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EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: A MODA EM ALGUMAS INTERSECÇÕES COM A ARTE

FUTURISTA E SURREALISTA

Ana Carolina Acom

RESUMO

Este artigo visa estabelecer uma aproximação, por meio da experiência estética,

entre a moda e a arte. Apresentando as interfaces destas áreas do conhecimento e

dialogando sob suas fronteiras tênues e perceptíveis. A análise se dá pelo viés da

filosofia da arte, que busca as provocações estéticas vinculadas pelo observador da

obra e seu artífice. Para ilustrar o tema, foram observados nos movimentos artísticos

Futurista e Surrealista, correntes estéticas com pertinentes elementos da moda.

Palavras - Chave: Moda, Arte, Experiência Estética, Filosofia.

Graduada em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e especialista

em Moda, Criatividade e Inovação pelo SENAC RS. Atua como pesquisadora e

consultora de moda e semiótica das vestimentas, através de palestras, produções e

desenvolvimento de figurino. Possui artigos publicados em todo Brasil, e o site

modamanifesto.com , onde encontram-se seus principais escritos.

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Iara – Revista de Moda, Cultura e Arte - São Paulo – V.3 N°3 dez. 2010 - Artigo 275

AESTHETIC EXPERIENCE: FASHION IN SOME INTERSECTIONS WITH THE

FUTURIST AND SURREALIST ART

Ana Carolina Acom

ABSTRACT

This article aims at establishing an approximation between fashion and art through

aesthetic experience, presenting the interfaces of both areas of knowledge and

conversing under their thin and perceptible boundaries. This analysis has been made

based on the Philosophy of Art, which seeks the aesthetic provocations linked by the

observer of the work and its maker. In order to illustrate the theme, pertinent

elements of fashion from the Futurist and Surrealist art movements are shown.

Key Words: Fashion, Art, Esthetic Experience, Philosophy

Graduada em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e especialista

em Moda, Criatividade e Inovação pelo SENAC RS. Atua como pesquisadora e

consultora de moda e semiótica das vestimentas, através de palestras, produções e

desenvolvimento de figurino. Possui artigos publicados em todo Brasil, e o site

modamanifesto.com, onde encontram-se seus principais escritos.

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INTRODUÇÃO

Este trabalho aborda as fronteiras entre moda e arte, através da similaridade

com que ambas afetam os sentidos de seu observador. É possível ver a moda, em

seu percurso histórico, nas criações de estilistas excêntricos ou mesmo na mais

admirável modelagem de um vestido, com o mesmo “olhar” ou “espanto” de quem

admira uma escultura em exposição.

O conceito de “moda”, utilizado neste artigo, vai de encontro à definição do

termo vinculada por Gilda de Mello e Souza em “O Espírito das Roupas”.

A maior dificuldade ao tratar de um assunto complexo como a

moda é a escolha do ponto de vista. E se bem que esta seja

uma imposição necessária de método, nossa visão como que

se empobrece ao encararmos um fenômeno de tão difícil

explicação unilateral com os olhos ou do sociólogo, ou do

psicólogo, ou do esteta. A moda é um todo harmonioso e mais

ou menos indissolúvel. Serve à estrutura social, acentuando a

divisão em classe; reconcilia o conflito entre o impulso

individualizador de cada um de nós (necessidade de afirmação

como pessoa) e o socializador (necessidade de afirmação

como membro do grupo); exprime idéias e sentimentos, pois é

uma linguagem que se traduz em termos artísticos. Ora, esta

expressão artística de uma linguagem social ou psicológica – o

aspecto menos explorado da moda – talvez seja uma de suas

faces mais apaixonantes. (SOUZA, 1996, p. 29) O principal mote é invocar o conceito de “experiência estética”, pelo viés da

filosofia da arte, para apresentar sobre que aspecto a moda pode ser encarada como

forma artística. Para isto, deverão ser utilizados exemplos de situações em que a

moda esteve em associação com a arte.

1. Juízo e experiência estética

O juízo de gosto puro, capaz de julgar o belo artístico, envolve o espectador e

a esfera de prazer estético, elementos também aplicados à moda. Para alguns

estilistas parece clara a distinção entre criação de moda e arte. Outros tantos são

conscientes da aproximação de suas peças às obras artísticas. Dessa forma, é

necessário expor que, tanto arte, quanto moda são produtos do fazer humano

capazes de provocar as sensações catárticas do sublime oriundas da beleza. É

sempre com a mesma faculdade de juízo, que julgamos o belo, e não há como

separar a pura sensação da beleza em distintas ocasiões estéticas.

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A “Analítica da Faculdade de Juízo Estética”, escrita pelo filósofo Immanuel

Kant em 1790, onde ele afirma que o juízo do gosto é estético e analisa como a

faculdade de juízo pode afirmar se algo é belo, diz:

Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a

representação não pelo entendimento ao objeto em vista do

conhecimento, mas pela faculdade da imaginação do sujeito

ligada ao seu sentimento de prazer e desprazer. O juízo de

gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por

conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende

aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão

subjetivo. (KANT, 1995, p. 47) De acordo com o filósofo, a beleza é despertada da sensação de prazer no

contato com o objeto dito belo. Rosane Preciosa, no livro “Produção Estética”,

traduziu o esquema Kantiano para esta abordagem. Segundo PRECIOSA (2005), a

experiência estética convoca forças vitais e estados sensíveis, que nos projetam em

um outro espaço-tempo1. Esses olhares diferentes, que direcionamos ao objeto de

apreciação, nos remetem a um lugar não mais comum e cotidiano, mas sim, a uma

atmosfera adversa que nos surpreende desprevenidos. A obra de arte, por provocar

essas sensações outras oriundas da beleza, opera certas mutações em nós mesmos.

Isto porque ela não funciona com fórmulas prontas como os objetos de nossa rotina.

O objeto estético exercita nossa sensibilidade e intelecto de maneira um tanto

distinta do conhecimento objetivo, há subjetividade neste contato, o que faz com

que não atinjamos por completo este objeto. Há sempre algo que nos escapa, sendo

mais sensação do que informação. PRECIOSA (2005) invoca em seu texto o conceito

de estranhamento, vinculado pelo crítico literário Viktor Chklovski, caracterizado

como “desautomatização da percepção”.

A experiência estética racha nosso cotidiano. Nossa figura

humana experimenta um inevitável colapso, isso porque o

sujeito que éramos foi desacomodado daquele lugar que

costumava habitar. Sentimos que algo se rompeu em nós e

sabemos que se trata de uma viagem sem volta. As marcas

tatuadas em nossa pele consolidam esse recado. (...) Essa

experiência foi radicalmente desautomatizadora. (PRECIOSA,

2005, p. 65)

A beleza e o prazer, nas artes ou na moda, nem sempre estão associadas ao

que apraz agradável aos sentidos, mas também, ao contemplarmos a beleza do que,

muitas vezes, nos causa desconforto e arrepio. O quadro Guernica, de Picasso,

apresenta muita dor e sofrimento, os semblantes nas pinturas de Munch quase

1 Segundo Kant, as primeiras categorias que aplicamos durante o conhecimento de um

objeto é a localização no espaço e tempo.

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sempre estão transtornados, e algumas criações do estilista Martin Margiela são

capazes de suscitar ao mesmo tempo desconforto e admiração. No entanto, há algo

em todos esses casos, extremamente subjetivo, que faz com que apreciemos essas

obras, há um reconhecimento humano que provoca espanto e algo de inexprimível.

Isto pode ser entendido através do que afirmou Aristóteles, em sua obra “Poética”,

escrita por volta de 343 a.C.: que a Tragédia tem por efeito a catarse das emoções

de terror e piedade (ARISTÓTELES, 1991). Ou seja, as obras de arte em que a

beleza se dá através dos sentimentos de horror e repulsa, purificam estas sensações

por via do reconhecimento.

A sensação da beleza é constituída por um elemento eterno e invariável,

apesar de sempre haver diferentes correntes estéticas e estilos a cada época. No

entanto, a definição de “beleza” é volátil, e dificilmente conseguimos determiná-la

em sua plenitude. O belo surge de um processo sensível que esboça um estado

mental de prazer, ao ver algo de um modo diferente. Não é como a visão de um

objeto qualquer, mas, sim, a visão de uma obra de arte admirável, cuja beleza nos

apraz e provoca sensações singulares e inaudíveis. Porém, a beleza não está no

objeto, mas no “ver o objeto”, ela é ligada ao prazer de vê-lo, e esse processo

envolve sentimentos, que vão projetar sobre o objeto a beleza. A experiência

estética não se pergunta “o que é este objeto?”, ela é simplesmente sentimento, pois

o objeto apenas desperta em seu observador um estado de puro deleite.

Na moda, ao “lermos” nas vestes seus significados, utilizamos a mesma

faculdade de juízo e o mesmo olhar de quem vê uma escultura, pintura ou

arquitetura. O juízo de gosto, segundo Kant, que delibera sobre o belo e o feio, é o

modo no qual nossa faculdade de sentimento fica afetada pela representação do

objeto. O juízo de gosto é algo emocional que expressa sentimento e não

conhecimento conceitual, isto é, na afetação por algo dito belo não há interesse

objetivo, como no conhecimento de um objeto qualquer. Não se constrói uma ciência

da beleza, pois a admiração resultante do prazer que o belo causa é subjetiva, e não

busca explicação. O juízo de gosto não é juízo de conhecimento, portanto, não é

lógico e sim estético, o que fundamenta a determinação de sua subjetividade.

O objeto da arte desperta o prazer, pois sua observação é também um ato de

conhecimento e “aprendizagem”. Contudo, o prazer estético despertado pela arte,

introduz algo difícil de explicar, daí seu caráter subjetivo, pois não pode ser

racionalmente formulado e entra obscurecendo o conhecimento objetivo e conceitual.

Esse elemento outro, indizível, intrínseco ao que é dito belo, é um tanto

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incognoscível e sempre nos escapa. Por exemplo: consideremos o contato com um

edifício. É possível pensá-lo segundo a matemática que o rege: seu tamanho,

alicerces e etc. Mas isto é diferente do sentimento de “embasbacamento” que

sofremos ao admirarmos seu estilo externo arquitetônico. O primeiro é o

conhecimento conceitual do edifício, passível de se construir ciência, a engenharia, o

segundo se refere ao prazer puramente estético, oriundo do contato com a beleza.

2. Moda e arte como produtoras de sentido, linguagem e possibilidades

cognitivas

A moda pode ser entendida como uma completa e complexa expressão da

esteticidade, já que, ela é provocadora de um olhar atencioso e sensível em suas

múltiplas funções (por exemplo: adorno, identidade, proteção, uniformização e luxo).

Além das sensações provocativas que são comuns tanto à arte quanto à moda, e as

aproximam em uma mesma sintonia, as formas de arte e suas correntes são

importantes decodificadoras da moda e referenciais consideráveis de sua

assimilação.

Sendo produtora de sentidos, a moda articula-se como linguagem visual.

Dessa forma, observa-se que suas exibições sofreram influências das formas de

apresentação da arte contemporânea (MESQUITA, 2008). No início do século XX, a

arte moderna busca formas novas de expressão, expandindo limites, possibilidades

representativas e diferentes funções no contexto social.

Durante a década de 80 a pertinência da moda ao território da arte não é

mais uma revelação, mas uma necessidade. Nesta época, explodia a extravagância

nas vestes, que crescia cada vez mais vergada pelo sucesso, sobretudo, dos

espalhafatosos estilistas italianos, tantas vezes associados aos excessos barrocos. A

fascinação pela moda, que se tornava sinônimo de exacerbação, tomava conta de

todo o mundo. Em meio a isso tudo, surgem os japoneses: Yohji Yamamoto, Rei

Kawakubo, Issey Miake entre outros. A moda destes aparece de uma forma, que

contrasta imensamente com esse universo do exagero e mostra as possibilidades

minimalistas na desconstrução. Além disso, “aquilo que era considerado fútil e

frívolo, decorativo e excêntrico tornou-se um meio de busca da identidade, no qual

contam a originalidade e a mudança contínua” (CELANT, 1999, p. 176).

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Figura 1: Criação de Yohji Yamamoto, década de 80. Fonte: (A moda

do século XX)

Para PRECIOSA (2008) o artista produz possibilidades do real, ou seja, novas

possibilidades cognitivas. E assim, a moda se posiciona:

Como portadora de uma linguagem complexa, que opera

descobertas em termos de formas, volumes, cores, que atuam

sobre um corpo, redesenhando sua subjetividade. E o mais

importante: essas descobertas são capazes de amplificar

nosso repertorio imagético-existencial, no sentido de aquisição

de outras possibilidades cognitivas. (PRECIOSA, 2008, p. 62) Esta noção vai de encontro ao que sugeriu Artur Schopenhauer em sua

“Metafísica do Belo”, escrita em 1820. Para ele, o conhecimento estético, concebido

intuitivamente, e o Belo comunicado pelas obras de arte é o “conhecimento mais

profundo e verdadeiro da essência propriamente dita do mundo” (SCHOPENHAUER,

2001, p. 26).

Visto isso, considera-se o conhecimento estético como forma de assimilação

sensível, e a arte como busca por inventar mundos possíveis ao dar visibilidade ao

invisível. Como disse o artista Paul Klee: “A arte não reproduz o visível, mas torna

visível” (TÜRCKE, 1999, p. 89). Sendo assim, o espectador converte-se,

inevitavelmente, em responsável pela obra e por sua definição, pois este se torna

condição necessária para que exista a arte e sua admiração. Para o artista, Marcel

Duchamp: “São os espectadores quem fazem a obra de arte” (OLIVERAS, 2007, p.

36) 2. É através dos efeitos da beleza e do sublime no observador que poderemos

refletir sobre o estatuto da arte.

2 Tradução minha.

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Figura 2: “Obra” de Marcel Duchamp Fountain, 1917. Fonte:

(artnet.com)

A experiência da arte está ligada à relação profunda e contemplativa do

espectador ao ideal clássico de beleza. No entanto, nas artes modernas e

contemporâneas a experiência estética toma novas formas, e o julgamento do belo,

além de baseado no reconhecimento das representações, está intimamente

associado à sensação de estranhamento de algo outro e deslocado, como o caso dos

objetos de arte ditos ready-made.

No artigo de CELANT (1999), o autor defende que na arte moderna a

experiência construtiva passou da imitação do real à construção do real. Ele utiliza a

noção de “corte” para fazer a ligação entre a moda e a arte. “A instância fabular do

corte que demarca o vestido atravessou assim todos os limiares da criatividade

artística” (CELANT, 1999, p. 176). O corte é um instrumento criativo, através dele,

tanto na obra de arte, quanto na roupa, surge a possibilidade de mudanças

cognitivas na forma.

Picasso e Bracque cortaram as imagens a fim de decompô-las e liberar novas

relações com o objeto. O cubismo não tem a pretensão de representar o real, eles

preferiram construir algo ao invés de copiar. Segundo CELANT (1999), o corte é o

mecanismo mais significante da arte moderna, o qual contribui para a crise dos

fundamentos, em que há uma mudança no processo de perceber a realidade. O

pensamento que nasceu do corte cubista abriu espaços infinitos para novas

interpretações do mundo e trouxe mudanças significativas para as formas em geral,

que se tornaram menos rebuscadas, simples e geométricas. Essa influência é

bastante visível, durante o início do século XX (1914 – 1929), nas demais correntes

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artísticas e de vanguarda que se seguiram, nos estilos arquitetônicos e nas vestes

femininas, que perderam muito volume após a 1ª. Guerra.

O corte estrutura a linguagem, mas também o vestido.

Intervém nas convenções tradicionais da figuração e da visão

de um corpo ou de uma coisa e produz nova sensação. O

golpe da tesoura é semelhante a um golpe de maquina

fotográfica e cinematográfica, a um golpe de lápis e pincel,

marca uma superfície que gera uma realidade. (CELANT,

1999, p.169)

O autor revela que: “o corte é a alma do vestir e do vestuário”, é ele quem

modela a matéria contendo o retrato da figura humana e redesenhando o corpo. Na

arte, o corte possibilita novas significações representacionais, e o artista assim como

o costureiro “retalham” a visão das matérias, imbuindo-as de forma.

A roupa é o elo entre o corpo e o ambiente, ela faz parte da “cenografia” que

interage com o artificial, arquitetônico e o natural. O vestuário, além dos termos da

moda, anseia pela identidade das formas da roupa com a anatomia. A roupa

demanda a “possessão construtiva do próprio corpo”.

2.1 Futurismo

O Futurismo é o “primeiro movimento que se pode chamar de vanguarda”

(ARGAN, 2002, p. 310). Fundado na Itália por Marinetti, redator do “Manifesto do

Futurismo” em 1909, o movimento investe em um “interesse ideológico na arte,

preparando e anunciando deliberadamente uma subversão radical da cultura e até

dos costumes sociais” (ARGAN, 2002, p. 310). A arte futurista é fundamentada em

um decorativismo cromático abstrato. O artista deveria atuar sobre todos os

elementos da vida cotidiana além das artes plásticas, desde a arquitetura, mobiliário

e música, e a moda não foi uma exceção.

O futurismo, a poucos anos do cubismo, foi o primeiro

movimento moderno a teatralizar a lógica de uma arte que

talha e fende, decepa e atravessa, corta e separa, despedaça

e esfacela, amputa e entrecruza. Para fazer dela uma arma de

ação concreta e filosófica, política e ideológica, teórica e

artística, escultórica e pictórica. Seu objetivo não é a

formalidade de um pensamento visivo, mas a intervenção

fatual no mundo vivido, em todas as suas manifestações

lingüísticas. Um mundo que mudou para adequar-se à nova

sensibilidade mecânica: Reconstrução futurista do Universo.

(CELANT, 1999, p. 170)

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Em 1914, o artista Giacomo Balla escreve o manifesto “Vestido Antineutral”,

em que coloca a roupa no lugar de desejosa por alterações na pele, revolucionando

as formas através do corte e das transformações. Mais do que uma renovação radical

da moda, o movimento pretende abolir o sistema de moda em vigor, redesenhando o

vestuário literalmente como obra de arte. Balla foi o 1º futurista a desenhar roupas,

ele desestruturou as linhas das vestes ao decompor visivelmente a anatomia do

usuário. As transformações baseiam-se no corte assimétrico e no confronto de cores

e formas contrapostas e reforçadas pela utilização de motivos geométricos. Assim,

ele pretendia encenar um efeito dinâmico, tal qual o de suas pinturas.

Se a moda, até então, se preocupava em racionalizar e essencializar o vestir,

os futuristas, dentro do projeto social e industrial, priorizaram uma desordem na

estrutura da estética moderna.

Figuras 3, 4 e 5: Criações Futuristas de Giacomo Balla. Fonte:

(artnet.com)

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É possível comparar as idéias futuristas de moda de Balla, com algumas

criações de estilistas, que atualmente primam pelo volume tridimensional e usam a

moda literalmente como forma de expressão artística e contestadora.

O estilista Gareth Pugh é responsável por tórridos desfiles, que lhe valeram o

perfil de Sci-Fi 3. Seus trabalhos são marcados por volumes escultóricos escuros e

inquietantes. Conhecido por sua simpatia pelo estilo Dark, suas criações impactam e

seduzem, quase sempre, em tons sóbrios, preto e branco.

Figuras: 5, 6 e 7: Criações do estilista Gareth Pugh. Fonte:

(vogue.com)

Excêntricos e experimentais, Viktor & Rolf são responsáveis pelas mais

importantes criações e tendências de moda da atualidade. O mérito dos estilistas é

possuírem a sensibilidade necessária para capturar a essência de nosso tempo e

traduzir isso no design de suas roupas. As imagens abaixo apresentam uma recente

coleção da dupla, em que protestam sobre a questão da velocidade e efemeridade da

moda atual, trazendo palavras como, “No” e “Dream” estouradas no tecido, em

efeito 3-D. A tridimensionalidade executada em seu “protesto” nos remete ao projeto

de Giacomo Bala, a busca por dar movimento e dimensões diferenciadas aos

desenhos geométricos da roupa (Vide figura 4).

3 Abreviatura em inglês para o termo “Ficção Científica”.

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Figuras: 8, 9 e 10: Criações dos estilistas Viktor & Rolf. Fonte:

(vogue.com)

Hussein Chalayan é atualmente um dos maiores nomes da moda conceitual, e

apesar de ser bastante vanguardista, ele é conhecido por criar também modelos de

roupas usáveis e que agradam o público em geral. Seus desfiles dialogam entre

temas antropológicos, que muitas vezes servem sutilmente como contestação social

ou política. Para isto, ele utiliza diferentes materiais tecnológicos e inovadores:

roupas com chips, neon, lasers e até mesmo elementos do mobiliário fazem de suas

apresentações verdadeiras instalações artísticas.

Figuras: 11, 12, 13 e 14: Criações do estilista Hussein Chalayan. Fonte

(vogue.com)

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2.2 Surrealismo

A moda traz os ideais surrealistas quando se apropria de objetos de

“funcionalismo simbólico”, afastando-os de seus significados habituais e deslocando-

os. A arte surrealista, da qual Salvador Dalí e Max Ernst são os maiores expoentes,

foi influenciada diretamente pelo conceito freudiano de inconsciente. ARGAN (2002,

p. 360) comenta: “O inconsciente não é apenas uma dimensão psíquica explorada

com maior facilidade pela arte, devido à sua familiaridade com a imagem, mas é a

dimensão da existência estética e, portanto, a própria dimensão da arte”. A

psicanálise forneceu os meios para abordar o mundo interior dos desejos e da

imaginação. O resultado na pintura, cinema, poesia e moda surreal é, muitas vezes,

um conjunto absurdo e de natureza essencialmente onírica.

Os artistas deste movimento, sobretudo André Breton, autor do “Manifesto

Surrealista (1924)”, adotaram a poesia do Comte de Lautréamont como boa forma

de definição do surrealismo: “tão belo quanto o encontro fortuito de uma máquina de

costura com um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecações” (LYNTON, 1966, p.

111). Sobre isto RODRÍGUEZ (2007, p. 33) completa: “Nesse encontro fortuito entre

coisas heterogêneas, impossíveis no espaço e no tempo, podia-se ver formalizada a

linguagem dos sonhos”.

Essas noções de misturas e transmutações oníricas, aparecerem bastante em

desfiles e coleções contemporâneas, no entanto, já foram amplamente exploradas

pela estilista da década de 30, Elsa Schiaparelli. Ela transformou o surrealismo em

moda ao aplicar em suas coleções os princípios deste movimento, apresentando

objetos comuns do ambiente familiar em um contexto totalmente diferente. Hoje, o

jogo da moda é explorar volumes diferenciados e construções possíveis inusitadas

com a tecnologia que nos é oferecida. Podemos ver alguns exemplos de uso

surrealista na moda atual: o salto deslocado do sapato de Marc Jacobs, as

inesperadas campanhas publicitárias da marca Jil Sander, e a coleção de Alexander

McQueen (Outono/Inverno 2009 – 2010), em que o estilista explora exageros nas

formas e maquiagem.

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Figura 16: Criação do estilista Marc Jacobs. Fonte: (vogue.com)

Figura 17: Campanha publicitária da marca Jil Sander. Fonte: (Revista

Vogue Inglesa, Junho 2008)

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Figura 18: Desfile de Alexander McQueen. Fonte: (vogue.com)

O surrealismo aborda conotações antropomórficas. Algumas pinturas

apresentam figuras humanas que se fundem a detalhes de animais. As idéias, nesta

forma artística, culminam em latências e desejos interiores apresentados em

fascinantes fantasias. Alguns recursos para esta tarefa se concentram em

apropriações e despersonalizações. Na moda, este caráter nasce de uma nova

relação entre objeto e corpo, quase como uma figura “centáurica” no transpasse

entre coisa e ser humano.

Diferentes artistas colaboraram nas criações de Schiaparelli, entre eles

Bérard, Jean Cocteau e Picasso, que a inspirou a imprimir artigos de jornais em

tecidos. Contudo, suas modas mais impressionantes foram criadas em conjunção

com Salvador Dalí. Há ligações diretas entre a obra do artista e os espirituosos e

surpreendentes modelos de Schiap.

Dalí fotografou uma modelo desnuda, apenas com uma lagosta no púbis.

Após isso, ele mesmo pintou uma lagosta gigante, que ornamentava um vestido

branco de noite desenhado por Schiaparelli. Em 1936, Dalí completou sua escultura

“Vênus de Milo com gavetas”. No mesmo ano colocou na vitrine um urso empalhado

rosa choque com gavetas no torso. Inspirando, assim, o famoso “conjunto gavetas”,

com bolsos que lembram as gavetas de um gabinete. Dalí também influenciou a

criação de uma bolsa de veludo em forma de telefone e nos incríveis chapéus de Elsa

Schiaparelli, que são o maior exemplo de deslocamento surrealista: o célebre

Chapéu-Sapato, o Chapéu-Costeleta de carneiro (reflete a obsessão de Dalí por

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carne), o Chapéu-Tinteiro e outros. Uma peça bastante interessante, da qual o

artista participou em seu desenvolvimento, foi o tecido rasgado. Deste tecido, Schiap

criou o Vestido-Rasgão, de 1937, justapõe violência, farrapos e luxo. Foi

confeccionado em crepe de seda e possuía estampas roxo-hematoma e rosa sobre o

cinza, representando faixas de carne dilaceradas.

Figura 19: Foto de George Platt Lynes, Salvador Dalí coloca uma

lagosta sobre o púbis nu da modelo (1939). Figura 20: Vestido Lagosta,

criação de Schiaparelli e Salvador Dalí. Fonte: (artnet.com)

Sobre este reconhecimento do vestuário em conotações antropomórficas,

CELANT (1999, p. 173) revela:

A metamorfose da coisa e do animal em vestido torna-se um

prolongamento de um circuito complexo de formas de

identidade. A fluidez entre signos torna possível o

travestimento, o deslocamento e a simulação de uma

mobilidade entre objetos e imagens, coisa e corpos (...)

princípio metafórico que gera e destrói formas, as dissolve e

as faz nascer, de modo que o objeto e o corpo fazem amor. O

corte surrealista é uma barra que separa, mas aproxima

fragmentos de corpos e de realidades de tal forma que,

transmutando-se mutuamente, possam exercer a função de

metáfora de um lugar ativo a partir do qual é possível colocar

em movimento uma cadeia de imagens desorientantes e

divisoras, a contaminatio entre consciente e inconsciente,

dentro e fora.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da apresentação dessas interfaces entre a moda e a arte,

averiguamos que a busca não deve permanecer no enfoque de seus conceitos e

aproximações. A validade deste estudo está na reflexão filosófica sobre as

provocações imagéticas, priorizando assim, a consideração dos efeitos da beleza e do

sublime no observador do objeto. Desse modo, é possível encarar moda, artes

plásticas, performáticas, teatro, cinema entre outras, como formas estéticas

provocativas da alma humana. Já que, cada um destes movimentos deve ser

considerado como linguagem produtora de significações, responsáveis por instigar os

sentidos e despertar reconhecimentos catárticos e de deleite. Dessa forma,

vislumbra-se a necessidade do “olhar expansivo e atencioso” em direção à moda e a

outras criações humanas, considerando suas representações mais profundas e

significativas no contexto em que foram criadas, assim como, sua importância na

função referencial de decodificador temporal, cultural e social.

REFERÊNCIAS

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Data de Recebimento: 19/04/2010

Data de Aprovação: 20/12/2010