvel,vagoou qualificado,querseapresentesobaformadeumadescargamacia.Segundo Freud,todapulsoseexprimenosdoisregistros,doafetoedarepresentao.O 223 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 afeto(Affekt)aexpressoqualitativadaquantidadedeenergiapulsionaledas suas variaes. Oafetoassemelha-semaisaoenamorar-seouapaixonar-seporalgum, denotandoumamorromntico,incontrolvelquantossuas manifestaesecego emrelaoaosseusobjetos.Sendoassim,aquelequeamapodemanterasua visointacta,pormaquelequeseapaixonacegoemrelaoaosdefeitosdo objeto amado, ainda que o ltimo recobre sua viso depois de um maior convvio ou aps o casamento. AoriginalidadedeFreudestemdeslocaraconcepodoafetodoregistro neurolgicoparaoregistropropriamentepsicolgicoeissograasaosprogressos ocorridosnaelaboraodoconceitofundamentaldapulsoedanoode representao pulsional. A especulao terica leva suspeita de que h dois instintos fundamentais que jazem ocultos por detrs dos instintos do ego e dos instintos do objeto manifesto: a saber, (a) Eros, o instinto que luta sempre por uma unio mais estreita, e (b) o instinto de destruio, que leva no sentido da destruio do queestvivo.Empsicanlised-seonomedelibidomanifestaoda fora de Eros (FREUD, 2006g, p. 255). A noo de afeto assume grande importncia logo nos primeiros trabalhos de Breuer e Freud (Estudos sobre a Histeria, de 1895) sobre a psicoterapia da histeria e adescobertadovalorteraputicodaab-reao-descargaemocionalpelaqualo sujeitoselibertadoafetoligadorecordaodeumacontecimentotraumtico, segundoLaplancheePontalis(2001,p.1).Aorigemdosintomahistrico procuradanumacontecimentotraumticoaquenocorrespondeuumadescarga adequada. Somente quando a evocao da recordao provoca a revivescncia do afetoqueestavaligadoaelanaorigemquearememoraoencontraasua eficcia teraputica. Freud indica possibilidades de transformao do afeto: [...]Conheotrsmecanismos:1)odaconversodosafetos(histeriade converso);2)ododescolamentodoafeto(obsesses);e3)oda transformaoemafetos,eespecialmenteemansiedade,dasenergias psquicas dos instintos (FREUD, 2006, p. 259). Apartirdesseperodo,anoodeafetoutilizadaemduasperspectivas: podeterapenasumvalordescritivo,designandoaressonnciaemocionaldeuma experinciageralmenteforte.Masamaiorpartedasvezeselapostulaumateoria quantitativadosinvestimentos,anicaquepodetraduziraautonomiadoafetoem relaossuasdiversasmanifestaes.OafetotratadoporFreudnosseus 224 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 escritos metapsicolgicos O Recalque e O Inconsciente, ambos de 1915. O afeto umadasvicissitudesdaspulsesdefinidocomoatransformaosubjetivae especialmente em ansiedade, das energias psquicas das pulses (FREUD, 2006a, p.158).Freuddistingueaquinitidamenteoaspectosubjetivodoafetoeos processosenergticosqueocondicionam.Note-seque,paralelamenteaotermo afeto,eleempregaquantumdeafeto(Affektbetrag)entendendodesignarassimo aspecto propriamente econmico. Geralmente a expresso quantum de afeto tem sido adotada para designar esseoutroelementodorepresentantepsquico.Correspondepulsona medida em que esta se afasta da idia e encontra expresso, proporcional suaquantidade,emprocessosquesosentidoscomoafetos(FREUD, 2006a, p. 158). Aoterateoriadoafetoencontradoassimseureferencialnaprimeiratpica freudiana,apresenta-seaquestodamudanadeperspectivaquenelaintroduz, aps 1920, a segunda tpica: tal mudana dir respeito interpretao da angstia. NostermosdeInibio,sintomaseangstias(FREUD,1926),aangstiaum afeto,queocupaumaposioexcepcionalentreosestadosafetivos(FREUD, 2006g,p.132).Nestemomento,aoaplicarahiptesedetrabalhoaoafetoda angstia,Freudainscrevedefatonaperspectivaeconmicadosprocessos,o quantum do afeto, relacionado situao arcaica da urgncia vital, sendo objeto de inferncia caracterstica. Verifica-sequeFreud formulou uma hiptesegenticadestinada atraduziro aspectovividodoafeto:Osafetosseriamreproduesdeacontecimentosantigos deimportnciavitaleeventualmentepr-individuaiscomparveisa[...]acessos histricos universais, tpicos e inatos (FREUD, 2006g, p. 132).Jnafilosofia,oafetovistocomoonomecomumeeruditodadoaos sentimentos, das paixes, das emoes, dos desejos de tudo o que afeta o ser de forma agradvel ou no. O corpo experimenta; a alma sente, e isso que se chama afeto. Nada acontece em um que o outro no sinta. O afeto o nome dessa unidade que exprime um aumento ou uma diminuio da potncia do indivduo de existir e de agir.As emoes so vistas como um afeto momentneo, que move o ser mais do queoestrutura(comofariaumsentimento)oudoqueoarrebata(comofariauma paixo).Araivaeomedosoemoes,masquepodemdesembocarempaixes 225 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 ou em sentimentos, como so o dio, a ansiedade ou o amor. Todapaixo fonte de emoes. Adoreoprazersodoisafetosfundamentaissentidospeloindivduo.Sem saber o que a dor o ser no saberia distingu-la do prazer e vice-versa. A alegria umprazerdaalma,enquantoqueatristeza,umsofrimento.Odesejoa polarizaoqueresultadaoposiorealouimaginriadeles.Daoprincpiodo prazer, como diz Freud, que a grande lei da vida afetiva do ser. Naculturapsicanaltica,literriaefilosficadelnguafrancesa,otermo desejo(Dsir)designaocampodeexistnciadosujeitohumanosexuado,em oposioatodaabordagemtericadohumanoqueselimitariaaobiolgico,aos comportamentosouaossistemasderelao.EmFreud,desejoumtermono plural, os desejos ou determinadodesejo, que, por um lado, particularizado por umobjetoempricoeporoutro,umaexpressocaractersticadaabordagem freudiana: Wunscherfllung ou realizao do desejo. O temo desejo, ou Wunsch em alemo, no se imps de imediato pena de Freud.Imps-sepoucoapouconahistriadeseupensamentoreferente sexualidade.NolivroAinterpretaodossonhos,de1900,quelevou conceitualizao do sexual, a realidade prpria do desejo invocada por Freud num contexto polmico concernente funo do sonho, sendo que o desejo no aparece isoladamente, mas na expresso Wunscherfllung ou realizao do desejo, portanto, a idia de realizao alucinatria que traz a de desejo. Essa nova noo do desejo comoaquiloqueseanuncianossonhosentoconfrontadamultiplicidadedos pensamentos e desejos que puderam ocasionar a formao do sonho. A relao do desejo com o objeto , na teoria psicanaltica, em tudo diferente daquelaquecaracterizaarelaodanecessidadecomoobjetonumateoria biolgica. O objeto do desejo uma falta e no algo que propiciar uma satisfao. A estrutura do desejo implica nessa inacessibilidade do objeto e precisamente isso queotornaindestrutvel,poisodesejojamaissatisfeito,elepoderealizar-seem objetos, mas no se satisfaz com esses objetos.Freudforneceomodelodeconstituiododesejocombasenaexperincia de satisfao. Um beb recm-nascido, premido pela fome, chora e agita os braos, numatentativaintildeafastaroestmulocausadordainsatisfao.Ainterveno dameoferecendo-lheoseiotemcomoefeitoareduodatensodecorrenteda necessidadeeumaconsequenteexperinciaouvivnciadesatisfao 226 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 (Befriedigungserlebnis).Dapordiante,umaimagemmnemnicapermanece associadaaotraodememriadaexcitaoproduzidapelanecessidade,detal forma que na vez seguinte em que essa necessidade emerge [...]surgirdeimediatoumamoopsquicaqueprocurarrecatexiara imagemmnnicadapercepoereevocaraprpriapercepo,isto, restabelecer a situao de satisfao original. Um impulso ou moo dessa espcie o que chamamos de desejo; o reaparecimento da percepo a realizao do desejo(FREUD, 2006b, p. 594-595). Aidiadeeternidadeoudeindestrutibilidadedodesejoaparececomoa formulao terica que explica o fato clnico da insistncia de umdesejo da infncia emcadasonho.Freudisolaodesejoinfantilinsatisfeitoqueconstituicomouma reservaeternamente produtoradesonhos; depoiseleretorna otemadarealizao de desejo como evento do sonho, no captulo VII do livro e define odesejo como a suspenso provisria, pelo pensamento, dessa realizao, quando os traos de uma primeira satisfao foram reinvestidos. Afirma que desejar procurar a identidade de percepo que permitiu, num tempo primitivo, uma satisfao. Comoapulso,apaixopodesersituadanolimiteentreopsquicoeo somtico.Comoestadodocorpo,elareativaodeexperinciasprimordiaisem queaquiloquecausaodesejoeaangstiadlugaraumaligaovitalmarcada pelaavidezdosprimeirosvnculos.Aomesmotempo,porm,essesujeitopadece em seu corpo quando est sob o imprio de um discurso que o aliena: a paixo do significantesegundoLacan,ouseja,ainscrionoinconscientedapartedogozo perdida.Nisso,cadapaixoatestaointricamentodavidaedamorte,umamesma figura podendo representar os dois. Como Freud o enuncia em A questo da anlise leiga:[...] decidir quando mais oportuno dominar as prprias paixes e curvar-serealidadeou,aocontrrio,aceit-lasepreparar-separadefend-las contra o mundo externo constitui o alfa e omegada experincia da vida (FREUD, 2006g, p. 196). Ocorpotambmlinguagemdo desejoporqueincluiosdiversosmodosde expresso afetiva, de apresentaes estticas que se associam ao verbal e torna-se falante porque um corpo num conjunto de elementos significantes: asimpresses, comotraosindiferenciados,elospossveisparaaproduosimblicaeparao movimento desejante e as inscries, os traos diferenciados e ligados entre si. 227 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 AESTTICAFREUDIANAENIETZSCHIANACOMOCRTICADA MODERNIDADE Comavisoeuropiadevalorizaodaalta-cultura(apogeudo desenvolvimentocomqualidadespreciosas),sobretudonaAlemanha,Freud marcadopelainflunciadoiluminismodesuapoca,eacreditavaquearazoiria vencerafaltadepensamento,deobscurismo.Apesardessaeducaoiluminista Freudseinteressouportodososfenmenosqueessaprpriarazodeixavade lado: o mito, a lenda, a literatura, a arte, os chistes e os atos falhos. Freud, atravs de vrios textos, como Totem e Tabu, O Futuro de uma Iluso, Mal-estardaCivilizaoePsicologiadeGrupoeAnlisedoEgo,trabalhoucoma culturadeformaexplcita,utilizandomaterialdaetnologia-histria(atravsda religio),arteearqueologia(comomediaoentreahistriaeaarte).Apartirda etnologia,Freudexploraototemismoeaproibiodoincesto.Numainterseco entrehistriaearte,Freudencontrouosentimentoreligioso,afantasia,oxtase, quepermitiuumdeslizamentoentreassriesdoscomponentespatolgicosea srie da anlise das culturas, que colaborou na base do que era considerado normal ou patolgico. A preocupao de Freud a respeito do evolucionismo era relativa ao processo de passagem do ser humano da forma primitiva para a civilizao. Esta uma idia que pulsava no ocidente desde o sculo XVII, atravs das idias do iluminismo, com o progresso da condio humana grande transformao da humanidade. Atensoentreacivilizaoeapermitividadejestavapresentenofinaldo sculoXVIIInopensamentoeuropeu.NosculoXIX,comaformaodo imperialismo, em que as grandes potnciasda poca, Frana, Espanha e Portugal, foramsendosubstitudaspelopredomniodaInglaterra,Holandaeoutras,surge claramente o testemunho do mundo primitivo de forma mais palpvel e tensa, com o totemismoeasregrasdeproibiodoincesto(quesecontrapunhasformasdo ocidente)queencontravamsuabaseuniversal,tornando-sefundamentaisna sociologia e na antropologia, na segunda metade do sculo XIX.Numpassadoarcaico,asforasdionisacasdaembriaguez,doxtase,da vontadedepotnciareinavamsempartilha.ParaNietzsche,estecultoaDionsio representaofimdoprincpiodaindividuao,avitriasobreaunidadeealei.A 228 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 crtica da modernidade assume em Nietzsche a forma devastadora, que desmascara o bem e o mal, o dever e a culpa, como simples mscaras da vontade de potncia, princpio fundamental que atravessa toda a histria do homem, de suas instituies e de suas produes culturais.NolivroParaalmdobemedomal,Nietzschetratanosomenteda sublimaodaspulsesdedestruio,mastambmdaquestodacrueldade, presentesnosescritostrgicos.Ofilsofovaialmdoshorizontesdacultura helnica e v a crueldade atuando onde quer que se encontre a civilizao: Quase tudo que denominamos civilizao repousa sobre a espiritualizao eoaprofundamentodacrueldadeestaaminhatese.Estafera selvagemnofoideformaalgumaabatida,elavive,elaprospera,fez somentediviniza-se.Oqueconstituiavoluptuosadordatragdiaa crueldade; o que age de maneira agradvel na pretensa compaixo trgica, emesmo,emltimaanlise,emtudoaquiloquesublime,ataosmais altosedelicadosfrmitos dametafsica,recebeasuadourasomentedo ingrediente da crueldade que est a misturado (NIETZSCHE, 2007, p. 149-150). Nietzscherealizaumacrticadarazo,emnomedapaixopelopoder,a WillezurMacht,noemsuaformacontempornea,degenerada,niilista,masem sua forma originria, herica, assumindo o ponto de vista dos poderes ativos contra os poderes meramente reativos da modernidade. Sob esta forma, a razo dominou o pensamentoocidental,vistadeformasoberana.Comrarasexcees,pensadores, filsofos, mdicos, telogos tm preconizado o controle daspaixes, principalmente asexualidade,mesmoquandoessecontrolenoobedeciaaargumentos racionalmente plausveis. Freud constri e fundamenta seu aparelho terico apoderando-se da crtica e do pensamento do totemismo e da proibio do incesto, indo alm da influncia do evolucionismo, e teve tambm a influncia tambm do romantismo (construo de si Bildung) e ao falar da representao da cultura, ele a insere na produo abstrata, tensaaquechegaamesmaapsumperododedesenvolvimentodaexperincia humana. At 1915, Freud acreditava que as luzes da razo iriam salvar o mundo. Aps aprimeiraguerramundial,elepassouaacreditarquehalgodeobscurono homem, que nem a razo daria conta, pois viu que, alm dos horrores da guerra, os intelectuais da poca foram a favor da guerra e aderiram ao nazismo.Acivilizaoconseguedominaraagressividadedosujeito,poiselea introjeta,levando-adevoltaparaoseuego,lugardeorigem,criandoumatenso 229 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 entreoseverosuperegoeoego,esobaformadeconscinciamoral,gerao sentimentodeculpa,queadvmdeumpensamentoouaoconsideradam, ameaandoosujeitopelapossvelpunio,sejaelainternaouexterna.Esteo cerne da crtica de Freud cultura, e quando ele rompe com a ideologia de que o homembomecorrompidopelasociedade,trazendotonaessaanimalidade natanele,eintroduz,nocontextodesuasegundatpica,apulsodemorteea pulsodevida,em1920.NaprimeiratpicadaconstruodaPsicanlise,Freud demonstraosconflitosentreaspulsesdo egoeaspulsessexuais.Pormeiodo reconhecimentodoslimitesdaracionalidade,Freudcriaapossibilidadedeum conhecimento da vida mental que leva em conta o inconsciente, ou seja, aquilo que s pode ser conhecido uma vez que deixa de serinconsciente. Freud acredita que, apesardenopoderconheceroinconscientecomotal,suaapresentao conscinciaofereceumacessoaessemundoinconscienteemesmouma possibilidade de sua transformao.Freudmostroucomoasconfiguraesexternasdepodermobilizamo aparelhopsquicoparabloquearoudeformaroprocessodoconhecimento. Obedecendoasinaisdomundoexterior,oegoacionadispositivosdedefesaque levamosujeitoafugirdiantedapercepooudopensamento,pelaaodo princpiodoprazer,quecolocaprovisoriamenteforadecircuitooprincpioda realidade.Essadistoroocorrenosdoisnveisprincipaisemquesed,para Freud,oprocessodoconhecimento:odapercepo,externa,omundosocialdas normas e instituies e interna, atravs do recalque, e o do pensamento, cuja funo coordenaraspercepesexternascomoscontedosinternos,afimdeproduzir modelos cognitivos adequados realidade. Nas palavras de Freud, (2006d, p. 167): Nossa maior esperana para o futuro que o intelecto esprito cientfico, a razo possa, com o decorrer do tempo, estabelecer seu domnio sobre avidamentaldohomem.Anaturezadarazoumagarantiadeque, depois,elanodeixardedaraosimpulsosemocionaisdohomem,e quiloqueestesdeterminam,aposioquemerecem.Acompulso comum exercida por um tal domnio da razo, contudo, provar ser o mais forteelodeunioentreoshomensemostrarocaminhoparaunies subseqentes. Amodernidadeoprodutodoprocessoderacionalizaoqueocorreuno ocidente desde o final do sculo XVIII e que implicou na modernizao da sociedade edacultura,quesedeuatravsdadiferenciaodaeconomiacapitalistaedas vises do mundo em especial, da religio. Em conseqncia desse processo, vo se 230 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 diferenciando trsesferas autnomas, at ento embutidas na religio: a cincia, a moral e a arte. A moral, inicialmente derivada da religio, agora coincide com os de determinadosgrupos.Osprincpiosmorais,internalizadospelosujeito,deram origem tica do trabalho e forneceram a base para o desenvolvimento capitalista. Umadascaractersticasdessamoralsecularizadafoiauniversalizao:as normasvaliamparatodosenoapenasparaoclouatribo,comoocorrianas sociedadestradicionais.DuranteamaiorpartedosculoXIX,essamoralsecular, universalista e supervisionada pela razo continuou prevalecendo. Ela bastava para asseguraraformaodepersonalidadescongruentescomasnecessidades funcionaisdosistemacapitalista.Emtermosfreudianos,orepresamentopulsional era suficiente para assegurar a ordem social, e os valores introjetados privilegiam o trabalho, essencial para o processo de acumulao. Pensar-se-iaserpossvelumreordenamentodasrelaeshumanasque removeria as fontes de insatisfao para com a civilizao pela renncia coeroerepressodosinstintos,desorteque,imperturbadospela discrdia interna, os homens pudessem dedicar-se aquisioda riqueza esuafruio.[...]Parece,antes,quetodacivilizaotemdeseerigir sobre a coero e a renncia pulso; [...] Acho que se tem que levar em contaofatodeestarempresentesemtodososhomenstendncias destrutivase,portanto,anti-sociaiseanti-culturais,eque,numgrande nmerodepessoas,essastendnciassosuficientementefortespara determinar o comportamento delas na sociedade humana (FREUD, 2006e, p. 17). No incio do sculo XX, comeou a delinear-se certa mutao moral. Pode-se mesmoafirmarqueapsicanlisecontribuiuparadestituirostradicionais mecanismosdarepresso.Simultaneamente,omodernismoestticopassoua valorizaraespontaneidade,adessublimao,avidapulsional.Osurrealismo passouaadvogaraestetizaodavida,suatransformaoemobradearte.Em contrastecomamoralburguesadoinciodocapitalismo,amoraldocapitalismo tardio tornou-se crescentemente anrquica, invertendo a hierarquia tradicional entre a razo e as paixes: a inteligncia era agora vista como secundria com relao ao desejo. Aracionalidadesetornaracionalidadeinstrumentaleoscamposdavida social,polticaemesmoartsticasoreduzidosaquestesdeeficincia.A dimensodosignificadoeasquestesdequalidadedevidaehumanidade desaparecememummundodominadoporcritriosdeeficinciaesucesso, medidos quantitativamente em termos financeiros. 231 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 Nassociedadesmodernas,opodernoseexercemaisprioritariamente atravsdasoberaniadereiscomonopassado,masatravsdeprticasinvisveis, que atravessam todo corpo social, sob a forma de disciplinas, e se concretizam em instituies de notao e registro, de observao e classificao a priso, a escola, afbrica,acaserna,oasilopsiquitrico.Humaindissociaodesaberepoder, onde o poder constitui a condio bsica para a constituio do saber. O ps-modernismo substituiu a justificao esttica da vida (caracterstica do modernismo)pelajustificaopulsional.Soimpulsoeoprazersoreaise afirmadoresdavida;orestoneuroseemorte.Amoral,ditamoderna,continua existindo,masperdeusuaposiodemonoplio.Hoje,humaatomizaode morais-culturasjovens,seitas,movimentosecologistasepacifistasentreoutros, que seria a condio ps-moderna da moralidade. Oapelodapublicidadeestetizadaatualmenteenvolveapersonalizaoea erotizaodomundodasmercadorias:ohomemseduzidopeloobjetoparase integrarnocircuitodocapitalismo.Huminvestimentolibidinalnosobjetos,um desejodeposseedestatus,queprojetaodesejodepoderedeumespao individualizado. Odiscurso,longedesertransparenteouneutro,noqualasexualidadese desarma e a poltica se pacifica, o lugar onde ele exerce seu poder. As interdies que atingem odiscurso revelam sua ligao com odesejo e o poder. A psicanlise mostra que o discurso no simplesmente aquilo que manifesta ou oculta o desejo; , tambm, aquilo que o objeto do desejo: a nsia pelo poder, na viso de Foucault (2008, p. 9-10). SegundoQuinet(2009),osdiscursosnosooratriasesimlaossociais, queLacantitulapordesejo,oqualunemaspessoasdentrodasociedadeeso tecidos de linguagem. Freud diz que na atual civilizao h trs formas dos sujeitos serelacionarem:governardiscursodomestre;educardiscursouniversitrioe psicanalizardiscursodoanalista.Lacanacrescentamaisuma:fazerdesejar discursodo histrico. Para Lacan, a sociedade formada por laos sociais e estes so delimitados, codificados, normatizados, no somente por conta da histria, mas por algo estrutural, pois para a Psicanlise o sujeito do coletivo o mesmo do sujeito individual. Esse sujeito do inconsciente no se distingue do sujeito do lao social que interagecomosoutros(amigos,pais,colegasdetrabalho).NotextoMal-Estarna Civilizao, Freud(2006e, p. 93)expe, como j visto, as trs fontes de sofrimento 232 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 humano,ondeaprincipalarelaoentreseuspares.Essemal-estarfazparte, estincludo,nohlaosocialsemomal-estar,ondeooutrofazparteda subjetividade do sujeito e do prprio conceito de sujeito.Entre as vrias especialidades exigidas por uma sociedade industrial moderna estacapacidade de seestabelecerinter-relaesinstantneasentrevriasreas do saber. Num mundo cada vez mais fragmentado pela diviso de trabalho, em que osujeitoconhececadavezmaissobrecadavezmenos,afiguradogeneralista competente,quenenhumcomputadorpodesubstituir,torna-seindispensvelpara evitar a total atomizao da vida. CONCLUSO A crtica racionalidade fundamental para as cincias em geral, pois o que est em pauta no a defesa de uma nova forma de racionalidade como uma forma disfarada de dominao.Sabe-se que a arte desempenha papel importante na estruturao do sujeito. Nietzschebaseia-seneste fatoparadistinguirosdoisprincpiosquecorrespondem na teoria psicanaltica a Eros pulso de vida e Thanatos pulso de morte. Ambas asforassovivenciadaspelosujeitodeformaconstanteeentrelaadas representativasdarazoedapaixo,cujoefeitotrgicovividonessaluta constante entre as duas. Elas, no entanto, so ambivalentes na medida em que Eros e Thanatos lutam um contra o outro, batem-se e se destroem mutuamente, mas, ao mesmotempo,co-operamnarepetioenadiferena,nasatisfaoena insatisfao, no prazer e no desprazer, na dilacerao e no gozo, revelando o duplo e paradoxal carter do desejo e, em ltima instncia, das pulses de vida e de morte edavontadedepotncia.quetantoErosquantoThanatosnopodemser pensados e nem concebidos, de maneira separada. Emtodasassuasformas,apaixodesejopostoemtensoeemoes intensificadas. No sentido do pathos, ela , no entanto mais subitamente sofrida que deliberadamenteatuada.Defato,pornosepossuirasimesmoqueumsujeito pode ser capturado por uma paixo que transborda os limites do eu, podendo lev-lo expansonarcsicaouameaadedissoluo.Emqualquercaso,osujeito 233 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 atravessaacadavezummomentodefascinaoemqueseduzidoeemqueo destinoparecelheacenar.Esseotraocomumquepermiteidentificarcomo paixo uma srie de fenmenos: o enamoramento, a entrada em transe, a crena, a excitao sbita, mas tambm a aposta do jogador, a obstinao do colecionador.Contemporneos,FreudeNietzschecompartilhavamumcenriohistrico comum.AorevisitaremoTeatroGrego,ambosautorestentaramresgatara experinciavividaatravsdastragdias,nasquaisaspaixeseramcolocadasem cena e que promoviam o extravasamento dessa desmedida, devolvendo ao sujeito o metron, o equilbrio. O estilo romntico, adotado por Freud aps 1920, pode ser entendido a partir deumagrandee profundacriseque ocorreuemtodosos domniosdaexperincia humana,entreofinaldosculoXVIIIemeadosdosculoXIX,quenutria esperanasnatentativadeencontrarrespostasrestauradorasdaunidadeeda harmonia, perdidasemtodososterrenosdavidasocialdapoca,emoposioao iluminismo,razogeomtrica,linear,voltadaparaaobjetivaoexternacontrao privilgio da parte. Esse movimento reflexivo se fez acompanhar de um olhar crtico para a realidade e para a histria do homem.Plato,Hegel,Schopenhauer,NietzscheeFreud.Emtodopensador,no existeumasntesedodesejo,queconstituiosujeitoenquantosujeito,poiseste, assimcomoaspulses,sedesenrolainfinitamente,numarenovadasatisfao-insatisfao,amoredio,vidaemorte,queelesprocuramnomear,significar,mas que no cessam de terminar, porque no cessam de recomear.O desencanto com a razo cartesiana, vivenciado por Freud e por Nietzsche, favoreceu a nfase s diversidades numa nova proposta de considerao ao Outro, comoformadeadmitireprotegerasdiferenas,queintegramnossasociedade multicultural, e que nos fazem repensar as idias de respeito e justia pelo outro. 234 R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianpolis, v.8, n.2, p. 215-236, Jul./Dez. 2011 REFERNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de filosofia. 5. ed. rev. e aum. So Paulo: Martins Fontes, 2007. ASSOUN, Paul-Laurent.Freud e Nietzsche: semelhanas e dessemelhanas. 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