1FACULDADES INTEGRADAS CURITIBA
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO
JOE NUNES BIANCHI
EMPRESA, DIREITOS FUNDAMENTAIS E FUNÇÃO SOCIAL
CURITIBA
2007
2JOE NUNES BIANCHI
EMPRESA, DIREITOS FUNDAMENTAIS E FUNÇÃO SOCIAL
Dissertação apresentada aoPrograma de Mestrado em DireitoEmpresarial das FaculdadesIntegradas Curitiba, como requisitoparcial para obtenção do Título deMestre em Direito.Orientadora: Professora DoutoraMarta Marília Tonin
CURITIBA
2007
3JOE NUNES BIANCHI
EMPRESA, DIREITOS FUNDAMENTAIS E FUNÇÃO SOCIAL
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título deMestre em Direito pelas Faculdades Integradas Curitiba.Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:
Presidente: ___________________________________Prof. Dra. Marta Marília Tonin
___________________________________Prof. Dr. Alcides Tomasetti Junior
___________________________________Prof. Dra. Gisela Maria Bester
Curitiba (PR), 12 de fevereiro de 2007.
4SUMÁRIO
RESUMO....................................................................................................................................6
ABSTRACT................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................8
CAPÍTULO 1: FUNDAMENTOS CONCEITUAIS................................................. 10
1CONSTITUIÇÃO ABERTA.................................................................................... 10
2 DIREITOS FUNDAMENTAIS.............................................................................. 15
3 NORMAS CONSTITUCIONAIS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS................ 18
4 VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS... 27
4.1 Ineficácia e state action.............................................................................. 27
4.2 Teoria da eficácia indireta ou mediata................................................... 31
4.3 Teoria da eficácia direta ou imediata...................................................... 37
4.4 Teoria dos deveres de proteção............................................................... 39
CAPÍTULO 2: EMPRESA E CONSTITUIÇÃO...................................................... 43
1 DESENVOLVIMENTO DO DIREITO EMPRESARIAL E O MERCADO........ 43
1.1 Evolução histórica do direito comercial................................................. 43
1.2 Princípios gerais da ordem econômica................................................... 45
1.3 Livre iniciativa................................................................................................ 48
1.4 Direito concorrencial.................................................................................... 49
2 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO.................................... 62
3 EMPRESA: ESTRUTURA E FINALIDADE........................................................ 65
4 FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA...................................................................... 74
4.1 Objeções à função social da empresa.................................................... 81
CAPÍTULO 3: EFICÁCIA PRIVADA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E
FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA................................................ 85
51 RELAÇÃO ENTRE A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS E A FUNÇÃO O SOCIAL DA EMPRESA...................................85
2 RESPONSABILIDADE SOCIAL, SUSTENTABILIDADE E INCLUSÃO........ 88
3 TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS...................... 93
CONCLUSÃO.................................................................................................................................103
REFERÊNCIAS....................................................................................................................105
6
RESUMO
A dissertação trata inicialmente da teoria relacionada aos participantes dainterpretação constitucional tendo em vista a proteção dos direitos fundamentais.Cuida do desenvolvimento dos direitos fundamentais bem como da divisão dasnormas (em regras e princípios) a eles referentes e da máxima daproporcionalidade (ou ponderação), para a solução das colisões entre princípios.Aborda, em seguida, a state action e as teorias sobre a vinculação dosparticulares aos direitos fundamentais. A pesquisa também analisa a livreiniciativa como “liberdade” e o direito concorrencial como “instituição” quetambém tutela o consumidor, discorrendo sobre a influência dos direitosfundamentais no direito privado, com o fenômeno da constitucionalização destecampo do Direito. Na seqüência, analisa a evolução do direito empresarial com ateoria da empresa em substituição à teoria dos atos de comércio e o debatenacional sobre a função social da empresa. A seguir, identifica dois pontos decontato entre a teoria da eficácia privada e a função social da empresa: (1) adoutrina da eficácia indireta ou mediata e a cláusula geral da função social e (2) afunção social da empresa, entendida esta como deveres positivos e a eficáciadireta ou imediata dos direitos fundamentais. O trabalho passa em revista aresponsabilidade social, a sustentabilidade e a inclusão como diferenciaiscompetitivos para o sucesso da empresa e, por fim, examina a tutela jurisdicionaldos direitos fundamentais sob o enfoque de acesso à justiça.
7ABSTRACT
Initially the dissertation deals with the constitutional interpretation related to theparticipants in view of the fundamental rights protection. It considers thefundamental rights development as well the norms division (in rules andprinciples) and the proportionality (or balance) in order to decide principles'scollisions. After that, it approaches the state action and private connectiontheories regarding fundamental rights. The research analyses the free enterpriseas “liberty” and the trust law as “institution” that also protects de consumer. Itdiscourses about fundamental rights influence on the private law due to the“constitutionalization of private law”. Following it analyses the bussines lawevolution considering the enterprise theory in order to substitute the comercial'sacts theory and the national debate about the social function of the enterprise. Inthe sequence it identifies two links between private effectiveness and the socialfunction: 1) the mediate effectiveness doctrine of the fundamental rights and thegeneral clause of the social function and 2) the enterprise's understood as positiveduties and the immediate effectiveness theory of the fundamental rights. Thiswork emphasizes the social responsibility, sustainability and inclusion ascompetitive differentials. Finally, it examines the jurisdictional protection of thefundamental rights under the doctrine of access to justice.
8INTRODUÇÃO
A teoria da interpretação constitucional constitui objeto inicial de
análise na presente dissertação, no tocante aos participantes da interpretação
tendo em vista a superação do atual comprometimento existente entre a teoria da
interpretação constitucional com o modelo de interpretação de uma sociedade
fechada, apoiado no tema da “Constituição e realidade constitucional”.
Impende abordar o significado dos direitos fundamentais, o
desenvolvimento histórico deles, inclusive com a classificação dos direitos
fundamentais para, posteriormente, passar em revista o estudo das normas
constitucionais de direitos fundamentais, individualmente consideradas ou
inseridas no sistema jurídico considerando a resolução de antinomias.
A relevância da investigação científica proposta advém da questão
relativa à efetividade dos direitos fundamentais. A denominada “eficácia
horizontal” está associada à existência ou não de vinculação entre particulares
aos direitos fundamentais, contudo, a matéria é controvertida sendo necessário
analisar tanto as teorias que negam quanto as que afirmam tal eficácia, sem
olvidar o estudo da “state action” em particular.
O Direito Comercial, atualmente denominado Direito Empresarial, e
o Direito do Consumidor representam, atualmente, duas faces da mesma moeda
ou mesmo disciplina jurídica própria chamada de Direito do Mercado. É preciso,
pois, percorrer os caminhos da evolução histórica do Direito Comercial
analisando a livre iniciativa, o direito concorrencial e o direito do consumidor.
A dissertação cuida da passagem da teoria dos atos de comércio
para a teoria da empresa considerando o agente econômico denominado
“empresário”, a quem cabe combinar os seus bens ou do proprietário; a força de
trabalho do trabalhador ou a própria e o seu capital ou do capitalista nos serviços
produtivos da agricultura, indústria e comércio, organizando e conduzindo a
atividade, decidindo sobre a produção tendo em vista a demanda, assumindo os
riscos do empreendimento na busca do lucro.
No tocante à denominada “função social da empresa”, inicialmente o
presente trabalho examina os posicionamentos tendentes a reconhecer a sua
9existência, ora baseados na função social da propriedade, ora no poder de
controle da sociedade, ou mesmo nos princípios constitucionais da dignidade
humana e solidariedade social, passando posteriormente à análise das potentes
objeções.
Investiga-se, em seguida, os pontos de contato entre a eficácia
privada dos direitos fundamentais e a denominada função social da empresa.
Abordar-se a responsabilidade social, a sustentabilidade, bem como a inclusão
na práxis do modo de produção capitalista. Finalmente, cuida-se da tutela
jurisdicional dos direitos fundamentais sob o enfoque de “acesso à justiça”.
10CAPÍTULO 1: FUNDAMENTOS CONCEITUAIS
1 CONSTITUIÇÃO ABERTA
Para Ferdinand Lassalle a Constituição é o reflexo da soma dos
fatores reais de poder, caso contrário, não passa de uma folha de papel. De nada
adianta as prescrições constitucionais que não se ajustam à realidade, aos
fatores reais de poder.1 Para Konrad Hesse a Constituição é relativamente
independente da realidade social, política e econômica, de modo que a
normatividade não se subordina de maneira absoluta à realidade. A Constituição
é determinante e determinada.2
A concepção de abertura constitucional é intensificada na doutrina
de direito público na década de 1990, baseada principalmente nos estudos de
Pëter Haberle, realizados vinte anos antes na Alemanha, motivados pelo escrito
sociológico de Karl R. Popper a respeito da sociedade aberta, que associa as
noções de “sociedade aberta” e “Constituição aberta” partindo do pluralismo
democrático.3
As questões sobre as tarefas e os objetivos bem como a respeito
dos métodos têm constituído objeto da teoria da interpretação constitucional, ao
contrário da indagação associada aos participantes da interpretação. A vasta
gama de participantes do processo de interpretação pluralista autoriza o seu
tratamento, em especial pela doutrina, tendo em vista razões de ordem teórica,
científica e democrática.4
A teoria da interpretação constitucional tem se comprometido com o
modelo de interpretação de uma sociedade fechada, restrita aos julgadores e
1 LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição, p. 1-40. Cite-se como fatores reais depoder a força dos produtores rurais e do movimento sem-terra, no sistema financeiro e nasfederações empresariais, nos sindicatos e centrais sindicais, nas corporações militares e civis,etc.2 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição, p. 9-32. Konrad Hesse sustenta adenominada “vontade de constituição” em detrimento da vontade de “vontade de poder”. A “forçanormativa” exige a presença de alguns pressupostos associados: ao conteúdo como osacontecimentos históricos; aos limites faticamente realizáveis; e a interpretação.3 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais, p.29-30. POPPER, KARL R. La sociedad abierta y sus enemigos. Tradução de Eduardo Loedel. 4.ed. Buenos Aires: Paidós, 1991.4 HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da constituição, p. 11-12.
11procedimentos instituídos, todavia, em face de sua relação com a “Constituição e
realidade constitucional”, cabe o exame dos agentes componentes da realidade
constitucional não sendo possível arrolar taxativamente o elenco de intérpretes
da Constituição.5
A interpretação constitucional é, a um só tempo, produto e
constituinte da sociedade aberta e os critérios de interpretação constitucional
serão mais acentuados, abertos, quanto mais diversa, pluralista, a sociedade;
quem vive a norma a interpreta ou a co-interpreta, o que é assegurado pelo
influxo da teoria democrática, destacando-se o papel do destinatário-intérprete e
dos grupos e dos órgãos estatais.6
O exame acurado sobre os participantes decorre do conceito
“republicano” de interpretação aberta. O tempo, a esfera pública pluralista e a
realidade influenciam a interpretação constitucional de maneira que a teoria
constitucional, como dado empírico, deve exteriorizar os grupos de pessoas e os
fatores compreendidos pelo espaço público, o modelo e sua relação com o
tempo, a realidade como ciência da experiência, com vistas a informação ou
mediação.7
É possível arrolar, em caráter incipiente, os participantes da
interpretação a começar, num primeiro nível, pela Corte Constitucional com
decisão vinculante atenuada pelo voto vencido e os órgãos estatais dos três
poderes.8 As partes no procedimento, os interessados em sentido amplo,
pareceristas ou especialistas, peritos e representantes de interesses em
5 HÄBERLE, P. Idem, p. 12-13.6 HÄBERLE, P. Idem, p. 13-18. Dispõe o preâmbulo da Constituição: “Nós, representantesdo povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um EstadoDemocrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, asegurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos deuma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social ecomprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICAFEDERATIVA DO BRASIL.”. (grifo nosso)7 HÄBERLE, P. Idem, p. 20-21.8 HÄBERLE, P. Idem, p. 20-21. Sob o enfoque “subjetivo” ou “orgânico”, relacionado aos“órgãos” incumbidos da atividade de controle, sobressaem dois sistemas de controle judicial deconstitucionalidade das leis: o “difuso” exercido por “todos os órgãos judiciários”; o concentradorealizado por um único órgão especializado e idealizado por Hans Kelsen. CAPPELLETTI, Mauro.O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado, p. 65-68. Na Alemanha éadotado o sistema concentrado de controle de constitucionalidade. O Tribunal ConstitucionalAlemão é o defensor da Lei Fundamental e não integra o Poder Judiciário.
12audiências públicas, associações, partidos políticos, grupos de pressão
organizados e partes em processo administrativo.
Participam da interpretação constitucional, num terceiro nível, a
“opinião pública democrática e pluralista e o processo político: media (imprensa,
rádio, televisão [...] jornalismo profissional, [...] leitores, [...] as iniciativas dos
cidadãos, as associações, os partidos políticos fora do seu âmbito de atuação
organizada [...] igrejas, teatros, editoras, as escolas da comunidade, os
pedagogos, as associações de pais” e, em destaque, a doutrina tratando dos
demais intérpretes nos diferentes níveis.9
A interpretação da Constituição não se limita ao Estado, órgãos ou
participantes imediatos, porquanto se refere a todos sem olvidar os intérpretes
mediatos ou de longo prazo, as pessoas naturais que compõem os quadros dos
três poderes como parlamentares, servidores públicos e juízes. Os debates
parlamentares constituem interpretação constitucional antecipada, tendo
destaque o processo político ou a política como interpretação que cria realidades
públicas e se difere da interpretação do juiz (restrita a técnica).10
Considerando uma teoria que conceba uma unidade política e uma
unidade da Constituição, a possibilidade da interpretação constitucional diluir-se
num sem número de intérpretes e interpretações constitui obstáculo. Tal objeção,
contudo, deve ser avaliada sob o enfoque da legitimação dos intérpretes não-
oficiais, ao contrário dos órgãos estatais e dos parlamentares que estão
vinculados à Constituição, bem como os partidos políticos, os grupos, os
cidadãos, de maneira que quanto menor a vinculação menor a legitimação.11
Sob o enfoque da teoria do direito, da teoria da norma e da teoria da
interpretação, o aumento do número de intérpretes decorre da relação entre
realidade pluralista e processo de interpretação, porquanto a norma jurídica não
constitui uma decisão prévia, ademais, não se pode admitir o argumento de
infringência da independência dos juízes que devem interpretar o texto na esfera
pública e na realidade. Considerando a interpretação como processo público,
9 HÄBERLE, P. Idem, p. 22-23.10 HÄBERLE, P. Idem, p. 24-28.11 HÄBERLE, P. Idem, p. 29-30.
13quanto mais ampla for a interpretação constitucional maior o número de
participantes.12
A partir do prisma teorético-constitucional, a legitimidade das forças
pluralistas resulta da constatação de representarem parcela da publicidade e da
realidade constitucional e, tendo em vista que a Constituição não apenas
estrutura o Estado mas o âmbito público com normas de organização social e de
setores privados, não se pode tratar as forças sociais e privadas como meros
objetos e, sim, como sujeitos, sendo a Constituição o retrato da publicidade e da
realidade.13
Num Estado constitucional-democrático impõe-se a análise da
legitimação sob a perspectiva da teoria da democracia e releva notar que a
democracia não se restringe a imputação pelo povo de responsabilidade aos
órgãos do Estado, porque numa sociedade aberta ela se desenvolve também
pela mediação do processo público e pluralista, da política e da prática do dia a
dia e, em destaque, pela realização dos direitos fundamentais.14
O povo se afigura um elemento pluralista para a interpretação que
se manifesta como partido político, opinião científica, grupos de interesse e
cidadão, sendo a democracia o domínio “do cidadão”, noção que mais se
aproxima da democracia a partir dos direitos fundamentais, e não “do povo”
(termo equívoco) e parcela da democracia do cidadão se dá com o
desenvolvimento da interpretação das normas constitucionais.15
Destarte, há certa relativização da hermenêutica constitucional
concentrada na figura do julgador, considerando o aumento do número de
participantes, e dos modos de participação de maneira que todas as forças
pluralistas públicas são intérpretes da Constituição em potencial e a interpretação
constitucional não está limitada ao processo constitucional formal, devendo
espelhar a pluralidade do âmbito público e a realidade.16
Os tribunais devem avaliar com prudência a legitimidade das
decisões do legislador democrático bem como observar os debates e a opinião
pública pluralista sobre as leis que despertam maior interesse social, cabendo, na
12 HÄBERLE, P. Idem, p. 30-3213 HÄBERLE, P. Idem, p. 33-35.14 HÄBERLE, P. Idem, p. 36-37.15 HÄBERLE, P. Idem, p. 37-40.16 HÄBERLE, P. Idem, p. 41-43.
14hipótese de acentuada divisão de opiniões, conferir a função integrativa da
Constituição.17
As vias de informação dos juízes constitucionais devem ser
aumentadas e melhoradas, especialmente no tocante às possibilidades e aos
modos de participação no processo constitucional, audiências e intervenções, das
potências públicas pluralistas e o direito processual deve corresponder ao direito
de participação democrática. Uma excelente conformação legislativa e um
aprimoramento da interpretação do direito constitucional processual são
imprescindíveis para a garantia da legitimação da jurisdição constitucional sob o
enfoque da teoria de Democracia.18
Pondera Gisela Maria Bester:
Pensemos no caso do Brasil, que adota o pluralismo como um valorconstitucional já no Preâmbulo da CF/88, vindo ele depois reforçado emprincípios e em regras ao longo do texto constitucional: para nós, essenovo método hermenêutico seria muito necessário, notadamente nocampo dos direitos fundamentais. Afinal, considerar as concepçõesmarginais pluralistas é também um problema de aplicação do Princípioda Igualdade.19
2 DIREITOS FUNDAMENTAIS
O conceito de direito e de justiça preponderante na Idade Média
concebe, por obra de Tomás de Aquino que remonta a Platão e Aristóteles, o
direito natural “superior e inderrogável” como limite do direito positivo.20
Sustentava escola jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, de Grotius a Rosseau,
17 HÄBERLE, P. Idem, p. 44-46.18 HÄBERLE, P. Idem, p. 46-48. Dispõe o § 1º do artigos 9º e 20 da Lei nº 9.868/99: “Emcaso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notóriainsuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informaçõesadicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, oufixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridadena matéria.”. As previsões tiveram em vista instituir uma abertura procedimental nos processosconstitucionais de controle de constitucionalidade concentrado sem olvidar a importante figura doamicus curiae. BESTER, Gisela Maria. Direito constitucional, p. 165.19 BESTER, Gisela Maria. Direito constitucional, p. 163-164.20 CAPPELLETTI, M. Op. cit., p. 51-52.
15“a existência de ‘direitos inatos’, intangíveis e irrenunciáveis” limitadores do
legislador.21
Num primeiro momento havia a oposição entre o sistema do direito natural
e o sistema do direito positivo. Posteriormente, contudo, ocorreu a “positivação do
direito natural” perceptível na França a partir da atuação dos “Parlements”
consistente na “hereuse impuissance”, ou seja, na possibilidade de transgressão
das leis pelo Rei e na edição de leis inconstitucionais pelo Parlamento que
influenciou o pensamento de Montesquieu.22
A atual concepção de “positivação do direito natural” tem início com
as Constituições rígidas do constitucionalismo moderno e embora o
constitucionalismo represente um avanço sobre o pensamento jusnaturalista, as
liberdades civis e políticas sobre as quais o Estado moderno se funda são
conquistas do jusnaturalismo.23
Com alcance mais “preciso e estrito”, os direitos fundamentais são
os direitos positivados no ordenamento interno de um Estado, ao passo que os
direitos humanos correspondem aos direitos naturais positivados apenas no
âmbito internacional e referentes à dignidade, liberdade e igualdade, possuindo
sentido mais “amplo e impreciso”.24 As liberdades públicas protegem, de outro
lado, o âmbito de autonomia subjetiva enquanto os direitos fundamentais
compreendem as liberdades tradicionais e os novos direitos econômicos, sociais
e culturais.
A concepção de direitos fundamentais é determinante para a
identificação do Poder Público com o Estado de Direito. Dessa relação surge o
papel a ser desempenhado pelos direitos fundamentais no modo de organizar e
exercer as funções estatais, considerando que são as principais garantias que
possuem os cidadãos do Estado de Direito para exigir dos sistemas políticos e
jurídicos o alcance do respeito e da promoção da pessoa humana nos planos
individual e coletivo. Os direitos fundamentais se consubstanciam nas normas
21 CAPPELLETTI, M. Idem, p. 52-53.22 CAPPELLETTI, M. Idem, p. 54-56.23 CAPPELLETTI, M. Idem, p. 56.24 PÉREZ LUÑO, Antonio-Henrique. Los derechos fundamentales, p. 44-47-48. Gisela MariaBester destaca, entretanto, que no Brasil poucos autores levam em consideração em suas obras adistinção entre direitos fundamentais e direitos humanos, sendo que a maioria “funde” estesqualificativos. Op. cit., 560-561.
16constitucionais como conjunto de valores objetivos básicos, como consectários da
proteção das situações jurídicas subjetivas.25
Dessa maneira, os direitos fundamentais são o produto do consenso
das diferentes forças sociais que, por meio de esforços e acordos, definiram os
valores e as metas comuns. Assim, os direitos fundamentais legitimam e
correspondem as formas do Estado de Direito, constituem os pressupostos do
consenso que definem e priorizam os valores e as bases sobre as quais se funda
a sociedade democrática, bem como comportam e abrangem a garantia
essencial de um processo político livre e aberto. que sustenta qualquer sociedade
pluralista.26
Nessa perspectiva, o Estado Liberal evoluiu para a forma do Estado
de Direito que possui, como corolário, os direitos fundamentais que dinamiza,
garantindo as liberdades existentes e o alcance das descrições emancipadoras
previstas na Constituição, que define e prevê um conjunto de valores, fins e
ações positivas do poder público. Os direitos fundamentais fixam, na sua
dimensão subjetiva, o estatuto jurídico dos cidadãos nas suas relações
recíprocas com o Estado, buscando tutelar a liberdade e a segurança do
indivíduo.27
O sociólogo britânico Thomas Humphrey Marshall analisa, em seu
artigo intitulado "Citizenship and Social Class", publicado em 1950 a evolução da
cidadania como o desenvolvimento dos direitos civis (século XVIII), políticos
(século XIX) e sociais (século XX) e sua destacada contribuição foi a introdução
da categoria dos direitos sociais, concluindo que um cidadão somente se afigura
um “cidadão pleno” se possuir as três categorias de direitos.28
Jellinek enuncia as quatro fases percorridas para alcançar a
afirmação dos direitos públicos subjetivos:29 a) o “status subiectiones” fixou a
situação de passividade dos destinatários da norma emanada do poder público;
b) o “status libertatis” importou no reconhecimento das esferas de liberdades
individuais negativas dos cidadãos; c) no “status civitatis” os cidadãos exercem
pretensões junto ao Estado, ou seja, podem exigir um comportamento positivo do
25 PÉREZ LUÑO, A. H. Idem, p. 20-21.26 PÉREZ LUÑO, A. H. Idem, p. 21-22.27 PÉREZ LUÑO, A. H. Idem, p. 22-23.28 BESTER, G. M. Op. cit., p. 587.29 PÉREZ LUÑO, A. H. Idem, p. 24.
17Estado na defesa de seus direitos civis; d) no “status activae civitatis” o cidadão
goza plenamente de direitos políticos, participando da formação da vontade do
Estado como membro da comunidade política.
Esses estados serviram para assegurar instrumentos para a defesa
de interesses individuais, por isso, à medida que os cidadãos adquiriram a
consciência de que para desfrutar desses direitos e liberdades precisariam
assegurar uma quota de bem estar econômico para que todos os indivíduos
participassem ativamente na vida comunitária, originou-se uma nova classificação
batizada por Jellinek como “status positivus socialis”, relacionado ao
desenvolvimento da subjetividade humana nas dimensões individual e coletiva.30
Assim, amplia-se o horizonte do constitucionalismo que passa a
desempenhar a função de garantir a liberdade individual e a defesa dos aspectos
sociais e coletivos da subjetividade humana, além de assumir uma dimensão
institucional no sentido de promover o desenvolvimento e a concretização dos
valores e fins constitucionalmente previstos.
Não é sem motivo que os direitos fundamentais aparecem como
referência nos textos constitucionais mas a autenticidade de sua recepção
depende do seu relacionamento com o Estado de Direito. A realização dos
direitos fundamentais depende da tutela realizada pelo Estado de Direito e a
relação de vivência e intensidade da tutela desses direitos revela efetiva
implantação desse Estado.31
3 NORMAS CONSTITUCIONAIS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
A distinção das normas jurídicas em regras e princípios de Robert
Alexy trata-se de um refinamento da formulação de Ronald Dworkin. Apesar de
antiga, a classificação não é pacífica. No entanto, é dominante entre os
constitucionalistas brasileiros do começo do Século XXI.32
Com relação à estrutura das normas de direito fundamental existem
várias distinções, constituindo-se na principal a que diferencia regras e princípios,
30 PÉREZ LUÑO, A. H. Idem, p. 25.31 PÉREZ LUÑO, A. H. Idem, p. 26-27.32 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. A distinção estrutural entre princípios e regras e suaimportância para a dogmática jurídica – resposta às objeções de Humberto Ávila ao modelo deRobert Alexy, p. 153.
18indispensável para uma teoria adequada sobre os limites, as colisões e o papel
dos direitos fundamentais.33
As normas jurídicas são regras em sua maioria, ao contrário das
normas constitucionais referentes ao Direito e a justiça que são, prevalentemente,
princípios.34 As regras e princípios são normas porquanto revelam um “dever
ser”.35
O critério mais comum de diferenciação é o da “generalidade”
segundo o qual os princípios apresentam alto grau de imprecisão em comparação
com as regras.36 Considerando os vários critérios de distinção existentes entre
regras e princípios,37 pode-se inferir três posicionamentos:38 o primeiro sustenta
que é inadequada a divisão das normas em regras e princípios em razão da
multiplicidade de normas, bem como, diante da possibilidade de cumulação de
critérios de distinção heterogêneos; o segundo destaca que a distinção é apenas
de grau; para o terceiro a divisão das normas em regras e princípios não se
baseia somente no grau e sim na qualidade.
Considerando o terceiro posicionamento, as regras são normas que
contêm determinações realizáveis no plano fático e jurídico que podem ser ou
não cumpridas, contudo, “os princípios são normas que ordenam que algo seja
realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e reais
existentes”; são “imperativos de otimização”, porquanto podem ser realizados em
graus diferentes conforme as possibilidades reais e jurídicas existentes.39
Os princípios são “imperativos de maximização” quanto às
possibilidades fáticas e “imperativos de otimização” quanto às possibilidades
jurídicas. No entanto, a expressão “imperativos de otimização” é preferível porque
33 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales, p. 81-82.34 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil, p. 109-111.35 ALEXY, R. Op. cit., p. 83.36 Segundo Robert Alexy generalidade não se confunde com especialidade (baixo grau degeneralidade) e com universalidade (referência a todos os indivíduos de uma classe). ALEXY, R.Idem, p. 83.37 Alguns desses critérios são: o da determinabilidade dos casos de aplicação (Esser); o daorigem; o da diferenciação entre normas criadas e desenvolvidas; o do caráter explícito doconteúdo valorativo (Canaris); da referência a idéia do Direito (Larenz); da lei jurídica suprema(Wolff); da importância para o ordenamento jurídico (Peczenik e Ziembinsk); da constituição emregras ou fundamentos de regras; de normas de argumentação ou normas de comportamento.ALEXY, R. Idem, p. 84-85.38 ALEXY, R. Idem, p. 83-84.39 ALEXY, R. Idem, p. 85-86.
19tem a vantagem de considerar os princípios em conjunto, ao contrário da
expressão “imperativos de maximização”.40
As regras definem ações positivas ou negativas abstratamente,
todavia, os princípios desenvolvem um papel constitutivo e somente no caso
concreto definem uma posição.41
A existência de dois juízos de “dever ser” antagônicos denota a
existência de um conflito de regras ou uma colisão de princípios.42
A eliminação do conflito de regras ocorre com a introdução de uma
“cláusula de exceção” em uma delas, caso contrário uma das regras deve ser
considerada inválida consoante o brocardo “lex posterior derogat legi priori” e “lex
specialis derogat legi generali”.43
A “consistência” de um ordenamento jurídico pressupõe a
inexistência ou a eliminação das normas válidas e contraditórias entre si.44 O
vocábulo “antinomia” remonta a Plutarco e Quintiliano e, no ano de 1613,
Gloclenius traçou a distinção entre antinomia em sentido lato (entre sentença e
proposição) e em sentido estrito (entre leis) bem como entre antinomia real e
aparente. Eckolt analisou, em 1660, a questão da antinomia em sentido estrito e
a distinção entre antinomia real e aparente.45
No ano de 1732 J. H. Zedler tratou da exclusão recíproca entre leis
e, em 1770, G. Baumgarten investigou a antinomia entre direito natural e direito
civil. A palavra antinomia embora “consagrado pelo uso jurídico [...] é mais
rigorosamente definida no campo da lógica”, com efeito, consoante Quine “uma
antinomia gera autocontradição por processos aceitos pelo raciocínio”.46
A antinomia lógico-matemática consiste na “contradição que resulta
da dedução correta baseada em premissas coerentes” e “um enunciado que é
simultaneamente contraditório e demonstrável” (Stegmüller); no entanto, para
Russell trata-se de uma “falácia” consoante a sua teoria dos tipos lógicos.
40 ALEXY, R. Idem, p. 91.41 ZAGREBELSKY, Op. cit., p. 109-111.42 ALEXY, R. Op. cit., p. 873.43 ALEXY, R. Idem, p. 87-89.44 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito, p. 202.45 FERRAZ JUNIOR, T. S. Idem, p. 202-203.46 FERRAZ JUNIOR, T. S. Idem, p. 203.
20A antinomia semântica é a “contradição que resulta da dedução
correta baseada em premissas coerentes [...] porém [...] promana de algumas
incoerências, ocultas na estrutura de níveis do pensamento e da linguagem”.
Segundo Carnap e Tarski cuida-se de uma carência de sentido “sem-sentido”
consoante a “teoria dos níveis de linguagem” que diferencia “lingua-objeto”
(enunciados sobre objetos) e “metalíngua” (enunciados sobre enunciados).47
A antinomia pragmática (Watzlawick) exige três condições a) forte
relação complementar entre o emissor de uma mensagem e o receptor; b) nos
quadros dessa relação é dada uma instrução que deve ser obedecida, mas que
também deve ser desobedecida para ser obedecida (pressupõe uma contradição
no sentido lógico-matemático e semântico; c) o receptor em situação de
indecidibilidade.48
Segundo Tercio Sampaio Ferraz Junior “ao adotarmos a definição
lógica ou a semântica, somos levados a um beco sem saída, pois uma antinomia
jurídica, em termos lógicos ou semânticos, equivaleria sempre a uma falácia ou a
um sem-sentido”, logo, a antinomia jurídica é a antinomia pragmática e, ainda,
toda a antinomia envolve contradição, mas nem toda contradição constitui
antinomia.49
Há divergência sobre a possibilidade de existência de antinomias
entre direito e moral, entretanto, as normas devem emanar de autoridades
competentes num mesmo âmbito normativo. Na antinomia aparente o intérprete
possui uma escapatória e é solucionada com os seguintes critérios: a) hierárquico
“lex superior derogat inferiori”; b) da especialidade “lex specialis derogat
generalis”; e cronológico “lex posterior derogat priori”. O quarto critério,
consistente no brocardo “lex favorabilis derogat odiosa” está em desuso.50
A antinomia real ocorre quando há um conflito entre os critérios de
resolução da antinomia, devendo o intérprete recorrer aos metacritérios. A
47 FERRAZ JUNIOR, T. S. Idem, p. 204.48 FERRAZ JUNIOR, T. S. Idem, p. 205.49 FERRAZ JUNIOR, T. S. Idem, ibidem.50 FERRAZ JUNIOR, T. S. Idem, p. 207.
21posição do sujeito é insustentável porque não há critérios para solução, ou seja,
há lacunas de regras de solução de antinomia.51
No conflito entre os critérios hierárquico e cronológico o metacritério
para resolução é “lex posteriori inferiori non derogat priori superiori. Na
contradição entre os critérios da especialidade e o cronológico, por sua vez, o
metacritério é “lex posteriori generalis non derogat priori speciali”; finalmente,
quando ocorre o confronto entre o critério hierárquico e o da especialidade,
antinomias entre normas uma superior-geral e outra inferior-especial não há
metacritério.52
As antinomias podem ser “próprias” quando há um comando
permissivo e outro proibitivo, ou “impróprias”, relacionadas ao conteúdo material
das normas, antinomias de princípios, antinomias de valoração e antinomias
teleológicas. Quanto ao âmbito podem ser: de direito interno; internacional ou;
interno-internacional.53
Quanto a extensão da contradição, segundo Ross pode existir:
antinomia total-total “quando uma das normas não pode ser aplicada em
nenhuma circunstância, sem entrar em conflito com outra”; antinomia total-parcial
“quando uma das normas não pode ser aplicada em nenhuma circunstância, sem
entrar em conflito com outra enquanto a outra tem um campo de aplicação que
entra em conflito com a anterior apenas em parte”; ou antinomia parcial parcial
“quando as duas normas têm um campo de aplicação que em parte entra em
conflito com o de outra, em parte não entra”.54
A colisão de princípios é solucionada de modo diverso do conflito de
regras, com efeito, quando existe um antagonismo entre princípios, ou seja,
quando algo está permitido consoante o princípio “p1” e proibido conforme o
51 BOBBIO, Norberto. Teoria dell' ordinamento giuridico. Turim: Giapichelli, 1969, p. 253.CAPELLA, Juan-Ramon. El derecho como lenguage. Barcelona: Ariel, 1968, p. 285. Apud.FERRAZ JUNIOR. T. S. Idem, ibidem.52 Consoante Norberto Bobbio “...teoricamente deveríamos optar pelo critério hierárquico(uma lei constitucional geral prevalece sobre uma lei ordinária especial), mas, na prática, aexigência de adotar os princípios gerais de uma Constituição a situações novas leva, comfreqüência a fazer triunfar lei especial, ainda que ordinária, sobre a constitucional.”. Idem, p. 256.Apud FERRAZ JUNIOR. T. S. Idem, ibidem.53 FERRAZ JUNIOR. T. S. Idem, p. 209.54 ROSS, Alf. Sobre el derecho y la justicia. Buenos Aires: Eudeba, 1970. Apud FERRAZJUNIOR. T. S. Idem, p. 210.
22princípio “p2” prevalecerá o princípio com maior peso no caso concreto sem a
declaração de invalidade de qualquer deles.55
Na Alemanha, por exemplo, um acusado invocou, próximo a data de
sua audiência oral, com apoio em atestados médicos, o risco de perder a vida em
razão de um provável enfarto.56
Cuida-se, efetivamente, de uma colisão de princípios porquanto há,
de um lado, o dever de manter no máximo possível a aplicabilidade do direito
penal e existe, por outro, o dever de atingir menos possível a vida do acusado.57
O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha constatou uma
relação de tensão entre o dever do Estado de garantir uma aplicação adequada
do direito penal e o interesse do acusado na salvaguarda de seus direitos
constitucionalmente garantidos cuja proteção o Estado está igualmente obrigado
pela Lei Fundamental.
O princípio “p1” (direito à vida e à integridade física) e o princípio
“p2” (aplicação do direito penal) estão em colisão, de maneira que “p1” está
impedindo a realização e “p2” e vice-versa, “p1” está impossibilitando a realização
da audiência oral e “p2” está impondo a realização, inicialmente, a resolução da
colisão pode ser concebida de maneira condicionada ou incondicionada: a) “p1 P
p2” (“p1” prevalece sobre “p2”); b) “p2 P p1” (“p2” prevalece sobre “p1”); c) “(p1 P
p2) C” (“p1” prevalece sobre “p2” em determinadas condições); d) “(p2 P p1) C”
(“p2” prevalece sobre “p1” em determinadas condições).58
Nas duas primeiras hipóteses, “(p1 P p2)” e “(p2 P p1)”, cuida-se de
relações de precedências incondicionadas, inadmissíveis, tendo em vista a
inexistência de princípios absolutos. Aliás, apenas aparentemente o princípio da
dignidade humana representa uma exceção; afigurando-se a possibilidade de
existência de princípios absolutos é incompatível com a própria noção de
“princípio”:,os “princípios absolutos” não possuem limites jurídicos, não são
“imperativos de otimização”; os princípios podem estar relacionados a “bens
coletivos” ou “direitos individuais”. Quando um princípio está relacionado a um
bem coletivo e é absoluto, as normas de direito fundamental não fixam nenhum
55 ALEXY, R. Op. cit., p. 87-88.56 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p.1200.57 ALEXY, R. Op. cit., p. 91.58 ALEXY, R. Idem, p. 90-92.
23limite jurídico, logo, onde existem direitos fundamentais não existe princípio
absoluto; a possibilidade de colisão de dois princípios absolutos relacionados a
“direitos individuais” soa contraditória.59
A colisão de princípios se resolve com a ponderação de interesses
da mesma classe, com a prevalência do princípio de maior peso no caso
concreto; portanto, somente as duas últimas possibilidades, “(p1 P p2) C” e “(p2 P
p1) C”, são aceitáveis consoante a “teoria das condições de precedência
condicionadas”. Com efeito, na hipótese “(p1 P p2) C”, “p1” prevalece sobre “p2”
debaixo de determinadas condições “C”, bem como na espécie “(p2 P p1) C”, “p2”
prevalece sobre “p1” debaixo de determinadas condições “C”, resulta uma
resposta “R”, assim, “(p1 P p2) C?R” ou “(p2 P p1) C?R”, logo, a “lei de colisão” é
“C→R.60
A resolução da colisão se desenvolve em três estágios: constata-se
a colisão de princípios de mesma hierarquia; são enumeradas as condições de
precedência; decide-se.61
Outro exemplo paradigmático é o “caso Lebach”, também ocorrido
na Alemanha, onde foram assassinados quatro sentinelas num depósito de
munições do exército federal da Alemanha para a subtração de armamentos,
sendo que determinado programa de televisão pretendia repetir um documentário
intitulado “o assassinato de soldados em Lebach”. Um réu processado e
condenado à prisão que estava próximo ao término do cumprimento da pena
sustentou que a exibição comprometeria sua ressocialização, no entanto, a
emissora de televisão afirmava a liberdade de informação.62
Nessa hipótese, o princípio “p1” (liberdade de informação)
contraposto ao princípio “p2” (proteção da personalidade) nas condições “C”,
decidiu o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha considerando “C” igual
soma de “S1” (reportagem repetida), “S2” (falta de interesse atual), “S3” (perigo
na ressocialização) e “S4” (delito sem interesse atual), que “S1 e S2 e S3 e
S4?R”, “R” (vedação) seria a norma de direito fundamental com caráter de
59 ALEXY, R. Idem, p. 92-93; 106-107.60 ALEXY, R. Idem, p. 92-94.61 ALEXY, R. Idem, p. 95-98.62 CANOTILHO, J. J. G. Op. cit., ibidem.
24regra.63
Infere-se o caráter “prima facie” dos princípios tendo em vista que
não contém “mandatos definitivos” quanto às possibilidades fáticas e jurídicas
existentes, ou seja, representam razões que podem ser desconsideradas por
outras, por intermédio de uma decisão. Uma regra pode deixar de conter um
“mandato definitivo” pela introdução de uma cláusula de exceção, adquirindo um
caráter “prima facie” diverso e mais forte, face aos princípios formais. O caráter
“prima facie” dos princípios somente se iguala ao caráter “prima facie” das regras
quando existente uma carga de argumentação a favor. As regras são razões
definitivas e os princípios razões “prima facie”, e ambas são razões para normas
e mediatamente razões para ações ou juízos concretos de dever ser.64
Assinala Alexy que:
[...] entre a teoria dos princípios e a máxima da proporcionalidade existeuma conexão. Esta conexão não pode ser mais estreita: o caráter deprincípio implica máxima da proporcionalidade e esta implica aquele. Ocaráter de princípio implica máxima da proporcionalidade com suas trêsmáximas parciais, adequação, necessidade (postulado do meio maisbenigno) e proporcionalidade em sentido estrito (postulado deponderação propriamente dito) infere-se logicamente do caráter deprincípio, quer dizer, é dedutível dele. O Tribunal Constitucional Federaljá disse, em uma formulação algo obscura que a máxima daproporcionalidade resulta ‘no fundo da própria essência dos direitosfundamentais'.65
O princípio da proporcionalidade66 de origem remota, tem sido
invocado novamente acerca de duzentos anos e aplicado normalmente no âmbito
do direito administrativo, passando a ter aplicação no direito constitucional, em
razão da doutrina e jurisprudência da Alemanha e da Suíça.67
Inicialmente, a proporcionalidade estava relacionada com a
imposição de limites ao Poder Executivo, como proibição do excesso. A doutrina
ora infere a proporcionalidade a partir dos direitos fundamentais e ora do Estado
63 ALEXY, R. Op. cit., p. 97.64 ALEXY, R. Idem, p. 98-101.65 ALEXY, R. Idem, p. 111-112.66 Segundo Robert Alexy “a máxima da proporcionalidade sói ser chamada como ‘princípioda proporcionalidade”. Sem embargo, não se trata de um princípio [...] a adequação, necessidadee proporcionalidade em sentido estrito não são ponderados frente a algo diferente. Não é quealgumas vezes tenham precedência e outras não. O que mais se questiona, é se as máximasparciais são satisfeitas ou não e se não satisfeitas têm como conseqüência a ilegalidade. Por isso,as três máximas parciais, tem que ser catalogadas como regras.”. ALEXY, R. Idem, p. 111.67 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 362.
25de Direito Democrático.68
A proporcionalidade só pode ser entendida no seu sentido e alcance
tendo em vista “as duas concepções de Estado de Direito”: a primeira,
decadente, antiquada, relacionada ao princípio da legalidade com ápice no direito
positivo da Constituição de Weimar, de 1919, e a segunda conectada com o
princípio da constitucionalidade que transferiu para a proteção dos direitos
fundamentais “o centro de gravidade da ordem jurídica”.69
Conforme Pierre Müller, a proporcionalidade (em sentido amplo)
representa o cânone a ser observado pelos que controlam ou são afetados pelo
poder. Num sentido restrito representa a adequação existente entre os fins
almejados e os meios utilizados, sendo, posteriormente, acrescentado por
Braibant a situação de fato, perfazendo o triângulo formado pelos elementos
meio, fim e situação de fato.70
Com apoio na doutrina de Jhering, Ermarcora assevera que todo o
direito busca uma finalidade, de maneira que existe uma relação normativa e
sistemática entre o meio e o fim face a regra jurídica donde pode ser inferida a
proporcionalidade.71
A máxima da proporcionalidade em sentido amplo é constituída de
três máximas parciais:72 conformidade ou adequação; exigibilidade ou da
necessidade; proporcionalidade em sentido restrito.
A máxima da conformidade ou da adequação refere-se a escolha do
meio apto para a consecução de um fim escorado no interesse público.
Consoante a máxima da exigibilidade ou da necessidade, o meio empregado não
pode extrapolar os limites indispensáveis para a realização do fim e de todos os
meios deve-se optar pelo menos gravoso para o cidadão. A máxima da
proporcionalidade em sentido restrito significa avaliar se a medida adequada e
necessária é proporcional a coação levada a efeito, a “justa medida”.73
4 VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
68 CANOTILHO, J. J. G. Op. cit., p. 265-266.69 BONAVIDES, P. Op. cit., ibidem.70 BONAVIDES, P. Idem, p. 356-357.71 BONAVIDES, P. Idem, p. 357-358.72 CANOTILHO, J. J. G. Op. cit., p. 268.73 CANOTILHO, J. J. G. Idem, p. 268.-269; BONAVIDES, P. Idem, ibidem.
26
4.1 Ineficácia e state action
Nos Estados Unidos é amplamente majoritário o posicionamento de
que os direitos fundamentais vinculam somente o poder público, com exceção da
13ª emenda que vedou a escravatura. Considerando a state action, cabe
identificar em quais hipóteses o comportamento do particular é passível de
imputação ao Estado. Nos ordenamentos româno-germânicos, no entanto,
predomina o entendimento da influência dos direitos fundamentais no direito
privado havendo discrepâncias quanto ao modo e o alcance.74
Logo no início, Mangoldt e Forsthoff opuseram-se à teoria da
eficácia horizontal, porquanto os direitos fundamentais representariam direitos de
proteção contra o Estado, premissa do liberalismo clássico. Ao lado disso,
inferiam a impossibilidade do texto da Lei Fundamental, da intenção do
constituinte. Sustentavam o conseqüente esfacelamento do direito privado, que
seria consumido pelo direito constitucional, atribuindo maior poder aos juízes em
detrimento do legislador eleito. Finalmente, Forsthoff sustentava uma queda de
hierarquia da Constituição para o patamar privado, de norma jurídica para ordem
de valores, em prejuízo da hermenêutica constitucional bem como da segurança
jurídica.75
O Tribunal Constitucional alemão reconhece a eficácia horizontal
desde 1950, todavia, o direito suíço de origem romano-germânico bem como o
direito estadunidense sustentam a tese da não vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais.76
Nos Estados Unidos a doutrina da state action se baseia na
interpretação literal da Constituição e na autonomia privada, preservando-se a
liberdade individual que seria prejudicada na sua adaptação à Constituição. O
segundo fundamento da state action está associado à autonomia federativa,
porque nos Estados Unidos cabe aos Estados membros legislar sobre direito
privado e não à União.
74 SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direitocomparado e no Brasil, p. 196-197.75 SARMENTO, D. Idem, p. 197-198.76 SARMENTO, D. Idem, p. 198.
27A doutrina da “state action” teve início em 1883 com os julgamentos
dos “Civil Rights Cases”, considerando o “Civil Rights Act” de 1875 que, editado
com fundamento na 14ª Emenda, cominou sanções civis e penais às
discriminações raciais, resolvendo que os direitos fundamentais previstos na
Constituição apenas o Estado vinculam, pensamento que remanesce atualmente
com leve diminuição, bem como o fato de não possuir o Congresso competência
para legislar sobre relações privadas que, na década de 1960, no entanto, foi
revisto podendo a União legislar, por conseguinte, sobre direitos humanos ainda
que ausente a figura do Estado.77
Aproximadamente em 1940, a Suprema Corte começou a aplicar a
“public function theory”78, que mitiga a “state action” e sujeita os particulares aos
direitos fundamentais quando exercentes de atividades tipicamente estatal,
posteriormente adotada para vincular os partidos políticos ao princípio da
igualdade, impedindo discriminações raciais.79 Perto de 1970, contudo, volta-se a
orientação anterior.80
Há vinculação dos particulares aos direitos fundamentais quando
existe um intenso liame entre o comportamento privado de algum órgão do
governo. 81 A Suprema Corte julga, ainda, que ao Estado não é lícito incentivar de
maneira direta ou indireta a não observância dos direitos fundamentais82, não
podendo o Estado conceder, ademais, subsídios, vantagens ou isenções aos
particulares que se comportam contrariamente à Constituição83, diferentemente
77 SARMENTO, D. Idem, p. 199-200; 203-205.78 Marsh v. Alabama, 326 U. S. 501 (1946). Leaden case que tratou da ilicitude da proibiçãode acesso as testemunhas de Jeová onde se edificou uma cidade por uma empresa privadaproprietária de imóveis, private owned town.79 Evans v. Newton, 328 U. S. 296 (1966). Limitação da entrada de negros em um parqueprivado aberto ao público.80 SARMENTO, D. Idem, p. 201-203.81 Shelleu v. Kraemer, 334 U.S. 1 (1948). Acordo entre proprietários de imóveis de uma áreaque os impedia de aliená-los aos discriminados em razão de raça; Burton v. Wilmington ParkingAuthority, 365 U.S. 715 (1961). Restaurante proibido de discriminar por motivos raciais tendo emvista ser locatário de prédio público; San Francisco Arts & Athletics Inc. v. United States OlympicComitee, 483 U.S. 522 (1987). A um evento atlético gay não foi permitido o uso do vocábulo“olímpico” porquanto a lei atribui exclusividade ao Comitê Olímpico, entidade privada.82 Reitman v. Mulkey, 387 U.S. 369 (1967). A Suprema Corte considerou inconstitucional aemenda que assegurava aos proprietários o direito de vender ou arrendar os imóveis a quem bementendessem.83 Norwood v. Harrison, 413 U.S. 455 (1917) tratou da proibição da gratuitade de livros aosalunos de instituições particulares de ensino adeptas de políticas discriminatórias; e Gilmore v. Cityof Montgomery, 417 U.S. 556 (1974) cuidou da vedação de utilização exclusiva das utilidadespúblicas a uma instituição de ensino praticante de racismo.
28das empresas sujeitas a um mero licenciamento ou pormenorizada regulação
estatal.84
Os precedentes se inclinam no sentido de que o comportamento
violador de um direito fundamental federal possa ser razoavelmente imputado ao
Estado. A “privação” deve advir de direito instituído pelo Estado ou de pessoa que
ele seja responsável; posteriormente, que a pessoa que realiza o comportamento
possa ser considerada um “ator estatal”, em razão de ser o próprio Estado, ou ter
atuado ao lado dele, ou ter recebido auxílio, ou porque o seu comportamento
pode de algum modo ser atribuído ao Estado.85
A jurisprudência americana restringe a proteção dos direitos
fundamentais pelo legislador ordinário86 e, malgrado a doutrina majoritária não
conteste as premissas da state action, parte da doutrina combate a construção
jurisprudencial tendo em vista a dicotomia direito público e direito privado87,
argumentando Kynes que no âmbito público, as expressões liberdade,
democracia e igualdade são empregadas e que no ambiente privado, abrangente
de toda atividade econômica, não há democracia ou igualdade, somente
liberdade para vender e comprar.88
Afirma Erwin Chemerinsky, em seu artigo Rethinking State Action,
que a state action tutela a liberdade individual, demarcando uma área de
comportamento particular que não necessita se compatibilizar com a Constituição
e busca a preservação da autonomia dos Estados. Critica incisivamente o
primeiro fundamento porquanto olvida os direitos individuais transgredidos a
pretexto de proteger a liberdade e o segundo porque a autonomia deriva da
Constituição não podendo ser a ela oposta. Finalmente, sustenta a substituição
da state action por um modelo de ponderação.89
84 Moose Lodge Number 107 v. Irvis, 407 U.S. 163 (1972). Caso em que a licença concedidaa um clube privado se revela insuficiente para impedir discriminações raciais. ColumbiaBroadcasting Sistem v. Democratic Nacional Committee, 457 U.S. 922 (1982). Restou decidido quea CBS mesmo subordinada ao licenciamento e a regulação estatal, poderia recusar propagandapaga de grupos contrários a Guerra do Vietnã. SARMENTO, D. Idem, p. 203-205.85 SARMENTO, D. Idem, p. 205.86 Em Boy Scouts os America v. Dale a Suprema Corte considerou inconstitucional a leiestadual que proíbe a discriminação contra homossexuais no caso em que o escoteiro Dale foiexpulso do grupo por ser militante da causa gay.87 Criticado pelo membros do Critical Legal Studies bem como pelo movimento feminista.88 SARMENTO, D. Idem, p. 206.89 SARMENTO, D. Idem, p. 207-208.
29Jonh E. Nowak e Ronald D. Rotunda defendem a aplicação dos
direitos fundamentais às relações privadas com a ponderação de interesses
(balancing test) e a omissão estatal na hipótese de violação perpetrada por um
particular, tendo em vista a inexistência de lei proibitiva.90
4.2 Teoria da eficácia indireta ou mediata
Consoante o pensamento liberal clássico, os direitos fundamentais
estariam associados à disciplina de relações públicas tendo o Estado como parte.
No entanto, o acentuado individualismo caracterizador do constitucionalismo
liberal-burguês é anacrônico e as agressões aos direitos fundamentais não são
originados exclusivamente pelo Estado.91
Poderes não-estatais e prejuízos sociais colocam em risco a
liberdade humana uniforme, anteriormente considerada objeto de tutela
unicamente da legislação, hodiernamente compreende o dever Estatal de
proteção dos direitos fundamentais, resultado da natureza de princípios objetivos
dos direitos fundamentais protegendo bens jurídicos de poderes ou pessoas
incluindo os particulares.92
Robert Alexy assevera que no tocante à aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas o “como” representa uma questão de
construção e “em que medida” uma questão de ponderação, ademais, a
controvérsia sobre o tema nasce considerando que as relações entre os
particulares são marcadas por uma suposta igualdade jurídica.93
Os direitos fundamentais em sentido negativo estão relacionados a
uma omissão estatal impondo, por sua vez, o dever de proteção (salvaguarda
eficaz), todavia o “como” incumbe ao legislador prioritariamente e acarreta, não
raras vezes, a intromissão em posições tuteladas jurídico-fundamentalmente de
90 SARMENTO, D. Idem, p. 208-209.91 SARMENTO, D. Idem, p. 193-194.92 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha,p. 278.93 SARMENTO, D. Op. cit., p. 194.
30terceiros, podendo a proteção de um ensejar a violação de outro, o que deve ser
equilibrado proporcionalmente na legislação.94
A questão central está na equação dos direitos fundamentais e da
autonomia privada, que dá origem a posicionamentos que priorizam um ou outro
aspecto bem como a atuação mais incisiva ou comportada dos juízes. A
discussão sobre a aeficácia perante terceiros teve início com a Lei fundamental
de Bonn, com as teorias da eficácia direta ou indireta tendo o debate enveredado
pela Espanha e Portugal, com o surgimento de novos posicionamentos.95
A teoria da eficácia horizontal cujo precursor foi Günther Dürig96 é
majoritária na Alemanha, sendo aplicada pela Tribunal Constitucional. Constitui
um meio termo entre as teorias da não vinculação e da vinculação imediata, não
visualizando os direitos fundamentais como direitos subjetivos invocáveis a partir
da Constituição e sim como normas objetivas, valores constitucionais, que se
irradiam sobre o direito privado por intermédio das cláusulas gerais.97
Os defensores da posição intermediária sustentam que a adoção da
teoria da eficácia imediata implicaria eliminação da autonomia da vontade
ocasionando a perda da identidade do direito privado, que seria mera
materialização do direito constitucional, atribuindo demasiada discricionariedade
ao Poder Judiciário tendo em vista o alto grau de indeterminação das normas
constitucionais de direitos fundamentais.98
A eficácia dos direitos fundamentais seria mediata porquanto
extensível aos particulares por intermédio do legislador, com maior proteção ao
“tráfico jurídico”, compatibilidade com o regime democrático e a separação dos
poderes, constituindo assim os direitos fundamentais princípios de interpretação
de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, ora tornando-os claros
“wertverdeutlichung”, ora enfatizando os elementos que os compõe
“wertakzentuierung”, “Wertverschärfung”, e, excepcionalmente, suprindo espaços
vazios mas sempre sob o enfoque de direito privado.99
94 HESSE, K. Op. cit., p. 279-280.95 SARMENTO, D. Op. cit., p. 195.96 “Grundrechte und Zivilrechtsprechung”. In: MAUNZ, Theodor (Hrsg. Von) Festschrift fürHans Nawisasky. München: Beck, 1956, p. 157-190.97 SARMENTO, D. Op. cit., p. 210-211, 217.98 SARMENTO, D. Idem, p. 211-212.99 SARMENTO, D. Idem, p. 213.
31O Poder Judiciário deve, contudo, observar os direitos fundamentais
em seus julgados sob pena de reforma da decisão.
O caso Lüth versou sobre dano (direito privado) e liberdade de
opinião (direito fundamental art. 5 inc. I da LF). Em 1950, Lüth intercedeu junto
aos proprietários e espectadores de cinema para o boicote de um filme produzido
por um diretor que ao tempo do período nacional-socialista, levou a efeito uma
película anti-semita, tendo os tribunais cíveis considerado a conduta de Lüth um
ato ilícito, determinando a sua cessação porquanto violador dos bons costumes.
O Tribunal Constitucional Federal cassou a decisão, em sede de recurso
constitucional, com fundamento na irradiação dos direitos fundamentais sobre o
direito privado, deixando de aplicar a cláusula geral 828 do BGB.100
No caso Lüth o Tribunal Constitucional enfatizou o fim primeiro dos
direitos fundamentais, como direitos de proteção contra o arbítrio estatal bem
como destacou a ordem de valores da Lei Fundamental, que tem como ponto
nuclear a dignidade humana, apta a influenciar as disposições de privado, o que
revela um comprometimento com inclinação social.101
Nos casos de fiadores sem patrimônio ou com patrimônio suficiente
apenas para saldar juros e sem perspectiva de pagar o principal no decorrer da
vida, o Superior Tribunal Federal julgou que a liberdade de contratar admite
assimilação de obrigações de risco. O Tribunal Constitucional Federal considerou
a hipótese, todavia, como violação ao livre desenvolvimento da personalidade
(art. 2 inc. I da LF), com base no “efeito irradiador' dos direitos fundamentais nas
cláusulas gerais do direito privado, como bons costumes e boa-fé aplicando as
cláusulas gerais 138 ou 242 do BGB.102
100 CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privadona Alemanha, p. 227-228.101 SARMENTO, D. Op. cit., p. 215-217.102 CANARIS, C. W. Op. cit., p. 228-229. No Brasil ocorreu um julgamento semelhante:“HABEAS CORPUS. Prisão civil. Alienação fiduciária em garantia. Princípio constitucional dadignidade da pessoa humana. Direitos fundamentais de igualdade e liberdade. Cláusula geral dosbons costumes e regra de interpretação da lei segundo seus fins sociais. Decreto de prisão civil dadevedora que deixou de pagar dívida bancária assumida com a compra de um automóvel-táxi, quese elevou, em menos de 24 meses, de R$ 18.700,00 para R$ 86.858,24, a exigir que o total daremuneração da devedora, pelo resto do tempo provável de vida, seja consumido com opagamento dos juros. Ofensa ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, aosdireitos de liberdade de locomoção e de igualdade contratual e aos dispositivos da LICC sobre ofim social da aplicação da lei e obediência aos bons costumes. Arts. 1º, III, 3º, I, e 5º, caput, da CR.Arts. 5º e 17 da LICC. DL 911/67. Ordem deferida.” BRASIL. STF. EMENTA. 4 ª Turma, v. u. HC n.
32Em outro caso concreto, um aprendiz de torneiro mecânico publicou
um artigo contrário à instalação de uma usina nuclear e posteriormente, o seu
empregador não firmou contrato de trabalho com ele. O Tribunal Federal do
Trabalho considerou lícita a não contratação tendo em vista certa dose de
“violência” que poderia voltar-se contra o empregador. O Tribunal Constitucional
Federal decidiu, por sua vez, pela obrigação de contratar, malgrado a inexistência
de regra neste sentido, considerando a livre expressão da opinião bem como a
não-discriminação.103
O BGB admite em hipóteses excepcionais, como na separação ou
no divórcio, a discussão sobre o estado de filho, tendo o Tribunal Constitucional
julgado tal regulamentação constitucional visando proteger o matrimônio. No
entanto, ao contrário, considerando o direito do filho conhecer a pessoa do pai
biológico (direito ao livre desenvolvimento da personalidade art. 2 inc. I da LF) e a
concordância dos pais, julgou que a lei privada violou, no caso concreto, a
“proporcionalidade”.104
Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal julgou
constitucional a lei que protege a relação de emprego, nas empresas com mais
de cinco trabalhadores, considerando caber ao Estado a proteção do “livre
exercício da profissão” (art. 12 da LF), por outro lado, entendeu correta a
exclusão da pequena empresa do âmbito de incidência da norma, tendo em vista
ser o empregador merecedor, na hipótese, de proteção em razão de sua
capacidade econômica.105
Os direitos fundamentais podem embasar uma pretensão individual
jurídico-fundamental de proteção estatal somente no desenvolvimento preciso e
suficiente do direito objetivo. Ademais, existe o efeito diante de terceiros na
hipótese do Estado se valer, na prestação de serviços públicos, de um
particular.106
Para Konrad Hesse a eficácia perante terceiros não se refere às
garantias incapazes de afetar uma relação entre privados como ocorre na
12547/DF; Ministro Relator Ruy Rosado de Aguiar. 01.06.2000. DJU, 12.02.2001 p. 115. RSTJ, v.148, p. 387.103 CANARIS, C. W. Idem, p. 230-231.104 CANARIS, C. W. Idem, p. 231-232.105 CANARIS, C. W. Idem, p. 233-234.106 HESSE, K. Op. cit., p. 281.
33vedação de nacionalização alemã (art. 16 alínea I da LF), na auto-administração
comunal (art. 28, alínea 2, da LF) e nos princípios de funcionalismo de carreira
(art. 33 alínea 5 da LF).107
Com exceção da liberdade de coalizão (art. 9, alínea 3, frase 2 da
LF), não existem na Lei Fundamental disposições aptas a determinar um efeito
diante de terceiros e, por esta razão, deve ser apreciado o programa e a
finalidade dos direitos fundamentais na quadratura constitucional, não
autorizando a eficácia perante a consideração dos direitos fundamentais como:
direitos subjetivos oponíveis contra o Estado; “dados positivamente para a
atualização”; competência negativa.108
Conforme a jurisprudência do Tribunal do Trabalho Federal alemão
que os direitos fundamentais não somente asseguram direitos de liberdade diante
do Estado, mas compreendem princípios de regulamentação da vida em
sociedade podendo informar, de determinada perspectiva, os negócios dos
cidadãos. O Tribunal Federal já admitiu um efeito face a terceiros, por sua vez, o
Tribunal Constitucional Federal ainda não decidiu a respeito, no entanto,
propugna que os direitos fundamentais constituem decisões de valores objetivos
que influenciam na interpretação de todos os ramos do Direito (efeito de
irradiação).109
Consoante o Tribunal Constitucional Federal a questão relativa ao
efeito perante terceiros apenas se materializa no ensejo de algum caso concreto
que um tribunal julgue a respeito da vinculação, contrariamente, na hipótese de
alguém suportar a afetação de sua liberdade jurídico-constitucional sem pleitear a
tutela jurisdicional, não existe proteção.110
As partes em uma relação privada possuem igual parcela de tutela
dos direitos fundamentais, sendo incabível idêntica proteção pelo poder público
tendo em vista que a tutela de um pode ensejar afetação da liberdade jurídico-
fundamental do outro e numa relação entre particulares os direitos fundamentais
produziriam efeitos regularmente em benefício e prejuízo dos participantes o que
107 HESSE, K. Idem, p. 282.108 HESSE, K. Idem, ibidem.109 HESSE, K. Idem, p. 283.110 HESSE, K. Idem, p. 283-284.
34implicaria na restrição de autonomia do direito privado que dispõe de soluções
precisas a respeito.111
Os direitos fundamentais não podem vincular diretamente
particulares como regra. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito
privado refere-se primordialmente ao legislador que deve materializar os
respectivos conteúdos, todavia, caso ausente a previsão legislativa cabe ao
julgador este fim.112 Ganham importância os direitos fundamentais na
interpretação do caso concreto com a utilização de conceitos indeterminados ou
cláusulas gerais.
Relevante é a questão referente à proteção de um patamar reduzido
de liberdade individual e não a diminuição da liberdade a este mínimo, não
podendo ser limitada pelos direitos fundamentais. Com efeito, os direitos
fundamentais não se contrapõem às obrigações contraídas livremente.113
Os direitos fundamentais influenciam o ordenamento privado, de
modo mais acentuado, na tutela do mínimo de liberdade pessoal em face do
exercício do poder econômico ou social, como na hipótese de o boicote de uma
editora considerando seu posicionamento político a uma revista, que transgride o
art. 5 da LF afetando, logo, a formação da livre opinião em virtude de forças
econômicas e não da palavra em si. 114
Na França a influência ocorre por intermédio do Conselho
Constitucional no controle preventivo de constitucionalidade das leis e os juízes
franceses preferem recorrer, nos julgamentos, aos “princípios gerais de direito”, a
“ordem pública” e aos “bons costumes”, sendo a eficácia horizontal pouco
abordada pela doutrina. Destaca-se, porém, François Luchaire em defesa da
eficácia mediata, malgrado não seja utilizada esta expressão, e Jean Rivera Louis
Favoreau, a favor da eficácia imediata, considerando a inexistência de uma
“dupla ética” bem como da igualdade material nas relações privadas.115
Parte dos opositores sustentam o esfacelamento do princípio da
legalidade devido à influência de valores constitucionais gerando insegurança na
aplicação do direito civil e comercial. Parte assevera, de outro lado, a
111 HESSE, K. Idem, p. 284-285.112 HESSE, K. Idem, p. 285.113 HESSE, K. Idem, p. 286.114 HESSE, K. Idem, p. 286-287.115 SARMENTO, D. Op. cit., p. 217-219.
35insuficiência da proteção aos direitos fundamentais relegada ao legislador
privado. Finalmente, há quem aponte a sua desnecessidade considerando a
consistência da formulação da interpretação conforme a constituição.116
4.3 Teoria da eficácia direta ou imediata
Assevera Hans Carl Nipperdey, precursor da teoria da eficácia direta
e imediata, que malgrado alguns direitos fundamentais digam respeito somente
ao Estado, outros são passíveis de invocação nas relações entre particulares a
partir da Constituição, independentemente da interposição do legislador e são
oponíveis “erga omnes”. Ele sustenta o seu posicionamento na ameaça aos
direitos fundamentais por poderes sociais e terceiros, bem como na instituição do
Estado Social.117
Walter Leisner fundamenta a vinculação direta na “unidade do
ordenamento” e Reinhold Zippelius na possibilidade de tutela insuficiente
realizada pelo legislador. O Tribunal Federal do Trabalho já adotou em alguns
julgamentos na Alemanha, contudo, os adeptos não olvidam as características
específicas na incidência bem como a inevitabilidade de sopesar os direitos
fundamentais envolvidos com a autonomia privada, prestigiando, assim, a
liberdade individual.118
A doutrina da eficácia imediata é dominante na Espanha. Para
Bilbao Ubillos há direitos na Constituição da Espanha que pressupõe, por sua
natureza, eficácia direta. Para Pedro de Vega Garcia constitui um instrumento de
supressão das desigualdades sociais ponderando não existir liberdade efetiva em
relações desequilibradas e, para Rafael Naranjo de la Cruz, a teoria da eficácia
mediata está atrelada a um enfoque ultrapassado dos direitos fundamentais
devendo considerar o Estado social e a ameaça dos poderes privados.
Igualmente, a jurisprudência espanhola inclina-se no sentido da eficácia direta.119
116 SARMENTO, D. Idem, p. 219-220.117 SARMENTO, D. Idem, p. 220.118 SARMENTO, D. Idem, p. 220-221.119 SARMENTO, D. Idem, p. 222-225.
36No direito português existe previsão expressa,120contudo, parte da
doutrina sustenta a eficácia mediata.121 Para Canotilho e Vital Moreira a
Constituição é o “estatuto fundamental da ordem jurídica em geral”, “fonte directa
de regulação das relações entre os próprios cidadãos”. No entanto, assevera
Canotilho que o juiz deve aplicar, no julgamento, o direito privado numa
interpretação conforme a Constituição e, na hipótese de lacuna, materializar os
direitos fundamentais, mas não apenas por intermédio de cláusulas gerais e
conceitos jurídicos indeterminados. Ressalta que a desigualdade da relação, o
“núcleo irredutível de autonomia pessoal” e a possibilidade de conduzir a eficácia
a um direito a “não liberdade” devem ser considerados.122
Para Ana Prata não há que se repelir a eficácia imediata com apoio
na autonomia privada por conta da quadratura constitucional portuguesa. Para
José João Nunes Abrantes a eficácia mediata não tutela adequadamente o
núcleo essencial dos direitos fundamentais, todavia, não compara o tratamento
às relações em que o Estado é parte e para Nunes Abrantes, sendo preciso
sopesar os interesses envolvidos considerando a igualdade material sempre com
observância do núcleo essencial dos direitos fundamentais.123
Cristina Queiroz defende o efeito imediato mas destaca o núcleo
intocável de autonomia privada e a ponderação de bens. Jorge Miranda sustenta,
sem se posicionar expressamente, a ponderação entre os direitos fundamentais e
autonomia individual bem como o respeito ao núcleo essencial dos direitos
fundamentais, inclusive em “auto-restrições”. Para José Carlos Vieira Andrade é
preciso conciliar justiça social e autonomia privada, com a adoção da eficácia
imediata em relações desequilibradas, com recurso à ponderação onde
prepondera, em princípio, a seu ver, a autonomia privada. O Tribunal
Constitucional de Portugal ainda não se pronunciou a respeito.124
A Constituição italiana não possui disposição semelhante à
portuguesa, mas contempla o Estado Social, tendo a jurisprudência italiana
120 Dispõe o art. 18.1 da Constituição portuguesa: “Os preceitos constitucionais respeitantesaos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas eprivadas.”.121 Nesse sentido: Francisco Lucas Pires e Carlos Alberto Mota Pinto.122 SARMENTO, D. Idem, p. 226-228.123 SARMENTO, D. Idem, p. 229.124 SARMENTO, D. Idem, p. 229-232. Vasco Manual Pascoal Dias Pereira possuientendimento similar ao de José Carlos Vieira Andrade.
37aderido à doutrina da eficácia imediata com julgados reconhecendo o caráter
“erga omnes” de determinados preceitos. Segundo Vezio Crisafulli a doutrina
burguesa não protege efetivamente a dignidade humana face à desigualdade e
aos poderes sociais, sem olvidar a unitariedade do ordenamento. Para
Alessandro Pace as Constituições atuais não se limitam às relações entre
cidadão e Estado. Para Pietro Perlingeri a normatividade constitucional não se
trata de mera regra hermenêutica e sim de norma de comportamento.125
4.4 Teoria dos deveres de proteção
O relacionamento entre os direitos fundamentais e o direito privado
pode ser mais bem compreendido tendo em vista três indagações: “quem é o
destinatário dos direitos fundamentais – apenas o Estado ou também os sujeitos
jusprivatistas?; “de quem é o comportamento “objeto do exame” realizado com
base nos direitos fundamentais – o comportamento de um órgão público ou de
um particular?”; “em que função se aplicam os direitos fundamentais – como
proibições de intervenção e direitos de defesa contra o estado [Abwehrrechte] ou
como mandamentos (deveres) de proteção”.126
A indagação sobre os “destinatários dos direitos fundamentais”
trata-se de matéria debatida por mais de década na Alemanha sob as expressões
eficácia externa imediata (unmittelbare) e eficácia externa mediata (mittelbare
Drittwirkung), de maneira que a eficácia imediata denota que os particulares, ao
lado do Estado, também são destinatários dos direitos fundamentais, conduzindo
para vedações de intervenção bem como direitos de defesa, sendo
desnecessário o recurso as cláusulas gerais.127
A doutrina da eficácia imediata pode levar à substituição do direito
contratual e da responsabilidade extracontratual pelo direito constitucional, o que
afronta a autonomia do direito privado bem como contraria o fato de que os
direitos fundamentais, em sua origem se referem ao Estado sendo, por estas
razões, minoritária na Alemanha. A Constituição pode, contudo, prever a
aplicação imediata como o art. 9 inc. III alínea 2 LF, de onde se deduz a nulidade
125 SARMENTO, D. Idem, p. 232-235.126 CANARIS, C. W. Op. cit., p. 234.127 CANARIS, C. W. Idem, p. 234-235.
38de pactos tendentes a reduzir a associação de empregados ou empregadores
assim como o art. 36 da Constituição Italiana.128
Com relação ao comportamento “objeto do exame,” realizado com
base nos direitos fundamentais, Canaris após destacar a semelhança entre a
Alemanha e a Itália assevera que:
Ao contrário do que ocorre com as leis, verifica-se que contratos,negócios jurídicos e outros atos de sujeitos jusprivatistas não constituemobjeto de um exame direto com base nos direitos fundamentais, pois aspessoas que executam esses atos não são, como já foi exposto,destinatários dos direitos fundamentais. Não obstante, os direitosfundamentais também exercerem influência nestes casos.
No tocante à terceira pergunta “em que função se aplicam os
direitos fundamentais – como proibições de intervenção e direitos de defesa
contra o Estado (Abwehrrechte) ou como mandamentos (deveres) de proteção”,
consoante a corrente dominante na Alemanha as proibições de intervenção e os
direitos de defesa em relação ao Estado buscam obrigar o Estado em prol da
tutela das pessoas, considerando o bem jurídico delas “Eingriffsverbote und
Abwehrrechte” e a jurisprudência do Tribunal constitucional Federal, referendada
pela doutrina.129
A distinção entre “proibições de intervenção e direitos de defesa em
relação ao Estado” e a expressão “mandamento para proteção” foi empregada
nos debates sobre a legalização do aborto porque não se trata de ato de
intervenção do Estado e sim ato de cidadãos, como a relação entre a genitora e o
médico sobre o bem juridicamente tutelado. Daí a pertinência, nesta hipótese da
expressão “mandamentos de tutela”, possuindo o Estado o dever de proteger um
cidadão diante do outro.130
O legislador violou, no caso Lüth, o direito fundamental não no
sentido de vedação de intervenção e sim na função de mandamentos de tutela,
tendo em vista a carência de proteção do direito da personalidade no âmbito do
direito civil, no tocante à integração e ao suprimento de falhas do direito privado
128 CANARIS, C. W. Idem, p. 235. O art. 36 da Constituição italiana prescreve que “illavoratore há diritto ad uma retribuzione proporzionata alla quantità del suo lavoro...”. A Corte diCassazione entende tratar-se de “norma precettiva di immediata aplicazione”.129 CANARIS, C. W. Idem, p. 237.130 CANARIS, C. W. Idem, p. 237-238.
39pela jurisprudência, sendo possível inferir-se a semelhança entre a doutrina
alemã e a italiana.131
Na Alemanha, os direitos fundamentais afiguram-se o marco limite
para jurisprudência na interpretação e aplicação das regras de direito privado,
tendo o Tribunal Constitucional utilizado na solução do caso Lüth a criticável
expressão “eficácia por irradiação”, quando melhor seria argumentar que a
aplicação do parágrafo 828 pelo tribunal cível configurou “intervenção” no direito
fundamental de liberdade de opinião, constituindo a decisão do Tribunal
Constitucional proibição de intervenção e direitos de defesa contra o Estado,
tratando-se, assim, de “eficácia normal”.132
Igualmente, na hipótese dos fiadores, mencionada anteriormente,
não procede o argumento da “eficácia por irradiação”, considerando que o
parágrafo 138 do BGB prevê a nulidade de contratos que violam os bons
costumes e tendo em vista a violação de um direito fundamental na perspectiva
de mandamentos de tutela. Além disso, pode-se resolver a questão sem recorrer
à Constituição, contudo, caso a decisão judicial não alcance o mínimo
determinado pela Constituição, está-se diante de uma verdadeira infringência a
um direito fundamental.133
O mínimo determinado pela Constituição é acentuadamente
“bastante baixo”. Conforme o Tribunal Constitucional Federal o legislador bem
como a jurisprudência têm uma larga margem de conformação sob o enfoque da
função dos direitos fundamentais como mandamentos de tutela, considerando
tratar-se de uma questão de omissão.134
131 CANARIS, C. W. Idem, p. 239-240.132 CANARIS, C. W. Idem, p. 240-241.133 CANARIS, C. W. Idem, p. 241-242.134 CANARIS, C. W. Idem, p. 242.
40CAPÍTULO 2: EMPRESA E CONSTITUIÇÃO
1 DESENVOLVIMENTO DO DIREITO EMPRESARIAL E O MERCADO
1.1 Evolução histórica do direito comercial
Considerando a história do direito, o direito privado biparte-se em
dois sistemas que regulamentam ora certa matéria com exclusividade, ora
disciplinam a mesma matéria, confrontando-se o sistema “tradicional” e o sistema
da “equidade”, inicialmente restrito passando em seguida a ser geral e comum.
Com efeito, a todo tempo é possível identificar normas de comércio, como no
direito romano por exemplo, mas a contraposição entre direito civil romano-
canônico e direito comercial (resultado da evolução dos costumes no ambiente
corporativo) teve início na Idade Média nas comunas italianas.135
Engendrado pelos comerciantes autonomamente, combinado com a
pormenorizada regulamentação corporativa, destaca-se o caráter subjetivo do
direito comercial, que somados ao desenvolvimento dos costumes, formam o
“corpus juris” material e internacionalmente análogo a partir do direito italiano,
sendo competente a jurisdição consular quando apenas uma das partes fosse
comerciante, considerando o critério subjetivo.136
O primeiro período do direito comercial vai do início do século XII até
a segunda metade do século XVI. O direito mercantil constitui-se, neste período,
de normas sobre o mercado e o câmbio que a despeito do critério subjetivo
adotado possuem valor próprio. Surgiram, neste interstício, regras sobre a
conclusão de contratos, representação, auxiliares do comerciante, pagamentos,
destacando-se a letra de câmbio, venda, comissão, livros comerciais, falência etc.
O segundo período teve início no final do século XVI, no qual a
autonomia das corporações não mais constitui fonte do direito comercial, que
passa a ser direito comum. O desenvolvimento consuetudinário foi substituído por
regramentos oriundos da autoridade governante incomodada com as diversas
135 ASCARELLI, Tulio. O desenvolvimento histórico do direito comercial e o significado daunificação do direito privado, p. 237-238.136 ASCARELLI, Tulio. Idem, p. 238.
41ordens profissionais, buscando a formação de um mercado nacional,
deslocando-se, em seguida, o centro de gravidade do direito comercial da Itália
para Países Baixos, França e Inglaterra. 137
A justiça própria e o critério identificador do comerciante constituem
elementos especializados para aplicação do direito comercial, parte do “direito
geral”, regulamentado na França nas Ordenações de Luís XIV, mais “intensa” e
sistemática em comparação ao direito civil. Neste período ocorreu a evolução da
letra de câmbio como instrumento do crédito e o desenvolvimento das
sociedades anônimas, que conjugam a um só tempo o direito privado e o direito
público.138
O terceiro período do direito comercial é marcado pelo Código de
Napoleão que prevê um sistema objetivo, independente dos sujeitos, expandindo
a sua aplicação alcançando atos de comércio não habituais e o negócio
unilateralmente comercial e, por conseguinte, o ato do consumidor. O sistema
objetivo foi intensificado no Código italiano de 1882, inclinando-se, com o fim do
século XIX, a reger o ato econômico fora do âmbito da agricultura, entendida
apenas como usufruto e administração de bens.139
No final do século XVIII, a crise do sistema em vigor pôs termo a um
regramento corporativo e de privilégios. Na França, com as leis de 1776 e 1791,
por intermédio do princípio da livre iniciativa, que associado ao princípio da livre
concorrência, assegura o bem estar coletivo e os direitos dos consumidores. A
concorrência compreendida, por sua vez, como “estímulo e juízo suscetível de
trazer, através do progresso técnico, diminuição de custos e aumento dos
salários com um progresso geral”.140
A livre concorrência constitui traço característico de período
posterior do direito comercial, resultado da liberdade de iniciativa e acesso ao
mercado que teve momento ímpar na segunda metade do século XIX, com a
liberdade de constituição de sociedades anônimas, sendo reconhecida na
137 ASCARELLI, T. Idem, p. 239.138 ASCARELLI, T. Idem, p. 240.139 ASCARELLI, T. Idem, p. 241-242.140 ASCARELLI, T. Idem, p. 243-244.
42Alemanha em 1869, com o controle de ganhos não mais através de privilégios
que não mais subsistem, mas sim pela propriedade e pelo contrato.141
O objeto da criação intelectual independe de privilégios outorgados
pela Administração Pública porquanto com base no direito de propriedade, há
exclusividade que serve de ânimo para realizações técnicas e culturais bem como
atende ao interesse público na possibilidade desfrute geral, de maneira que a
exclusividade do direito do autor e do inventor estão associadas ao regramento
da concorrência.142
2.1 Princípios gerais da ordem econômica
O art. 170 da Constituição brasileira de 1988 está inserido no Título
VII denominado “Da Ordem Econômica e Financeira”, no Capítulo “Princípios
Gerais da Atividade Econômica” dispondo que:
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e nalivre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conformeos ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:I - soberania nacional;II - propriedade privada;III - função social da propriedade;IV - livre concorrência;V - defesa do consumidor;VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamentodiferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e deseus processos de elaboração e prestação; (Redação dada pelaEmenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)VII - redução das desigualdades regionais e sociais;VIII - busca do pleno emprego;IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porteconstituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede eadministração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 6,de 1995).
No “caput” do art. 170 da Constituição estão contemplados os
princípios concernentes à ordem econômica e financeira, todavia, um sem
número de princípios têm implicação no campo econômico, o princípio do Estado
de Direito (segurança e previsibilidade) e o princípio do Estado federal (“a
unidade econômica de todo o território nacional”). Além disso, existem princípios
141 ASCARELLI, T. Idem, p. 244.142 ASCARELLI, T. Idem, p. 245-246.
43estritamente voltados para a economia como parte dos previstos no artigos 1.º e
3.º da Constituição.143
Reproduza-se o art. 1º da Constituição:
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dosEstados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em EstadoDemocrático de Direito e tem como fundamentos:I - a soberania;II - a cidadania;III - a dignidade da pessoa humana;IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V - o pluralismo político.Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio derepresentantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Dispõe o art. 3º da Constituição:
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;II - garantir o desenvolvimento nacional;III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdadessociais e regionais;IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Parte dos princípios previstos no art. 170 da Constituição não
possuem caráter exclusivamente econômico e a primeira parte deste artigo traz
“a disposição nuclear da ordem econômica brasileira” que contempla, apesar do
enfoque capitalista, os valores sociais do trabalho no sentido de informar a
regulação do Estado na economia.144
Consoante Celso Ribeiro Bastos, do “caput” do art. 170 da
Constituição dimanam quatro princípios.145 Para Washington Peluso Albino a
valorização do trabalho humano e a livre iniciativa constituem fundamentos e a
existência digna conforme os ditames da justiça social objetivos.146 A Constituição
apresenta nos incisos do art. 170 nove princípios, malgrado a redução das
143 TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico, p. 131-132.144 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional, p. 766.145 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil, p.12.146 SOUZA, Washington Peluso Albino de Souza. A experiência brasileira de constituiçãoeconômica, p. 29.
44desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego se assemelhem
mais a objetivos.147
Não existe consenso com relação ao sentido e alcance das
expressões “existência digna” e “justiça social”, sendo comum a referência a
possível natureza de norma programática.148 Para José Afonso da Silva podem
ser consideradas incompatíveis com o sistema capitalista face a não repartição
das riquezas.149
A justiça social está prevista nos artigos 3º inc. I, 170 e 193 da
Constituição e está relacionada à idéia de solidariedade, da predominância do
coletivo sobre o individual.150 Para Sampaio Dória, a expressão justiça social se
afigura redundante porquanto toda a justiça é social mas para José Afonso da
Silva e Oscar Dias Corrêa a expressão significa distribuir riquezas.151
A existência digna está prevista nos artigos 1.º inc. III e 170, da
Constituição. Para Pérez Luño não corresponde meramente a um não fazer e sim
a um fazer em prol da pessoa.152 No campo econômico significa assegurar a
subsistência e o direito a velhice e, embora não possua caráter absoluto, constitui
valor-fonte da ordem jurídica e social.153 O desenvolvimento nacional está
relacionado a melhoria da qualidade de vida e não pode ser confundido com o
crescimento.154
1.3 Livre iniciativa
O Direito Comercial, atualmente denominado “Direito Empresarial”, e
o Direito do Consumidor representam duas faces da mesma moeda, ou mesmo
disciplina jurídica própria, qual seja, o Direito do Mercado.155
147 TAVARES, A. R. Op. cit., 134-135.148 TAVARES, A. R. Idem, p. 135-136.149 SILVA, J. A. da. Op. cit., p. 762.150 TAVARES, A. R. Op. cit., 137-138.151 Direito constitucional, p. 206.152 PÉREZ LUÑO, A. H. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución, p. 318.153 TAVARES, A. R. Op. cit., 139.154 A diferenciação pode ser resumida em termos qualitativos, desenvolvimento, ouquantitativos, crescimento. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988, p.197.155 Informação verbal do Prof. Dr. Alcides Tomasetti Junior, na Banca de Qualificação destapesquisa, realizada em 27 de outubro de 2006, nas Faculdades Integradas Curitiba.
45No tocante a livre iniciativa, deve-se solucionar os seguintes
questionamentos: a) O que significa livre iniciativa? A livre iniciativa diz respeito a
qualquer iniciativa ou apenas se refere à livre iniciativa econômica (acesso livre,
interação e saída do mercado)?156 O empresário é agente da livre iniciativa e
desde o ano de 1940 discute-se na Itália a natureza jurídica da livre iniciativa
como liberdade ou direito subjetivo, tratando-se de uma questão clássica.157
Os artigos 1º inc. IV e o 170 da Constituição contemplam o princípio
da livre iniciativa, fundamento da República e da ordem econômica, que não se
restringe à “liberdade econômica” ou de liberdade de “iniciativa econômica”, cujo
titular é o empresário (pura sustentação capitalista) constituindo corolário da
liberdade entendida como sensibilidade e acessibilidade, seja como limitação ao
poder estatal ou mesmo reclamos por condições mais favoráveis de vida.158
O princípio de liberdade de iniciativa, contemplado no édito de
Turgot de 1776, posteriormente no decreto d'Allarde de 1791, e reafirmado na Lei
Le Chapelier 1791 submeteu qualquer pessoa na realização de qualquer negócio
ou exercício de qualquer profissão, arte ou ofício, ao pagamento de tributos e ao
poder de polícia, donde, conclui-se o caráter relativo do princípio, denotando, no
início, garantia de legalidade.159
Diferentes significados exsurgem do princípio a liberdade de
iniciativa em seu duplo enfoque. Como liberdade de comércio e indústria,
liberdade pública consistente em “criar e explorar uma atividade econômica a
título privado” bem como submissão ao arbítrio do Estado e liberdade de
concorrência, “liberdade privada”, no sentido de captar clientes, proteção da
concorrência ou “liberdade pública” quanto a inércia Estatal em condições de
igualdade.160
A afirmação de que liberdade de iniciativa constitui direito
fundamental somente é possível na medida em que denota um direito
constitucionalmente assegurado. A constituição não lhe imprime, contudo, esta
natureza e o direito de liberdade afigura-se absoluto nos termos do ordenamento
156 Idem.157 Idem.158 GRAU, E. R. Op. cit., p. 181-183.159 GRAU, E. R. Idem, p. 183-184.160 GRAU, E. R. Idem, p. 184-185.
46jurídico positivo.161 Para Themístocles Brandão Cavalcanti a justiça social
representa um limite à livre iniciativa.162
A livre iniciativa é liberdade cujos titulares são a empresário e o
trabalhador, conforme o artigos 1º inciso IV e 170 “caput” da Constituição, de
maneira que a atividade econômica em sentido amplo está calcada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa que no sentido de liberdade
de iniciativa econômica, não está relacionada a propriedade.163
1.4 Direito concorrencial
A livre concorrência é um princípio constitucional impositivo e
somente a primeira vista afigura-se incompatível com o poder econômico
“institucionalizado” no art. 173 parágrafo 4º. Constitui hodiernamente um
“processo comportamental competitivo”, sendo modo de proteção do
consumidor.164
É escasso o tratamento sistemático das condutas
anticoncorrenciais, malgrado o advento da Lei n.º 8.884/94. O sistema de
proteção concorrencial é formado pelo controle das estruturas e pelo controle dos
comportamentos. Não é viável avaliar qual deles mais interessa, contudo,
despontam duas inclinações enfatizando o controle dos comportamentos.165
A primeira se infere da existência de novas estruturas empresarias
que mantêm, sob o influxo do processo de terceirização, uma estrutura de
controle exterior contratual no lugar de participação no capital social o que, por
sua vez, afasta a incidência do art. 54. Consequentemente, somente se afigura
possível o controle dos comportamentos.
Dispõe o art. 54 da Lei n. 8.884/94:
Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou dequalquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominaçãode mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos àapreciação do Cade.§ 1º O Cade poderá autorizar os atos a que se refere o caput, desde queatendam as seguintes condições:
161 GRAU, E. R. Idem, p. 185-186.162 A Constituição Federal comentada, p. 279.163 GRAU, E. R. Op. cit., p. 186-187.164 GRAU, E. R. Idem, p. 188-190.165 SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as condutas, p. 17-18.
47I - tenham por objetivo, cumulada ou alternativamente:a) aumentar a produtividade;b) melhorar a qualidade de bens ou serviço; ouc) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico;II - os benefícios decorrentes sejam distribuídos eqüitativamente entre osseus participantes, de um lado, e os consumidores ou usuários finais, deoutro;III - não impliquem eliminação da concorrência de parte substancial demercado relevante de bens e serviços;IV - sejam observados os limites estritamente necessários para atingir osobjetivos visados...
A segunda parte do relacionamento existente entre o controle das
estruturas e o controle dos comportamentos verificável na questão dos cartéis.166
Capitaneada por Aaron Director, a “Escola de Chicago” (que
relacionou a price theory com o direito concorrencial) concedeu especial
destaque à eficiência produtiva, isto é, a produção a baixo custo com vistas ao
alcance de posições dominantes. Encabeçada por C. Keysen e D. Turner a
“Escola de Harvard” baseou-se na análise da estrutura dos mercados isolados,
no tocante à aplicabilidade do direito concorrencial.167
O confronto entre as duas escolas não mais ressoa porque o centro
de gravidade foi deslocado para o “comportamento de empresas individuais, de
setores ou subsetores industriais isolados”, tendo em vista o avanço dos métodos
“econométricos” e “analíticos”, o que, juridicamente, transmuda o controle das
estruturas para o controle dos comportamentos”.168
O enfoque “pós-Chicago” sobre o sistema antitruste é composto
pela teoria dos mercados contestáveis, teoria dos jogos e teoria dos custos de
transação.
Conforme a teoria dos mercados contestáveis, o mercado se afigura
“contestável” porque qualquer empresa pode entrar e contestar a hegemonia de
outra, cabendo as autoridades o dever de supressão das barreiras de entrada e
saída.
A teoria dos jogos dá azo ao exame de dois elementos
fundamentais com relação as condutas: o resultado e a motivação.169
166 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 19-20.167 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 21-22.168 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 22-23.169 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 23-25.
48No tocante ao resultado, revelou e sistematizou os requisitos para a
formação do comportamento “paralelo oligopolistas” (colusivo) e com relação a
motivação, o enfoque matemático-econômico preponderou sobre o ético-
valorativo permitindo dois desenvolvimentos: (1) o primeiro concretizado na
afirmação de que qualquer comportamento humano é realizado por razões de
cunho individual e (2) o segundo, incompatível com a razão matemática,
consistente na motivação coletiva das ações humanas. Deveras, o conhecimento
amealhado individualmente propulsiona uma estratégia coletiva.170
Segundo a teoria dos custos de transação, os “custos de transação”
são os indispensáveis para a realização de uma negócio no mercado. Assim,
“consistem basicamente na incerteza que caracteriza as relações de mercado [...]
e no fato de que as transações são realizadas freqüentemente com pequena
possibilidade de escolha, sendo limitado o número de compradores”.171
No entanto, perturbadora é a convergência entre as incertezas das
relações (preços) e a racionalidade limitada bem como a concorrência entre a
pouca escolha e a conduta oportunística. Com efeito, a racionalidade limitada se
revela na incapacidade do homem frente aos problemas transacionais, o que
intensifica as incertezas das relações, consistindo o oportunismo na busca de
benefícios em detrimento dos demais agentes econômicos.172
A tentativa de supressão das incertezas condiciona o empreendedor
a organizar as atividades internamente na empresa (concentração vertical), o que
inclusive as torna imunes à regulamentação estatal dos preços (máscara). A
teoria dos custos de transação é mais complacente com as estruturas verticais
porque diminuem os custos transacionais (maior eficiência), mas favorece a
instalação de cartéis (defecção - lucros em curto prazo), competindo às
autoridades impedir a colusão.173
A teoria dos comportamentos estratégicos é a que possui maior
incidência no campo das condutas e pretende responder qual é o papel do Direito
diante das negociações entre particulares. Despontam duas posições a respeito:
(1) a primeira defende que a questão será solucionada pelas próprias partes
170 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 26-27.171 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 28-29.172 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 29-30.173 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 31-32.
49envolvidas, com a alocação dos custos das transações “para a parte nelas mais
interessada” (Coase) e (2) a segunda sustenta que uma parte sempre buscará
proveito em detrimento da outra cabendo ao Direito evitar o prejuízo para ambas
(Hobbes).174
A teoria dos comportamentos estratégicos possui pouca aplicação
no direito concorrencial, concentrando-se mais precisamente na questão dos
preços predatórios. Ela considera que o agente econômico não age impulsionado
por uma racionalidade individual, mas pela busca do lucro nas transações
inclusive com a superação da outra parte, cabendo ao Direito a estimular o
comportamento cooperativo.175
Para os neoclássicos a cobrança de preços predatórios não se
afigura viável porque a tentativa de recuperar o investimento seria impedida pela
entrada de novos concorrentes. Para a nova teoria econômica, entretanto, a
prática de preços predatórios por si mesma inibe a entrada de novos
concorrentes no mercado (confronto direto com a crazy firm, ex. American
Tabacco) ou favorece a colusão.176
A mais progressista teoria “pós-Chicago” que analisa o direito
antitruste, a teoria da racionalidade sustenta que a incerteza e informações
imperfeitas constituem barreiras ao raciocínio, não existindo espaço para
maximização da utilidade. Para a teoria neoclássica, por seu turno, o Direito é
estudado a partir de concepções econômicas, devendo materializar objetivos
econômicos.177
Na economia do bem-estar de Jeremy Bentham há identidade entre
o bem-estar social e a utilidade total da coletividade, derivada da soma das
utilidades individuais. Ela passou, em 1930, todavia, a ser alvo de críticas tendo
em vista a impossibilidade de cotejo entre utilidades individuais e a partir da
década de 40 a comparação de Pareto (utilidade global) perdeu destaque.
Posteriormente, em 1951, surge a chamada “teoria da escolha
social” (K. Arrow), segunda a qual a preferência social é aferida pelo grupo de
preferências individuais. Restou evidenciado, contudo, o “teorema da
174 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 33,175 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 34,176 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 34-35.177 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 35-37.
50impossibilidade”, segundo o qual não há como derivar uma escolha social de uma
escolha individual (função de bem-estar social).178
Qualquer sociedade que se adapte ao ótimo de Pareto pretende a
maximização da riqueza total sem preocupação com a distribuição desta riqueza.
As pessoas componentes dessa sociedade serão consideradas racionais
quando: (1) existir proporcionalidade entre meio e fim; (2) visarem o interesse
próprio e; (3) considerarem as variáveis microeconômicas.
No entanto, não se pode olvidar que o primeiro critério é
procedimental, sendo impossível inferir dele qualquer direção para a conduta
social. O segundo critério pode ser influenciado pela moral em detrimento do
interesse próprio. O terceiro é impossível na prática.179
Segundo a teoria de Sem (indiano) a consideração da ética é
imprescindível para o exame da conduta racional, tendo em vista que esta no
sentido paretiano pode não maximizar o benefício global e o acréscimo de um
elemento de cooperação “seria mais benéfico para o indivíduo e para a
sociedade”.180
O caráter valorativo (revitalizador do sistema) acarreta mudanças
sociais e é inseparável do conhecimento jurídico. Com efeito, “o Direito não pode
ser resumido nem à positivação de regras e objetivos econômicos [teoria
neoclássica] e tampouco à política pura e simples ou ao estudo das instituições
políticas [e] a mudança político-institucional só é possível através de uma
profunda discussão política dos valores protegidos pelas normas”.181
O conceito institucional de concorrência é procedimental (due
process clause) e “incorpora valores historicamente conhecidos na ordem
econômica brasileira”, de maneira que enseja lealdade entre os concorrentes e à
própria existência da concorrência (não substituição pelo poder), bem como
relações econômicas mais justas equilibradas.
A garantia de efetiva concorrência (não do mercado) constitui o valor
central do direito concorrencial e tal teoria assim delineada (um produto tem
utilidade porque é adquirido) se contrapõe à neoclássica (um produto é adquirido
178 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 38-39.179 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 39-40.180 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 40-41.181 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 42-47.
51porque tem utilidade), tendo em vista que a concorrência incrementa a
possibilidade de escolha e as informações com relação ao produto.182
Os concorrentes e os consumidores são indiretamente tutelados
pelo direito concorrencial, ao contrário do enfoque privatista anterior que “via na
proteção ao concorrente a forma de tutelar a concorrência”. A Lei n. 4.132/62
positivou “a idéia de proteção da existência da concorrência” realizada mediante
a paralisação de condutas tendentes à dominação do mercado e “a substituição
do requisito do prejuízo efetivo pelo efeito potencial”, bem como alterou a tutela
ressarcitória privatista pela tutela preventiva.183
É imperioso que a concorrência se desenvolva com lealdade, com a
observância de regras básicas de comportamento. É preciso para a garantia da
existência da concorrência (e não do poder econômico não dimanado da
eficiência econômica) o equilíbrio das relações econômicas. Podem ser
identificadas duas formas de atuação estratégica na busca de posição
dominante: (1) cláusulas de exclusividade e (2) os preços predatórios. Deve ser
encontrado o ponto de equilíbrio entre a lealdade e a liberdade de
concorrência.184
Para o alcance do indispensável equilíbrio, urge considerar os
múltiplos interesses relacionados ao direito concorrencial, como a liberdade de
escolha do consumidor (livre de limites ou falsidades). Ademais, o controle dos
comportamentos das empresas com grande poder econômico não pode ser
relegado ao mercado, sendo preciso um dirigismo (intervenção).185
A distinção entre “estrutura” e “conduta” constitui objeto da nova
economia institucional, de maneira que “o controle das estruturas, na medida em
que garante a concorrência [...] expande o acesso à informação e reduz a
limitação da racionalidade dos agentes [e] o controle das condutas, na medida
em que sanciona os comportamentos estratégicos reduz o oportunismo”.186
A teoria jurídica assevera a “diferenciação entre acordos de
cooperação, sujeitos a controle prévio (estrutural), e condutas anticoncorrenciais”,
logo, nas transações do tipo “barganha”, acredita-se que não podem ser
182 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 48-50.183 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 51-54.184 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 55-56.185 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 57-58.186 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 58.
52adequadamente resolvidas pelos particulares, contrariando o “teorema de
Coase”.187
O direito antitruste deixou de ser passivo (década de 70) e passou a
ser mais ativo, intervencionista (década de 80). São tutelados por ele os
consumidores, os participantes do mercado e o interesse institucional da ordem
concorrencial.188
É preciso compreender como a ordem concorrencial (instituição
jurídica) pode ser tutelada pelo direito antitruste. Na Alemanha houve ampliação
das garantias institucionais, anteriormente restritas ao direito constitucional, para
o direito ambiental e concorrencial. As normas de proteção “Schutzgesetze”
exigem somente a antijuridicidade (sem nexo causal e culpa) para gerar a
obrigação de indenizar porque o não cumprimento das normas de proteção afeta
a todos e cada um individualmente e daí advém a denominação “garantias
institucionais”, porquanto tutelam o interesse coletivo e particular.189
Todos os direitos constantes da lei concorrencial (atos tendentes à
dominação do mercado, concorrência desleal e abuso da posição dominante) são
interesses institucionais e o interesse institucional consistente na manutenção da
concorrência é ameaçado pelos cartéis. O sistema sancionatório deve dispor de
meios aptos para a preservação do sistema concorrencial como a inibição de
novas violações, mediante a cessação da prática (artigos. 46 e 52 da Lei n.
8.884/94).190
O direito da concorrência está baseado na proteção do consumidor
e para os ordoliberais, bem como para parte dos defensores das teorias “pós-
Chicago”, o bem-estar do consumidor se identifica com a liberdade de escolha.
Para os neoclássicos, o bem-estar do consumidor possui o sentido de eficiência
econômica. Algumas vezes, contudo, somente por intermédio da garantia da
instituição concorrência há proteção do consumidor, como ocorre, por exemplo,
com a proibição dos atos tendentes à dominação do mercado.191
O consumidor não se afigura “destinatário direto das normas
concorrenciais, mas é sempre sua justificação última [e] o interesse institucional
187 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 59.188 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 61.189 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 62-63.190 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 75-79.191 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 81-82.
53da concorrência é sempre protegido nas vias administrativas” bem como por
intermédio da ação civil pública. De outro lado, “o interesse direto e individual do
consumidor tem outra forma de proteção.192
As relações existentes entre produtor e consumidor são afetadas
pelo direito da concorrência, mas o direito do consumidor pode interferir nas
relações concorrenciais por intermédio da publicidade. Com efeito, “a publicidade
é o meio mais fácil e economicamente mais ‘barato’ de transmissão de
informações e de comparação de produtos para os consumidores [mas] a
concorrência pode ser alterada e até falseada pela publicidade enganosa”.193
A publicidade não é puramente informativa e sim sugestiva. A
liberdade publicitária intensifica a competição e exige uma regulamentação no
sentido de fazer conter na publicidade, equilibrada carga de informação e de
sugestão. Com relação a publicidade de comparação de preços da mesma
empresa exigiu-se para evitar a falsa idéia de diminuição de preços, vendas
substanciais mas, posteriormente, a jurisprudência admitiu simplesmente ofertas
substanciais.194
O art. 37 do CDC veda a publicidade enganosa e abusiva que,
implicitamente, alcança a mencionada mudança de preços.195 Já o art. 36 do
CDC impõe que qualquer publicidade sugestiva assim se identifique, o que não
ocorre na prática com a chama “propaganda subliminar”.196
Na hipótese do art. 36, deve ser considerado o consumidor no caso
concreto. Na publicidade maciça existe sugestão, mas a questão está mais afeta
192 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 84.193 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 85.194 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 86-87.195 Prescreve o art. 37 do CDC: “É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° Éenganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ouparcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro oconsumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem,preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. § 2° É abusiva, dentre outras apublicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou asuperstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeitavalores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicialou perigosa à sua saúde ou segurança. § 3° Para os efeitos deste código, a publicidade éenganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.§ 4° (Vetado).”.196 Dispõe o art. 36 do CDC: “A publicidade deve ser veiculada de tal forma que oconsumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal. Parágrafo único. O fornecedor, napublicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimosinteressados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.”.
54a quantidade de informação do que a qualidade, o que faz incidir o art. 21 inc. VIII
da lei concorrencial.197
Com relação à coerção do consumidor, consistente no manejo da
oferta, o inc. I do art. 39 do CDC veda a “tying arrangement” (venda casada) e o
inc. II impede a formação de estoques. No entanto, tais previsões são
impertinentes porque na hipótese do inc. I é preciso existir efetiva coerção do
consumidor (poder de mercado) e no inc. II (inexistência de justificativa) que a
negativa potencialmente seja apta a aumentar os preços adequadamente
previstos no art. 21 incisos XII e XXIII da lei concorrencial.198
Um dispositivo interessante que poderia ser mais bem explorado é o
art. 29 do CDC.199 Confira-se:
Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aosconsumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas àspráticas nele previstas.
A partir da análise da norma mencionada é possível inferir que se
equiparam aos consumidores os próprios concorrentes, isto é, um fornecedor
empresário em face de outro fornecedor empresário, porque o único requisito
previsto é a exposição “às práticas nele previstas”. O assunto reclama uma
análise pormenorizada sobre a incidência ou não do CDC em situações de
igualdade bem como sobre a possibilidade da pessoa jurídica ser consumidora.
O concorrente também é tutelado de maneira reflexa pela proteção
da ordem concorrencial. As pequenas e médias empresas não podem receber
197 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 87-90. Reproduza-se o inc. VIII do art. 21 da Lei n.8.884/94: “As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese previstano art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica; [...] VIII - combinarpreviamente preços ou ajustar vantagens na concorrência pública ou administrativa;”.198 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 90-92. Consoante o art. 39 do CDC: “É vedado aofornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (Redação dada pela Lei nº8.884, de 11.6.1994) I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento deoutro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos; II - recusaratendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades deestoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes...”. Dispõe o art. 21 da Lei n.8.884/94: “As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese previstano art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica; [...] XII - discriminaradquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, oude condições operacionais de venda ou prestação de serviços; [...] XXIII - subordinar a venda deum bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de umserviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem;”.199 Informação verbal do Prof. Dr. Alcides Tomasetti Junior, na Banca de Qualificação destapesquisa, realizada em 27 de outubro de 2006, nas Faculdades Integradas Curitiba.
55tratamento privilegiado porque não se afigura admissível o acréscimo de
vantagens àquelas já naturalmente incorporadas. Assim, estão subordinadas às
penalidades considerando eventual concorrência desleal praticada. O direito
concorrencial não é sede para proteção de direitos exclusivamente individuais
das empresas, que encontrem justificativa, em última análise, na proteção
institucional da ordem econômica.200
No tocante a estrutura do ilícito, deve ser enfrentada a questão
associada aos efeitos, bem como ao elemento intencional, porque a opção
exclusiva dos efeitos acarreta uma visão voltada para a maximização da
eficiência (valorar os atos pelos resultados) e conceder importância as intenções
valoriza as condutas. Infere-se da Constituição a ilicitude dos atos visando a
dominação de mercado, a restrição da concorrência e o aumento arbitrário do
lucro (efeitos) e a Lei n.º 8.884/94 conjuga os efeitos potenciais à intenção e, daí,
a sua constitucionalidade.201
Os artigos 20 (cláusulas gerais) e 21 (exemplos) da Lei n.º 8.884/94
cuidam do controle dos comportamentos. O aumento arbitrário do lucro constitui
espécie do gênero posição dominante e somente pode ser considerado ilícito
numa situação de monopólio ou oligopólio.202
Reproduza-se o art. 20 da Lei n. 8.884/94:
Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa,os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto oupossam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência oua livre iniciativa;II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;III - aumentar arbitrariamente os lucros;IV - exercer de forma abusiva posição dominante.§ 1º A conquista de mercado resultante de processo natural fundado namaior eficiência de agente econômico em relação a seus competidoresnão caracteriza o ilícito previsto no inciso II.§ 2º Ocorre posição dominante quando uma empresa ou grupo deempresas controla parcela substancial de mercado relevante, comofornecedor, intermediário, adquirente ou financiador de um produto,serviço ou tecnologia a ele relativa.§ 3º A posição dominante a que se refere o parágrafo anterior épresumida quando a empresa ou grupo de empresas controla 20% (vintepor cento) de mercado relevante, podendo este percentual ser alteradopelo Cade para setores específicos da economia.(Redação dada pela Leinº 9.069, de 29.6.95).
200 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 92-83.201 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 94-98.202 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 99-104.
56
Dispõe o art. 21 da Lei n. 8.884/94:
As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configuremhipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam infração daordem econômica;I - fixar ou praticar, em acordo com concorrente, sob qualquer forma,preços e condições de venda de bens ou de prestação de serviços;II - obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ouconcertada entre concorrentes;III - dividir os mercados de serviços ou produtos, acabados ou semi-acabados, ou as fontes de abastecimento de matérias-primas ouprodutos intermediários;IV - limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;V - criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou aodesenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirenteou financiador de bens ou serviços;VI - impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais dedistribuição;VII - exigir ou conceder exclusividade para divulgação de publicidade nosmeios de comunicação de massa;VIII - combinar previamente preços ou ajustar vantagens na concorrênciapública ou administrativa;IX - utilizar meios enganosos para provocar a oscilação de preços deterceiros;X - regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos paralimitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, aprodução de bens ou prestação de serviços, ou para dificultarinvestimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à suadistribuição;XI - impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores, varejistas erepresentantes, preços de revenda, descontos, condições de pagamento,quantidades mínimas ou máximas, margem de lucro ou quaisquer outrascondições de comercialização relativos a negócios destes com terceiros;XII - discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços pormeio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais devenda ou prestação de serviços;XIII - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, dentro dascondições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais;XIV - dificultar ou romper a continuidade ou desenvolvimento de relaçõescomerciais de prazo indeterminado em razão de recusa da outra parteem submeter-se a cláusulas e condições comerciais injustificáveis ouanticoncorrenciais;XV - destruir, inutilizar ou açambarcar matérias-primas, produtosintermediários ou acabados, assim como destruir, inutilizar ou dificultar aoperação de equipamentos destinados a produzi-los, distribuí-los outransportá-los;XVI - açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedadeindustrial ou intelectual ou de tecnologia;XVII - abandonar, fazer abandonar ou destruir lavouras ou plantações,sem justa causa comprovada;XVIII - vender injustificadamente mercadoria abaixo do preço de custo;XIX - importar quaisquer bens abaixo do custo no país exportador, quenão seja signatário dos códigos Antidumping e de subsídios do Gatt;XX - interromper ou reduzir em grande escala a produção, sem justacausa comprovada;XXI - cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa
57causa comprovada;XXII - reter bens de produção ou de consumo, exceto para garantir acobertura dos custos de produção;XXIII - subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou àutilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço àutilização de outro ou à aquisição de um bem;XXIV - impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preçode bem ou serviço.Parágrafo único. Na caracterização da imposição de preços excessivosou do aumento injustificado de preços, além de outras circunstânciaseconômicas e mercadológicas relevantes, considerar-se-á:I - o preço do produto ou serviço, ou sua elevação, não justificados pelocomportamento do custo dos respectivos insumos, ou pela introdução demelhorias de qualidade;II - o preço de produto anteriormente produzido, quando se tratar desucedâneo resultante de alterações não substanciais;III - o preço de produtos e serviços similares, ou sua evolução, emmercados competitivos comparáveis;IV - a existência de ajuste ou acordo, sob qualquer forma, que resulte emmajoração do preço de bem ou serviço ou dos respectivos custos.
A finalidade da Lei n. 8.884 de 1994 é prevenir e reprimir os ilícitos
contrários à ordem econômica, permitindo a manutenção do mercado,
indispensável ao modo capitalista de produção. Ela não se revela uma simples lei
antitruste porquanto é orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de
iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos
consumidores e repressão ao abuso do poder econômico (art. 1º da Lei n.
8.884/94).203
A coletividade é titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei
(parágrafo único do art. 1º da Lei n. 8.884/94) e tal como a afirmação de que a
sociedade é titular da liberdade de comunicação e imunidade de censura, o
mesmo poder-se-ia dizer sobre a livre concorrência, não fosse: (1) a “ideologia
constitucionalmente adotada”; (2) os motivos de “individualismo metodológico” e;
(3) a estreita relação entre este princípio e a ideologia liberal.204
2 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO
O direito privado sofrerá influência por conta do programa da União
Européia tendente a harmonizar, bem como até certo ponto, unificar
ordenamentos jurídicos dos Estados-parte. A harmonização relaciona-se aos
203 GRAU, E. R. Op. cit.,p. 190-193.204 GRAU, E. R. Idem, p. 194-195.
58“modos de pensar” e à dogmática jurídica para se evitar uma celeuma conceitual
e dissonâncias finalísticas.205
No tocante à influência dos direitos fundamentais no direito privado,
calha a perspectiva do “modo pelo qual essa influência deve ser pensada em
termos jurídicos e não por determinados conteúdos” inspirados por direitos
fundamentais. Na Alemanha e em outros países verifica-se a influência da
Constituição sobre o direito privado. Na Inglaterra, igualmente, com a
“constitutionalization of private law”, segundo Basil Markesinis, ou na Itália com
uma “costituzionalizzazione anche del diritto privato”, consoante Alberto
Trabucchi.206
Nos ordenamentos jurídicos atuais têm-se relacionado direitos
fundamentais e direito privado. A Constituição não é, todavia, sede apropriada
para a regulamentação de relações individuais entre pessoas, donde se verifica o
embate entre a maior hierarquia dos direitos fundamentais e a autonomia do
direito privado. Tal relação possui acentuada importância na Alemanha
considerando o recurso constitucional “Verfassungsbeschwerde”, dirigido ao
Tribunal Constitucional Federal tendo em vista violações dos direitos
fundamentais pelo poder público, inclusive tribunais.207
Para parte da doutrina, o distanciamento existente entre o mundo
jurídico e a realidade culminou com o esfacelamento de conceitos e construções
aparentemente inabaláveis, comprometendo o intento dos juristas dos séculos
anteriores. A partir daí, preconizam a releitura do direito privado sob a influência
da Constituição da República.
Nesse sentido, os princípios contemplados na Constituição
aumentam de relevância, em especial, o princípio da dignidade da pessoa
humana, apto a priorizar os interesses de natureza não-patrimonial. Com apoio
nos “três pilares” (família, propriedade e contrato) na expressão de Jean
Carbonnier, o Código Civil de 1916 deparou-se, logo no início de sua vigência,
com a ascendência do Estado Social devidamente representado pela
205 CANARIS, C. W. Op. cit., p. 224.206 CANARIS, C. W. Idem, p. 225.207 CANARIS, C. W. Idem, p. 225-227.
59Constituição de Weimar.208
A interferência do Estado influenciou consideravelmente o Direito
Civil.209 O sistema fechado ensejou a respectiva fragmentação, bem como o
aparecimento dos denominados microssistemas jurídicos.210
Eroulths Cortiano Junior211 assevera que:
o Código, além de representar um modo de dispor os conceitos dodireito, também é eco de uma opção política: conciliou a noçãoemergente de Estado com as idéias de unificação do direito e monismode fontes, e serviu, nesta centralização da produção jurídica, paragarantir a juridicização de uma determinada ideologia.
Desde a promulgação da Constituição da República de 1988, com
maior força os diferentes segmentos do direito privado estão sendo influenciados
por normas de alta carga valorativa, aptas a induzir uma determinada
interpretação.
A Constituição da República fez expressa referência aos institutos
do Direito Civil, o que demonstra a “repersonalização” ou mesmo a
“transpersonalização” do Direito. Com isso, exsurge a necessidade de priorizar os
direitos de natureza não-patrimonial.212
O vocábulo “despatrimonialização” representa uma perspectiva
normativa cultural, ou seja, demonstra que no ordenamento operou-se uma
opção que lentamente se concretiza, entre o personalismo, superação do
individualismo e o patrimonialismo, superação patrimonialidade.213
No Brasil, contudo, em razão da ausência de expressivos períodos
democráticos e de estabilidade política, houve a lamentável inobservância do
Direito Constitucional e a conseqüente aplicação pura e simples do direito
208 Luiz Edson Fachin utiliza as expressões “projeto parental”, “regime das titularidades” e“trânsito jurídico” respectivamente.209 FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização dodireito privado, p. 29,210 FACHIN, Luiz Edson. Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo,p. 110-111. Consoante Eugênio Facchini Neto “a matéria privada que antes estava concentradanos códigos civis e comerciais, passou a ser tratada em leis especiais, naquele fenômeno que foichamado de a era dos estatutos.”. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização dodireito privado, p. 29-30.211 O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas, p. 68.212 Defensor da repersonalização e despatrimonialização do Direito Civil, Pietro Perlingieriposiciona-se contrário a concepção de Direito bipartida em direito público e direito privado.Introdução ao Direito Civil Constitucional, passim.213 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, p. 33.
60infraconstitucional. Logo, Código Civil era mais aplicado que a Constituição
retratando uma “subversão hermenêutica”.214
O Código Civil de 2002 traz o que se denomina “cláusulas abertas”,
conceitos jurídicos indeterminados, aptos a permitirem a aplicação de princípios,
máximas de conduta e conteúdos originariamente metajurídicos.
O Código Civil deixou de ser o centro de gravidade das relações de
natureza privada. Compete ao intérprete considerar os princípios constitucionais,
mormente o da dignidade da pessoa humana, sem olvidar os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa, a defesa do consumidor, a função social da
propriedade e a paternidade responsável.
Para parte da doutrina, a constitucionalização do direito privado
acarreta a “funcionalização dos institutos jurídicos”:
A função social da empresa ora é deriva da solidariedade social, ora dadenominada funcionalização dos institutos jurídicos do liberalismo (propriedadeprivada, família e contrato). [...] E agora que o Direito Civil, por meio do novoCódigo Civil, efetivamente se abre ao Direito Comercial, indispensável se apontar afuncionalização da empresa, sempre em chave social. A empresa, assim como ocontrato e a propriedade, sempre teve suas respectivas funções econômicas emsuperadas épocas de Estado Liberal. Agora, a tendência constitucional é outra, épela função social dos institutos jurídicos, do que não escapa a empresa comooperadora de um mercado também – socialmente funcionalizado.215
3 EMPRESA: ESTRUTURA E FINALIDADE
A definição de “empresa econômica” revela-se indispensável para o
conceito jurídico, porque o Direito se afigura o retrato da vida em sociedade.216 A
“divisão do trabalho e organização econômica” sempre foi uma realidade e seu
modo se revela no núcleo familiar consubstanciado numa economia de consumo.
O início da empresa pode, ser identificado no escambo, no ofício do artesanato
da Idade Média, na busca da própria subsistência. Quando a produção se dirige
ao mercado, entretanto, desaparece o ofício e tem início a empresa, agregando-
se o elemento risco na busca do lucro.217
214 TEPEDINO, Gustavo. Problemas de direito constitucional, p. 68.215 CASTRO, Carlos Alberto Farracha de; NALIN, Paulo. Economia, mercado e dignidade dosujeito, p. 119-120.216 MARCONDES, Sylvio. Problemas de direito mercantil, p. 1.217 MARCONDES, S. Idem, p. 2.
61Em 1803, J. B. Say destaca, sob influência dos fatores
determinantes da revolução industrial, a figura do “empresário”, que conduz a
produção e detém a distribuição de riquezas perfazando a noção de empresa
moderna que, juridicamente, sob o enfoque dos institutos da propriedade privada
e da liberdade de contratar: (1) distingue os possuidores de fatores de produção;
(2) prevê com antecedência a demanda do mercado; (3) responde pelos riscos
econômicos e de ordem técnica e; (4) busca o lucro como resultado da subtração
do preço de venda pelo de produção.218
“Produzir” significa criar uma utilidade capaz de satisfazer uma
necessidade humana. Considerando que as necessidades dos consumidores
condicionam a produção, poder-se-ia afirmar que o homem representa o único
fator de produção. No entanto, pode-se identificar três fatores objetivos de
produção: (1) o trabalho; (2) a natureza e; (3) o capital. Tais fatores
subjetivamente visualizados revelam as figuras do trabalhor, do proprietário e do
capitalista.219
Ao empresário, por seu turno, cabe combinar os seus bens ou do
proprietário, a força de trabalho do trabalhador ou a própria e o seu capital ou do
capitalista nos serviços produtivos da agricultura, indústria e comércio,
organizando e conduzindo a atividade, decidindo sobre a produção, tendo em
vista a demanda, assumindo os riscos do empreendimento na busca do lucro.220
As empresas privadas classificam-se em “empresa individual”, em
que o empresário possui maior liberdade, simplificada ou não, e “empresa
coletiva ou societária”, com personalidade jurídica própria, formadas a partir de
características pessoais (sociedades de pessoas), ou tendo em vista somente a
união de capitais (sociedades de capital).221
A elaboração do Código Comercial de Napoleão foi contemporânea
ao aprimoramento da concepção econômica de “empresário”. O Código Francês
fixou taxativamente os atos de competência dos tribunais do comércio com a
expressão do art. 632 “La loi répute actes de commerce” e, segundo
doutrinadores franceses, a empresa (quando não considerada locação de
218 MARCONDES, S. Idem, p. 2-3.219 MARCONDES, S. Idem, p. 3-4.220 MARCONDES, S. Idem, p. 4-6.221 MARCONDES, S. Idem, p. 6-7.
62serviços) trata-se da combinação de capital e trabalho para o fim previsto no
Código.222
Os Códigos italianos de 1842 e 1865 basearam-se no Código
francês, contudo, o Código de 1882 utilizou a expressão “la legge reputa atti di
commercio”, ao invés de “sono atti di commercio”, o que denota a natureza
meramente exemplificativa constante do art. 3º.
A partir da análise de grupos de atos de comércio constantes no art.
3º surgiram dois posicionamentos: (1) Para Vivante “a empresa é um organismo
econômico que recolhe e põe em obra, sistematicamente, os fatores necessários
para obter um produto destinado à troca, a risco do empresário” e (2) Para
Arcargeli a empresa também pode ser a vontade reconhecível para a prática
reiterada de certos atos, como as agências de comissão e negócios.223
Optou-se por não enumerar os atos de comércio no Código
Comercial brasileiro de 1850, tendo em vista que a previsão do Código francês
estava relacionada inicialmente à competência dos tribunais do comércio e que
os artigos 17 e 18 do título único do projeto abordariam este assunto, adotando-
se o termo “mercancia”.
O art. 19 do regulamento 737 de 1850 previu os atos de comércio,
prevalecendo, como na Itália, a afirmação de ser rol exemplificativo. A inclusão
das “empresas de fábricas, de comissões, de depósito, de expedição e
consignação e transporte de mercadorias, de espetáculos públicos”,
considerando a ausência de conceituação legal, moveu os doutrinadores para o
conceito de empresa, sendo a definição de Vivante melhor recepcionada e que
pode ser identificada na definição de Carvalho de Mendonça:224
empresa é a organização técnico econômica que se propõe a produzir,mediante a combinação dos diversos elementos, natureza, trabalho ecapital, bens ou serviços destinados à troca (venda), com esperança derealizar lucros , correndo os riscos por conta do empresário, isto é aquele
222 MARCONDES, S. Idem, p. 8-10. A enumeração tinha o fim de diminuir os conflitos decompetência entre os juizes consulares e juízes comuns sem subtrair por completo oscomerciantes da jurisdição ordinária consoante a tradição da ordenança de 1673, entretanto,razões de ordem política e econômicas refletidas na Lei Chapelier de 1791 associadas a queda doantigo regime levaram os redatores do Código a repudiar “um direito considerado de casta”.MARCONDES, S. Idem, p. 8.223 MARCONDES, S. Idem, p. 11-13.224 MARCONDES, S. Idem, p. 13-14.
63que reúne, coordena e dirige êsses elementos sob a suaresponsabilidade.225
Consoante Inglez de Souza, integra a empresa industrial a
relevância do serviço ou indústria que constitui objeto, a reiteração de ações e a
organização que emprega força de trabalho alheia estando em segundo plano a
noção de reunião de pessoas.226 Em seu projeto de Código Comercial227
destacou um título especial às empresas, prevendo diversas espécies de
empresas sem, contudo, fixar-lhes a natureza, tendo como referente o
controvertido art. 230 do Código português de ser ou não, em virtude de sua
redação, empresa sinônimo de empresário.228
Considerando a codificação liberal do século XIX, verifica-se que os
doutrinadores de direito comercial não alcançaram um conceito jurídico-unitário
de empresa, ora atribuindo à empresa características da locação de serviços ou
empreitada, ora adotando o conceito puro dos economistas. O legislador tem
usado a palavra empresa por conveniência.229
A propriedade dos bens e o contrato com os trabalhadores
constituem a base sobre o qual o capitalismo fundou a empresa e a indispensável
solidariedade entre os fatores de produção não importa em “instituições
jurídicas”.230
Defendeu Alberto Asquini, presidente da subcomissão do “Codice di
Commercio”, tendo em vista o desenvolvimento ocorrido na vigência do Código
italiano de 1882, o regresso a “estrutura subjetiva”, em sintonia com a anterior
tradição da Itália, de maneira que toda a matéria mercantil fosse informada pelo
conceito de empresa. No entanto, o Código Italiano de 1942 não conceitua a
225 Tratado de direito comercial brasileiro, v. 1, n. 345, p. 492. No mesmo sentido Bento Faria,Alfredo Russel, Spencer Vampré, Descartes de Magalhães.226 Conforme Inglez de Souza: "Por empresa devemos entender uma repetição de atos, umaorganização de serviços, em que se explore o trabalho alheio, material ou intelectual. Aintromissão se dá, aqui, entre o produtor do trabalho e o consumidor do resultado desse trabalho,com o intuito de lucro".227 Trabalho empreendido por conta do Decreto Legislativo n. 2.379 de 1911.228 Dispõe o art. 230 do Código português: “Haverse-ão por comerciais as empresassingulares ou coletivas que se propuserem...”. MARCONDES, S. Op. cit., p. 15-17.229 MARCONDES, S. Idem, p. 17.230 MARCONDES, S. Idem, p. 18
64empresa e sim o empresário (art. 2028), carecendo da subjetividade que se lhe
intentou imprimir.231
Ferri prefere a expressão “aspectos jurídicos da empresa
econômica” em detrimento da “noção jurídica de empresa”. Parte da doutrina
sustenta a concepção institucional, destacando o caráter associativo dos
trabalhadores (uma “famiglia lavorativa”) que abrange, sem prejuízo do conteúdo
econômico, princípios morais. sendo o regramento do empresário o dos sujeitos,
o da empresa a “doutrina dos grupos de trabalho” e do estabelecimento a dos
bens, de maneira que a empresa é propriamente considerada
independentemente da vida de quem a titulariza.232
Identifica Mossa, tendo em vista a concepção patrimonial, empresa
e estabelecimento. Para Ghidini a empresa constitui uma universalidade de
direito ao passo que o estabelecimento afigura-se uma universalidade de fato.233
Considerando o art. 2.082, que trata do empresário, e o art. 2.555,
que se refere ao estabelecimento, ambos do Código Civil Italiano, parte da
doutrina repudia o perfil subjetivo que identifica empresa com o empresário
adotando o perfil funcional. Com efeito, a empresa “não existe” e sim “se exerce”
constituindo “um fato”, sendo o empresário o sujeito e o estabelecimento o objeto.
Para Ferrara Junior a controvérsia nasce da redação legal, todavia,
afirma ter sido a questão deslocada porque não se trata de buscar o que se deva
compreender no plano abstrato por empresa e estabelecimento e, sim, identificar
o alcance que a lei atribui a estes vocábulos. Destaca ademais, que os perfis da
empresa são três, considerando não existir na norma o sentido de uma
“organização pessoal”.234
Assevera que, excluindo os casos em que de maneira equivocada a
empresa denota o empresário ou o estabelecimento, resta a perspectiva de
atividade econômica organizada. Conclui que o conceito de empresa é irrelevante
de maneira que os efeitos jurídicos do empreendimento são os efeitos do
231 MARCONDES, S. Idem, p. 19-21.232 MARCONDES, S. Idem, p. 25-26.233 MARCONDES, S. Idem, p. 27.234 MARCONDES, S. Idem, p. 28.
65empresário, não tendo importância para o Direito o conceito de empresa, sendo a
palavra “atividade” juridicamente estéril.235
O Código italiano atribuiu à empresa um regramento em
consonância com os fenômenos econômicos e sociais, embora não tenha
conceituado empresa. Na França denota-se a inclinação institucional sob o
enfoque do direito social, excluindo-se o fator “bens” e congregando somente os
elementos pessoais, de maneira que a vontade do capitalista, do trabalhador e do
empresário são inicialmente desvinculadas até o ingresso na instituição, que lhes
imprime o regime previsto.236
Sustenta Savatier que a utilização da palavra “instituição” (Hariou e
Renard) é tranquila porque vazia. Ripert afirma, por seu turno, que o legislador
identifica inadvertidamente empresa, propriedade e sociedade.
Garrigues destaca a dificuldade dos juristas de identificar a natureza
jurídica da empresa e a “classe de seu titular”, simplificando o conceito
econômico a uma “unidade jurídica”, sustentando ser a “organização” o traço
fundamental. Consoante o direito positivo, no entanto, não se trata de patrimônio
ou organização, razão pela qual o conceito não desfruta de autonomia. Na
Argentina, Arecha adotando conceito econômico conclui que a empresa não se
trata de uma categoria especial, ao contrário do processo de trabalho que realiza.
No Brasil, em 1934, Waldemar Ferreira ponderou sobre a empresa
e os atos de comércio. Em 1948, destacou que, intencionalmente ou não, o rol de
atos de comércio contemplou as empresas. Sustenta que o estabelecimento
carece de personalidade jurídica, tratando-se de coisa universal, concluindo que
“enquanto o estabelecimento se pluraliza, desdobrando-se, a empresa contrai-se,
unificando-se e envolvendo-o”.237
Conforme Sylvio Marcondes, há conteúdo econômico no conceito de
“empresa comercial”, como a organização dos fatores de produção realizada pelo
empresário para o exercício da atividade buscando o lucro com a assunção dos
riscos. Refuta, em seguida, os quatro perfis mencionados por Asquini e,
passando à análise da empresa considerada como instituição, sustenta a
“inexistência de componentes jurídicos que, combinados aos dados econômicos,
235 MARCONDES, S. Idem, p. 29.236 MARCONDES, S. Idem, p. 30-31.237 MARCONDES, S. Idem, p. 35-38.
66formem um conceito genérico de empresa; ou, considerada a constância do
substrato econômico, pela inexistência de um conceito de empresa como
categoria jurídica.”.238
A Administração Pública da economia considerou, a partir do final
do século XIX, devido à evolução da industrialização, o exercício de atividade
econômica e não de atos singulares como no Código francês. Inicialmente,
estava associada a proteção do trabalho, a intervenções contra o poder
econômico, a nacionalização de serviços públicos e eliminação de estruturas em
parte feudais e pré-capitalistas e, posteriormente, com a defesa do consumidor
no interesse de um bem estar econômico geral, ou dos empresários em face
deste.239
Tendo em vista a finalidade econômica objetivada pelo
intervencionismo, considerou-se a unificação das obrigações que, levada a efeito
em primeiro lugar no Código Suíço, não resultou de características técnicas das
matérias envolvidas e, sim, de exigência nos diversos setores da economia.
Posteriormente, em 1942, na Itália, a empresa entendida como atividade não é
apta a qualificar contratos que se imputam a pessoa. O relevo do Código italiano
está na regulamentação privatista da concorrência e publicista da economia.240
O projeto de Código Civil brasileiro teve como diretivas o
entendimento de ser um Código Civil a norma fundamental do direito privado,
mas não integral dele, identificando as obrigações civis e mercantis como
atividades negociais e positivando matérias consolidadas, figurando a
“sistematicidade” como principal característica.241
No Brasil, o movimento de unificação do direito privado teve início
em 1964 com o Projeto de Código das Obrigações. Em 1965, foi apresentada a
segunda versão. Em 1972, a terceira, compreendida no Anteprojeto de Código
Civil. Foram seguidas pelas quarta e quinta versões sendo em todas elas
238 MARCONDES, S. Idem, p. 38-40.239 ASCARELLI, T. Op. cit., p. 246-247.240 ASCARELLI, T. Idem, p. 248-252.241 MARCONDES, Sylvio. Questões de direito mercantil, p. 1-2. Em 1969 o Governo nomeouuma Comissão para revisar e reelaborar os projetos anteriores. Miguel Reale foi o Presidentedesta Comissão competindo ao Professor catedrático de Direito comercial na Faculdade de Direitoda Universidade de São Paulo Sylvio Marcondes tratar do Direito da Empresa. O projeto resultouno Código Civil de 2002. MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizesteóricas do novo código civil brasileiro, p. 90-91.
67consideradas as críticas e sugestões realizadas, resultando o Projeto n.
634/75.242
A tendência unificadora pode ser constatada pelo exame do art. 121
do Código Comercial de 1850 bem como na previsão expressa do contrato de
sociedade no Código Civil de 1916.
Além disso, defendia-se um Código de Direito Privado, no Império
com Teixeira de Freitas no Projeto de Código Civil, já em 1912 com Inglez de
Souza no Projeto de Código Comercial e, em 1941. tal intento caracterizou o
Projeto de Código de Obrigações.243
A expressão “matéria mercantil” passa para atividade negocial,
conceito mais abrangente, traço do desenvolvimento que comprometeu conceitos
do Código Comercial de 1850, cunhados subjetivamente na figura do
comerciante e objetivamente nos atos de comércio que, privados de
consideração especial, justifica a unificação como negócio jurídico, atos
negociais, ganhando importância na perspectiva de atividade.244
Alberto Asquini pôs termo as divergências relacionadas à
conceituação de empresa no direito italiano, sustentando ser a empresa um
fenômeno econômico poliédrico que, tendo em vista os diversos elementos que o
compõe singularmente considerados sob o enfoque jurídico, assume quatro
perfis, como no art. 2º da CLT (perfil subjetivo), art. 448 da CLT (perfil objetivo) e
o inciso V do art. 165 da Constituição revogada (perfil corporativo).245
Com relação à atividade negocial, o Código prevê no Título I “Do
empresário”, no Título II “Da Sociedade”, Título III “Do Estabelecimento” e Título
IV “Institutos Complementares”. O empresário é a pessoa física ou jurídica,
contudo, a complexidade da matéria não autorizou o tratamento conjunto dos
Títulos I e II porque nem toda pessoa jurídica é sociedade, a exemplo das
associações e fundações, nem toda sociedade é pessoa jurídica. Finalmente,
nem toda sociedade tem como objeto a atividade empresária.246
O conceito de “empresário” (pessoa física) afigura-se o ponto
nuclear que permite a distinção entre sociedades empresárias e não empresárias
242 MARCONDES, S. Idem, p. 3-4243 MARCONDES, S. Idem, p. 4-6244 MARCONDES, S. Idem, p. 6-7.245 MARCONDES, S. Idem, p. 7-8246 MARCONDES, S. Idem, p. 9-10.
68e é formado a partir da combinação de atividade econômica (relacionada à
criação de riquezas, bens ou serviços), forma organizacional aos fatores de
produção (trabalho, natureza e capital), exercida profissionalmente, com
habitualidade, sendo imanentes ao profissionalismo o exercício em nome próprio
com o fim de lucro.247
Os profissionais intelectuais como o artista que produz bens ou o
profissional liberal que produz serviços, embora exerçam atividade econômica,
não são, em princípio considerados empresários porque a organização dos
fatores de produção constitui fato ocasional. Considerando a imensidão do
território e as diferenças de região, facultou-se ao ruralista a inscrição como
empresário.248
4 FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
Com relação ao mais importante fator de eficiência na economia
contemporânea, a doutrina se divide entre adeptos da pequena ou da grande
empresa. Tal consideração, todavia, depende dos objetivos buscados. O sucesso
empresarial resulta da existência de uma rede apta a abranger espaços no
mercado e uma estrutura marcada pela hierarquia, fatores que somente a grande
empresa reúne.249
O desenvolvimento da grande empresa passou por três fases: (1) a
primeira como organização única dividida internamente; (2) a segunda
relacionada ao grupo societário e; (3) a terceira associada à rede empresarial. A
universalização da economia ensejou o aumento dos grupos societários,
formados por uma sociedade controladora e sociedades controladas, bem como
deu origem à “organização reticular” de empresas no âmbito internacional.250
A organização irrestrita aos limites territoriais dos Estados,
conhecida por “economias-mundos” portuguesa, espanhola, inglesa e francesa
no século XIX e, no século XX, pela União Soviética, antecedeu o fenômeno da
globalização, sendo os Estados Unidos os precursores da instauração de um
247 MARCONDES, S. Idem, p. 10-11.248 MARCONDES, S. Idem, p. 11-12.249 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social, p. 38-39.250 COMPARATO, F. K. Idem, p. 38.
69mercado único mundial, constituindo as empresas multinacionais os agentes
responsáveis por expressiva parcela do investimento estrangeiro direto no
mundo.251
A estrutura organizacional das empresas multinacionais
recentemente era espelho de um grupo societário de subordinação com a
empresa “holding” no ápice, contudo, com o fenômeno da terceirização, tem lugar
o sistema reticular em que a vinculação das unidades empresariais não se dá
pela participação no capital e sim por uma rede de contratos estáveis, com o
controle externo contratual realizado pela sociedade controladora “broker”.252
Não há razão para o tratamento do direito de propriedade, à luz do
direito econômico como um terceiro gênero ao lado da dicotomia direito público e
direito privado e as normas de direito econômico não se limitam a bens móveis.253
A classificação dos bens em “móveis” e “imóveis” já foi a principal e
teve origem na Idade Média, sendo a propriedade móvel relegada a um segundo
plano porquanto não assegurava poder político. Associado ao comércio, a moeda
e a vida urbana, o sistema capitalista conferiu importância aos bens móveis tendo
a propriedade de moedas e metais dado origem ao crédito.254
Desde então, a mais importante classificação é a que diferencia
bens de consumo e bens de produção, de maneira que os “bens de produção”
compreendem móveis ou imóveis utilizados como capital produtivo, bem como as
mercadorias direcionadas ao mercado e compreendidos pela noção de
estabelecimento empresarial, do contrário, elas constituem insumos de produção
ou bens de consumo.255
Os bens de consumo não são, por vezes, passíveis de
“apropriação”, como os bens de uso comum. Os bens juridicamente consumíveis
são de difícil enquadramento no regime da propriedade que supõe permanência.
A diferenciação se baseia na destinação dos bens e não em sua
natureza de maneira que a estrutura não condiciona a função, que é levada a
efeito pelos mais variados tipos de relação jurídica. Há que se diferenciar,
251 COMPARATO, F. K. Idem, p. 39.252 COMPARATO, F. K. Idem, p. 41.253 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção, p. 71.254 COMPARATO, F. K. Idem, p. 72.255 COMPARATO, F. K. Idem, p. 72-73.
70entretanto, a “função econômica dos bens” da “função econômica da relação
jurídica” que tem por objetos esses bens.256
Karl Renner foi um dos precursores da análise funcional do Direito
em 1904, com o escrito intitulado “Die soziale Funktion der Rechtsinstitute”, a
partir do qual se demonstrou que os bens e as relações jurídicas podem possuir
diversas finalidades na vida em sociedade, assim como os negócios jurídicos
podem alcançar objetivos não contemplados pela lei e queridos pelos particulares
(negócios indiretos).257
A história econômica e o desenvolvimento do pensamento do
ocidente a respeito da vida econômica demonstram que a propriedade privada
sempre foi fundamentada como instrumento indispensável à subsistência.
Hodiernamente, todavia, tal assertiva está relativizada, tendo em vista a
importância do emprego, do salário, da seguridade social, da educação, da
formação profissional, do transporte e do lazer.258
A eficiência da propriedade para realização de interesses individuais
e familiares sempre esteve atrelada a uma relação de direito real e, na medida
em que se atribui o caráter “erga omnes” a outros direitos, eles passam a exercer
a função da propriedade.259
A concepção de propriedade dominante resultou da restritiva
codificação francesa. Para Teixeira de Freitas, a concepção de “propriedade” é
abrangente porque contempla a universalidade de bens corpóreos ou não
constituintes do patrimônio de cada pessoa, bem como as prestações a ela
devidas.260 De outro lado, o “domínio” resultado da soma dos poderes
proprietários.
Com o aumento da empresa, restam cada vez mais nítidas as
figuras dos empresários e dos capitalistas, de modo que nas grandes
companhias americanas e japonesas o principal acionista detém, no máximo, dez
por cento do capital social.261
256 COMPARATO, F. K. Idem, p. 73.257 COMPARATO, F. K. Idem, ibidem.258 COMPARATO, F. K. Idem, ibidem.259 COMPARATO, F. K. Idem, p. 73-74.260 COMPARATO, F. K. Idem, p. 74.261 COMPARATO, F. K. Idem, p. 74-75.
71A função social da propriedade não se identifica com a restrição de
uso e gozo de bens próprios, ou seja, com restrições negativas aos direitos do
proprietário mas sim, refere-se a vinculação a dada finalidade. O adjetivo “social”
denota a preponderância do interesse coletivo, tratando-se de um poder-dever do
proprietário.262
O substantivo do latim “functio” deriva do verbo “fungor” cujo
significado primeiro indica o cumprimento de algo ou prática de um dever e a
associação do verbo ao múnus público já ocorria entre os clássicos como Cícero.
Além disso, sob o enfoque institucional do Direito, função indica a finalidade legal
de um instituto jurídico, por sua vez, sob um olhar mais abstrato, retrata a busca
da satisfação do interesse alheio, pelo titular da atividade em sentido positivo.263
A função social revela uma conduta em benefício da coletividade e,
para a apreciação da função social da empresa, é preciso analisar primeiro a
função social da propriedade da qual decorre. Dispôs a Constituição de Weimar,
de 1919, em seu art. 153, que “a propriedade obriga. Seu uso deve ser
igualmente um serviço ao bem comum”, o que foi reproduzido, “mutatis
mutandis”, pela Lei Fundamental de Bonn que prescreve: “a propriedade obriga.
Seu uso deve igualmente servir ao bem da coletividade.”.264
A noção de “função social da propriedade” foi primeiramente
introduzida no ordenamento positivo na Constituição da República de Weimar em
1919, reproduzida com modificação pontual, em 1949, e o seu alcance se refere
a deveres positivos do proprietário, considerando os verbos “verpflichten” obrigar
e “dienen” servir.265
No entanto, a doutrina alemã não logrou visualizar qualquer
aplicação prática ao dispositivo.266
Seifert e Hömig sustentam que a “norma 'não confere nenhum
direito de legítima defesa (Selbshilferecht). A apropriação e a utilização da
propriedade privada alheia sem autorização legal, não pode ser justificada pelo
262 COMPARATO, F. K. Idem, p. 75.263 COMPARATO, Fabio Konder. Estado, empresa e função Social, p. 40-41.264 COMPARATO, F. K. Idem, p. 41.265 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção, p. 75.266 COMPARATO, F. K. Idem, ibidem.
72art. 14 inc. II. A fronteira entre a determinação do conteúdo e a vinculação social
de um lado e a desapropriação de outro é problemática.267
Para eles afigura-se complexo extrair do dispositivo a possibilidade
de desapropriação, tendo em vista o descumprimento de seu conteúdo social, o
que constitui retrocesso porque tal solução está prevista em diversas
legislações.268
Negar a possibilidade de certo dever positivo sob o fundamento de
inexistência de disposição expressa viola o art. 1º alínea 3, segundo o qual os
direitos fundamentais (e no caso o direito de propriedade) vinculam o Estado “a
menos que se queira sustentar o absurdo de que os direitos fundamentais
inscritos na Constituição são imediatamente eficazes para os órgãos do Estado,
mas não para os particulares.”.269
Para Konrad Hesse o art. 14 inc. II da LF está associado à tutela do
proprietário contra o Estado “como se a hipótese de incidência fosse uma ação
anti-social do Estado e não o descumprimento de um poder-dever social pelos
proprietários [...] e pelo repertório desses comentários percebe-se quão deficiente
é a técnica normativa de se lançarem, nessa matéria, fórmulas sintéticas e
imprecisas do tipo da que se encontra no art. 160, III, de nossa Constituição: a
função social da propriedade.”.270
Ninguém logrou explicitar na Alemanha quais os deveres sociais
positivos do proprietário em face da coletividade, no entanto, constitui ponto
pacífico a associação entre a vinculação social e os deveres negativos
marcadamente no tocante a imóveis e o art. 15 da Lei Fundamental de Bonn,
resultado de forças políticas de resistência ao nazismo, não se trata de
socialização da sociedade privada conforme esclareceu o julgamento da corte
constitucional, permanecendo sem aplicação.271
Na Itália o art. 42 da Carta italiana de 1947 subjuga a função social
às limitações ao uso de bens próprios, levadas a efeito pelo legislador, o que
267 COMPARATO, F. K. Idem, p. 75-76.268 COMPARATO, F. K. Idem, ibidem.269 COMPARATO, F. K. Idem, ibidem.270 COMPARATO, F. K. Idem, p. 76.271 Dispõe o art. 15 da Lei fundamental de Bonn: “O solo e as terras, as riquezas naturais eos meios de produção podem, com a finalidade de socialização, ser transformados empropriedade comum ou em outras formas de economia comunitária, por meio de lei que regulará aespécie e a extensão da expropriação”. COMPARATO, Fabio Konder. Estado, empresa e funçãoSocial. p. 41-42.
73invalidou qualquer iniciativa doutrinária no sentido de fixar deveres positivos, fato
que se repetiu na Espanha. No Brasil, entretanto, a Constituição de 1988 livrou-
se da indeterminação fixando deveres positivos nos artigos 182 e 186, que
denotam a natureza de dever das sanções aplicáveis pelo Estado bem como a
não sujeição integral a garantia do art. 5º inciso XXIV da Constituição.272
O conceito de propriedade em direito constitucional é mais
abrangente do que o conceito do direito civil porque estão inseridos na tutela
constitucional bens jurídicos que o titular não exerce direito real compreendendo,
inclusive, o poder de controle empresarial, funcionalizando-o. Os deveres
negativos do empresário podem ser sintetizados na expressão latina “neminem
laedere”, a ninguém ofender.273
A finalidade que diferencia “bens de consumo” e “bens de produção”
não pode ficar ao alvedrio dos particulares na busca do lucro sob pena de
violação da função social da propriedade.274
A função social da propriedade não se identifica com as limitações
de uso e gozo de bens próprios e, ainda, na hipótese de bens de produção, o
poder-dever do proprietário de conferir à “res” uma finalidade coletiva se
transforma no poder-dever do titular do controle, quando tais bens compõem um
dos fatores de produção reunidos pelo empresário.275
Prescreve o art. 116 da Lei das S/A:
Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou ogrupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controlecomum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modopermanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral eo poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usaefetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar ofuncionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionistacontrolador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar oseu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres eresponsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os quenela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos einteresses deve lealmente respeitar e atender.
272 Prescreve o art. 42 da Carta italiana de 1942: “La proprietà privata è riconosciuta egarantita dalla legge, che ne determina i modi di acquisto, di godimento e i limitti allo scopo diassicurne la funzione sociale e di renderla accessibile a tutti.”. art. 33: “1. Se reconoce el derecho ala propriedad privada y a la herancia. 2. La función social de estos derechos delimitará sucontenido, de acuerdo com las leyes.”. COMPARATO, F. K. Idem, p. 42-43.273 COMPARATO, F. K. Idem, p. 43-44.274 COMPARATO, F. K. Função social da propriedade dos bens de produção, p. 76-77.275 COMPARATO, F. K. Idem, p.76.
74O poder de controle não é um direito real que incide sobre a coisa,
mas um poder de organização e direção que envolve pessoas e coisas, no
regime capitalista, o poder de controle da empresa está baseado na propriedade
do capital ou títulos-valores prevendo a Lei das S/A deveres ao acionista
controlador nos artigos 116 e 177 parágrafo 1º. No entanto, tais dispositivos são
ineficazes em razão da não previsão legal de um aparelhamento de sanções e
sim a responsabilidade por perdas e danos.276
A intensificação da complexidade da macroempresa
contemporânea, enfatizando as funções interiores de organização e
planejamento, a tecnologia como fator de produção, o perfil social e não
econômico das empresas de educação, saúde e comunicação colocam em xeque
a legitimidade do poder de controle baseado na propriedade.277
4.1 Objeções à função social da empresa
Considerando por hipótese a existência de uma função social da
empresa, deve-se necessariamente responder quem são os agentes e quem são
os destinatários dela. Os agentes seriam, em princípio, os empresários
individuais ou sociedades empresárias e, por outro lado, a destinatária seria a
sociedade. Indaga-se: mas qual sociedade? Uma sociedade livre justa e
solidária? Que busca a redução das desigualdades sociais? Qual é o âmbito do
social?278
Existe contradição insanável entre a função social da empresa e a
empresa capitalista porque se trata de uma organização que busca o lucro não
podendo renunciar à sua finalidade lucrativa.279 Além disso, nenhum
276 COMPARATO, F. K. Idem, p. 77-78.277 COMPARATO, F. K. Idem, p. 78.278 Informação verbal do Prof. Dr. Alcides Tomasetti Junior, na Banca de Qualificação destapesquisa, realizada em 27 de outubro de 2006, nas Faculdades Integradas Curitiba.279 COMPARATO, Fabio Konder. Estado, empresa e função Social. p. 45. Prescreve o art. 2ºda Lei 6.404/76: “Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário àlei, à ordem pública e aos bons costumes.”. Dispõe o art. 206 da Lei n. 6.404/76: “Dissolve-se acompanhia: [...] II - por decisão judicial: [...] b) quando provado que não pode preencher o seu fim,em ação proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social;”.
75administrador está autorizado a praticar atos gratuitos “não razoáveis” em
benefício da comunidade.280
No sistema capitalista somente se exige da empresa eficiência
lucrativa e que na persecução do lucro o sistema empresarial total produza ou
faça circular bens ou serviços pautado pela livre concorrência.281
O tema da função social da empresa nunca foi discutido na
Alemanha, uma economia social de mercado, consoante o art. 2º da Lei
Fundamental daquele país, de maneira que lá a empresa somente se legitima na
medida em que atende os interesses do mercado e os interesses sociais.282
A idéia de função social da propriedade foi prevista inicialmente no
art. 153 da Constituição de Weimar e reproduzida “mutatis mutandis” no art. 14
da Lei fundamental de Bonn, no entanto, a doutrina alemã não logrou explicitar
quais os deveres sociais positivos do proprietário em face da coletividade, não
possuindo aplicação prática.283
Pondera Fábio Konder Comparato sobre a doutrina alemã: “e pelo
repertório desses comentários percebe-se quão deficiente é a técnica normativa
de se lançarem, nessa matéria, fórmulas sintéticas e imprecisas do tipo da que se
encontra no art. 160, III, de nossa Constituição: a função social da
propriedade.”.284
No marco inicial de qualquer interpretação, deve-se repelir os
conceitos jurídicos uniformizadores, sem conteúdo, muito comum nos meta-
discursos e que camuflam do intérprete dados relevantes afastando a
interpretação da realidade bem como beneficiando uma situação de “nada
constrói”, mesmo com o auxílio de outras áreas do conhecimento e argumentos
280 COMPARATO, F. K. Idem, p.45. Reproduza-se o art. 154 da Lei n. 6.404/76:. Oadministrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins eno interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social daempresa. [...] § 4º O conselho de administração ou a diretoria podem autorizar a prática de atosgratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa,tendo em vista suas responsabilidades sociais.281 COMPARATO, F. K. Idem, p.45.282 Informação verbal do Prof. Dr. Alcides Tomasetti Junior, na Banca de Qualificação destapesquisa, realizada em 27 de outubro de 2006, nas Faculdades Integradas Curitiba.283 COMPARATO, F. K. Idem, p. 41.284 COMPARATO, F. K. Função social da propriedade dos bens de produção, p. 76.
76científicos ou razoavelmente admitidos, considerando, ademais, as limitações do
“intérprete-tipo”.285
A função social da empresa e a função social da propriedade
empresarial representam, no campo do direito empresarial, vazios conceitos
jurídicos uniformizadores apresentados como “panacéia” do que a Constituição
deseja, contudo, não há uma “desejada” função social da empresa e sim:
relações de produção que, no âmbito do modo capitalista, permitem (ounão) que os fatores de produção sejam organizados de tal modo que, nadinâmica dominante do real concreto, universalize-se (que é o que sedeseja) ou restrinja-se (que é o que não se quer) a distribuição dosbenefícios do continuum de criação, exploração, circulação e consumode riquezas.286 (grifo nosso)
Portanto, há a função da empresa capitalista que pode,
considerando o resultado de poder dos elementos das relações de produção e de
categorias jurídicas que regulam a apropriação, troca e circulação de riquezas,
distribuir pelo sistema da propriedade e dos contratos benefícios para maior ou
menor parcela de destinatários.287
Na Itália bem como na Espanha a função social está associada às
limitações ao uso de bens próprios, levadas a efeito pelo legislador, o que
invalidou qualquer iniciativa doutrinária no sentido de fixar deveres positivos.288
Parte da doutrina deriva a função social da empresa a partir da
função social da propriedade. Na Europa, em geral, o debate sobre a função
social da propriedade constitui matéria ultrapassada e os bens de produção
constituem apenas um dos fatores organizados pelo empresário para o exercício
da atividade empresária, sendo perfeitamente concebível a figura do empresário
não-proprietário, como um fundo de investimento.289
Consoante Bulgarelli, a função social da empresa deve ser
entendida como “...o respeito aos direitos e interesses dos que se situam em
285 GEVAERD FILHO, Jair Lima. Responsabilidade social, inclusão e sustentabilidade:vértices empresariais dos direitos fundamentais, p. 194.286 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 195.287 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, ibidem.288 COMPARATO, F. K. Idem, p. 42-43.289 Idem.
77torno [delas]”290e, com relação aos campos em que se manifesta, parte da
doutrina aponta a concorrência, o direito do consumidor e o meio ambiente.291
No entanto, o Direito já possui as categorias jurídicas do “abuso de
direito” e do “abuso de posição dominante”, com relação ao direito concorrencial
e o CDC disciplina as chamadas práticas empresariais abusivas, de maneira que
se revela cômodo, porém desnecessária a figura da “função social da
empresa”.292
No tocante aos deveres externos, o conceito de função social da
empresa se revela bastante restrito, ou mesmo nulo, sem olvidar que somente as
macroempresas estão aptas a atender interesses exteriores.293
As considerações expendidas têm o condão de revelar o quanto é
difícil, ou mesmo impossível, citar um exemplo concreto solucionado a partir do
conceito de função social, considerando a insuficiência dos conceitos das
categorias já existentes, porque tais práticas relacionadas à concorrência, ao
consumidor e ao meio ambiente deságuam no abuso de posição jurídica.294
A tese da função social da empresa pode representar escusa
Estatal no cumprimento de políticas sociais para a manutenção da estabilidade
monetária e das finanças públicas.295 Sustentar a função social da propriedade
pode significar a manutenção do “status quo” social em questões sobre o regime
agrário e de exploração empresarial capitalista.296
290 Apud CASTRO, C. A. F. de; NALIN, P. Op. cit., p. 121.291 FARAH, Eduardo Teixeira. A disciplina da empresa e o princípo da solidariedade social, p.689-709.292 Informação verbal do Prof. Dr. Alcides Tomasetti Junior, na Banca de Qualificação destapesquisa, realizada em 27 de outubro de 2006, nas Faculdades Integradas Curitiba.293 COMPARATO, F. K. Op. cit., p. 44.294 Informação verbal do Prof. Dr. Alcides Tomasetti Junior, na Banca de Qualificação destapesquisa, realizada em 27 de outubro de 2006, nas Faculdades Integradas Curitiba.295 COMPARATO, F. K. Op. cit., p. 46.296 COMPARATO, F. K. Função social da propriedade dos bens de produção, p. 76.
78CAPÍTULO 3: EFICÁCIA PRIVADA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E
FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
1 RELAÇÃO ENTRE A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS E A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
É possível identificar pelo menos dois pontos de contato entre a
eficácia privada dos direitos fundamentais e a função social da empresa.
O primeiro diz respeito à influência dos direitos fundamentais no
direito privado pelo legislador, por intermédio de cláusulas gerais. Atualmente
majoritária na Alemanha, a teoria da eficácia horizontal indireta ou mediata
considera os direitos fundamentais como normas objetivas, valores
constitucionais, que se irradiam sobre o direito privado por intermédio das
cláusulas gerais.
Para os adeptos da teoria da eficácia horizontal mediata, a
aplicação da teoria da eficácia imediata implicaria supressão da autonomia da
vontade ocasionando a perda da identidade do direito privado, que representaria
mera aplicação do direito constitucional aumentando a discricionariedade do juiz,
tendo em vista o grau de abstração das normas constitucionais de direitos
fundamentais.
A eficácia dos direitos fundamentais denomina-se “indireta” ou
“mediata” porque se estende aos particulares por intermédio do legislador, com
maior proteção ao “tráfico jurídico” bem como compatibilidade com o regime
democrático e a separação dos poderes.
Neste sentido, os “direitos fundamentais” constituem princípios de
interpretação de cláusulas gerais e conceitos indeterminados, ora tornando-os
claros “wertverdeutlichung”, ora enfatizando elementos que os compõe
“wertakzentuierung”, “Wertverschärfung”, e, excepcionalmente, suprindo espaços
vazios mas sempre sob o enfoque de direito privado.
Para esta teoria, os direitos fundamentais não podem, em princípio,
vincular diretamente particulares e a influência deles sobre o direito privado
dirige-se primordialmente ao legislador, para a materialização dos respectivos
79conteúdos. Caso o legislador se utilize de conceitos indeterminados ou cláusulas
gerais, aumentam de importância os direitos fundamentais na aplicação do
Direito ao caso concreto.
A legislação infraconstitucional faz referência expressa à função
social da empresa. Com efeito, dispõe a lei que regula a recuperação judicial, a
extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação dasituação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir amanutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dosinteresses dos credores, promovendo, assim, a preservação daempresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Consoante Judith Martins-Costa:
O auxílio da lei, para organizar os deveres, e o da jurisprudência, paradefinir a sua extensão e o seu alcance, é indispensável. Conquantomuitas vezes o preveja expressamente, a legislação infraconstitucionaltambém pode, ao invés de tão-somente pontualizar os deveres, ensejar asua construção por via da atividade judicial, na hipótese de contemplarcláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados que facilitem oacolhimento concreto da diretriz em um âmbito de regulação materialespecífico. Como já tive ocasião de assinalar as cláusulas geraisconstituem técnica legislativa que conforma o meio hábil para permitir oingresso, no ordenamento codificado, de princípios, de standards,arquétipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta nãoprevistos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, tambémnão advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configuradossegundo os usos do tráfego jurídico, de diretivas econômicas, sociais epolíticas e de normas constantes de universos metajurídicos, viabilizandoa sua sistematização e permanente ressistematização no ordenamentopositivo. Isso porque, nas cláusulas gerais, a formulação da hipóteselegal é procedida mediante o emprego de conceitos cujos termos têmsignificado dos intencionalmente vagos e abertos, os chamados“conceitos jurídicos indeterminados. Como estão situadas setorialmente,auxiliam na concreta regulação de determinados domínios de casos –v.g, na responsabilidade civil, no direito dos contratos, nas relaçõespessoais de família, nos direitos da personalidade – viabilizando a suasistematização, isto é, a sua introdução ordenada no sistema jurídico.Constituem, portanto, a via privilegiada para a contínua construção ereconstrução da positividade dos princípios e das diretivas, desde que ajurisprudência com responsabilidade, senso ético e sabedoria, saibaretirar todas as conseqüências que esta técnica enseja. Por fim, atua, adiretriz pela direta incidência da Constituição, de duas formas distintas:negativamente, isto é, limitando ou impedindo a eficácia de normainfraconstitucional que com ela colida, ou positivamente, em caso delacuna legislativa, por via da concreção, infundindo renovada direção aum princípio ou regra postos na lei infraconstitucional.297
297 MARTINS-COSTA, Judith. Mercado e solidariedade social entre cosmos e taxis: a boa-fénas relações de consumo, p. 629-630.
80
Nada mais são tais cláusulas que conceitos jurídicos
indeterminados, “janelas, pontes e avenidas”, através dos quais se permite o
ingresso de princípios valorativos, standards, máximas de condutas e mesmo
normas originárias de universos metajurídicos, viabilizando a constante
realimentação do ordenamento.298
O segundo ponto de contato, está relacionado a eficácia imediata
dos direitos fundamentais e a função social da empresa, entendida como deveres
positivos. Defende Fábio Konder Comparato que:
A idéia de função social da propriedade entrou a fazer parte do DireitoPositivo com a promulgação da primeira Constituição RepublicanaAlemã, Weimar, em 1919. A disposição do art. 153 desse textoconstitucional foi retomada ipsis verbis pela Constituição da RepúblicaFederal da Alemanha, de 1949 (art. 14, 2ª alínea): 'A propriedade obriga.Seu uso deve, ao mesmo tempo, servir o interesse da coletividade.'(Eigentum verpflichtet. Sein Gebrauch soll augleich dem Wohle derAllegemeinheit dienem.) A norma tem, indubitavelmente, o sentido deuma imposição de deveres positivos ao proprietário. O verbo verpflichten(obrigar), conjugado a dienen (servir) na 2ª parte do dispositivo, indicacom clareza que não se trata aí de simples restrições à ação doproprietário. A doutrina germânica, no entanto, não conseguiu extrairuma aplicação prática do princípio constitucional. Nos comentários deSeifert, Hömig et alli, declarar-se que a norma 'não confere nenhumdireito de legítima defesa (Selbshilferecht). A apropriação ea utilização dapropriedade privada alheia, sem autorização legal, não pode serjustificada pelo art. 14, inc. II. A fronteira entre a determinação doconteúdo e a vinculação social, de um lado, e a desapropriação de outro,é problemática' (Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland, 2.ªed., Baden-Baden, 1985, p. 147). Essa legítima defesa mencionada nocomentário é, evidentemente, a invocação do estado de necessidade.Dizer que a norma constitucional não justifica à falta de expressaautorização de lei, a apropriação e até a utilização dos bens alheios é,sem dúvida, negar a aplicação ao princípio inscrito no art. 1.º, alínea 3.ª,da mesma Constituição, segundo o qual os direitos fundamentaisvinculam o legislador, a Administração Pública e o Judiciário como direitoauto-executável (unmittelbar geltendes Recht). Se a propriedade estáinscrita entre os direitos fundamentais, ela deve submeter-se aoregime que lhes é comum. A menos que se queira sustentar oabsurdo de que os direitos fundamentais inscritos na Constituiçãosão imediatamente eficazes para os órgãos do Estado, mas nãopara os particulares. (grifo nosso).299
2 RESPONSABILIDADE SOCIAL, SUSTENTABILIDADE E INCLUSÃO
298 GODOY, Luciano de Souza. O direito à moradia como expressão da dignidade da pessoahumana, p. 13.299 COMPARATO, F. K. Op. cit., p. 75-76.
81A notável evolução do modo de produção capitalista no Brasil, a
partir das duas últimas décadas do século XX, o modo pelo qual o senso comum
teórico tem assimilado esse desenvolvimento econômico e social bem como
adaptado as teorias prevalentes para a interpretação e, por fim, a postura atônita
e errante dos operadores do Direito, tendo em vista essa realidade, constituem
três facetas de um mesmo objeto, a experiência do Direito.300
Entendida como sistema de fundamentação de soluções operativas,
a doutrina jurídica não tem logrado seguir o veloz desenvolvimento do modo de
produção capitalista, as instâncias de intervenção resolutiva judiciais ou
extrajudiciais não se afiguram aptas a colaborar com a evolução do capitalismo
brasileiro e os operadores do Direito encontram obstáculos de introdução no
campo de trabalho “senão – e infelizmente – como 'agentes do atraso”.301
Contrariando o enfoque metodológico ou pragmático do Direito
como técnica de resolução da lide, para o operador jurídico se afigura normal e
natural retardar a satisfação do crédito, no entanto, tal conduta resulta na
desqualificação dos profissionais do Direito (ineficaz ao credor), frente aos
profissionais de outras áreas do conhecimento, somada a frustração de “não-
saber”: “o que fazer”; “como fazer”; “por que fazer”; “onde buscar”; “de que modo
inserir-se etc.”.302
Recentemente para o senso comum teórico as Constituições
contemplam direções principiológicas, associadas à função e à satisfatória
300 GEVAERD FILHO, J. L, Op. cit., p. 189.301 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 189-190.302 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 191. Sustenta Jair Lima Gevaerd Filho que não há noscursos jurídicos orientação responsável sobre um “fazer metodologicamente avisado” resgatandoa reputação do Direito, com integração interdisciplinar sem olvidar a ética social e humanamentefundamentada, com efeito, não se pode mais: 1. aceitar o corpo discente hesitante e ciente de queo senso comum teórico não disponibiliza ferramentas capazes de corresponder aos anseios domercado e da sociedade e não esclarece “modo” e o “por que” ocorre, nem o como mudar; 2.ignorar o caráter principiológico, dirigente e garantista da Constituição que prestigia,metodologicamente, a normatividade funcional em detrimento do método axiomático e, sob oenfoque pragmático, soluções que contemplem a responsabilidade social, a sustentabilidade,inclusão e a universalização dos benefícios do modo de produção; 3. sustentar o meta-discurso nadoutrina e jurisprudência incapaz que corrigir disfunções verificadas na realidade; 4. afirmar a auto-suficiência do Direito olvidando a interdisciplinaridade ou taxando outros conteúdos de“extrajurídicos”; 5. conceber o distancimaneto de “grau, compromisso ético e fundamentação”entre o que se ensina e o que se faz na prática; 6. admitir decisões afuncionais do Poder Judiciárioque acarretam um custo social e econômico que a todos atinge; 7. repisar textos de lei doutrinafora de contexto olvidando a gênese e finalidade dos institutos jurídicos. GEVAERD FILHO, J. L.Idem, p. 191-192.
82evolução social e econômica, em destaque para o direito empresarial as relações
que determinam o modo de produção.303
A principal questão do Direito contemporâneo está em determinar,
expor e reunir em classes os processos hermenêuticos que assegurem os
paradigmas principiológicos, funcionais e de essência, desde a previsão
constitucional até a respectiva materialização por intermédio de um método de
decisão que admita desvinculada e arranjada enunciação dos diferentes
posicionamentos, bem como razoável controle.
Da passagem da normatividade axiomática para a normatividade
principiológica, independentemente do posicionamento metodológico e
sistemático do intérprete, “a garantir e dirigir está dada uma função” e, com
relação ao direito empresarial, calha perquirir o que o art. 170 da Constituição
proclama, dirige e garante com o auxílio da economia, análise social e
desenvolvimentista.
Sentidos e funções na solução de casos concretos devem ser
priorizadas e no início do trabalho hermenêutico uma construção interpretativa
responsável tem lugar determinando: (1) o que a ordem econômica e social a
Constituição protege e deseja e; (2) qual ordem econômica e social se infere
histórica, contemporânea e no contexto real concreto do modo de produção
capitalista no Brasil.
Identificando que a Constituição quer responsabilidade social,
sustentabilidade e inclusão, as soluções processuais deverão prestigiar funções
aptas a acertar ou dirigir as relações de produção consoante estas diretrizes
constitucionais. A propalada função social e a previsão de princípios
consagradores de uma ordem justa e inclusiva não ensejam a observância da
livre iniciativa, da livre concorrência, da dignidade do trabalho humano levados a
efeito pela legislação e por decisões judiciais adequadas.304
Desde 1930 foi adotado no Brasil o nacional-desenvolvimentismo
como modelo de crescimento baseado, objetivamente, no financiamento do
investimento público pela inflação e na autarquia em substituição às importações
e, subjetivamente, na figura do Estado Redentor, donde se conclui a dependência
303 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 189-190.304 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 195-196.
83empresarial face ao Estado, o desprezo de conceitos como inclusão,
sustentabilidade e responsabilidade bem como uma ética de aparência.305
Questões jurídicas relevantes para o sucesso da empresa como o
contrato social, disposição de direitos e obrigações entre os sócios são tratadas
indiferentemente por empreendedores pequenos e médios, por outro lado, o
grande capital está regulado pela Lei das S/A, com os termos de direção fixados
em lei estrangeiras como a estadunidense SOX (Sarbannes Oxley), exemplar no
que toca à conduta ética e escorreita nas relações entre sócios, mercado e
coletividade.306
No Brasil do século XXI está, portanto, enraizada a cultura
patrimonialista, pré-capitalista e cartorial, não existindo um código social e cultural
ao médio empresário e aos demais profissionais para a compreensão do
processo econômico que constitui o modo de produção. No entanto, ao contrário,
já é notável a postura de afastar-se do Estado bem como de buscar a excelência
empresarial baseada na competência e competitividade, em razão da abertura e
das privatizações.307
A adoção da ordem econômica e social desejada pela Constituição
pressupõe a apreensão da realidade, ato contínuo, compreendida a função do
texto, “trata-se de movimentar os recursos metodológicos (teorias dos sistemas,
teoria das fontes, teoria da justiça, teoria da linguagem etc. )” para, na solução da
lide, realizar a missão do Direito bem como o controle institucional de alteração
da realidade.308
A ordem econômica e social que a Constituição deseja contempla a
responsabilidade social e de igual modo a inclusão e sustentabilidade, que não
corresponde, todavia, a um conceito jurídico e sim uma atividade funcional
adotada pelos incorporadores e agentes da empresa existindo somente na
prática do modo de produção.309
As empresas podem, sem prejuízo da finalidade lucrativa,
incrementar as condições sociais e ambientais em seu espaço de atuação. Com
efeito, a responsabilidade “corporativa” denota um processo por meio do qual a
305 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 196-197.306 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 197.307 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 197-198.308 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 198.309 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 199.
84empresa dirige os relacionamentos com os “stakeholders” ou interessados
capazes de interferir na licença para atuar, de maneira que a empresa admite
que ultrapassar as obrigações legais mínimas, investir no humano e no meio
ambiente pode significar diferencial competitivo.310
Como estratégia adotada, a responsabilidade “corporativa”, agrega
valor a longo prazo e representa a pragmática da responsabilidade social
revelando, ao contrário do que juridicamente se supõe, como o tema está
imbricado ao cotidiano das empresas. Logo, admitindo mediata ou imediatamente
mais destinatários e intermediários nas relações de produção e ao distribuir no
curso do processo de produção benefícios sociais e ambientais, a empresa
ultrapassa o denominado “setor privado” deixando de tão somente
“produzir/vender/comprar/pagar”.311
Responsabilidade social é a atitude que se revela em benefício da
sustentabilidade de pessoas, organizações e na utilização de tecnologias mais
favoráveis as políticas de inclusão social bem como relacionadas a melhoria da
qualidade de vida. Ademais, de outro lado, a busca do lucro a qualquer custo
deve ser corrigida pelas instâncias administrativas e jurisdicionais consoante os
ditames constitucionais, e tal metodologia exige um “desenlace pragmático” que
condicione uma ação responsável, sustentada e inclusiva.312
O alcance de tal função, que está associado ao direito empresarial,
ao princípio normativo relativo ao caso concreto e à relação de produção objeto
de incidência, ocorre por intermédio da movimentação responsável de
instrumentos jurisdicionais e administrativos tendo em vista o enfoque pragmático
ao lado da admissão da força de segmentos empresariais “enpowerment”, ao
contrário do pensamento nacional-desenvolvimentista segundo o qual apenas o
Estado pode guiar o processo de crescimento e controle da sociedade.313
O fato de a empresa ser bem sucedida afigura-se requisito prévio
para qualquer ação social, considerando a disfunção social acarretada por
empresas deficitárias que sucede uma prévia disfunção econômica, levada a
efeito pela desconsideração de dados elementares sobre o estabelecimento da
310 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 199-200.311 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 200.312 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 200-201.313 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 201.
85empresa como (suficiência de aporte, provisão de capital de giro etc.” ou até
mesmo pela intenção de fraudar o mercado), que são responsáveis pelo
encerramento das atividades de 14% a 20% das empresas no primeiro ano e de
95% passados cinco anos.314
A sustentabilidade constitui uma qualidade essencial da função
econômica e existencial da empresa e não de uma “função social da empresa”.
Com efeito, trata-se da característica de um processo que ao se prolongar no
tempo mantém um modelo favorável de qualidade, apresenta autonomia no
menor espaço de tempo possível, faz parte de uma rede de protagonistas
também sustentável, bem como proporciona a difusão de estratégias e resultados
considerando a harmonia das relações em sociedade.315
É acentuada a competitividade notadamente por conta da
globalização e a competição no mercado é vencida por empresas mais
conhecidas e compreendidas não como perseguidora de lucros, pura e
simplesmente, e sim de conteúdos éticos, de aumento auto-sustentado, com
sucesso nos negócios a longo prazo, que concorrem para o desenvolvimento
econômico e social, mantendo e atuando para um ambiente hígido e uma
sociedade estável, ao mesmo tempo em que realiza a responsabilidade social,
como co-autora do desenvolvimento da comunidade em que está inserta.316
Internamente considerada, a sustentabilidade se refere ao conceito
de atividade empresarial, limitada física e eticamente na dinâmica da organização
dos fatores de produção, ou seja, ao planejamento e administração da
incorporação empresarial na busca da reprodutividade de seus processos. Está
associada, externamente, ao conceito de inclusão referente ao grau de
universalização dos benefícios e resultados da empresa para trabalhadores,
colaboradores, coletividade e mercado.317
3 TUTELA JURISDICIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
314 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 202.315 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 203.316 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, ibidem.317 GEVAERD FILHO, J. L. Idem, p. 204.
86A obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth intitulada “Access to
justice: the worldwide movement to make rights effective”, traduzida para o
português simplesmente como “Acesso à Justiça”, trata-se de um marco na
efetivação dos direitos, o que por si só autoriza o seu estudo embora parcela de
seu conteúdo já constitua realidade nacional.
Os sistemas jurídicos não são perfeitos, todavia, é preciso identificar
para quem o Direito tem servido. O acesso à justiça significa a necessidade de
tutela jurisdicional estatal para todos e processo justo para todos, considerando
que os direitos previstos no ordenamento não são meras promessas e devem ser
materializados.318
A expressão “acesso à justiça” tem sido desenvolvida na medida da
evolução do processo civil. No início, marcante o prisma individual dos direitos, o
acesso à justiça como direito natural não carecia de tutela Estatal, de maneira
que o Estado não busca a conscientização dos jurisdicionados no tocante aos
direitos bem como não propicia a defesa necessária desses direitos. Ademais, o
acesso formal à justiça implica igualdade formal entre os litigantes. Aliás,
antigamente, as dificuldades financeiras existentes entre os contendores não era
considerada, marginalizando-se a realidade.319
Os direitos fundamentais necessitam ser efetivados, tendo lugar de
destaque o enfoque relacionado à proteção adequada e do acesso à justiça como
direito fundamental, de maneira que os juristas não podem permanecer
amarrados ao discurso dogmático; é necessário considerar a realidade
silenciada.320
O significado de efetividade não é preciso, podendo representar a
“igualdade de armas”, “a garantia de que a conclusão final depende apenas dos
méritos jurídicos relativos às partes antagônicas, sem relação com diferenças que
sejam estranhas ao Direito e que, no entanto, afetam a afirmação e reivindicação
dos direitos.”.321
A resolução da lide tem um alto custo, exigindo aparato Estatal além
de expressiva despesa com honorários. Aliás, no “Sistema Americano”, a
318 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça, p. 7-8.319 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 9-10.320 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 11-13.321 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 15.
87situação se agrava porque o vencido não está obrigado a pagar os honorários do
vencedor; as causas de menor valor são as mais intensamente afetadas pela
custos porque o custo pode exceder o valor pleiteado. Em muitos países, a
demora do processo é sensível, devido a inflação, de maneira que o custo do
processo tende a aumentar, o que pressiona os economicamente débeis a
desistir das ações ou aceitar acordos lamentáveis.322
A “possibilidade das partes” (Galanter) está relacionada com o
acesso efetivo, tendo em vista que certos litigantes possuem vantagens sobre
outros de difícil identificação. Com efeito, o poder econômico propicia a facilidade
em ajuizar ou responder uma ação e a expressão “capacidade jurídica” deve
estar relacionada com as possibilidades financeiras bem como com a ausência
de conhecimento jurídico apto a ensejar a reivindicação ou defesa dos direitos.323
Quanto à presença em juízo, pode-se distinguir duas espécies de
litigantes (Galanter), os “litigantes eventuais” (pouco presentes) e os “litigantes
habituais” (muito presentes). Os litigantes habituais possuem vantagens sobre os
litigantes eventuais: “1) maior experiência com o Direito possibilita-lhes melhor
planejamento do litígio; 2) o litigante habitual tem economia de escala porque tem
mais casos; 3) o litigante habitual tem oportunidade de desenvolver relações
informais com os membros da instância decisora; 4) ele pode diluir os riscos por
maior número de casos; e 5) pode testar estratégias com determinados casos, de
modo a garantir expectativa mais favorável em ralação a casos futuros”.324 A
solução da questão está relacionada a reunião de esforços para o
desenvolvimento de planos a longo prazo.
322 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 15-20. Consoante o art. 3º da Lei n. 1.060/50 queestabelece normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados: “A assistênciajudiciária compreende as seguintes isenções: I - das taxas judiciárias e dos selos; II - dosemolumentos e custas devidos aos Juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da justiça;III - das despesas com as publicações indispensáveis no jornal encarregado da divulgação dosatos oficiais; IV - das indenizações devidas às testemunhas que, quando empregados, receberãodo empregador salário integral, como se em serviço estivessem, ressalvado o direito regressivocontra o poder público federal, no Distrito Federal e nos Territórios; ou contra o poder públicoestadual, nos Estados; V - dos honorários de advogado e peritos. VI – das despesas com arealização do exame de código genético – DNA que for requisitado pela autoridade judiciária nasações de investigação de paternidade ou maternidade.(Incluído pela Lei nº 10.317, de 2001).Parágrafo único. A publicação de edital em jornal encarregado da divulgação de atos oficiais, naforma do inciso III, dispensa a publicação em outro jornal. (Incluído pela Lei nº 7.288, de 1984),”.323 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 22-25.324 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 25-26.
88A questão da legitimidade ativa e da falta de organização dos
titulares no tocante as direitos difusos, “fragmentados”, também representam
obstáculos ao acesso à justiça efetivo.325
As barreiras do acesso à justiça são mais notáveis nas causas de
menor conteúdo econômico e nas “individuais”, entretanto, a busca do acesso à
justiça efetivo é árduo porque a eliminação de alguns problemas pode significar a
intensificação de outros, como na hipótese de eliminação do advogado para
redução de custas que fatalmente acarreta a defesa precária dos interesses.326
Nos países ocidentais, pode-se inferir três estágios no tocante ao
acesso à justiça efetivo; a “primeira onda” é representada pela assistência
judiciária aos necessitados; a “segunda onda” está relacionada com a
representação dos direitos difusos e a “terceira onda”, que abrange as outras
duas vai muito além e denomina-se “enfoque de acesso à justiça”.327
O auxílio aos pobres já foi baseado num trabalho voluntário
prestado por advogados sem contraprestação munus honorificum, sem qualquer
intervenção estatal, todavia, entre 1919 e 1923, na Alemanha, o Estado passou a
retribuir os advogados prestadores de assistência judiciária, o mesmo ocorrendo
na França que passou, em 1972, a remunerar os advogados.328
O “sistema judicare” representa a possibilidade da prestação de
assistência judiciária gratuita a qualquer pessoa nos termos da lei, sendo os
advogados remunerados pelo Estado. No modelo britânico, constatada a
procedência econômica e da matéria de fundo, o beneficiado pode optar pelo
profissional por meio da consulta a uma extensa lista de advogados atraídos pela
vultosa retribuição.329
Apesar de combater os custos, o “sistema judicare” revela-se
insuficiente em outros aspectos, de maneira que os pobres (sem qualquer auxílio)
devem identificar seus direitos e buscar ajuda. Assim, o sistema tem servido às
325 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 26-28.326 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 28-29. Prevê a Lei n. 9.099/95 que dispõe sobreos Juizados Especiais Cíveis e Criminais: “Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos,as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valorsuperior, a assistência é obrigatória.327 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 31. Segundo o art. 134 da Constituição: “ADefensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe aorientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.”.328 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 31-35.329 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 35-37.
89matérias mais conhecidas do “leigo” (família e criminal), persistindo a dificuldade
no enfrentamento das organizações.330
O “sistema do advogado remunerado pelos cofres públicos” busca,
por meio de salas com localização na vizinhança, a defesa dos interesses dos
pobres (classe), compreendendo a conscientização dos direitos bem como a
defesa dos interesses em juízo por advogado.331
O modelo combinado entre o “sistema judicare” e o “sistema do
advogado remunerado pelos cofres públicos” pode ir além, como ocorreu na
Suécia que estendeu a assistência judiciária às classes médias bem como
concebeu de maneira concomitante previdência privada e assistência judiciária,
com vistas ao reembolso dos honorários do vencedor não assistido, de maneira a
beneficiar o adversário do litigante pobre.332
A prestação de assistência judiciária exige um expressivo número
de causídicos e valores vultosos, caso contrário, pobres serão os serviços
oferecidos. Ademais, ela não é capaz de solucionar a questão relativa às
pequenas causas, em razão da existência da sucumbência ou da natural aversão
por parte dos advogados.333
A “segunda onda” está relacionada a representação em juízo dos
interesses difusos porque o processo civil clássico não tolera a substituição
processual. O desenvolvimento das decisões e as alterações legislativas
apontam, no entanto, para a possibilidade de representação dos interesses
difusos, que exigiu reformulações no tocante ao papel do juiz, da citação, do
direito à audiência e da coisa julgada.334
Sob a influência da obra de Mauro Cappelletti, um grupo de juristas
brasileiros apresentaram o anteprojeto para defesa dos interesses
transindividuais (meio ambiente e patrimônio cultural) no I Congresso Nacional de
Direito Processual Civil no Rio Grande do Sul em 1983, com opiniões de Barbosa
Moreira no tocante às liminares.335
330 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 38-39.331 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 39-43.332 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 43-46.333 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 47-49.334 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 49-51.335 Participaram da elaboração: Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco, KazuoWatanabe e Waldemar Mariz de Oliveira Júnior MAZZILLI, Hugo Nigro. Tutela dos interessesdifusos e coletivos, p. 39.
90Baseado no original, novo anteprojeto foi debatido e melhorado no
Seminário Jurídico dos Grupos de Estudos do Ministério Público do Estado de
São Paulo, com a ampliação para a defesa de “qualquer interesse difuso” e a
introdução do inquérito civil, convertido na Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil
Pública).336
O parágrafo único do art. 81 do CDC conceitua os interesses
transindividuais:
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos destecódigo, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titularespessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos destecódigo, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titulargrupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a partecontrária por uma relação jurídica base;III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos osdecorrentes de origem comum.
O conceito de “interesses difusos” está intimamente relacionado
com o conceito de garantias institucionais. Com efeito, Cappelletti afirmou, em
caráter inédito, que o interesse difuso é aquele a um só tempo público e privado,
não sendo possível afirmar com relação a ele um dano suportado e um em
prejuízo ocasionado. No entanto, o CDC define os direitos difusos com apoio
exclusivamente na extensão subjetiva da lide (partes envolvidas) e não no seu
objeto, revelando-se estéril a distinção entre interesses coletivos e difusos
porquanto os efeitos da coisa julgada somente afetam os titulares da relação
jurídica material.337
Existem direitos difusos quando presentes as garantias institucionais
(proteção individual e coletiva determinável ou não) que não estão juridicamente
(demandas para a proteção do interesse difuso) nem economicamente (devem
representar utilidade para a coletividade) adstritas ao interesse individual. Além
disso, consoante Cappelletti, interesse difuso é aquele em busca de autor e por
isso é difuso e para a efetiva tutela dos interesses institucionais calha a inibição
inicial ou cessação da lesão.338
336 Participaram: Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nelson NeryJunior. MAZZILLI, H. N. Idem, p. 40.337 SALOMÃO FILHO, C. Op. cit., p. 64-67.338 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 69-71.
91Os interesses dos consumidores, em geral, não são interesses
difusos e esta afirmação de modo algum influencia o acesso à justiça porque as
“novas formas de tutela dos interesses individuais homogêneos” e as ações
coletivas constituem o mais eficiente instrumento de extensão do acesso à
justiça, como por exemplo as class actions limitadas em nosso direito as relações
de consumo.339
A tutela dos direitos difusos exige conhecimento de matérias fins
como ciências contábeis, economia, saúde, urbanismo. O Ministério Público nem
sempre oferece o suporte necessário e as agências públicas especializadas,
igualmente, não são adequadas porque tendem à proteção de interesses
organizados. O “Ombudsman do Consumidor” tem a finalidade de representação
dos direitos difusos desde a consultoria até o efetivo auxílio.340
“A técnica do procurador-geral privado” representa a permissão da
propositura de ações por parte dos cidadãos com o objetivo de atacar
irregularidades (ação popular), por outro lado, “a técnica do advogado particular
do interesse público” aponta para a necessidade identificação dos grupos,
impondo a ordenação e enrijecimento deles bem como a necessidade da
presença dos procuradores gerais organizacionais.341
A class action possibilita por meio de um indivíduo a representação
de uma classe, sem o empecilho da criação de uma organização, com efeito, há
a reunião de pequenas causas que aumentam o poder de negociação, face ao
montante da indenização pleiteada.342
A instituição do “advogado do interesse público” propicia a
representação dos grupos com os benefícios de uma instituição permanente.
Ademais, as sociedades de advogados do interesse público se diferenciam pela
matéria e tamanho bem como são suportadas, em geral, por contribuições de
natureza filantrópica e tendo sido alvo de ataques por conta da irresponsabilidade
no tocante aos interesses que representam.343
Surgida do êxito dos advogados do interesse público nos Estados
Unidos bem como das dificuldades financeiras enfrentadas na sua atuação, a
339 SALOMÃO FILHO, C. Idem, p. 72-73.340 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Op. cit., p. 51-53.341 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 55-60.342 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 60-61.343 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 62-64.
92“assessoria pública” assegura informação aos grupos permanentes, destacando-
se o Escritório de Assessoria Pública dos Estados Unidos que dispõe de
independência técnica e financeira, com a finalidade de proteger os interesses
dos usuários das ferrovias em juízo.344
A conjugação simultânea da “assessoria pública”, com a sociedade
de “advogados do interesse público” e com advogado público possibilita a
superação da questão da representação dos interesses difusos.345
A “terceira onda” “centra sua atenção no conjunto geral de
instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e
mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas”. Trata-se do chamado
“enfoque do acesso à justiça”. As duas primeiras ondas são indispensáveis
porém são insuficientes. O enfoque enseja uma gama de reformas legislativas,
como a busca da adaptação do processo civil à lide e a mediação, para apaziguar
relacionamentos.346
O direito à tutela jurisdicional não está circunscrito à obtenção de
uma sentença de mérito. A tutela deve ser adequada e o direito processual
constitui o instrumento para a efetivação do direito substancial. No entanto, o
procedimento ordinário clássico baseado na neutralidade do julgador e na busca
da certeza a ser declarada na sentença impede qualquer espécie de execução
em seu bojo. Este modelo está baseado na tutela dos direitos patrimoniais sendo,
por conseguinte, inapto a tutelar as demais situações existentes na sociedade347
A adequada e necessária tutela das situações existentes na
sociedade prevista no art. 5º inc. XXXV da Constituição exige um feixe de
processos (tutelas diferenciadas). Com efeito, no sentido horizontal, o
conhecimento pode ser pleno ou parcial, e no sentido vertical o conhecimento
pode ser exauriente, sumário ou superficial. A cognição parcial limita a alegação
de determinadas matérias devendo sempre passar pelo crivo do devido processo
legal substantivo.348
A limitação do conhecimento no plano vertical está relacionada aos
juízos de verossimilhança (probabilidade) e não de certeza (verdade) e a
344 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 64-65.345 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 65-67.346 CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Idem, p. 63-73.347 MARINONI, Luiz Guilherme. Efetividade do processo e tutela de urgência. p. 1-10.348 MARINONI, L. G. Idem, p. 11-16.
93cognição sumária busca tutelar um direito ameaçado não produzindo, em regra,
coisa julgada material. A cognição exauriente é, em princípio, sempre apta a dar
ensejo a coisa julgada material.349
Relacionado ao binômio “custo-morosidade”, o acesso à justiça
torna evidente a “falência” do processo civil clássico. A morosidade aliada à
desconsideração da cognição sumária (considerando um processo de
conhecimento universal) bem como uma inadequada execução de sentença
fizeram proliferar as ações “cautelares” tendentes a realizar uma espécie de
“sumarização processual”.350
349 MARINONI, L. G. Idem, p. 17-20. Baseado no direito líquido e certo, o mandado desegurança não admite dilação probatória, exceto no tocante a alegação de falsidade da provadocumental e representa a “técnica da cognição exauriente secundum eventum probationis”. É“um processo que tem o exame do mérito condicionado à existência de provas aptas a revelar acognição exauriente”. A improcedência do pedido não faz coisa julgada material consoante aSúmula 304 do STF. A ação monitória representa a “técnica da cognição exauriente por ficçãolegal conjugada com a cognição exauriente “secundum eventum defensionis” e visa evitar acognição plena e exauriente quando presente a verossimilhança. De outro lado, na técnica dostítulos executivos extrajudiciais a existência do direito é presumida, ou seja, optou-se por sacrificara segurança em nome da efetividade. MARINONI, L. G. Idem, p. 21-26.350 MARINONI, L. G. Idem, p. 27-t28.
94CONCLUSÃO
O pluralismo brasileiro autoriza a adoção do método hermenêutico
denominado “Constituição Aberta”, uma fórmula de organização do poder tendo
em vista a proteção e a eficácia dos direitos fundamentais. A “eficácia privada”
não se refere às garantias incapazes de afetar uma relação entre particulares,
excluindo de plano os direitos fundamentais estritamente voltados ao Estado.
Com relação aos fundamentos da vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais não há no Brasil determinação constitucional expressa. No
entanto, como ocorre em Portugal, a previsão constitucional não elimina o debate
em torno das teorias que negam bem como das que afirmam a “eficácia perante
terceiros” direta ou indireta.
Consoante o pensamento liberal clássico, os direitos fundamentais
dirigir-se-iam à disciplina de relações públicas tendo o Estado como parte. No
entanto, as agressões aos direitos fundamentais do cidadão não são originadas
exclusivamente pelo Estado. Com efeito, poderes não-estatais colocam em risco
a liberdade humana uniforme.
A questão central está na equação entre a proteção dos direitos
fundamentais e a autonomia privada que dá origem a posicionamentos que
priorizam um ou outro aspecto bem como autorizam a atuação mais incisiva ou
comportada dos juízes. A discussão sobre a matéria da eficácia perante terceiros
teve início com a Lei Fundamental de Bonn.
A definição de “empresa econômica” é indispensável para o
conceito jurídico porque o Direito se afigura um retrato da vida em sociedade e no
conceito de “empresa comercial” existe, sem sombra de dúvidas, conteúdo
econômico.
Ao empresário cabe combinar os seus bens ou do proprietário, a
força de trabalho do trabalhador ou a própria e o seu capital ou do capitalista nos
serviços produtivos da agricultura, indústria e comércio, organizando e
conduzindo a atividade, decidindo sobre a produção tendo em vista a demanda,
assumindo os riscos do empreendimento na busca do lucro.
95O sistema capitalista somente exige da empresa eficiência lucrativa
e que na persecução do lucro, o sistema empresarial total produza ou faça
circular bens ou serviços pautado pela livre concorrência. No entanto, não se
pode conceber que este sistema realize, à margem do controle público, justiça
social. O tema da função social é, por sua vez, controvertido.
É possível identificar pelo menos dois pontos de contato entre a
eficácia privada dos direitos fundamentais e a “função social da empresa”:
1) o primeiro considera a influência dos direitos fundamentais no
direito privado por intermédio do legislador (teoria da eficácia horizontal indireta
ou mediata), pressupondo a expressão “função social da empresa” como e
cláusula geral.
2) o segundo relaciona a eficácia direta ou imediata dos direitos
fundamentais, os deveres de proteção do Estado e a função social entendida
como “deveres positivos”.
No tocante à aplicação dos direitos fundamentais nas relações
privadas, o “como” representa uma questão de construção e o “em que medida”
uma questão de ponderação. A proteção dos direitos fundamentais reclama
ações de todos os poderes instituídos. Na tutela de interesses não subjetivados,
a imputação é difusa e não individual.
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