Teoria Crítica Da Empresa Ivanildo Figueiredo

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Ivanildo Figueiredo Doutor e Mestre em Direito (UFPE) Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) Teoria crítica da empresa 2015

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Interessantíssimo.

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Ivanildo Figueiredo

Doutor e Mestre em Direito (UFPE) Professor de Direito Comercial

da Faculdade de Direito do Recife (UFPE)

Teoria crítica da empresa

2015

Teoria crítica da empresa Ivanildo Figueiredo

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Figueiredo, Ivanildo

Teoria crítica da empresa / Ivanildo de Figueiredo Andrade de Oliveira Filho – Recife, 2015. Bibliografia 1. Direito Civil – Legislação – Brasil; 2. Direito Comercial - Brasil 3. Empresas – Leis e legislação – Brasil; I. Título

Índice para catálogo sistemático:

1. Direito: Direito de Empresa, Código Civil.

2015

Teoria crítica da empresa Ivanildo Figueiredo

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Esta obra é dedicada a Waldirio Bulgarelli, Fábio Konder Comparato e Fábio Ulhoa Coelho, pela contribuição ao direito comercial brasileiro.

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Prefácio

Talvez não exista outro ramo jurídico tão permanentemente envolto em questionamentos acerca de sua identidade e autonomia que o direito comercial. Já a profusão de nomes com os quais se apresenta (mercantil, empresarial, de empresa, dos negócios, etc) denota certa dificuldade de se encontrar no universo jurídico, diferenciando-se dos demais ramos. Por outro lado, a disciplina assumidamente considera ter o objeto mudado ao longo dos séculos: começou, na Idade Média, como o direito dos comerciantes reunidos em corporações; elegeu como foco a imprecisa noção de atos de comércio, no início da Idade Contemporânea; e, hoje, aponta a empresa como seu núcleo estruturador. Além disso, vez por outras, o direito comercial vê-se a defender sua própria sobrevivência enquanto ramo específico. Diferencia-se do direito civil, por meio de instrumentos menos formais e mais ágeis; vê o direito civil incorporar tais características para, em seguida, reivindicar absorvê-lo; diferencia-se, então, mais ainda, reforçando seus princípios e regras – num incessante e enfadonho movimento de “gato e rato”.

Confesso não saber exatamente o que motivaria esta constante e perturbadora insegurança do direito comercial. A importância de interpretação adequada das normas de direito comercial para o regular funcionamento da economia capitalista e para o atendimento das necessidades e querências de todos é inquestionável. O questionamento, no meio acadêmico, de suas especificidades apenas revela ignorância da realidade econômica e empresarial. No plano da atuação profissional, ninguém vacila: sucesso no trabalhar com questões de direito comercial pressupõe um mínimo de familiaridade com os negócios, instrumentos financeiros, contabilidade, economia etc. Quer dizer, não há razões para as hesitações e desconfianças no espírito dos comercialistas.

Mas se não tenho clareza acerca das causas motivadoras destas dificuldades a cercarem a identidade e autonomia do direito comercial, não titubeio em apontar a solução para elas: estudo, aprofundamento, ampliação e difusão da disciplina. Quanto

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mais os comercialistas se fizerem entender, mais confiantes estarão quanto à pertinência de seus conhecimentos. E se, em tais empenhos (estudo, aprofundamento etc), direcionarem a atenção para os fundamentos da disciplina, sua contribuição para a identidade e autonomia desta será ainda mais bem vinda e valiosa.

O livro que o leitor tem às mãos, de autoria do Prof. Dr. Ivanildo Figueiredo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco, foca diretamente a essência do direito comercial, do modo como hoje ele se compreende no Brasil e em alguns outros países de filiação jurídica romano-germânica: a teoria da empresa. Critica-a, num interessante esforço de aproximação das elucubrações teóricas às dobras da prática profissional. Critica-a, também, revelando as incongruências por assim dizer “internas”.

Integrante, desde a constituição em 2012, da Comissão de Juristas nomeada pela Câmara dos Deputados para o aperfeiçoamento do Projeto de Lei de Código Comercial, Ivanildo Figueiredo deu importantíssimas contribuições para este desiderato. Diversas disposições, assim como vários aclaramentos e melhorias de redação, incorporados ao longo do processo legislativo, nos campos do direito societário, cambiário, recuperacional e falimentar, são fruto de seu valioso empenho e envolvimento nos trabalhos. E, estando acompanhando de muito perto todo o evoluir do projeto, pode enriquecer como ninguém a reflexão crítica sobre a empresa, num contexto de antecipação de mudanças do direito comercial brasileiro que se avizinham.

Fundado em ampla e atualizada pesquisa e expresso com uma rara elegância no português, o Teoria Crítica da Empresa reúne todos os atributos para tornar-se referência no estudo da matéria, na literatura jurídica brasileira. Ainda que não se concorde com os resultados a que chega o autor, certamente não se poderá deixar de refletir sobre as muitas e percucientes questões que suscita.

Fábio Ulhoa Coelho

Professor Titular de Direito Comercial da PUC-SP

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Sumário

Apresentação ............................................................................................

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Introdução – As antinomias do direito de empresa no Código Civil ......... 11 1. A empresa como objeto do direito comercial .................................... 23 1.1. A economia e o processo civilizatório ................................................. 23 1.2. A gênese do direito comercial nas corporações de mercadores ....... 27 1.3. Importância dos costumes na formação do direito comercial ............ 32 1.4. A fase publicista das relações da empresa ......................................... 38 1.5. Análise econômica da empresa na teoria de Max Weber ................... 43 1.6. Ideologia e ética no capitalismo moderno ........................................... 49 1.7. A empresa na era da globalização ...................................................... 56 2. Codificação e descodificação do direito privado .............................. 66 2.1. Introdução ao problema da codificação ............................................... 66 2.2. Codificação e descodificação do direito privado no Brasil .................. 72 2.3. A unificação restrita do direito privado no Código Civil de 2002 ......... 79 2.4. Problemas metodológicos da codificação do direito privado .............. 85 2.5. O retorno ao problema da autonomia e a constitucionalização do

direito comercial .................................................................................. 88

3. O regime jurídico da empresa no Código Civil de 2002 ................... 100 3.1. Conteúdo e conexão histórica do regime do direito de empresa ........ 100 3.2. A desmercantilização da empresa no Código de 2002 ....................... 108 3.3. Concessões do legislador ao caráter comercial dos atos das

empresas ............................................................................................ 121

3.4. Principais contradições do regime do direito de empresa ................... 126 3.5. A tentativa de compilação e consolidação de normas defasadas no

direito de empresa .............................................................................. 132

3.5.1. A fonte da regulação do nome empresarial no Decreto 916/1890 ...................................................................................

133

3.5.2. Restauração da obrigatoriedade do registro de empresas e o conflito de sistemas normativos ................................................

137

3.5.3. A disciplina da sociedade dependente de autorização derivada do Decreto-Lei 2.627/1940 .........................................

141

3.5.4. Críticas às normas da contabilidade empresarial ...................... 146

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4. Conceitos fundamentais do direito de empresa .......................... 150 4.1. A empresa como categoria central do sistema ................................... 150 4.2. Do comerciante ao empresário ........................................................... 163 4.3. Conceito de empresário ...................................................................... 184 4.4. A sociedade empresária como modo de exercício da empresa

coletiva ................................................................................................ 203

4.5. Tipologia da empresa .......................................................................... 4.6. Transformação da empresa ................................................................ 4.7. A empresa individual de responsabilidade limitada .............................

212 239 246

4.8. O regime da microempresa e da empresa de pequeno porte ............. 4.9. O estabelecimento comercial e sua positivação no Código Civil ........

267 273

5. A unificação do direito das obrigações ............................................. 287 5.1. Pressupostos da unificação do direito das obrigações ....................... 287 5.2. Princípios e modalidades contratuais no Código de 2002 .................. 297 5.3. Aspectos diferenciadores da compra e venda mercantil ..................... 305 5.4. Contratos mercantis regulados pela legislação especial ..................... 313 5.5. A nova classificação dos contratos empresariais ................................ 320 6. A tentativa de unificação do direito societário .................................. 329 6.1. O regime societário no Código Civil de 2002 ...................................... 329 6.2. A sociedade simples como tipo societário genérico ............................ 339 6.3. Características e o modelo burocrático da sociedade limitada ........... 345 6.4. Principais entraves na regulação da sociedade limitada ..................... 361 6.5. Aplicação supletiva da lei das sociedades anônimas .......................... 367 6.6. A revisão necessária da sociedade limitada ....................................... 373

7. A renovação do direito comercial ....................................................... 377 7.1. Os problemas de adaptação do regime do direito de empresa à

realidade econômica brasileira ........................................................... 377

7.2. Dificuldades no âmbito do registro de empresas ................................ 387 7.3. Restrições científicas e didáticas no direito empresarial ..................... 390 7.4. O projeto de novo Código Comercial e sua justificação ...................... 393 7.5. O retorno metodológico aos princípios do direito comercial ................ 395 7.6. Redefinição das fronteiras do direito comercial, do direito civil e do

direito do consumidor .......................................................................... 399

8. Do direito comercial ao novo direito empresarial ............................. 402

Apêndice - O processo legislativo do Código Civil de 2002 ...................... 409

Referências ............................................................................................... 415

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Apresentação

O direito comercial brasileiro passou por uma significativa transformação a partir da vigência do Código Civil de 2002. Essa transformação somente é comparável com a introdução do próprio regime jurídico do comerciante pelo Código de Comércio do Império, em 1850. Durante mais de 150 anos, a atividade comercial foi disciplinada sob a concepção subjetivista do comerciante, pessoa física, como centro da regulação normativa. Todavia, a concepção objetivista dos atos de comércio também detinha posição auxiliar na definição da matéria comercial, especialmente na legislação complementar ao Código Comercial, nas dispisições do célebre Regulamento 737.

Devido à própria obsolescência natural do Código de 1850, diante das enormes transformações culturais, sociais e particularmente econômicas do final do século XIX e por todo o século seguinte, a atividade comercial passou a ser regulada muito mais pela legislação supletiva do que pelo Código Comercial. Surgiram, assim, normas que foram modernizando a disciplina da atividade dos comerciantes e das sociedades mercantis, a exemplo da regulação das sociedades por quotas de responsabilidade limitada,1 das sociedades por ações,2 da antiga lei de falências e concordatas,3 das leis de reforma bancária e do mercado de capitais,4 do registro público de empresas mercantis,5 das micros e pequenas empresas,6 da propriedade industrial,7 da proteção do consumidor8 e da defesa da concorrência.9

No âmbito da discussão da regulação da atividade econômica, os interesses que se manifestaram com maior predominância foram aqueles ancorados no

1 Decreto 3.708/1919. 2 Decreto-Lei 2.627/1940, depois substituído pela Lei 6.404/1976. 3 Decreto-Lei 7.661/1945, substituído pela Lei 11.101/2005. 4 Lei 4.595/1964, Lei 4.728/1965 e Lei 6.385/1976. 5 Lei 4.726/1965, reformulada pela Lei 8.934/1994. 6 Lei Complementar 123/2006, atualizada pela Leis Complementares 128/2008 e 147/2014. 7 Lei 5.772/1971, atualizada pela Lei 9.279/1996. 8 Lei 8.078/1990. 9 Lei 8.884/1994, revista pela Lei 12.529/2011.

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liberalismo econômico. Afinal, o sistema capitalista, de livre mercado, sempre foi adotado no Brasil, desde a Constituição de 1824. Nesse contexto, não evoluíram os debates para a revisão do Código Comercial e da sua legislação complementar, e os microssistemas normativos continuaram a predominar na regulação da atividade econômica, em franco processo de descodificação.

A empresa, conceito desenvolvido pela teoria econômica, não representava uma instituição do direito comercial, como objeto de regime próprio. Na legislação trabalhista, a empresa sempre foi definida e reconhecida como elemento relacional, sujeito de direitos e obrigações, a partir do artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho: “Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”. Assim também era referida e definida pelas normas tributárias. Somente a partir do Código Civil de 2002, que revogou a primeira parte do Código Comercial de 1850, é que a empresa passa a ser objeto central da regulação da atividade econômica, agora pelo direito de empresa, ou direito empresarial, adotado, por parte da doutrina, como nova denominação científica do antigo direito comercial.

Contudo, o regime do direito de empresa, apesar da aparente modernidade dos conceitos e do novo sistema normativo, foi introduzido no Brasil de modo artificial, por mera reprodução e importação do Código Civil italiano de 1942, sem respeitar a construção da nossa rica experiência mercantil nos últimos anos. Essa é a conclusão que resultará deste trabalho, que desenvolve uma abordagem crítica ao investigar as antinomias e contradições desse aparentemente novo regime do direito de empresa.

Grande parte dessas contradições pode ser debitada à excessiva demora na tramitação do Código Civil de 2002 no Congresso Nacional, por quase três décadas. E tal defasagem temporal, em uma área de regulação normativa altamente dinâmica e competitiva, como a atividade comercial, ainda mais influenciada pelas transformações aceleradas da globalização econômica do final do Século XX, está a exigir a revisão de conceitos, princípios e normas do direito de empresa. Na análise crítica dessa defasagem legislativa, reside o objeto central do presente trabalho. Daí o seu título: teoria crítica da empresa.

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Introdução

As antinomias do direito de empresa no Código Civil

O estudo do fenômeno econômico e dos seus agentes produtivos representa tema da mais alta relevância para a ciência do direito. A regulação da atividade econômica pelo direito sempre esteve na pauta dos estudos e das pesquisas que buscaram, sob diversas concepções e abordagens, explicar o modo como o sistema de direito positivo apreende esse fenômeno e passa a elaborar regras destinadas a disciplinar, direta e indiretamente, as atividades produtivas das empresas e dos entes econômicos no mercado.

Para o direito, as relações econômicas situam-se em esfera conceitual de efetiva concreção. Sem embargo, a economia, no contínuo processo de produção e circulação de riquezas, não depende, apenas, da atuação da “mão invisível do mercado”, como em certo momento da história assim foi defendido pela doutrina do liberalismo econômico, mas de complexos fatores sociais, políticos, culturais e ideológicos que interferem nesse processo.

No âmbito da normatividade da empresa, como agente econômico essencial da sociedade moderna, este trabalho situa o seu objeto. Nessa perspectiva de investigação científica, a empresa será analisada como instituição jurídica desde múltiplos ângulos, com diversos modos de apreensão dessa organização destinada à exploração de atividade econômica. Daí que o conceito de empresa deve ser estudado tanto na perspectiva da teoria econômica, como das ciências da administração, da sociologia, da história, e claro, como neste estudo, do próprio direito.10

10 Um dos mais famosos estudos analíticos da empresa no direito comercial, sob a perspectiva dos seus múltiplos ângulos, encontra-se no célebre ensaio intitulado Perfis da Empresa, de Alberto Asquini. Nesse estudo, Asquini analisa a empresa como um fenômeno jurídico-econômico poliédrico,

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A ideia da empresa para o direito, sem embargo, ultrapassa o âmbito da dogmática jurídica. O conceito de empresa não foi elaborado pelo direito, e sim pela teoria econômica, mas a ciência do direito apropriou-se de uma construção histórico-econômica para moldar a forma e a disciplina de regulação da empresa, em cada sistema jurídico.

Através das empresas, importante de plano reconhecer, as pessoas satisfazem todas as suas necessidades de consumo, das mais elementares, como o teto que habitam, o alimento, o vestuário, o mobiliário, os medicamentos, até as necessidades mais complexas da vida moderna, como os automóveis, telefones celulares, computadores, os equipamentos eletrônicos, os perfumes, as joias, os objetos de adorno da nossa residência. Esta relação de dependência das empresas para a satisfação das nossas necessidades de consumo existe desde as mais remotas eras, quando o comércio era exercido pelos feirantes e mercadores.

As empresas realizam o pagamento dos salários e a subsistência da grande massa de trabalhadores, transferindo rendimentos que retornam ao mercado sob a forma de relações de consumo. São as empresas que contribuem, de modo direto e indireto, para a própria manutenção financeira do Estado, porque respondem pelo recolhimento dos tributos sobre os seus resultados e pela produção de riquezas que também serão apropriadas, em um momento subsequente, pela atividade fiscalista estatal.11

que somente pode ser compreendida se estudada sob quatro perfis: perfil subjetivo, a empresa na perspectiva do empresário; perfil funcional, a empresa como atividade empresarial; perfil patrimonial ou objetivo, a empresa como patrimônio aziendal e como estabelecimento; e perfil corporativo, a empresa como instituição humana hierarquicamente estruturada, como adiante será explorado neste trabalho. (Alberto Asquini, Perfis da Empresa, tradução de Fábio Konder Comparato, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo, RT, nº 104, outubro/dezembro 1996, p. 109/126). 11 Em passagem clássica, Fábio Konder Comparato assim destacou a grande importância da empresa na sociedade contemporânea: “Se se quiser indicar uma instituição social que, pela sua influência, dinamismo e poder de transformação, sirva como exemplo explicativo e definidor da civilização contemporânea, a escolha é indubitável: essa instituição é a empresa. É dela que depende, diretamente, a subsistência da maior parte da população ativa deste país, pela organização do trabalho assalariado. É das empresas que provém a grande maioria dos bens e serviços consumidos pelo povo, e é delas que o Estado retira a parcela maior de suas receitas fiscais. É em torno da empresa, ademais, que gravitam vários agentes econômicos não assalariados, como os investidores de capital, os fornecedores, os prestadores de serviços”. (A Reforma da Empresa, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo, Revista dos Tribunais, nº 50, abril/junho 1983, p. 55).

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O desenvolvimento tecnológico, com efeito, sempre esteve intimamente vinculado e dependente das atividades mercantis, porque são as empresas que, atuando no ambiente competitivo, aplicam vultosos recursos em novos inventos, novas fórmulas e sistemas produtivos, e assim buscam, cada vez mais, superar a concorrência, visando conservar e ampliar a sua clientela, e atingir índices crescentes de produtividade e lucratividade.

A empresa, a rigor, não é produto do sistema econômico de mercado, mas é a própria essência e razão de ser desse sistema, sua principal instituição. O processo de reprodução capitalista é a forma particular de manifestação da atividade econômica, que somente é possível e se viabiliza a partir da atuação das empresas e dos empresários no ambiente de mercado.

A organização econômica, estruturada a partir da divisão do trabalho e da mobilização de capitais, possibilita que as pessoas satisfaçam as suas demandas por bens e serviços, trocando riquezas excedentes disponíveis pelas “parcelas da produção alheia de que tiver necessidade”.12 Em virtude dessa constatação, Adam Smith considerava que “todo homem subsiste por meio da troca, tornando-se de certo modo comerciante; e assim é que a própria sociedade se transforma naquilo que adequadamente se denomina sociedade comercial”.13 A sociedade comercial a que Adam Smith se refere é a própria dependência da sociedade civil dessas relações de troca, na medida em que as pessoas somente podem satisfazer suas necessidades de consumo através de transações mercantis.

D’outro ângulo mais restrito e específico, a assim denominada sociedade comercial representava e ainda hoje representa, na perspectiva formal, o principal modo de exercício da empresa, ao reunir, em uma configuração jurídico-organizacional, pessoas e capitais para a exploração de determinada atividade econômica, com caráter profissional e finalidade lucrativa. A sociedade comercial se expressa como medida da própria organização da sociedade em um amplo sistema de trocas, denominado mercado, bem como, na sua específica redução formal, como

12 Adam Smith, A Riqueza das Nações, São Paulo, Abril Cultural, 1983, vol. I, p. 57. 13 Adam Smith, A Riqueza das Nações, cit. p. 57.

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tipo característico e apto para o exercício da atividade empresarial, através, por exemplo, das sociedades anônimas.

Portanto, além de servir como instrumento que viabiliza a produção e a troca de bens, mercadorias e serviços, a empresa é também um dos principais meios de acumulação e de distribuição de riquezas, dependendo o seu êxito, destarte, da iniciativa e da habilidade mercantil dos capitalistas que a constituíram e que assumiram o risco do negócio.

As empresas existem, precisamente, para viabilizar o sistema de trocas na sociedade, de intercâmbio de ações e relações econômicas direcionadas à reprodução do capital. No decorrer dos séculos, a atividade empresarial foi se especializando, tornando cada vez mais complexas as suas operações, gerando segmentos altamente desenvolvidos, como nas áreas das finanças, do mercado de capitais e da tecnologia, importando e introduzindo conceitos, métodos e procedimentos somente acessíveis, em certos casos, aos níveis superiores de conhecimento técnico especializado.14

Sob a perspectiva histórica, considerava Karl Marx, na sua análise crítica do capitalismo, que o conjunto das relações de produção e de troca, que ocorrem necessariamente no âmbito das empresas, representava “a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se elevam as superestruturas jurídica e política e às quais correspondem determinadas formas de consciência social”.15 Partindo dessa concepção, a doutrina marxista entendia que o direito, que neste aspecto manifestava-se sob a forma das relações de propriedade, era determinado pelo fator econômico, ou seja, o direito seria apenas um instrumento de proteção dos interesses das

14 Sobre a importância da empresa no âmbito do seu desenvolvimento histórico, observa Arnoldo Wald: “A evolução da empresa constitui, na realidade, um elemento básico para a compreensão do mundo contemporâneo. Do mesmo modo que, no passado, tivemos a família patriarcal, a paróquia, o Município e as corporações profissionais, que caracterizaram um determinado tipo de sociedade, a empresa é, hoje, a célula fundamental da economia de mercado. Já se disse, aliás, que a criação da empresa moderna representa, na história da humanidade, uma mudança de civilização tão importante quanto o fim do estado paleolítico, ou seja o momento em que o homem deixou de viver exclusivamente da caça para se dedicar à agricultura, abandonando o nomadismo para se fixar na terra”. Arnoldo Wald, Comentários ao novo Código Civil - Livro II – Do Direito de Empresa, Vol. XIV, Sálvio de Figueiredo Teixeira, Coordenador, Rio de Janeiro, Forense, 2005, p.9/10. 15 Karl Marx, Para a crítica da economia política, São Paulo, Abril Cultural, 1982, p. 70.

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empresas e dos empresários capitalistas como classe dominante, na condição de proprietários do capital e dos meios de produção.

Nessa ordem de ideias, a empresa representa objeto essencial ou fundamental tutelado pelo direito, considerando que a estrutura econômica da sociedade civil é diretamente dependente da atividade empresarial para a própria afirmação e justificação existencial do sistema capitalista, em virtude de sua função primordial de promover a produção e a circulação de bens e riquezas. Em suma, a teoria marxista considera que, historicamente, a economia e a própria civilização sempre dependeram, para a sua própria existência como organização humana, da atividade produtiva das empresas.16

Estando o sistema econômico determinado pelas concepções e institutos de índole ou natureza mercantil, o capitalismo deve ser considerado como o modo de produção dominante e quase exclusivo dos atuais sistemas político-estatais, particularmente a partir da derrocada do regime comunista da Rússia soviética e dos países do leste europeu, simbolizada, de modo emblemático, pela queda do muro de Berlim, em 1989. A partir desse marco histórico, representado pela supressão do regime comunista de produção estatal, que possibilitou a consolidação do processo de globalização e de internacionalização da economia, ressalta dessa realidade o fato de que as empresas comerciais, entidades capitalistas por natureza, permanecem como as unidades matrizes ou nucleares das transações efetuadas através dos negócios mercantis e dos processos resultantes, direcionados para a circulação e acumulação de riquezas.

Até mesmo na China, ainda politicamente submetida, neste século XXI, ao regime comunista de partido único, o modo de produção ocidental e do livre comércio vem sendo adotado em áreas territoriais restritas, com ênfase na manufatura de produtos para exportação. Este fato propiciou o surgimento de uma nova classe de

16 Ao destacar a importância histórica da empresa como base fundamental do direito comercial e das transformações progressivamente introduzidas na sociedade contemporânea, em razão da evolução da economia, até alcançar o estágio atual, Waldirio Bulgarelli observava que “o fulcro básico gerador de todas as transformações ocorridas e em devir é a empresa, tipo de instituição econômica que, gerada embrionariamente no bojo da Revolução Industrial, ampliou-se desmensuradamente até dominar o panorama da economia atual” (A Teoria Jurídica da Empresa, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p. 2-3).

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proprietários capitalistas, situação inimaginável poucas décadas atrás, sob a doutrina do livro vermelho de Mao Tsé Tung.

Seria também igualmente improvável pensar, ao final do século XX, em uma Rússia capitalista, dominada por grandes corporações empresariais, sendo a Rússia o berço da revolução socialista de 1917, repositório experimental da ideologia marxista, implementada a partir da liderança de Vladimir Ilitch Lenin, teórico de reconhecido valor, em período de grande turbulência social, marcado pela revolução comunista do proletariado e por duas grandes guerras mundiais.17

Com a abertura propiciada pela glasnost e pela política da perestroika de Mikail Gorbachev, no curto período de 1986 a 1990, o regime soviético de economia estatal entrou em colapso, esgotado pelos imensuráveis investimentos bélicos na era da guerra fria entre o ocidente e os países socialistas do leste europeu. A partir de então, o sistema da economia de mercado passa a dominar, progressivamente, no mundo globalizado. Através de processo acelerado e mesmo improvisado de privatização, as empresas antes controladas pelo Estado soviético foram transferidas para a iniciativa privada, com todos os percalços e dificuldades inerentes a uma economia que passou, no início do século XX, diretamente do regime feudal do czarismo para o regime socialista, muito pouco havendo convivido com o sistema capitalista. Mesmo assim, procurando reproduzir os modelos empresariais em voga na Europa, a Rússia vem se adaptando ao sistema capitalista moderno, passando a reconhecer a empresa privada como agente fundamental para a reorganização da sua economia.

A figura da empresa, elemento motriz do desenvolvimento econômico, assumiu, assim, progressivamente, posição das mais relevantes e estratégicas na sociedade contemporânea. E tal realidade passou a exigir que a ciência do direito viesse a conferir aos agentes econômicos a mesma importância que, em outros

17 Entre os anos de 1914, com a eclosão da primeira guerra mundial (1914-1918), passando pelo ano de 1917, com a revolução dos sovietes na Rússia, até o ano de 1945, quando terminou a Segunda Grande Guerra (1939-1945), o mundo esteve submetido a um intervalo de mais de trinta anos de instabilidade política e social, que interferiu, fortemente, na atividade econômica. Subordinada ao conflito das ideologias, a atividade econômica mundial estava influenciada e direcionada, de modo dominante, por todo esse período histórico, para atender às necessidades da indústria de material bélico e dos fornecedores de matérias-primas e materiais estratégicos. As guerras da Coréia (1950-1953) e do Vietnã (1955-1975) mantiveram, até a queda do Muro de Berlim (1989), o antagonismo ideológico entre capitalismo e socialismo, entre liberdade de empresa e dirigismo estatal.

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momentos históricos, reconheceu aos institutos jurídicos herdados do direito romano, do direito canônico e dos sistemas civilistas da França e da Alemanha, como observado, por exemplo, nos institutos clássicos da propriedade privada e na teoria das obrigações.

Como marca característica, cabe observar que o modo capitalista de produção assenta-se no princípio do livre mercado e na ideia de autorregulação ou autocomposição de interesses, através de uma teia contratual em que as empresas são os principais agentes e, ao mesmo tempo, representam o objeto fundamental da tutela estatal. Esse regime de autorregulação exige, logicamente, a atuação de profissionais e operadores do direito, como advogados, consultores jurídicos, notários e árbitros privados, na elaboração e mediação de contratos mercantis, aplicando conhecimentos com graus variáveis de complexidade técnica. A autorregulação ou autocomposição de interesses mercantis compreende conceitos, elementos e instrumentos jurídicos que são desenvolvidos de modo empírico, a partir das demandas das empresas e do mercado, preferentemente com mínimo grau de intervenção estatal. A experiência, a prática, os usos e costumes mercantis, tal como sempre ocorreu no direito comercial, desde sua origem, situada nas corporações de mercadores do século XIV, continuam a influenciar e a determinar o conteúdo dos contratos, negócios e das relações comerciais.

A doutrina do liberalismo econômico sempre adotou como um dos seus pilares fundamentais a tese de que o Estado deve intervir o mínimo possível na atividade econômica. Uma das modalidades mais representativas de intervenção do Estado na economia revela-se através da função legislativa. Desde o mercantilismo consolidado no decorrer do século XVI, o Estado sempre editou normas positivas destinadas a regular as atividades e as relações empresariais. Nesse contexto, os dogmas liberais propugnam um mínimo de legislação, para que possa existir um maior grau de liberdade contratual nas atividades das empresas privadas entre si e dentro do mercado.

Contudo, a atividade econômica, por ser de relevante interesse público e pilar de sustentação da sociedade, principalmente nos países periféricos, de economia subdesenvolvida ou em fase de desenvolvimento, como no Brasil, deve ser

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condicionada e estar orientada a partir de legislação estruturada e compatível com os interesses sociais das políticas públicas. Assim, se por um lado, uma corrente teórica entende que o Estado deve intervir de modo mais efetivo, direto e concreto na regulação da atividade econômica, visando o bem comum e o interesse público, por outro lado, a doutrina do liberalismo econômico é refratária a qualquer modo ou modelo de ingerência do Estado na economia, ao considerar que o mercado deve se regular por si próprio.

A atuação das empresas e suas relações no mercado, para a doutrina liberal, deveriam depender, apenas, da lei da oferta e da procura, dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, da competição entre as empresas, na busca incessante da maximização dos seus lucros, como resultante de outro princípio fundamental presente no direito positivo, o da garantia e proteção da propriedade privada econômica (Constituição Federal, art. 170, inciso II).

Posicionando seu campo de estudo a partir desse amplo contexto econômico, o presente trabalho persegue como objeto de investigação, como diretriz de avaliação da normatividade e do grau de intervenção legislativa do direito de empresa em nosso País, a análise dos possíveis entraves e dificuldades que o Código Civil de 2002 vem causando na organização jurídica e na dinâmica das atividades empresariais no Brasil. Em razão da importância da atividade da empresa, do regime a ela deferido pelas normas constitucionais de ordenação do sistema econômico, e da introdução do regime do direito de empresa pelo Código Civil de 2002, a matéria sob enfoque, por si e em si, revela a importância do estudo científico a ela dedicado.

Sob o ponto de vista da função econômica e social da empresa, resta justificada a importância do tema explorado, que tem por finalidade, como visto, investigar, sob a perspectiva dogmática, a partir das normas da Constituição da República de 1988, do Código Civil de 2002 e da legislação comercial supletiva, o modo como o ordenamento de direito positivo brasileiro define a empresa, como ele passou a disciplinar as relações negociais econômicas e como, especialmente, as normas do Código Civil poderão dificultar ou entravar, sob o aspecto burocrático, o normal desempenho das atividades empresariais no regime da economia de mercado.

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Partindo dessa orientação, a pesquisa ora desenvolvida explora, objetivamente, o conceito de empresa na perspectiva da sua evolução no direito contemporâneo, a forma de organização da atividade empresarial e as relações dinâmicas de contratação mercantil no ordenamento jurídico brasileiro. Em virtude da tentativa de unificação do direito privado, tal como proposto e tentado pelo legislador do Código de 2002, especialmente nas áreas do direito das obrigações e do direito societário, procura-se, aqui, destacar e explorar os problemas e dificuldades que, inevitavelmente, poderão prejudicar a normalidade das atividades negociais, em virtude de uma intervenção legislativa defasada dos conceitos doutrinários e jurisprudenciais. E essa intervenção legislativa foi promovida, sem embargo, de modo inteiramente artificial, sem considerar as peculiaridades, a prática, os costumes, os usos mercantis e a evolução histórica do direito comercial em nosso país.

Diante da revogação, pelo Código Civil de 2002, de toda a parte primeira do Código Comercial de 1850, que permaneceu em vigor por mais de século e meio, influenciado pelo Código Comercial francês de 1807, as normas que até então disciplinavam as atividades relativas aos comerciantes, às sociedades comerciais, aos atos de comércio e às obrigações mercantis, foram substituídas por esse novo regime jurídico de ordenação da atividade econômica das empresas. E esse novel regime provocou, e continuará provocando, profundas modificações na consciência jurídica empresarial e nos padrões doutrinários e conceituais até então adotados no Brasil.

O Código Civil de 2002, no campo do direito de empresa, adotou regime normativo análogo ou quase idêntico ao disciplinado pelo Código Civil italiano de 1942, o qual constitui a sua base referencial dogmática.18 Assim, ao transportar, praticamente sem modificações de maior relevância, as regras do direito de empresa aplicáveis à realidade da Itália, em meados do século XX, para o nosso sistema de direito positivo em pleno século XXI, com um atraso de 60 anos, tais alterações estão a comprometer a própria lógica interna do ordenamento nacional de direito positivo,

18 Na opinião de Fábio Ulhoa Coelho, o Código Civil italiano de 1942 disciplinava “tanto a matéria civil como a comercial, e a sua entrada em vigor inaugura a última etapa evolutiva do direito comercial nos países de tradição romanística. É fato que a uniformização legislativa do direito privado já existia em parte na Suíça, desde 1881, com a edição do código único sobre obrigações, mas será o texto italiano que servirá de referência doutrinária porque, embora posterior, é acompanhado de uma teoria substitutiva à dos atos de comércio”. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, Saraiva, São Paulo, 15ª edição, 2011, p. 39).

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diante da constatação da evidente incompatibilidade conceitual ou antinomia entre o regime do direito de empresa e o regime jurídico mercantilista até então adotado no Brasil, regime este que ainda permanece forte e vigente na legislação comercial não codificada, especialmente nos campos das sociedades por ações, dos contratos mercantis e da recuperação de empresas e falência.

Sob o aspecto hermenêutico, o objeto do presente estudo tem como proposta realizar uma análise comparativa e prospectiva das normas constantes dos artigos 966 a 1.195 do Código Civil de 2002, e da própria concepção resultante do instituto da empresa, visando discorrer sobre os principais efeitos práticos que tais modificações estão provocando no direito positivo brasileiro. E assim será buscado, aqui, demonstrar que, em face das antinomias normativas apontadas, tais modificações estão gerando uma situação de concreta dificuldade de interpretação e de conciliação dessas regras do direito de empresa, diante das demais normas destinadas à regulação da atividade comercial, que não foram tocadas nem alteradas pelo Código Civil de 2002.

O objeto explorado neste estudo encontra-se, pois, circunscrito ao âmbito dogmático-normativo e à análise das regras jurídicas e textos legais que passaram a regular a atividade das empresas no nosso país a partir do Código Civil de 2002, isto no que concerne aos seguintes institutos básicos do direito comercial:

a) conceito de empresário; b) estabelecimento comercial ou empresarial; c) obrigações e contratos empresariais; d) direito societário: princípios gerais; sociedade empresária; a nova

sociedade limitada.

Com efeito, em relação ao seu objeto, este trabalho pode parecer, à primeira vista, bastante amplo e ambíguo quanto ao seu conteúdo e à extensão da proposta investigativa, por abranger praticamente todas as normas do Código Civil de 2002 que tratam do direito de empresa. Todavia, tal amplitude é inicialmente necessária, diante da visão dominante da empresa como fenômeno econômico-social, regulado pelo

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direito sob diversos enfoques de conteúdo, do modo como exposto por Alberto Asquini no seu histórico ensaio intitulado “Os perfis da empresa”.19

Em termos metodológicos, a empresa pode e deve ser investigada em razão da matéria comercial afeta à execução do seu objeto, assim como da forma jurídica que ela adota, através da sua organização como empresa individual ou sociedade empresária. A empresa compreende, ao mesmo tempo, como objeto de investigação científica, tanto forma como matéria, que se encontram indissoluvelmente relacionadas entre si. A forma é o modo pelo qual a empresa é organizada para a consecução dos seus fins econômicos. A forma da empresa é variável, podendo ser definida a partir da figura do empresário individual, ou adotar a espécie de sociedade limitada, até atingir o ápice estrutural da organização da empresa, representada pela sociedade anônima, construção máxima da ciência do direito e da dogmática jurídica no campo do direito comercial. Através da sua forma juridicamente definida, é que a empresa viabiliza e realiza o seu objeto, como instrumento do exercício da sua função econômica. A matéria é o conteúdo da atividade empresarial, da experiência empírica mercantil, que se manifesta no modo como a empresa desempenha sua função produtiva, determinada a partir dos princípios e normas constitucionais que regulam a organização econômica, tal como contido, especificamente, nos artigos 170 a 174 da Constituição de 1988.

Reconhecendo que a disciplina jurídica da atividade empresarial tem o seu fundamento superior de validade nas normas da Constituição positiva, este estudo, além de adotar uma postura crítica diante do novo direito de empresa, deverá também interpretar as disposições desse regime a partir das normas e princípios constitucionais. E, assim, o trabalho deve seguir a visão teórica do neoconstitucionalismo, de construção interpretativa das novas regras jurídicas, de modo a, como propõe Gustavo Tepedino, “retirar do elemento normativo todas as suas potencialidades, compatibilizando-o, a todo custo, à Constituição da República”.20 A partir dessa visão, o estudo do conteúdo material da empresa, em face das normas do Código Civil de 2002 e da Constituição de 1988, irá revelar a primeira antinomia

19 Alberto Asquini, Os perfis da empresa, cit., p. 109 20 Gustavo Tepedino, Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002, in Temas de Direito Civil, Tomo II, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 3.

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que se pode objetivamente constatar nesse novo regime jurídico, diante da tentativa do legislador de suprimir o caráter mercantil da empresa, o qual sempre foi corolário ou pressuposto natural, determinante da atividade empresarial e do comércio.

O estudo aqui delineado, portanto, destina-se a atingir objetivos específicos situados no âmbito da hermenêutica e da análise das normas jurídicas que regulam a atividade empresarial, constantes do Código Civil de 2002 e da legislação comercial extravagante. Nesse contexto, este trabalho irá tomar, como pressuposto inicial, a análise do processo de transição do regime do comerciante e dos atos de comércio, sob a ótica da dogmática mercantil tradicional, para o regime do empresário e do direito de empresa.

Considerando o âmbito da pesquisa científica, esta investigação deve ir mais além, na medida em que pretende demonstrar a evidente incompatibilidade e as contradições presentes entre o regime normativo do direito comercial, consolidado em nossa dogmática jurídica, na doutrina e na jurisprudência do nosso país, em comparação com as disposições constantes do regime do direito de empresa introduzido, de modo artificial, pelo Código Civil de 2002.

Adotando tal concepção, este livro não tem, por óbvio, a pretensão de comentar e analisar cada uma das disposições do Código Civil que regulam o direito de empresa (artigos 966 a 1.195). A proposta de pesquisa e investigação dogmática destina-se, precisamente, a apontar as incongruências, distorções e incompatibilidades intrassistemáticas do atual e vigente regime normativo, frente às demais normas do direito comercial ou empresarial que, em muito maior profusão e quantidade, continuarão a regular a atividade econômica no âmbito do nosso ordenamento de direito positivo.

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Capítulo 1

A empresa como objeto do direito comercial

1.1. A economia e o processo civilizatório; 1.2. A formação do direito comercial nas corporações de mercadores; 1.3. Importância dos costumes mercantis na regulação do direito comercial; 1.4. A fase publicista das relações da empresa; 1.5. Análise econômica da empresa na teoria de Max Weber; 1.6. Ideologia e ética no capitalismo moderno; 1.7. A empresa na era da globalização.

1.1. A economia e o processo civilizatório

Desde a origem da civilização, podemos observar uma realidade pendular, na qual o regime econômico apresenta-se com variações ou tendências oscilantes, ora pendente entre o intervencionismo estatal em um extremo, ora, pendendo no extremo oposto, em que prevalece liberdade econômica como doutrina dominante e determinante do processo de produção.

Enquanto no Egito antigo a atividade econômica estava submetida a rígido controle do Estado, sob a figura onipresente e divina do faraó, na Grécia as ideias e concepções da racionalidade do pensamento humano e da origem da democracia, aplicadas aos negócios, facilitavam uma maior liberdade na exploração do comércio marítimo no Mar Mediterrâneo.21 Essa realidade pendular reproduziu-se ao longo da história, na Idade Média, do corporativismo privado na fase feudalista, que se contrapôs ao mercantilismo dos Estados absolutistas do século XVI, até alcançar, no início do século XX, o ápice da crise entre os modelos econômicos antípodas e

21 Walter Alvares, Curso de Direito Comercial, Belo Horizonte, Sugestões Literárias, 6ª edição, 1982, p. 64.

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aparentemente incompatíveis entre si, do comunismo socialista e do capitalismo liberal.

A sociedade, em todo o decorrer do processo civilizatório, sempre esteve relacionada e dependente da sua base de sustentação econômica. Desde que o homem passou a aprovisionar as sobras da colheita ou da caça, a fabricar utensílios, armas e roupas, com o couro e as peles dos animais, e utilizou, em primeiro momento, o mecanismo de escambo e, em segundo momento, a troca desses bens por uma medida de valor, desde esse tempo, segundo Friedrich Engels, passou a existir a propriedade privada e o comércio.22

A própria expressão comércio deriva da fusão ou junção das palavras comutatio e mercium,23 ou seja, decorre da comutação ou troca de mercadorias entre duas pessoas, sendo uma a que detém a coisa de que a outra necessita, diante de outra pessoa que procura adquirir a propriedade da coisa mediante o pagamento de uma medida de valor aceita por ambas as partes. A lei da oferta e da procura representa, nessa perspectiva, uma das mais antigas normas costumeiras da sociedade humana.

Aristóteles afirmava que “o comércio é a arte de ficar rico, ganhando dos outros”, e que, por isso, “essa forma de ganhar dinheiro é de todas a mais contrária à natureza”.24 Todavia, a sociedade humana, desde os primórdios da civilização, jamais prescindiu da presença de pessoas que, assumindo a iniciativa e desempenhando atividades relacionadas à agricultura, criação animal, pesca, extração mineral, artesanato, construção, fabricação, transporte e comércio de bens, exerceu uma participação que, historicamente, revelou-se fundamental para a própria subsistência social.

Neste ponto inicial, impende reconhecer que a sociedade sempre se demonstrou dependente da atividade mercantil, situação em que a figura do mercador,

22 Friedrich Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 3ª edição, 1977, p. 179. 23 A expressão comércio é originária do latim commercium, derivado de cum (preposição), que significa troca, ou abreviatura de comutatio, e merx (mercadoria), sendo definido originariamente por Sigismondo Scaccia no brocardo “commercium est quasi commutatio mercium”. João Eunápio Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre, Rio de Janeiro, Forense, 5ª edição, 1976, p. 7. 24 Aristóteles, Política, Livro I, Capítulo III, Brasília, Editora UNB, 1997, p. 28.

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do feirante, do comerciante, da empresa e do empresário, este nos tempos modernos, representa uma função sócio-econômica das mais essenciais e que compreende, na sua dinâmica, o modo de sustentação da civilização contemporânea, como antevisto e diagnosticado por Karl Marx.25

A sociedade, nas suas múltiplas relações interpessoais, compreende um sistema aberto no qual a atividade econômica é a própria estrutura vital que influencia o comportamento dos indivíduos, em que o dinheiro, como elemento fundamental do regime capitalista, assumiu papel determinante na qualidade de vida, na formação do patrimônio mínimo necessário à sobrevivência humana e na diferenciação das classes sociais. E o dinheiro foi criado como mercadoria de troca desde que o homem iniciou o processo civilizatório, através do uso das medidas de valor.

Primitivamente, anotava Adam Smith, a medida de troca mais utilizada era o boi, e a história registra que, na Odisséia, Homero comparava que “a couraça de Diomedes custou somente 9 bois, ao passo que a de Glauco custou 100 bois”,26 de onde se origina a expressão monetária “pecúnia”, que vem de “pecus”, denominação de gado, em latim.

Era também comum, em outros povos da antiguidade, a utilização, como moeda, de mercadorias como o sal, o açúcar, conchas raras e até bacalhau seco. Os registros históricos atribuem ao povo da Lídia, por volta do século VI a.C., o início da utilização da moeda de metal cunhada como medida de troca. E logo esse meio da moeda metálica, muito mais fácil para ser transportada, passou a ser universalmente empregado, sendo “o ferro o instrumento comum de comércio entre os espartanos; entre os antigos romanos era o cobre; o ouro e a prata eram os instrumentos de comércio de todas as nações ricas e comerciantes”.27 O dinheiro, depois da divisão natural do trabalho, é a expressão mais significativa da patrimonialização da sociedade, e coube ao comércio promover a circulação e a acumulação de riquezas

25 Marx, na sua análise crítica do capitalismo, observou que “a economia representa a superestrutura sobre a qual repousam todas as demais estruturas sociais”, sejam estas de natureza religiosa, política, jurídica ou cultural. A economia, na verdade, dita e influencia o comportamento humano, isto desde o momento em que qualquer pessoa necessita de um mínimo de patrimônio, de bens e de rendimentos para viver. (Para a crítica da economia política, cit., p. 70). 26 Adam Smith, A Riqueza das Nações, cit., p. 58. 27 Adam Smith, A Riqueza das Nações, cit., p. 58.

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através das pessoas que desempenhavam essa atividade, não apenas como modo de exercício de uma profissão, mas com a finalidade de entesouramento e enriquecimento.

E assim, a humanidade seguiu o seu caminho, por séculos e séculos, fazendo com que o dinheiro assumisse, cada vez mais, um papel determinante na formação das classes sociais, engendrando a divisão entre ricos e pobres, entre possuídos e despossuídos, entre nações poderosas e povos marginalizados.

Mesmo quando uma sociedade pretensamente mais evoluída alcançou o estágio ideológico da coletivização dos meios de produção, no regime comunista dos sovietes, a partir da Revolução Russa de 1917, o dinheiro (rublo) permaneceu sendo o único meio de troca e medida de valor utilizado para as relações comerciais e de subsistência na economia socialista. Ou seja, o comércio não desapareceu na Rússia comunista, apenas a figura do proprietário da riqueza privada ou capitalista, foi substituído pelo Estado como detentor dos meios de produção.

No regime econômico capitalista, dominado pela economia monetária, podemos constatar que esse fenômeno influenciou e moldou o modo de organização da sociedade através de todos os tempos, e a justificação ontológica para a existência do dinheiro sempre esteve historicamente vinculada ao comércio, às relações de troca de bens e mercadorias demandadas pelas pessoas, independentemente do grau de evolução do processo civilizatório.

O fenômeno econômico, determinante na formação das estruturas sociais, sempre se vinculou, primeiramente, ao mercador, depois ao comerciante, até chegar à empresa, como agente e principal ente responsável pela atividade comercial. Após a revolução comercial burguesa de fins do século XVI, os banqueiros e mercadores, do final da Idade Média, assumiram posição dominante na sociedade, na condição de membros representativos das principais operações e negócios mercantis destinados à satisfação das necessidades de consumo das pessoas e à acumulação de capitais por parte daqueles que a exploravam.

Sob a perspectiva analítica, a concepção da empresa existe desde a origem do ciclo econômico nas civilizações mais antigas. Assim, por exemplo, a regra ancestral

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contida no Código de Manu, da Índia, que se refere à idéia de empresa como organização do esforço comum das pessoas para atingir determinado objetivo e repartir entre si os resultados da exploração.28

A empresa compreende, portanto, o modo de exercício da atividade comercial ao longo da história, realizada pelo feirante, pelo mercador, pelo comerciante, pelo armador de navios, pelo banqueiro, mais adiante pela grande sociedade anônima, isto é, por todas as pessoas que, isolada ou conjuntamente, exercem atividades de produção e circulação de bens e riquezas, praticando atos de mercancia em caráter profissional, com a intenção de obter lucros.

1.2. A gênese do direito comercial nas corporações de mercadores

Os mercadores, reunidos em corporações,29 desde o século XII, ainda na alta Idade Média, passaram a estruturar as suas próprias normas, consolidando os usos e práticas necessários ao ordenamento e à disciplina das relações comerciais, assim como para também resolver, entre eles, os conflitos decorrentes do exercício da mercancia.

As corporações de mercadores, às quais estavam vinculados os proprietários e armadores de navios, não só consolidavam em normas os usos e costumes mercantis,30 como estabeleciam uma jurisdição comercial supraestatal, decidindo,

28 O Código de Manu (Índia, 1500 a.C.), ao tratar do modo de divisão dos resultados em uma sociedade, faz menção à empresa como atividade produtiva, conforme consta da tradução literal do seu art. 204: “Quando vários homens se reúnem para cooperar, cada um com seu trabalho, em uma mesma empresa, tal é a maneira por que deve ser feita a distribuição das partes”. (Amador Paes de Almeida, Manual das Sociedades Comerciais, São Paulo, Saraiva, 5ª edição, 1987, p. 4). 29 As corporações de ofício ou guildas, eram formas de associação que reuniam as atividades profissionais, e surgem, explica Paula Forgioni, a partir do século XII “no contexto do florescimento do comércio e artesanato das cidades, como associações daqueles que tinham interesses comuns e tencionavam protege-los”. Nesse contexto histórico, “as corporações não nascem de imposição das autoridades, mas sim da espontânea associação dos agentes econômicos”. (Os fundamentos do antitruste, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, p. 39). 30 No renascimento da atividade comercial, após o eclipse econômico da Idade Média e da era feudal, várias consolidações de normas mercantis surgiram nas principais cidades européias, moldadas pelos usos e costumes dos mercadores. São exemplos as consolidações medievais como o Consulato Del Mare, de Barcelona (século XI), Rôles D´Oleron, da França, (século XII), Tábuas Amalfitanas, de Amalfi,

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como justiça privada, os conflitos entre seus membros, independente da nacionalidade e da origem dos comerciantes envolvidos.31 Compreendia, portanto, uma jurisdição internacional, que vinculava os mercadores e seus navios ao porto marítimo em que se encontrassem.

Na Europa pré-renascentista e ainda antes da formação dos Estados nacionais, a economia derivada do comércio era orientada pela ampla liberdade de contratação, e as limitações ao tráfico mercantil resultavam, na maioria dos casos, de conflitos bélicos temporários e de situações de guerra ou de paz entre reinos e principados, assim como pela expansão do Império Otomano. Aliás, os mercadores árabes, vinculados à religião muçulmana, exerciam com muito maior prodigalidade e despreendimento as atividades próprias do comércio, ocupando o vácuo deixado no Ocidente devido às restrições impostas à atividade mercantil pela Igreja Católica durante toda a Idade Média.

Os mercadores, influenciados pela dominância do tráfico mercantil no Mar Mediterrâneo pela República de Veneza, tinham na liberdade de comércio e na persecução constante do lucro os fundamentos pragmáticos da exploração comercial, pressupostos que se encontravam fundados na assim denominada lex mercatoria, a lei particular dos comerciantes.32 A lex mercatoria, nessa época, representava não apenas a vinculação dos mercadores a uma instância corporativa de regulação das relações econômicas entre comerciantes de uma mesma cidade ou de diferentes nacionalidades, mas possuía um significado político-filosófico bem mais amplo, como expressão concreta, real, da própria liberdade de comércio.33

A atividade mercantil, entre os séculos XIV e XVII, era essencialmente subjetivista e corporativa, regulada por regras costumeiras e consolidações normativas originárias da própria classe comercial. O exercício do comércio, nesse tempo, dependia da vinculação do comerciante a uma determinada corporação de na Itália (século XIII), Leis de Wisby, das ilhas inglesas (século XV) e do Guidon de la Mer, da Normandia, França (século XVI), apresentando essas normas a finalidade comum de regulação do comércio marítimo e dos contratos de seguro no transporte naval. (Walter Álvares, Curso de Direito Comercial, cit., p. 71). 31 Paul Rehme, Historia Universal del Derecho Mercantil, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1941, p. 146. 32 Francesco Galgano, Lex Mercatoria, Bologna, Il Mulino, 4ª edição, 2001, p. 45. 33 Francesco Galgano, Lex Mercatoria, cit., p. 56.

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mercadores ou guilda comercial.34 A atividade mercantil somente era acessível aos que demonstrassem aptidão profissional e capacidade econômica para o exercício do comércio, situação que era aferida pela corporação, com jurisdição sobre determinada cidade, porto ou região.

As corporações de mercadores e as guildas eram constituídas e organizadas a partir de estatutos,35 que estabeleciam as condições de matrícula dos comerciantes, os direitos e obrigações dos associados, a submissão à jurisdição consular corporativa e definia, ainda, as normas contratuais e negociais a que ficavam submetidos os mercadores a ela vinculados.36

A jurisdição das corporações de mercadores, presidida pelos princípios da lex mercatoria, possuía caráter supranacional, não estando vinculada a nenhuma esfera de poder estatal.37 Mas, ao contrário, diante do crescente poderio econômico e político da burguesia mercantil, o jus mercati ou jus mercatorum derivado dos estatutos das corporações, legislação que “dominava, sem contraste, em todos os portos, feiras ou mercados”,38 é que passou a influenciar o conteúdo dos estatutos das cidades que eram entrepostos comerciais, a tal ponto de “os estatutos de suas corporações se confundirem com os estatutos da própria cidade”.39

34 Paul Rehme, Historia Universal del Derecho Mercantil, op. cit., p. 128. 35 Segundo Paula Forgioni, “dois eram os tipos de normas que disciplinavam a atividade das corporações de ofício, em um óbvio contexto de pluralidade de ordenamentos jurídicos: as primeiras, os estatutos das corporações, ordenamentos jurídicos completos, como se verá, e que eram colocados pelos comerciantes ou artesãos para disciplinar sua própria atividade. O outro sistema era aquele da Comuna medieval, que procurava regular a atividade das corporações, fazendo-a, na maioria das vezes, pelo controle dos estatutos e imposição de algumas normas de conduta obrigatórias para seus membros.” (Os fundamentos do antitruste, cit., p. 40/41). 36 Ensina Tullio Ascarelli que “objetivamente, a competência da magistratura comercial era limitada aos negócios mercantis e àqueles conexos, isto é, à compra para revenda e às sucessivas revendas, os negócios bancários e de câmbio, mas também aqueles que com os precedentes fossem conexos”. (Corso di Diritto Commerciale – Introduzione e Teoria dell’Impresa, Milano, Giufrè, 3ª edizione, 1962, p.7-8). 37 Descrevendo as funções e atividades estatutariamente determinadas, de um modo geral, para as corporações de mercadores no período do Renascimento europeu, Alfredo Rocco afirma: “Várias eram as funções das corporações: elas organizavam e presidiam as feiras e os mercados; mandavam cônsules para o estrangeiro para proteger os sócios, assistiam-lhe quando fossem atingidos por infortúnios ou doenças, tutelavam a segurança das comunicações e, por fim, função importantíssima, dirimiam as questões que pudessem surgir entre os sócios.” (Princípios de Direito Comercial, Campinas, LZN, 2003, p. 16). 38 João Eunápio Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre, cit., p. 27. 39 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, 25ª ed., 2003, vol. 1, p. 10.

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Esse período de expansão do comércio, mais evidenciado a partir do século XIV, com o florescimento das cidades, com o início da ascensão da burguesia citadina e do processo de acumulação de riquezas em mãos de uma nova classe, foi denominado de Revolução Comercial, caracterizado por uma atividade mercantil intensa e que não conhecia fronteiras, dotada de índole essencialmente internacional e cosmopolita.

A Revolução Comercial (Séculos XIV a XIX) esteve, assim, representada e caracterizada pelo auge da lex mercatória, como instrumento de organização da classe burguesa dos mercadores e de afirmação dos novos métodos de exploração econômica fundados no princípio da liberdade de contratar. A liberdade de contratação era decorrente do corolário do princípio da autonomia da vontade como fonte fundamental do direito das obrigações mercantis.

E, desse modo, as relações jurídicas, desde essa fase histórica, tinham na autonomia da vontade o fator determinante para a decisão de contratar e para vinculação de cada comerciante a uma determinada corporação, com a conseqüente eleição do critério para composição de litígios entre seus membros, tudo com base nos princípios das leis de mercado, ou seja, na lex mercatoria. Essa realidade tanto era reconhecida que, no ano de 1475, o Lord Chanceler da Inglaterra, Thomas Rotherham, afirmava, categoricamente: “Los mercaderes no están obligados por nuestras leyes, sino que deben ser juzgados de acuerdo con la ley natural, a la cual algunos llaman Lex Mercatoria, que es universal en el mundo”.40

Além de consagrar o princípio da liberdade comercial, a lex mercatoria estabelecia as regras básicas para o exercício do comércio fundado nos costumes mercantis e nas decisões dos magistrados consulares, isto é, na jurisprudência formulada e consolidada pelos tribunais das corporações de mercadores, estabelecendo, na sua evolução histórica, normas de regulação dos contratos de compra e venda mercantil, do depósito, do seguro, do empréstimo, dos títulos de

40 Paul Rehme, Historia Universal del Derecho Mercantil, cit., p. 119; no mesmo sentido, Marcelo Castrogiovanni, Lex Mercatoria, in Revista Electronica de Derecho Comercial, www.derecho-comercial.com, 14/09/2013.

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crédito e do tráfego marítimo, em especial.41 O princípio da liberdade de comércio predominava, então, como fórmula ideal da atividade mercantil, com a mínima ingerência do Estado sobre as relações jurídicas de produção, circulação e consumo de bens e mercadorias.

Sem embargo, em face da omissão do Estado em disciplinar, nessa época histórica, as relações comerciais, os próprios mercadores criavam, através dos usos e costumes e da jurisprudência consular das corporações mercantis, as normas reguladoras das suas atividades. Como característica dominante dessa legislação privada mercantil, encontramos na sua formulação básica elementos novos, dissociados do direito romano clássico, na medida em que as construções civilistas sempre se demonstraram insuficientes para reger a dinâmica do tráfico comercial.42

O Estado, após o fim do medievo e no período de surgimento das nações e reinos unificados na Europa, por volta do século XV, em razão da necessidade de afirmação da nacionalidade e de fixação das suas fronteiras, tinha como preocupação maior o controle interno policial e a defesa territorial. Daí que o reconhecimento e aplicação da lex mercatoria na fase de ascensão da burguesia mercantil não se deparava com limites estatais, e a autonomia da vontade, conseqüentemente, prevalecia como fator determinante das relações comerciais e dos seus efeitos obrigacionais. E essas relações comerciais não estavam limitadas ao âmbito dos territórios recém definidos ou ainda em fase de fixação de fronteiras, mas ultrapassavam as feiras, vilas, cidades, burgos e reinos, sendo a atividade comercial regulada por normas costumeiras e dotadas de caráter supraestatal, de natureza

41 O desenvolvimento do direito comercial no período final da Idade Média foi fruto de uma construção secular, resultante da necessidade de criação de uma base normativa apropriada às demandas comerciais, como destacado por Ana Mercedes Lopes Rodriguez: “This law resulted from the effort of the medieval trade community to overcome the fragmentary and obsolete rules of feudal and Roman law which could not respond to the needs of the new interlocal and international commerce. Merchants created at superior law, which constituted a solid legal basis for the great expansion of commerce in the Middle Ages. For almost eight hundred years uniform rules of law, those of the law merchant were applied throughout Western Europe among traders.” Em tradução livre: "Este direito resultou do esforço da comunidade dos mercadores medievais para superar as regras fragmentárias e obsoletas do direito feudal e romano, que não respondia mais às necessidades do novo comércio regional e internacional. Mercadores formados em um direito superior estabeleceram uma base jurídica sólida para a grande expansão do comércio na Idade Média. Por quase 800 anos, as regras uniformes dessa lei mercatória foram aplicadas em toda a Europa Ocidental entre os comerciantes. (Lex Mercatoria, University of Aarhus, Denmark, Department of Private Law Review, in www.rettid.dk/artikler/20020046.pdf, 11/01/2009). 42 Francesco Galgano, Lex Mercatoria, cit., p. 74.

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essencialmente privada e cosmopolita, sem se vincular, portanto, a nenhum sistema nacional.

O direito do comércio, nesse período de consolidação da Revolução Comercial e da ascensão da burguesia mercantil como nova classe social, encontrava-se estruturado a partir da lex mercatoria, que tinha por objeto a regulação dos contratos comerciais e a solução de litígios entre comerciantes, através de uma justiça corporativa fundada nos precedentes dos usos mercantis.

1.3. Importância dos costumes na formação do Direito Comercial

O direito comercial foi produto, durante o decorrer dos séculos, de peculiar formação consuetudinária. Mais do que observado em qualquer outro ramo do direito, a influência dos costumes ainda permanece contribuindo para a evolução e para a alta especialização dos negócios mercantis, diante das características decorrentes do modo utilitarista de pensar que domina o sistema mercantil.

Com efeito, a atividade comercial da empresa somente se submete à lei, isto é, à norma positiva, naquilo que estiver normativamente previsto, como regra que esteja obrigada a cumprir. No tocante às condutas facultativas, que possam ser observadas a partir da opção pela realização de determinado ato, negócio ou contrato, o comerciante ou empresário vai adotar o comportamento ou a ação que lhe seja pragmaticamente mais lucrativa ou conveniente, do ponto de vista negocial. Em relação aos demais atos e negócios que não estejam regulados em lei, será a conduta, os usos e costumes dos comerciantes, as suas relações concretas no mercado e na dinâmica empresarial, que irão construir e desenvolver novos negócios jurídicos e novas formas de exercer a atividade mercantil.

O exercício da atividade mercantil pela empresa parte de um princípio maior, o da liberdade de comércio, que decorre de outro princípio instrumental, o da livre concorrência. Da junção desses dois princípios resulta um fundamento deontológico

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do sistema capitalista, o da livre empresa, segundo o qual as pessoas podem desempenhar atividade mercantil com ampla liberdade de escolha do seu exercício como profissão, ainda que limitado o objeto da empresa a negócios que não violem determinadas normas de ordem pública.

A liberdade de empresa e de comércio são preceitos fundamentais que se originam na antiguidade, que por séculos sofreram algumas limitações decorrentes de conflitos bélicos entre os países e pelas disputas do mercantilismo e do imperialismo econômico, mas que jamais deixou de ser observado como condição fundamental para a evolução da economia. Ainda que a análise da importância dos usos e costumes possa ser considerada como uma etapa primitiva do direito sob o prisma da historicidade,43 no campo da liberdade de comércio o costume mercantil continuará criando novas figuras e novos tipos de negócios na exploração dos mercados, no sentido da contínua ampliação da lucratividade e acumulação do capital.

Analisando a origem do direito comercial por volta do século XVI, como disciplina autônoma de regulação das atividades mercantis, Rocco observara que “a desagregação social e política na Idade Média produziu os dois fenômenos, que tornaram possível e facilitaram a formação de um direito especial ao comércio: a prevalência do costume sobre o direito estatal e as corporações de mercadores”.44 E, nessa primeira etapa de formação do direito comercial, definida como sendo a fase corporativa, as atividades das corporações de mercadores destacavam-se como de fundamental importância, não apenas na consolidação das normas costumeiras desenvolvidas por séculos na experiência mercantil, mas na solução dos conflitos negociais entre mercadores de diversas nacionalidades, através de um sistema privado de justiça consular, tal como registrado por Rocco.45

O marco inicial do direito comercial como disciplina jurídica autônoma foi estabelecido pela doutrina como estando localizado na obra de Benvenuto Stracca (1509-1578), intitulada Tractatus de mercatura seu mercatore, de Veneza (1553),46

43 Nelson Saldanha, Sociologia do Direito, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1980, p. 164-165. 44 Alfredo Rocco, Princípios de Direito Comercial, cit., p. 14. 45 Alfredo Rocco, cit., p. 16. 46 Alfredo Rocco, cit., p. 28.

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que teve o mérito, exatamente, de realizar uma compilação e consolidação das principais normas consuetudinárias até então conhecidas no comércio ocidental. Rocco conclui, em síntese, que “as primeiras normas destinadas especialmente a regular o tráfego mercantil foram, portanto, normas consuetudinárias (consuetudo mercatorum, stylous mercatorum).47

Devido à liberdade de comércio e à desvinculação dos mercadores de sistemas nacionais de filiação ou de autorização estatal para o exercício da atividade mercantil, as relações e negócios comerciais realizavam-se a partir das necessidades próprias dessas operações. E assim se verificava na seleção de produtos e fontes produtoras, da abertura de novos mercados, da criação de novos tipos contratuais, de invenções que surgiam para facilitar a produção e o tráfico mercantil. E isto sem que o Estado exercesse um controle limitativo da exploração comercial, senão para fiscalizar a atividade mercantil no sentido de impor tributos e assegurar o seu domínio territorial.

Em decorrência dessa liberdade de comércio e das exigências de constante evolução do tráfico comercial, Rocco afirma que os mercadores “exatamente no costume puderam encontrar satisfação às particulares exigências do Direito Comercial”.48 Na visão de Tullio Ascarelli, são essas normas que, “elaboradas nas corporações mercantis e aplicadas pelos respectivos tribunais da justiça consular, e desenvolvidas nas feiras, combinam-se com a evolução dos costumes para a formação de um corpus juris substancial e internacionalmente uniforme no âmbito mercantil e que encontra no internacionalismo nova razão de vida e de autonomia.”49

Ascarelli considera, ainda, que, no período de especialização do direito comercial, “ao final do século XVI, com a formação dos Estados absolutistas e com o período do mercantilismo, as fontes do direito comercial não mais serão encontradas na autonomia das corporações, pois o direito comercial passará a fazer parte do direito comum”.50

47 Alfredo Rocco, cit. p. 15. 48 Alfredo Rocco, Princípios de Direito Comercial, cit. p. 15. 49 Tullio Ascarelli, O desenvolvimento histórico do Direito Comercial e o significado da unificação do Direito Privado, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo, Malheiros, nº 114, abril-junho 1999, p. 238. 50 Tullio Ascarelli, O desenvolvimento histórico do Direito Comercial e o significado da unificação do Direito Privado, cit., p. 239.

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Todavia, mesmo quando o processo de unificação dos reinos europeus possibilitou o surgimento das monarquias absolutistas e dos Estados Nacionais, principalmente na França, Holanda, Inglaterra, Espanha e Portugal, entre os séculos XV e XVI, com a descoberta das novas rotas comerciais para as Índias e para as Américas, nem assim os usos mercantis deixaram de contribuir para a regulação do direito comercial. E tal fenômeno estava representado pela contínua positivação desses usos e costumes pelo direito especial do comércio.

Os usos e costumes mercantis passaram a ser, então, enquadrados como fontes do direito comercial, tanto no sentido material, de contribuir para a construção do direito positivo adaptado e atualizado às novas formas de negócios mercantis, como no sentido de fonte formal secundária, que deveria ser aplicada na solução de problemas mercantis que não estivessem previstos em uma norma positiva. 51

No direito positivo brasileiro, a legitimação dos usos e costumes como fonte do direito comercial resultou de normas expressas constantes do Código Comercial de 1850, o qual foi inspirado no Código Comercial Francês de 1807, que igualmente considerava os usos e costumes mercantis como fonte de integração na interpretação dos negócios e contratos comerciais. O art. 131 do Código Comercial de 1850 previa que, na interpretação das cláusulas contratuais,

“O uso e prática geralmente observada no comércio nos casos da mesma natureza, e especialmente o costume do lugar onde o contrato deva ter execução, prevalecerá a qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palavras”.

Como fonte aplicável às sociedades comerciais, o art. 291 prescrevia:

“As leis particulares do comércio, a convenção das partes sempre que lhes não for contrária, e os usos comerciais, regulam toda a sorte de associação mercantil; não podendo recorrer-se ao Direito Civil para decisão de qualquer dúvida que se ofereça, senão na falta de lei ou uso comercial”.

51 Colocando em discussão o problema da legitimação dos usos e costumes como fonte do Direito Comercial, Requião opina: “Os comercialistas, em conseqüência do reconhecimento dos usos e costumes como fontes do Direito Comercial, formularam teoria para estabelecer os princípios que asseguram legitimidade à sua aplicação. Na linguagem corrente, como observa o Prof. Lagarde, não se faz distinção, inclusive na jurisprudência francesa, entre as expressões usos e costumes. Alguns autores, todavia, procuram distinguí-las, vendo nos costumes uma regra mais imperativa do que os usos, os quais seriam simplesmente convencionais.” (Curso de Direito Comercial, cit., vol. 1, p. 29).

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Apesar do Código Civil de 1916, de clara inspiração positivista, não conter dispositivo indicativo do uso das fontes formais na solução das lacunas da norma, a Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/1942) atualmente denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,52 estabelece, em seu art. 4º, a ordem de aplicação dessas fontes, nela constando o recurso aos costumes:

“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.

A questão da influência dos usos e costumes mercantis na regulação da atividade empresarial não está circunscrita à discussão do problema das fontes. O que se pretende demonstrar, neste ponto, é que os usos e as práticas mercantis continuarão exercendo significativa influência na formação do direito empresarial e na regulação da empresa.

Especialmente no âmbito dos negócios e contratos empresariais, novas formas e modalidades de relações mercantis vão surgindo no cotidiano do comércio, por imposição das demandas do mercado, do desenvolvimento tecnológico e da concorrência entre as empresas.

A atividade comercial está sempre em contínua mutação, e essa realidade dinâmica não pode ser prejudicada pela ausência de normas autorizativas ou permissivas para a exploração de um novo negócio. As empresas atuam de acordo com as suas próprias necessidades, sob a lógica capitalista da maximização dos lucros e resultados.

Os usos e práticas comerciais resultam e são criados a partir das necessidades do mercado e das empresas, e poderão ser, em certo momento, positivados, para garantir a segurança dos contratantes e para gerar uma disciplina regulatória mínima, como medida de política legislativa tendente a evitar, principalmente, o abuso do poder econômico.

52 Lei nº 12.376/2010.

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Em determinado momento histórico, as corporações de mercadores exerceram essa função de positivar as normas costumeiras, com forte caráter de subjetivismo,53 exercendo, também, a jurisdição comercial, para assim resolver e julgar os litígios entre mercadores. Nessa realidade, os juristas e os legisladores situam-se em posição secundária, passiva, somente atuando quando as exigências sociais de positivação de certos usos e práticas mercantis, de relevante interesse público, se fizessem presentes. 54

A atividade prática mercantil sempre esteve e continuará à frente do processo de positivação do direito. Os fatos sociais evidenciados pela atuação dinâmica das empresas no mercado podem ser estudados juridicamente sob essa dupla perspectiva, o da positivação de negócios e contratos mercantis, e o do reconhecimento objetivo da existência de operações comerciais moldadas nos usos e práticas das empresas, ou seja, em um direito costumeiro que integra um sistema mais amplo de relações jurídicas não positivadas.55

A empresa, através do empresário, dos sócios, acionistas, executivos e prepostos, diante das necessidades e opções de negócios, realiza operações e transações de acordo com a lógica do sistema, que tem na obtenção contínua do lucro seu objetivo essencial, que faz parte da própria natureza mercantil, e assim sempre prevaleceu em razão das exigências do sistema de economia de mercado.

Em todo o seu percurso histórico, a empresa vai abrindo seu próprio caminho, formando e ampliando as bases para a sua existência, independentemente de condicionantes e molduras legais.56

53 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 27. 54 Pontes de Miranda considerava que “o conceito de direito comercial ou direito mercantil, como o de mercadoria e o de mercancia, correspondeu a momento histórico, que passou, sem que os juristas estivessem à altura de adaptar o sistema jurídico às novas circunstâncias da vida. Por vezes, foi o próprio sistema jurídico que a elas se ajustou, a despeito dos juristas e dos legisladores.” (Tratado de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 4ª edição, 1983, Tomo XV, p. 381). 55 Na sua formação, segundo Rubens Requião, “os usos comerciais surgem espontaneamente. Um comerciante, em seus hábitos, fixa determinada norma, que vai sendo adotada por outros. De individual o uso torna-se geral. A princípio, em determinada praça, que são os usos locais, expandindo-se depois para outras, formando os usos regionais ou nacionais. No comércio exterior, são os usos internacionais.” (Curso de Direito Comercial, cit., p. 29). 56 Ao analisar as fases da evolução histórica do Direito Comercial, Ascarelli considera: “O direito comercial apresenta-se como o direito do capitalismo, afirmando-se justamente quando este se

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Essa evolução do regime capitalista foi proporcionada muito mais pelas exigências do mercado, sob a inspiração da doutrina do liberalismo econômico, do que em razão da intervenção do Estado frente às atividades das empresas.

A empresa, portanto, revela-se como construção histórica e como fato social, que sempre se antecipou ao direito, e que foi alcançando patamares cada vez mais elevados de especialização e de complexidade na sua estrutura e nas suas operações no mercado.

1.4. A fase publicista das relações da empresa

A partir do momento em que o Estado passou a ver no crescente poderio econômico da burguesia comercial um problema que deveria ser enfrentado e mesmo controlado como condição de manutenção do seu domínio político, tratou o Poder Público de trazer para si a responsabilidade de normatizar as relações comerciais até então disciplinadas pelas corporações de mercadores. Essa modificação de postura coincidiu com o período dos descobrimentos e com o início da exploração colonial nas Índias e nas Américas, a partir do final do século XV.

Por isso mesmo, esse período foi historicamente denominado de mercantilismo, significando, precisamente, a fase em que os países europeus, então estruturados como Estados absolutistas, passam a explorar mercantilmente as terras recém descobertas no Novo Mundo e os seus recursos naturais, assim como os produtos e especiarias do Oriente com a abertura das rotas marítimas para as Índias. A expressão mercantilismo representa, de modo apropriado, o exercício da atividade

estabelece originalmente, nas cidades comunais italianas; desenvolve-se com o desenvolvimento da economia de crédito, que acaba por contradistinguir o capitalismo; passando de direito autônomo de classe a direito estatal com a formação das monarquias centralizadas e com o mercantilismo; estendendo-se do comércio, onde primeiro se afirma o capitalismo, à indústria, que pelo contrário permaneceu artesanal por séculos; apresentando hoje aqueles problemas que são justamente os de uma estrutura econômica capitalista.” (O desenvolvimento histórico do Direito Comercial e o significado da unificação do Direito Privado, cit., p. 242-243).

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econômica pelo Estado, em estreita colaboração com a burguesia comercial, detentora da expertise ou experiência técnica necessária à exploração mercantil.

É justamente nesse período inicial do mercantilismo, principalmente a partir do século XVI, que o Estado passa a assumir responsabilidades na formulação de políticas e na regulação da atividade comercial. Essa preocupação do Estado com a atividade comercial não resultava, apenas, do aspecto legislativo em si, nem do controle tributário da função comercial, mas decorria também, movido pela pragmática, da própria necessidade de obtenção de lucros que remunerassem os investimentos feitos com a armação e equipagem das frotas destinadas à exploração mercantil das colônias e dos entrepostos comerciais do Oriente e das Américas. Nesse período, com efeito, nenhuma exploração colonial era realizada sem que a Coroa responsável pelo porto de saída da expedição tivesse a garantia de divisão dos resultados com os ganhos obtidos pelos capitães de navios e frotas, banqueiros financiadores e exploradores das novas terras.57

É na fase do mercantilismo, por exemplo, que surge a sociedade por ações, quando a Inglaterra e a Holanda, no século XVII, criam companhias de exploração colonial, estruturadas para oferecer títulos de investimentos (ações) ao público, garantindo, em contrapartida, a responsabilidade limitada dos acionistas e a perspectiva de pagamento de dividendos em razão dos lucros obtidos com a atividade econômica. O conceito de ação, como título societário, tem sua origem na palavra holandesa aktio, que significa, justamente, a titularidade de um direito de ação contra a companhia, como contrapartida do investidor pelo capital aplicado no negócio aberto ao público.

Na medida em que o Estado avançava na exploração da atividade econômica colonial, determinando as regras para a criação de novas companhias de comércio mediante a atribuição de outorgas reais (oktroi),58 e concedendo o direito de monopólio 57 Sobre as características da aliança entre o Estado e a burguesia mercantil ascendente nessa fase inicial do mercantilismo, comenta Carmen Alborch Bataller: “No obstante, el Estado (la monarquía) no se limitará simplemente a concederles el monopolio de explotación, sino que también interviene en la financiación de las empresas. Podríamos decir que se lleva a cabo una alianza entre la monarquía y la burguesía, alianza perfectamente explicable dado que con el feudalismo la monarquía se debilita enormemente”. (El derecho de voto del acionista, Madrid, Editorial Tecnos, 1977, p. 38). 58 Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, A Lei das S.A., Rio de Janeiro, Renovar, 1992, p. 41.

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para a exploração de determinados produtos nas possessões ultramarinas, o espaço de autoregulação da atividade comercial pelas corporações de mercadores foi sendo, progressivamente, reduzido. E tal redução da autonomia normativa privada resultava, em conseqüência, perda do prestígio e da aplicabilidade dos preceitos históricos da lex mercatoria, ficando os comerciantes sujeitos à legislação publicista e à jurisdição estatal para a solução de conflitos.

A política mercantilista estatal estava assim orientada, de modo predominante, para a expansão do comércio colonial e, para alcançar esse objetivo, os investimentos na indústria naval eram considerados prioritários. Além da Inglaterra e da Holanda, também Portugal, França e Espanha vieram a construir frotas navais em larga escala, solução imprescindível para a exploração do continente americano, previamente dividido, desde 1494, pelo Tratado de Tordesilhas. Esse alto investimento na exploração mercantilista representava uma preocupação permanente dos Estados absolutistas com a fixação de regras estáveis para as relações e contratos comerciais, tanto nos territórios de origem, nas suas colônias, como também perante outras nações.

A afirmação dessa regulação publicista da atividade mercantil pelos Estados absolutistas consolida-se na França, através das Ordenações de 1673, conhecida por Code Savary, regulando o comércio terrestre, e das Ordenações de 1681, tendo por objeto o comércio marítimo, editadas sob a iniciativa de Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), Ministro das Finanças de Luis XIV, o Rei Sol (1638-1715).59

O direito corporativo e estatutário no qual o direito comercial medieval se alicerçava, foi sendo paulatinamente eclipsado e substituído pelo direito estatal, consubstanciado na ordenação pública da atividade econômica privada.

59 A propósito do conteúdo publicista das normas estatais disciplinadoras do comércio e do marco histórico fixado pelas Ordenações Francesas, Tullio Ascarelli observa: “Lo Stato regola più stretamente le corporazioni (onde poi la naturale considerazione, nell’Ordinanza Francesa del Commercio del 1673, anche del artigiani) e com lo sviluppo del mercantilismo verrà dettata uma minuta disciplina pubblicista del commercio, che occuperà invero la massima parte degli articoli dell’Ordenanza de Luigi XIV che tra poco ricorderemo, venendo minutamente disciplinato (in ordine alla sua localizzazioni, alle sua modalità e via dicendo) l’exercizio dell’atività econômica. La fonte del Diritto Commerciale si trova ormai, accanto alla consuetudine, nelle ordinanze dell’autorità.” (Corso di Diritto Commerciale – Introduzione e Teoria dell’Impresa, op. cit., p. 29-30).

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Mesmo constituindo o comércio internacional e a contratação mercantil um sistema de intercâmbio dominado pelos agentes privados, a intervenção legislativa do Estado passou a condicionar o pleno exercício dessa atividade quando realizada em larga escala, especialmente no comércio de importação e exportação. E essa situação afastou, do quadrante jurídico, a incidência dos preceitos do direito originário das corporações de mercadores, que se tornou, a partir desse marco, um mero referencial do processo histórico de ascensão do comércio, entre o período feudal e a era mercantilista.

Desse momento em diante, como ápice do período publicista no século XIX, foi inaugurada a fase de codificação do direito comercial, a partir do Código Comercial francês de 1807,60 considerado por Napoleão Bonaparte (1769-1821) como um dos pilares fundamentais da legislação do império na sua fase áurea de conquista da Europa. Outros diplomas estatutários se seguiram desde então, tendo o movimento codificador por inspiração, como os códigos de comércio da Espanha (1829), de Portugal (1833) e da Itália (1865).61

No Brasil, o Código de Comércio do Império, de 1850, adotando as premissas e estruturas básicas do código francês, contemplava as regras definidoras da atividade dos comerciantes, das sociedades comerciais, dos contratos mercantis e bancários e do direito marítimo. Esse movimento de codificação do direito comercial no âmbito internacional seguia, destarte, o processo de codificação do Direito Civil, de tal modo que, como observado por Irineu Strenger, a “primeira metade do século XIX traduz-se por essa preocupação de elaborar os códigos, levando em conta sobretudo, o direito interpretado, o direito jurisprudencial, o direito das escolas estatutárias”.62

No campo das relações mercantis, todavia, a ausência de organismos supraestatais de regulação do comércio e de positivação das normas destinadas à

60 Analisando a concepção doutrinária dominante no regime do Código Comercial brasileiro de 1850, Fábio Ulhoa Coelho assim considera: “A elaboração doutrinária fundamental do sistema francês é a teoria dos atos de comércio, visto como instrumento de objetivação do tratamento jurídico da atividade mercantil. Isto é, com ela, o direito comercial deixou de ser apenas o direito de uma certa categoria de profissionais, organizados em corporações próprias, para se tornar a disciplina de um conjunto de atos que, em princípio, poderiam ser praticados por qualquer cidadão”. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 66. 61 Fran Martins, Curso de Direito Comercial, Rio de Janeiro, Forense, 24ª ed., 1999, p. 8. 62 Irineu Strenger, Direito Internacional Privado, São Paulo, LTR, 6ª edição, 2005, p. 231.

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disciplina e uniformização de modelos jurídicos para o tráfico mercantil entre países, jamais representou obstáculo para as operações de importação e exportação de bens e mercadorias.

Sem embargo, a atividade comercial jamais quedou limitada ou contida pela falta de um sistema normativo mercantil próprio. Afinal, o comércio sempre foi influenciado e dominado, desde a sua mais remota origem, por uma índole cosmopolita, que não encontrava restrições de maior envergadura para o tráfico mercantil, salvo quando diante de situações de guerra ou da presença de monopólios estatais. O comércio internacional, mesmo se submetendo a modos e formas diversificadas de intervencionismo estatal, não se despiu das suas principais características negociais, fundado esse tráfico mercantil, especialmente, na autonomia da vontade e na liberdade de contratar.

O direito comercial, não obstante o aumento do grau de intervenção legislativa estatal, prosseguiu formulando as suas próprias normas e construindo os seus modelos negociais. E essa praxis mercantil, que em nenhum momento abandonou os costumes sedimentados ao longo dos séculos, reconhecia, de modo invariável, os interesses das empresas comerciais e do tráfico mercantil acima das limitações impostas pelas leis nacionais. O exercício do livre comércio sempre foi considerado, ademais, corolário fundamental decorrente do secular princípio da autonomia da vontade.63

63 Ana Paula Martins do Amaral assim comenta a respeito dessa transição entre o direito corporativo e o direito estatal na regulação da atividade mercantil: “No entanto, mesmo com a prevalência do Estado nacional, que sujeitava os contraentes ao direito interno, o comércio internacional não perderia suas características. Segundo as regras elaboradas pela Escola Estatutária, a vontade continuaria a ser elemento fundamental dos contratos mercantis. Se se tornou defeso às partes a aplicação de uma lex mercatoria, a autonomia da vontade prevalecia, permitindo às partes a escolha de um estatuto que regulasse os atos entre comerciantes nos contratos internacionais”. (Lex Mercatoria e Autonomia da Vontade, Revista Eletrônica Jus Navigandi, http://jus.com.br/artigos/6262/lex-mercatoria-e-autonomia-da-vontade, p.4, 28/04/2012).

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1.5. Análise econômica da empresa na teoria de Max Weber

Max Weber (1864-1920) foi o formulador de uma das mais completas análises científicas da atividade econômica na perspectiva sociológica. Na advertência inicial ao capítulo da sua principal obra, Economia e Sociedade, intitulada “As categorias sociológicas fundamentais da vida econômica”, ele observava que esse capítulo não tem por finalidade tratar de uma teoria econômica, “mas de definir alguns conceitos frequentemente usados nestes últimos tempos e de fixar certas relações sociológicas elementares dentro da vida econômica”.64

Dentre os conceitos abordados por Weber nesse capítulo, encontra-se a caracterização da empresa como atividade organizada destinada ao desempenho de um fim econômico. O estudo sociológico da empresa situa-se, assim, em um contexto restrito, em que a principal preocupação de Weber foi o de apresentar categorias fundamentais bem mais amplas, como a gestão pelas classes de associações econômicas, a organização do mercado, os meios de câmbio e pagamento, o cálculo do capital, a produção e a distribuição econômica dos serviços, o modo de apropriação dos meios de produção e o conceito e forma do comércio.

A empresa é considerada como um dos elementos instrumentais da atividade econômica, e essa atividade econômica não tem que ser vista, em si mesma, como necessariamente uma ação social, mas como um modo de exercício do que Weber define inicialmente como “poder de disposição”.65

A partir da ideia de “poder de disposição”, que tem referibilidade a bens e a tudo que possa ser valorado qualitativa e quantitativamente, Weber diferencia a economia, no sentido macro, como sendo um processo de “gestão econômica”, que geralmente cabe ao Estado, do que ele denomina “exploração econômica”, que se

64 Max Weber, Economia y Sociedad, México, Editora Fondo de Cultura Economica, 2ª ed., 2004, p. 46. 65 Max Weber, Economia y Sociedad, cit. p. 46.

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representa como uma atividade econômica permanente e organizada, explorada por pessoas privadas. A empresa concebe-se, desse modo, como atividade destinada à exploração econômica, não obstante Weber admita a existência de empresa para o desempenho de atividade não econômica, ainda que em caráter excepcional.

Inicialmente, Weber separa o conceito de empresa do conceito de associação de empresa. Considera ele a empresa como simplesmente uma atividade, enquanto a expressão “associação de empresa” compreende a forma da organização econômica, como sociedade comercial ou mercantil.66

O estudo analítico da empresa em Weber toma por base instrumental a forma da empresa como associação econômica, e nessa categoria ele enquadra as companhias mercantis. As companhias mercantis são formas de associação econômica, em que a sua atividade, regulada pelo seu próprio contrato ou estatuto, representa, primariamente, uma economia autônoma de determinada espécie.67 Essa ideia revela que a empresa é um ente dotado de autonomia, como é próprio das pessoas jurídicas constituídas sob a forma de sociedades comerciais, e que determinam os seus objetivos e o modo de desempenho da sua atividade mercantil a partir do seu regramento interno, decorrente da vontade do empresário e dos sócios e acionistas.

A atividade econômica é movida pelo dinheiro, unidade de valor que determina a própria razão de ser do sistema de acumulação de riquezas. A empresa existe para, partindo do seu “poder de disposição”, obter nas suas transações e negócios o lucro necessário à remuneração do seu capital. Sendo o lucro medido pelo valor do dinheiro, Weber considera que “desde o ponto de vista puramente técnico, o dinheiro é o meio de cálculo econômico mais perfeito, ou seja, o meio formal mais racional de orientação da ação econômica”. 68 O dinheiro, obtido através de diversas operações de venda, de locação de bens, de câmbio, de prestação de serviços ou de retorno de investimentos, deve ser assim considerado como a medida de racionalização da

66 “Por empresa (Betrieb) debe entenderse una acción que persigue fines de una determinada clase de un modo continuo. Y por asociación de empresa (Betriebverband) una sociedad con un cuadro administrativo continuamente activo en la prosecución de determinados fines”. Max Weber, Economia y Sociedad, cit. p. 42. 67 Max Weber, cit. p. 55. 68 Max Weber, Economia y Sociedad, cit. p. 65.

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atividade econômica, em que a busca pelo acúmulo de riquezas confere esse caráter instrumental e utilitário ao exercício da empresa.

Todavia, nem todo processo de acumulação de capital está diretamente relacionado com a atividade empresarial. Weber também diferencia a aplicação do dinheiro em inversões especulativas, que seriam próprias da exploração econômica, dos recursos poupados pelo Estado e pelas pessoas, que ele denomina de “hacienda”. Em tradução literal, “hacienda” significaria fazenda, no sentido financeiro, não no agrário ou de mercadoria (tecido). O conteúdo mais próximo que podemos adotar para “hacienda” é o conceito de “acervo patrimonial”, uma vez que Weber compreende na sua definição de “hacienda” tanto os bens obtidos para uso próprio, como a renda e o patrimônio de uma entidade, de pessoa ou de uma associação. 69

Em certo momento, Weber considera que o conceito de empresa corresponderia ao entendimento corrente somente quando se destaca expressamente a orientação para o cálculo do capital, na maioria das vezes suposto como evidente, para indicar com isso que nem toda intenção de lucro como tal é inerente à idéia de empresa, mas apenas quando essa intenção lucrativa é orientada pelo cálculo do capital.70 Ele quer com isso explicar que o cálculo do capital é necessário para a determinação dos benefícios (lucros) e das perdas (prejuízos) segundo a linguagem racionalista empresarial, e que o mesmo entendimento não se aplica no caso dos ganhos e rendimentos de um escritor, de um advogado, de um professor ou de um empregado assalariado, que não estão orientados por esse cálculo determinista da lucratividade.

Diante da realidade social, em que existem pessoas e grupos buscando a satisfação de suas necessidades de consumo e de bens, e assim ampliar o seu acervo patrimonial, as empresas se viabilizam no desempenho da atividade econômica apenas enquanto forem eficientes e lucrativas. E assim, Weber define como exploração lucrativa mercantil a essa classe de atividades desempenhadas pelas

69 Max Weber, cit. p. 67-68. 70 Max Weber, cit. p. 73.

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empresas, sempre orientadas de um modo continuado pelas probabilidades de mercado, utilizando capital e bens como meio de viabilizar seus objetivos lucrativos.71

A concepção de Weber apresenta-se, dessa maneira, salientemente fulcrada na figura da empresa como instrumento de exploração lucrativa, da obtenção de ganhos para a remuneração do capital do empresário, como na prática ocorre na realidade do sistema capitalista.

Apesar de reconhecer a empresa como uma modalidade de ação social, economicamente orientada e de processo associativo,72 Weber não pode deixar de enquadrar a sua análise da realidade a partir da própria orientação lógica do sistema capitalista, que ele denomina de exploração lucrativa. E a empresa, como meio de exploração econômica, também não se confunde com o conceito de “hacienda” ou acervo patrimonial, assim como não existe identidade absoluta entre a idéia de exploração econômica e o conceito de empresa, na medida em que Weber considera que uma “unidade de empresa” poderá estar relacionada a várias explorações lucrativas.73

Um plano de exploração pode abranger diversas atividades econômicas realizadas por uma mesma unidade de empresa, que poderá atuar, simultaneamente, no setor extrativo, industrial e comercial. Conforme for aumentando o seu nível de complexidade e o modo como utiliza os fatores de produção, especialmente pelo emprego do trabalho assalariado, das suas relações no mercado e a utilização dos serviços e bens de seus fornecedores.

Neste ponto, Weber separa, sob a abordagem da crítica sociológica, a ideía de “exploração” do conceito de “empresa”, para com isso afirmar que pode haver exploração lucrativa sem empresa, e cita o exemplo entre a “fábrica” e a “indústria a

71 Max Weber, Economia y Sociedad, cit. p. 75. 72 Max Weber, cit. p. 87. 73 “Lo que nos importa aquí es acentuar la separación de “hacienda” y “explotación”. Puede admitirse – por ser, como ahora se establecerá, inequívoco – el empleo del término “explotación lucrativa” en lugar de la expresión “empresa lucrativa duradera” sólo en el caso más simple de coincidencia de la unidad técnica de explotación con la unidad de empresa. Sin embargo, en la economía de cambio varias “explotaciones” técnicamente separadas pueden ligarse en una “unidad de empresa”. Esta no se realiza naturalmente solo por unión personal en el empresario, sino que se constituye por la unidad en la ejecución de un plan de explotación que con fines lucrativos se formula homogéneamente de alguna manera.” (Max Weber, cit. p. 90).

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domicílio”. Este exemplo somente pode ser suficientemente compreendido com a leitura da explicação que ele confere a essa diferença, em sua outra célebre obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo”.

Nesse exemplo, Weber explica que, até meados do Século XIX, 74 a vida de um empresário de produção em domicílio, em muitos ramos da indústria têxtil, era bastante cômoda e tranqüila. Esse empresário comprava dos camponeses os tecidos por estes produzidos em seus domicílios, e então aguardava que seus clientes e outros intermediários fossem à sua casa comercial para comprar os cortes de tecidos. Ele não visitava a sua clientela e trabalhava pouco mais de cinco horas por dia, recolhendo-se, ao final da tarde, à taberna de costume para beber com os amigos. Apesar dessa atividade representar uma forma capitalista de organização, ela era do tipo tradicional, em que o empresário se acomodava com o seu lucro habitual, com a quantidade regular de trabalho, no relacionamento com os mesmos clientes.

Em determinado momento, todavia, um jovem oriundo de família de empresários da produção em domicílio, resolve inovar, e então ele “seleciona a dedo tecelões de que necessita, aumenta ainda mais a sua dependência e o controle sobre eles, fazendo, dos camponeses, operários; por outro lado, assume totalmente as rédeas do processo de venda por meio de um contato mais direto possível com os consumidores finais: comércio a varejo, granjeia pessoalmente os clientes, visita-os regularmente a cada ano, mas, sobretudo, passa a adaptar a qualidade dos produtos exclusivamente às necessidades e desejos deles para agradá-los e a pautar-se ao mesmo tempo pelo princípio do “menor preço, maior giro”.75

Entra em cena, assim, o que Weber chama de “espírito do capitalismo moderno”, e esse novo tipo ele denominou de modelo da fábrica, em que a produção artesanal e domiciliar foi substituída pela indústria racionalmente organizada para realizar a exploração lucrativa. E, seja no capitalismo tradicional, seja no capitalismo moderno, Weber entende que “parece então conveniente em princípio empregar os termos “fábrica” e “indústria a domicílio” como duas rigorosas categorias econômicas

74 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 58-60. 75 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, cit. p. 60.

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da empresa com cálculo do capital”.76 Ambas as categorias, apesar da diferença de modelos e da defasagem organizacional, possuem uma racionalidade contábil de calcular o seu desempenho econômico e de determinar a sua lucratividade, como é da finalidade intrínseca da empresa na lógica do sistema capitalista.

Em síntese final, Weber procede à análise da empresa como organização econômica guiada por um racionalismo que tem na idéia de exploração lucrativa o seu elemento central, quando a empresa se exterioriza como unidade técnica e como unidade produtiva, e que através do cálculo do dinheiro irá determinar a natureza mercantil da sua atividade. A empresa pode ainda ser vista tanto como ação ou atividade econômica, como apreendida empiricamente na qualidade de associação, quando toma a forma de uma sociedade comercial ou companhia mercantil.

A teoria de Max Weber, portanto, orienta o conteúdo da concepção econômica da empresa, na medida em que ele estuda a empresa a partir das categorias fundamentais da economia, de modo denso e profundo, inserindo novos elementos sociológicos de discussão na análise dessa entidade fundamental de sustentação e representação da sociedade.

76 Max Weber, Economia y Sociedad, cit. p. 90.

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1.6. Ideologia e ética empresarial no capitalismo moderno

O capitalismo representa um modo de acumulação de riquezas que tem no dinheiro o seu elemento motriz, unidade de valor que, inclusive, serve de critério objetivo de diferenciação das classes sociais, da divisão entre ricos e pobres. O sistema capitalista revela-se extremamente racional e pragmático, e sua lógica intrínseca encontra-se voltada para a maximização dos lucros e dos resultados econômicos através do seu principal agente produtivo, a empresa.

Na consolidação do espírito capitalista, a partir da Revolução Industrial do final do século XVIII e da expansão da manufatura, cabe reconhecer que o processo econômico ampliou os abismos sociais com a exploração intensiva das classes trabalhadoras. As doutrinas socialistas emergiram a partir desse momento como uma reação à exploração capitalista, observa Fábio Konder Comparato.77

Em termos ideológicos e de conduta moral, podemos considerar que existe uma ética da empresa, que não é distinta da ética em sentido geral. A ética da empresa é uma parte da ética aplicada, como assim ocorre, segundo Adela Cortina, em toda ética das organizações e das profissões, devendo ser referenciada, todavia, aos princípios relacionados à atividade empresarial.78 No âmbito macroeconômico, podemos também considerar a existência de uma ética econômica, que se refere ao campo geral das relações sobre economia e ética, ou mais especificamente, “à reflexão ética sobre os sistemas econômicos, com especial interesse nas reflexões

77 Fábio Konder Comparato assim se refere, ao transcrever as razões do Manifesto Comunista escrito por Karl Marx e Friedrich Engels em 1848: “À vertiginosa transformação das técnicas de produção e distribuição, o capitalismo acrescentou uma profunda alteração na vida ética dos povos (...) e nesse contexto a burguesia exerceu uma função eminentemente revolucionária, ao destruir todas as relações sociais de caráter feudal ou patriarcal, só deixando subsistir entre os indivíduos o vínculo do puro e simples interesse, o frio “pagamento à vista”. Em suma, “ela dissolveu a dignidade da pessoa humana no valor de troca, e em lugar das inúmeras franquias, garantidas e bem adquiridas, introduziu uma liberdade única e sem escrúpulos: o livre comércio.” (Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 417). 78 Adela Cortina, Ética de la empresa, Madrid, Editorial Trotta, 5ª edição, 2000, p. 33.

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sobre a ética do capitalismo”.79 O sistema capitalista, que então se afirmava, no século XIX, como ideologia dominante, foi moldado nas teorias do livre mercado por Adam Smith (1723-1790) e por David Ricardo (1772-1823). A partir das concepções do liberalismo econômico, ao Estado não caberia senão o papel auxiliar de assegurar a liberdade de comércio, além de garantir, como função essencial, a defesa territorial, a aplicação da justiça e a realização de certas obras públicas.80

Todavia, da segunda metade do século XIX em diante, com o desenvolvimento dos meios de comunicação e de transporte, o Estado voltou-se, também, para ampliar e garantir os novos mercados nos países colonizados e nas nações em fase de independêrcia, com suas fontes de matérias-primas que deveriam ser exploradas pelas corporações privadas. Uma nova onda de colonialismo imperialista então se seguiu à expansão do comércio na Ásia, nas Américas, Central e do Sul, como também na África.

A Inglaterra aproveitou-se do seu poderio naval e dos conflitos bélicos decorrentes da guerra civil nos Estados Unidos (1861-1865), da guerra entre a França e a Prússia (1870-1871) e do movimento pela unificação da Itália (1860-1870), para consolidar a sua influência militar e comercial nos principais entrepostos mercantis, no Mediterrâneo, na América do Sul, Caribe, África, na Índia e na Ásia. Essa época histórica ficou conhecida como a era Vitoriana, o período mais longevo de um monarca no Reino Unido, na figura da Rainha Vitória.81

A expansão do capitalismo na abertura de novos entrepostos comerciais e territórios era acompanhada, quase sempre, de conflitos bélicos, e a guerra, como observa Comparato, “no sentido próprio e brutal da palavra, o empreendimento de

79 Sob o aspecto ético, explica Adela Cortina, “El capitalismo supuso también um cambio em la forma de relacionar-se los hombres entre sí, porque la expansión del mercado destrozó la sociedad tradicional. Em este nuevo tipo de sociedad ya no bastava la regulación ética de las relaciones personales para ordenar la vida, y era la primera formación econômica y social que no necesitaba como soporte uma uma regulación directamente fundamentada en el Diós de las religiones, sino que podia defender su dinâmica autônoma como si se tratara de la racionalidad econômico-social moderna”. (Ética de la empresa, cit., p. 52). 80 Adam Smith, A Riqueza das Nações, vol. II, cit., p. 147. 81 A Rainha Vitória (1819-1901), após a morte prematura do seu esposo, o Príncipe Alberto de Saxe-Coburgo Gotha (1819-1861), abdicou de qualquer interferência na política externa do Reino Unido, que passou a ser conduzida, nos anos do ápice do imperialismo inglês, por Primeiros Ministros do partido conservador, como Benjamim Disraeli (1804-1881) e William Gladstone (1809-1898).

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destruição em massa de vidas e bens, planejado e executado com os mais aperfeiçoados recursos da tecnologia, tem sido, desde o início, um dos principais estímulos ao desenvolvimento do capitalismo”.82 Em nome da expansão do comércio e da manutenção das fontes de matérias primas, as nações desenvolvidas não hesitavam em usar a força para submeter os povos dominados na fase do imperialismo pós Revolução Industrial.

Quando não utilizava o seu poderio bélico, a Inglaterra, através da persuasão diplomática e financeira, sendo ela a principal credora por empréstimos concedidos às nações recém saídas do colonialismo e que se tornaram independentes, como no caso do Brasil, se valia dessa condição para realizar investimentos na infra-estrutura. E assim, sob a proteção da coroa britânica, as suas empresas dedicavam-se a investimentos nas áreas de transporte, com a construção de portos e ferrovias, de comunicações, através das companhias de telégrafos, de energia e iluminação pública. A índole que orientava esses investimentos não decorria da intenção de ajudar ou subsidiar o desenvolvimento das nações periféricas subdesenvolvidas, mas sim para estabelecer uma relação de dominação e dependência comercial e desse modo favorecer as suas corporações industriais e mercantis.

A economia mundial passou por dois períodos históricos de modernização, na opinião de Fábio Konder Comparato. A primeira onda reformadora ocorreu no período entre as duas grandes guerras mundiais do século XX. Com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), desenhou-se uma nova geopolítica, com a ascensão dos Estados Unidos a potência econômica. Desse momento em diante, as nações imperialistas deixaram de manter sob jugo militar vários países da África, Ásia, Oriente Médio, da América Central e Caribe, e transferiram esse encargo para as companhias privadas, as quais assumiram o controle do tráfico mercantil e da exploração das matérias primas.

Assim ocorreu com grande intensidade no Oriente Médio, quando a exploração do petróleo ficou a cargo do maior cartel conhecido na história da economia mundial, formado pelas chamadas sete irmãs, sendo cinco empresas norte-americanas

82 Fábio Konder Comparato, Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno, cit. p. 419.

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(Standard Oil, Chevron, Gulf, Mobil e Texaco), uma inglesa (British Petroleum-BP) e uma anglo-holandesa (Shell).83 Essas empresas dominaram o mercado mundial de extração, refino, transporte e distribuição de petróleo e derivados de 1920 a 1973, quando ocorreu o primeiro choque do petróleo. Com o primeiro choque do petróleo, os países produtores e exportadores, através da sua organização, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo - OPEP, dominada pelos países árabes nos quais estavam localizadas as maiores jazidas, retomaram o controle da exploração das suas reservas, da oferta e da fixação do preço do barril de petróleo.

Até o final da década de 1970, os Estados ainda exerciam certo controle e dirigismo sobre a atividade econômica, resultante do processo intervencionista que se repetiu ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Ocorreu, a partir da necessidade de reconstrução da Europa, o ressurgimento do welfare state, ou Estado de bem estar social, que teve início na Inglaterra, ao final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). No welfare state, o Estado assumia funções sociais consideradas, pela legislação, como relevantes, a nível de educação, saúde, seguro social, transportes e habitação. Além de atuar com políticas sociais de serviço público e outras compensatórias da miséria, o Estado, ele próprio, desempenhava, através de empresas estatais, atividades econômicas, principalmente nos setores considerados estratégicos.84

O Estado de bem-estar social (welfare state) pode ser considerado como a face generosa do capitalismo, merecedor de certo conteúdo de eticidade. Ao mesmo tempo em que realiza a produção de bens, gera empregos, distribui (bem ou mal), a renda, e o trabalhador tem assegurado seus direitos sociais essenciais, a escola dos seus

83 Anthony Sampson, The Seven Sisters: The Great Oil Companies and the World They Shaped, New York, Viking Press, 1975, passim. 84 Essa situação jurídico-política de intervenção do Estado na economia, veio a ser descrita e explicada por Vital Moreira nos seguintes termos, sob a ótica da doutrina socialista: “Reconhecida definitivamente a incapacidade da economia para se regular a si mesma, em absorver ou neutralizar os conflitos que a dilaceram, em corresponder às exigências que lhe são feitas por uma sociedade que reclama o aproveitamento integral das suas potencialidades, reconhecida essa situação, é sobre o Estado que vem impender a execução de papéis que até aí lhe estavam defesos. É o Estado que vem reclamar-se de principal responsável pelo curso da economia, instituindo todo um quadro institucional em que ele se move, controlando-o, dirigindo-o ou dedicando-se diretamente à produção econômica”. (A ordem jurídica do capitalismo, Coimbra, Editorial Centelha, 1978, p. 55-56).

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filhos, hospital de qualidade para atender à sua família, transporte subsidiado e uma velhice amparada na seguridade.

Esse ciclo do welfare state começou a desaparecer graças a uma aliança conservadora entre os Estados Unidos, no governo Ronald Reagan (1911-2004), e a Inglaterra, com Margareth Thatcher (1925-2013) como Primeira Ministra, a partir de 1980, quando as exigências do mercado estavam conflitando com o excesso de ingerência do Estado na economia, como defendido pelo novo liberalismo econômico da Escola de Chicago, com base nas teorias de Friedrich Hayek (1899-1992) e Milton Friedman (1912-2006).

A segunda grande onda da reforma do sistema econômico mundial, denominada globalização, inicia-se, precisamente, com o primeiro choque do petróleo, em 1973, em que as matrizes energéticas começam a ser modificadas, e os avanços das telecomunicações e da informática reduzem as distâncias comerciais. O capitalismo torna-se ainda mais racional, diante do aumento da competição e do ingresso de novas empresas no mercado vindas do Oriente, em especial do Japão, China, Coréia, Indonésia e Singapura, desenvolvendo produtos com alto grau de tecnologia e a um custo menor do que aqueles disponíveis nos Estados Unidos e Europa.

Encerra-se a era do capitalismo clássico, ainda que denominado por muitos de capitalismo selvagem, em que os grandes empresários e financistas faziam questão de demonstrar seu poderio econômico, exercendo grande influência perante o governo dos seus países e, principalmente, sobre o governo dos países periféricos e subdesenvolvidos.85

A doutrina neoliberal que orientou ideologicamente o atual processo de globalização tinha e ainda tem na diminuição das atividades do Estado um dos seus

85 Considera também Fábio Konder Comparato, que “na época do capitalismo clássico, os grandes capitães de indústria conheciam perfeitamente a técnica de fabricação que empregavam, e orgulhavam-se dos produtos de suas fábricas. Hoje, os controladores de uma macro-empresa industrial só conhecem os números do balanço e da conta de resultado. Eles ignoram tudo da técnica da produção, e são incapazes de dizer, com precisão, quais os produtos de sua empresa”. (Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno, cit. p. 416).

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principais focos, no sentido de enfraquecer o poder de intervenção dos governos dos países periféricos ou em desenvolvimento sobre a economia.86

Esses programas de ajuste compreendiam, invariavelmente, o controle fiscal para a redução do déficit público, o corte de investimentos públicos, a desregulamentação da economia, a privatização de empresas estatais, a reforma do sistema bancário para permitir o ingresso de bancos estrangeiros, o livre comércio de produtos importados e a total liberdade de circulação de capitais.87 A globalização econômica desse novo período, ao impor esse modelo produtivo redivivo do liberalismo do século XVIII, tem por finalidade última perpetuar a divisão do mundo entre países ricos e países dependentes, e o papel que cabe aos países periféricos é o de dar sustentação aos países ricos, como um depósito para suas reservas de matérias primas e de mão de obra. 88

Além da proteção das nações desenvolvidas às suas corporações transnacionais, os organismos internacionais por esses países controlados, também estão exercendo uma função de garantir abertas todas as estradas físicas e virtuais para o livre comércio e para o fluxo de capitais de interesse do sistema capitalista. Segundo Comparato, “à medida que encolhia o poder dos Estados pobres de intervir

86 Segundo Comparato, “uma das principais medidas aplicadas progressivamente no mundo todo, com grande reforço de argumentação ideológica, desde o início da segunda vaga de globalização, foi o enfraquecimento dos poderes de direção econômica nos Estados mais pobres, com a adoção de políticas denominadas, no jargão financeiro internacional, de programas de ajuste” (Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno, cit. p. 424). 87 Na visão de Celso Furtado, “o processo atual de globalização a que assistimos desarticula a ação sincrônica dessas forças que garantiram no passado o dinamismo dos sistemas econômicos nacionais. Quanto mais as empresas se globalizam, quando mais escapam da ação reguladora do Estado, mais tendem a se apoiar nos mercados externos para crescer. Ao mesmo tempo, as iniciativas dos empresários tendem a fugir do controle das instâncias políticas. Voltamos, assim, ao modelo do capitalismo original, cuja dinâmica se baseava nas exportações e nos investimentos no estrangeiro”. (O capitalismo global, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2ª edição, 1998, p. 29). 88 O jusfilósofo João Maurício Adeodato, ao analisar as teorias da dependência econômica no mundo contemporâneo, esclarece: “A questão de se os países periféricos, uma vez que se abstraiam suas características históricas e específicas, podem ver nos países do primeiro mundo as linhas gerais de seu “desenvolvimento” futuro não dispõe de qualquer dado empírico para ser respondida afirmativamente. Ao contrário, parece corresponder a uma forma de organização social muito complexa e sem similar na História. O subdesenvolvimento não consiste em simples estágio nesta ou naquela direção. Em que pesem suas ambigüidades e divergências, as chamadas teorias da dependência tiveram o mérito de retirar a ênfase da tricotomia países subdesenvolvidos, em desenvolvimento e desenvolvidos, invertendo as teorias da modernização e argumentando que a existência do subdesenvolvimento consiste em uma conseqüência e uma condição para a manutenção do centro desenvolvido”. (Ética e Retórica – Para uma Teoria da Dogmática Jurídica, São Paulo, Saraiva, 2ª edição, 2006, p. 78).

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nos seus mercados internos, assistiu-se ao esforço considerável do poder de regulação econômica dos organismos internacionais, sob o controle das grandes potências”.89 E, a partir desse marco histórico, “com a passagem do capitalismo industrial ao capitalismo financeiro, traço característico da segunda vaga da globalização, esse conflito mundial de interesses aprofundou mais ainda os desequilíbrios econômicos e sociais préexistentes”.90

Revela-se contraditório que, em uma situação tal como a presente, se possa avaliar positivamente a perpetuação de uma relação de domínio dos países ricos sobre os países dependentes do centro desenvolvido. Apesar da existência, ao longo da história, de países ou blocos econômicos dominantes, da presença de estruturas imperialistas, o atual estágio de desenvolvimento tecnológico e a atuação dos organismos internacionais poderia representar uma situação de reequilíbrio nas relações econômicas mundiais. Todavia, não é isso que se verifica, mas pelo contrário, as distorções e as desigualdades tornam-se mais profundas.

Em termos concretos, observamos que o sistema capitalista tem como escopo maior de existência a obtenção de lucros e a acumulação cada vez maior de capitais nos países ricos. É importante destacar que, desde o final da Segunda Grande Guerra (1945), os Estados adotaram, em seus ordenamentos jurídicos, políticas de desenvolvimento econômico e social baseadas em planos e metas de amplo conteúdo intervencionista no domínio privado, características do Estado de bem estar social (welfare state), único modo de atuação possível em um mundo devastado pelo maior conflito bélico da história da humanidade.

As relações de comércio internacional, não obstante as tendências liberalizantes da economia de mercado, foram moldadas a partir de interesses estratégicos ditados pela geopolítica, que então separava o mundo de acordo com os sistemas ideológicos capitalista e comunista. E essa realidade foi radicalmente modificada com a nova era da globalização, como será abordado no capítulo seguinte, enquanto o sistema do direito de empresa, do modo como regulado pelo Código Civil

89 Fábio Konder Comparato, Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno, cit., p. 425. 90 Fábio Konder Comparato, Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno, cit., p. 427.

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de 2002, não acompanhou essa evolução, permanecendo atado a concepções ultrapassadas do início do século XX, características do Estado liberal.

De modo lapidar, Comparato assim conclui a respeito do espírito do capitalismo na atual era da globalização, expressando que, “de acordo com um lugar-comum sempre repetido, o capitalismo seria o melhor sistema econômico de produção de bens e o pior em matéria de distribuição de renda. Não mais: agora ele é o pior nos dois campos.” 91

1.7. A empresa na era da globalização

A globalização, no século XXI, não pode ser considerada, simplesmente, como doutrina ou ideologia de liberalização econômica, porquanto representa, antes de tudo, um sistema de reestruturação da economia e do direito comercial, tanto a nível interno das nações, mas, principalmente, a nível internacional.

Ainda antes do fim da Segunda Guerra Mundial, com os acordos de Bretton Woods,92 os países vencedores do conflito (Estados Unidos, Rússia, Inglaterra e França) adotaram, em seus ordenamentos jurídicos, políticas de desenvolvimento econômico e social baseadas em planos e metas de amplo conteúdo intervencionista no domínio privado. As relações de comércio internacional, não obstante as tendências liberalizantes da economia de mercado, foram moldadas a partir de interesses estratégicos ditados pela geopolítica, que separava o mundo em dois grandes sistemas econômicos, o capitalista e o comunista.

91 Fábio Konder Comparato, Ética – Direito, moral e religião no mundo moderno, cit., p. 427. 92 As conferências de Bretton Woods (New Hampshire, Estados Unidos) estabeleceram, no mês de julho de 1944, as regras para as relações comerciais e financeiras entre os países mais industrializados do mundo diante da proximidade do fim da Segunda Grande Guerra. O sistema Bretton Woods foi o primeiro exemplo, na história mundial, de uma ordem monetária totalmente negociada, tendo como objetivo governar as relações monetárias entre Nações-Estado independentes, dando origem ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional – FMI.

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Com a derrocada do regime soviético em 1989, e assim demonstrada, na prática, a incapacidade do sistema comunista de gerir, satisfatoriamente, o processo econômico em tempos de paz, abriu-se o caminho para a unificação do mercado mundial, agora sob o domínio do sistema remanescente, o capitalista, tendo no comando do processo as grandes corporações privadas transnacionais.

A tendência natural dessa mudança histórica passou a ser representada por uma rejuvenescida e revigorada doutrina liberal, denominada de neoliberalismo. Esse neoliberalismo compreende a idéia de uma quase absoluta liberdade de mercado, tendo como instrumentos principais a desregulamentação, a privatização e a redução da tributação nas operações internacionais, tudo de modo a permitir às empresas transnacionais subtrair ao Estado o papel de principal agente regulador da economia.

Em nenhum outro momento da história mundial a atividade econômica esteve ancorada em um único sistema de comércio internacional. Jamais se verificou, em época alguma da civilização, a formação de um mercado global, de norte a sul, do ocidente ao oriente, desde os tempos imemoriais dos fenícios, babilônios, romanos, ibéricos e, em época mais próxima, do imperialismo inglês do século XIX.

Como resultante da revolução tecnológica das telecomunicações e da informática, os negócios comerciais passaram a ser realizados em tempo real, as distâncias globais foram reduzidas de milhas e milhares de quilômetros, a poucos segundos, a uma fração mínima de tempo.93

93 Ao final do século XX, o fenômeno da globalização, ainda desconhecido da maioria das pessoas, assim revelava-se exteriormente e era explicado pelos cientistas econômicos: “A globalização constitui ao mesmo tempo uma tendência dominante neste fim de século, e uma dinâmica diferenciada. Um excelente exemplo nos é dado pela dimensão da especulação financeira. A circulação financeira internacional ultrapassa, em 1995, o trilhão de dólares por dia, para uma base de trocas efetivas de bens e serviços da ordem de 20 a 25 bilhões, o que significa trocas 40 vezes maiores do que as que seriam necessárias para cobrir atividades econômicas reais. Esta ampliação dramática da especulação financeira é literalmente carregada pelas novas tecnologias: a integração dos espaços mundiais de comunicação, via satélites e fibras óticas, e a capacidade de tratamento instantâneo de informação em gigantescas quantidades com a informática, levou a uma grande dianteira, na globalização, de um setor cuja matéria prima - a informação - é particularmente fluida, e que dispõe de amplos recursos para financiar os equipamentos mais modernos”. (Ladislau Dowbor, Da Globalização ao Poder Local: a Nova Hierarquia dos Espaços. Pesquisa e Debate, PUC-SP, vol. 7, número 1 (8), 1996, in http://dowbor.org/5espaco.asp, 15/05/2011).

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Na visão de George Soros, considerado como um dos maiores especuladores do mercado mundial nesta época de globalização, o capital financeiro “desempenha papel dominante no mundo de hoje, determinando o contínuo aumento da influência dos mercados financeiros no sistema capitalista global”.94 Essa afirmação encontra inteiro respaldo nos dados reais de circulação de investimentos no mundo, como destacado acima, na análise de Ladislau Dowbor, em que o capital especulativo realiza, diariamente, transações superiores em quarenta vezes o volume das operações comerciais com bens, mercadorias e serviços produtivos, não financeiros. Esse capital especulativo movimenta-se com velocidade impressionante, procurando os mercados financeiros que ofereçam maior rentabilidade para operações de curto prazo, realizadas, geralmente, com a compra de títulos públicos e investimentos nas bolsas de valores.

Assim, por exemplo, se a tendência da bolsa de valores de São Paulo, no Brasil, sinaliza para uma provável queda futura no movimento das principais ações, o capital especulativo, que investiu dinheiro nessas ações, vende os títulos da sua carteira em uma tarde, contabiliza o resultado, e envia os recursos apurados, no mesmo dia, para aplicação desse capital na compra de títulos emitidos por companhias asiáticas em um banco ou na bolsa de valores na Malásia, Indonésia ou Coréia do Sul.

A diferença de fuso horário, entre os países do ocidente e os mercados do oriente, permite o constante trânsito e reaplicação de capitais, em tempo real, de um banco na costa leste dos Estados Unidos para a bolsa de Tóquio, no Japão. Dependendo do resultado das bolsas nos mercados do Oriente, as aplicações podem ser transferidas, eletronicamente, de volta para a conta do investidor norte-americano, no mesmo dia, e os ganhos apurados aplicados, no dia seguinte ou no mesmo dia, em outra bolsa de valores no mercado de qualquer país desenvolvido ou emergente. O capital circula quase à velocidade da luz, comandado por sistemas informatizados programados para maximizar os lucros dos investidores.

A circulação de capitais especulativos em busca da maximização de resultados no curto prazo, sem qualquer correlação com investimentos produtivos, representa

94 George Soros, A crise do capitalismo, Rio de Janeiro, Campus, 2ª edição, 1999, p. 155.

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uma das principais causas para o aumento da concentração de riquezas nos países desenvolvidos. As empresas transnacionais não financeiras também se aproveitam desse movimento, e aplicam suas reservas em investimentos especulativos nos mercados e bolsas dos países periféricos.

Para a redução dos seus custos de produção, a principal estratégia que passou a ser adotada por várias empresas transnacionais, especialmente nos setores automotivo, eletroeletrônico e de confecções, consistiu em transferir as suas plantas industriais para países da Ásia e da América do Sul, onde encontrava mão de obra barata e condições favorecidas para a exportação de seus produtos. Esse processo de terceirização e transferência do processo de industrialização para países periféricos vem a ser definido como estratégia de outsourcing.

O caso da companhia norte-americana de material esportivo Nike é dos mais emblemáticos. Essa empresa explorava, no ano de 2005, apenas três fábricas instaladas nos Estados Unidos (nos estados do Oregon, Tennessee e North Carolina), gerando 26 mil empregos. Ao mesmo tempo, ela controlava mais de vinte fábricas localizadas em países do terceiro mundo, como na China, Tailândia, Malásia, Vietnam e até no Paquistão, que empregam, aproximadamente, 650 mil trabalhadores.95 Desse modo, verifica-se que os postos de trabalho explorados em países periféricos e subdesenvolvidos são vinte e cinco vezes superiores, em grau absoluto, comparativamente ao país sede dessa empresa transnacional.

Seja no campo financeiro, como no campo da produção industrial, a economia globalizada segue a lógica das oportunidades de mercado, em que as regras do comércio internacional são ditadas pelas estratégias de negócios das empresas transnacionais, que agem através de seus estabelecimentos e filiais localizados nos países em desenvolvimento como verdadeiras zonas francas para a realização de operações em escala mundial.

Ainda no início do período de globalização da economia, o historiador inglês Eric Hobsbawn afirmava que “estamos vivendo no presente uma curiosa combinação de tecnologia do final do século XX com o livre comércio do século XIX e com o

95 Fonte: Nike, in www.nike.com/nikebiz/nikebiz.jhtml?page=3&item=facts, 22/09/2012.

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renascimento de centros intersticiais característicos do comércio mundial no período da Idade Média”.96 A globalização, assim, apesar do significativo impacto que vem provocando na economia mundial e nas regras do comércio internacional, produz, paralelamente, profundas mudanças na economia interna dos países periféricos, como, por exemplo, pela inibição do papel regulatório que os Estados exerceram no decorrer da segunda metade do século XX.

Esse novo sistema econômico dominado pelos interesses das grandes corporações, vem também gerando mudanças culturais, por força da utilização massiça dos meios de comunicação que afetam e influenciam, indistintamente, sociedades formadas por padrões históricos diferenciados no tempo e no espaço.

A interligação, em tempo real, das pessoas, das instituições sociais, das universidades, dos agentes governamentais e das empresas, através da rede mundial de computadores (World Wide Web) operada pela Internet, em que dados e informações circulam a uma impressionante velocidade, geram um novo ambiente multicultural, de miscigenação de costumes e de padronização nas relações de consumo. Esse ambiente encontra-se inteiramente adaptado à visão da globalização como um sistema bem mais amplo, e não apenas de conteúdo econômico, mas também sociológico e cultural.97

O intensivo desenvolvimento tecnológico verificado nas últimas décadas, a revolução da telemática e dos meios de comunicação, podem ser apontados como fatores determinantes de todo esse processo. As relações no âmbito do direito comercial e das empresas não se desenvolvem mais, apenas, no ambiente físico, mas a partir e em torno de um sistema virtual de formação de vontades e de representação

96 Eric Hobsbawn, Nações e Nacionalismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991, p. 17. 97 Dentro dessa perspectiva, Olea e Flores definem a globalização do seguinte modo: “Por globalización entendemos el proceso en que se generaliza la intercomunicación entre economías, sociedades y culturas, donde se desarrollan y aplican las tecnologías de la comunicación y la informática, junto con los acuerdos entre los Estados para facilitar todo tipo de intercambios, especialmente de orden económico: desregulaciones, eliminación de barreras arancelarias y otros impedimentos a una mayor interrelación económica entre pueblos y Estados.” (Victor Flores Olea e Abelardo Mariña Flores, Crítica de la Globalidad – Dominación y Liberación en Nuestro Tiempo, México, Fondo de Cultura, 2000, p. 11.

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de interesses econômicos e não-econômicos, mas cuja resultante prática serve, perfeitamente, às necessidades de expansão do comércio internacional.

As empresas transnacionais são as maiores beneficiárias desse sistema de comércio global, na medida em que podem ofertar seus bens e serviços em escala mundial, tanto através dos meios proporcionados pelo comércio eletrônico, como mediante a exploração direta dos mercados internos, através de estabelecimentos físicos operados dentro dos países periféricos. E essas bases produtivas instaladas nos países em desenvolvimento servem a dois objetivos principais: primeiro, para a exploração do próprio mercado interno, em grande parte das vezes com alto grau de concentração econômica e de monopolização de certos segmentos; e segundo, para se valer dos reduzidos custos de produção presentes nesses países utilizados como base para a exportação de bens manufaturados, notadamente na remuneração do trabalho assalariado e na aquisição de matérias-primas.

As relações comerciais prevalentes na economia globalizada caracterizam-se, pois, por essa quase absoluta desconsideração dos sistemas e fronteiras nacionais, em que os aspectos jurídico-formais, que sempre condicionaram essas relações, como o regime legal decorrente do país de sede da empresa, o local de constituição ou de execução das obrigações, a aplicação dos elementos de conexão para a fixação da lei aplicável à solução de controvérsias, foram substituídos por um direito anacional, de natureza supraestatal, apartado de regras definidoras da competência territorial.

Esse sistema econômico global segue, assim, uma lógica própria, de índole cosmopolita e transnacional. Dentro dessa lógica, não importa o regime de determinação da jurisdição para a resolução de possíveis conflitos, que ficarão à margem do processo decisório, considerando que a lógica empresarial é determinada pelo grau de probabilidade de sucesso e conclusão dos negócios, e não da possibilidade de conflito de interesses.

Nas operações comerciais, a normal execução dos acordos e contratos é a regra, enquanto que a exceção consiste na remota hipótese de inexecução. Ademais, com a amplitude e disseminação das informações referentes às partes contratantes

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envolvidas em negócios internacionais, disponíveis na rede mundial de computadores e nos cadastros informatizados alimentados, principalmente, pelos bancos e instituições financeiras, os contratos somente são formalizados quando os contratantes possuem amplo conhecimento da capacidade econômica e patrimonial recíproca. A confiança e fiabilidade contratual é decorrente, não apenas, do princípio universal da boa-fé, mas, principalmente, das informações cadastrais previamente coletadas, organizadas sob a forma de dossiês que contém um histórico completo das relações comerciais de cada parte contratante.

O risco comercial passa a ser um elemento previsível e controlável no âmbito de cada relação contratual no mercado internacional. E o aumento do grau de segurança na celebração desses negócios, no ambiente globalizado e altamente informatizado, coloca, em segundo plano, a probabilidade de inexecução dos contratos e do surgimento de conflitos de interesse. E ainda assim, mesmo diante da hipótese de conflito, a eleição consensual de instâncias privadas de jurisdição arbitral torna dispensável, na grande maioria dos casos, o recurso às esferas estatais de solução de controvérsias.

O mercado vem a observar e seguir, como exemplo marcante de uma volta ao sistema da jurisdição consular das corporações de mercadores da época anterior ao mercantilismo, um procedimento privado de arbitragem, em que o contrato constitui autêntica lei entre as partes, cabendo a um árbitro privado dirimir os possíveis conflitos decorrentes da interpretação e aplicação das normas contratuais.

Os princípios da autonomia da vontade e da liberdade de contratar passam a ser considerados, nesse espaço das relações internacionais de comércio, os vetores fundamentais da economia mundial, sob a capa de uma nova lex mercatoria. Essa nova lex mercatoria, de acordo com a definição de Irineu Strenger, representa "um conjunto de procedimentos que possibilita adequadas soluções para as expectativas do comércio internacional, sem conexões necessárias com os sistemas nacionais e de forma juridicamente eficaz".98

98 Irineu Strenger, Direito do comércio internacional e lex mercatoria, São Paulo: LTR Editora, 1996, p. 78.

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A lex mercatoria desta fase de globalização se expressa, portanto, como um direito supranacional, desvinculado dos sistemas estatais, constituindo um conjunto de normas pragmaticamente moldadas e desenvolvidas para permitir às empresas transnacionais um amplo grau de liberdade de exploração mercantil, não dependendo o processo decisório dessas corporações da interferência indesejada das ordens jurídicas estatais.99

O capitalismo global passou a se afirmar, portanto, como o sistema econômico dominante e hegemônico no início do século XXI. Seguindo os seus próprios dogmas, leis e diretrizes de caráter essencialmente privatista, fundado em uma nova lex mercatoria, as empresas transnacionais financeiras transitam livremente de país para país, transferem recursos, capitais e investimentos pelo vasto corredor eletrônico, auferem ganhos e lucros no mercado virtual, sem quase nenhum esforço produtivo. E as empresas industriais, quando necessitam mobilizar recursos físicos, sempre no sentido de reduzir, ao máximo, os seus custos de produção, aproveitam a infraestrutura dos países periféricos e a mão-de-obra barata para instalar plantas industriais descartáveis, destinadas à exportação de produtos manufaturados para o mercado internacional, pouco ou quase nada se preocupando com as funções sociais que as empresas deveriam desempenhar nos países utilizados como base para a sua exploração.

No âmbito do direito comercial, as questões juridicamente relevantes são colocadas em segundo plano pelas empresas transnacionais e de grande porte, não importando os efeitos dessas relações jurídicas no que concerne ao direito aplicável, aos aspectos derivados dos elementos de estraneidade e da jurisdição competente para a solução de conflitos de interesse mercantil. Acima de qualquer preocupação com as conseqüências jurídicas da exploração comercial, prevalece o escopo da

99 A expansão e liberalização das relações internacionais de comércio foram viabilizadas, desse modo, graças à revolução tecnológica da informática e das telecomunicações, sem a qual essa política expansionista não seria concretamente possível, no entender de Octávio Ianni: “Esta pode ser considerada uma das características mais notáveis da globalização do capitalismo: as técnicas eletrônicas, compreendendo a microeletrônica, a automação, a robótica e a informática, em suas redes e vias de alcance global, intensificam e generalizam as capacidades dos processos de trabalho e produção. No mesmo curso da dispersão geográfica das fábricas, usinas, montadoras e zonas francas, simultaneamente à nova divisão internacional do trabalho e produção, intensificam-se e generalizam-se as tecnologias destinadas a potenciar a capacidade produtiva de todas as formas sociais de trabalho”. (Teoria da Globalização, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004, p. 195).

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busca incessante do lucro e de resultados que remunerem, satisfatoriamente, o capital investido, e que gerem bônus para seus executivos e dirigentes.

O comportamento adotado pelas empresas transnacionais e pelas grandes corporações despreza, invariavelmente, partindo da posição egoística e da visão pragmática dos seus acionistas controladores, os elementos dos quais possam advir questionamentos jurídicos sobre a efetividade mercantil versus o atendimento às demandas sociais, o que seria normalmente previsível sob a perspectiva dos países periféricos ou dependentes, submetidos à exploração econômica. A empresa, na atual era da globalização, é uma instituição ou entidade econômica que extrapola os limites nacionais e fica submetida aos ordenamentos estatais exclusivamente para atender aos requisitos da sua existência formal.

Sob essa concepção capitalista pura, a empresa existe como um fim em si mesma, como organização destinada a satisfazer os interesses dos seus sócios ou acionistas controladores, deslocando para segundo plano o compromisso com a sua função social, ainda que algumas empresas venham a inserir nas suas políticas e estratégias ações voltadas à proteção ambiental, a investimentos em educação e qualificação profissional, no âmbito de medidas da denominada governança corporativa.

De um modo geral, a empresa vem desempenhando as suas funções econômicas, na atual era da globalização, com ampla variabilidade no grau de especialização e de organização patrimonial. Destarte, desde as micros e pequenas empresas, até as grandes corporações transnacionais, todas elas estão submetidas a um sistema econômico superior, que pode ser representado por uma ampla teia de interesses que tem suas regras ditadas pelo centro desenvolvido e que determina o modo de organização da produção e das relações de troca nos países periféricos.

Não obstante a lógica econômica do sistema, as empresas exercem uma função social de grande e estratégica relevância, razão pela qual a organização empresarial não pode ser considerada, exclusivamente, como um objeto de interesse do empresário capitalista, cuja principal utilidade é gerar lucros para os seus acionistas.

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Desde o surgimento das grandes corporações multinacionais e da pulverização do capital das companhias em bolsas de valores, passou a ocorrer um nítido processo de separação da propriedade do capital do controle das empresas, como demonstrado pelos estudos de Adolf Berle e Gardiner Means.100 A partir desse novo referencial teórico, a pessoa do empresário é diferenciada da empresa, cabendo assim a ela cumprir sua função social, como sujeito de proteção jurídica.101

Dentro dessa nova perspectiva dominante no processo de globalização da economia neste século XXI é que deve a regulação da empresa ser estruturada, a partir de novos conceitos, de novas formas adaptadas à velocidade dos negócios de massa, de concepção da organização empresarial como instituição social, concepção esta ausente no regime do direito de empresa do Código Civil de 2002.

Na contramão da história e da evolução do processo econômico, o Código de 2002 continuou regulando a empresa como uma entidade formalista e burocrática, apegado a fórmulas ultrapassadas, fato este que poderá resultar em dificuldades de adaptação das empresas brasileiras ao dinâmico mercado globalizado.

O modelo de empresa reproduzido pelo Código Civil de 2002, foi aquele constante do Código italiano de 1942, construído na ideologia fascista e influenciado pela liberdade econômica do grande capital, em oposição ao Estado social. Esse modelo, apesar de avançado para o seu tempo, ainda na primeira metade do século XX, outorgado durante a Segunda Guerra Mundial, em ambiente totalmente conturbado e conflituoso, não atende, na realidade brasileira do século XXI, aos parâmetros e exigências das empresas nacionais e transnacionais no atual cenário de economia globalizada e altamente competitiva.

100 Adolf A. Berle Jr. e Gardiner C. Means, Società per azioni e proprietà privata, Torino, Giulio Einaudi Editore, 1966, p. 8-9. Edição em inglês The Modern Corporation and Private Property, New Brunswick and London, Transaction Publishers, edição original 1932, Tenth printing, 2009. 101 Para Arnoldo Wald, “A visão realista do mundo contemporâneo considera que não há mais como distinguir o econômico do social, pois ambos os interesses se encontram e se compatibilizam na empresa, núcleo central da produção e da criação da riqueza, que deve beneficiar tanto o empresário como os empregados e a própria sociedade de consumo. Não há mais dúvida que são os lucros de hoje que, desde logo, asseguram a sobrevivência da empresa e a melhoria dos salários e que ensejam a criação dos empregos de amanhã.” (Comentários ao Novo Código Civil - Livro II – Direito de Empresa, cit., p. 2).

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Capítulo 2

Codificação e descodificação do direito privado

2.1. Introdução ao problema da codificação; 2.2. Codificação e descodificação do direito privado no Brasil; 2.3. A unificação restrita do direito privado no Código Civil de 2002; 2.4. Problemas metodológicos da codificação do direito privado; 2.5. O retorno ao problema da autonomia e a constitucionalização do direito comercial.

2.1. Introdução ao problema da codificação

O Código Civil de 2002 representou uma decisão de política legislativa que alterou, de modo profundo, o direito privado brasileiro. A mudança do sistema codificado, com a revogação do Código Civil de 1916, manteve a opção do legislador de promover, simplesmente, a substituição do diploma básico de regência do direito privado no Brasil por outro considerado mais atualizado e adaptado às exigências da modernidade e das concessões ao Estado social. Essa opção vem a colocar em discussão as tendências legislativas do direito privado na era contemporânea, que oscila entre o regime clássico-romanista da codificação, e o movimento mais recente da descodificação.

O direito civil sempre foi considerado, desde a época de Justiniano, mas principalmente a partir da sua configuração moderna posta pelo Código Civil francês de 1804, como sendo o conjunto de normas destinadas a regular as relações privadas das pessoas. As normas do Código Civil são denominadas como de direito comum exatamente porque fazem parte da esfera de interesses próprios das pessoas em sua vida cotidiana e visam estabelecer uma certa estabilidade nas instituições por ele disciplinadas, especialmente as de natureza patrimonial, obrigacional e dos vínculos de família e sucessões.

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A codificação, com efeito, encontra-se no centro das críticas modernas que indagam a respeito da melhor maneira de definir os conceitos e institutos de direito, bem como normatizar as relações derivadas dos atos e negócios jurídicos na realidade contemporânea. A política legislativa adotada por cada Estado ou Nação demonstra essa preocupação com a definição do modelo de regulação das relações jurídicas, que pode ser através de um sistema codificado, quando se pretender maior grau de perenidade ou estabilidade das regras e institutos jurídicos, ou por meio de sistema não codificado, em que leis esparsas e mais flexíveis devem disciplinar as relações de direito, eis que se revelam mais facilmente adaptáveis às mudanças tecnológicas, à evolução e transformações sócio-culturais.

A origem do processo de codificação remonta ao iluminismo e ao jusracionalismo que influenciaram a consciência dos Estados absolutistas da Europa a partir do século XVIII. O despotismo esclarecido guarda a sua justificação ontológica no racionalismo, na crença absoluta na razão humana e na organização da sociedade a partir de modelos ideais.102 A base histórica do processo de codificação assenta-se no direito natural, ou seja, na construção racional de princípios derivados do direito que são considerados inerentes à razão humana e que representariam uma passagem do estado da natureza para o estado civil, como assim considerou Rousseau (1712-1778), ao mencionar a substituição, na conduta humana, do “instinto pela justiça, e dando às suas ações a moralidade de que não dispunha anteriormente”.103 Também na teoria política de Montesquieu (1689-1775) 104 e no racionalismo de Voltaire (1694-1778),105 podemos encontrar referências aos princípios do direito natural como fio condutor do processo de elaboração das leis. O próprio Voltaire integrou a corte do Kaiser Frederico Guilherme II (1744-1797), Imperador da 102 É assim que, a partir desse jusracionalismo, Franz Wieacker compreende a noção de um código de leis: “O Código é, quer do ponto de vista do conteúdo, quer do ponto de vista estilístico, a expressão de uma cultura evoluída e isto não apenas segundo o padrão dos critérios da época. Nesse ponto quase único da legislação européia, ele apresenta um plano global da construção do Estado a partir dos fundamentos de base da sociedade humana.” (História do Direito Privado Moderno, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1980, p. 378). 103 Jean Jacques Rousseau, Do contrato social, São Paulo, Hemus, 1981, p. 31. 104 No seu discurso sobre as leis positivas, afirma Montesquieu: “A lei, em geral, é a razão humana, na medida em que governa todos os povos da terra, e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas os casos particulares em que se aplica essa razão humana”; (Charles Louis de Secondat, Baron de la Montesquieu, Do espírito das Leis, Livro Primeiro, São Paulo, Abril Cultural, 2ª edição, 1979, p. 28. 105 François Marie Arouet de Voltaire, Dicionário Filosófico, São Paulo, Abril Cultural, 2ª edição, 1978, p. 153-154.

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Prússia, havendo contribuído, com seu humanismo racionalista, na elaboração do primeiro Código de Terras prussiano, o Allgemeines Landrecht, que entrou em vigor em 1794, o qual introduziu grandes inovações no regime da posse e na discriminação da propriedade privada.106

O processo de codificação prossegue na Europa como produto do jusracionalismo e da expressão de um direito natural dos homens contra a opressão da monarquia, que se sustentava na concentração da propriedade desde o período feudal, alcançando expressão maior no Código Civil da França de 1804, obra de Napoleão Bonaparte (1769-1821) como Primeiro Cônsul e depois Imperador, cuja promulgação representa um dos principais pilares de afirmação do regime revolucionário instituído em 1789. A revolução francesa, com efeito, consolidou-se no início do Século XIX graças ao restabelecimento de um Estado forte, baseado em leis ditadas pelo interesse geral, superando a era de terror e de insegurança das instituições, que dominou o cenário político até a queda de Maximilien Robespierre (1758-1794) e no período de transição do Governo do Diretório de Paul Barras (1755-1829), até a ascensão de Napoleão Bonaparte como Primeiro Cônsul em 1799.

O Código Civil francês de 1804, denominado de Código dos Franceses ou Código de Napoleão, inaugurou a chamada época oitocentista das codificações, servindo como modelo para que outros países europeus passassem a adotar a sua estrutura sistemática na regulação do Direito Privado.107 O Código francês de 1804, que possibilitou o surgimento da Escola da Exegese, dedicada à sua interpretação literal, era fruto dos princípios emanados do direito natural e da crença iluminista na capacidade do homem de estipular regras gerais e comuns destinadas a regular, em um único diploma normativo, toda sorte de relações sociais.

O caráter jusnaturalista do processo de codificação do direito resulta dessa abordagem racional, em que cada indivíduo deve reconhecer no Estado uma instância superior, conduzida pela razão, e que tem como preocupação e finalidade estabelecer

106 Franz Wieacker, História do Direito Privado Moderno, cit., p. 372-375. 107 Na visão de Fábio Konder Comparato, “as ideias-mestras do Código Civil Francês, de 1804, foram: a) a preservação da certeza e da segurança jurídicas; b) a uniformização e o universalismo legislativos; c) o racionalismo”. (Projeto de Código Civil, Ensaios e pareceres de Direito Empresarial, Rio de Janeiro, Forense, 1968, p. 541).

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as regras de ordenação da sociedade. Assim, em primeiro plano, os interesses do Estado, que representaria a razão natural, deveriam estar sobrepostos aos interesses individuais, e somente o Estado, através das leis emanadas dos seus órgãos legislativos, possuiria capacidade racional para ordenar as relações jurídicas no plano individual. Em nome dessa necessidade de organização da sociedade, as pessoas devem abrir mão de determinados direitos e prerrogativas que normalmente poderiam exercer frente a seus semelhantes e ao próprio Estado, quando estejam esses direitos contrapostos ao interesse coletivo.108

Na Metafísica dos Costumes, Kant (1724-1804) classifica o direito, como ciência sistemática, “em direito natural, que se funda em princípios puramente a priori, e em direito positivo (regulamentar), que tem por princípio a vontade do legislador”.109 Separando a moral do direito, Kant reconhece que o direito privado seria equivalente ao direito natural, a certos pressupostos emanados da razão humana, ao passo que o direito civil, como direito positivo, teria caráter de direito público, como modo de ordenamento da sociedade civil.110 Nessa passagem da sua metafísica, Kant dá a entender que o racionalismo jusnaturalista pode também influenciar e determinar o conteúdo das leis positivas, na medida em que a função maior do legislador será sempre a de tentar ordenar, do modo mais racional possível, as relações sociais.

Não podemos deixar de considerar que esse raciocínio jusnaturalista também seria aplicável na esfera política, através da delegação que os cidadãos conferem aos representantes do Estado para a elaboração das normas constitucionais e das leis.

108 Em seus fundamentos de justificação, na sua redução filosófica, a doutrina, segundo Mario Viora, assim procura explicar as premissas que orientaram o processo de codificação, à luz dos princípios do direito natural: “Sono note le premesse da cui partiva la Scuola del Diritto naturale. In rapida sintesi si possono riepilogare così: l’uomo, originariamente, nello stato di natura, fu subietto di um numero determinato di diritti. A un certo punto l’uomo stesso, per superare gli incovenienti e i danni propri dello stato di natura si era fatto uomo cilvile e político, aveva creato cioè lo Stato, e per ottenere ciò aveva dovuto abdicare ad alcuni dei suoi diritti innati in favore di esso. Ma in seguito era accaduto che lo Stato invadesse la sfera dei diritti individuali, violando così il patto originale di costituzione della società, in virtù del quale avevano consentito a sacrificare soltanto quei diritti proprii che erano incompatibili con la sussistenza dello Stato. Era tuttavia desiderabile che la sfera dei diritti dello Stato fosse ricondotta allá primitiva estensione. Ad ottenere ciò era necessário, secondo gli insignamenti della Scuola, una dúplice opera, e cioè la proclamzione di nuovi statuti e la codificazione civile: nei primi si sarebbero precisati i diritti dello Stato, nella seconda i diritti degli individui.” (Consolidazioni e Codificazioni – Contributo alla storia della codificazione, Torino, G. Giappichelli, 3ª edição, 1967, p. 32-33). 109 Emmanuel Kant, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, São Paulo, Ícone Editora, 2004, p. 55. 110 Kant, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, cit., p. 60.

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Todavia, aqui, o raciocínio é diverso, diferente, porque tratam-se de normas de ordem pública, da organização em si do Estado e da determinação da esfera de liberdade com que cada pessoa pode atuar diante do interesse geral e coletivo.

O movimento de codificação do direito, tanto privado quanto público, através dos Códigos Civil, Comercial, Penal e de Processo, alcançou o seu ápice no Século XIX, como expressão desse racionalismo positivista, seguindo a tendência da sistematização do direito. O que se discute no presente é se a codificação ainda permanece sendo a forma mais adequada de organização normativa do direito, dado que a codificação se fez necessária e importante em determinado momento histórico, de afirmação ideológica da burguesia que ascendeu ao poder na Revolução Francesa e que necessitava de normas perenes e estáveis para contrapor-se ao deposto regime monárquico.

Assumindo posição contrária à codificação, Friedrich Karl Von Savigny (1779-1861), em célebre ensaio publicado em 1814, “A vocação do nosso século pela legislação e pela jurisprudência”, lembrava que o direito codificado, em certo momento, “deixa de corresponder à realidade do direito vigente, porque a evolução do sistema não pode parar, não obstante a promulgação do código, porque este é apenas a representação de um momento histórico determinado”.111 Para Savigny, “os códigos são fossilizações do direito, constituem algo de morto, que impede o desenvolvimento ulterior”.112 Com efeito, a codificação tem uma pretensão à estabilidade das suas normas, a partir de modelos e institutos gerais, sendo essa tendência conservadora uma das suas principais marcas características.

Nessa perspectiva inicial, cabe analisar o recente processo de codificação do direito privado brasileiro, a partir do Código Civil de 2002, tomando como referencial de discussão a nova tendência da descodificação e da legislação estruturada a partir de microssistemas normativos, o que, na visão de Gustavo Tepedino, representou um “retrocesso político, social e jurídico”.113 Todavia, a crítica que constitui o foco principal

111 Mario E. Viora, Consolidazioni e Codificazioni – Contributo alla storia della codificazione, cit., p. 47. 112 Friedrich Karl Von Savigny, apud Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, Parte Geral, vol. 1, São Paulo, Saraiva, 39ª edição, 2003, p. 47. 113 “O fato é que o projeto foi redigido há quase 30 anos (a comissão foi constituída em maio de 1969) e a sua aprovação representará impressionante retrocesso político, social e jurídico. Do ponto de vista

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deste trabalho tem por finalidade principal questionar as razões e justificativas que levaram o legislador a inserir no novo Código Civil um título relativo ao direito de empresa, campo de regulação das atividades econômicas que, em virtude da dinamicidade do mercado e das operações mercantis, jamais deveria ter sido objeto de codificação pela legislação civilista. Essa tentativa de unificação do direito das obrigações e, parcialmente, do direito societário, revela-se contraditória com a experiência acumulada no sistema de direito positivo brasileiro, que desde muito tempo lançou o vetusto Código Comercial de 1850 às prateleiras poeirentas do desuso, e a legislação mercantil supletiva, paralela e não codificada, estava demonstrando-se satisfatória e mais compatível com as necessidades de regulação da atividade econômica.

O principal erro do legislador brasileiro foi o de tentar reproduzir, no nosso país, no século XXI, a experiência do Código Civil Italiano de 1942, de inspiração totalitária, sancionado pelo ditador Benito Mussolini (1880-1945), aliado da Alemanha nazista de Adolf Hitler (1889-1945). Esse diploma fascista inseriu o regime do direito de empresa na estrutura do Código Civil com a única finalidade de ampliar o controle estatal sobre as atividades produtivas,114 considerando, inclusive, que a atividade da empresa e do empresário estava inserida como modo de exercício do trabalho.115

A partir da colocação do tema e da análise da questão da codificação versus descodificação, incluindo a investigação do longo processo legislativo que gerou a Lei 10.406/2002, o presente capítulo tem como objetivo contribuir para as discussões em voga sobre as conseqüências da reforma do direito privado brasileiro, e dos problemas que resultaram da imposição artificial do regime do direito de empresa pelo Código Civil de 2002.

político, a redação do projeto precede a consolidação de processo histórico identificado, nos anos 70, justamente com a era da descodificação. Vale dizer, uma codificação não surge por acaso. Expressa momento de unificação política e ideológica de um povo, fazendo prevalecer o conjunto de regras que a sintetiza. Assim foi no século XIX, após a Revolução Francesa, assim se deu na Europa do pós-guerra, com a derrubada dos governos totalitários”. (O velho projeto de um revelho Código Civil, in Temas de Direito Civil, Renovar, Rio de Janeiro, 3ª edição, 2004, p. 499-500). 114 Analisando exatamente este aspecto, Paula Forgioni afirma que “a noção da empresa que acaba positivada no Codice Civile brota em contexto fascista, sendo concebida como um dos principais instrumentos do intervencionismo estatal”. (A evolução do direito comercial brasileiro: Da mercancia ao mercado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2ª edição, 2012, p. 49). 115 Código Civil Italiano de 1942 - Livro V – Del Lavoro, artigos 2.060 a 2.246.

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2.2. Codificação e descodificação do direito privado no Brasil

Durante muitos anos questionou-se, no Brasil, a respeito da real necessidade de substituição do Código Civil de 1916 por um novo diploma codificado, mais adaptado às profundas mudanças sociais, políticas, culturais, econômicas e tecnológicas que a sociedade viveu e experimentou ao longo do último milênio. Com efeito, o Código de 1916, desgastado por uma vigência de mais de oitenta anos, não poderia mais refletir e normatizar a realidade social modificada por duas grandes guerras mundiais, com a expansão do processo de industrialização e do imperialismo econômico, do desenvolvimento tecnológico e das telecomunicações, e dos avanços da nova ciência da informática nos anos seguintes, que gerou a revolução cibernética ao final do século XX.

Em razão das radicais transformações econômicas e sociais e do desenvolvimento tecnológico, que passaram a influenciar a sociedade contemporânea a partir da segunda metade do século XX, o Código de 1916 apresentava-se defasado e superado em diversos institutos e conceitos relacionados, principalmente, aos direitos da personalidade, das novas modalidades contratuais, das relações de propriedade e da evolução dos costumes sociais nas áreas do direito de família e das sucessões.

Mesmo reconhecendo a defasagem do Código de 1916, Orlando Gomes, um dos mais consagrados civilistas pátrios, voltou-se contra o processo de elaboração do novo código, defendendo posição contrária a essa recodificação, diante das tendências recentes da descodificação.116

116 Apesar de ter sido autor de um dos anteprojetos do Código Civil, Orlando Gomes, tal como na célebre retratação de Vivante, modificou a sua opinião, e assim externou sua posição: “A substituição global de um novo Código Civil é atualmente um anacronismo tanto mais gritante quanto se limite, mantendo a orientação filosófica e ideológica do código a ser abrogado, a enunciar praticamente os mesmos comandos jurídicos com leves alterações, quase sempre para pior, e com intencional exclusão de institutos e soluções normativas que já integram a legislação especial e abundante que as mutações sociais determinaram e continuam a motivar.” (O problema da codificação, Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Rio de Janeiro, ano I, nº 1, 1984. p.12-13).

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Essa não era, obviamente, a opinião de Miguel Reale, coordenador do projeto do novo Código, que defendia a codificação como uma obra de grande importância histórica e cultural, como um exemplo de evolução do direito positivo exigido pela nossa época.117

Em um único ponto específico, a posição dos defensores do novo código era justificável: a defasagem social, tecnológica e cultural do Código de 1916. Concebido ainda no século XIX, para outra realidade, apesar da construção teórica coerente dos seus principais institutos, principalmente no campo do direito das obrigações, o Código de Clóvis Bevilaqua não se demonstrava mais satisfatório para reger as relações sociais na atual era da revolução cibernética e de globalização econômica.118

No decorrer da vigência do Código Civil de 1916, com efeito, várias foram as mudanças introduzidas nos seus institutos moldados desde o secular direito romano e compilados nas ordenações e códigos europeus elaborados entre os séculos XVIII e XIX. E essas modificações do regime codificado civilista, ou eram realizadas através de atualizações ao próprio código, ou passaram a ser reguladas por leis especiais e microssistemas normativos, derrogatórias de grande parte das disposições do Código de 1916. Com o passar dos anos, a legislação civil extravagante, a exemplo do que ocorria com o Código Comercial de 1850, passou a formar um regime descodificado de direito privado, composto por vários diplomas legais extravagantes.

117 Sobre o projeto do código, Miguel Reale afirmou: “Não se diga que nossa época é pouco propícia à obra codificadora, tantas e tamanhas são as forças que atuam neste mundo em contínua transformação, pois, a prevalecer tal entendimento, só restaria ao jurista o papel melancólico de acompanhar passivamente o processo histórico, limitando-se a interferir, intermitentemente, com leis esparsas e extravagantes. Ao contrário do que se assoalha, a codificação, como uma das expressões máximas da cultura de um povo, não constitui balanço ou arremate de batalhas vencidas, mas pode e deve ser instrumento de afirmação de valores nas épocas de crise”. (Exposição de Motivos do Projeto do Código Civil, Diário do Congresso Nacional, Seção I, Suplemento B, 13.06.1975, p. 108). 118 Discorrendo sobre a questão temporal das normas codificadas, Joseli Lima Magalhães pondera: “As normas jurídicas, e aqui se incluem as normas codificadas, especificamente, tendem a refletir ideias de fatos consumados no passado, que, por um motivo ou por outro, ganharam valoração por parte dos legisladores. Estes, no desiderato de elaborar leis, não são capazes de acompanhar o desenvolvimento temporal dos fatos sociais, os quais normalmente continuam a se desenrolar, não só porque as relações jurídicas mudam de enfoque, mas também por ser da natureza humana o caminho para o aperfeiçoamento, ainda que causem consideráveis prejuízo à vida presente nas tomadas de posicionamentos. Isto explica a moderna técnica legislativa de imprimir à atualização das normas jurídicas procedimentos mais ágeis, como que amenizando a conexão presente entre a realidade social e a lei, o que poderá, contudo, causar embaraço e instabilidade na sociedade”. (Da Recodificação do Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 97-98).

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Dentre as principais alterações legislativas que foram introduzidas e positivadas, desde o Código de 1916, no direito civil brasileiro, como leis especiais e supletivas, cabe destacar os seguintes diplomas legais, fontes normativas reformadoras e atualizadoras da concepção tradicionalista do Código Civil de 1916, conforme exposto no quadro abaixo:

Legislação Matéria Decreto 24.643/1934 Código de Águas Decreto-Lei 58/1937 Loteamento de terrenos e promessa de compra e venda Decreto-Lei 3.365/1941 Desapropriação de imóveis por utilidade pública Decreto-Lei 9.760/1946 Regime especial dos bens públicos Lei 4.121/1962 Estatuto da mulher casada Lei 4.132/1962 Desapropriação de imóveis por interesse social Lei 4.380/1964 Sistema Financeiro da Habitação Lei 4.504/1964 Estatuto da Terra Lei 4.591/1964 Condomínio e incorporações imobiliárias Decreto-Lei 73/1966 Contratos de seguro Lei 5.478/1968 Ação de alimentos Decreto-Lei 911/1969 Alienação fiduciária em garantia Lei 5.764/1971 Sociedades cooperativas Lei 6.015/1973 Lei de registros públicos Lei 6.515/1977 Lei do divórcio Lei 6.766/1979 Parcelamento do solo urbano Lei 6.969/1981 Usucapião especial Lei 7.433/1985 Requisitos das escrituras públicas Lei 8.069/1990 Estatuto da criança e do adolescente Lei 8.078/1990 Código de defesa do consumidor Lei 8.245/1991 Locação de imóveis urbanos Lei 9.514/1997 Alienação fiduciária de imóveis Lei 9.610/1998 Direitos autorais Lei 9.656/1998 Planos e seguros privados de saúde Lei 10.257/2001 Estatuto da Cidade

As normas e diplomas legais acima listados representam um exemplo concreto que demonstra as principais modificações introduzidas no regime do Código de 1916, tendo essas leis especiais por objeto diversas matérias, em quase todos os campos do direito privado. E vários desses diplomas legais consistem em normas que regulam, de modo completo e quase integral, determinadas relações e matérias jurídicas, a exemplo do regime de condomínios e incorporações imobiliárias (Lei 4.591/1964), da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) e da Lei do Divórcio (Lei 6.515/1977).

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Essas leis especiais, que disciplinam determinado instituto jurídico de modo integral, foram denominadas, pela doutrina, como microssistemas normativos,119 cuja aplicabilidade, em primeiro plano, prescinde de consulta às regras do Código Civil, por esgotar, no seu âmbito, praticamente, todas as possibilidades e hipóteses incidentes nos casos concretos nelas previstos.

Os microssistemas normativos compreendem, assim, as leis que regem, na sua integralidade, determinados fenômenos sociais e econômicos,120 estando plenamente adaptadas às exigências e demandas verificadas em certa época, passando ao largo da legislação codificada, cuja desatualização tecnológica e cultural não acompanhou a evolução dos institutos jurídicos contemporâneos.

O movimento da descodificação, que considera suficientes para a regulação de certos fenômenos sociais os microssistemas normativos, teve início na Europa no ano de 1978, tendo como seu principal teórico e elaborador o jurista italiano Natalino Irti. A essa tendência descodificadora Irti atribui, em um primeiro momento, às mudanças legislativas que foram sendo introduzidas no âmbito da Comunidade Européia, quando os primeiros tratados destinados à unificação do direito europeu celebrados entre os países, passaram a enunciar princípios de concorrência, de livre mercado e de espaços econômicos, tratados esses que vieram a gerar leis especiais, principalmente no campo mercantil.121

A idéia de descodificação do direito civil parte, portanto, da constatação da existência de leis especiais que foram sendo progressivamente criadas nos países de tradição latina ao largo da legislação codificada, contendo normas relacionadas a determinadas situações ou grupos de interesses, demonstrando uma “tendência para disciplinar as relações interprivadas como estatuto de grupos, tendo como

119 Natalino Irti, L’età della decodificazione, Milano, Giuffrè, 4ª ed., 1999, p. 72. 120 Orlando Gomes considera, com base nas lições de Natalino Irti, os microssistemas jurídicos como “pequenos universos legislativos, uma legislação setorial dotada de lógica própria e ditada para institutos isolados ou para uma classe de relações, formando uma cadeia florescente à margem do código a multiplicar derrogações implícitas” (O problema da codificação, cit. p.17). 121 Natalino Irti, L’età della decodificazione, cit., p. 10.

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destinatários, não o indivíduo, neutro e indiferenciado, mas a categoria ou o círculo a que pertence, no quadro do indisfarçável neocorporativismo em ascenção”.122

A constante regulação de institutos jurídicos através de leis especiais provocou, segundo Irti, uma redução de função do Código Civil, que passou a representar não mais um direito geral, e sim um direito residual, na medida em que as normas codificadas ficaram limitadas a disciplinar hipóteses (fattispecie) esvaziadas, privadas dos elementos de fato, das notas individualizadoras, que se destacam dos novos princípios nas leis especiais.123 E assim, Irti conclui que “a relação entre código e lei, descrito em termos de geral e especial, se converte em uma disciplina geral e uma disciplina residual, onde geral é a lei externa e residual o código”.124

Outro fator importante contribuiu também para o movimento da descodificação, e Irti localiza-o no processo de constitucionalização do direito civil. Se antes, o Código Civil era o texto básico de garantia dos direitos fundamentais do indivíduo com relação aos direitos da personalidade, da propriedade, das relações de família e sucessão, as modernas constituições passaram a conter, num grau hierárquico superior, princípios e normas de garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse sentido, Irti observa que “o Código Civil perdeu o caráter de centralismo no sistema das fontes: não mais é sede de garantia do indivíduo, agora tarefa que se voltou para a Constituição”.125

No âmbito do direito comercial brasileiro, ainda sob a vigência do Código Comercial do Império de 1850, por conta da obtusidade e absoluta defasagem das suas normas e institutos, diante do avanço acelerado da atividade econômica, podemos observar que, desde o início da República, mais precisamente a partir do Decreto 916/1890, o Código Comercial passou a ser suplantado pelas normas especiais. Esse Decreto 916/1890 teve por objeto regular o registro de firmas e sociedades mercantis perante as Juntas Comerciais, estabelecendo certas regras

122 Orlando Gomes, O problema da codificação, cit., p. 17. 123 Natalino Irti, L’età della decodificazione, cit., p. 40. 124 Natalino Irti, cit., p. 46. 125 Natalino Irti, cit., p. 45.

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básicas para o exercício do comércio, e somente foi revogado pelo Código Civil de 2002.

Principalmente a partir do final da Segunda Grande Guerra (1939-1945), período que Irti considera o início da era da descodificação, o Código Comercial de 1850 foi sendo derrogado por diversas leis especiais, que também se caracterizam como microssistemas mercantis.

No direito positivo brasileiro, ao longo dos anos que se seguiram ao Código Comercial de 1850, cabe destacar como mais relevantes as seguintes leis supletivas e microssistemas normativos que foram introduzidos no nosso ordenamento jurídico a partir do século XX, destinados à atualização da legislação comercial diante das novas formas e modalidades de execução das atividades econômicas privadas:

Legislação Matéria Decreto 916/1890 Registro de firmas ou razões comerciais Decreto 1.102/1903 Empresas de armazéns gerais Decreto 2.044/1908 Letra de câmbio e nota promissória Decreto 3.708/1919 Sociedades por quotas de responsabilidade limitada Decreto 22.626/1933 Lei da usura Lei 4.594/1964 Corretor de seguros Lei 4.595/1964 Reforma bancária Lei 4.728/1965 Mercado de capitais e bolsas de valores Lei 4.886/1965 Representação comercial autônoma Lei 5.474/1968 Duplicatas Lei 6.024/1974 Intervenção e liquidação extrajudicial Lei 6.099/1974 Arrendamento mercantil (leasing) Lei 6.385/1976 Mercado de valores mobiliários Lei 6.404/1976 Sociedades por ações Lei 6.729/1979 Concessão comercial Lei 6.840/1980 Títulos de crédito comercial Lei 7.357/1985 Cheque Lei 8.884/1994 Defesa da concorrência 126 Lei 8.934/1994 Registro público de empresas mercantis Lei 8.955/1994 Franquia empresarial Lei 9.279/1996 Propriedade industrial Lei 9.492/1967 Protesto cambial Lei 9.841/1999 Estatuto da microempresa 127 Lei 10.076/2004 Títulos de crédito agropecuários Lei 11.101/2005 Recuperação de empresas e falências

126 A Lei 8.884/1994, de defesa da concorrência, foi revogada pela Lei 12.529/2011. 127 A Lei 9.841/1999, que regulava a microempresa e a empresa de pequeno porte foi revogada e substituída pelas Leis Complementares 123/2006, 128/2008 e 147/2014.

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A legislação comercial brasileira, desde a segunda metade do Século XX, encontra-se quase integralmente estruturada em leis especiais, ficando o Código Comercial de 1850 efetivamente relegado a plano residual, restrito a algumas poucas normas de direito comercial marítimo que não foram derrogadas ou caíram mesmo no desuso em razão da revolução nos meios de transporte. Cabe observar que a legislação marítima do Código de 1850 ainda regulava os navios e buques movidos a vela, fazendo menção, como equipamento obrigatório do navio, “os velames e a mastreação” (art. 506). O Código não conhecia o navio a vapor, apesar deles já existirem na Inglaterra desde 1830, mas que ainda não se aventuravam nas viagens transoceânicas.

Como visto, a legislação comercial aplicável às relações mercantis de regulação das atividades das empresas, encontrava-se estruturada em leis especiais e nos microssistemas normativos, o que demonstra que a revogação da parte primeira do Código Comercial de 1850 pelo Código Civil de 2002 em quase nada alterou a disciplina legal do direito mercantil. O direito comercial brasileiro já estava quase que inteiramente descodificado, e o velho Código de Comércio do Império resumia-se, sem embargo, a peça de museu.

Os principais institutos jurídicos do direito comercial e de regulação das empresas no mercado, hoje vigentes, são obra da legislação complementar especial, com destaque para a Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/1976), a Lei de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), a Lei do Registro Público de Empresas Mercantis (Lei 8.934/1994), a Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996), a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei 11.101/2005), a Lei Antitruste ou de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011), toda a legislação bancária e de mercado de capitais, o conjunto da legislação relativa aos títulos de crédito e ao direito cambial, assim como a disciplina específica extravagante ao Código Comercial, referente às várias espécies de contratos mercantis.

O sistema de direito comercial encontra-se, portanto, quase todo estruturado em leis especiais e em microssistemas normativos, que pouco ou quase nada tem em

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comum com o direito civil, cuja aplicação às relações comerciais sempre foi analogicamente residual. Os microssistemas ou micrordenamentos que passaram a ser disciplinados em leis especiais, retiram seu fundamento de validade diretamente da Constituição, e se sobrepõem à legislação codificada, não em razão dessa relação de supra ordenação normativa, mas porque regulam hipóteses particulares que não são tratadas com tal especificidade pela norma codificada. Entre a norma geral e a norma especial, prevalecerá, sempre, a norma especial, porque esta foi criada para disciplinar relações jurídicas determinadas e detalhadamente regradas.

As relações comerciais sempre foram reguladas, ao logo dos séculos, a partir de suas próprias normas. E antes de recorrer ao direito civil para completar, por analogia, as suas lacunas, valeram-se mais da integração hermenêutica, com recurso aos usos e costumes mercantis, estes moldados pela secular experiência mercantil.

2.3. A unificação restrita do direito privado no Código de 2002

O Código Civil de 2002, além de procurar atualizar determinados princípios e institutos jurídicos que estariam socialmente defasados,128 teve como finalidade promover a unificação do direito das obrigações. Essa unificação diz respeito, basicamente, às obrigações civis e às obrigações comerciais, com a pretensão de conferir tratamento normativo igualitário a ambos os tipos obrigacionais.

Para justificar a unificação, o Coordenador do Projeto do Código, Miguel Reale, afirmava que esta proposta de unificação “seria imperfeita ou claudicante se não a integrassem preceitos que disciplinam, de maneira geral, os títulos de crédito e as atividades negociais”.129

Como fundamento para a unificação do direito das obrigações, argumentou-se que, desde sua origem no direito romano, as obrigações sempre foram comuns na

128 Miguel Reale, Exposição de Motivos do Projeto do Código Civil, cit., p. 107. 129 Miguel Reale, cit. p. 112.

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sua estrutura deontológica, e não haveria distinção entre o conteúdo da relação obrigacional civil daquela outra que rege os negócios mercantis. Nesse sentido, para Miguel Reale, “a unidade do direito obrigacional já é uma realidade no Brasil, no plano prático, pois o Código Comercial de 1850 preceitua, em seu art. 121, que, salvo as restrições estabelecidas, as regras e disposições do Direito Civil para os contratos em geral são aplicáveis aos contratos mercantis”.130

Esta justificativa é tanto contestável quanto incongruente, porque a regra do art. 121 do Código Comercial de 1850 admitia a aplicação das normas gerais das obrigações e contratos civis apenas quando ausente norma específica de regulação de um determinado tipo de contrato mercantil. A própria norma citada contém o comando de exceção (“salvo as restrições estabelecidas neste Código”) que faz com que a aplicação da lei civil aos contratos comerciais somente ocorra por analogia legis, e não como fonte formal primária.131 Ademais, na medida em que o Código Comercial disciplinava, de modo bastante específico, a compra e venda mercantil, a normatividade especial era suficiente para regular esse tipo principal de contrato comercial, sem necessidade de aplicação ou recurso à lei civil.

O contrato de compra e venda mercantil sempre se apresentou, na lei e nos usos comerciais, como uma modalidade totalmente diferenciada da compra e venda civil. Nesse sentido, Waldirio Bulgarelli destacava:

“A especialidade do comércio, as suas técnicas, as suas características levam, em muitos casos, também à especialização das obrigações, o que é perfeitamente compreensível considerando-se que a obrigação comercial decorre da promoção da circulação econômica, não se ajustando assim às fórmulas da vida civil”.132

Como adverte Carvalho de Mendonça, a obrigação é una, e a comercialidade é conteúdo do ato, não da obrigação, de modo que não se deve confundir “obrigação com o contrato, isto é, do efeito com a causa”.133 Para melhor distinguir o contrato mercantil do contrato civil, esclarece Bulgarelli que

130 Miguel Reale, cit., p. 112. 131 Walter Alvares, Curso de Direito Comercial, cit., p. 428. 132 Waldirio Bulgarelli, Contratos Mercantis, São Paulo, Atlas, 10ª edição, 1998, p. 36. 133 José Xavier Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. VI, parte I, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 4ª edição, 1947, p. 228.

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“Concorrem também para essa diferenciação certas características do Direito Comercial, como a simplicidade das suas fórmulas, a rapidez de sua aplicação, a elasticidade dos seus princípios, que o tornaram um direito vivo, solerte, ágil, em contraposição à lentidão e à complexidade do Direito Civil”.134

Os contratos mercantis são contratos de massa, que se realizam e se reproduzem na mesma velocidade das transações comerciais do mercado, que independem da formalidade e da solenidade, que é a tônica dominante nos contratos civis ou do direito comum, não profissional.

Ainda que se admita a unificação do direito das obrigações, em razão do caráter comum e único da estrutura obrigacional, das relações entre credor e devedor, entre vendedor e comprador, assim como do modo de constituição, execução e extinção das obrigações em geral, os contratos derivados de sede obrigacional mercantil não se confundem e jamais podem merecer o mesmo tratamento normativo do contrato civil.

A atividade comercial caracteriza-se pela realização de contratos em massa, pela oferta pública de negócios através de uma publicidade institucional que qualifica a sociedade de consumo, na incessante competição entre as empresas no mercado. Todos esses fatores evidenciam uma prática social que não é compatível com a solenidade e o rigorismo formal que são características do contrato civil. O contrato civil segue uma lógica dedutiva, dos institutos amplos e conceitos gerais para as relações individuais, enquando o contrato comercial é de livre forma e criação, determinado pelo método indutivo.135

Na lição de Waldemar Ferreira, são imensas e profundas as diferenças entre o direito comercial e o direito civil, partindo da idéia de que o direito comercial é “direito mobiliário por excelência, focaliza os bens, não apenas quanto à sua natureza, mas,

134 Waldirio Bulgarelli, Contratos Mercantis, cit., p. 36. 135 A lógica empresarial é inversa, tem caráter indutivo, percorrendo da prática comercial para a modulação de institutos gerais, como observa Bulgarelli: “Apresenta-se o Direito Comercial com um método próprio e característico, ou seja, o método indutivo, que parte da observação da realidade (fatos econômicos), chegando por via dela aos princípios gerais. Portanto, acompanha a vida econômica, surpreendendo-lhe a dinâmica, e daí configurando as categorias jurídicas correspondentes. (...) Diferentemente, portanto, do método do Direito Civil, que é essencialmente dedutivo, em que se parte do geral para o particular, baseado que está em princípios gerais que orientam a sua conformação, consubstanciado em institutos tradicionais e quase imutáveis, como a família, a propriedade, a herança”. (Direito Comercial, São Paulo, Atlas, 16ª edição, 2001, p. 2).

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principalmente, sob o ponto de vista econômico, (...) resultando daí as notáveis particularidades que do civil o extremam”.136

A doutrina comercialista brasileira, em peso, sempre reconheceu a alta especialização do direito comercial comparado ao direito civil. Além do aspecto legislativo, a prática judiciária e forense demonstra que um advogado, para exercer o seu mister na área comercial, necessita de sólidos conhecimentos de administração de empresas, de teoria econômica, de contabilidade, para atuar com segurança na defesa do interesse de seus clientes, empresas e empresários.

Em determinados Estados brasileiros, como em São Paulo e no Rio de Janeiro, as questões e causas relativas à matéria comercial são de competência privativa de varas especializadas em direito empresarial, especialmente para os processos de falência e recuperação de empresas.137 Considerando que, no final do Século XIX, foi promovida a reunificação da jurisdição cível originalmente prevista no Código Comercial de 1850, a alta especialização da matéria comercial está exigindo, no presente, a divisão da competência jurisdicional e a formação dirigida de magistrados para o domínio dos institutos e fórmulas do direito de empresa.

Apesar da unificação do direito das obrigações promovida pelo Código Civil de 2002, não ocorreu a propalada unificação do direito privado, com o desaparecimento e supressão do direito comercial pela sua incorporação ao direito civil. Sem embargo, a unificação promovida restringe-se ao direito das obrigações e ainda assim de modo incompleto, porque permanecem regulados por normas especiais diversos tipos de contratos mercantis, que não são previstos no novo Código Civil, a exemplo dos contratos de arrendamento mercantil ou leasing (Lei 6.099/1974), de franquia

136 Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, vol. 1, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 2ª edição, 1948, p. 123. 137 Nos últimos anos, está sendo observado um crescente processo de especialização da jurisdição comercial. Essa especialização hoje se faz presente nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, onde foram criadas varas especializadas, que passaram a deter competência privativa em matéria empresarial e de recuperação de empresas e falências. Pesquisa recentemente aplicada pelo editor-chefe da Review of Economic Development, Public Policy and Law, Ivan César Ribeiro (FEA-USP), constatou que apenas 21 % das decisões judiciais originárias de processos em varas empresariais do Rio de Janeiro, entre os anos de 2004 e 2006, foram modificadas pelo Tribunal de Justiça, contra um percentual de 37,5 % das decisões proferidas por juízes sem especialização, que foram reformadas pelo órgão superior. Varas empresariais reduzem chances de decisões serem reformadas, http://www.bovespa.com.br/Investidor/Juridico, 20/02/2010.

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empresarial (Lei 8.955/1994), de concessão comercial de veículos automotores (Lei 6.729/1979), de alienação fiduciária em garantia (Decreto-Lei 911/1969), todas as espécies de contratos bancários (Lei 4.595/1964), além das modalidades de contratos atípicos, não regulados em lei, como os contratos de faturização (factoring), de cartão de crédito e da compra e venda eletrônica. Vale destacar, ainda, que nas relações internacionais de comércio, devem ser aplicadas as normas da compra e venda internacional, especialmente aquelas determinadas pela Câmara de Comércio Internacional – CCI, através dos INCOTERMS (Termos Internacionais do Comércio) e da Convenção de Viena de 1980, relativa aos contratos internacionais de compra e venda de mercadorias.138 Tais normas são, em sua essência, de natureza mercantil. E assim, totalmente insusceptíveis de regulação pela legislação civil.

As normas contratuais constantes do Código Civil de 2012, desse modo, permanecerão como direito residual diante de uma série de contratos mercantis, o que importa reconhecer que o direito comercial não deixou de possuir um regime contratual próprio, a despeito da tentativa de unificação do direito das obrigações. O próprio coordenador da comissão revisora do Código de 2002, Miguel Reale, confessou que a idéia inicial era a de unificar todo o direito privado, com a incorporação do direito comercial ao direito civil.139 Todavia, como visto, por mera concessão do jurista-legislador brasileiro, o direito comercial não terminou varrido do nosso cenário jurídico.

Mas, essa discussão quanto à unificação, total ou parcial, com efeito, sempre foi decorrente da reação dos civilistas à comercialização do direito privado.140 Devido ao grande desenvolvimento da atividade econômica a partir do século XIX, a partir da Revolução Industrial, do crescimento da indústria e do uso da energia a vapor nas fábricas e nos transportes, da criação do telégrafo, o direito comercial foi se expandindo, criando novas fórmulas negociais, novos tipos contratuais e modelos de

138 Decreto Legislativo 538/2012 do Congresso Nacional - Aprovou o texto da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, estabelecida em Viena, em 11 de abril de 1980, no âmbito da Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional. 139 A respeito dessa questão, Miguel Reale reconheceu: “Embora tentado pela idéia da unificação do Direito Privado, compreendi que era necessário manter a autonomia do Direito Comercial, mas injetando-lhe a idéia-força da livre empresa, visto não ser mais o comércio a atividade econômica dominante, em concorrência com as poderosas criações das indústrias e dos serviços de toda ordem”. (Estudos preliminares do Código Civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 55). 140 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, cit., vol. 1, p. 21.

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sociedades comerciais, aperfeiçoando os títulos de crédito.141 Com efeito, o direito comercial foi alcançando importância tal na vida das pessoas e da sociedade, com os contratos de consumo e relações de massa, que o monumento romanista do direito civil foi sendo corroído nas suas bases até então dominantes.

Considerando tal ordem de idéias, os redatores do Código Civil de 2002 foram movidos por essa índole, por esse pensamento, de recuperar o prestígio do direito civil como sistema normativo privado superior, dirigente da sociedade. Mas essa posição de centralidade já havia sido perdida, como observado anteriormente, desde que a Constituição passou, ela própria, a estabelecer os princípios e garantias dos indivíduos, da propriedade, da família e mesmo da atividade econômica.

Resta evidente, indiscutível, que o direito civil permanecerá como o sistema geral de direito privado, no que tange às suas definições fundamentais, às regras de capacidade e da personalidade, dos fatos e das relações jurídicas, das obrigações gerais, dos contratos civis, das relações de família e de sucessões, e dos seus institutos seculares construídos pela obra civilizadora no campo do direito de propriedade. O caráter modelar do direito civil define esse vasto universo de relações jurídicas na sociedade. Todavia, o conservadorismo e a estaticidade das suas normas não se coadunam com a dinâmica mercantil, com as exigências da atividade econômica, cujas relações encontram-se em constante mutação.

A inserção do livro do direito de empresa no Código Civil de 2002, praticamente reproduzindo, sessenta anos depois e sob condições ideológicas e culturais totalmente diversas, a estrutura do Código Italiano de 1942, de inspiração fascista, representou indubitável, patente, retrocesso legislativo no direito privado brasileiro. A pretexto de promover a unificação de uma parte restrita do direito privado, no tocante ao direito das obrigações, o Código de 2002 invadiu, de modo contrasistemático, a estrutura especializada, consistente e harmônica do direito comercial. E esse sistema de direito comercial, graças ao seu caráter adaptativo às mudanças continuamente inseridas pela natureza concorrencial da atividade econômica, sempre se revelou,

141 Paul Rehme, Historia Universal del Derecho Mercantil, cit., p. 189.

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através de leis especiais e dos microssistemas normativos, o regime mais adequado para a regulação das empresas no ambiente competitivo da economia de mercado.

2.4. Problemas metodológicos da codificação do direito privado

Alguns comentaristas do Código Civil de 2002 consideram que, no campo do direito comercial, uma das principais inovações desse regime consistiu na positivação do direito de empresa no nosso ordenamento jurídico. Ao definir o regime econômico privado como sendo próprio da atividade do empresário e da sociedade empresária, tal concepção estaria mais de acordo com a evolução da moderna economia de mercado.

Com efeito, o conceito de empresa, como principal agente da atividade econômica, já era conhecido em diversas normas no direito positivo brasileiro, tanto no âmbito do próprio direito comercial como em outros sistemas jurídicos, a exemplo do direito do trabalho e do direito tributário, ramos que também interferem diretamente nas relações empresariais.

Ainda no regime do Código Comercial de 1850, o art. 19 do Regulamento 737/1850 estabelecia que, “para efeito de se determinar a competência dos Tribunais de Comércio relativamente aos comerciantes” a atividade de mercancia era também exercida pelas “empresas de fábricas, de comissões, de depósito, de expedição, consignação e transporte de mercadorias”.142 Apesar do Código Comercial de 1850 haver se filiado à concepção subjetivista do comerciante, não negava ou recusava, como visto, a idéia de empresa como organização econômica.

Se o Código Comercial do Império já se apresentava inteiramente defasado e arcaico diante da contínua evolução da atividade comercial, a sua mera substituição por um código mais atual não mais se justificaria, seja porque foi de encontro à tendência moderna da descodificação, seja porque os microssistemas de direito

142 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 41.

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comercial demonstravam-se suficientes para regular, com muito mais propriedade, as relações empresariais.

Independentemente de certo conjunto de relações jurídicas estarem, ou não, reguladas em um código, esta situação por certo não interfere no processo de interpretação e aplicação do direito, como observa René David, ao considerar que

“Posto de parte o caso em que o legislador se teria pronunciado de modo expresso em sentido contrário, os códigos não gozam, em relação às leis que neles não estão incorporadas, de qualquer espécie de proeminência. Códigos e leis estão para os juristas, relativamente à sua interpretação, exatamente no mesmo plano.” 143

Apesar desse raciocínio, o legislador do Código de 2002, partindo da concepção de que as normas codificadas possuem um sobrevalor normativo, teve ele a pretensão de enclausurar nesse código preceitos e normas que somente podem ser mais objetivamente tratadas em leis especiais, e que já existem como fonte de regulação dos principais institutos comerciais. Ao promover a unificação, ainda que parcial, do direito das obrigações, o Código Civil de 2002 cometeu a suprema heresia de tentar desmercantilizar as operações e negócios empresariais, negando a própria finalidade lucrativa das atividades comerciais. Omitindo a adjetivação de mercantil para qualificar as empresas, que jamais deixarão de exercer atividade mercantilista, o Código de 2002 buscou, ao contrário do afirmado pelo Professor Miguel Reale, preparar o cenário conceitual para submeter, em um segundo momento, toda a atividade econômica ao regime civilista.

A título de exemplo cabal, objetivo, basta analisar o caso da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, principal forma modal de exercício da empresa coletiva em nosso País desde o Decreto 3.708/1919.

O Código Civil de 2002 passou a disciplinar, em sua integralidade, esse tipo de sociedade, vindo a denominá-la, equivocadamente, como sociedade limitada, pois limitada é e sempre será a responsabilidade dos sócios, e não a da própria sociedade, que é ilimitada pelas obrigações contraídas perante terceiros. A regência normativa da sociedade por quotas pelo Código Civil de 2002 representa uma tendência à

143 René David, Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 126.

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própria unificação do nosso direito societário, e não apenas do direito das obrigações, principalmente pelo fato do art. 1.053 do Código de 2002 estipular a aplicação supletiva, às sociedades por quotas, das normas de regência da sociedade simples, modalidade societária própria do regime civilista e não do sistema mercantil.

Todavia, essa tentativa de unificação do direito societário sob a orientação ideológica da desmercantilização, esbarra nos preceitos evidentes que encontramos nas normas que regem a sociedade anônima, principal tipo societário comercial, e que está estruturada em um microssistema normativo fora da legislação codificada, tal como contraditado pelo art. 2º da Lei 6.404/1976, que define a companhia, qualquer que seja seu objeto, como de fim lucrativo e natureza mercantil.144

Esta parte deste capítulo teve, assim, como finalidade, apresentar e demonstrar as contradições presentes no Código Civil de 2002 no tratamento do regime jurídico da empresa mercantil, em especial para questionar o processo de codificação do direito civil diante das novas tendências descodificadoras ou segregacionistas da matéria comercial especializada. Neste ponto, foi trazido à discussão esse relevante problema metodológico, de avaliação da atecnia e da superficialidade científica do processo legislativo em nosso País, que não demonstra a mínima preocupação em manter a coerência e harmonia intranormativa que deveria prevalecer no seio do sistema de direito positivo.

144 Para Calixto Salomão Filho, a sociedade anônima é a “organização societária capitalista mais sofisticada”, razão pela qual demonstra-se válido e coerente considerar que o próprio sistema econômico capitalista sempre estará caracterizado por sua natureza mercantil, assim como a empresa. (Teoria crítico-estruturalista do Direito Comercial, São Paulo, Marcial Pons, 2015, p. 125).

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2.5. O retorno ao problema da autonomia e a constitucionalização do direito comercial

A partir da vigência do Código Civil de 2002, dúvidas foram mais uma vez levantadas pela doutrina acerca da possível extinção do direito comercial como disciplina jurídica de regulação da atividade empresarial. Desde o Código Civil italiano de 1942, discute-se a respeito do problema da autonomia do direito comercial, como questão metodológica determinante na fixação das linhas dominantes de investigação científica nesse campo.145

Contudo, partindo da própria disciplina constitucional na esfera da competência legislativa, cabe considerar que o art. 22, inciso I, da Constituição de 1988, vem a reconhecer, dogmaticamente, o direito comercial como disciplina jurídica autônoma, dotada de conteúdo normativo específico.

Para a determinação preliminar do objeto dominantemente mercantil, que continua a ser regulado pela legislação comercial supletiva especial, cabe destacar, além de todos os tipos de contratos mercantis não disciplinados no Código Civil de 2002, as matérias referentes às sociedades anônimas (Lei 6.404/1976), à propriedade industrial (Lei 9.279/1996), e também à legislação falimentar (Lei 11.101/2005).

De modo bastante elucidativo, Rubens Requião considerava que “será ilusória a unificação do direito obrigacional se permanecer a falência como instituto especificamente mercantil”.146 Esta simples observação, agora mais ainda reforçada com a vigência da lei de recuperação de empresas e falências (Lei 11.101/2005), que manteve a natureza estritamente mercantil do procedimento falimentar, evidencia que o direito comercial não perdeu a sua autonomia científica e normativa em decorrência do Código de 2002.

145 Fran Martins, Curso de Direito Comercial, cit., p. 25. 146 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 23.

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Não deixa de revelar-se oportuna, neste ponto, a opinião de Joaquín Garrigues, para quem “a construção da teoria da empresa mercantil constitui atualmente a nova missão do direito comercial.”147 É preciso, pois, e esta é uma das perspectivas deste trabalho, (re)elaborar uma nova base conceitual e dogmática para o direito comercial brasileiro, visando não só evidenciar o objeto próprio que diferencia o seu conteúdo das demais normas de direito comum, mas também repensar a sua estrutura didática para efeitos do ensino, nas universidades, do direito de empresa como disciplina autônoma.

Carvalho de Mendonça, embasado nas lições de Alberto Asquini, já observara que “a divisão do direito privado em direito civil e direito comercial é mais histórica do que científica”.148 Essa realidade sempre resultou, segundo ele, da inércia do legislador, que foi incapaz de acompanhar o contínuo desenvolvimento das relações jurídicas econômicas, e daí se “formou lentamente um grande depósito de usos, costumes e doutrina, que passaram a ser leis de exceção, e que de leis passaram a ser códigos”.149 De outra parte, o direito comercial não tem o seu conteúdo limitado à disciplina da empresa e de suas operações, na medida em que abrange outras áreas específicas de normatividade, como a sociedade mercantil, o estabelecimento comercial, o regime da propriedade industrial, dos títulos de crédito e da falência, como destacado por Ferrara e Corsi.150

O direito comercial, no curso histórico da sua evolução, veio a separar-se do direito civil exatamente em razão da especialidade da sua matéria, da dinamicidade da atividade empresarial, da presença de contratos em massa, diante do caráter estático, individualista e conservador do sistema civilista.151

147 Joaquín Garrigues, Tratado de Derecho Mercantil, Madrid, Revista de Derecho Mercantil, 1947, tomo I, p. 25. 148 J. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, cit., p. 23. 149 J. X. Carvalho de Mendonça, cit., p. 23. 150 Francesco Ferrara Junior e Francesco Corsi, Gli Imprenditori e Le Società, Milano, Giuffrè, 13ª edizione, 2006, p. 19. 151 Manifestando opinião contrária à unificação do direito privado na Itália, Alfredo Rocco assim considerava: “Acreditamos, portanto, na existência de princípios gerais do direito comercial, ou seja, de normas gerais aplicáveis a todo o campo do direito comercial e só a ele, e acreditamos, outrossim, em que o direito comercial, apesar de sua inegável fragmentação, se preste a um estudo orgânico e sistemático e, em conseqüência, possa o seu conhecimento dar lugar a uma ciência autônoma – a ciência do direito comercial. Somos, portanto, pela conexão e não pela confusão, entre a ciência do direito civil e a do direito comercial”. (Princípios de Direito Comercial, cit., p. 91).

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Além dessa característica diferencial, Waldírio Bulgarelli distingue a atividade comercial, em comparação com a atividade civil, a partir dos meios utilizados para a obtenção do lucro, finalidade inerente a toda empresa mercantil, obervando Bulgarelli que a disciplina normativa da “produção ou circulação das riquezas, como fenômeno jurídico, pertence ao campo do direito comercial, que sob esse aspecto é um corpo de princípios e normas destinado a regular juridicamente as relações oriundas de tais fatos econômicos, e, portanto, autônomo, já que não se confunde com as normas elaboradas no âmbito do direito civil”.152

Segundo Bulgarelli, são três os princípios específicos que caracterizam o direito comercial como disciplina autônoma, com objeto e método bastante distintos do direito civil:153

a) princípio da propriedade dinâmica, derivado do modo de aquisição dos instrumentos de produção e comercialização;

b) princípio da aparência, que resulta da necessidade de segurança da atividade

mercantil e da prevalência da boa-fé nos negócios de massa; c) princípio da uniformização normativa, exigível para a realização das operações

comerciais a nível interno mas principalmente a nível internacional, visando facilitar as operações mercantis.

Partindo desses princípios, cabe considerar que a regulação da atividade comercial sempre esteve a exigir uma estrutura normativa adaptável às constantes mutações do mercado concorrencial, ao aperfeiçoamento contínuo dos sistemas de gerenciamento das empresas em busca da lucratividade e ao desenvolvimento tecnológico na produção dos bens de consumo e bens de capital. A concorrência entre as empresas representa o elemento motriz principal que impulsiona essa constante evolução, tanto que o sistema de direito positivo, desde o final do século XIX, estabeleceu regimes de proteção da liberdade de mercado e de disputa saudável da clientela através de mecanismos antitruste e de repressão à concorrência desleal, situação que, salvo raríssimas exceções, não se verifica nas relações de natureza civil.

152 Waldirio Bulgarelli, Direito Comercial, cit., p. 57-58. 153 Waldirio Bulgarelli, Direito Comercial, cit., p. 58-59.

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O direito comercial, segundo Paulo Roberto Arnoldi, apoiado nas lições de Fran Martins, “caracteriza-se pela simplicidade das suas fórmulas, pela internacionalidade de suas regras e institutos, pela rapidez de sua aplicação, pela elasticidade dos seus princípios e pela necessária onerosidade de suas operações”,154 de modo que tais características são inteiramente diferentes daquelas que observamos no direito civil solene, formal, de regras e princípios estáticos, em que suas relações nem sempre são onerosas.

Para Rubens Requião, o direito comercial se diferencia do direito civil em razão de seus traços peculiares, relacionados ao “cosmopolitismo, individualismo, onerosidade, informalismo, fragmentarismo e solidariedade presumida”.155

As operações das empresas caracterizam-se como negócios em massa, principalmente sob a modalidade da compra e venda mercantil, e se realizam de modo repetitivo, despidas de maior rigorismo formal.156 Qualquer compra e venda comercial à vista realiza-se de modo quase instantâneo, pela entrega da mercadoria contra o pagamento do preço. A prova do contrato resume-se a uma nota fiscal, recibo ou extrato de cartão de débito ou crédito, atestando a quitação.

A diferenciação entre o modo de execução das atividades comerciais e dos negócios civis é flagrante e óbvia a partir de qualquer critério de observação, exatamente por conta dos elementos dominantes da profissionalidade, da especialidade, da onerosidade e da competitividade econômica nas relações mercantis.157

154 Paulo Roberto Colombo Arnoldi, Teoria Geral do Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, 1998, p. 17. 155 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 31. 156 No tocante ao modo de execução dos negócios mercantis, Waldemar Ferreira considera que a “simplicidade na forma e rapidez nas operações constituem, em suma, predicado do comércio; e esse é o espírito animador do direito mercantil”, de tal modo que “estaria fora do comércio o negociante que imprimisse aos seus atos e contratos formalismo de tabelião e não sentisse a intensidade da vida mercantil contemporânea”. (Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, vol. I, A história e a doutrina do direito mercantil, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 2ª edição, 1948, p. 125). 157 Toda e qualquer organização empresarial deve estar dotada, como requisito essencial de funcionamento e sobrevivência no regime concorrencial, de estruturas organizacionais aptas à implementação de estratégias comerciais ou industriais compatíveis com as demandas do mercado. Sensível a essa realidade, Oscar Barreto Filho esclarece: “Não são apenas as diferenças de estrutura, de critérios de pesquisa e de método que devem ser consideradas, em relação ao tema da autonomia do Direito Comercial. Pode até acontecer que, formalmente, não haja uma diferença estrutural entre

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O reconhecimento da autonomia do direito comercial não se resume, pois, a mera análise dos aspectos distintivos entre o conteúdo da matéria comercial em contraposição com a matéria civil. Além das diferenças até aqui ressaltadas, cumpre considerar os elementos cientificamente destacados como inerentes a cada um desses campos de regulação normativa. Nesse contexto, além da análise da matéria ou do objeto normativamente disciplinado pelo direito comercial, o caráter especializado desse ramo do direito privado assume contornos exclusivos, desdobrados em três níveis de autonomia:

a) Autonomia formal ou legislativa, que tem como fundamento dogmático a especialidade do direito comercial, inserta no art. 22, inciso I, da Constituição Federal, cujo comando separa ou diferencia as normas comerciais das normas de direito civil;

b) Autonomia didática, concernente ao ensino do direito comercial como disciplina

própria, constante dos currículos acadêmicos, separada das cadeiras de direito civil;158

c) Autonomia científica ou substancial, a qual determina, cientificamente, a

matéria de um ramo do direito em comparação com os demais, isolando o seu conteúdo em razão de seu caráter próprio e original, ainda que esteja submetido a uma legislação codificada unificadora.159

Estando presentes esses três aspectos caracterizadores da autonomia em determinado ramo do direito, não há como negar a existência de disciplina própria, especializada e diferenciada do tronco geral. Seja, pois, em razão da sua historicidade, seja em virtude das peculiaridades inerentes ao seu objeto normativo, o direito comercial continuará a manter natureza distinta e inteiramente separada ou diferenciada do direito civil. Logo, o direito civil destina-se a regular a matéria civilista, das pessoas e de suas relações obrigacionais com bens, e as relações de família e

um negócio jurídico celebrado para obter o gozo de um bem, e outro negócio jurídico visando à obtenção de bens para o mercado, mas, substancialmente, há uma diferença fundamental de posições. A satisfação das necessidades do mercado exige não só uma organização especializada e diferençada, como reclama uma instrumentação técnica e, ainda mais, uma atividade criadora que não existe na vida civil comum. Na atividade mercantil, as relações econômicas apresentam-se e são reguladas tendo em vista sua atuação dinâmica, não sua posição estática.” (Teoria do estabelecimento comercial, São Paulo, Saraiva, 2ª edição, 1988, p. 17-18). 158 Na opinião de Fábio Ulhoa Coelho, “A demonstração irrespondível, porém, de que a autonomia do direito comercial não é comprometida nem pela unificação legislativa do direito privado, nem pela teoria da empresa, encontra-se nos currículos dos cursos jurídicos das faculdades italianas. Já se passaram 60 anos da unificação legislativa e da adoção da teoria da empresa na Itália, e o direito comercial continua sendo tratado lá como disciplina autônoma, com professores e literatura especializados”. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 42). 159 Waldirio Bulgarelli, Direito Comercial, cit., p. 55.

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sucessões, ao passo que o direito comercial destina-se a regular as atividades das empresas, obrigações e processos do tráfico mercantil, das relações de produção e de comercialização no ambiente da economia de mercado.

Ressaltando as principais características distintivas entre o direito comercial e o direito civil, Paulo Roberto Arnoldi apresenta o seguinte quadro-resumo que destaca, de modo elucidativo, as diferenças marcantes entre os dois ramos principais do direito privado:160

Direito civil Direito comercial Método dedutivo Método indutivo Normas estáticas Normas dinâmicas

Índole conservadora Índole inovadora Caráter formal Caráter informal

Prática de atos isolados Prática de atos em massa Onerosidade não presumida Onerosidade inerente

Regulação nacional ou interna Regulação interna e internacional

A primeira e principal diferença, como evidenciado no quadro acima, decorre do próprio método do direito civil frente ao direito comercial. As normas de direito civil, em especial aquelas constantes do regime codificado, foram elaboradas, e assim devem ser interpretadas, segundo o método dedutivo, isto é, do geral para o particular. O direito civil, historicamente considerado, sempre foi formulado a partir de institutos fundamentais e categorias superiores do direito. Assim se pode observar nos conceitos de pessoa, de capacidade jurídica, de fato jurídico, de negócio jurídico, nas relações de propriedade, de família e de sucessões. A partir desses institutos e categorias fundamentais, todos os demais elementos das relações jurídicas de ordem civil devem ser apreendidos e interpretados.

O método do direito comercial, ao reverso, é o método indutivo, produzido pelas categorias científicas, mas resultantes dos fatos particulares ou individuais para as categorias gerais. O método indutivo desenvolve-se a partir dos referenciais particulares, dos usos, costumes e práticas mercantis, para em seguida serem definidos e transformados em categorias jurídicas gerais, ou seja, nas hipóteses

160 Paulo Roberto Colombo Arnoldi, Teoria Geral do Direito Comercial, cit., p. 41.

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concretas que passarão a constituir regras especiais.161 A indução representa não apenas o modelo empírico normal de positivação de condutas verificadas na prática, mas o modo de apreensão e interpretação das atividades empresariais, fundadas nos princípios constitucionais da livre iniciativa, da função social da empresa, da autonomia da vontade e da liberdade de contratar.

Outro aspecto distintivo destacado no quadro acima é a natural dinamicidade das normas de direito comercial, que vão sendo modificadas, atualizadas e adaptadas para assim regular novos tipos de negócios e contratos empresariais conforme assim seja do interesse ou da livre criação da empresa. Apesar das críticas que sempre foram dirigidas ao Código Comercial de 1850, na verdade inapropriado para a regulação da atividade comercial no século XX, e mais ainda no presente século XXI, a legislação comercial passou a se concentrar em leis especiais que, com o decorrer dos anos, superaram em quantidade a disciplina do vetusto Código do Império, de tal modo que o direito comercial passou a ser quase que totalmente regulado na legislação especial e nos microssistemas normativos, a exemplo dos institutos do registro de empresas, da sociedade por ações, da propriedade industrial e da recuperação de empresas e falência.

Postas essas distinções apontadas pela doutrina dominante como caracterizadoras da autonomia do direito comercial, por este possuir um objeto próprio (a matéria mercantil), um método diferenciado do direito civil, e ser formalmente reconhecido como ramo específico do direito positivo pela Constituição, dúvidas não deveriam mais remanescer no que se refere a essa questão da autonomia.162

Partindo de uma análise mais singela e objetiva, Sérgio Campinho entende que a disciplina do Código de 2002 “não irá alterar a autonomia do direito comercial, sob a nova veste do direito de empresa, embora tenha ocorrido a sua unificação legislativa

161 O direito comercial é o único ramo do direito que dispõe, ainda que de escassa aplicação, de procedimento próprio de positivação de práticas mercantis na esfera da jurisdição administrativa das Juntas Comerciais, denominado de assentamento de usos e práticas mercantis (Lei nº 8.934/1994, art. 8º, inciso VI; Decreto 1.800/1996, art. 87), procedimento este que confirma a predominância do método indutivo na formação das normas comerciais. 162 A Primeira Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizada em 2012, aprovou o enunciado 75, esclarecendo que “A disciplina de matéria mercantil no novo Código Civil não afeta a autonomia do Direito Comercial”.

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com o direito civil”.163 O próprio jurista coordenador do projeto do Código de 2002, Miguel Reale, no seu discurso proferido por ocasião da sanção presidencial do atual Código Civil, reconheceu que o novo sistema do direito de empresa não implicaria na supressão do direito comercial como disciplina jurídica autônoma.164

Sob o aspecto estritamente dogmático-formal, todavia, é necessário considerar que a autonomia do direito comercial tem seu superior fundamento de validade na ordem constitucional. Da mesma maneira que a moderna doutrina do direito civil evoluiu para uma visão sistêmica dos institutos e relações de direito privado a partir da disciplina constitucional, demonstra-se plenamente cabível desenvolver uma teoria sobre a constitucionalização do direito comercial. Afinal, o direito comercial, tal como o direito civil, também possui sua sede de validade na Constituição, na mesma regra constante do art. 22, inciso I, da Lei Maior.

A propósito, cabe observar que, a assim denominada teoria da constitucionalização do direito civil, desenvolvida pelo doutrinador italiano Pietro Perlingieri, considera que “o papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo texto constitucional”.165 A partir do momento em que a Constituição regula situações e relações jurídicas que antes eram matéria própria do Código Civil, a norma geral deixa de ser a lei civil codificada,

163 Sergio Campinho justifica a autonomia do Direito Comercial assim considerando: “A uma, porque a Constituição Federal de 1988, ao dispor sobre as matérias de competência privativa da União, ainda se refere autonomamente ao Direito Comercial (art. 22, I). A duas, porque a autonomia didática e científica não vem afetada pelo tratamento em um único diploma legal. A três, porque a adoção da teoria da empresa não compromete essa autonomia, na medida em que ao empresário o exercício empresarial da atividade econômica se aplica toda legislação relativa à atividade mercantil não revogada” (Código Civil, art. 2.037). (O Direito de Empresa à luz do novo Código Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 4ª ed., 2004, p. 6). 164 Miguel Reale manifestou-se expressamente sobre a autonomia do direito comercial com as seguintes palavras: “É indispensável ponderar que o novo Código Civil não abrange todo o Direito Privado, mas tão somente as questões que emergem da unidade do direito das obrigações, como é o caso das normas relativas à atividade empresarial, permanecendo, pois, intocável o direito comercial com a respectiva legislação especial”. (Discurso na cerimônia de sanção do novo Código Civil no Palácio do Planalto, em 10/01/2002, http://www.miguelreale.com.br, 25/02/2007). 165 Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional, Rio de Janeiro, Renovar, 2ª edição, 2002, p. 6.

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e essas relações passam a ter como fonte formal a própria norma constitucional, fundamento superior de validade do sistema de direito positivo.166

Desse aspecto decorre o sentido da perda da centralidade do Código Civil, que deixou de ser o estatuto dos direitos individuais personalíssimos e da propriedade, para se posicionar como norma de segundo grau, que deve manter estreita compatibilidade com a lei fundamental do sistema, subordinado à matéria constitucional.

A Constituição, na teoria positivista de Hans Kelsen, representa um “princípio supremo determinando a ordem estatal inteira e a essência da comunidade constituída por essa ordem”, e como quer que seja ela definida, a Constituição “é sempre o fundamento do Estado, a base da ordem jurídica que se quer apreender.”167 Partindo, ainda, da idéia de Kelsen da estrutura hierarquizada do ordenamento jurídico como uma pirâmide, em cujo ápice localiza-se a Constituição positiva, todos os ramos do direito possuem um único e superior fundamento de validade, e a vigência e aplicabilidade de suas normas deriva dessa relação de suprainfra ordenação, da norma superior para a norma inferior, na abordagem categorial do jusfilósofo Lourival Vilanova, da Escola de Direito do Recife.168

No direito positivo brasileiro, a Constituição da República de 1988 elevou à categoria de norma constitucional diversos princípios e institutos de garantia dos direitos da personalidade, da dignidade da pessoa humana, da função social da propriedade e dos contratos e de proteção da família, que são típicas relações e situações jurídicas de direito privado. Nesse sentido, considera Gustavo Tepedino que, “diante do novo texto constitucional, forçoso parece ser para o intérprete

166 Na visão de Gustavo Tepedino, “O ocaso das codificações, visualizado entre nós já pelo saudoso Professor Orlando Gomes, coincide com a absorção, pelo texto constitucional, do papel de reunificação do sistema, temperando, com seus princípios e normas hierarquicamente superiores, as pressões setoriais manifestadas nas diversas leis infraconstitucionais”. (O velho Projeto de um Revelho Código Civil, in Temas de Direito Civil, cit., p. 500). 167 Hans Kelsen, Jurisdição Constitucional, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 130. 168 Lourival Vilanova aprofunda, partindo das lições de Kelsen, o significado do princípio da continuidade normativa no interior do sistema jurídico, esclarecendo que “uma proposição normativa só pertence ao sistema se podemos reconduzi-la à proposição fundamental do sistema”, e de tal modo que “cada norma provém de outra norma e cada norma dá lugar, ao se aplicar à realidade, a outra norma”, para assim situar a homogeneidade do sistema de direito positivo no processo de produção de normas jurídicas a partir de um único fundamento de validade. (As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, p. 108-109).

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redesenhar o tecido do Direito Civil à luz da nova Constituição, deslocando para a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado no Código Civil.”169

O princípio da livre iniciativa ou livre empresa, justificador da natureza capitalista do sistema da economia de mercado, encontra-se consagrado como fundamento da própria República no inciso IV do art. 1º da Constituição Federal, bem como vem repetido no caput do art. 170, como fundamento da própria ordem econômica.170 O art. 5º, inciso XXIX, da Constituição, assegura aos “autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”.

O regime da propriedade industrial, matéria típica do direito comercial para a proteção das marcas e patentes, regulada pela Lei nº 9.279/1996, igualmente possui, como referido acima, fundamento superior de validade no sistema constitucional.

De modo correlato, a Constituição Federal estabelece, no Título VII, da Ordem Econômica e Financeira, nos artigos 170 a 174, princípios aplicáveis à atividade empresarial privada, ao ressaltar que a ordem econômica “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170). Nos incisos desse dispositivo constitucional, encontram-se elencados os denominados princípios instrumentais da ordem econômica e, dentre os mais importantes, podemos destacar os princípios da propriedade privada, da função social da propriedade ou da empresa, da livre

169 Gustavo Tepedino, Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil, in Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 3ª edição, 2004, p. 13. 170 A conexão do princípio da livre iniciativa com outros princípios constitucionais inerentes aos direitos fundamentais assim é explicada por Lafayete Josué Petter: “A livre iniciativa, ainda, bem compreendida, não só substancia alicerce e fundamento da ordem econômica, como também deita raízes nos direitos fundamentais, aos quais se faz ínsita uma especial e dedicada proteção. Se o caput do art. 5º se encarregou de garantir o direito à liberdade, no viés econômico ela ganha contornos mais precisos justamente na livre iniciativa. Pois se é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (CF, art. 5º, XIII), esta liberdade compreende também a liberdade de se lançar na atividade econômica, sendo então assegurados a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica (CF, art. 170, parágrafo único).” (Princípios constitucionais da ordem econômica, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, p. 163).

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concorrência, da defesa do consumidor e do tratamento favorecido às empresas de pequeno porte.

No campo da proteção da livre concorrência, o art. 173, § 4º, da Constituição enuncia que “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Esta disposição normativa evidencia, partindo de conceitos gerais, as práticas anticoncorrenciais que devem ser legalmente vedadas e reprimidas nas atividades empresariais, como hoje encontra-se regulamentado na Lei nº 12.529/2011.171

A partir desses referenciais principiológicos e categoriais essenciais presentes nas normas constitucionais que estabelecem os fundamentos da ordem econômica e da atividade empresarial, afigura-se lógico retirar diretamente da Constituição positiva o pressuposto de validade de todo o ordenamento de direito comercial e da legislação infraconstitucional de regulação da empresa privada. Em qualquer área do direito privado, seja no direito civil, seja no direito comercial, sempre resultarão das disposições superiores da Constituição as diretrizes dirigidas ao legislador infraconstitucional e ao intérprete da norma aplicável a determinada relação ou negócio jurídico.172 A mesma lógica adotada para o deslocamento do centro normativo irradiador de princípios e pressupostos para a esfera constitucional, que é válida para o direito civil, também se revela apropriada e consetânea para o direito comercial, a partir das normas acima citadas, que se dirigem à fixação superior de uma disciplina da atividade empresarial no regime da economia de mercado.

171 A Lei nº 12.529/2011 define a atual estrutura do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência - SBDC, tendo como órgão superior o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, estabelecendo as normas de direito regulatório relativas à prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica (CF, art. 173, § 4º). 172 No caso do direito civil e das normas civis codificadas, Gustavo Tepedino assim considera a respeito da necessidade de se recorrer, em caráter preliminar, à disciplina constitucional, para fins de interpretação e aplicação das normas inferiores na regulação das relações privadas: “Daí a imprescindibilidade da utilização direta e imediata das normas constitucionais nas relações jurídicas privadas, sobretudo quando proliferam cláusulas gerais e conceitos indeterminados, próprios da atual técnica legislativa. Do ponto de vista subjetivo, a norma constitucional fixa os limites de atuação valorativa do intérprete. Do ponto de vista objetivo, reformula os modelos normativos infraconstitucionais utilizados pelo intérprete, construindo-os segundo a axiológica constitucional.” (O novo e o velho Direito Civil, in Temas de Direito Civil, Tomo II, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 401).

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Partindo da concepção da constitucionalização do direito comercial, o problema da autonomia desaparece como questão a ser enfrentada e discutida. Essa questão, assim, fica superada, considerando a predominância da fundamentação constitucional, a partir da qual são estabelecidos os princípios e as funções estruturantes do regime econômico. A Constituição Federal (art. 22, inciso I) reconhece, em definitivo, o direito comercial como disciplina própria, autônoma e especial de regulação das atividades das empresas no regime da economia de mercado.

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Capítulo 3

A concepção da empresa no Código Civil de 2002

3.1. Conteúdo e conexão histórica do regime do direito de empresa; 3.2. A desmercantilização da empresa no Código de 2002; 3.3. Concessões ao caráter comercial dos atos das empresas; 3.4. Principais contradições no regime do direito de empresa; 3.5. A tentativa de compilação e consolidação de normas defasadas no regime do direito de empresa.

3.1. Conteúdo e conexão histórica do regime do direito de empresa

O Código Civil de 2002, como aqui exposto, introduziu uma nova e diferente concepção na normatização da atividade empresarial no Brasil, através do sistema do direito de empresa, em substituição ao antigo regime do comerciante e dos atos de comércio, que eram disciplinados pelo vetusto e ultrapassado Código de Comércio do Império, de 1850.

A partir da análise da disposição e do conteúdo das normas do Código Civil de 2002, em comparação com o Código Civil de 1916, constatamos que a principal inovação do Código, a mais radical das mudanças, refere-se à introdução desse novo livro, o Livro II, intitulado “Do Direito de Empresa”. Isto porque todos os demais livros e títulos do Código de 2002 reproduzem, fielmente, o conteúdo e os institutos tradicionais do sistema civil codificado e do diploma revogado (Parte Geral, Direito das Obrigações, Direito das Coisas, Direito de Família e Direito das Sucessões), da forma como foi moldado desde as Institutas de Justiniano, em 533 DC.173

173 Flavius Petrus Sabbatius Justinianus, Institutas do Imperador Justiniano, Bauru, Edipro, 2001.

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Dentre as principais mudanças promovidas na regulação da empresa pelo Código Civil de 2002, revela-se essencial destacar as seguintes:

a) A revogação de toda a parte primeira do Código Comercial de 1850 (arts. 1º a 456), cuja matéria passou a ser regida, parcialmente, pelo Código Civil;

b) A unificação parcial de institutos e conceitos tradicionais e históricos do direito

comercial, como as matérias relativas às sociedades mercantis, aos títulos de crédito e aos contratos e obrigações, com sua incorporação, também parcial, ao novo Código;

c) A supressão da dicotomia ou distinção entre atividade comercial ou mercantil e

atividade civil, com a finalidade de submeter todas as atividades econômicas privadas à regulação pelas normas gerais do direito civil, daí resultando a conseqüente tentativa de supressão da autonomia didática e científica do direito comercial.

Sob o ponto de vista metodológico, na opinião de Gustavo Tepedino,174 são duas as principais características que podemos extrair do Código Civil de 2002, em comparação com a legislação anterior revogada:

1. Unificação do direito das obrigações; e

2. A adoção da técnica das cláusulas gerais, ao lado da técnica regulamentar, como resultado de um processo de socialização das relações patrimoniais, introduzindo-se no direito codificado a função social da propriedade privada e da atividade contratual.

Apesar da referência a esse processo de socialização das relações patrimoniais,175 em todo o livro do direito de empresa não existe nenhuma menção, direta ou indireta, à função social da atividade empresarial, apesar desse princípio constar da Constituição de 1988 (art. 170, III), como um dos princípios basilares da ordem econômica.

Em termos materiais, ou seja, de conteúdo, as normas reguladoras da empresa contidas no Código de 2002 modificaram, significativamente, os conceitos e institutos

174 Gustavo Tepedino, Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002, cit., p. 6. 175 A referência à socialização das relações patrimoniais consta, por exemplo, no art. 421 do Código, ao se referir à função social do contrato, assim como no parágrafo único do art. 1.228, que trata da função social da propriedade.

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aplicáveis às atividades empresariais, que antes eram disciplinadas pelo Código Comercial de 1850 e pela legislação comercial supletiva.

Todavia, grande e significativa parte das disposições relativas ao direito de empresa constantes do Código Civil de 2002, representa, como será adiante observado, mera reprodução ou adaptação de normas anteriores, que se encontravam dispersas em várias leis, umas positivas, outras revogadas. Sem embargo, sob o aspecto material, o Código Civil de 2002 também promoveu a consolidação, em um só diploma legal, de vários institutos, conceitos e regras de direito comercial de há muito conhecidos e tratados pela lei, doutrina e jurisprudência do nosso país. Nessa perspectiva de conteúdo, portanto, foram poucas e superficiais as inovações inseridas pelo regime codificado.

Do ponto de vista formal, todavia, o Código de 2002 introduziu alterações profundas na concepção jurídica em voga, ou seja, no método de abordagem do fenômeno empresarial no âmbito do direito positivo brasileiro. A questão formal diz respeito ao modo como a empresa deve ser concebida, reconhecida e regulada pelo sistema jurídico.

Essas inovações não se limitaram, apenas, à figura da empresa, mas de toda a atividade empresarial e do modo como essa atividade até então era regulada pelo direito comercial, ao introduzir, no Brasil, um sistema voltado à unificação de institutos e conceitos de direito privado. Essa nova disciplina reproduz, ainda que de modo parcial ou incompleto, a concepção subjetivista do direito de empresa do Código Civil Italiano de 1942.

Além do mais, como afirmado acima, esse aparentemente inovador regime jurídico do direito de empresa foi positivado pela nossa legislação de modo artificial, sem respeitar as bases históricas, culturais e a longa formação consuetudinária do direito comercial brasileiro, ao reproduzir, de modo quase literal, conceitos, regras e princípios importados, sem nenhuma adaptação teórica, do sistema fascista italiano.176

176 Analisando os problemas metodológicos decorrentes do novo regime da empresa resultante do Código Civil de 2002, Fábio Ulhoa Coelho observa: “Ignorando as especificidades do direito comercial, e seus princípios próprios, a unificação legislativa acabou não somente contribuindo enormemente para

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Com efeito, o Código de 1942 da Itália foi moldado sob distinta base deontológica, formado noutra realidade histórica, ideológica e sócioeconômica, e que se revela, como adiante demonstrar-se-á, totalmente inapropriado para reger as atividades empresariais no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no século XXI, em plena era tecnológica, da globalização e da internacionalização dos mercados. A transposição do Código italiano de 1942 para o Código Civil de 2002 não observou, como conclusão óbvia, elementar, a evolução histórica do direito comercial brasileiro e as características da atividade econômica no Brasil e no mundo globalizado e interconectado em tempo real, totalmente diverso da realidade de outra época e de outra cultura, em franca oposição aos princípios factuais que deveriam ser respeitados, como assim ensinava Ascarelli.177

Esse Código Civil italiano de 1942 foi promulgado em um período marcado pelo maior conflito bélico da história da civilização humana em todos os tempos, a Segunda Guerra Mundial, iniciada pela política expansionista da Alemanha nazista, e apoiada pelos dois outros países do Eixo, a Itália e o Japão. Na Itália dominada pelo regime do ditador Benito Mussolini desde 1923, o Código Civil de 1942 teve como objetivo principal reunir e unificar, em um único diploma legislativo, todas as atividades econômicas desempenhadas pelas pessoas, sociedades e entes privados. A ideia dominante era que, a partir dessa unificação normativa totalitária, todas as pessoas

acentuar o esgarçar dos valores da disciplina, como também privou a ordem jurídica nacional do regramento adequado para o atual estágio de evolução da nossa economia, fortemente integrada ao processo de globalização. A unificação legislativa foi um erro. É preciso corrigí-lo, o quanto antes”. (O futuro do direito comercial, São Paulo, Saraiva, 2011, p. 8). 177 Comentando a respeito do desenvolvimento histórico do direito comercial, Tullio Ascarelli assim considerava: “Fica claro que a especialidade do direito comercial não deriva da especialidade da matéria regulada, mas da emersão em determinados setores, de exigências e valores de caráter geral e, como tal, suscetíveis, no desenvolvimento histórico, de uma aplicação geral. Não são as exigências técnicas inerentes ao comércio, à indústria, à produção, e por aí afora, que “necessariamente” determinam normas especiais, porque, se assim fosse, o direito estaria fora da história, ou inserido numa história separada. O direito, e portanto também o direito comercial, não pode ser compreendido fora da história e a sua especialidade não pode ser posta em relação com exigências técnicas imutáveis, mas com o desenvolvimento histórico da nossa experiência jurídica, que vem gradativamente afirmando – por isso primeiramente em campos determinados – novos princípios, depois suscetíveis de aplicações mais gerais, justamente porque o direito não obedece no seu desenvolvimento a preordenadas simetrias sistemáticas, mas à necessidade e à consciência dos homens, cujas relações regula, no ordenamento da convivência social.” (O desenvolvimento histórico do Direito Comercial e o significado da unificação do Direito Privado, cit., p. 242).

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privadas, empresários e trabalhadores, poderiam ser mais facilmente reguladas e controladas pelo Estado fascista.178

Sendo produto dessa concepção totalitária, o Código Civil de 1942 teve como finalidade principal submeter à tutela estatal todas as atividades de natureza civil, comercial e também trabalhista, manifestadas na esfera econômica.

A atividade trabalhista, inclusive, estava contida no mesmo código em parte específica, denominada Libro del Lavoro.179 O Libro ou Codigo del Lavoro abrangia, inclusive, na sua esfera de regulação, as atividades empresariais, colocando o empresário na condição de empregado ou servidor do Estado, antes de reconhecer a sua independência e autonomia como detentor do capital especulativo e de risco.

Na verdade, a doutrina comercialista da Itália, após a célebre retratação de Cesare Vivante,180 posicionou-se a favor da manutenção do sistema codificado comercialista para regular a atividade empresarial, rejeitando a unificação do direito privado, por não reconhecer no sistema unificado a devida resposta às demandas

178 Observa Renan Lotufo, quanto à inspiração do Código Italiano de 1942: “O Código Italiano de 1942 foi elaborado no período do fascismo de Mussolini, portanto, um Código voltado para a produtividade, para a produção em larga medida, mas sem qualquer referência ao valor fundamental do ser humano. O centro de toda aquela necessidade social, de toda aquela doutrina elaborada se deu no Projeto de Código Italiano, transformando tudo quanto possível em regras à produtividade. Tudo girava em torno da produtividade em benefício do Estado.” (Da oportunidade da Codificação Civil e a Constituição, em O Novo Código Civil e a Constituição, Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2006, p. 17). 179 Código Civil Italiano de 1942 - Libro Quinto (V), arts. 2.060 a 2.642. 180 As posições mutantes de Vivante sobre a dicotomia entre direito civil e direito comercial são assim explanadas, com inigualável didática, por Paula Forgioni: “No final do século XIX, acentua-se a crença em que não mais se justificaria a existência de um direito especial para os comerciantes. Na Itália, como é sabido por todos, Vivante causa furor ao defender a tese da unificação do direito privado, em aula inaugural da Faculdade de Direito de Bolonha, no ano de 1892. Não haveria diferenças; não haveria dicotomia. Vivante assim alinhavava a controvérsia: (I) a autonomia do direito comercial manter-se-ia mais pela tradição do que pelas boas razões; (II) a dicotomia causaria danos de índole social e jurídica - pessoas que não são comerciantes ficam sujeitas às suas regras, feitas para os comerciantes - e (III) prejuízos para o progresso científico, pois os comercialistas não estudariam as regras gerais. Os "improvisados jurisconsultos" falariam, a toda hora, em contratos sui generis. No entanto, na 5ª edição de seu Trattato di Diritto Commerciale, Vivante chega à conclusão de que a unificação do direito privado não seria aconselhável porque: (I) direito civil e direito comercial guardam profundas diferenças de métodos. Enquanto o direito comercial vale-se do método indutivo (i.e., conclui-se a regra com base nos fatos - a conclusão é mais geral do que a premissa), o direito civil lança mão daquele dedutivo (partindo da premissa geral e chegando à conclusão individual); (II) o direito comercial é de índole cosmopolita, que decorre do próprio comércio; ao mesmo tempo em que (III) regula os negócios de massa, que dariam origem a institutos típicos do direito comercial (títulos de crédito, circulação, portador de boa-fé etc.). Neste mesmo escrito, resta clara a principal diferença entre o direito civil e o direito comercial: espírito diverso, "spirito di speculazione.” (A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil Brasileiro, Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, RT, v. 42, 2003, p. 26).

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emergentes e sempre dinâmicas, bem como às exigências negociais das empresas mercantis.181

Os principais juristas italianos passaram a discutir a reforma do Código Comercial de 1882 com a finalidade de modernizar seus institutos em face da contínua evolução das relações mercantis e das atividades das empresas. Foram criadas, então, duas comissões revisoras do Código de 1882, a primeira tendo à frente o próprio Cesare Vivante, instituída no ano de 1922, e a segunda presidida pelo Senador Mariano D’Amelio, nomeada por Decreto Real de 1925.

Ambas as comissões revisoras partiram da mesma concepção dualista, reconhecendo a plena autonomia científica e metodológica do direito comercial. A concepção objetivista dos atos de comércio foi mantida, sendo atribuída à empresa, todavia, como organização, importância destacada. Essa posição seguia a tendência doutrinária italiana do início do século XX, especialmente aquela resultante das lições de Lorenzo Mossa.182 Na opinião de Mossa, a atividade comercial assume maior relevo quando estruturada e organizada a partir da idéia de empresa, constituindo as organizações empresariais centros econômicos dotados de individualidade, de tal modo que tais entes produtivos passaram a exigir regulamentação mais específica, inclusive por representar atividade de relevante interesse social, distinta do interesse particular.183

A empresa passou, assim, a ser reconhecida pela doutrina italiana como uma organização, a partir da qual se processam os atos mercantis, dotada de especialidade e de características próprias, diferenciada da antiga figura do mercador ou comerciante, que prevalecia na fase de codificação do século XIX. Como elemento da empresa, a doutrina começa a definir os contornos de um novo conceito, o de estabelecimento comercial (azienda ou patrimonio aziendale), que exprime o modo

181 Na opinião de Francesco Ferrara Junior, a empresa significa, essencialmente, o ente comercial por excelência, que deve ser regulada por regime próprio, como organização mercantil: “Commercio non è soltanto lo scambio, bensì l’organizzazione per lo scambio. Non si ha vero commercio ladove manchi l’impresa o, rispettivamente, l’azienda”. (Gli Imprenditori e Le Società, cit., p. 13). 182 Lorenzo Mossa, I problemi fondamentali del diritto commerciale, 1926, apud Francesco Ferrara Junior, Gli Imprenditori e Le Società, cit., p. 12. 183 Francesco Ferrara Junior, Gli Imprenditori e Le Società, cit., p. 13.

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como o empresário organiza seus fatores de produção voltados para o alcance de resultados econômicos.

O Código Italiano de 1942 não refletia, portanto, a tendência doutrinária da época, que considerava passível de unificação, apenas, o direito das obrigações, mas não os institutos, conceitos e processos especializados do direito mercantil. A elaboração do Código de 1942 não seguiu os projetos elaborados pelas comissões presididas por Cesare Vivante e Mariano D’Amelio, mas foi concebido por uma comissão ministerial nomeada, em 1940, pelo ditador Benito Mussolini, com a clara intenção de impor, por sobre as atividades econômicas privadas, as necessidades intervencionistas do Estado fascista em época de esforço de guerra.184

A antinomia preliminar que se revela latente no regime do direito de empresa, tal como adotado pelo Código Civil brasileiro de 2002, além de seguir um modelo influenciado pelo regime totalitário fascista, é que esse Código entrou em vigor já superado, inclusive, pela própria e natural evolução legislativa subseqüente, considerando que seu projeto, enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional em 1975, somente foi aprovado após decorridos longos 27 anos de tramitação.

Sob este aspecto, outro problema que se destaca é que, durante a tramitação do projeto do Código Civil no Congresso Nacional, por quase três décadas, poucas foram as emendas de atualização apresentadas ao livro do direito de empresa, necessárias para adequar, à época, as suas normas aos novos princípios reformadores da Constituição de 1988 e da nova disciplina da ordem econômica (CF, artigos 170 a 174).

Além da própria defasagem histórica e cultural de sessenta anos entre o Código Civil italiano de 1942 e o Código Civil brasileiro de 2002, observa-se que o nosso código já nasceu desconectado, por exemplo, dos modernos meios e procedimentos de contratação no comércio eletrônico, dos títulos de crédito digitais, os quais dominam significativa parte dos negócios do mercado empresarial na atualidade. Essas críticas acerca da desatualização legislativa, a maioria delas pertinentes, foram

184 Francesco Ferrara Junior, Gli Imprenditori e Le Società, cit., p. 13.

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objeto de percucientes contestações e comentários de juristas em seguida à sanção do Código de 2002.185

Com efeito, nesse longo período de tramitação do Código no Congresso Nacional, entre os anos de 1975 e 2002, vale mais uma vez lembrar, várias áreas de conhecimento especializado do direito comercial evoluíram, de modo autônomo, a exemplo da própria legislação das sociedades por ações (Lei 6.404/1976, com as alterações e atualizações da Lei 8.021/1990, da Lei 9.457/1997 e da Lei 10.303/2001), de defesa da concorrência (Lei 8.884/1994, modificada pela Lei 12.529/2011), do registro de empresas mercantis (Lei 8.934/1994), do regime da propriedade industrial (Lei 9.279/1996), assim como de diversos tipos de contratos empresariais, como os contratos de arrendamento mercantil (Lei 6.099/1974), de concessão comercial de veículos automotores (Lei 6.279/1979), de franquia empresarial (Lei 8.955/1994), hoje considerados entre os principais tipos contratuais utilizados para a regulação das relações mercantis de colaboração entre as empresas produtoras e distribuidoras de bens e de serviços.

Assim, toda essa normatividade anterior à vigência do Código de 2002 revela-se até bem mais atual, moderna e adaptável às necessidades contemporâneas das empresas privadas, frente à lei codificadora posterior. Nesse sentido temporal relativo à legislação superveniente, o direito de empresa tal como regulado no Código Civil de 2002 representa, portanto, na esfera empresarial, legislação defasada ou tecnicamente superada, principalmente quando confrontada com a evolução do direito comercial e do direito econômico nas últimas décadas do século XX e ao início do presente século XXI.186

185 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, Direito de Empresa, cit., p. 37; Gustavo Tepedino, O novo e o velho Direito Civil, in Temas de Direito Civil, Tomo II, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 401; Rachel Sztajn, Teoria Jurídica da Empresa, São Paulo, Atlas, 2004, p. 9. 186 A propósito dos problemas que resultaram e estão resultando da inserção do direito de empresa pelo Código Civil de 2002, Wilges Bruscato registra: “As particularidades que envolvem a atividade empresarial demonstram os inconvenientes da regulação do direito de empresa pelo Código Civil, ainda que seja uma técnica possível, devido à unificação do sistema das obrigações, já que muitas vezes não atenta para as características que revestem as obrigações mercantis e pode, com isso, trazer desvantagens econômicas que terão reflexos negativos para a sociedade. O direito empresarial vem sendo construído ao longo do tempo de acordo com os ditames dos fatos que se propõe a regular, como qualquer outro ramo do Direito. Embora do Direito seja uno, acaba se subdividindo em vários ramos autônomos, como ressaltado, em especial, pelas especificidades de cada campo da vida humana e social. Daí a importância do critério científico de autonomia de uma área do Direito”. (Os

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3.2. A desmercantilização da empresa no Código de 2002

A adoção do regime do direito de empresa no Brasil, a partir do Código Civil de 2002, decorreu, como visto, de pura elaboração legislativa, e não resultou de nenhuma construção histórica, cultural ou consuetudinária resultante da nossa vasta experiência jurídica. Sob a perspectiva evolutiva a partir da era atual, a tendência natural da política legislativa deveria resultar na revogação do Código Comercial de 1850, diploma que se apresentava defasado diante da radical evolução da economia verificada desde o final do século XIX, e sua substituição por microssistemas legislativos de direito empresarial.

Com efeito, o projeto do Código de 2002 teve por objetivo declarado unificar o direito das obrigações no nosso sistema de direito positivo, a partir dos precedentes do Código das Obrigações da Suíça de 1881 e do Código Civil italiano de 1942. O próprio modo de concepção do projeto do Código Civil brasileiro, orientado para a idéia de unificação do direito das obrigações, representava construção estritamente racionalista do direito, extraída de outros sistemas dogmáticos europeus.

Esse processo de construção normativa, a partir de conceitos amplos e institutos gerais, de formulações teóricas que guardam raízes no iluminismo racionalista, representa a marca característica da elaboração dogmática do direito civil. Todavia, de modo oposto a essa concepção, o direito comercial sempre se apresentou, ao longo dos séculos, como um ramo especializado do direito privado formulado e construído a partir dos usos e costumes mercantis que, desde o século XVI, na fase do mercantilismo, passaram a ser positivados no direito estatal.

Sem embargo, a praxis mercantii e a ars mercatorum sempre formaram a base consuetudinária sobre a qual as leis comerciais foram sendo moldadas ao longo dos

princípios do Código Civil e o Direito de Empresa, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo, Malheiros, nº 139, julho-setembro 2005, p. 60).

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séculos. Raras são as instituições do direito comercial com origem na criação da pura elaboração legislativa. A sociedade por quotas de responsabilidade limitada é um dos poucos exemplos dessa idealização dos juristas no processo legislativo de base racionalista.187

A experiência jurídica brasileira na esfera mercantil foi praticamente toda ela moldada a partir do Código Comercial da França de 1807, do Código Comercial de Portugal de 1833 e do nosso Código Comercial de 1850, tomando por base a concepção subjetivista do comerciante, compatibilizada com a concepção objetivista dos atos de comércio, mas respeitando a origem marcantemente consuetudinária decorrente dos usos e práticas do comércio.

A especialização da matéria mercantil, não como atividade exclusiva dos comerciantes, mas dos negócios comerciais, sempre representou a base dogmática do nosso direito comercial, sendo a empresa mera expressão moderna designativa do exercício dessa atividade. A transmutação dessa base dogmática para o direito de empresa, inserida no nosso direito positivo pelo Código Civil de 2002, não decorreu de nenhuma formação consuetudinária, nem tampouco foi fruto de qualquer experiência acumulada, mas resultou de simples inserção artificial de uma base normativa tomada emprestada do direito italiano.

A concepção do direito de empresa adotada pelo Código Civil de 2002 foi elaborada e desenvolvida pela doutrina jurídica a partir de um movimento teórico que defendia a unificação do direito das obrigações. O principal trabalho doutrinário que formulou as bases conceituais para a unificação do direito das obrigações no campo mercantil foi, sem dúvida, obra do jurista italiano Cesare Vivante.188 Segundo Vivante, o direto comercial alargou-se de tal modo, abrangendo as mais variadas relações econômicas, que converteu-se em direito comum. Desse modo, o direito comercial não mais estaria apto a representar direito exclusivo da classe comercial, ou seja, dos comerciantes, como assim era característico na sua origem corporativa medieval.

187 Waldirio Bulgarelli, Sociedades Comerciais, São Paulo, Atlas, 10ª edição, 2001, p. 117. 188 Cesare Vivante, Per un codice unico delle obligazioni, Archive Giuridici, XXXIX, 1888, apud Alfredo Rocco, Princípios de Direito Comercial, cit., p. 74-75.

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Diante do crescimento exponencial da atividade comercial na vida econômica e no meio social ao final do século XIX, entendeu Vivante que tal situação estava provocando uma excessiva e incômoda autonomia do direito comercial diante do direito civil, quando, na sua concepção, o direito civil, por ser o repositório dos fundamentos e princípios gerais do direito privado, deveria, sempre, ser considerado como a base conceitual do direito comercial. E a existência de dois códigos, um civil e outro comercial, representaria, de fato, para Vivante, uma dificuldade adicional para a regulação das atividades econômicas, que ficavam vinculadas, nesse contexto, a duas ordens normativas distintas.

O que estava ocorrendo, de fato, com a expansão e profissionalização do comércio, desde o século XIX, era uma antecipação ou visão prévia do fenômeno consumerista que somente viria a transparecer no século seguinte. O direito comum que então se manifestava era o que atualmente conhecemos como direito do consumidor. Enquanto o direito comercial era considerado como direito corporativo, exclusivo dos comerciantes, as relações de consumo, que ainda não mereciam tutela específica, continuavam à margem da regulação protecionista do Estado. As relações e negócios entre comerciantes e consumidores eram aquelas que, efetivamente, estavam a interferir sobre o denominado direito comum.

O movimento que defendia a unificação do direito privado significava, na verdade, uma reação dos civilistas contra o processo denominado “comercialização do direito civil”,189 tendência histórica que se observou nos países europeus ao final do século XIX.190 Nessa época, o direito comercial, em virtude da própria dinamicidade,

189 A expressão comercialização do direito civil, como observado por Oscar Barreto Filho, foi pela primeira vez empregada pelo jurista alemão Gabriel Riesser, e divulgada - e assim passou a ser mais intensamente referida - a partir da obra de Georges Ripert, Traité Elementaire de Droit Commercial. (Teoria do Estabelecimento Comercial, cit., p. 8). Na visão de Tullio Ascarelli, “o direito das obrigações comercializa-se, segundo a frase de um grande comercialista, e isto a tal ponto que, quando (como também aconteceu em alguns países, por exemplo o Brasil) o Código Civil é posterior ao Comercial, é no Civil e não no Comercial que encontramos aqueles princípios que determinam os atos propriamente comerciais”. (O desenvolvimento histórico do Direito Comercial e o significado da unificação do Direito Privado, cit., p. 241). 190 Considera Cássio Cavalli, a partir das lições de Hernani Estrela, que “enquanto o direito civil comercializava-se, o direito comercial transmudava-se internamente em sua estrutura e função”, se esse fenômeno tinha como consequência, “de tão profunda transformação, cada vez mais se tornam fundidos no quadro amplo do direito privado os dois ramos, civil e comercial, e também mais confusas se tornam as fronteiras de um e outro.” (Direito Comercial: passado, presente e futuro, Rio de Janeiro, Elsevier, FGV, 2012, p. 92).

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multiplicidade e complexidade das atividades mercantis, estava abarcando tipos negociais que até então e tradicionalmente, eram disciplinados com exclusividade pelo direito civil, a começar pelo modelo contratual da compra e venda mercantil.191

Essa reação, movida não pelo instinto de sobrevivência teórica, mas pela necessidade de afirmação do direito civil como um direito histórico e cientificamente superior, é que, na verdade, fomentou o movimento antimercantilista, o qual culminou com as experiências dogmáticas de subordinação, ainda que parcial, da atividade comercial à disciplina civilista no sistema normativo italiano.

Não obstante, o Código Civil italiano de 1942, mesmo promovendo a unificação do direito das obrigações em um único diploma legal, manteve e continuou reconhecendo a natureza mercantil das atividades econômicas desempenhadas pelos comerciantes e pelas sociedades comerciais.

A unificação da parte obrigacional do direito privado no Código da Itália de 1942 foi efetivada dogmaticamente, destarte, respeitando a natureza mercantil das atividades desempenhadas pelas empresas comerciais e industriais dedicadas a esse específico objeto. Nesse sentido, constata-se que o art. 2.195 do Código Civil italiano, de modo expresso, classifica os diversos tipos de empresas de acordo com seu respectivo objeto, relacionando e fazendo menção, assim, às empresas industriais, empresas de intermediação para a circulação de bens, empresas de transporte, empresas bancárias e empresas de seguros, exemplos característicos de exploração de atividades que, historicamente, sempre foram classificadas como comerciais.

O Código italiano de 1942, no art. 2.220, distingue os tipos de sociedades que podem ser constituídas para desempenhar atividade comercial, a partir da natureza ou do tipo do objeto da empresa. Esse dispositivo contém menção ao exercício de atividade comercial, como assim expresso:

191 No âmbito do direito das obrigações, na visão de René David, “o direito civil comercializou-se em todos os países economicamente desenvolvidos, a tal ponto que poucas regras ainda existem em que as obrigações comerciais sejam tratadas diferentemente das obrigações civis”, sendo que esse fenômeno, em parte, decorreu das codificações nacionais, que “fizeram perder, por um lado, ao direito comercial, o caráter internacional que outrora o distinguia profundamente do direito civil.” (Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, cit., p. 97/98).

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Art. 2.200 – Società - Sono soggette all'obbligo dell'iscrizione nel registro delle imprese le società costituite secondo uno dei tipi regolati nei Capitolo III e seguenti del Titolo V e le società cooperative (2511 e seguenti), anche se non esercitano un'attività commerciale.192

O Código Civil brasileiro de 2002, ao contrário do italiano, não definiu nenhuma atividade econômica privada como sendo de natureza comercial ou mercantil. A princípio, toda adjetivação funcional designativa da atividade mercantil ou comercial foi banida pelo novo Código, que adotou uma posição muito mais radical e estereotipada do que aquela empregada pela sua fonte material de origem, o Código italiano de 1942.

Essa injustificável esterilização conceitual representa mais um motivo que vem provocando dificuldades quase intransponíveis para a compatibilização teórica do regime de empresa com o sistema mercantilista, que, não obstante, continua subsistindo na legislação extravagante ao Código Civil e nos microssistemas de direito comercial.

No regime do Código Comercial de 1850, o comerciante e a sociedade comercial dedicavam-se ao exercício da mercancia (C.Com., art. 4º), como atividade econômica preponderante. A idéia de mercancia deriva do objeto próprio da comercialização, da mercadoria em si, considerada essencialmente como bem móvel, típico do contrato de compra e venda mercantil (C.Com., art. 191),193 celebrado massivamente no mercado empresarial e de consumo.

No processo evolutivo do direito comercial, a definição do seu objeto material sempre esteve relacionada com a finalidade mercantil da atividade econômica. Em um primeiro momento histórico, essa concepção era de natureza subjetivista, porque

192 Sociedade - Estão sujeitas à obrigação de inscrição no registro de empresas as sociedades constituídas segundo um dos tipos regulados nos Capítulos III e seguintes do Título V e as sociedades cooperativas (2.511 em diante), ainda que não exerçam uma atividade comercial. 193 Código Comercial de 1850, Art. 191 - O contrato de compra e venda mercantil é perfeito e acabado logo que o comprador e o vendedor se acordam na coisa, no preço e nas condições; e desde esse momento nenhuma das partes pode arrepender-se sem consentimento da outra, ainda que a coisa se não ache entregue nem o preço pago. Fica entendido que nas vendas condicionais não se reputa o contrato perfeito senão depois de verificada a condição.

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centrada na figura do comerciante, pessoa física, tal como originário dos estatutos das corporações de mercadores, sendo o direito comercial um direito de classe, formado no seio da prática mercantil.194

Com a codificação do direito mercantil, positivada no Código Comercial da França de 1807, a teoria subjetivista do mercador foi substituída pela concepção objetivista fundada na teoria dos atos de comércio. Para essa concepção objetivista, o direito comercial tem por objeto regular a matéria comercial, e esta é determinada por aquilo que a legislação define como sendo de natureza mercantil. Nesse sentido, Rubens Requião afirma que “é a lei comercial que determina o que seja matéria comercial”,195 definição esta que resultaria da simples aplicação de conceitos dogmáticos pela ciência do direito.

Na tentativa de explicar o fenômeno do comércio na sua complexidade imanente, várias foram as teorias elaboradas para definir a matéria comercial. Para Alfredo Rocco, por exemplo, a atividade comercial compreenderia, como elemento unitário, a idéia de interposição na troca,196 ou seja, deve ser considerada comercial toda atividade econômica em que exista relação jurídica de intermediação econômica, tendo como objeto uma mercadoria.

Contudo, somente essa concepção objetivista da comercialidade não se demonstrava suficiente o bastante para explicar o fenômeno mercantil. A necessidade de complementação recíproca e conceitual entre a concepção subjetivista do comerciante e a concepção objetivista dos atos de comércio levou o comercialista francês Jean Escarra a afirmar que “o direito comercial é, ao mesmo tempo, o direito dos comerciantes e dos atos comércio.”197

Desconsiderando toda essa construção histórica sobre os elementos materiais que definem o conteúdo do direito mercantil, o Código Civil de 2002 ignorou qualquer vestígio de comercialidade no momento de definir os conceitos de empresário (art. 966), de sociedade empresária (art. 982) e de estabelecimento (art. 1.142), abstendo-

194 Waldirio Bulgarelli, Direito Comercial, cit., p. 31. 195 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, cit., vol. 1, p. 25. 196 Alfredo Rocco, Princípios de Direito Comercial, cit., p. 201. 197 Jean Escarra, Manuel de Droit Commercial, Paris, Sirey, 1947, p. 66.

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se de conceituar e considerar, portanto, a empresa como ente mercantil, como instituição do mercado.

Independentemente do seu objeto, seja civil ou mercantil, a empresa, segundo o Código de 2002, é aquela que adota forma empresarial. Em princípio, o Código Civil considera empresário “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” (art. 966). A idéia de empresa corresponde, exatamente, à atividade organizada para o exercício de função econômica, tanto de natureza mercantil como de natureza não mercantil.

No regime do Código Civil de 1916, toda atividade não mercantil restava enquadrada como atividade civil, até por exclusão natural. O Código de 2002 (art. 967), ao vincular a forma da empresa à organização que arquiva seus atos constitutivos e societários no registro de empresas mercantis,198 ele abre, literal e metaforicamente, a porteira ontológica para que, assim considerada, qualquer ente econômico seja caracterizado, juridicamente, como empresarial, ainda que seu objeto não seja materialmente mercantil.

No sistema do Código Civil italiano de 1942, a empresa é diferenciada em razão do seu objeto preponderante, que pode ser comercial, industrial, bancário, de serviços ou mesmo rural. A ideia de empresa não mercantil representa, historicamente, contraditio in terminis. Salvo abstraindo-se esses critérios históricos e materiais que serviram de base para o desenvolvimento científico do direito comercial, a empresa sempre se caracterizou, por suposto, como organização econômica com finalidade lucrativa.

Um dos maiores problemas práticos existentes no nosso sistema de direito comercial positivo, relativamente à organização institucional da empresa, diz respeito à total e absoluta liberdade prevalente para a definição da forma ou modelo da empresa, por opção dos sócios ou acionistas fundadores. Com efeito, a legislação brasileira não estabelece nenhum critério objetivo, seja de ordem lógica, metodológica

198 O Registro Público de Empresas Mercantis compreende a função desempenhada pelas Juntas Comerciais dos Estados, vinculadas tecnicamente ao Departamento Nacional do Registro do Comércio – DNRC, atual Departamento de Registro de Empresas e Integração - DREI (Código Civil, arts. 1.150 a 1.154; Lei 8.934/1994; Decreto 1.800/1996; Decreto 8.001/2013).

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ou dogmática, no sentido de definir a forma de organização da empresa em nosso ordenamento jurídico.199 Em outras palavras, é quase absolutamente livre a forma da empresa no direito brasileiro. Essa liberdade de forma representa, contudo, obstáculo ao enquadramento da empresa em razão do objeto que lhe é próprio.

O Código de 2002 considera que a empresa deve ser juridicamente qualificada em razão da sua forma, não do objeto da atividade exercida. O fato da empresa realizar, ou não, uma atividade mercantil, é irrelevante. Essa concepção, além de entronizar, artificialmente, uma idéia até então desconhecida pela doutrina e muito mais ainda pela praxis comercial, provoca uma dificuldade de definição que conspira contra a lógica dos conceitos. Para esse novo regime jurídico, a empresa tem como único elemento comum o exercício de atividade econômica, seja esta mercantil ou não mercantil, produtiva ou não produtiva, lucrativa ou não lucrativa.

No regime tradicional dos atos de comércio, somente se qualificava como comercial o elenco das atividades reputadas, intrinsecamente, como mercantis, tendo por exemplo maior a compra para revenda. A compra e venda mercantil sempre foi considerada uma modalidade contratual específica, dotada de características próprias e informais, como mera atividade de troca, efetuada sem maiores solenidades, como é típico dos atos em massa. Bastante diferente é a compra e venda civil, realizada entre particulares não afeitos às peculiaridades dos negócios, em que as partes não visam o lucro, mas sim a obtenção de resultados econômicos ou patrimoniais compensatórios, e que não dependem dessas operações esporádicas para a sua sobrevivência, isto é, são despidas dos aspectos da profissionalidade e da finalidade lucrativa.

O Código Comercial de 1850, por não haver relacionado as atividades de mercancia que representavam o que deveria ser definido como matéria comercial, filiou-se à concepção subjetivista do comerciante como destinatário final das normas

199 No Decreto-Lei 2.627/1940, a constituição da sociedade anônima exigia um mínimo de sete acionistas (art. 38), requisito que foi reduzido para apenas dois acionistas a partir da Lei 6.404/1976. Além dessa exigência mínima de composição de acionistas ou sócios, a legislação brasileira não determina qualquer outro critério para a escolha da forma específica da empresa ou de sociedade comercial, seja em razão do número de sócios ou do montante do capital social, com exceção da recente fixação de capital de 100 (cem) salários mínimos para a constituição de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI (CC, art. 980-A, com a redação da Lei 12.441/2011).

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comerciais. O direito comercial era, pois, o direito dos comerciantes, um direito de classe, tal como na sua origem corporativa.

Considera, entretanto, Rubens Requião, que o sistema do Código de Comércio do Império de 1850 “é subjetivo, pois assenta na figura do comerciante, não evitando, porém, o tempero objetivo, enumeração legal dos atos de comércio, para esclarecer o que seja mercancia, elemento radical na conceituação do comerciante”.200

Para Vivante, a enumeração legal dos atos de comércio demonstra-se necessária e imprescindível para o adequado enquadramento dos fatos econômicos nas normas comerciais aplicáveis, principalmente:201

a) para que se saiba qual a matéria a que se devem aplicar as leis e os usos comerciais de preferência ao direito civil;

b) para que se possa determinar quem é comerciante; não se pode sabê-lo se anteriormente se não sabe quais são os atos objetivos do comércio;

c) para que estes atos só possam ser praticados por quem tenha capacidade para dispor das suas coisas.

A teoria dos atos de comércio foi suprimida no nosso sistema de direito comercial pela adesão do Código Civil de 2002 à concepção subjetivista da empresa como centro da atividade econômica. Todavia, contraditoriamente, o Código brasileiro não seguiu ou observou a sua matriz italiana, que diferencia a empresa em razão do seu objeto.202 No Código Civil italiano de 1942, as empresas foram diferenciadas de acordo com a natureza mercantil do seu objeto, de modo semelhante ao sistema enumerativo dos atos de comércio do Regulamento 737, tal como constante do artigo 2.195 do Libro Quinto, que se refere à empresa industrial, a empresa comercial, à empresa de transporte, à empresa bancária e à de seguros.203

200 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 42. 201 Cesare Vivante, Instituições de Direito Comercial, São Paulo, Minelli, 2ª edição, 2007, p. 38/39. 202 No projeto do Código das Obrigações de 1965, também elaborado, na parte da atividade negocial, por Sylvio Marcodes Machado, idêntica enumeração dos atos de comércio constante do art. 2.195 do Código italiano foi reproduzida no art. 1.108, § 1º, como observado por Fran Martins (Curso de Direito Comercial, cit., p. 85). 203 Art. 2.195 - Imprenditori soggetti a registrazione - Sono soggetti all'obbligo dell'iscrizione nel registro delle imprese gli imprenditori che esercitano: 1) un'attività industriale diretta alla produzione di beni o di servizi; 2) un'attività intermediaria nella circolazione dei beni; 3) un'attività di trasporto per terra, o per acqua o per aria; 4) un'attività bancaria o assicurativa; 5) altre attività ausiliarie delle precedenti. Art. 2.195 – Empresário sujeito a registro - Estão sujeitos à obrigação de inscrição no registro de empresa os empresários que exerçam: 1) uma atividade industrial direta de produção de bens ou

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Apesar de alguns doutrinadores, como Teixeira de Freitas, considerarem, ao longo dos tempos, a classificação dos atos de comércio como incompleta e mesmo arbitrária, por ser resultante da vontade do legislador de assim enumerar os atos de mercancia, a posição dominante dos comercialistas sempre reconheceu a importância da teoria dos atos de comércio para a determinação da matéria comercial. Carvalho de Mendonça afirmava, por exemplo, que “os atos de comércio constituem o ponto central e a base por excelência da matéria comercial”.204

No tocante à finalidade lucrativa inerente à atividade comercial, Waldemar Ferreira destaca: “Todos os juristas num ponto se entenderam. O ânimo de alcançar o lucro é substancial para formar-se o ato de comércio. Essa é a finalidade do comércio intervindo na circulação econômica”.205 A atividade comercial está caracterizada pela inserção inserção necessária do componente lucrativo no âmbito das operações e negócios realizados pelos comerciantes e pelas sociedades comerciais. Ensina Carvalho de Mendonça, de modo conclusivo, elucidativo: “o lucro é o fim de toda atividade econômica”.206

Confirmando essa linha de entendimento, a Lei 6.404/1976 assim define o objeto da sociedade anônima, dando ênfase ao seu aspecto ou caráter lucrativo:

Art. 2º. Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes.

§ 1º. Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio.

Com efeito, a sociedade anônima caracteriza-se como sendo “qualquer empresa de fim lucrativo” e “qualquer que seja o seu objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio”. De acordo com a lei brasileira, pois, a sociedade anônima deve, obrigatoriamente, ser empresa de fim lucrativo, sendo o lucro componente intrínseco e objeto mediato a ser buscado pela atividade econômica. A sua regulação jurídica compreende, necessariamente, a aplicação das

serviços; 2) uma atividade intermediária de circulação de bens; 3) uma atividade de transporte por terra, água ou ar; 4) atividade bancária ou de seguros; 5) outras atividades auxiliares das anteriores. 204 J. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit., p. 427. 205 Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, Teoria dos Atos de Comércio, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 2ª edição, 1948, vol. II, p. 32. 206 J. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit., p. 435.

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leis e usos do comércio, e não a disciplina comum do direito civil, como assim expresso na norma positiva.

Na Exposição de Motivos do Projeto do Código Civil de 2002, Miguel Reale explica que, segundo a concepção adotada pelo projeto, “na empresa, no sentido jurídico deste termo, reunem-se e compõe-se três fatores, em unidade indecomponível: a habitualidade no exercício de negócios, que visem à produção ou à circulação de bens ou de serviços; o escopo de lucro ou resultado econômico, a organização ou estrutura estável dessa atividade”.207

O caráter lucrativo da atividade econômica, contudo, não seria exclusivo da empresa ou da sociedade empresária, tendo em vista que o art. 997, inciso III, do Código Civil, ao dispor sobre as cláusulas essenciais do contrato da sociedade simples, faz menção à participação dos sócios nos lucros. Diversos outros dispositivos do Código referentes à sociedade simples (artigos 1.006 a 1.009; 1.017; 1.026 e 1.027) também fazem menção ao direito dos sócios à percepção dos lucros apurados e distribuídos.

Assim, ao contrário da antiga figura da sociedade civil, em que o Código de 1916 (artigos 1.363 a 1.409), apesar de admitir a percepção do lucro pelos sócios, não caracterizava essa sociedade como de escopo ou fim, lucrativo,208 a sociedade simples, não empresária, possui nítido escopo lucrativo e deverá distribuir o lucro entre os sócios sempre que forem positivos os seus resultados econômicos, apurados anualmente. Enquanto o Código de 2002 contempla, em várias normas, a finalidade lucrativa da sociedade simples, observa-se que, na disciplina da sociedade limitada, que é empresária e intrinsecamente mercantil por natureza, apenas uma disposição (art. 1.059)209 faz alusão ao lucro, ainda assim como norma de sanção, ao obrigar o sócio a repor os lucros auferidos com prejuízo do capital.

207 Miguel Reale, Exposição de Motivos do Projeto do Código Civil, Diário do Congresso Nacional, op. cit., p. 119. 208 Código Civil de 1916, Art. 1.363. Celebram contrato de sociedade as pessoas, que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos, para lograr fins comuns. 209 Código Civil de 2002, Art. 1.059. Os sócios serão obrigados à reposição dos lucros e das quantias retiradas, a qualquer título, ainda que autorizados pelo contrato, quando tais lucros ou quantia se distribuírem com prejuízo do capital.

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A contradição aqui apontada demonstra que o Código Civil de 2002 não se preocupou em realçar o caráter lucrativo da atividade do empresário. Pelo contrário: afasta o objetivo de lucro como escopo da finalidade social. O art. 966 do Código de 2002 não faz qualquer menção a esse desiderato natural de toda empresa comercial, que é a finalidade lucrativa. De igual modo, o Código italiano de 1942 também não reconheceu, no art. 2.082, o lucro como elemento definidor da atividade empresarial, apesar de referir-se, em diversos outros dispositivos, à apuração dos lucros (utili) como resultante da exploração econômica.

Ainda que o Código de 2002 tenha omitido o caráter lucrativo da atividade empresarial, o lucro será sempre imanente, natural, a qualquer modalidade de exploração econômica no regime da economia de mercado, ou seja, no sistema capitalista. No caso específico da sociedade anônima, o art. 2º da Lei 6.404/1976, como visto, estatui que será objeto da companhia “qualquer empresa de fim lucrativo”. O elemento do lucro estará sempre presente e imanente ao próprio objeto da companhia, dessa sociedade mercantil pura, por excelência.

Com efeito, para a constituição da empresa, além do requisito da pessoalidade, da presença de uma pessoa que, por sua iniciativa, resolve explorar determinada atividade econômica, o segundo requisito é o da disponibilidade e aplicação do capital necessário à aquisição dos elementos materiais mínimos, como compra ou locação de imóvel, gastos com instalações, equipamentos, máquinas, formação de estoques de matérias-primas ou mercadorias para revenda, contratação de empregados, enfim, de uma série de despesas que serão financiadas com o capital inicial alocado na atividade.

A inversão do capital pressupõe, logicamente, a recuperação dos investimentos e a remuneração do dinheiro aplicado na exploração mercantil, e o próprio conceito de lucro, como remuneração do capital, como o ganho que deverá ter o capitalista para a viabilização do empreendimento, compreende um elemento imprescindível à própria existência e sobrevivência da empresa no mercado. Afinal, a empresa que não gerar lucros com a exploração econômica estará fadada ao insucesso: a falência será seu destino inexorável. A intenção ou finalidade da remuneração pelo lucro insere-se, pois, entre os elementos imprescindíveis à definição de empresário.

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O Código Civil de 2002, todavia, ao contrário do regime anterior dos atos de comércio, adotou posição na qual procura esterilizar das suas disposições, do seu conteúdo normativo, qualquer menção à natureza comercial ou mercantil e ao escopo lucrativo das atividades empresariais.

Para o regime do Código de 2002, a atividade da empresa não é comercial nem mercantil: é simplesmente empresarial. Isto porque visa abranger em sua concepção tanto as atividades normalmente exercidas pelas empresas comerciais, como por toda e qualquer outra entidade de fins econômicos, desde que esta compreenda uma atividade de produção ou circulação de bens ou de serviços, que constitua elemento de empresa (art. 966). Essa aparentemente sutil distinção possui uma implicação formal significativa.

De acordo com o entendimento adotado pelo Código Civil de 2002, as empresas não possuem, necessariamente, natureza mercantil, e por isso podem assumir características decorrentes, basicamente, da sua forma. Mas isto não resulta em razão do conteúdo do seu objeto comercial, porque pode ser considerado como empresário qualquer pessoa que, independentemente do seu ramo de atividade profissional, venha a constituir empresa sob a forma empresária individual ou coletiva, como sociedade empresária. Assim pode ocorrer, por exemplo, nas atividades dos profissionais liberais, como médicos, engenheiros, arquitetos, contadores, publicitários e corretores de imóveis, ou no âmbito de atividades rurais, como no caso de fazendeiros e pecuaristas.

Com a ampliação do conceito de agentes econômicos empreendedores, ou seja, daqueles que desempenham tanto atividade mercantil como atividade civil, o Código de 2002 buscou, assim, aumentar o campo de incidência das suas normas, suprimindo qualquer remissão à atividade comercial como própria ou específica das empresas. E essa ampla generalização do conceito de empresa e a ausência de delimitação objetiva da atividade empresarial, foi promovida pelo legislador sem considerar a existência de todo um sistema comercial que continua presente na legislação especial extravagante ao Código Civil.

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O sistema da comercialidade permanecerá, especialmente, na legislação da sociedade anônima e no regime falimentar, que não foram absorvidos pela tentativa unificadora do Código de 2002.

Portanto, a tentativa de desmercantilização da atividade da empresa não prosperou nem deve prosperar, no futuro, em nosso sistema de direito positivo, isto devido a diversos outros institutos comercialistas autônomos, tendo a sociedade anônima como exemplo maior. Em razão dessa situação, devemos continuar submetidos, teoricamente, a dois sistemas distintos e aparentemente inconciliáveis, o sistema dos atos de comércio e o sistema da teoria da empresa.

3.3. Concessões do legislador ao caráter comercial dos atos das empresas

A supressão da comercialidade dos atos das empresas, tal como objetivado pelo legislador do Código Civil de 2002, não foi promovida de modo absoluto nem integral, na medida em que várias outras normas do Código ainda fazem referência à natureza comercial de determinados atos e negócios da vida civil na sua relação com as atividades econômicas. Com efeito, simplesmente pela via da mera elaboração legislativa, não seria admissível pretender eliminar toda a experiência histórica acumulada nos atos e negócios que, indubitavelmente, continuarão a manter a sua natural e necessária índole ou natureza mercantil.

A partir da própria especificação dos requisitos legais para a aquisição de capacidade jurídica pelas pessoas naturais, o art. 5º, inciso V, do Código de 2002, prevê que o menor de 16 anos, que disponha de economia própria, poderá ser emancipado pelo “estabelecimento civil ou comercial”. Essa diferenciação entre atividade econômica civil e atividade econômica comercial, por parte do menor, está a evidenciar clara antinomia diante da supressão da natureza mercantil da empresa como constante do novo Código Civil.

O Código de 2002 omite, também, no art. 1.142, a caracterização do estabelecimento, não definindo sua natureza como comercial ou mercantil, em

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flagrante e inexplicável contradição diante de toda a doutrina especializada, que sempre considerou o estabelecimento como sendo essencialmente comercial, por representar a reunião de bens e direitos corpóreos e incorpóreos organizados pelo empresário para o exercício de atividade mercantil. O estabelecimento, na acepção estrita do termo, sempre foi necessariamente comercial, seja no direito italiano (azienda), no direito francês (fonds de commerce), como também no direito inglês (goodwill of trade).

Para Oscar Barreto Filho, um dos principais estudiosos do estabelecimento comercial na doutrina brasileira, tomando como base as lições de Umberto Navarrini, o estabelecimento ou “azienda comercial é o conjunto dos elementos patrimoniais, ativos e passivos, materiais ou imateriais, com que o comerciante exercita o seu comércio; ou, em outras palavras, o complexo de várias forças econômicas e dos meios de trabalho que o comerciante dirige para o exercício do comércio, impondo-lhes uma unidade formal, em relação com a unidade do escopo”.210

Em respeito a essa construção doutrinária, o art. 5º, inciso V, do Código de 2002 reconhece, assim, a hipótese de emancipação do menor pelo estabelecimento comercial com economia própria, preceito que contradiz a figura do estabelecimento não mercantil, referida no art. 1.142 do Código, na parte do direito de empresa.

Ao tratar dos direitos da personalidade, o Código Civil de 2002 faz menção, no art. 18, ao uso indevido do nome de pessoa em “propaganda comercial”. Por propaganda comercial deve-se entender a publicidade com finalidade mercantil, dirigida a clientes interessados na realização de negócios comerciais. Também, aqui, o Código reconhece que a propaganda promovida publicamente possui fundo comercial, visto ser uma atividade própria das empresas com fins lucrativos.

O art. 164 do Código Civil, ao se referir a determinados atos que possam ser praticados em fraude a credores, dispõe: “Presumem-se, porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família.” A menção ao estabelecimento mercantil ou industrial representa outra deferência particular do

210 Oscar Barreto Filho, Teoria do Estabelecimento Comercial, cit., p. 71.

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legislador às atividades econômicas próprias e específicas, enquadráveis como atos de comércio.211 Desse modo, se o devedor agiu de maneira a preservar e proteger o seu estabelecimento mercantil ou industrial, tal conduta não representaria fraude a credores.

Na previsão legal quanto ao caráter lucrativo do exercício de mandato ou procuração, o art. 658 do Código Civil dispõe que o procurador pode exigir do mandante a devida retribuição pelos atos praticados, quando estes vierem a se referir a atos que “o mandatário trata por ofício ou profissão lucrativa”. Por profissão lucrativa entenda-se o exercício de atividade empresarial, tal como concebida pela teoria dos atos de comércio.

No mesmo livro que regula o direito de empresa, na parte referente à escrituração e registros contábeis, o art. 1.187 dispõe que a avaliação do patrimônio empresarial, para fins de inventário, deverá considerar, pelo custo de aquisição ou fabricação, “os valores mobiliários, matéria-prima, bens destinados à alienação, ou que constituem produtos ou artigos da indústria ou comércio da empresa”. A expressa referência ao objeto de comércio da empresa induz o intérprete a concluir que o Código Civil considera como comercial o patrimônio empresarial constituído a partir da exploração de atividade mercantil.

Quando o Código regula os efeitos e conseqüências da tradição de bens por parte de quem não é proprietário da coisa, o art. 1.268 faz menção expressa à alienação de estabelecimento comercial, considerando válida, juridicamente, a transferência do estabelecimento comercial se este for transferido “em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono”.

211 Ao analisar esta disposição do Código, Waldirio Bulgarelli observa: “Estas referências, a mercantil e industrial, também encontradas na parte do penhor (art. 1.462), e a civil e comercial, estão a demonstrar que o Projeto não se livrou de todo da orientação do autor da parte sobre a Atividade Negocial, de expungir as expressões civis e mercantis, substituindo-as por empresarial ou negocial. A falta de coerência, neste aspecto, que parece encontrar explicação no fato de terem sido outros os autores dessas partes do Projeto, é demonstrativo também de quanto continua viva a tradicional divisão entre civil e comercial e como serão necessários muitos esforços e tempo para a absorção da nova realidade” (A Teoria Jurídica da Empresa, cit., p. 402).

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O Código Civil também veio dispor, de modo expresso, no capítulo dos direitos reais de garantia, sobre as modalidades do penhor industrial e penhor mercantil, que são próprios da atividade comercial (art. 1.447). Essa norma estabelece modalidade específica de garantia pignoratícia com base em modelos ou figuras totalmente ultrapassadas.212 A referência, nessa norma, à indústria do sal como susceptível de penhor mercantil demonstra, sem dúvida, evidente descompasso tecnológico na redação da norma. O legislador continuou apegado a fórmulas históricas ainda prevalentes no século XIX. Independente das hipóteses superadas previstas no art. 1.447 do Código Civil quanto ao objeto da garantia real, o penhor mercantil já era regulado no Código Comercial de 1850 (arts. 271 a 279). O Código de 2002 limitou-se a reproduzir tais disposições históricas, em evidente descompasso com a realidade presente.

Na parte do direito das sucessões, o Código Civil admite a lavratura de testamentos especiais, no seu art. 1.889, ao fazer menção à possibilidade de declarações de última vontade do testador que se encontrar a bordo de aeronave “comercial”, ou seja, sob o domínio especial de um representante de empresa aérea comercial. Nessa situação excepcional, o comandante da aeronave poderá delegar, em situação de perigo, a outro tripulante, a responsabilidade de, eventualmente, promover a lavratura de testamento de pessoa a bordo, estando esta pessoa vinculada a uma relação comercial de transporte.

As remissões normativas anotadas e referenciadas neste ponto demonstram que o legislador do Código de 2002, seja por falta de consistência lógica, seja por equívoco na devida compatibilização e harmonização das normas que compõem os diversos livros, títulos e capítulos da nova legislação codificada, reconhece a existência de atividades mercantis especializadas, nos diversos campos do direito, em contradição com a tentativa de supressão da natureza comercial das atividades desempenhadas pelas empresas. O código contém, como visto, um aglomerado de disposições assistemáticas e incoerentes, formando uma verdadeira “colcha de

212 Código Civil de 2002 - Art. 1.447. Podem ser objeto de penhor máquinas, aparelhos, materiais, instrumentos, instalados e em funcionamento, com os acessórios ou sem eles; animais, utilizados na indústria; sal e bens destinados à exploração das salinas; produtos de suinocultura, animais destinados à industrialização de carnes e derivados; matérias-primas e produtos industrializados”.

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retalhos”, ora excluindo a natureza comercial da atividade das empresas, ora empregando a adjetivação de comercial para definir determinados fenômenos ou relações econômicas.

Todavia, a concessão ou contradição principal verificada no Código de 2002 para reconhecer, fora da lógica e da concepção inicial do sistema, a natureza mercantil das empresas, resultou de 18 referências ao “Registro Público de Empresas Mercantis” como órgão de arquivamento dos atos das empresas.213 Resultante de emendas de adaptação apresentadas na fase final de aprovação do projeto pela Comissão Especial na Câmara dos Deputados, essas modificações foram justificadas como sendo uma necessidade de compatibilização do novo código com o regime vigente do Registro Público de Empresas Mercantis, regulado pela Lei nº 8.934/1994.214 No projeto original, essas normas modificadas faziam referência, simplesmente, ao “Registro de Empresas”, como jurisdição administrativa de assentamento dos atos empresariais.

A partir do momento em que a referência normativa do Código Civil passa a fazer menção ao “Registro Público de Empresas Mercantis”, essa alteração inseriu uma cunha deontológica contra a tentativa de esterilização da natureza comercial das empresas, precisamente para deixar claro, aos intérpretes e aplicadores da nova legislação, que as normas codificadas não podem ser consideradas isoladamente, na medida em que exigem uma interpretação sistemática, diante de todo um ordenamento de direito comercial regulado pela legislação extravagante e pelos microssistemas normativos que permaneceram em vigor.

Cabe considerar que tais alterações introduzidas na redação final do Código, atributivas da natureza mercantil ao registro de empresas, não possuem o condão de abalar a lógica do sistema proposto pelo legislador, mas sinalizam, todavia, para revelar essa inconsistência do sistema, situação que exigirá, no futuro, uma redefinição normativa sobre o objeto natural da empresa, que possa compatibilizar a

213 A referência ao caráter mercantil do registro público de empresas passou a constar do texto em razão das emendas do Relator aos artigos 967 e seu § 1º; art. 969 e parágrafo único; art. 971; art. 979; art. 980; art. 984; art. 1.075, § 2º; art. 1.083; art. 1.084, § 3º; art. 1.144; art. 1.150; art. 1.174 e parágrafo único; e art. 1.181 do Código de 2002. 214 Ricardo Fiúza, Novo Código Civil Comentado, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 870-871.

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concepção subjetiva, da empresa como atividade, com a concepção objetiva, de que a atividade preponderante da empresa deve ser qualificada como mercantil, e não apenas e formalmente como empresarial.

3.4. Principais contradições no regime do direito de empresa

De todas as contradições conceituais resultantes do regime instituído pelo Código Civil de 2002, três institutos jurídicos devem ser destacados como os mais afetados por essa reforma legislativa: em primeiro lugar, o conceito de empresário; em segundo lugar, a disciplina do direito societário; e, em terceiro lugar, as modalidades especiais dos contratos mercantis.

O conceito de empresário adotado pelo Código Civil de 2002 (art. 966) não passa de figura decalcada, mera importação e reprodução literal do mesmo conceito constante do Código italiano de 1942 (art. 2.082), como a seguir transcrito:

Código Civil brasileiro de 2002

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Código Civil italiano de 1942

Art. 2082 - Imprenditore - E' imprenditore chi esercita professionalmente un'attività economica organizzata al fine della produzione o dello scambio di beni o di servizi.

O elemento básico definidor de ambos e idênticos conceitos diz respeito ao exercício de atividade econômica organizada, independentemente da natureza ou do objeto dessa atividade.

Assim, se uma atividade econômica tem por objeto a revenda de produtos industrializados, atividade tipicamente comercial, essa empresa deve estar submetida ao regime do direito empresarial. Todavia, essa atividade merecerá o mesmo

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tratamento legalmente conferido, por exemplo, a uma organização dedicada ao ensino, que presta um serviço que, em princípio, não seria mercantil, e sim de caráter público ou social.

Com efeito, certas atividades de prestação de serviços que deveriam ser consideradas, em razão da natureza do objeto, como despidas de caráter mercantil, passaram a ser consideradas como atividades empresariais, e isso apenas em razão da forma empresarial adotada, independentemente de qualquer conteúdo, parâmetro ou critério lógico.215

A partir de referenciais históricos consagrados na prática comercial, a lei sempre considerou como mercantis as atividades naturalmente predispostas à obtenção do lucro, corolário imanente à remuneração do capital investido. Quando parcela desse capital fosse decorrente de serviço ou de fator de trabalho, a atividade não poderia ser considerada como comercial. A antiga e agora extinta sociedade de capital e indústria era a única modalidade de empresa em que se admitia a participação e contribuição do sócio de serviço apenas com o seu trabalho, sem necessidade de integralização do capital.216

Certas atividades de natureza econômica, ou seja, de caráter oneroso, voltadas à prestação de serviços, como as atividades nas áreas da educação, medicina, pesquisa científica, advocacia, contabilidade e segurança privada, não deveriam ser estruturadas sob a forma de empresas com finalidade lucrativa, dada a índole social e complementar das funções do Estado de que essas atividades são revestidas.

No projeto original elaborado por Sylvio Marcondes Machado,217 o título dedicado à empresa era denominado “Da atividade negocial”, e tinha como escopo o

215 Originariamente, as atividades de prestação de serviços sempre foram enquadradas como atividades civis, e não comerciais, especialmente quando desempenhadas nos campos dos serviços técnicos de engenharia, arquitetura, contabilidade, ou como atividade social nas áreas de educação e saúde, por exemplo. 216 A sociedade de capital e indústria, extinta pelo Código Civil de 2002, era prevista e regulada pelos artigos 317 a 324 do Código Comercial de 1850, sendo sociedade contratada entre pessoas, “que entram por uma parte com os fundos necessários para uma negociação comercial em geral, ou para alguma operação mercantil em particular, e por outra parte com a sua indústria somente” (art. 317). 217 A biografia do Professor Sylvio Marcondes Machado, Titular de Direito Comercial da Universidade de São Paulo – USP, é restrita aos círculos acadêmicos e advocatícios paulistas. Ele é autor de poucas obras doutrinárias (Limitação da responsabilidade de comerciante individual, Max Limonad, 1956), de algumas coletâneas de pareceres (Problemas de Direito Mercantil, Max Limonad, 1970) e trabalhos

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pressuposto de que toda pessoa, da mesma maneira que, sendo dotada de capacidade, como proprietária de bens, contrai obrigações, constitui família e que ao morrer é sucedida, também realizaria, na sua vida normal, negócios de caráter empresarial. Nessa concepção, a atividade empresarial seria comum à vida civil das pessoas, fazendo parte de um direito comum ou geral, como é da essência estrutural do conteúdo de um código civil.

Sem embargo, a profissionalidade no campo da empresa é exclusiva daquelas pessoas que exercem atividade de empresário, que são investidores capitalistas, que também administram e dirigem suas organizações. Somente cabe considerar titulares de empresas, e assim destinatários desse regime legal do direito de empresa no Código Civil, as pessoas que exercem essa atividade em caráter profissional, como consta do próprio conceito do art. 966 do novo Código.

De acordo com as estatísticas oficiais, no ano de 2010 existiam, no Brasil, cerca de 5,2 milhões de empresas, comerciais, industriais e de serviços.218 Considerando uma população economicamente ativa de 95,3 milhões,219 segundo o censo do mesmo ano, e um número de pessoas ocupadas em empregos formais de 45 milhões,220 para uma população total de 190 milhões,221 podemos concluir que o percentual de empresários regulares existentes no país corresponde, apenas, a 5,4% da população economicamente ativa e a 11,5% das pessoas ocupadas. Considerando, portanto, a população total, os empresários teriam uma participação de 2,7 % na população

acadêmicos esparsos (Questões de Direito Mercantil, Saraiva, 1977). A participação de Sylvio Marcondes Machado como relator da parte do Direito de Empresa deve-se mais à sua contribuição na elaboração do título sobre a Atividade Negocial no Projeto do Código das Obrigações de 1965, e por ser um dos poucos teóricos da área do direito comercial que defendia a unificação do nosso direito privado, contra a posição majoritária dos comercialistas brasileiros. Sempre se posicionaram contra a unificação, defendendo a autonomia do direito comercial, os principais juristas brasileiros nesse campo, como José Xavier Carvalho de Mendonça, Waldemar Ferreira, Trajano de Miranda Valverde, João Eunápio Borges, Rubens Requião, Fábio Konder Comparato, Modesto Carvalhosa, Egberto Lacerda Teixeira, Fran Martins, Waldirio Bulgarelli e Walter Álvares, com entendimento doutrinário contrário, em reconhecimento ao alto grau de especialização que a atividade mercantil havia alcançado no direito positivo brasileiro. 218 BRASIL, IBGE – Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - Estatística do Cadastro Central de Empresas – Cempre, http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/ cadastroempresa/2011/ default_xls_ empresa.shtm, 24/04/2014. 219 BRASIL, IBGE - Estatística do Cadastro Central de Empresas – Cempre, ftp://ftp.ibge.gov.br/Economia_ Cadastro_de_Empresas/2011/cempre2011.pdf, 24/04/2014. 220 BRASIL, IBGE – Estatística do Cadastro Central de Empresas – Cempre, ftp://ftp.ibge.gov.br/Economia_ Cadastro_de_Empresas/2011/cempre2011.pdf, 24/04/2014. 221 BRASIL, IBGE – Estatística do Cadastro Central de Empresas – Cempre, ftp://ftp.ibge.gov.br/Economia_ Cadastro_de_Empresas/2011/cempre2011.pdf, 24/04/2014.

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brasileira, isto partindo do pressuposto de que a cada empresa corresponda um empresário, tal como se verifica nas firmas individuais, que representam metade das empresas formais. Ao analisar o resultado desses números absolutos e levando em consideração, principalmente, a grande informalidade presente na nossa economia, é válido reconhecer que o número de empresários representa, de fato, uma parcela pequena, ínfima, de cerca de 5 %, da população economicamente ativa, efetivamente minoritária, ainda que detentora de grande parte das riquezas.

Em conclusão, se o exercício da atividade empresarial corresponde à ocupação profissional de um segmento populacional muito pouco representativo, essa atividade jamais poderia ser generalizada e normatizada como direito comum. Daí que a regulação da atividade empresarial pelo Código Civil apresenta essa relevante e absurda incongruência, por ser a excepcionalidade tratada, indevidamente, como generalidade.

A atividade empresarial, em suma, não representa um direito comum ou geral, porquanto é própria de um segmento profissional especializado, não estando presente no cotidiano da vida das pessoas, senão na condição de consumidores, ainda que eventuais negócios praticados por particulares possam ter intuito lucrativo.222

É importante reforçar, como visto anteriormente neste capítulo, que o regime do Direito de Empresa no Código Civil italiano de 1942 estava embutido dentro do Libro del Lavoro, sendo regulado como uma atividade laboral equiparada às demais profissões, autônomas e não autônomas. No Código Civil de 2002, o livro do Direito de Empresa constitui um regime próprio, evidenciando a idéia do legislador de tratar a empresa como uma instituição social de interesse geral, situação que não corresponde à realidade das pessoas nas suas relações de vida em comum.

Como segunda grande contradição, verificada na disciplina das empresas no Código de 2002, nos deparamos com a reconfiguração normativa do direito societário,

222 Waldemar Ferreira considerava que “além do ofício medianeiro e profissional, mister se torna o seu exercício habitual com o intuito do lucro, por parte do intermediário. Sendo o comércio função social, constitui-se por série contínua e renovada de negócios. Quem pratica ato medianeiro esporádico, mesmo com intuito de lucro, sem firme propósito de repeti-lo habitualmente, organicamente, não faz o comércio, nem no sentido geral, nem no particular”. (Tratado de Direito Mercantil Brasileiro - Teoria dos Atos de Comércio, cit., p. 32).

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uma vez que o Código Civil pretendeu estabelecer, em caráter dogmático e impositivo, regras e disposições gerais para regulação das sociedades de fins econômicos, mas isto sem considerar as peculiaridades e características das empresas na atual realidade de mercado.

No campo das sociedades empresárias, o Código Civil de 2002, ao revogar o Decreto 3.708/1919, que regulava as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, instituiu um regime complexo e burocrático que passou a disciplinar esse tipo societário, que representa a quase totalidade das empresas organizadas sob a forma de sociedade, a partir do Código de 2002 simplesmente denominada sociedade limitada.223

Com efeito, a antiga sociedade por quotas de responsabilidade limitada sempre foi considerada modelo adequado, satisfatório, de organização societária em razão de sua simplicidade e pelo fato de assegurar aos sócios a garantia da limitação da responsabilidade em razão do passivo e das dívidas da sociedade e ampla liberdade de dispor sobre o conteúdo do contrato social. Essas eram e sempre foram as principais vantagens da sociedade por quotas.

O Decreto 3.708/1919, por ser uma lei que apenas estabelecia normas básicas para a regulação desse tipo societário, deixava para a esfera volitiva e de autonomia da vontade dos sócios a determinação das regras pelas quais a sociedade deveria se reger, como lei interna própria e peculiar aos interesses particulares das pessoas que a integravam.

Mas o Código Civil de 2002, contrariando todas as experiências de regulação da sociedade por quotas no direito comparado, passou a estabelecer um regime de

223 De acordo com os últimos dados disponíveis do extinto Departamento Nacional do Registro do Comércio – DNRC (Estatísticas das Juntas Comerciais), no período de 1985 a 2001 foram constituídas, no Brasil, um total de 3.872.498 sociedades comerciais, sendo que destas, 3.832.178 adotaram o regime da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, representando, portanto, 98,9 % das sociedades constituídas. Atualmente, as estatísticas de registro de empresas constantes nos relatórios do Departamento de Registro e Integração – DREI (http://drei.smpe.gov.br// assuntos/estatisticas/ranking-das-juntas-comerciais-constituicao-alteracao-e-extincao-de-empresas, 22/04/2014), que sucedeu o DNRC, não contém dados sobre o tipo de sociedades constituídas segundo os dados das Juntas Comerciais, não obstante o art. 1º, inciso II, da Lei 8.934/1994 estabeleça que uma das finalidades do Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis – SINREM seja o de “cadastrar as empresas nacionais e estrangeiras em funcionamento no País e manter atualizadas as informações pertinentes”.

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maior complexidade para a disciplina desse tipo societário, criando uma série de novas exigências e limitando, de modo acentuado, a esfera da liberdade de contratação entre os sócios.

A terceira grande contradição decorre do problema de que o Código de 2002, na tentativa de unificar o direito das obrigações, procurou abarcar, em sua ampla generalização civilista, uma série de contratos comerciais que somente aplicam-se, usualmente, às atividades mercantis, ao passo em que deixou de tratar de várias outras espécies de contratos, típicos e atípicos, que são amplamente utilizados na prática das atividades comerciais exercidas pelas empresas.

Nessa esfera dos contratos mercantis, pretendeu inicialmente o Código Civil de 2002 promover a unificação dos principais tipos de contratos em espécie, aplicáveis às relações de conteúdo econômico (artigos 481 a 853). Todavia, a dualidade de regime jurídico na esfera contratual permanecerá patente e evidente diante da imensa gama de contratos mercantis, típicos e atípicos, que continuarão a fazer parte da dinâmica negocial das empresas, regulados por leis específicas, a exemplo dos contratos financeiros e bancários, dos contratos de bolsa de valores e mercadorias, representação comercial autônoma, concessão comercial de veículos automotores, arrendamento mercantil, franquia empresarial, bem como de outros tipos contratuais no âmbito das atividades de transporte e de seguros.

Em face da normatividade essencialmente mercantil desses contratos regulados pela legislação extravagante ao Código Civil, a tentativa, mesmo que limitada, de unificação do direito contratual, apresenta-se incompleta e comprometedora da lógica interna do sistema de direito positivo, que deverá conviver com obstáculos teóricos que, antes de constituir elemento de aperfeiçoamento e modernização da nossa legislação, está representando um entrave maior que conspira contra a consistência normativa e a harmonia da ordem jurídica empresarial.

Como ponto de contato e de uniformidade teórica acerca da concepção unificadora do direito das obrigações, não existem dúvidas de que o cerne conceitual e os principais elementos definidores dessas relações são comuns no âmbito do direito privado. A obrigação juridicamente considerada é una, qualquer que seja o

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conteúdo da prestação, de natureza civil ou comercial. Assim, a unificação do direito das obrigações não pode implicar na correspondente unificação de tipos contratuais diversos, que são diferentes em razão tanto do sujeito empresarial como do objeto mercantil do contrato.

O Código Civil de 2002, na perspectiva de unificação do direito das obrigações, passou a conceituar e regular tipos contratuais não previstos pelo Código de 1916, como os contratos de agência ou distribuição (arts. 710 a 721) e de transporte (arts. 730 a 756). Todavia, inúmeros outros modelos e tipos contratuais, de natureza dominantemente mercantil, além dos citados acima, não foram regulados pelo Código Civil, a exemplo dos contratos de software e programas de computador com aplicação comercial (Lei 9.608/1998), ou dos contratos de locação em shopping centers, nos dias atuais um dos principais modos de exercício de atividade comercial em espaços concentrados, contratos esses sujeitos às determinações e condições fixadas pela empresa proprietária do empreendimento. Esses novos tipos contratuais e vários outros passaram despercebidos pelo legislador do Código, mas deverão ser analisados e discutidos a partir de uma experiência jurídica fundada na legislação comercial supletiva e na construção jurisprudencial, como forma de superação dessa defasagem e destatualização normativa.

3.5. A tentativa de compilação e consolidação de normas defasadas no regime do Direito de Empresa

No âmbito da perspectiva de unificação do direito das obrigações e da regulação ampliada da empresa como instituto de direito civil, o Código de 2002 procurou incorporar, nas suas normas, diversas disposições inerentes às atividades empresariais, apesar de tais regras serem estranhas e mesmo incompatíveis diante das especificidades próprias da matéria comercial. A proposta objetiva do legislador foi, como visto, tentar abarcar no Código Civil institutos próprios e característicos do direito comercial e que, historicamente, sempre foram regulados pela legislação mercantil especializada.

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Na verdade, o resultado concreto da intervenção do legislador não se demonstrou capaz, ao menos, de revisar e atualizar alguns dos institutos mais usuais da prática comercial, de modo a adaptar determinados conceitos instrumentais ao novo regime codificado. O que se denota das mudanças introduzidas na legislação pelo Código de 2002, é que o legislador se deteve em figuras e institutos ultrapassados e assim procurou, por limitação metodológica ou mesmo desatualização técnica, trazer para dentro do atual sistema normativo da empresa concepções defasadas e superadas no tempo, que em quase nada se coadunam com a normatividade da empresa desenvolvida nos últimos anos do século XX e no inicio do presente século.

Cabe, neste ponto, observar que determinados conceitos e procedimentos específicos historicamente regulados pelo direito comercial, passaram a constar de modo inapropriado e desatualizado no Código Civil de 2002, como revela-se na disforme disciplina dos institutos mercantis do nome empresarial, do registro do comércio, da definição de sociedades nacionais e estrangeiras e da escrituração mercantil, tal como exposto a seguir.

3.5.1. A fonte da regulação do nome empresarial no Decreto 916/1890

No tocante ao nome empresarial, o Código Civil de 2002 basicamente limitou-se a atualizar algumas normas constantes do Decreto 916, de 24/10/1890, que criou o registro de firmas ou razões comerciais. Esse decreto, do início da República, foi parcialmente revogado pela Lei 4.726/1965, que por sua vez foi revogada pela Lei 8.934/1994, ambas regulando o Registro do Comércio. O Decreto 916/1890 ainda vigorava em disposições residuais que não foram revogadas, restando praticamente quase sem aplicabilidade. Apesar do Decreto 916/1890, no plano do direito positivo, não mais vigorar, o Código de 2002 tratou de repristinar algumas de suas normas com a finalidade de disciplinar o nome das empresas, mas baseado em critérios superados e divorciados da realidade comercial contemporânea.

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No quadro a seguir, estão apresentadas as correlações, diretas e indiretas, entre as normas do Decreto 916/1890 e as do Código de 2002 que tratam do nome empresarial, demonstrando a mera reprodução, com algumas adaptações, de regras concebidas para a realidade comercial do século XIX:

Decreto 916/1890 Código Civil 2002 Art. 2º. Firma ou razão comercial é o nome sob o qual o comerciante ou sociedade exerce o comércio e assina-se nos atos a ele referentes.

Art. 1.155. Considera-se nome empresarial a firma ou a denominação adotada, de conformidade com este Capítulo, para o exercício de empresa.

Art. 3º. O comerciante que não tiver sócio ou o tiver não ostensivo ou sem contrato devidamente arquivado não poderá tomar para firma se não o seu nome, completo ou abreviado, aditando, se quiser, designação mais precisa de sua pessoa ou gênero de negócio.

Art. 1.156. O empresário opera sob firma constituída por seu nome, completo ou abreviado, aditando-lhe, se quiser, designação mais precisa da sua pessoa ou do gênero de atividade.

Art. 3º. § 1º. A firma de sociedade em nome coletivo deve, se não individualizar todos os sócios, conter pelo menos o nome ou firma de um com o aditamento por extenso ou abreviado – “e companhia”, não podendo dela fazer parte pessoa não comerciante.

Art. 1.157. A sociedade em que houver sócios de responsabilidade ilimitada operará sob firma, na qual somente os nomes daqueles poderão figurar, bastando para formá-la aditar ao nome de um deles a expressão “e companhia” ou sua abreviatura.

Art. 5º. Quem exercer o comércio terá direito de fazer registrar ou inscrever a firma ou razão comercial no registro da sede do estabelecimento principal, podendo fazer inscrevê-la também na sede dos estabelecimentos filiais, uma vez que a do estabelecimento principal, quando situado na República, estiver inscrita.

Art. 1.166. A inscrição do empresário, ou dos atos constitutivos das pessoas jurídicas, ou as respectivas averbações, no registro próprio, asseguram o uso exclusivo do nome nos limites do respectivo Estado.

Art. 5º. § 1º. Se o comerciante tiver nome idêntico ao de outro já inscrito, deverá acrescentar designação que o distinga.

Art. 1.163. Parágrafo único. Se o empresário tiver nome idêntico ao de outros já inscritos, deverá acrescentar designação que o distinga.

Art. 6º. Toda firma nova deverá se distinguir de qualquer outra que exista inscrita no registro do lugar.

Art. 1.163. O nome de empresário deve distinguir-se de qualquer outro já inscrito no mesmo registro.

Art. 7º. É proibida a aquisição de firma sem a do estabelecimento a que estiver ligada.

Art. 1.164. O nome empresarial não pode ser objeto de alienação.

Art. 7º. Parágrafo único. O adquirente por ato inter vivos ou mortis causa poderá continuar a usar da firma antecedendo-a da que usar com a declaração - "sucessor de ...".

Art. 1.164. Parágrafo único. O adquirente de estabelecimento, por ato entre vivos, pode, se o contrato o permitir, usar o nome do alienante, precedido do seu próprio, com a qualificação de sucessor.

Art. 8º. Modificada uma sociedade pela retirada ou morte de sócio, a firma não poderá conservar o nome do sócio que se retirou ou faleceu.

Art. 1.165. O nome de sócio que vier a falecer, for excluído ou se retirar, não pode ser conservado na firma social.

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Decreto 916/1890 Código Civil 2002

Art. 9º. Cessando o exercício do comércio, dissolvida e liquidada uma sociedade, a inscrição da firma será cancelada.

Art. 1.168. A inscrição do nome empresarial será cancelada, a requerimento de qualquer interessado, quando cessar o exercício da atividade para que foi adotado, ou quando ultimar-se a liquidação da sociedade que o inscreveu.

Art. 10. O emprego ou uso ilegal de firma registrada ou inscrita dará direito ao dono de exigir a proibição desse uso e a indenização por perdas e danos, além da ação criminal que no caso couber.

Art. 1.167. Cabe ao prejudicado, a qualquer tempo, ação para anular a inscrição do nome empresarial feita com violação da lei ou do contrato.

Como pode ser observado, na comparação das normas do Decreto 916/1890

frente ao Código de 2002, existem vários aspectos comuns nos dispositivos relativos ao nome empresarial. No que tange a outras questões inerentes à formação e proteção do nome das empresas, o Código Civil tratou, apenas, de atualizar a redação das normas, sem inserir nenhum componente característico das formas modernas de identificação da empresa, como o título do estabelecimento, marcas, logomarcas, logotipos, nome de domínio na Internet, nome de fantasia, desconsiderando ou omitindo a relação entre nome da empresa e as marcas de produtos ou serviços.

Na disciplina do nome empresarial, o Código de 2002 bem poderia ter aproveitado fontes normativas mais recentes, como a Lei 8.934/1994, que regula o regime de proteção do nome das empresas. Ou, ainda, as normas já revogadas do antigo Código da Propriedade Industrial (Decreto 254/1967), que protegiam o nome de empresa como uma espécie de marca,224 sistema não adotado pela vigente Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996). Todavia, preferiu o legislador do Código de 2002 buscar e repristinar, em normas concebidas para o comércio e indústria no século XIX, a base de regulação do nome empresarial no século XXI.

Nesse contexto, apegado a fórmulas ultrapassadas, deixou o legislador do código de preencher uma grande lacuna presente na disciplina jurídica da empresa no Brasil, representada, exatamente, entre a proteção diferenciada do nome empresarial e das marcas das empresas. A proteção do nome empresarial, regulada pela Lei do Registro Público de Empresas Mercantis (Lei 8.934/1994) permanece sob

224 Arnoldo Wald, Comentários ao novo Código Civil, vol. XIV, cit., p. 783.

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regime de jurisdição estadual das juntas comerciais, enquanto a proteção das marcas submete-se ao sistema nacional tutelado sob a regência da Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996). Diante dessa jurisdição diferenciada, conflitos entre nomes empresariais registrados nas Juntas Comerciais, com competência limitada ao respectivo Estado da Federação, e marcas registradas perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, continuarão sendo objeto de repetidas demandas judiciais, nas quais, invariavelmente, discute-se a prevalência da marca sobre o nome empresarial.225

Outro problema que o Código de 2002 reintroduziu no direito positivo brasileiro, e que já estava pacificado na doutrina e na jurisprudência, diz respeito à possibilidade de alienação do nome empresarial. Pelo art. 1.164 do Código Civil, o nome empresarial não pode ser objeto de alienação, não distinguindo o legislador, para esse efeito, entre a firma e a denominação. Ora, a doutrina já havia resolvido esse problema, reconhecendo a possibilidade de alienação do nome empresarial, especialmente quando formado como denominação ou nome de fantasia, com base na teoria do direito patrimonial de Clóvis Bevilacqua, em contraposição à teoria do direito pessoal defendida por Pontes de Miranda.

225 “Recurso especial. Propriedade industrial. Nome comercial. Marcas mistas. Princípios da territorialidade e especificidade/especialidade. Convenção da União de Paris - CUP. (...) 3. A tutela ao nome comercial se circunscreve à unidade federativa decompetência da junta comercial em que registrados os atos constitutivos da empresa, podendo ser estendida a todo o território nacional desde que seja feito pedido complementar de arquivamento nas demais juntas comerciais. Por sua vez, a proteção à marca obedece ao sistema atributivo, sendo adquirida pelo registro validamente expedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI, que assegura ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional, nos termos do art. 129, caput, e § 1º da Lei n. 9.279/1996. (REsp 1190341/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 05/12/2013, DJe 28/02/2014 e REsp 899.839/RJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 17/08/2010, DJe 01/10/2010). 4. O entendimento desta Corte é no sentido de que eventual colidência entre nome empresarial e marca não é resolvido tão somente sob a ótica do princípio da anterioridade do registro, devendo ser levado em conta ainda os princípios da territorialidade, no que concerne ao âmbito geográfico de proteção, bem como o da especificidade, quanto ao tipo de produto e serviço. (REsp 1359666/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28/05/2013, DJe 10/06/2013). 5. No caso concreto, equivoca-se o Tribunal de origem ao afirmar que deve ser dada prioridade ao nome empresarial em detrimento da marca, se o arquivamento na junta comercial ocorreu antes do depósito desta no INPI. Para que a reprodução ou imitação de nome empresarial de terceiro constitua óbice a registro de marca, à luz do princípio da territorialidade, faz-se necessário que a proteção ao nome empresarial não goze de tutela restrita a um Estado, mas detenha a exclusividade sobre o uso em todo o território nacional. Porém, é incontroverso da moldura fática que o registro dos atos constitutivos da autora foi feito apenas na Junta Comercial de Blumenau/SC. (...).” (STJ, 4ª Turma, REsp 1.184.867/SC, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 06/06/2014).

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A solução ao final adotada, e encampada pela jurisprudência, foi aquela que conciliava as duas concepções, proposta por Gama Cerqueira, que reconhecia que, “além do atributo da personalidade do comerciante (feição subjetiva), o nome é, ao mesmo tempo, elemento de identificação da atividade (feição objetiva)”.226 O Código de 2002, ao restaurar a antiga vedação à alienação da firma comercial, com base na tese superada do direito pessoal, cometeu a heresia maior de incluir a denominação nessa restrição. A denominação, porquanto representa direito patrimonial, pode, sim, ser objeto de alienação, porque é fruto de criação intelectual na empresa, como o título do estabelecimento e as marcas de produtos e serviços.

3.5.2. Restauração da obrigatoriedade do registro de empresas e o conflito de sistemas normativos

O regime do registro de empresas perante as juntas comerciais também foi bastante descaracterizado pelo Código Civil de 2002, que efetivamente provocou um retrocesso de quase meio século na sua disciplina normativa, do mesmo modo como observado nos critérios de formação do nome empresarial.

O Decreto 916/1890, no início da República, inovou em relação ao Código Comercial do Império de 1850, tornando facultativa a inscrição do comerciante no Registro do Comércio. Esse caráter facultativo decorria dos princípios da liberdade de profissão e da livre empresa, como reação à natureza exclusivista das seculares corporações de mercadores, que somente permitiam o exercício do comércio àqueles regularmente matriculados nas suas instâncias de registro. Enquanto o Código Comercial de 1850 (art. 4º) reputava comerciante, apenas, quem estivesse devidamente matriculado no Tribunal de Comércio do Império, o Decreto 916/1890 tornou esse registro facultativo (art. 11). Esse mesmo decreto extinguiu os Tribunais de Comércio, descentralizou suas atividades administrativas e atribuiu competência às Províncias para o exercício das funções do registro comercial.

226 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 196.

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O art. 967 do Código de 2002, em injustificável e patente retrocesso, tornou novamente obrigatória a inscrição do empresário no Registro de Empresas Mercantis, por mera reprodução da obrigatoriedade tal como constante do Código Civil italiano de 1942 (art. 2.195). Na Itália sob regime fascista, todo comerciante ou empresário somente poderia exercer atividade econômica após registrado e autorizado pelo Estado. Idêntico regime foi reestabelecido mais de cem anos após, no Brasil, sem base consuetudinária a justificar essa involução.

Ao somente reconhecer como empresa aquela organização econômica devidamente registrada, o Código de 2002 excluiu, em princípio, da sua disciplina, todas as atividades econômicas informais ou realizadas à margem do sistema legal, inclusive certos tipos de contratos que podem ser celebrados com previsão na legislação codificada, como no caso da sociedade em conta de participação, que é uma sociedade que, por sua própria natureza, não tem nome empresarial e não se submete ao sistema de registro.

A facultatividade do registro da empresa sempre esteve restrita ao âmbito do regime de direito comercial, na medida em que a exigência de regularidade possui implicações em outros aspectos decorrentes do exercício da atividade empresarial, como nos campos tributário, previdenciário e trabalhista, por exemplo. Contudo, à margem do comércio formal, sempre existirão atividades desempenhadas em caráter irregular, como a dos feirantes, pescadores, ambulantes, autônomos e pequenos comerciantes, não se podendo recusar a essas pessoas a proteção, ainda que restrita, da disciplina mercantil. Mesmo que esses comerciantes irregulares sofram restrições legais para o exercício do seu pequeno comércio, como a impossibilidade de contrair financiamentos bancários ou emitir duplicatas,227 não se pode deixar de reconhecer a natureza mercantil da sua atividade.

Sob o aspecto procedimental, o Código Civil de 2002 apresenta outra evidente antinomia diante da evolução do regime do Registro de Empresas. Isto porque o Código veio a restaurar o procedimento da inscrição do empresário e da sociedade

227 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 66.

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empresária na Junta Comercial, quando a sistemática atualmente adotada, desde a Lei 4.726/1965, é a do arquivamento dos atos das empresas, e não o da inscrição.

Na sua origem, no Código Comercial de 1850, o comerciante era obrigado a matricular-se nos Tribunais e nas Juntas de Comércio do Império, em caráter obrigatório, assumindo a matrícula aspecto vinculativo a essa profissão. A matrícula, com efeito, possuía caráter de inclusão em determinada classe ou instituição, como membro permanente e sujeito ao estatuto da categoria.

Com o Decreto 916/1890, o regime de matrícula foi abolido e passou a ser adotado o procedimento da inscrição do comerciante no registro de firmas, exercido pela Junta Comercial. O procedimento da inscrição, além de ser facultativo, tinha por finalidade, não a de vincular o comerciante à sua classe profissional econômica, mas a de reunir, em um cadastro, as informações inerentes a cada pessoa que estava a requerer inscrição formal. Os comerciantes e as sociedades inscritas na Junta Comercial passavam, desse modo, a usufruir os direitos assegurados pela legislação mercantil para o exercício da atividade, ao contrário dos comerciantes não inscritos, que não eram titulares de direitos e somente assumiam obrigações na ordem jurídica, como assim prescrevia o artigo 4º do Código Comercial de 1850.

O comerciante irregular, com efeito, não tinha direito à proteção do seu nome comercial, não possuía capacidade jurídica nem processual para postular em nome do seu negócio, não podia registrar suas marcas de comércio, não exercia direito sobre o ponto comercial, estava impedido de requerer concordata, enfim, somente respondia pelos ônus e obrigações incidentes sobre suas relações mercantis.

A Lei 4.726/1965, além de reorganizar o sistema do registro do comércio, procurou simplificar os procedimentos de formalização dos atos das empresas. E dentre as modificações introduzidas, essa lei veio a abolir o regime da inscrição do comerciante, instituindo o procedimento simplificado do arquivamento dos atos das empresas, não exigindo mais a inscrição como ato formal de cadastramento. A partir dessa lei, o procedimento principal de competência das Juntas Comerciais passou a ser o arquivamento dos atos dos comerciantes e das sociedades comerciais,

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referentes à constituição, alteração, dissolução e extinção das firmas mercantis individuais e das sociedades comerciais.228

O procedimento de arquivamento dos atos das empresas foi mantido pela atual Lei 8.934/1994 (art. 32), com a finalidade principal de simplificar o processamento desses atos, ao passo em que dispensava a formalidade da inscrição do comerciante e da sociedade comercial nos seus registros. A importância atribuída aos atos das empresas estava circunscrita, apenas, ao aspecto da regularidade formal, restando a configuração cadastral, própria da inscrição, em segundo plano.229

Contraditoriamente, desconhecendo toda a evolução do sistema do registro de empresas nos últimos 40 anos, o Código Civil de 2002 restaurou o procedimento da inscrição (art. 967), conferindo caráter vinculativo das empresas ao respectivo registro. E o regime da inscrição, como visto, era aquele adotado pelo Decreto 916/1890, que também, nesse aspecto, foi repristinado pelo Código de 2002.

Em suma, instaurou-se no nosso ordenamento jurídico uma situação anômala, na qual existirão dois procedimentos de regularização da empresa sob o aspecto registral: o regime da inscrição restaurado pelo Código Civil, e o regime do arquivamento disciplinado na Lei 8.934/1994.230 Enquanto não solucionada, por nova legislação, essa contradição, deverá continuar prevalecendo a lei especial, ou seja, a Lei 8.934/1994,231 que disciplina o regime de arquivamento como o procedimento próprio de registro das empresas e de reconhecimento da sua regularidade jurídica.

228 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 120. 229 Observa Alfredo de Assis Gonçalves Neto: “No sistema da Lei 8.934/1994, o empresário individual não promovia nenhuma inscrição; elaborava a declaração de sua firma individual, segundo os parâmetros legais mínimos estabelecidos, os quais, uma vez preenchidos (art. 35 da referida Lei), conduziam ao seu arquivamento no Registro Público de Empresas Mercantis”. (Direito de empresa – Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 4ª edição, 2012, p. 79). 230 A confusão no sistema de registro de empresas no Brasil aumentou mais ainda pela revogação da Lei 8.934/1994 pelo Decreto 8.001/2013, que criou o Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, em substituição ao Departamento Nacional do Registro do Comércio – DNRC, como referido anteriormente. 231 Atualmente, encontra-se em aparente vigor a Instrução Normativa DREI nº 10/2013, que “Aprova os Manuais de Registro de Empresário Individual, Sociedade Limitada, Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, Cooperativa e Sociedade Anônima”, a qual revogou as anteriores Instruções Normativas do Departamento Nacional do Registro do Comércio – DNRC.

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3.5.3. A disciplina da sociedade dependente de autorização derivada do Decreto-Lei 2.627/1940.

Em capítulo específico do Direito de Empresa (Capítulo XI), o Código Civil de 2002 contém normas destinadas a regular as sociedades que dependem, para funcionar, de autorização governamental (arts. 1.123 a 1.141).

Na realidade, as normas desse capítulo nada mais são do que mera e literal reprodução de artigos da antiga Lei das Sociedades por Ações (Decreto-Lei 2.627/1940). Com efeito, a anterior Lei das Sociedades por Ações, revogada quase que integralmente pela Lei 6.404/1976, continuava ainda em vigor, apenas, nessa parte residual que tratava das sociedades dependentes de autorização, em especial no que tange às sociedades estrangeiras.

Cabe ressaltar que o Decreto-Lei 2.627/1940, foi editado e outorgado em plena convulsão resultante dos radicais embates e problemas ideológicos, sociais e econômicos vivenciados durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).232 Não poderia essa lei ser considerada fruto de qualquer discussão ou debate de natureza jurídica, porque estava influenciada pela necessidade de delimitar as fronteiras ideológicas das nações durante o maior conflito bélico da história mundial. Assim, com certeza, as normas que tratavam do funcionamento de empresas estrangeiras no Brasil foram elaboradas tendo em vista essa situação real de oposição entre nações aliadas e nações inimigas.

Outorgado pelo então Presidente e ditador do Estado Novo Getúlio Vargas, o Decreto-Lei 2.627/1940 apresentava nítida preocupação com o funcionamento das empresas estrangeiras instaladas no Brasil, atribuindo ao Governo Federal efetivo

232 No mês de setembro de 1940, quase toda a Europa ocidental encontrava-se subjugada pelo exército alemão, governado pela ideologia nazista, que ocupava a França, Holanda, Bélgica, Dinamarca e Noruega, ao mesmo tempo em que se travava nos céus a Batalha da Inglaterra. A Itália, a Espanha e Portugal eram dominados por governos fascistas. Esse era o conturbado ambiente em que foi outorgado, por decreto, o diploma regulatório das sociedades anônimas no Brasil.

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controle sobre suas atividades em território nacional.233 Mesmo que superada, quase meio século depois, essa situação de crise bélica e ideológica entre as nações, e que exigia, naquele momento, um controle governamental sobre as empresas estrangeiras, caracterizado, mesmo, por componentes de xenofobia, o Código Civil de 2002 passou a reproduzir, de modo quase literal, as mesmas normas elaboradas para aquela realidade pretérita totalmente convulsionada.

No quadro comparativo abaixo, essa conclusão pode ser verificada com base na confrontação de algumas das normas correspondentes entre si, para caracterizar a quase absoluta identidade na redação dos dispositivos legais:

Decreto-Lei 2.627/1940 Código Civil 2002 Art. 59. A sociedade anônima ou companhia que dependa de autorização do Governo para funcionar, reger-se-á por esta lei, sem prejuízo do que estabelecer a lei especial.

Art. 1.123. A sociedade que dependa de autorização do Poder Executivo para funcionar reger-se-á por este título, sem prejuízo do disposto em lei especial.

Art. 59. Parágrafo único. A competência para a autorização é sempre do Governo Federal.

Art. 1.123. Parágrafo único. A competência para a autorização será sempre do Poder Executivo federal.

Art. 60. São nacionais as sociedades organizadas na conformidade da lei brasileira e que têm no país a sede de sua administração

Art. 1.126. É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração.

Art. 60. Parágrafo único. Quando a lei exigir que todos os acionistas ou certo número deles sejam brasileiros, as ações da companhia ou sociedade anônima revestirão a forma nominativa. Na sede da sociedade ficará arquivada uma cópia autêntica do documento comprobatório da nacionalidade.

Art. 1.126. Parágrafo único. Quando a lei exigir que todos ou alguns sócios sejam brasileiros, as ações da sociedade anônima revestirão, no silêncio da lei, a forma nominativa. Qualquer que seja o tipo da sociedade, na sua sede ficará arquivada cópia autêntica do documento comprobatório da nacionalidade dos sócios.

Art. 63. As sociedades anônimas ou companhias nacionais, que dependem de autorização do Governo para funcionar, não poderão constituir-se sem prévia autorização, quando seus fundadores pretenderem recorrer a subscrição pública para a formação do capital.

Art. 1.132. As sociedades anônimas nacionais, que dependam de autorização do Poder Executivo para funcionar, não se constituirão sem obtê-la, quando seus fundadores pretenderem recorrer a subscrição pública para a formação do capital.

233 Sobre a presença de empresas alemãs no Brasil durante o conflito da Segunda Guerra Mundial, as acusações de espionagem e a atuação do Governo Federal, Stanley E. Hilton, Suástica sobre o Brasil – A História da Espionagem Alemã no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977, passim.

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Decreto-Lei 2.627/1940 Código Civil 2002

Art. 64. As sociedades anônimas ou companhias estrangeiras, qualquer que seja o seu objeto, não podem, sem autorização do Governo Federal, funcionar no país, por si mesmas, ou por filiais, sucursais, agências, ou estabelecimentos que as representem, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionistas de sociedade anônima brasileira (art. 60).

Art. 1.134. A sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, não pode, sem autorização do Poder Executivo, funcionar no País, ainda que por estabelecimentos subordinados, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionista de sociedade anônima brasileira.

Art. 66. As sociedades anônimas estrangeiras funcionarão no território nacional com a mesma denominação que tiverem no seu país de origem, podendo, entretanto, acrescentar as palavras – “do Brasil” ou “para o Brasil”.

Art. 1.137. Parágrafo único. A sociedade estrangeira funcionará no território nacional com o nome que tiver em seu país de origem, podendo acrescentar as palavras “do Brasil” ou “para o Brasil”.

Art. 67. As sociedades anônimas estrangeiras, autorizadas a funcionar, são obrigadas a ter, permanentemente, representante no Brasil, com plenos poderes para tratar de quaisquer questões e resolvê-las definitivamente, podendo ser demandado e receber citação inicial pela sociedade.

Art. 1.138. A sociedade estrangeira autorizada a funcionar é obrigada a ter, permanentemente, representante no Brasil, com poderes para resolver quaisquer questões e receber citação judicial pela sociedade.

Art. 68. As sociedades anônimas estrangeiras autorizadas a funcionar ficarão sujeitas às leis e aos tribunais brasileiros quanto aos atos ou operações que praticarem no Brasil.

Art. 1.137. A sociedade estrangeira autorizada a funcionar ficará sujeita às leis e aos tribunais brasileiros, quanto aos atos ou operações praticados no Brasil.

Não se justifica, de modo algum, seja sob a perspectiva histórica, seja considerando a própria lógica presente nas relações internacionais ou multilaterais, em plena era da globalização, a situação mundial durante a Segunda Grande Guerra, na década de 1940, poderia ser transposta, quase literalmente, para o nosso ordenamento em época, totalmente distinta, mais de sessenta anos depois.

Essa transposição poderia ser justificada, se e apenas se, caso porventura fossem levadas em consideração a preocupação e o instinto defensivo da ideologia da segurança nacional, decorrente do alinhamento do Brasil aos países ocidentais, no período da assim denominada “guerra fria”, entre as nações vinculadas à Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, e os países o bloco soviético do Pacto de Varsóvia (1945-1989).

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Ainda que o Código Civil de 2002 tenha sido concebido sob nítida orientação conservadora, como aquela prevalente durante o regime militar vigente no nosso País (1964-1985), e conduzido por um jurista também conservador, como era assim considerado o Professor Miguel Reale, não é justificável que normas concebidas sob uma situação totalmente diversa, continuem a prevalecer, ainda que sob nova capa de aparente legitimidade, incorporadas a um Código em pleno século XXI.

As normas que disciplinam a situação das sociedades nacionais e estrangeiras dependentes de autorização, como constantes do Código de 2002 evidenciam, de modo evidente, conclusivo, a total defasagem histórica e ideológica do Código Civil, cabendo, neste ponto, reconhecer que o legislador comportou-se displicentemente, comodamente, alinhado a uma concepção ultrapassada, sem nenhuma preocupação com os fatores históricos que modificaram a situação das atividades das empresas estrangeiras na atual era de globalização dos mercados.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um conceito próprio para a empresa brasileira, diferenciado do conceito de empresa brasileira de capital nacional, distinção essa constante do atual art. 1.126 do Código Civil. A empresa brasileira, segundo o art. 171, inciso I, da Constituição de 1988, era considerada como sendo aquela constituída sob as leis brasileiras, com sede e administração no País. Dentro dessa definição enquadravam-se tanto as empresas controladas por brasileiros, como as empresas constituídas sob nossas leis, mas controladas por acionistas domiciliados no exterior, como é o caso das empresas transnacionais. O inciso II desse mesmo art. 171 da Constituição considerava como empresa brasileira de capital nacional “aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País”.

Seguindo a tendência neoliberal da economia, resultante do processo de globalização econômica, o art. 171 da Carta de 1988 foi revogado, integralmente, pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995. Desse modo, a Constituição eliminou do nosso ordenamento jurídico, a partir dessa emenda, qualquer distinção entre empresa nacional e empresa brasileira de capital nacional, em razão dos controladores estarem, ou não, domiciliados no Brasil.

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Não obstante a supressão dessa distinção conceitual, o Código Civil de 2002 manteve o conceito de sociedade nacional (art. 1.126), como sendo aquela “organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração”. Esse conceito, todavia, não possui mais qualquer fundamento ou justificativa constitucional, demonstrando, também por esse modo, a desatualização e o descompasso normativo na sua reprodução pelo Código Civil, diante das disposições constitucionais vigentes.

Se a Constituição não mais distingue a empresa nacional, segundo o local de domicílio dos seus acionistas ou sócios controladores, as normas do Código Civil que diferenciam as empresas nacionais e estrangeiras, demonstram-se, agora, prejudicadas em face das disposições constitucionais vigentes que regulam o título da ordem econômica (CF, arts. 170 a 174).

Para alguns doutrinadores, todavia, analisando a questão sob o aspecto estritamente literal e dogmático, o Código Civil, mesmo após a Emenda 06/1995, pode estabelecer tratamento diferenciado entre empresa brasileira e empresa estrangeira.234 O que deve ser diferenciado, contudo, é o domicílio da empresa, não de seus sócios ou acionistas. Se a empresa, integrada por sócios residentes no exterior, é constituída sob as leis brasileiras, ela é empresa nacional, para todos os efeitos legais. A empresa estrangeira, no sentido de ser exigida autorização para funcionar no país, é aquela que, constituída no país de origem, vem instalar filial ou agência no Brasil.235

234 “Apesar de a Constituição Federal não acolher uma “nacionalidade” da pessoa jurídica, é plenamente possível ao legislador infraconstitucional estabelecer critérios e restrições para o exercício da atividade econômica, nos termos do permissivo contido no art. 170, parágrafo único, da nossa Carta Política, que proclama o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização dos órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.” (Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Direito de empresa – Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil, cit., p. 578). 235 Nesse segundo caso de pedido de autorização para funcionamento, segundo Fábio Ulhoa Coelho observa que “não se constitui nenhuma pessoa jurídica nova, apenas se confere licença para a extensão ao Brasil das operações negociais exploradas pelo estrangeiro”. (Curso de Direito Comercial, vol. 2 – Sociedades, São Paulo, Saraiva, 15ª edição, 2011, p. 51).

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3.5.4. Críticas às normas de contabilidade empresarial

Uma das partes do livro do Direito de Empresa que foi objeto de críticas pela doutrina especializada, tanto da área jurídica como também entre os profissionais das ciências contábeis, é aquela que regula a escrituração e a contabilidade da empresa, constante no Capítulo IV, do Título IV, relativo aos institutos complementares (artigos 1.179 a 1.195).

A doutrina considerou que não caberia a um código dispor sobre matéria contábil a nível tão detalhado, assunto inerente à legislação supletiva, própria de normas inferiores ou regulamentares de natureza empresarial e contábil.236 Outras críticas foram feitas à vista da desatualização do Código de 2002, que não incorporou as modificações introduzidas na legislação contábil desde a Lei 6.404/1976 (arts. 175 a 188).237

Como regulado no antigo Código Comercial de 1850, este determinava, logo após definir comerciante e suas características, as obrigações comuns a todos os que exerciam o comércio (artigos 10 a 20). Tais prescrições limitavam-se a estabelecer as obrigações que todo comerciante deveria atender para a regularidade da sua situação jurídica: manter uma contabilidade regular, levantar balanço anual do ativo e passivo e conservar os livros contábeis. Essas normas descreviam, ainda, os requisitos intrínsecos e extrínsecos que deveriam ser observados na escrituração dos livros contábeis.

O Código Civil de 2002, ao normatizar os procedimentos da escrituração contábil das empresas, realizou mera compilação das normas e dos procedimentos contábeis constantes do Decreto-Lei 305/1967 e do Decreto-Lei 486/1969, os quais,

236 Mario Cozza, Novo Código Civil: Do Direito de Empresa, Porto Alegre, Síntese, 2002. 237 Láudio Camargo Fabretti, Direito de Empresa no novo Código Civil, São Paulo, Atlas, 2003, p. 77.

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por sua vez, não passam de simples atualização dos artigos do Código Comercial de 1850. Nada ou quase nada inovou, portanto, sobre a matéria.

Em termos gerais, a disciplina do Código de 2002 estabelece a obrigatoriedade de todo empresário ou sociedade empresária adotar sistema uniforme de contabilidade, com base na escrituração do livro diário, e de levantar, a cada ano, um balanço patrimonial representativo da posição do ativo e do passivo da empresa. A contabilidade compreende o sistema de lançamento e registro dos fatos econômicos capazes de modificar a situação patrimonial da empresa. De modo resumido, “a contabilidade é o sistema de informação que controla o patrimônio de uma entidade”.238 A contabilidade representa, portanto, o sistema de registro dos fatos patrimoniais, enquanto a escrituração é o método de lançamento desses registros nos livros próprios.

Ao final de cada exercício social, a empresa é obrigada a elaborar as suas demonstrações financeiras, as quais “deverão exprimir com clareza a situação do patrimônio da companhia na data do término do exercício social (posição estática) e as mutações patrimoniais ocorridas no exercício então findo (posição dinâmica)”.239 Apesar da Lei 6.404/1976 referir-se às sociedades por ações, disciplinando seu regime jurídico próprio, as normas relativas à contabilidade e demonstrações financeiras das companhias (artigos 175 a 188), são aplicáveis aos demais tipos societários, a partir dos princípios de contabilidade geralmente aceitos (Lei 6.404/1976, art. 177).240

Cabe ressaltar que a denominação “escrituração” revela-se defasada e inapropriada para disciplinar os conceitos e procedimentos contábeis das empresas na atualidade. Desde a Lei 6.404/1976, os resultados da contabilidade passaram a ser denominados “demonstrações financeiras”, conceito mais largo, abrangente e adequado para definir o sistema de cálculo e expressão do desempenho financeiro, econômico e patrimonial das empresas.241 Outra crítica que deve ser posta neste ponto

238 Clóvis Luis Padoveze, Manual de Contabilidade Básica, São Paulo, Atlas, 5ª edição, 2004, p. 29. 239 Modesto Carvalhosa e Nilton Latorraca, Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, vol. 3, São Paulo, Saraiva, 1997, p. 554. 240 José Edwaldo Tavares Borba, Direito Societário, Rio de Janeiro, Renovar, 5ª edição, 1999, p. 404. 241 A expressão escrituração revela-se imprópria e defasada porque, dentro desse capítulo, “estão não só a escrituração mas também as demonstrações contábeis”, sendo que o mais correto “é o que faz a

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é que um Código Civil, diploma que contém normas gerais, não deveria descer às minúcias dos procedimentos da contabilidade e da escrituração mercantil. Assim, se o Código de 2002 teve como objetivo importar conceitos e procedimentos detalhados de contabilidade empresarial, os quais somente caberiam na legislação especial, de outro lado incorreu em grave atecnia, ao confundir o procedimento da escrituração com o conceito mais amplo de contabilidade.242

De modo abrangente, o sistema contábil deve ser adotado por qualquer tipo de entidade que possua patrimônio próprio, não sendo exclusivo das sociedades empresárias. Uma fundação ou associação de fins não econômicos deverá, da mesma maneira que as sociedades empresárias, manter uma estrutura contábil e um regime de escrituração apto a registrar as suas variações patrimoniais. Contudo, o Código de 2002 apenas se refere, vagamente, sem qualquer detalhamento, à competência da assembléia geral das associações não econômicas para a aprovação das contas dos seus administradores (art. 59, inciso III). Nenhum sistema contábil específico regulou o Código no que tange às associações e fundações, quando, por uma questão de coerência, deveria ter assim disciplinado, ainda que fosse para mandar aplicar, por analogia, no que coubesse, as normas contábeis das sociedades empresárias.

Ao especificar um regime contábil necessário e obrigatório, apenas, ao empresário e às sociedades empresárias, o Código de 2002 revela a sua preocupação de abarcar, nas suas normas, institutos específicos da legislação mercantil, ao passo que deixou de estabelecer os procedimentos contábeis que devem ser, igualmente, observados pelas demais formas associativas corporativas, assim como nas fundações de direito privado (art. 62).

Na disciplina da contabilidade da empresa, o Código de 2002 não apresenta, como visto, nada de novo. Pelo contrário. Ele reproduz, com outras palavras, textos do Código Comercial de 1850 e do Decreto-Lei 486/1969. A base referencial desse capítulo, também, remonta ao Código Civil italiano de 1942, que nos seus artigos

Lei das S/A ao chamá-lo de Exercício Social e Demonstrações Financeiras” (Eliseu Martins, Atrocidades Contábeis no Novo Código Civil, Boletim SIA – Sistema de Informações da Associação Brasileira de Companhias Abertas - ABRASCA, Rio de Janeiro, nº 612, 23/09/2002, p. 5). 242 Amador Paes de Almeida, Direito de Empresa no Código Civil, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 236.

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2.214 a 2.221 trata da escrituração contábil (Delle scritture contabili), e nos artigos 2.423 a 2.435 dispõe sobre a obrigação e critérios de elaboração do balanço patrimonial (Del bilancio).243

Além da inadequação na regulação desses procedimentos contábeis de natureza estritamente mercantil, o Código Civil desce a um nível de detalhamento absolutamente desnecessário. Por exemplo, assim verifica-se no art. 1.187, que trata dos critérios de avaliação dos bens da empresa na elaboração do inventário patrimonial. Nesse dispositivo, o Código Civil chega ao cúmulo de especificar critérios que somente regulamentos contábeis infralegais deveriam definir.244

Como observado, a lei especial das companhias apresenta-se bem mais objetiva e sucinta em comparação com a redação do Código Civil. E o resultado prático da aplicação de ambas as normas, sob o ponto de vista contábil, é exatamente o mesmo.

243 Mário Sérgio Milani, Da escrituração no novo Código Civil, São Paulo, Juarez de Oliveira, 2004, p. 8. 244 Código Civil de 2002 - Art. 1.187. “Na coleta dos elementos para o inventário serão observados os critérios de avaliação a seguir determinados: (...) II - os valores mobiliários, matéria-prima, bens destinados à alienação, ou que constituem produtos ou artigos da indústria ou comércio da empresa, podem ser estimados pelo custo de aquisição ou de fabricação, ou pelo preço corrente, sempre que este for inferior ao preço de custo, e quando o preço corrente ou venal estiver acima do valor do custo de aquisição, ou fabricação, e os bens forem avaliados pelo preço corrente, a diferença entre este e o preço de custo não será levada em conta para a distribuição de lucros, nem para as percentagens referentes a fundos de reserva.” O art. 183 da Lei 6.404/1976, ao dispor sobre situação contábil equivalente à prevista nesse art. 1.187, prescreve: “Art. 183. No balanço, os elementos do ativo serão avaliados segundo os seguintes critérios: (...) II - os direitos que tiverem por objeto mercadorias e produtos do comércio da companhia, assim como matérias-primas, produtos em fabricação e bens em almoxarifado, pelo custo de aquisição ou produção, deduzido de provisão para ajustá-lo ao valor de mercado, quando este for inferior”.

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Capítulo 4

Conceitos fundamentais do direito de empresa

4.1. A empresa como categoria central do sistema; 4.2. Do comerciante ao empresário; 4.3. Conceito de empresário; 4.4. A sociedade empresária como modo de exercício coletivo da empresa; 4.5. Tipologia da empresa; 4.6. Transformação e conversão da forma da empresa; 4.7. A empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI; 4.8. O regime da microempresa e da empresa de pequeno porte; 4.9. O estabelecimento empresarial e sua positivação no Código Civil.

4.1. A empresa como categoria central do sistema

O Código Civil de 2002 não define a empresa. Por isso, segundo a doutrina, a definição de empresa deve ser extraída do próprio conceito de empresário (CC, art. 966).245 A empresa é considerada, em princípio, como atividade econômica em si, como exercício da função de produção ou circulação de mercadorias ou de serviços. Na acepção clássica de Pontes de Miranda, ao tratar da empresa como propriedade mobiliária, como universalidade, “chama-se empresa ou estabelecimento ao exercício profissional de atividade econômica, que se organize para a produção ou distribuição de bens ou serviços”. E assim, “quem cria a empresa precisa de complexo de bens, de que possa dispor, ou usar, para atingir os fins do empreendimento”.246

Na lição de Pontes de Miranda, como adotaremos adiante, a empresa representa tanto a atividade, como exercício profissional de atos necessários à produção e circulação de bens ou serviços, como o modo de organização do complexo

245 Sérgio Campinho, O direito de empresa à luz do novo Código Civil, op. cit., p. 13. 246 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 4ª edição, 1983, Tomo XV, p. 355.

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de bens que integra o estabelecimento, a que Pontes denomina fundo de empresa, e que a doutrina tradicional trata por fundo de comércio. A empresa, sem embargo, não pode ser compreendida fora dessa relação simbiótica e siamesa frente ao estabelecimento, com a organização dos fatores de produção do qual resulta o aviamento e a capacidade da empresa gerar lucros, fim último e desiderato da sua função econômica. A própria teoria da empresa, para ser explicada e compreendida, exige o recurso à definição de estabelecimento empresarial ou comercial como elemento intrínseco ao seu exercício, desde seu conceito legal originário do Código italiano de 1942: “L'azienda è il complesso dei beni organizzati dall'imprenditore (2082) per l'esercizio dell'impresa” (2555). 247

Entende Rubens Requião que o jurista trabalha “sobre o conceito econômico para formular a noção jurídica de empresa”.248 Essa dependência da construção conceitual da empresa pela teoria econômica sempre representou resistência por parte dos juristas em adotar definição importada de outra área de conhecimento, não elaborada pela doutrina do direito. Na contextualização da empresa, cabe considerar que ela existe para desempenhar, no mercado, as seguintes atividades:

a) a produção, industrialização, tranformação e manufatura de bens;

b) a circulação de bens, originários de produção industrial ou de compra para revenda ou aluguel do uso;

c) a prestação de serviços, de caráter próprio ou realizados como atividades complementares ou conexas à produção e circulação de bens;

d) as atividades financeiras, creditícias, cambiais, de seguros e negociação de títulos e valores mobiliários;

e) as atividades extrativas minerais, vegetais, agrícolas e animais, quando estruturadas para beneficiamento desses produtos e oferta no mercado.

247 Observa Giampaolo de Ferra que “a identificação do centro de gravidade da disciplina do direito comercial depende, exclusivamente, de uma escolha legislativa. Isto significa que não se podem individualizar os parâmetros absolutos nem para a definição dos limites da matéria nem para a descrição das suas linhas importantes fora do exame do texto legislativo.” (Lezioni di diritto commerciale, Padova, Cedam, 2001, p. 1). Assim, se o texto legal reza que o estabelecimento, o patrimônio aziendale, do modo como é organizado, é absolutamente necessário e imprescindível ao exercício da empresa, o conceito ou ideia de empresa não pode estar limitado pela noção de atividade, da função de produção e circulação de bens para o mercado. 248 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 51.

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A partir da especificação das atividades desempenhadas pela empresa, decorrente de sua noção econômica, a doutrina desenvolveu sua definição jurídica. Nesse sentido, como conceito corrente dominante, na lição de Fábio Ulhoa Coelho, empresa é a “atividade, cuja marca essencial é a obtenção de lucros com o oferecimento ao mercado de bens ou serviços, gerados estes mediante a organização dos fatores de produção (força de trabalho, matéria-prima, capital e tecnologia).249 Conforme tal entendimento, a atividade, em si, não gera lucros, na medida em que a eficiência econômica da empresa depende do modo como os fatores de produção são organizados. A aptidão da empresa produzir lucros resulta do aviamento exteriorizado a partir do estabelecimento, como posto por Ascarelli,250 não da atividade em si.

A empresa, categoria central do direito empresarial, não significa o mesmo que estabelecimento, com este não se confunde, como assim esclarece Fábio Ulhoa Coelho.251 Todavia, a empresa não se restringe à atividade. O conceito de empresa não pode ser extraído diretamente ou apenas decalcado do conceito de empresário (CC, art. 966). O empresário, sim, exerce atividade profissional de produção ou circulação de bens ou de serviços. Cabe ao empresário, juntamente com seus colaboradores, organizar, a partir do capital investido, os fatores de produção, para que a empresa possa executar seu objeto mercantil.

O exercício da atividade empresarial pressupõe um mínimo de organização dos fatores de produção, uma base de disposição para inversão do capital, integrada por bens corpóreos e incorpóreos, a partir da definição do seu objeto, da delimitação da área territorial de atuação, do nome empresarial, da contratação de colaboradores, da escolha de fornecedores, enfim, dos componentes necessários à composição do estabelecimento. A empresa, conforme o próprio art. 966 enuncia ao tratar do conceito de empresário, é definida como a “atividade econômica organizada” que o empresário exercita. O conceito de empresa, aqui, aproxima-se ainda mais da ideia de organização, na medida em que não poderia definir-se como empresa uma atividade

249 “Empresa é a atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços. Sendo uma atividade, a empresa não tem a natureza jurídica de sujeito de direito nem de coisa. Em outros termos, não se confunde com o empresário (sujeito) nem com o estabelecimento empresarial (coisa)”. (Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 32/33). 250 Tullio Ascarelli, Iniciação ao Estudo do Direito Mercantil, Sorocaba, Minelli, 2007, p. 365. 251 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 32/33.

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econômica “desorganizada”, destituída de lógica operacional. Na atividade entrópica, própria da desorganização, os fatores de produção não estão dispostos de modo a possibilitar o exercício normal da função empresarial.

Além da contribuição da teoria dos perfis de Alberto Asquini,252 a doutrina moderna apoia-se nos estudos de Giuseppe Ferri para desenvolver a noção jurídica de empresa a partir do modo como ela atua no âmbito da economia de mercado. Segundo Ferri, a empresa deve ser estudada com base nos seus aspectos mais característicos, do seguinte modo:253

a) a empresa como expressão da atividade do empresário, e desse modo sujeita a normas de regulação, a partir da fixação de requisitos para o exercício da atividade empresarial, que devem ser comprovados perante o registro do comércio;

b) a empresa como idéia criativa, a qual será objeto de proteção pelo direito a partir da legislação da propriedade industrial, da tutela dos direitos imateriais e das normas de repressão à concorrência desleal;

c) a empresa como complexo de bens, confundindo-se com a noção de estabelecimento comercial, compreendendo a reunião de direitos materiais e imateriais organizados pelo empresário para o seu exercício;

d) a empresa sob a perspectiva das relações com os seus colaboradores, considerada a partir dos princípios hierárquicos e das relações de emprego, matéria que passou para uma área de regulação mais especializada no campo do direito do trabalho.

A atividade, elemento de definição da empresa, observa Vincenzo Buonocore, “não é sinônimo de ato, mas está a indicar um complexo de atos relacionados a um escopo comum”: o exercício do objetivo econômico.254 Esse complexo de atos compreende aqueles de natureza técnica, mercantil, organizacional, operacional,

252 “O conceito de empresa é o conceito de um fenômeno econômico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram. As definições jurídicas de empresa podem, portanto, ser diversas, segundo o diferente perfil, pelo qual o fenômeno econômico é encarado”. (Alberto Asquini, Perfis da Empresa, cit., p. 109/110). 253 Giuseppe Ferri, Manuale di Diritto Commerciale, Turim, Unione Tipografica, 1956, apud Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 51. 254 “Atividade não é sinônimo de ato, mas está a indicar um complexo de atos relacionados a um escopo comum, no sentido que todo ato que o empresário executa serve ao exercício da empresa, e, mais em particular, a realizar a produção ou a troca de um ou mais bens, de um ou mais serviços determinados: em concreto, ao menos segundo a opinião de parte da doutrina, o caráter “econômico” da atividade, está aparentemente reiterado com a locução “para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. (Vincenzo Buonocore, L’Impresa - Trattato di Diritto Commerciale, Torino, G. Giappichelli Editore, 2002, p. 62).

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industrial, contábil, que, subsumidos na norma, produzem efeitos jurídicos na realidade econômica e nas relações patrimoniais intersubjetivas.

O complexo de atos comuns a toda empresa está compreendido na execução do objeto comercial, da atividade principal, que é a “produção ou circulação de bens ou de serviços”. Para exercer essa atividade, a empresa realiza atos perante sua clientela, fornecedores, credores, que se consubstanciam em contratos, obrigações mercantis, referenciados a partir do que pode ser considerado o negócio jurídico empresarial por excelência e aspecto nuclear dominante: a compra e venda mercantil. A concepção jurídica de empresa como organismo voltado ao exercício de atividade econômica existe desde a enumeração dos atos de comércio pelo Código Comercial francês de 1807, que menciona as empresas de manufatura e outros tipos de negócios mercantis realizados através de estabelecimentos comerciais.255

Na opinião de Waldemar Ferreira, o legislador do Código francês de 1807, “por inadvertência ou não, no rol dos atos de comércio se incluíram certas empresas e, até, estabelecimentos, quando nele não deviam figurar, senão e exclusivamente, atos.”256 Assim, a partir do momento em que o regime do código francês passou a se referir às empresas, presente nos diversos tipos de atividades mercantis, em especial no tocante às empresas de manufatura ou industriais, desse momento em diante a figura da empresa foi positivada, apesar da lei não contemplar, ainda, no século XIX, um conceito próprio para melhor caracterizá-la como instituto jurídico.

Configurada a empresa como instituto de direito comercial, mesmo sob o regime da teoria dos atos de comércio, a doutrina procurou explicar a natureza e as características da empresa, assim como compatibilizar essa figura com a pessoa do comerciante, até então considerado como elemento central e principal sujeito no exercício da atividade mercantil. Tendo por base o Código Comercial francês de 1807, Lyon-Caen & Renault afirmam que a expressão empresa “não se referia a um fato isolado, mas ao exercício de uma profissão ou, ao menos, de uma série de atos

255 O Código Comercial francês de 1807 (art. 632) considerava como ato de comércio “toute entreprise de manufactures, de commission, de transport par terre ou par eau”, e também “toute entreprise de fornitures, d’agence, bureau d’affaires, établissements de ventes à l’encan, de spetacles publics”. 256 Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, vol. II, Teoria dos Atos de Comércio, cit., 191.

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de uma certa importância que implicam em uma organização pré-estabelecida para um objetivo de negócios”.257 A empresa, nessa perspectiva, no início do século XX, já era concebida pela doutrina como reprodução seqüenciada de atos de comércio, a partir de estrutura organizada e predisposta à celebração de negócios mercantis.

No Brasil, o Regulamento 737, complemento do Código Comercial de 1850, a pretexto de estabelecer a competência da jurisdição do Tribunal de Comércio do Império no julgamento das causas mercantis, reproduziu, quase literalmente, o enunciado do Código francês, ao fazer menção, dentre os atos de comércio, às “empresas de fábricas, de comissões, de depósito, de expedição, consignação e transporte de mercadorias e espetáculos públicos” (Decreto 737/1850, art. 19, § 3º).

O Código Comercial italiano de 1882, do mesmo modo que o Código Comercial brasileiro de 1850, igualmente se filiou ao sistema francês dos atos de comércio, ao referir-se a várias espécies de empresas, relacionando, entre outras, as empresas de fornecimento, de construção, de manufatura, de espetáculos públicos, as empresas editoras, tipográficas ou de livraria, de transporte de pessoas ou coisas, por terra ou por mar, e as empresas de comissão, de agência ou de negócios. Na opinião de Vincenzo Buonocore, analisando a questão entre os comercialistas contemporâneos, a inclusão da empresa como ato de comércio no Código italiano de 1882 já antecipava o perfil da atividade da empresa, como viria a ser adotado em seguida.258

Procurando formular um conceito unitário de empresa a partir dessa disposição exemplificativa do Código Comercial italiano de 1882, Alfredo Rocco observara que alguns doutrinadores consideram que “não haveria outro caminho a seguir que não fosse o de considerar a empresa um complexo de negócios, tendo por base uma organização única, e agrupando-se estes negócios em torno de um único organismo

257 Charles Lyon-Caen, & Louis Renault, Manuel de Droit Commercial, Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 11ª editión, 1913, p. 35. 258 “Somente para compreender a função unificadora dos institutos comercialistas que a empresa – e inversamente, também o empresário que exercita a atividade – executa, bastará por um momento repensar a circunstância de que, no Código de Comércio abrogado, a empresa era somente um ato de comércio ao lado dos outros atos elencados no artigo 3º e vinha, por isso, concebida não sob um perfil da atividade, mas sob aquele da modalidade de exercício do ato, enquanto hoje a empresa identifica-se com a atividade desenvolvida pelo empresário com certas características, e, por isso, só são discutidos os problemas de qualificação dessa atividade.” (Vincenzo Buonocore, L’Impresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 50).

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econômico”.259 De acordo com essa concepção, aduz Rocco, o “traço característico da empresa seria o exercício de uma atividade complexa e, portanto, uma repetição de certos atos singulares que se refletiria subjetivamente na intenção de alguém se dedicar com estabilidade e continuamente à prática de uma série de negócios do mesmo gênero”.260 Rocco não admite como aceitáveis tais definições, vez que nenhum desses conceitos econômicos coincide com o conceito de empresa resultante das disposições do Código de 1882 da Itália. Por isso, ele entende que, de um modo geral, “a simples compra para revenda e as sucessivas revendas, o comércio enfim, são uma empresa não só no sentido mais lato, como no mais restrito”.261

E assim, na busca por extrair um elemento comum para a caracterização da empresa na legislação codificada italiana, Rocco entendia que “o elemento específico constitutivo da empresa, no sentido do código, é a organização do trabalho de outrem”, e conclui afirmando que somente “temos empresa e, consequentemente, ato comercial, quando a produção é obtida mediante trabalho de outros, ou, por outras palavras, quando o empresário recruta trabalho, organiza-o, fiscaliza-o, retribui-o e dirige-o para os fins de produção”.262

A noção moderna de empresa, com base no Código italiano de 1942, foi sistematizada por Lorenzo Mossa, a partir da base conceitual proposta pelo comercialista alemão Karl Wieland. Afirmava Mossa que “a empresa é o centro da realidade econômica submetida ao direito mercantil”, sendo ela o próprio “pressuposto jurídico da comercialidade”.263 Nessa visão legalista e estatizante, a característica comercial era inerente não somente à empresa em si, mas a todas as relações econômicas por ela mantidas no exercício da sua atividade. A doutrina passou, desde então, a referir-se à empresa como uma realidade visível no mundo comercial, como instituto próprio do direito mercantil, ainda que conceitualmente não determinado, apesar de ficar vagando entre a concepção objetivista dos atos de comércio e a subjetividade da figura do comerciante. Não obstante, o conceito de empresa

259 Alfredo Rocco, Princípios de Direito Comercial, cit. p. 207. 260 Alfredo Rocco, Princípios de Direito Comercial, cit. p. 207-208. 261 Alfredo Rocco, cit. p. 208. 262 Alfredo Rocco, cit. p. 222-223. 263 Lorenzo Mossa, Trattato del nuovo diritto commerciale, Milão, 1942, apud Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 23.

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permaneceu derivado da teoria econômica, ou como afirmado por Carvalho de Mendonça, “o conceito econômico é o mesmo jurídico”, considerada a empresa como “organização técnico-econômica” destinada a exercitar atividade produtiva, na “esperança de realizar lucros”.264

De um modo conjugado, a doutrina francesa formulou a concepção da empresa a partir de duas idéias: a primeira, da empresa como organização, e a segunda, considera essa organização pré-concebida para o exercício de atividade econômica.265 Desenvolvendo essa percepção da empresa como organização econômica, Michel Despax observou que a doutrina desenvolveu duas abordagens diferenciadas para a empresa, uma restritiva e outra extensiva. De acordo com a concepção restritiva, a empresa seria a organização dos fatores de produção, mediante o emprego de trabalho alheio com fim lucrativo, o que estaria de acordo com a visão capitalista. Sob a concepção extensiva ou funcional, um dos prismas analisados por Asquini,266 empresa significa a organização cujo objeto compreende a produção, a comercialização ou a circulação de bens ou de serviços.267

Ambas as abordagens propostas por Michel Despax consideram a empresa como entidade personificada, dissociada da noção de empresário, e que possui um elemento comum, qual seja, a organização dos fatores de produção.268 A ideia de empresa, apesar de bastante próxima do conceito de empresário adotada pelo Código Civil italiano de 1942, com este não se confunde, considerando que a noção de empresa resulta da idéia de atividade organizada, ao passo que o conceito de

264 Na lição de Carvalho de Mendonça, reproduzindo seu conceito econômico, “empresa é a organização técnico-econômica que se propõe a produzir, mediante a combinação dos diversos elementos, natureza, trabalho e capital, bens ou serviços destinados à troca (venda), com esperança de realizar lucros, correndo os riscos por conta do empresário, isto é, daquele que reúne, coordena e dirige esses elementos sob a sua responsabilidade”. (Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit., p. 492). 265 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 53. 266 Alberto Asquini, Perfis da Empresa, cit., p. 109. 267 Michel Despax, L’Entreprise et le droit, Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1957, p. 6-7. 268 Ao comentar a teoria de Despax, constata Waldirio Bulgarelli que “não é difícil perceber que a idéia de organização dos fatores de produção está presente em todas elas, valendo acentuar que a primeira corrente põe acento também no lucro, enquanto a segunda dispensa-o; todas elas, contudo, dão relevo ao aspecto do efetivo funcionamento da unidade produtiva, portanto, da atividade”. (Tratado de Direito Empresarial, São Paulo, Atlas, 4ª edição, 2000, p. 51).

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empresário compreende o exercício profissional dessa mesma atividade, com caráter subjetivo, e não funcional.

O Código italiano de 1942, reconhecendo a unicidade e importância do conceito de empresa, elevou esse instituto a categoria fundamental do direito, concepção agora adotada e reproduzida pelo Código Civil de 2002. Sob essa nova concepção, a empresa deixa de ser apenas mais um objeto definidor da mercancia, como atividade econômica funcional, e passa a ser considerada como “fattispecie di effetti giuridici”,269 isto é, como tipo jurídico próprio ou específico, não obstante sua definição tenha permanecido a mesma quando comparada com as teses elaboradas pela doutrina tradicional.

A empresa, nessa perspectiva, define-se tanto como atividade, mas antes como organização, do modo como é estruturada para executar sua função econômica.270 Para Buonocore, “a organização é a constante da norma mais importante para definir a empresa”.271 Assim considerado, na visão de Raquel Sztajn, partindo da teoria de Buonocore, “a organização parece ser o elemento central, essencial, necessário e suficiente, para determinar a existência da empresa”.272 A organização é o elemento principal na medida em que “gera o aparato produtivo estável, estruturado por pessoas, bens e recursos, coordena os meios para atingir o resultado visado.” 273

Em razão desses aspectos referentes à organização dos fatores de produção, é que se revela a dificuldade maior para o jurista abordar e explicar a empresa. Para tanto, ele deve, ao menos, conhecer e dominar os conceitos econômicos e tecnológicos, porque sobre esses conceitos “o jurista não tem domínio exclusivo, pelo que, do ponto de vista técnico-jurídico, esse elemento – a organização – tem valor relativo, dada a necessidade de recorrer a outros ramos do conhecimento para

269 Giorgio Oppo, Impresa e impreditore, in Vincenzo Buonocore, L’Impresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 58. 270 Adverte Giorgio Oppo, ainda, em outra obra coletiva, que “a qualificação da atividade não pode ser confundida com a qualificação da organização, e sob esse perfil ou característica projetam-se outras distinções”. (Princìpi, Trattato di Diritto Commerciale, diretto da Vincenzo Buonocore, Torino, G. Giappichelli Editore, 2001, p. 55). 271 Vincenzo Buonocore, L’Impresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 109. 272 Rachel Sztajn, Teoria Jurídica da Empresa, cit., p. 129. 273 Rachel Sztajn, Teoria Jurídica da Empresa, cit., p. 129.

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entendê-lo”, como esclarece Raquel Sztajn,274 com suporte nas lições de Buonocore.275

Portanto, cabe aqui concluir que a empresa já era referida e assim se apresentava como instituto jurídico inerente ao direito comercial, positivada desde o Código Comercial francês de 1807, e reproduzida em diversos outros códigos ainda filiados ao sistema dos atos de comércio, como o Código Comercial da Itália de 1882.

Esclarece Fábio Ulhoa Coelho que, ainda antes da vigência do Código Civil brasileiro de 2002, “pode-se afirmar que o direito brasileiro já vinha adotando fundamentalmente a teoria da empresa”.276 Todavia, gradualmente, a teoria da empresa passa a representar o centro de gravidade do direito comercial. O direito comercial, inclusive, vem a ser, nesse processo de mudança, redenominado para direito empresarial, resultante da própria fixação do novo objeto legislativo fundamental: o direito de empresa.

Retornando às lições de Pontes de Miranda abordadas ao princípio deste capítulo, ele afirma que ocorre, na realidade, uma “cisão conceptual” entre a ideia de empresa, como atividade, e fundo de empresa, como organização.277 Na verdade, segundo Pontes, a realidade é a mesma ou uma só, em que o conceito de empresa ora pode ser abordado como atividade (aspecto dinâmico), ora como conjunto de bens corpóreos e incorpóreos (fundo de empresa, estabelecimento, organização), instrumento ou “meio para a atividade.”278 É uma abordagem semelhante à de Asquini, mas sem inserir os perfis subjetivo e corporativo, na medida em que o perfil subjetivo 274 Rachel Sztajn, Teoria Jurídica da Empresa, cit., p. 128. 275 “Generalizando o discurso, parece mais do que plausível escrever que o elemento organizativo, para além do objeto da organização, que continua a ser sempre aquele relativo aos fatores de produção, é talvez o único, entre todos os elementos constitutivos da empresa, em relação ao qual o jurista não é senhor absoluto do argumento - ou, se preferir, não é totalmente livre para argumentar - e que, do ponto de vista estritamente técnico-jurídico, possui um valor relativo, porque indefectivelmente dependente da evolução de outros compartimentos disciplinares - bastará pensar no progresso tecnológico no domínio dos métodos e sistemas de produção de bens e serviços - ou seja, no surgimento de novos setores de mercado.” (Vincenzo Buonocore, L’Impresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 112). 276 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 39. 277 Pontes de Miranda adota a expressão fundo de empresa para designar o estabelecimento, por ser conceito mais amplo e que abrange as demais atividades econômicas: “A noção de fundo de empresa, originariamente “fundo de comércio”, porque não se haviam caracterizado as situações idênticas na indústria e na agricultura, entrou no mundo jurídico quando se teve de prestar atenção ao que se passava no mundo fáctico, ao ter o comerciante de ceder os elementos que lhe haviam servido a grangear a clientela”. (Tratado de Direito Privado, Tomo XV, cit., p. 357/358). 278 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, cit., p. 356.

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refere-se ao conceito e às características do empresário em si e o perfil corporativo ou institucional estaria compreendido na ideia de como o empresário contrata, remunera, motiva e organiza os recursos humanos do estabelecimento.

É possível afirmar que a evolução teórica do fenômeno da empresa encontrou na doutrina italiana o seu ponto principal de convergência, sendo hoje prevalente a abordagem tridimensional de Vincenzo Buonocore,279 que considera a “realidade global da empresa” como resultante da união dos aspectos subjetivo, funcional e objetivo. O aspecto subjetivo, do mesmo modo que na teoria de Asquini, está representado na figura do empresário como sujeito ou titular da empresa. O aspecto funcional retrata a empresa como atividade econômica de produção e circulação de bens e serviços. O aspecto objetivo, por último, abrange o estabelecimento, a organização dos elementos corpóreos e incorpóreos para o exercício da empresa.

Apesar dos aspectos tridimensionais enfocados e da aparente fragmentação conceitual, a empresa deve ser mentalizada e explicada na sua unitariedade, como fenômeno econômico, sujeito de direito na forma, objeto de direito no conteúdo material da atividade, dotada de regime jurídico específico.280 A unidade conceitual da empresa pode ser abreviada, na concepção de Buonocore, a uma “fattispecie produtiva di effetti giuridici”,281 traduzida como tipo ou espécie econômica reconhecida como elemento fundamental pela ordem jurídica. A fattispecie representa a empresa na sua conformação real, como fato de relevância jurídica, recaindo sobre ela uma 279 Vincenzo Buonocore, Istituzioni di Diritto Commerciale, Torino, G. Giappichelli, 6ª edizione, 2006, p. 26. 280 Para além do conceito de empresa, o fundamental, na lição de Waldirío Bulgarelli, é captar a essência da empresa, para a partir desse ponto definir seu regime jurídico específico no âmbito do direito comercial: “Reconhecida, hoje, como um fenômeno vital importantíssimo da realidade, como ponto de convergência de inúmeros interesses, não mais se põe em causa, nem se duvida, da necessidade de se regulá-la juridicamente. O que se colhe como substrato das discussões, verificadas quanto à recepção da empresa pelo Direito, decorre de uma dicotomia básica, ou seja: 1) a posição dos que pregam a transposição pura e simples da noção econômica da empresa referida como organização da atividade econômica, pelo empresário que a anima e dirige e corre o risco e por isso se apropria dos lucros; 2) e a daqueles que pretendem a tradução em termos jurídicos das características do fenômeno (mesmo através da noção econômica ou ao menos a atribuída pelos juristas aos economistas). A tarefa, pois, que cabe ao estudioso perante a teoria jurídica da empresa (como, aliás, se impôs naturalmente a partir da enunciação da empresa no Código Comercial napoleônico e dos que o seguiram, e mais propriamente a partir do momento em que a empresa tomou a extraordinária importância que hoje desfruta na vida real) é a de reconhecendo essa importância do fenômeno econômico-social, captar a sua essencialidade, transpondo-o para o plano jurídico, para o fim de estatuir um regime jurídico voltado para a fixação dos seus direitos e deveres.” (Teoria Jurídica da Empresa, cit., p. 75). 281 Vincenzo Buonocore, Istituzioni di Diritto Commerciale, cit., p. 26.

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normatividade própria, específica, dotada de complexidade proporcional à evolução tecnológica do mercado.

A empresa, desse modo, é um conceito plurissignificativo,282 que mesmo para o direito deve ser interpretado conforme cada situação referencial real, de fato.283 Em sentido amplo, empresa significa a firma comercial, a indústria, a loja, como assim é expresso no cotidiano ou na linguagem do povo, sem vinculação ao sujeito ou à forma.284 Essa locução em sentido amplo não é tecnicamente errada ou imprópria, ao contrário da opinião de Fábio Ulhoa Coelho,285 sendo amiúde utilizada, por exemplo, pela jurisprudência.286 Em sentido estrito, no seu conceito jurídico próprio e específico, sim, empresa significa organização técnico-econômica destinada ao exercício de atividade de produção ou de circulação de bens ou de serviços.

282 “Empresa. Do italiano impresa. 1. Aquilo que empreende; empreendimento; 2. Economia. Organização econômica destinada a produção ou venda de mercadorias ou serviço, tendo em geral como objetivo o lucro; (...) 4. Empresa: como organização jurídica; firma; sociedade”. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Aurélio Século XXI, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 3ª edição, 1999. “Empresa. 1. Empreendimento para a realização de um objetivo (“as navegações portuguesas constituem empresas notáveis”); 2. Organização econômica, civil ou comercial, constituída para explorar determinado ramo de negócio e oferecer ao mercado bens e/ou serviços (“empresa de telecomunicações”, “empresa industrial”); 3. Empresa como entidade jurídica; firma (“a empresa não pagou todos os impostos”). Antonio Houaiss, Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Edição Beta, www.uol.com.br, 27/10/2014. 283 “Sob o aspecto jurídico, o termo “empresa” contém multiplicidade de significados. Quando a empresa é mencionada no Código Civil italiano com sentidos jurídicos diversos, seja por vício de linguagem, seja por pobreza de vocabulário, compete ao seu operador explicitar-lhe o conteúdo correto”. (Marcelo Andrade Féres, Estabelecimento empresarial: trespasse e efeitos obrigacionais, São Paulo, Saraiva, 2007). 284 A respeito da ambiguidade da expressão, Pontes de Miranda adverte: “Algumas vezes, a palavra empresa aparece como a indicar a pessoa física ou jurídica, que empreende a realização do fim. Por isso mesmo, se, por um lado, a expressão é útil, por outro se presta a ambiguidades. O que mais importa é que, no interpretá-la, só se apanhe alusão à organização para se obter a realização de fim econômico, abstraindo-se de ter, ou não, personalidade”. (Tratado de Direito Privado, vol. XV, cit., p. 356). 285 Afirma Fábio Ulhoa Coelho, com seu apurado preciosismo terminológico: “Na linguagem cotidiana, mesmo nos meios jurídicos, usa-se a expressão “empresa” com diferentes e impróprios significados. Se alguém diz “a empresa faliu” ou “a empresa importou essas mercadorias”, o termo é utilizado de forma errada, não técnica. A empresa, enquanto atividade, não se confunde com o sujeito de direito que a explora, o empresário. É ele que fale ou importa mercadorias. Similarmente, se uma pessoa exclama “a empresa está pegando fogo!” ou constata “a empresa foi reformada, ficou mais bonita”, está empregando o conceito equivocadamente. Não se pode confundir a empresa com o local em que a atividade é desenvolvida. O conceito correto nessas frases é o de estabelecimento empresarial; este sim pode incendiar-se ou ser embelezado, nunca a atividade.” (Manual de Direito Comercial, cit., p. 31). 286 Enunciados da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça - Súmula 130 - A empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de veiculo ocorridos em seu estacionamento. Súmula 361 - A notificação do protesto, para requerimento de falência da empresa devedora, exige a identificação da pessoa que a recebeu. Súmula 480 - O juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre a constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa.

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A empresa representa, concluindo, o objeto central do direito comercial, como estrutura dotada de funcionalidades, apta para exercer a atividade econômica que assim foi determinada pelo empresário ou grupo de pessoas, reunidas em sociedade, que tomaram a iniciativa para sua criação. A empresa é resultante dessa ação humana, da livre vontade de criação, direcionada a potencializar uma atividade econômica no mercado, com o sentido profissional e determinista que emerge de toda função produtiva. Ausentes essas características orgânicas e objetivistas, a empresa pode até mesmo existir, mas sua sobrevivência e êxito no mercado estará sempre dependente da capacidade, eficiência e profissionalidade do seu protagonista principal: o empresário.

A teoria da empresa veio, portanto, restaurar a concepção subjetiva como definidora do objeto do direito empresarial: o direito empresarial é o direito da empresa, quando antes caracterizava-se como o direito dos comerciantes e dos atos de comércio. Desse modo, como centro de gravidade do direito comercial, podemos afirmar que a empresa não se resume, apenas, à ideia funcional de atividade, porque tem na organização, segundo Buonocore,287 o elemento mais importante para sua definição.

287 Vincenzo Buonocore, L’Impresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 112.

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4.2. Do comerciante ao empresário

De acordo com a definição legal do artigo 4º do Código Comercial de 1850, comerciante era a pessoa que fazia da mercancia profissão habitual e estava matriculado no órgão do registro do comércio. O artigo 9º do Código, por sua vez, reputava presumida a condição de comerciante, a partir da matrícula.288 A caracterização do comerciante regular resultava, pois, da presença desses dois requisitos: o formal, decorrente da matrícula no registro do comércio,289 e o material, relativo ao exercício de atos de comércio, com caráter profissional.

O Decreto 737/1850, regulamento do Código Comercial, distinguia o comerciante regular daquele irregular, que exercia o comércio sem registro.290 Contudo, leis posteriores, como anotado por Carvalho de Mendonça, “tiraram o prestígio da matrícula, acabando com a distinção acentuada entre comerciantes de direito e comerciantes de fato”. Desde então, “nem a matrícula nem a inscrição da

288 Código Comercial de 1850 - Art. 4º - Ninguém é reputado comerciante para efeito de gozar da proteção que este Código liberaliza em favor do comércio, sem que se tenha matriculado em algum dos Tribunais do Comércio do Império, e faça da mercancia profissão habitual. (...) Art. 9º. O exercício efetivo do comércio para todos os efeitos legais presume-se começar desde a data da publicação da matrícula. 289 “No regime inicial do Código de 1850, a matrícula dos comerciantes era formalizada perante os Tribunais de Comércio do Império, localizados no Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão, e nas Conservatórias do Comércio em algumas das cidades nas Províncias, como Rio Grande, Santos e Parnaíba. Com a extinção desses Tribunais e sua unificação com a justiça comum, em 1875, o registro dos comerciantes passou a ser realizado pelas Juntas Comerciais. Posteriormente, face o Decreto 916, de 1890, o regime de matrícula foi abolido e substituído pelo registro facultativo da firma nas Juntas Comerciais. Com a proclamação da República, e a partir da organização dos Estados da Federação, cada um dos Estados passou a deter competência para organizar as juntas e inspetorias comerciais, reservando a Constituição de 1934, desde então, a competência privativa da União para legislar sobre matéria de registro do comércio”. (Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, vol. III, cit., p. 36/37). 290 Regulamento 737/1850 - Art. 17. Suscitando-se questão no Juízo Comercial sobre a profissão habitual do comerciante matriculado (art. 4º Codigo), será a contestação decidida à vista de atestados do Tribunal do Comércio sob informação da Praça, e contra esse atestado é inadmissível qualquer prova ou contestação. Art. 18. Contestando-se a qualidade do comerciante não matriculado, será a contestação decidida conforme as regras gerais de prova.

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firma caracterizam a qualidade jurídica do comerciante; quando muito autorizam uma simples presunção.”291

Dentre os principais sistemas jurídicos de direito comercial, dominantes no século XIX, na Europa, destacavam-se os seguintes, para efeito de determinação da qualificação jurídica do comerciante:292

a) sistema francês, do Código Comercial de 1807, no qual o exercício habitual da profissão é que caracteriza o comerciante, independentemente de matrícula no registro do comércio; as sociedades comerciais devem, todavia, arquivar seus atos constitutivos no registro do comércio; adotam esse sistema os códigos de comércio da Bélgica (arts. 1º e 10), da Holanda (art. 2º), da Itália, de 1882 (art. 8º) e de Portugal, de 1888 (art. 13);

b) sistema espanhol, do Código Comercial de 1829, segundo o qual a qualificação jurídica de comerciante depende da satisfação de dois requisitos simultâneos: a matrícula no órgão de registro e o exercício profissional de atos de comércio; esse sistema foi adotado no Código de Comércio de Portugal de 1833 e depois substituído no Código de 1888;

c) sistema suíço, do Código Comercial de 1864, e depois no Código de Obrigações de 1881, em que a inscrição de quem exerce o comércio é obrigatória, enquanto que para outras atividades econômicas, como no caso dos artesãos e pequenos varejistas, a inscrição é facultativa; todavia, a inscrição, por si só, atesta a qualificação de comerciante: “Antes de tudo, é reputado comerciante quem se acha inscrito, como tal no registro do comércio”;

d) sistema alemão, do Código Comercial de 1897, o mais complexo, segundo o qual considera-se comerciante a pessoa praticante ou no exercício de atividade mercantil típica, sendo, neste caso, obrigatório o registro; todavia, o registro, em si, não conferia a qualificação de comerciante, por ter natureza meramente declaratória.293

291 J. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. II, cit., p. 23. 292 J. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. II, cit., p. 16/22. 293 No sistema alemão o exercício do comércio é classificado em seis grupos de atividades, conforme as características da exploração: 1) Musskaufleute – neste grupo principal se enquadram aqueles que exercem atividade típica mercantil, de comércio, indústria, bancos e de transportes, sempre obrigados ao registro; 2) Sollkaufleute – diz respeito àqueles que não desempenham uma atividade comercial, mas que adotam uma estrutura organizacional própria do comerciante; 3) Kannkaufleute – refere-se ao exercício de atividade rural, e assim não mercantil, mas que em virtude das características comerciais das suas operações podem ser qualificados como comerciantes; 4) Vollkaufleute – categoria reservada aos que exercem atividade mercantil de modo amplo; 5) Minderkaufleute – compreende os pequenos comerciantes e artesãos que adotam um modo simples de organização mercantil; 6) Formkaufleute – são os comerciantes assim qualificados apenas em razão de adotar uma forma mercantil para exploração de atividade não considerada materialmente como de natureza comercial. (Walter Alvares, Curso de Direito Comercial, cit., p. 100/101).

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No século XX, como ressaltado por Fábio Ulhoa Coelho, destacam-se e passam a prevalecer dois sistemas principais no direito de origem latina, que não apenas determinam a qualificação jurídica do comerciante, mas a própria disciplina privada da atividade econômica: o sistema francês, da teoria dos atos de comércio, ancorado no Código Comercial de 1807, e o sistema italiano da teoria da empresa, introduzido pelo Código Civil de 1942.294

Mas, anos e séculos antes, as atividades de comércio e transporte de bens eram realizadas pelos mercadores, em maior e mais larga escala, integrantes das corporações de ofício. De modo geral, a legislação, a partir do período do mercantilismo, no século XVI, não mais estabelecia tratamento diferenciado entre o comerciante e o mercador, considerando que ambos exerciam a mesma atividade mercantil, apenas separados por momentos históricos distintos.295 Por essa época, inicia-se, de acordo com o quadro evolutivo traçado por Ascarelli, o segundo período da história do direito comercial, quando as suas fontes normativas “não mais serão encontradas na autonomia das corporações, pois o direito comercial passará a fazer parte do direito comum”.296

O Código Comercial francês de 1807 seguiu a elaboração do Código Civil de 1804, denominado por Código de Napoleão ou Código dos Franceses, os quais representaram os dois maiores pilares legislativos dessa fase inicial da República, após a Revolução de 1789 e da queda da monarquia em 1792. A afirmação dos direitos fundamentais de igualdade e liberdade da Revolução Francesa também provocou mudanças radicais na atividade econômica, com a afirmação dos princípios

294 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 26. 295 “Mercador era o termo genérico empregado em nosso direito antigo para designar o comerciante. Homem de negócio ou negociante era o mercador que gozava dos privilégios conferidos à profissão mercantil. (...) O Código Comercial português de 1833, que serviu de modelo ao nosso, distinguia, sutilmente, comerciante, negociante e mercador; comerciante, palavra genérica, compreendia o negociante e o mercador (art. 35); negociante significava restritamente o que professava o comércio externo (art. 36); mercador o que limitava o seu trato e mercância ao Reino (art. 93). O nosso Código isso evitou, empregando sempre a palavra genérica comerciante, para designar os que exercem a profissão comercial. Quando se serviu, aliás raramente, do vocábulo negociante foi como sinônima de comerciante (artigos 7 e 909).” (J. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. II, cit., p. 24/25). 296 A partir desse momento histórico, “a evolução consuetudinária sucederá um desenvolvimento fundado nas ordenações emandas da autoridade régia, preocupada com a formação de um mercado nacional e enciumada com a autonomia das várias ordens profissionais”. (Tullio Ascarelli, O desenvolvimento histórico do Direito Comercial e o significado da unificação do Direito Privado, cit., p. 239).

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da autonomia da vontade e do livre comércio. O exercício do comércio passou a ser acessível a qualquer cidadão, ante a perda dos privilégios e das reservas de mercado que até então beneficiavam os grandes mercadores, os banqueiros e as companhias monopolistas de comércio. A ascensão da burguesia mercantil, representada pelos pequenos e médios comerciantes, recebe, então, forte incentivo na legislação comercial, renovada no auge da era napoleônica.297

A França atravessava uma fase bastante difícil, ainda de consolidação política interna da Revolução de 1789, do embate entre republicanos (patriotes) e monarquistas (émigrés), das guerras de defesa do território e de expansão imperial, contra Inglaterra, Prússia, Áustria e Rússia. O ambiente comercial não era muito favorável, especialmente o externo, com o bloqueio continental dos portos aos navios ingleses. Na fase de elaboração do Código Comercial, Napoleão Bonaparte estava mais preocupado com grandes batalhas e com a administração dos territórios conquistados.298 Mesmo assim, a legislação, representada pelo Código Civil de 1804 e pelo Código Comercial de 1807, consistia em prioridade de Estado porque tinha por finalidade servir como instrumento de dominação jurídica e de exportação do ideário da Revolução Francesa.

O Código Comercial francês teve como objetivo maior fortalecer o comércio e criar condições para a expansão econômica do Império, procurando unir os cidadãos

297 O Código Comercial francês começou a ser discutido em 1801, quando uma comissão integrada por magistrados, juristas e comerciantes foi nomeada pelo então Primeiro Cônsul Napoleão Bonaparte, para elaborar o projeto de código, adotando por base as Ordenações de 1673 do comércio terrestre, e de 1681 do comércio marítimo. A comissão que elaborou o projeto do código era integrada por Philippe Joseph Gorneau (Juiz do Tribunal de Apelação de Paris), Pierre Vignon (Presidente do Tribunal de Comércio); Philippe Legras (Jurista); Vital Roux (Jurista e banqueiro em Lyon); Boursier (Juiz Consular e Comerciante); Coulomb (Juiz aposentado) e Mourgues (Industrial). (Gorneau, Legras et Vital Roux, membres de la Commission du code de commerce; Revision du projet de code du commerce precedee de l'analyse raisonnee des Observations du Tribunal de cassation, des Tribunaux d'appel et des Tribunaux et Conseils de commerce, Paris, L'Imprimerie de la Republique, an XI – 1803). O projeto veio a ser concluído e entregue pela comissão no final do ano de 1802, e durante cinco anos, até setembro de 1807, quando aprovado e promulgado, foi debatido no âmbito do Conselho de Estado, conduzido em várias sessões, pessoalmente, pelo Imperador Napoleão Bonaparte. Participaram ativamente das discussões os conselheiros Jean-Jacques Régis de Cambacérès, jurista e Presidente do Senado, Michel Regnaud de Saint-Jean d’Angély, François Jaubert, Pierre-François Réal, Jean-François Begouën, Louis Philippe, comte de Ségur, Emmanuel Cretet e Jean-Baptiste Treilhard. O Código Comercial entrou em vigor em 1º de janeiro de 1808, mas seu marco temporal é o da sua promulgação, no ano de 1807. (John Rodman, The Commercial Code of France with The Motives or Discourses of the Counsellors of State, Delivered before the Legislative Body, Illustrative of the Principles and Provisions of the Code, New York, C. Wiley Printer, 1814, Stanford University Libraries, electronic edition, 2014, p. 5). 298 Austerlitz (dezembro de 1805); Iena (outubro de 1806), Friedland (junho de 1807).

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com capacidade financeira em um esforço comum, a partir de regras e princípios jurídicos uniformes e bem definidos.299

O Código ficou estruturado em quatro partes: Livro primeiro – Regulação do comércio em geral; Livro segundo – Comércio marítimo; Livro terceiro – Falências; Livro quarto – Processo judicial e tribunais e cortes comerciais. Essa mesma estrutura serviu de base para todos os demais códigos comerciais originários do sistema latino que se seguiram: Espanha (1829), Portugal (1833), Brasil (1850) e Itália (1882), este após a unificação italiana ou “Risorgimento”.

O artigo inicial do Código francês de 1807 assim definia comerciante: “Sont commerçants ceux qui exercent des actes de commerce, et en font leur profession habituelle.”300 Essa definição permanece idêntica até hoje no Código de Comércio da França, na sua última consolidação de 2007, dois séculos depois. O livro primeiro do Código, contudo, conceituava o comerciante, mas não definia o que era ato de comércio. Em princípio, ato de comércio era o ato do comerciante. Tinha como pressuposto fático a arte de comerciar, a ars mercatorum, o comércio a grosso e a retalho (en gros ou en détail), como assim estava referido na primeira parte da Ordenação de 1673, de regulação do comércio terrestre. Essa ordenação fazia menção à atividade comercial e bancária como própria dos negociantes, mas não definia o comerciante em si.

299 As ordenações de Luis XIV, na exposição de Regnaud, Jaubert e Réal, membros do Conselho de Estado, “não foram suficientes para desdobrar os princípios gerais do comércio; para possibilitar a criação de grandes companhias, para que os indivíduos tivessem exemplos a seguir; para ter dirigido as indústrias nacionais no sentido das transformações químicas de matérias-primas, sejam locais ou exóticas; finalmente, não foi o suficiente para ter pressionado a nação com um forte impulso; foi necessário estabelecer regras para as ações dos indivíduos; para trazer ao alcance de todos os comerciantes os princípios fundamentais da profissão que era desejável florescer. Era necessário deduzir desses princípios sua conseqüência mais importante, e aplicá-los nas transações diárias; era, em suma, necessário para dar ao comércio externo e interno a legislação civil adaptada para cada ocasião”. (...) “No código, tal como será apresentado a vocês, senhores, cada comerciante, agente comercial, ou corretor, vai encontrar todo o corpo de legislação que diz respeito à sua profissão. Ele vai encontrar as regras de suas obrigações pessoais, dos contratos de mútuo, as regras para os casos em que as obrigações pessoais e recíprocas não são cumpridas; isto é, quando a falência venha a ocorrer; finalmente, as regras de jurisdição, de competência e da prática dos atos nos tribunais”. (John Rodman, The Commercial Code of France with The Motives or Discourses of the Counsellors of State, Delivered before the Legislative Body, Illustrative of the Principles and Provisions of the Code, New York, C. Wiley Printer, 1814, cit., p. 3-7). 300 Código Comercial da França de 1807 – “Art. 1º. São comerciantes aqueles que exercem atos de comércio, e que deles fazem sua profissão habitual”.

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No Livro Quarto do Código Comercial de 1807, ao tratar do processo e jurisdição comercial, o artigo 632 enumerou os atos de comércio, como sendo o ato que, praticado por comerciante ou não, determinava a competência dos tribunais de comércio para julgamento dos litígios decorrentes dessas relações.301

Como resultante dessa lista enumerativa dos atos de comércio, a pessoa que tivesse como profissão habitual a prática desses atos, em série, repetidos, relativos a mercadorias, bens móveis e operações com moeda, era considerada como comerciante, fosse ele de porte pequeno, médio, um grande mercador ou banqueiro. E sendo comerciante ou envolvendo questão comercial relativa à letra de câmbio e títulos de crédito, as causas e processos ficavam sujeitos ao juízo comercial, à justiça especializada do mercado, e não ao juízo civil do direito comum das pessoas.

No sentido oposto ao negócio comercial, situavam-se os atos civis, especialmente os atos de produção econômica relacionados com a atividade rural, agrícola ou pecuária, ou seja, à propriedade ou à exploração da terra. O agricultor que levasse o excedente da sua safra de aveia para a feira da cidade, ou o pequeno criador de porcos que vendesse seus animais para o dono do abatedouro, não explorava atividade de comércio, ainda que dependesse da venda dos seus produtos para comprar outras mercadorias necessárias à sua subsistência ou à alimentação do seu rebanho. A atividade rural, apesar de seu substrato econômico, estava vinculada à safra, ao regime de engorda dos animais, ou seja, à sazonalidade. Mas, além desse aspecto temporal, à atividade econômica no campo faltava uma característica essencial imanente à mercancia: a finalidade lucrativa própria do caráter especulativo

301 Código Comercial da França de 1807 – “Art. 632. La loi répute actes de commerce – tout achat de denrées et marchandise pour les revendre soit en nature, soit aprés les avoir travailles et mises en oeuvres, ou mème pour en louer simplement l’usage; - toute entreprise de manufactures, de comission, de transport par terre ou par eau; - toute entreprise de fournitures, d’agences, bureaux d’affaires, établissements de ventes a l’encan, de spectacles publics; - toute les operations de banques publiques; - toutes obligations entre négocians, marchands et banquiers; - entre toutes personnes, les lettres de change, ou remises d’argent faites de place en place.”; Tradução livre: “A lei considera atos de comércio – Todas as compras de gêneros e mercadorias para revenda ou em espécie, ou após ter sido processada, ou mesmo apenas para alugar o uso; - Toda empresa de fábrica, de comissão, de transporte por terra ou por água; - Toda empresa de fornecimento, agências, escritórios comerciais, vendas por leilão e de espetáculos públicos; - Todas as operações de bancos públicos; - Todas as obrigações entre os comerciantes, mercadores e banqueiros; - Entre todas as pessoas, as letras de câmbio, ou o dinheiro para remessa de um lugar para outro”.

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do comércio e de seus negócios em massa, da constante compra e venda, da compra para revenda, da produção da manufatura para oferta no mercado.

A partir dessas características gerais ou elementos comuns, a doutrina definiu ato de comércio como “todo ato de interposição econômica determinada pela especulação”, segundo a clássica expressão de Leone Bolaffio.302 A interposição econômica representa a relação jurídica que envolve uma operação onerosa, como é natural da compra e venda mercantil, por exemplo, sendo que essa relação jurídica é especulativa: “finis mercatorum est lucrum”. Ou seja, o comerciante que detém a propriedade da mercadoria busca obter uma vantagem financeira com a venda, que é medida pela taxa de lucro.

Para Alfredo Rocco, o elemento preponderante consiste na atividade de troca propiciada pelo ato em si: “é ato de comércio todo ato que realiza ou facilita uma interposição na troca”.303 Ato de comércio, assim, é ato e negócio jurídico de troca, de intermediação entre produtor e atacadista, entre atacadista e varejista, até a mercadoria chegar ao mercado de consumo, assim como os atos acessórios e conexos ao ato principal de interposição.304

O Código Comercial brasileiro de 1850 não conceituou nem relacionou os atos de comércio, como assim fizeram os códigos europeus. Todavia, logo em seguida à promulgação do Código, o Regulamento 737/1850 (art. 19), ao definir a competência dos processos de interesse dos comerciantes no Tribunal de Comércio do Império, enumerou os atos de comércio, próprios das atividades de mercancia:305

302 Leone Bolaffio, Diritto Commerciale, vol. I, Torino, Torinese, 1921, p. 7. 303 Alfredo Rocco, Princípios de Direito Comercial, cit., p. 259. 304 Rocco apresenta a seguinte classificação para os atos de comércio: a) atos de comércio pela sua natureza intrínseca ou ato de comércio constitutivos: a1) atos de interposição na troca das mercadorias, dos títulos, e dos prédios urbanos ou rústicos; a2) atos de interposição na troca de dinheiro contra dinheiro a crédito (operações bancárias); a3) atos de interposição na troca do trabalho (empresas); a4) atos de interposição na troca do risco (seguros); b) atos de comércio por conexão ou acessórios: b1) atos diretamente declarados comerciais pela lei, em virtude de sua conexão normal com o negócio comercial (operações de reporte em bolsas de valores; operações cambiárias; atos inerentes à navegação; depósitos em armazéns gerais); b2) atos cuja conexão com uma atividade comercial se presume; b3) atos cuja conexão com o negócio comercial carece de ser demonstrada (compra e venda de ações; conta corrente e cheques bancários; mandato e comissão mercantil). Princípios de Direito Comercial, cit., p. 257/258. 305 Com base nessa tipificação dos atos de comércio, Carvalho de Mendonça propôs a seguinte classificação: a) atos de comércio por natureza ou profissionais, são os “negócios jurídicos

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a) a compra e venda ou troca de efeitos móveis ou semoventes, para os vender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso; b) as operações de câmbio, banco e corretagem; c) as empresas de fábricas, de comissões, de depósito, de expedição, consignação e transporte de mercadorias e espetáculos públicos; d) os seguros, fretamentos, riscos, e quaisquer outros contratos relativos ao comércio marítimo; e) a armação e expedição de navios.

A relação dos atos de comércio compreende, sem embargo, o denominado sistema exemplificativo, na medida em que outras atividades podem ser consideradas mercantis, por analogia, como assim foi esclarecido por Alfredo Rocco, ao analisar a enumeração dos atos de comércio no Código Comercial italiano de 1882.306 Por isso, Rocco afirmava que “o problema do conteúdo do direito comercial é, portanto, um problema de direito positivo, pois que pertence precisamente à lei especial ou singular determinar quais as relações que ela pretende regular de um modo especial.”307

Tanto no sistema do Código francês de 1807, como no diploma brasileiro do Império de 1850, o comerciante, que podia ser varejista, atacadista, industrial, banqueiro, intermediário de negócios, era aquele que exercia atos de comércio, e assim tal matéria era definida como comercial ou mercantil. Logo, sendo matéria mercantil, submetia-se, como objeto de regulação, ao direito comercial. O direito comercial, nesse modelo, era o direito dos comerciantes e dos atos de comércio. A qualidade jurídica de comerciante era determinada pelo exercício dos atos de comércio, ficando a matrícula no registro do comércio relegada a plano secundário para efeitos de qualificação jurídica.

A figura do comerciante sempre esteve relacionada ao exercício de atividade mercantil, voltada, intrinsecamente, para a prática de atos de comércio, definidos pelo exercício da mercancia. O comerciante, na maioria dos sistemas jurídicos, era qualificado apenas em razão do aspecto material da atividade, do exercício dos atos

referentes diretamente ao exercício normal da indústria mercantil”, como típicos atos de mercancia, como a compra e venda mercantil, operações bancárias, as manufaturas e empresas de fábrica, de expedição, consignação e transporte de mercadorias; b) atos de comércio por dependência ou conexão, são aqueles praticados por comerciantes, derivados de atos ilícitos por efeito ou por dependência do exercício do comércio, como as ações de responsabilidade civil; c) atos de comércio por força ou autoridade de lei, são assim considerados comerciais “porque a lei assim quis, assim determinou”, independente de ser praticado por comerciante ou não, como as operações com títulos de crédito.” (Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit., p. 455; 460; 514; 521). 306 Alfredo Rocco, Princípios de Direito Comercial, cit., p. 193. 307 Alfredo Rocco, Princípios de Direito Comercial, cit., p. 190.

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de comércio de modo habitual e profissional, com o escopo lucrativo a compor o elemento finalístico da atividade. O comerciante, do mesmo modo que o antigo mercador, atuava e ainda atua dentro do ambiente físico de mercado, tendo como objeto de suas operações ou transações as mercadorias, atividade que é denominada de natureza mercantil. O transporte, que propicia a circulação desses bens e mercadorias, é designado, por isso mesmo, de mercante.

A fixação, em um só elemento principal ou denominador comum, a idéia de mercadoria (merx), cuja divindade grega protetora do comércio era o deus Mercúrio, evidencia que a atividade do mercador, desde sua origem, sempre esteve vinculada à produção e à troca de mercadorias, à prática da mercancia, no ambiente de mercado. Essa relação conceitual no mercado pode ser assim configurada: 308

Mercado

A mercadoria, móvel de troca, sempre representou elemento fundamental para a definição da atividade do comerciante, objeto próprio da mercancia. A mercancia, em sentido estrito, corresponde a todo esse processo de produção e circulação de

308 O mercado, ideia que hoje representa a reunião das empresas no espaço mundial, físico, virtual ou internacional, era antigamente caracterizado como um local específico, onde os mercadores reuniam-se, à luz do dia, na praça principal da cidade, para, ali, oferecer seus produtos e comercializar suas mercadorias, para o público em geral e para outros mercadores varejistas ou retalhistas. O objeto central dessas relações econômicas concentrava-se na mercadoria, bem móvel por excelência, como produto ou bem passível de troca no ambiente de mercado. O exercício dessa atividade de oferta e venda de mercadorias, no mercado, compreende a mercancia, função de troca com caráter profissional, e cujo conjunto de operações possui caráter ou natureza mercantil. Os auxiliares dos mercadores no exercício da função mercantil, eram designados como agentes auxiliares mercantes, como denominação característica, por exemplo, da marinha mercante.

Mercadoria

Mercador

Mercancia

Mercante

Mercantil

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coisas, bens e riquezas, em todos os níveis e tipos de especialização de coisas suscetíveis de serem ofertadas e negociadas no mercado.309 E essa idéia-força representada pela mercancia não poderia ser desconsiderada ou abandonada na qualificação jurídica dos profissionais do comércio. Em suma, jamais existirá comércio se esta atividade não tiver como centro de sua definição a produção e a circulação de mercadorias, ou seja, a mercancia, que representa a função mercantil no regime da economia de mercado.

Não obstante toda essa milenar construção histórica, a partir da concepção unitarista do Código italiano de 1942, a mercadoria vem a ser substituída pelo conceito mais amplo e genérico de bem, de coisa, móvel ou imóvel, que pode ser objeto de transação econômica em caráter profissional, própria dos comerciantes, como também entre pessoas que realizam tais negócios de modo esporádico e não habitual.

A idéia de mercadoria sempre constituiu elemento característico e definidor do objeto das operações econômicas dos comerciantes. Cabe, portanto, considerar e constatar que os atos de comércio, praticados pelos comerciantes, representam transações indissociadas da natureza mercantil dessas atividades. Em sentido estrito, o comércio compreende o setor terciário da economia, relativo às operações de aquisição de mercadorias para revenda ou para aluguel do uso. Comerciante típico seria aquele que adquire uma mercadoria com o objetivo de revendê-la no mercado.

Todavia, em sentido amplo, o comerciante pode atuar em todos os campos e esferas de comercialização, inclusive a partir do setor primário, da extração animal, vegetal ou mineral, quando o produto da exploração destinar-se ao mercado e o proprietário desses bens ou insumos tem como intenção primordial a venda dos produtos com a finalidade de obtenção de lucro. Assim, o pecuarista criador de gado que tem interesse em vender os seus animais para um abatedouro ou frigorífico, apesar de não ser juridicamente qualificado como comerciante, está praticando um ato de comércio a partir do momento em que explora essa atividade habitualmente e com intuito lucrativo.

309 Alberto Asquini, Perfis da Empresa, cit., p. 117.

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Ao recusar a natureza comercial da atividade do empresário, em substituição à antiga figura do comerciante, o Código Civil de 2002, caracterizando o empresário em razão, apenas, da forma da empresa, provocou grave problema terminológico, levando a doutrina a enfrentar sérias dificuldades para redefinir os conceitos fundamentais da matéria comercial.310 E essa foi a crítica principal de Rubens Requião, ao contestar a concepção artificial do direito de empresa, que não reconhece a natureza mercantil das atividades empresariais.311

A figura do empresário não representa, assim, mera substituição do comerciante como agente titular da empresa. Empresário ou empreendedor, em sentido amplo, é o capitalista que investe recursos com a finalidade de obter lucros através da exploração direta da empresa. A empresa reflete a atividade econômica em si, que depende da pessoa do empresário para o seu exercício. O comerciante, por sua vez, desempenha a mesma atividade, mas o elemento dominante do seu conceito reside no objeto da atividade, na mercancia, e não no instrumento desse exercício, a empresa.

Sob o regime dogmático e exclusivista do Código de 2002, a antiga figura do comerciante foi banida do nosso direito positivo: simples e formalmente, não existe mais. A partir desse marco, o exercício de atividade econômica, de natureza comercial ou não, passa a ser desempenhada pelo empresário, titular de firma individual (art. 966), de EIRELI (art. 980-A), ou por sociedade empresária (art. 982).312

310 “A distinção entre empresa mercantil e não mercantil, se existir, dependerá de se manterem os pilares, agora bastante fragilizados, em que se apoiava a distinção entre mercantil e não mercantil, basicamente a intermediação na circulação da riqueza feita profissionalmente, a transformação de bens para pô-los em circulação; em resumo, exercer atividades tipicamente reconhecidas como mercantis e em mercados, além das auxiliares e necessárias para o fluxo da riqueza mobiliária” (Rachel Sztajn, Teoria Jurídica da Empresa, cit., p. 135). 311 Segundo Rubens Requião, “não diz o Projeto que a empresa, ou melhor o empresário, pode ser civil ou comercial. Para os seus autores a expressão “comercial” é tabu diante da preocupação unificadora, como já tivemos oportunidade de registrar. O fato, porém, é que teremos na linguagem comum do mercado o “empresário comercial” e o “empresário civil”. Empresário civil é precisamente aquele definido no art. 1.001 (art. 966 do Código de 2002, n.a.), parágrafo único: “Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”. (Projeto de Código Civil - Apreciação Crítica sobre a Parte Geral e Livro I - Das Obrigações, São Paulo, Revista dos Tribunais, nº 477, 1985, p. 12). 312 Código Civil de 2002 - Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples,

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O comerciante, ainda assim, permanecerá, na prática e nos usos mercantis, sendo merecedor de tal definição e qualificação. Todavia, juridicamente, a figura do comerciante desapareceu na concepção do sistema civilista do regime do direito de empresa.313

De acordo com a redação do art. 966 do Código Civil, a definição técnica de empresário está circunscrita ao titular da firma ou empresa individual. Ele exerce sua atividade profissional, sem a participação de outras pessoas na formação do capital e na divisão dos resultados ou das perdas. A partir do surgimento da empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI (CC, art. 980-A inserido pela Lei 12.441/2011), o titular dessa forma de organização também pode ser chamado de empresário, como empresário de responsabilidade limitada. A doutrina, ao analisar essa nova figura da EIRELI, denomina seu titular como empreendedor individual, criando, assim, nova terminologia, separada da figura do empresário.314

O exercício de atividade econômica de modo coletivo, através de duas ou mais pessoas como prestadoras de capital, preenchendo o requisito da pluripessoalidade, seria característico da assim denominada sociedade empresária. Nesse contexto coletivo, o empresário ou titular da empresa seria a própria sociedade, e não as pessoas físicas que a integram na condição de sócios ou acionistas. Os sócios que controlam o capital e exercem os poderes de administração, representação e gestão da sociedade são referidos, pelo Código Civil, simplesmente, como administradores (CC, artigos 47, 50, 1.011 a 1.020, 1.022, 1.036, 1.061 a 1.064).

Na opinião de Fábio Ulhoa Coelho, os sócios majoritários ou acionistas controladores, responsáveis pela administração e condução dos negócios da empresa, não devem ser qualificados juridicamente como empresários, vez que a

as demais. Parágrafo único. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa. 313 Para Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, em face do desaparecimento da figura do comerciante, “no atual Direito Brasileiro, “empresário” e “empresário comercial” passaram a ser termos sinônimos, exceto no que diz respeito ao empresário rural, que originariamente exerce sua atividade no campo do Direito Civil”. (Curso de Direito Comercial, São Paulo, Malheiros, vol. 1, 2004, p. 164). 314 Apesar do título da sua obra, Paulo Leonardo Vilela Cardoso refere-se ao titular da EIRELI como empreendedor, não como empresário. (O empresário de responsabilidade limitada, São Paulo, Saraiva, 2012, p. 65, 83, 84). Carlos Henrique Abrão utiliza ambas as expressões para designar o titular da EIRELI, ora como empreendedor individual, ora como empresário individual (Empresa individual - EIRELI, São Paulo, Atlas, 2012, p. 48,49,53, 57, 59).

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exploração da atividade da empresa é realizada pela pessoa jurídica da qual os sócios fazem parte, de tal modo que “a expressão empresa designará a atividade, e nunca a sociedade”.315 Os sócios ou acionistas administradores da sociedade empresária, nesse contexto, devem ser designados “empreendedores”.316

Consequentemente, a expressão empresário deve ser entendida de modo específico, abrangendo tanto o empresário individual, pessoa física ou natural, como o empresário pessoa jurídica, representado como sendo a sociedade empresária, designação estranha e diferente introduzida pelo Código Civil de 2002 (art. 982).317 Essa colocação decorre, sem embargo, de preciosismo tecnicista, ao não considerar a sociedade empresária como empresa, nem seus administradores como empresários.318 Na designação genérica de empresa, todavia, esta deve abranger não apenas o empresário titular da firma individual, mas também a forma da empresa coletiva, isto é, a sociedade.319

315 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., pág. 64. 316 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., pág. 24. 317 Observa Fábio Ulhoa Coelho que “a pessoa jurídica empresária é cotidianamente denominada “empresa”, e os seus sócios são chamados “empresários”. Em termos técnicos, contudo, empresa é a atividade, e não a pessoa que a explora; e empresário não é o sócio da sociedade empresarial, mas a própria sociedade. É necessário, assim, acentuar, de modo enfático, que o integrante de uma sociedade empresária (o sócio) não é empresário; não está, por conseguinte, sujeito às normas que definem os direitos e deveres do empresário”. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 78/79). 318 Sob a concepção estritamente tecnicista, não seria então correto afirmar: “Antonio Ermírio de Moraes foi um grande empresário brasileiro”. Mas o empresário, nesse conceito restritivo, seria a sociedade (S.A. Indústrias Votorantim) que ele controlava e representava. Não seria também correto dizer: “Steve Jobs foi um empresário visionário”, mas sim “a Apple Corporation é uma empresária visionária”. No mínimo, tal interpretação soa contraditória e carente de lógica para a compreensão leiga daquelas pessoas, sócios controladores ou dirigentes, que fazem a empresa: o próprio empresário. Bastante apropriada era a opinião do jurista suíço Walther Munzinger, que elaborou o projeto de Código Comercial da Suíça de 1864, quando este afirmava que “as disposições da lei comercial não devem ser para o comerciante hieróglifos somente decifráveis sob o dedo do jurisconsulto.” (Motifs du project de code de commerce suisse, apud Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit. p. 429). 319 Apenas em sentido estrito, a empresa, como atividade, não se confunde com a sociedade, que representa a forma da empresa. Esses conceitos são tecnicamente diferentes, na medida em que a empresa somente existe quando estiver, de fato, desempenhando o seu objeto mercantil a partir do capital aplicado. Como adverte Sérgio Campinho, “poderá existir sociedade sem empresa, ainda que seu objeto compreenda atividade própria de empresário, bastando, para isso, que seus atos constitutivos sejam inscritos na Junta Comercial sem, de fato, entrar em atividade, deixando de exercer a exploração do objeto”. (O Direito de Empresa à luz do novo Código Civil, cit., p. 14). No mesmo sentido, Rubens Requião, ao considerar que, apesar de formalmente constituída, enquanto a sociedade “estiver inativa, a empresa não surge”. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 61).

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No Código Comercial de Portugal de 1888, até hoje em vigor, este prescreve, de modo direto e objetivo, que são comerciantes (art. 13):

“1. As pessoas que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão;

2. As sociedades comerciais.”

O comerciante, para o direito português, desde essa época, portanto, pode ser tanto a pessoa natural como a pessoa jurídica. De acordo com os comentários de Antonio Menezes Cordeiro a esse dispositivo, “as sociedades que tenham por objeto a prática de atos comerciais assumem uma das formas tipificadas no Código de Sociedades Comerciais (CSC) e são comerciantes”.320

No seu sempre citado ensaio Perfis da Empresa, Alberto Asquini entendia que, a partir da análise do art. 2.082 do Código Civil italiano, empresário é “quem exerce, isto é, o sujeito de direito (pessoa física ou jurídica, pessoa jurídica privada ou pública) que exerce em nome próprio” atividade econômica organizada.321 Assim, a pessoa jurídica seria, ela mesma, a empresária, como sujeito de direito, representada por seus órgãos sociais dirigentes, integrados por pessoas físicas. E são essas pessoas físicas, naturais, de “carne e osso”, aquelas que decidem, coordenam e respondem, de fato e concretamente, pela sociedade comercial.

Da análise desse dispositivo constante do art. 2.082 do Código de 1942, bem como de outros que o seguem, não é possível extrair, diretamente, a afirmação de que o empresário, além de ser caracterizado como pessoa física ou natural, é também definido como pessoa jurídica. Contudo, em sentido diverso, o art. 2.086 do Código Civil italiano enuncia, ao tratar da direção e da hierarquia na empresa, que “L'imprenditore è il capo dell'impresa e da lui dipendono gerarchicamente i suoi collaboratori”.322 Bem, cada empresa, sob tal orientação, somente pode ter uma cabeça, um único chefe dirigente (capo). Dessa norma expressa, decorre a conclusão de que não pode ser cabeça ou chefe da empresa, no sentido exato da expressão, a

320 Antonio Menezes Cordeiro, Direito Comercial, Coimbra, Almedina, 3ª edição, 2012, p. 276. 321 Alberto Asquini, Perfis da Empresa, cit., p. 114. 322 Código Civil da Itália de 1942 – Art. 2.086. O empresário é o cabeça da empresa, e dele dependem hierarquicamente os seus colaboradores.

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pessoa jurídica, criação artificial do direito, ainda que considerada, para determinados efeitos, ente equiparado à pessoa natural.

A pessoa jurídica, como assim exposta na teoria clássica de Savigny, era considerada como ficção do direito, criação artificial do Estado, ele mesmo uma “pessoa jurídica por excelência”.323 A pessoa jurídica consiste em uma ficção jurídica porque somente existe “por determinação da lei e dentro dos limites por ela fixados.”324

Como ficção do direito, a pessoa jurídica não tem existência concreta, como o ser humano, por isso é uma pessoa moral, incorpórea, no dizer de Bevilaqua.325 No direito romano, apenas a pessoa podia ser sujeito de direito, aplicando-se, especialmente no direito penal, o brocardo “societas delinquere non potest”.326

A doutrina sempre considerou, todavia, a partir da lei, em alguns casos, e da interpretação extensiva, em outros, que comerciante ou empresário tanto pode ser a pessoa física (firma individual) como a pessoa jurídica (sociedade comercial ou empresária). Em sentido geral, como afirma Fábio Ulhoa Coelho, o empresário é uma pessoa, e “essa pessoa pode ser tanto a física, que emprega seu dinheiro e organiza a empresa individualmente, como a jurídica, nascida da união de esforços de seus integrantes.”327

323 Clóvis Bevilaqua, Teoria Geral do Direito Civil, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 7° edição, 1955, p. 172. 324 Friederich Karl Von Savigny, Droit Romain, § 85, apud Clóvis Bevilaqua, Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 154. 325 Sobre a ideia de pessoa jurídica, pontifica Clóvis: “Assim, naturalmente, se constituem dois gêneros de pessoas: as corpóreas ou físicas e as morais ou jurídicas. Umas e outras são igualmente reais; a distinção está em que umas são dotadas, naturalmente, de razão, ao passo que, às outras, a racionalidade é parcialmente adquirida, mediante um arranjo especial do homem; umas recebem o seu organismo da própria natureza, ao passo que as outras conseguem a forma orgânica, porque as penetra a natureza humana. (...) A pessoa jurídica não é um homem fictício mas pessoa real “criada pela ordem jurídica”. A noção de pessoa é mais extensa do que a de homem”. (Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 170). 326 A sociedade, no direito romano clássico, não era pessoa de direito porque existia apenas em razão e vinculada à vontade de seus sócios. Institutas de Justiniano: Livro Terceiro - Título XXV, Da Sociedade: “A sociedade dura enquanto os sócios permanecerem de acordo; no momento em que um deles a renunciar, a sociedade se dissolve” (§ 4º); “A sociedade se dissolve também no caso de morte do sócio, pois aquele que celebra uma sociedade escolhe para si uma determinada pessoa.” (§ 5º). (Flavius Petrus Sabbatius Justinianus, Institutas do Imperador Justiniano, cit., p. 174). 327 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 78.

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Adotam o mesmo entendimento Ricardo Negrão,328 Haroldo Malheiros Duclerq Verçosa,329 Sérgio Campinho330 e Luiz Antonio Soares Hentz.331

Alguns doutrinadores italianos consideram imprópria a expressão empresário coletivo, ou pessoa jurídica como empresária, a exemplo de Francesco Ferrara Junior e Francesco Corsi.332 Outros comercialistas, como Francesco Galgano e Walter Bigiavi,333 apontaram a incongruência terminológica de designar como empresário a pessoa jurídica, porque a sociedade não tem a atividade econômica como profissão, como exercício profissional, o que seria próprio e exclusivo, apenas, da pessoa natural.

Segundo Tullio Ascarelli, o que qualifica o empresário, elevado a “conceito central” na sistemática do Código Civil italiano de 1942, é uma atividade econômica, “assim como uma atividade econômica também qualificava o comerciante”. Desse modo, “é a natureza (e o exercício) da atividade que qualifica o empresário (e não, ao contrário, a qualificação do sujeito que determina a atividade)”.334 O que importa, para Ascarelli, é o conceito de atividade, considerando que a doutrina tradicional, “na refinada elaboração dos conceitos de ato e negócio jurídico, tem negligenciado a

328 “Relativamente à forma que reveste o exercício da atividade empresarial, os empresários podem ser classificados em individuais e coletivos, sendo os primeiros os que exercem sua atividade debaixo de uma firma individual e os coletivos os que a praticam por meio de uma sociedade empresária”. (Ricardo Negrão, Manual de Direito Comercial e de Empresa – Teoria Geral da Empresa e Direito Societário, São Paulo, Saraiva, vol. 1, 8ª edição, 2011, p. 71). 329 “O empresário é o titular da empresa, pessoa natural ou jurídica. É quem assume o risco da atividade para o bem (proveito dos lucros) ou mal (prejuízos causados a terceiros).” (Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 155). 330 “Podemos conceituar empresário, genericamente falando, como a pessoa física ou jurídica que exerce profissionalmente (com habitualidade e escopo de lucro) atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços no mercado”. (Sérgio Campinho, O Direito de Empresa à luz do Novo Código Civil, cit., p. 14). 331 “Empresário é gênero do qual empresário individual e sociedade empresária são espécies”. (Luiz Antonio Soares Hentz, Direito de Empresa no Código Civil de 2002 – Teoria Geral do Novo Direito Comercial, São Paulo, Juarez de Oliveira, 3ª edição, 2005, p. 72). 332 “A qualidade de empresário comercial deriva do exercício de uma empresa comercial, sendo que qualquer um que exercita uma empresa comercial é empresário comercial”, podendo “tratar-se de uma pesoa física e então tem o empresário individual, ou tratar-se de um ente e então se fala (impropriamente) de empresário coletivo”. (Francesco Ferrara Junior, atualizado por Francesco Corsi, Gli Imprenditori e Le Società, cit., p. 57/58). 333 Francesco Galgano, Delle associazioni non riconosciute e dei comitati, Art. 36-42, Collana Commentario del Codice Civile, Commentario del Codice Civile a cura di Antonio Scialoja e Giuseppe Branca, Bologna, Zanichelli Editore, Prima edizione, 1967, p. 113; Walter Bigiavi, La professionalità dell’imprenditore, Padova, Cedam, 1948, p. 86. 334 Tullio Ascarelli, O empresário, tradução de Fábio Konder Comparato, in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo, Malheiros, nº 109, janeiro-março 1998, p. 183.

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elaboração do conceito de atividade”, principalmente porque o conceito de atividade é bem mais relevante na “avaliação jurídica dos fenômenos próprios de uma economia caracterizada pela produção industrial de massa”.335

Na concepção de Ascarelli, “atividade não significa ato, mas série de atos coordenáveis entre si, em função de uma finalidade comum.”336 O sujeito da atividade é, para Ascarelli, o sujeito dos atos singulares que constituem ou representam essa atividade. Em princípio, esse sujeito é sempre a pessoa física, porque é a pessoa humana que coordena os fatores de produção, ou seja, é aquele que “correndo o risco e tendo o poder, organiza a atividade econômica e dela tira lucro.”337

Somente demonstra-se correto denominar de empresário a pessoa jurídica quando for para efeito de “falar de uma responsabilidade jurídica e de uma imputação jurídica, mas não de uma incidência econômica de risco”, porque essa característica essencial ou será dos sócios, sobre os quais recaem os efeitos econômicos, ou do empresário pessoa física que tem a iniciativa de criar, aviar e fomentar a empresa, ato de vontade que “efetivamente, será sempre dos homens e não das pessoas jurídicas”.338

Toda a teoria da empresa está assentada na existência de uma organização representada pelo estabelecimento empresarial. Ainda que o artigo 1.142 do Código Civil de 2002 faça menção de que o estabelecimento é o complexo de bens organizado por empresário ou sociedade empresária, a responsabilidade por essa organização recai, exclusivamente, sobre a pessoa física do empresário, sócio ou acionista que teve a iniciativa volitiva de criação da empresa. É o que a doutrina, à frente Mario Rotondi, denominou de aviamento subjetivo ou pessoal, atributo personalíssimo, que deriva da pessoa e do “prestígio” do titular “como qualidades do sujeito (o trabalho, a lhaneza, a correção, a capacidade)”, em indissolúvel união.339

335 Tullio Ascarelli, O empresário, cit., p. 183. 336 Tullio Ascarelli, O empresário, cit., p. 185. 337 Tullio Ascarelli, cit., p. 185. 338 Tullio Ascarelli, O empresário, cit., p. 185. 339 Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 174.

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Não se revela cientificamente correto, muito menos lógico, classificar o empresário em pessoa física e pessoa jurídica, como se fossem espécies do mesmo gênero. A pessoa jurídica, como empresário, é também uma ficção jurídica, com características bem diferenciadas do empresário pessoa física.340 Essa classificação somente pode ser adotada com relação, estritamente, ao sujeito da atividade empresarial, na subdivisão entre empresário individual e empresário coletivo.

Podemos extrair dos ensinamentos de Ascarelli que o sujeito da atividade empresarial pode ser tanto a pessoa física como a pessoa jurídica, centro de imputação de direitos e obrigações,341 mas a iniciativa e o risco econômico “são, necessariamente, tão-só das pessoas físicas”.342 Assim, enquanto nas pessoas jurídicas a qualificação do sujeito decorre do seu escopo, ou seja, do objeto econômico da atividade,343 no caso das pessoas físicas o elemento de qualificação é personalíssimo e inerente à pessoa física do empresário e sócios, relacionado aos pressupostos da iniciativa e do risco, bem como do elemento organizacional.

Portanto, empresário pessoa física e empresário pessoa jurídica somente podem ser considerados como espécies do mesmo gênero empresário, isto como classificação restritiva, stricto sensu.

No regime do direito de empresa, ordenado a partir das normas gerais do Código Civil de 2002, bem como da legislação comercial supletiva e complementar, em especial no campo societário, o empresário deve ser classificado, em primeiro grau, segundo seus aspectos material e formal. O elemento material é aquele determinado pela atividade e pelo sujeito que a exercita, como entendido com base

340 Destacando que somente a pessoa natural exerce a sua vontade, e não a pessoa jurídica através da qual a vontade da pessoa física se manifesta, José de Oliveira Ascensão esclarece: “Não tem interesse a teoria orgânica de Gierke, para quem a pessoa colectiva seria um organismo real, com vontade e outros atributos. Unidade orgânica são só os seres vivos. A pessoa colectiva é uma unidade de ordem ou de relação, só apreensível no plano intelectual.” Direito Civil – Teoria Geral, vol. 1, Coimbra, Coimbra Editora, 2ª edição, 2000, p. 229. 341 “Eis porque me parece impossível referir a subjetividade da atividade a quem não seja sujeito dos atos dos quais resulta a mesma atividade, e sujeito (juridicamente) dos atos (dos quais resulta a atividade) é aquele que, com base nesses, adquire direitos e assume obrigações, independentemente da iniciativa (que, por exemplo, poderá vir do representante e não do representado, embora sendo o representado quem adquire direitos e assume obrigações), ou também do risco econômico (que, no caso concreto, poderá ser de outrem).” (Tullio Ascarelli, O empresário, cit., p. 185). 342 Tullio Ascarelli, O empresário, cit., p. 185. 343 Tullio Ascarelli, O empresário, cit., p. 186.

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nas lições de Ascarelli. O elemento formal refere-se à designação legal do titular da empresa conforme o tipo ou espécie de organização empresarial. Podemos adotar, então, a classificação como proposta no esquema abaixo:

Sentido estrito Aspecto material sujeito da atividade

Empresário Sentido lato Aspecto formal denominação legal

Sob o aspecto material, empresário, em sentido estrito, pode ser subdividido, quanto ao sujeito, em empresário pessoa física (titular de firma individual ou EIRELI), e empresário pessoa jurídica (sociedade empresária):

Firma individual Pessoa física EIRELI Empresário como sujeito (Sentido estrito) Pessoa jurídica Sociedade empresária

Em sentido lato, pode designar-se empresário toda pessoa física ou natural responsável pela organização e pela assunção do risco econômico: empresário é aquele que tem a iniciativa de constituir a empresa e organizar os fatores de produção, individual ou coletivamente, assumindo os riscos da exploração. Empresário genericamente considerado é o detentor do aviamento subjetivo do estabelecimento, de caráter personalíssimo, que transfere seus atributos pessoais, sua capacidade, conhecimento, habilidades, vocação, tino comercial, para os elementos objetivos do mesmo estabelecimento,344 características que somente se revelam na pessoa jurídica de modo indireto ou reflexo.

Sob o aspecto formal, o empresário pode ser classificado e assim designado de acordo com a tipologia da empresa, como no vigente direito brasileiro:

a) Empresário individual (CC, art. 966); b) Empresário titular de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI

(CC, art. 980-A);

344 Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 174.

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c) Microempreendedor Individual – MEI (Lei Complementar 123/2006, art. 18-A); d) Sócio Administrador de sociedade limitada (CC, art. 1.060); e) Acionista Controlador (Lei 6.404/1976, art. 116) e Acionista Administrador ou

Diretor Acionista (Lei 6.404/1976, art. 138) de sociedade anônima; f) Sócio Comanditado de sociedade em comandita simples (CC, art. 1.045) ou em

comandita por ações (Lei 6.404/1976, art. 282).

Outros critérios de classificação são também adotados pela doutrina para melhor definir e caracterizar o empresário, como em relação à situação de regularidade jurídica (empresário regular e empresário irregular),345 quanto à natureza da atividade (empresário comercial e empresário rural), ou quanto ao porte da empresa (pequeno, médio e grande empresário),346 aspectos que serão abordados mais adiante neste estudo.

O empresário pode ser definido, portanto, em sentido amplo, como toda pessoa física que, aplicando capital próprio em uma exploração econômica, organiza e dirige a empresa, seja esta empresa individual, EIRELI ou sociedade empresária.

Apesar do Código Civil de 2002, por inferência do art. 968, definir como empresário a pessoa física, revela-se contraditório negar aos controladores e administradores de sociedades empresárias o qualificativo de empresário lato sensu. Essa tendência de ampliar o conceito de empresário resulta de uma perspectiva histórica, segundo Fábio Konder Comparato, ao considerar que “o Direito Comercial fixado nas codificações do séc. XIX não distinguia o capitalista do empresário”, e assim geralmente se confundiam na mesma pessoa a noção a respeito do comerciante individual e a dos sócios nas sociedades mercantis.347

Na perspectiva econômica ou na linguagem de mercado, sempre se considerou como empresário o sócio ou acionista capitalista,348 a pessoa que investe capital na atividade produtiva, como cabeça da empresa. Condição essencial para o exercício dessa atividade eminentemente técnica é a organização dos fatores de produção, dos

345 Sérgio Campinho, O direito de empresa à luz do novo Código Civil, cit., p. 15. 346 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 90/91. 347 Fábio Konder Comparato, Direito Empresarial, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 17. 348 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 76.

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bens materiais e imateriais reunidos em um todo dotado de logicidade e adaptado à exploração de determinado ramo de negócio.

O grau de organização e especialização da empresa será sempre proporcional à complexidade do objeto do negócio, podendo variar desde uma pequena mercearia de bairro, explorada sob a forma individual de uma microempresa, até uma grande companhia siderúrgica de capital aberto, com milhares de acionistas, como assim diferenciava Fábio Konder Comparato.349 Em ambas as situações, podemos considerar que será empresário tanto aquele que explora um pequeno negócio, como também o acionista controlador da grande empresa com poderes de administração da companhia. O que importa, para essa concepção, é o exercício da atividade econômica de exploração mercantil, não a forma estrita ou o porte da empresa, como assim também entende a jurisprudência dominante, que considera empresário, em sentido lato, qualquer pessoa responsável por atividade empresarial.350

349 Fábio Konder Comparato, A Reforma da Empresa, cit., p. 60. 350 “É possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica sempre que o cônjuge ou companheiro empresário valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, a fim de subtrair do outro cônjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva”. (STJ, 3ª Turma, REsp 1.236.916/RS, Relatora Nancy Andrighi, DJe 28/10/2013). “Proibir o registro e a utilização da marca "classificadas amarelas", segundo a pretensão da recorrente, prejudicaria a livre concorrência, pois a recorrida e, de maneira reflexa, todos os demais empresários que comercializam anúncios em folhas de cor amarela teriam grandes dificuldades para inserirem seus produtos no mercado, uma vez que a expressão "amarelas" designa característica essencial do objeto comercializado”. (STJ, 4ª Turma, REsp 1.107.558/RJ, Relator Marco Buzzi, DJe 06/11/2013). “Na relação mercantil existente entre o hospital e as operadoras de planos saúde, os contratantes são empresários - que exercem atividade econômica profissionalmente -, não cabendo ao consumidor arcar com os ônus/consequências de eventual equívoco quanto à gestão empresarial”. (STJ, 4ª Turma, REsp 1.324.712/MG, Relator Luis Felipe Salomão, DJe 13/11/2013).

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4.3. Conceito de empresário

O artigo 966 do Código Civil de 2002, ao abrir o Livro II da Parte Especial, do Direito de Empresa, define como empresário “quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”, conceito nuclear, básico, do direito empresarial.

Como elemento essencial e caracterizador do empresário, Rubens Requião considera que o empresário é a pessoa que cria, ou seja, que tem a iniciativa para a constituição da empresa e assume o risco da exploração comercial.351 A iniciativa e o risco, assim, constituem dois elementos integrantes do núcleo comum determinante, em primeiro plano, da configuração do empresário. O terceiro elemento que se destaca na caracterização do empresário refere-se à organização dos fatores de produção, a partir do capital destinado à exploração econômica. Cabe ao empresário, e somente a ele, decidir sobre o modo de destinação do capital e da organização dos fatores de produção, a escolha do tipo, ramo ou objeto da empresa, da seleção dos bens materiais, das criações intelectuais que passarão a ser as características do estabelecimento, reunidas em torno do seu aviamento.

Na decomposição do conceito de empresário constante do art. 966 do Código Civil, é possível distinguir cinco aspectos que evidenciam a ideia de empresário: o modo do exercício, a função, a natureza, a disposição e o objeto da atividade empresarial. A análise isolada, mas aprofundada, de cada um desses aspectos, permite-nos compreender melhor a figura do empresário.

O modo do exercício é o profissional. Aquele que desempenha atividade empresarial faz dela sua profissão: exerce-a com profissionalismo. O caráter profissional significa que o empresário tem na atividade sua principal ocupação e

351 “O poder de iniciativa pertence-lhe exclusivamente: cabe-lhe, com efeito, determinar o destino da empresa e o ritmo de sua atividade. (...) Compensando o poder de iniciativa, os riscos são todos do empresário: goza ele das vantagens do êxito e amarga as desventuras do insucesso e da ruína”. (Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 77).

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também a fonte primária para o seu sustento e da sua família. A profissão importa na dedicação exclusiva ou quase exclusiva a uma atividade, com caráter de habitualidade e permanência.352

Para o exercício do comércio, faz-se necessário um grau elementar de conhecimentos e habilidades específicas. Com efeito, a lei não exige do empresário um grau de instrução mínimo, por não se tratar de profissão técnica ou científica regulamentada. Não sendo profissão regulamentada, seu exercício é livre e acessível a qualquer pessoa. O enquadramento do empresário como profissional resulta, todavia, do exercício regular e formal da atividade empresarial, conforme assim venha a ser reconhecido e conferido pela Junta Comercial, órgão também responsável pela expedição da carteira de exercício profissional.353

A função refere-se à atividade em si, à realização de atos próprios e concretos dirigidos a determinado fim, executados pelo empresário, por si e por seus prepostos e colaboradores escolhidos, orientados e remunerados por ele, como titular da empresa.

A atividade compreende a execução constante, repetida e especializada de uma série de atos e negócios de conteúdo e efeitos jurídicos, dentro da esfera profissional do empresário que a realiza. Enquanto o empresário dispuser de recursos produtivos e utilizar seu capital na execução do seu objeto, podemos afirmar que existe empresa, como ente dinâmico. Esgotadas as fontes de recursos e cessada a atividade de aplicação e reprodução do capital, a empresa tende, inevitavelmente, a desaparecer.

A natureza da atividade do empresário é econômica, ou seja, reúne de modo simultâneo a produtividade, a onerosidade e a lucratividade como elementos próprios,

352 Ensinava Waldemar Ferreira sobre o caráter profissional do comerciante: “O exercício habitual do comércio, a profissão mercantil, entretanto, como tem sido esclarecido em mais de um passo, não se constitue por um ou mais atos, praticados isolada e acidentalmente; é preciso sejam eles suficientemente ligados, frequentes e repetidos. Enquanto isso não acontece, elabora-se, mas não se caracteriza, a qualidade do comerciante: ela não é inata, resulta da prática habitual e profissional de atos mercantis”. (Tratado de Direito Mercantil Brasileiro, vol. I, O comerciante, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 2ª edição, 1948, p. 44). 353 Lei 8.934/1994 – “Art. 8º. Às Juntas Comerciais incumbe: (...) V - expedir carteiras de exercício profissional de pessoas legalmente inscritas no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins”;

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específicos. Toda atividade econômica tem função produtiva e reprodutiva, ao agregar produtos, bens e serviços, necessários ao ciclo desenvolvimentista, de sustentabilidade ou para responder às demandas de consumo da população.354

A produção, como medida ou política de desenvolvimento, equilíbrio e paz social, é realizada pelas empresas privadas no regime da economia de mercado, não pelo Estado. Quem produz são as empresas, organizadas, representadas e dirigidas por empresários. A produção é onerosa, representa um custo, que será determinante para o cálculo do preço dos produtos que serão colocados no mercado. O dinheiro é o meio da atividade econômica, que sempre será onerosa, e a resultante da relação custo e preço será determinada pelo lucro do empresário na exploração da empresa.355

O empresário é, também, o responsável pela disposição dos fatores de produção na empresa, ou seja, pela organização desses elementos essenciais para a existência da empresa, representados pelo capital, recursos humanos, recursos materiais e tecnologia.

O aviamento ou a capacidade da empresa gerar lucros depende, essencialmente, do modo como o empresário vai dispor e organizar esses fatores de produção, decorrente de suas aptidões, conhecimento técnico, habilidades, ou de outros fatores subjetivos e culturais, como a vocação empresarial ou tino comercial para o exercício da profissão de titular de empresa.

354 Segundo Ascarelli, é a atividade que caracteriza o empresário, diversamente do antigo conceito de comerciante, ao afirmar que “é pois, a natureza (e o exercício) da atividade a que qualifica ao empresário (e não, pelo contrário, a condição de sujeito a que depois qualifica a atividade) e nesta prioridade da atividade exercida aos fins da qualificação do sujeito pode ficar de relevo a persistência de um elemento objetivo, como critério de aplicabilidade da disciplina especial ditada precisamente para a atividade e para quem a exerce”. (Iniciação ao Estudo do Direito Mercantil, cit., p. 178). 355 Fábio Ulhoa Coelho define o direito comercial como direito-custo, ou seja, o seu estudo científico exige a análise dos componentes econômicos que diretamente interferem no exercício da empresa, como assim preleciona: “Para definir o preço dos produtos e serviços que fornece ao mercado, o empresário realiza um cálculo cada vez mais complexo, que compreende o preço dos seus insumos, a mão de obra, os tributos, a margem de lucro esperada e também as contingências”. Em razão desse racionalismo econômico, o direito comercial representa um direito-custo, expresso pelas “normas jurídicas cuja aplicação interfere com os custos da atividade empresarial”, e que, desse modo, estabelecem “obrigações que o empresário deve internalizar em sua empresa, isto é, levar em conta no momento de calcular e fixar os preços de seus produtos ou serviços”. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 51-54).

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O objeto ou finalidade dessa organização, na lição de Buonocore, “consiste na criação de um aparato produtivo estável formado por pessoas e por bens instrumentais para atingir um objetivo econômico relacionado a uma dada atividade produtiva”.356 A organização integra o próprio conceito de empresário porque somente pode existir empresa como atividade organizada se os fatores de produção forem dispostos de modo lógico, funcional, com cada elemento, material ou imaterial, cumprindo o seu papel estruturante. Essa organização refere-se ao modo como os recursos humanos, materiais, tecnológicos e operacionais serão dispostos para que a empresa cumpra o seu objetivo de produzir ou comercializar bens ou serviços no mercado, visando o lucro como meta final e pressuposto de continuidade.

Cabe ao empresário, pois, diretamente ou com o concurso de terceiros, sócios, colaboradores, prepostos, trabalhadores, assessores, consultores, etc., estruturar e organizar os fatores de produção para a operação do negócio, a partir do capital investido e com base nas estratégias e metas por ele definidas, de acordo com o porte da empresa, do ramo de atividade e das particularidades levantadas no mercado e dos concorrentes em potencial.

Por último, o objeto da missão profissional do empresário, através da sua empresa, é a produção ou circulação de bens ou de serviços, a função econômica por natureza própria. O empresário pode ser produtor de bens, ou industrial, cuja empresa tenha por objeto a transformação de matérias primas em produtos acabados, dirigidos ao mercado manufatureiro, como insumos ou bens de capital, ou para atender às demandas difusas do mercado de consumo.

O objeto da atividade do empresário pode ser a circulação ou comercialização de bens, a aquisição de bens para revenda, no atacado ou no varejo. O objeto pode ser também a prestação de serviços, que não podem ser produzidos nem tampouco circulam, ao contrário do que induz a definição do art. 966 do Código Civil. A atividade de serviço é objeto de prestação, de execução, de obrigação de fazer, não da obrigação de dar coisa certa, como a de comércio. Todavia, a prestação de serviços pode ser conjugada com a venda de bens, como na assistência técnica ou nos

356 Vincenzo Buonocore, L’Impresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 119.

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serviços de manutenção. Também pode ser resultante de produção realizada concomitante com serviços, característica da indústria da construção civil. De todo modo, seja como objeto de indústria, de comércio ou de prestação de serviços, o empresário tem numa dessas atividades o escopo da sua atuação profissional, através da empresa. 357

Os principais aspectos que devem ser destacados na relação entre a empresa e seu empresário, assim detalhados por Auletta e Salanitro, a partir da análise do art. 2.082 do Código Civil italiano, norma matriz, são os seguintes: 358

a) empresa significa o exercício de atividade, e atividade é um conjunto de atos que são desempenhados e sujeitos a disciplina particular;

b) a atividade da empresa deve ser econômica, destinada à produção e circulação de bens ou à prestação de serviços;

c) a atividade econômica deve ser exercitada profissionalmente, isto é, de modo habitual;

d) a atividade econômica deve ser organizada, de tal modo que possam ser destacados elementos mínimos representativos dessa organização, como a presença de colaboradores na empresa;

e) o fim da atividade de produção e circulação de bens e de prestação de serviços deve ter como destinação o mercado de empresas e de consumo;

f) a atividade da empresa tem necessariamente escopo lucrativo; e

357 Na decomposição dos elementos extraídos do art. 2.082 do Código italiano de 1942, Francesco Ferrara Junior e Francesco Corsi destacam como características essenciais na definição de empresário: a) o exercício de atividade econômica com a finalidade de produção ou circulação (troca) de bens ou de serviços; b) que essa atividade seja organizada; e c) desempenhada de modo profissional. (Gli Imprenditori e Le Società, cit., p. 28). Do mesmo modo que Ferrara Junior e Corsi comentaram com base no Código italiano de 1942 (art. 2.082), Sylvio Marcondes Machado, relator do livro do direito de empresa do Código Civil de 2002, repetia que, no conceito do art. 966 do Código Civil, conjugam-se esses três elementos para formar a noção de empresário: “Em primeiro lugar, trata-se de atividade econômica, isto é, atividade referente à criação de riquezas, bens ou serviços. A economicidade da atividade está na criação de riquezas; de modo que aquele que profissionalmente exerce qualquer atividade, que não seja econômica ou não seja atividade de produção de riquezas, não é empresário. Em segundo lugar, esta atividade deve ser organizada, isto é, atividade em que se coordenam e se organizam os fatores da produção: trabalho, natureza, capital. É a conjugação desses fatores, para produção de bens ou de serviços, que constitui a atividade considerada organizada. Finalmente, ela é uma atividade profissional: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente...”, isto é, a habitualidade da prática da atividade, a sistemática dessa atividade e que, por ser profissional, tem implícito que é exercida em nome próprio e com ânimo de lucro. Essas duas ideias estão implícitas na profissionalidade do empresário.” (Questões de direito mercantil, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 10/11). 358 Giuseppe Auletta e Niccolò Salanitro, Diritto Commerciale, Milano, Giuffrè, 14ª ed., 2003, p. 4-7.

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g) o objeto da empresa deve ser lícito.

Além do aspecto material que caracteriza o empresário, o art. 967 do Código Civil tornou obrigatória a inscrição do empresário no registro de empresas mercantis, ou seja, o registro na Junta Comercial. Sendo o registro obrigatório, somente deveria ser considerado empresário, para efeitos jurídicos, o empresário registrado, que atenda a esse requisito formal.

O entendimento dominante é de que o ato de inscrição ou arquivamento do registro da firma individual na Junta Comercial tem efeito estritamente declaratório ou de publicidade, e não define a qualidade de empresário. Nesse sentido, as opiniões de Fábio Ulhoa Coelho,359 Alfredo de Assis Gonçalves Neto,360 Sérgio Campinho,361 Luiz Antonio Soares Hentz,362 Vera Helena de Mello Franco 363 e Mônica Gusmão.364

359 “O registro no órgão próprio não é da essência do conceito de empresário. Será empresário o exercente profissional de atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, esteja ou não inscrito no registro de empresas.” (Fábio Ulhoa Coelho, Manual de Direito Comercial, cit., p. 62). 360 “A inscrição do empresário individual é, em princípio, um ato declaratório, visto que tem por fim dar publicidade à condição jurídica de quem exerce atividade econômica reputada passível de registro perante o Registro Público de Empresas Mercantis. Incidem em erro palmar aqueles que acham ser a inscrição constitutiva da qualidade de pessoa jurídica do empresário. Essa inscrição não cria nenhuma figura jurídica distinta da pessoa natural do empresário.” (Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Direito de empresa, cit., p. 80). 361 “Temos, assim, o registro como declaratório e não constitutivo da qualidade de empresário. O arquivamento dos atos constitutivos das firmas individuais e das sociedades comerciais na Junta Comercial não assegura, pelo só efeito do registro, a condição de empresário que se verifica pelo exercício profissional da atividade que lhe é própria, tal qual definida no artigo 966”. (Sérgio Campinho, O direito de empresa à luz do novo Código Civil, cit., p. 28). 362 “O registro, só por si, não prova a qualidade de comerciante, podendo ser provado ao contrário, o encerramento das atividades mercantis sem o respectivo cancelamento do registro; o contrário também é possível, ou seja, o desempenho de atividade sem o registro, o que transporta o problema para a empresa de fato.” (Luiz Antonio Soares Hentz, Direito de Empresa no Código Civil de 2002 – Teoria Geral do Novo Direito Comercial, São Paulo, Juarez de Oliveira, 3ª edição, 2005, p. 74). 363 “O não arquivamento dos constitutivos (de firma individual ou de sociedades empresárias) não impede seja reconhecida a qualidade de empresário àquele que pratica a empresa em caráter profissional (relevo ao caráter objetivo). Impede, isto sim, que se lhe atribua a qualidade de empresário comercial regular.” (Vera Helena de Mello Franco, Manual de direito comercial, O empresário e seus auxiliares, o estabelecimento empresarial, as sociedades, volume 1, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2ª edição, 2004, p. 67/68). 364 “O art. 967 do CC/02 determina o registro da firma individual ou atos constitutivos do empresário no órgão competente (RPEM), antes do início de sua atividade. Este registro não tem o condão de conferir ao empresário esta condição, e sim, a de lhe conferir regularidade. O conceito de empresário é firmado a partir de critério real ao invés de formal, ou seja, da efetiva prova do exercício de atividade econômica organizada (empresa), independentemente de seu registro. O registro, por sua natureza declaratória, apenas declara a condição do empresário, e não a constitui”. (Mônica Gusmão, Curso de Direito Empresarial, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 5ª edição, 2007, p. 23).

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Sob a perspectiva da qualificação, portanto, não bastaria o registro da firma individual na Junta Comercial para caracterizar a condição de empresário. De acordo com o enunciado pelo art. 966 do Código Civil, considera-se empresário quem exerce, profissionalmente, atividade econômica. Ainda que diante da obrigatoriedade do registro previsto no art. 967 do Código, o elemento material representaria aquele que, em tese, deve prevalecer. Também seguem essa orientação as conclusões doutrinárias das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, apreciando a matéria de direito de empresa.365

Apesar de aparentemente pacificada, a questão do registro do empresário, no regime do Código Civil de 2002, ainda é passível de questionamento. Para tanto, de início, torna-se necessário abandonar o referencial pretérito ao registro do comerciante, como constante do Código Comercial de 1850, ao qual a doutrina sempre esteve apegada.

O artigo 4º do Código de 1850, exigia, de modo literal, o registro do comerciante apenas para “efeito de gozar da proteção que este Código liberaliza em favor do comércio.” O comerciante que não estivesse registrado, não era destinatário da proteção legal. Poderia, sim, exercer o comércio, mas sem a proteção do nome comercial, desprovido de domicílio e foro comercial, sem direito de requerer sua concordata ou a falência de seu devedor, sem poder contratar com bancos ou emitir títulos de crédito em nome da casa mercantil.

O comerciante irregular, pelo fato de praticar a mercancia, era reconhecido como pessoa que atuava licitamente no mercado, em nome próprio, e essa atuação era decorrente dos princípios da liberdade de empresa e da autonomia da vontade. O registro na Junta Comercial tinha, portanto, caráter meramente declaratório. Comerciante era aquele que simplesmente exercia a atividade de mercancia, como comerciante regular, com registro na Junta Comercial, ou comerciante irregular,

365 Enunciados das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal - Enunciado 198 - Art. 967: “A inscrição do empresário na Junta Comercial não é requisito para a sua caracterização, admitindo-se o exercício da empresa sem tal providência. O empresário irregular reúne os requisitos do art. 966, sujeitando-se às normas do Código Civil e da legislação comercial, salvo naquilo em que forem incompatíveis com a sua condição ou diante de expressa disposição em contrário.” Enunciado 199 – Art. 967: “A inscrição do empresário ou sociedade empresária é requisito delineador de sua regularidade, e não de sua caracterização.”

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desprovido de registro. O comerciante irregular atuava informalmente, exercendo a atividade em seu próprio nome, assumindo, com caráter personalíssimo, as obrigações resultantes do exercício do comércio perante clientes, fornecedores e credores. Mas não era proibido de exercer o comércio, de praticar atos jurídicos válidos.

De modo semelhante, foram desenvolvidos pela doutrina os conceitos de sociedade irregular e sociedade de fato,366 quando, na atividade comercial, fosse ela exercida por duas ou mais pessoas, sem registro do contrato social na Junta Comercial,367 no primeiro caso, e sem a existência de contrato escrito, na segunda hipótese.

Comerciante e empresário, todavia, são conceitos distintos, definidos e regulados por sistemas jurídicos igualmente diferentes. O comerciante podia ser, de acordo com o Código Comercial de 1850, regular ou irregular, conforme estivesse registrado, ou não, na Junta Comercial (art. 4º), sendo o exercício do comércio presumido a partir do momento do registro (art. 9º).

O conceito de empresário, constante do Código de 2002, é mais elaborado e, por isso mesmo, mais complexo. Ele envolve dois elementos que se complementam: o elemento material, do exercício da atividade econômica de produção e circulação de bens ou de serviços (art. 966), e o elemento formal, do reconhecimento e registro da condição profissional de empresário na Junta Comercial (art. 967).

Com efeito, na análise do conceito de empresário, são dois os problemas que merecem tratamento diferenciado: o primeiro problema é aquele relativo à natureza constitutiva ou declaratória do registro na Junta Comercial. O segundo problema

366 Segundo José Ignacio Romero, sociedade irregular é aquela que pertencendo a um dos tipos previstos em lei, tem um vício de forma, e sociedade de fato é aquela que simplesmente existe como tal, mas carece absolutamente de instrumentalização: é de fato. (Sociedades irregulares y de hecho, Buenos Aires, Depalma, 1982, p. 77/78). 367 No que tange à sociedade comercial ou empresária, a natureza do registro de empresa é diferente do comerciante ou empresário individual, porque aquele tem natureza constitutiva para a criação da pessoa jurídica societária (CC, art. 45), e não caráter estritamente declaratório. A sociedade empresária que não registrar seu contrato social na Junta Comercial fica caracterizada e regulada como sociedade em comum, modelo transitório, de acordo com o artigo 986 do Código Civil: “Enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem compatíveis, as normas da sociedade simples”.

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resulta não da natureza, mas do efeito jurídico do registro, após formalizado, se este, mesmo tendo caráter declaratório, atribui a qualificação jurídica de empresário a quem adquire regularidade na sua situação legal. Em decorrência desse efeito, empresário, stricto sensu, como conceito jurídico, somente seria aquele com registro regular na Junta Comercial, excluindo-se, por consequência, desse conceito, o comerciante irregular.

No antigo regime do comerciante, analisando o artigo 4º do Código Comercial de 1850, o Supremo Tribunal Federal decidiu que “a matrícula, por si só, não efetiva a qualidade de comerciante.” Nessa decisão, o Ministro Relator Cândido Motta Filho observou que o registro “é a maneira pela qual uma pessoa ingressa no comércio para exercitá-lo. Mas é o exercício continuado que o faz comerciante”.368 A consequência desse registro, todavia, para Maria Helena Diniz, produz presunção juris tantum, de que o comerciante exerce a atividade em caráter regular.369

Esse registro teria natureza declaratória porque publiciza a existência da atividade comercial regular. Na lição de Giuseppe Auletta e Niccolò Salanitro, a eficácia do registro pode ser positiva, quando produz efeitos perante terceiros e previne a responsabilidade do empresário, como, ao reverso, poderá ser negativa, quando a ausência do registro impede a defesa de direitos que não eram do conhecimento de terceiros.370 Desse modo, o caráter da publicidade é aquele que se destaca com maior intensidade a partir do registro do empresário na Junta Comercial. A finalidade do registro, segundo a lei brasileira em vigor, é “dar garantia, publicidade,

368 Supremo Tribunal Federal - STF, 1ª Turma, RE 37.099/SP, Relator Ministro Cândido Motta Filho, julgado em 27/01/1958, RTJ nº 5, p. 222/223. 369 “O registro tem efeito declaratório e não constitutivo, visto que apenas declara a condição de empresário individual, tornando-a regular, pois a qualidade de empresário requer a prática efetiva da atividade empresarial, que é a característica primordial de sua profissão. O registro declara a qualidade de empresário (RTJ, 5:222) por gerar presunção juris tantum de que o empresário exerce, regularmente, a atividade empresarial”. (Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito de Empresa, São Paulo, Saraiva, 2008, p. 85). 370 “A inscrição dos empresários comerciais no registro de empresa tem uma função de publicidade declaratória, no sentido de que a inscrição tem uma eficácia positiva e uma eficácia negativa. A primeira opera em vantagem dos empresários, porquanto a ignorância dos fatos, dos quais a lei prescreve a inscrição, não pode ser oposta pelos terceiros a partir do momento em que a inscrição ocorrer. A eficácia negativa opera ao contrário, em prejuízo dos empresários, porquanto se não estão inscritos os fatos dos quais a lei exige a inscrição, esses não podem ser opostos a terceiros, a menos que os empresários provem que aqueles tenham tido igualmente conhecimento.” (Giuseppe Auletta e Niccolò Salanitro, Diritto Commerciale, cit. p. 24).

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autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos das empresas mercantis”,371 com efeito erga omnes, no sentido de que a informação registrada na Junta Comercial pressupõe ser do conhecimento público, plenamente oponível a terceiros, do mesmo modo como regulado na matriz italiana pelo Código de 1942.372

Apesar do registro do empresário possuir o efeito de publicizar o exercício da atividade empresarial ou comercial, esse não é seu único efeito, isto porque, também em decorrência do registro, fica formalizada a regularidade do empresário como titular de empresa criada de acordo com os requisitos legais (CC, art. 978). O comerciante, antes, ou empresário, agora, matriculado ou inscrito no registro do comércio presume-se, pois, comerciante ou empresário regular, mas apenas sob o aspecto formal.

De acordo com Ascarelli, o sistema italiano desconhece a figura do “empresário comercial aparente”, aquele “considerado como tal pelo único fato da publicidade”.373 Desse modo, além da regularidade jurídica decorrente da formalização do empresário no registro de empresas, entende Ascarelli que “a qualidade de empresário comercial deverá sempre ser valorada na realidade dos fatos, sem que o exame possa ser impedido por nenhuma publicidade.”374 Ele afirma que a publicidade decorrente do registro não deve impedir ou obstar o exame da realidade dos fatos. Mas o registro, ainda que tenha “menor importância”,375 representa elemento formal relevante para caracterizar o exercício da empresa, não podendo ser, de todo, desprezado.

371 Lei 8.934/1994 – Dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins - art. 1º, inciso I; art. 32, inciso II. 372 “Para os atos jurídicos serem oponíveis a terceiros, a lei dispõe de instrumentos idôneos de publicidade – como a transcrição – e a maior razão para a satisfação desta exigência surge para a empresa, cuja atividade, sendo institucionalmente destinada ao mercado, é, por esse motivo, fonte de uma densa rede de relações com terceiros. Para a empresa, de fato, essa exigência é dupla: para a empresa comunicar as suas atividades a todos aqueles que entram em contato com ela, os terceiros - fornecedores, clientes, credores – para que estes fiquem protegidos por meio da informação sobre os acontecimentos mais importante desde o nascimento da empresa. Para atingir estes objetivos, o legislador de 42 intituiu o registro das empresas, em que, em nome da concepção então vigente, ordenou que se inscrevessem dentro de trinta dias da aquisição da categoria de empresário, todos os empresários comerciais, pessoas físicas e sujeitos diversos das pessoas físicas, e outros, de acordo com as regras que regem a matéria (artigos 2.196, § 1, 2.200 e 2.201), e que nesse registro também fossem anotados os acontecimentos da vida da empresa, como a localização, o objeto, seus auxiliares ou prepostos, e todas as modificações desses elementos, até a cessação da empresa (Art 2.196., § 1, 2.197, 2.198, 2.206).” Vincenzo Buonocore, Istituzioni di Diritto Commerciale, cit., p. 58. 373 Tullio Ascarelli, Iniciação ao Estudo do Direito Mercantil, cit., p. 312/313. 374 Tullio Ascarelli, cit., p. 313. 375 Tullio Ascarelli, cit., p. 313.

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Retornando à comparação entre os regimes do Código Comercial de 1850 e do Código Civil de 2002, analisados a partir da rica construção doutrinária italiana sobre o Código de 1942, cabe concluir que a qualificação jurídica do empresário é distinta da qualificação do comerciante, porque esta pode resultar, tão só, do exercício do comércio (CCom 1850, art. 4º). A caracterização da qualidade de empresário, no Código Civil de 2002, depende da conjugação de dois elementos, o material, relativo ao exercício profissional de atividade econômica (art. 966), e o formal, resultante da obrigatoriedade do registro do empresário para a aquisição de regularidade jurídica (art. 967), ainda que inexista sanção pelo exercício irregular da atividade empresarial.376

A respeito dos efeitos legais do registro, esclarece Calixto Salomão Filho que, no caso do empresário e também da própria empresa, “não há reconhecimento externo sem registro”.377 O registro tem caráter declaratório da condição jurídica do empresário, para efeito de publicização, mas terá também caráter constitutivo no caso da criação da pessoa jurídica. Desse modo, na opinião de Calixto Salomão Filho, o registro deve ser considerado “elemento central para a conformação da fattispecie empresário”,378 para a definição de empresário, de tal maneira que é o registro que complementa a qualificação jurídica para a pessoa que a exerce.

A fattispecie empresário, seu conceito jurídico específico, é um conceito agregador, compósito, compreende conteúdo dúplice, porque deve atender a esses dois elementos, simultaneamente: o exercício profissional de atividade econômica

376 Apesar da obrigatoriedade prevista no art. 967, Arnoldo Wald entende que “a sanção para a irregularidade do exercício da atividade empresarial, assim como ocorria no comerciante regular, deve ser buscada na área comercial, isto é, retirando do empresário irregular o direito a alguns privilégios oriundos da sua condição de empresário, como aqueles relativos à falência ou à responsabilidade patrimonial, por exemplo.” (Comentários ao novo Código Civil - Livro II – Do Direito de Empresa, Vol. XIV, cit., p. 9/10). Para Fábio Ulhoa Coelho, “A falta de registro na Junta Comercial importa, também, a aplicação de sanções de natureza fiscal e administrativa”, como, por exemplo, a impossibilidade de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), nos cadastros das Fazendas Públicas Estaduais e Municipais, no Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, “além de dar ensejo à incidência de multa pela inobservância de obrigação tributária instrumental”, ficando a atividade do empresário sem registro “restrita ao universo da economia informal”. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 98-90). 377 Calixto Salomão Filho, A fattispecie empresário no novo Código Civil, em Princípios do Novo Código Civil Brasileiro e outros temas – Homenagem a Tullio Ascarelli, Antonio Junqueira de Azevedo, Heleno Taveira Torres e Paulo Carbone, Coordenadores, São Paulo, Quartier Latin, 2008, p. 121. 378 Calixto Salomão Filho, A fattispecie empresário no novo Código Civil, cit., p. 121.

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(elemento material) e o registro na Junta Comercial (elemento formal), inclusive como condição de publicização da qualidade de empresário. Essa deve ser a exata compreensão do empresário no regime do Código Civil de 2002, diferente da disciplina pretérita do Código Comercial de 1850,379 em que apenas o exercício da mercancia bastava para caracterizar o comerciante.

Como afirmado anteriormente, a doutrina permaneceu acomodada à ideia de comerciante consagrada no código revogado, em que a publicidade do registro tinha como finalidade principal diferenciar o comerciante regular daquele irregular. Para efeito da publicidade, observava Ascarelli, “a mais importante das consequências da exploração de uma empresa mercantil, e precisamente frente a terceiros, é a submissão à quebra”, diante da “impossibilidade de submeter à quebra quem não é empresário mercantil”.380 Esse aspecto, todavia, fica preservado e não é alterado pelo conceito de empresário aqui adotado, porque o exercício irregular da atividade empresarial não afasta a sujeição à falência, como sanção resultante da insolvência. Ao revés, a falta de registro impede a empresa de requerer recuperação judicial ou extrajudicial,381 direito emergente da situação de regularidade formal. Com isso, pretende-se, aqui, afirmar e reforçar a importância do registro da empresa, cujo efeito extrapola o caráter meramente declaratório, como assim continua preferindo realçar a doutrina dominante.382

No que se refere à diferença de efeitos perante terceiros, entre o registro do empresário individual e o registro da sociedade, existe, como assim anotam Francesco Ferrara Junior e Francesco Corsi, uma disfunção ou desarmonia no

379 Na percepção de Paula Forgioni, destacando as profundas mudanças que ocorreram no direito comercial, afirma ela que “hoje, esse direito comercial não é mais aquele do século XIX ou início do século XX, mas um sistema que incorpora correções de rota, que, por vezes, mostrou-se excessivamente liberal (e, portanto, jurídica e socialmente inadequada)”, o que pode ser revelado na clara modificação de paradigmas provocada pela substituição do comerciante do Código Comercial de 1850 pelo empresário no Código Civil de 2002. (A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil Brasileiro, cit., p. 8). 380 Tullio Ascarelli, Iniciação ao Estudo do Direito Mercantil, cit., p. 314. 381 Lei 11.101/2005 – Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente: (...). 382 Fran Martins, na sua obra revisada por Carlos Henrique Abrão, diverge da doutrina dominante, entendendo que, em razão da revogação do art. 4º do Código Comercial de 1850, o Código Civil de 2002 adota nova orientação, “a dar o caráter de comercialidade às atividades dos comerciantes ou empresários por sua inscrição no Registro de Empresas.” (Curso de Direito Comercial, revisto e atualizado por Carlos Henrique Abrão, Rio de Janeiro, Forense, 35ª edição, 2012, p. 69/70).

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sistema.383 No caso da sociedade, o registro tem caráter tanto constitutivo, fazendo surgir a pessoa jurídica,384 como serve também para publicizar a existência de um novo sujeito de direito. Na constituição da sociedade anônima o registro tem por função “examinar se as prescrições legais foram observadas na constituição da companhia” (Lei 6.404/1976, art. 97). Contudo, a companhia adquire personalidade jurídica com o registro dos atos constitutivos, e só pode entrar em funcionamento após a publicação desses atos.385

Não existe sociedade comercial ou empresária sem registro. Na falta de registro, a sociedade é de fato, irregular ou em comum (CC, art. 986). O ente social existe no mundo real, porém despersonificado. O mesmo tratamento da aquisição de personalidade jurídica pelo registro (CC, art. 44, VI) é atribuído à empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI (CC, art. 980-A), que tem um só titular, do mesmo modo que a firma individual. Aqui revela-se, ainda mais profunda, a desarmonia no sistema: para um tipo de empresa individual (CC, art. 966), o registro é meramente declaratório; já para outro tipo de empresa unipessoal, a EIRELI (CC, art. 980-A), o registro tem caráter constitutivo.

Os efeitos declaratório e constitutivo são distintos, claro, como assim ressaltado por Ascarelli.386 Na sociedade, estamos diante da criação de uma pessoa jurídica, com personalidade e patrimônio distinto dos sócios, o que não ocorre em relação ao empresário individual, em que a confusão patrimonial é marca característica da inexistência de personalidade jurídica própria.387

383 Francesco Ferrara Junior e Francesco Corsi, Gli Imprenditori e Le Società, cit., p. 92. 384 Código Civil 2002 - Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. 385 Nelson Eizirik, A Lei das S/A comentada, vol. 1, São Paulo, Quartier Latin, 2011, p. 547. 386 “Precisamente por isso o problema é diverso para as sociedades e as cooperativas nas que a realização ou não da publicidade tem uma importância particular. A publicidade tem às vezes (v. arts. 2.332 e 2.519) caráter constitutivo, outras vezes (arts. 2.297, 2.300, 2.436) declarativo; esta se aplica a todas as cooperativas assim como a todas as sociedades que adotem um dos tipos de sociedade mercantil, mesmo que (como vimos, é também possível: art. 2.249) cooperativas ou sociedades tenham por objeto uma atividade civil (v. arts. 2.136 e 2.200).” Tullio Ascarelli, Iniciação ao Estudo do Direito Mercantil, cit., p. 316). 387 Ação de Execução. Pessoa natural executada. Possibilidade de os atos executórios recaírem sobre o patrimônio do empresário individual. Mesma pessoa. Patrimônio comum. A pessoa natural, que também é empresário individual, registra sua firma individual para fins de regularização do exercício profissional da atividade econômica organizada. O registro do empresário individual não lhe confere

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O registro da firma individual, diante da importância atribuída à formalização da empresa pelo art. 967 do Código de 2002, com seu caráter obrigatório, cogente, possui constitutividade declaratória, ou declaratividade constitutiva, parafraseando Pontes de Miranda, a partir da sua célebre explicação quanto à natureza da sentença declaratória falimentar.388 Com efeito, a firma individual, ao ser criada pela vontade do empresário, instaura um estado jurídico que antes do registro não existia, especialmente para determinar os elementos necessários ao exercício da empresa, como o nome empresarial, a sede, o foro, o capital e o objeto da atividade econômica (CC, art. 968).

Mas, também no sentido inverso, da desconstituição formal da empresa, o registro, ou seu cancelamento, é imprescindível e legalmente exigível. Na alienação ou trespasse do estabelecimento empresarial, por exemplo, o empresário individual pode deixar de exercer atividade econômica a partir da cessão dos direitos sobre seu fundo de comércio, e essa situação ficará averbada na Junta Comercial.389

Quando o empresário aliena o estabelecimento, ele transfere os direitos sobre seus bens corpóreos e incorpóreos, o aviamento objetivo, não a empresa individual, que ele permanece sendo titular. Todavia, a eficácia da transferência do estabelecimento perante terceiros depende da averbação no registro do comércio.390 Essa averbação não possui conteúdo estritamente declaratório, mas eficacial.

personalidade jurídica distinta da pessoa natural e autonomia patrimonial. Os atos constritivos da ação executiva podem recair sobre o patrimônio comum. Agravo não provido.” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - TJSP, 12ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 0078483-93.2013.8.26.0000, Comarca de São Paulo, Relatora Desembargadora Sandra Galhardo Esteves, Dje 28/06/2013). 388 Segundo Pontes de Miranda, “A constitutividade da sentença de declaração de abertura de falência é preponderante. Após ela, há estado jurídico que não existia (...). A sentença, que decreta a abertura da falência, abre fase nova na vida do falido. A sua constitutividade ressalta. (...) A sentença de decretação da abertura da falência é constitutiva, com eficácia erga omnes, que lhe atribui a publicidade exigida por lei. Não se raciocine, e esse foi o erro maior, com a premissa de ser declaratória a sentença de decretação de abertura da falência. Tem ela eficácia declarativa, mas a força, a eficácia preponderante, é constitutiva.” (Tratado de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 4ª edição, 1983, Tomo XXVIII, p. 10;132;134). 389 Código Civil 2002 - Art. 1.144. O contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário, ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial. 390 “No caso do art. 1.144 a publicidade (Registro do Comércio) e a publicação oficial (Imprensa Oficial) têm como efeito precípuo dar validade e eficácia perante terceiros aos negócios jurídicos que elenca. Ademais, a exigência legal de registro e de publicação na Imprensa Oficial do contrato de transferência

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Analogamente, por coerência lógica, se os atos relativos ao estabelecimento ou fundo de comércio somente são considerados eficazes após o registro na Junta Comercial, do mesmo modo, para a caracterização da fattispecie empresário, demonstra-se plenamente aceitável a opinião de Calixto Salomão Filho de que “não há reconhecimento externo sem registro”.391

O entendimento ainda dominante na doutrina de que o registro não tem importância para a caracterização do empresário, termina por confundir a própria jurisprudência, quando esta manifesta-se, em decisões flagrantemente contra legem, ao atribuir, inclusive para atendimento ao requisito de regularidade formal da empresa no pedido de recuperação judicial (Lei 11.101/2005, art. 48), maior importância à “constatação da manutenção e continuidade de seu exercício”, do que à “prova da existência de registro do empresário”, que deve ser confirmada, como exigido pela lei, por “certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas” (Lei 11.101/2005, art. 51, inciso V).392

do estabelecimento, ou dos direitos de uso ou de gozo a ele inerentes, tem como objetivo estabelecer a presunção do conhecimento por terceiros e o início da aquisição e da prescrição dos direitos, inclusive no que respeita aos arts. 1.146, 1.148 e 1.149.” Modesto Carvalhosa, Comentários ao Código Civil – Parte Especial – Do Direito de Empresa, vol. 13, Antonio Junqueira de Azevedo, coord., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 639. 391 Calixto Salomão Filho, A fattispecie empresário no novo Código Civil, cit., p. 121. 392 “Recuperação judicial. Requerimento por produtores rurais em atividade por prazo superior àquele de 2 (dois) anos exigido pelo artigo 48, caput, da Lei nº 11.101/2005, integrantes de grupo econômico na condição de empresários individuais respaldados pelos artigos 966 e 971 do Código Civil e/ou de sócios das sociedades coautoras. Legitimidade reconhecida. Irrelevância da alegada proximidade entre as datas de ajuizamento do feito e das prévias inscrições dos produtores rurais como empresários individuais na Junta Comercial do Estado de São Paulo. Firme entendimento jurisprudencial no sentido de que a regularidade da atividade empresarial pelo biênio mínimo estabelecido no supramencionado dispositivo legal deve ser aferida pela constatação da manutenção e continuidade de seu exercício, e não a partir da prova da existência de registro do empresário ou ente empresarial por aquele lapso temporal. Manutenção do deferimento do processamento da demanda. Agravo de instrumento desprovido.” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento nº 2037064-59.2013.8.26.0000 - Cafelândia, Relator Desembargador José Reynaldo, DJe 23/09/2014). Em sentido diametralmente oposto, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça: “Recuperação judicial. Comprovação da condição de empresário por mais de 2 anos. Necessidade de juntada de documento comprobatório de registro comercial. Documento substancial. Insuficiência da invocação de exercício profissional. Insuficiência de registro realizado 55 dias após o ajuizamento. Possibilidade ou não de recuperação de empresário rural não enfrentada no julgamento. 1. O deferimento da recuperação judicial pressupõe a comprovação documental da qualidade de empresário, mediante a juntada com a petição inicial, ou em prazo concedido nos termos do CPC 284, de certidão de inscrição na Junta Comercial, realizada antes do ingresso do pedido em Juízo, comprovando o exercício das atividades por mais de dois anos, inadmissível a inscrição posterior ao ajuizamento. Não enfrentada, no julgamento, questão relativa às condições de admissibilidade ou não de pedido de recuperação judicial rural. 2. Recurso Especial

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O conceito de empresário do Código de 2002, no regime do direito de empresa, não mais exige, apenas, a prática habitual e profissional do ato de comércio como definidor da sua qualificação jurídica. Empresário, em sentido estrito, é a pessoa que exerce atividade de produção ou circulação de bens ou de serviços, com registro na Junta Comercial.

Consequentemente, não se considera empresário, na acepção jurídica do termo, em sentido estrito, quem exerce atividade empresarial ou comercial sem registro, em caráter informal, ainda que, materialmente, pratique atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. Na ausência do registro, a pessoa que desempenha atividade mercantil irregularmente pode ser chamada de comerciante informal, negociante, mascate, feirante, intermediário, sócio de sociedade de fato, mas não pode ser qualificado, juridicamente, como empresário.

Na concepção aqui desenvolvida, ousando discordar da doutrina dominante, partindo da incidência simultânea e harmônica dos artigos 966 e 967 do Código Civil, define-se como empresário somente o empresário regular, que satisfaz, concomitantemente, ambos os requisitos caracterizadores dessa condição profissional: o material (exercício de atividade econômica), e o formal (regularidade jurídica pelo registro).

O parágrafo único do art. 966 Código Civil de 2002 retira da condição de empresário as pessoas e atividades nele referidas: “Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”.393 A norma exclui do conceito de empresário, como regra geral, quem não desempenha atividade econômica de produção ou de circulação de bens ou de serviços. Em resumo: não é empresário quem não exerce atividade econômica típica. Assim, as profissões intelectuais de natureza científica, improvido quanto ao pleito de recuperação”. (STJ, 3ª Turma, REsp 1.193.115-MT, Relator para o Acórdão Ministro Sidnei Benetti, DJe 07/10/2013). 393 “Esse dispositivo alcança, grosso modo, o chamado profissional liberal (advogado, dentista, médico, engenheiro, etc.), que apenas se submete ao regime geral da atividade econômica se inserir a sua atividade específica numa organização empresarial (na linguagem normativa, se for “elemento de empresa”). Caso contrário, mesmo que empregue terceiros, permanecerá sujeito somente ao regime próprio de sua categoria profissional”. Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 38.

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como as desempenhadas por médicos, psicólogos, advogados, engenheiros, arquitetos, contabilistas e outros profissionais liberais, não caracterizam-se, em princípio, como empresariais.

Também não são qualificados como empresários aqueles que exercem atividades literárias e artísticas, como os escritores, pintores, atores, compositores, cantores, músicos, inclusive os esportistas. Cabe observar que as atividades de diversões e espetáculos públicos, como de teatro, circo, shows e eventos musicais, sempre foram elencadas como atos de comércio, e assim constavam no Regulamento 737/1850 (art. 19, § 3º). Todavia, o caráter empresarial é inerente ao produtor do evento, do comerciante ou empresário musical, artístico ou circense. Por exemplo, o dono do circo qualifica-se como empresário, mas não a trupe de palhaços ou o domador de leões.

Essa norma do parágrafo único do art. 966 do Código de 2002 encontra paralelo no artigo 2.238 do Código italiano de 1942, o qual faz menção à atividade que constitui elemento de empresa.394 Na análise desse dispositivo, com relação ao conceito de empresário do artigo 2.086 do mesmo código, Giuseppe Ferri e Luisa Riva-Sanseverino observam que a diferença reside no modo de organização da atividade econômica, conceito fluido e de difícil interpretação, fronteiriço entre a noção de empresa e o de trabalho autônomo.395

Em que consiste, afinal, uma atividade econômica organizada sob a forma de empresa? A referência do parágrafo único do art. 966 do Código Civil de 2002 e do seu correspectivo dispositivo no art. 2.238 do Código italiano, versa sobre a organização do trabalho de terceiros, auxiliares e colaboradores dependentes. Contudo, a norma prescreve que não basta a existência da relação de trabalho de

394 “Art. 2238 Rinvio - Se l'esercizio della professione costituisce elemento di un'attività organizzata in forma d'impresa, si applicano anche le disposizioni del Titolo II (2082 e seguenti). In ogni caso, se l'esercente una professione intellettuale impiega sostituti o ausiliari, si applicano le disposizioni delle Sezioni II, III e IV del Capo I del Titolo II (2094 e seguenti)”. 395 “A empresa tem por conta uma atividade profissional de caráter organizativo, diretamente dirigido a um escopo econômico e implicando sucessivas relações com intermediários e consumidores; no trabalho autônomo, se tem, ao invés, uma atividade sobretudo executiva, desenvolvida pessoalmente pelo prestador da obra e cujo resultado é estado previamente objeto de um contrato estipulado com o comitente”. (Giuseppe Ferri e Luisa Riva-Sanseverino, Comentario del Codice Civile – Del Lavoro, Art. 2188-2246, a cura di Antonio Scialoja e Giuseppe Branca, Bologna, Zanichelli Editore, 1972, p. 247).

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auxiliares e colaboradores, mas que esse modo de organização constitua “elemento de empresa”.

A dificuldade para extrair o “exato alcance desse dispositivo” reside, na opinião de Waldirio Bulgarelli, precisamente, no problema de que o Código Civil não define o que seja empresa.396 Se não existe definição de empresa, o conceito de “elemento de empresa” menos ainda. Daí que deve ser ele elaborado e integrado pelas demais fontes hermenêuticas, na doutrina e jurisprudência.397

A interpretação adotada pela doutrina para a compreensão do sentido e alcance dessa norma do parágrafo único do art. 966 do Código de 2002 segue, invariavelmente, a explicação apresentada pelo relator do projeto, Sylvio Marcondes,398 ao explicar as diferenças entre trabalho intelectual e organização dos fatores de produção,399 valendo-se do exemplo de um hospital. Enquanto o médico, profissional liberal, isoladamente identificado, exercer a medicina, não será ele considerado empresário. Contudo, se o médico dispor de capital para adquirir um imóvel, construir o prédio que será utilizado como centro médico ou hospital, e contrata outros médicos e profissionais de saúde, ele está organizando os fatores de produção, podendo, a partir dessa caracterização, ser enquadrado ou qualificado juridicamente como empresário.400

396 Waldirio Bulgarelli, A Teoria Jurídica da Empresa, cit., p. 408. 397 As conclusões das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal assim enfrentaram os problemas conceituais derivados do parágrafo único do art. 966 do Código Civil: Enunciado 193 – Art. 966: O exercício das atividades de natureza exclusivamente intelectual está excluído do conceito de empresa. Enunciado 194 – Art. 966: Os profissionais liberais não são considerados empresários, salvo se a organização dos fatores de produção for mais importante que a atividade pessoal desenvolvida. Enunciado 195 – Art. 966: A expressão “elemento de empresa” demanda interpretação econômica, devendo ser analisada sob a égide da absorção da atividade intelectual, de natureza científica, literária ou artística, como um dos fatores da organização empresarial. 398 Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Direito de empresa, cit., p. 78. 399 “Há, porém, pessoas que exercem profissionalmente uma atividade criadora de bens ou de serviços, mas não devem e não podem ser consideradas empresários – referimo-nos às pessoas que exercem profissão intelectual – pela simples razão de que o profissional intelectual pode produzir bens, como o fazem os artistas; podem produzir serviços, como o fazem os chamados profissionais liberais; mas nessa atividade profissional, exercida por essas pessoas, falta aquele elemento de organização dos fatores da produção; porque na prestação desse serviço ou na criação desse bem, os fatores de produção, ou a coordenação de fatores, é meramente acidental: o esforço criador se implanta na própria mente do autor, que cria o bem ou o serviço. Portanto, não podem – embora sejam profissionais e produzam bem ou serviços – ser considerados empresários”. (Sylvio Marcondes Machado, Questões de Direito Mercantil, cit., p. 11). 400 “A não ser que, organizando-se em empresa, assumam a veste de empresários. Parece um exemplo bem claro a posição do médico, o qual, quando opera, ou faz diagnóstico, ou dá a terapêutica, está

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Sem embargo, tal exemplo, apesar de bastante objetivo, demonstra-se radical, no sentido de que a saúde não poderia ser considerada serviço mercantil, em sentido estrito. No regime da Constituição Federal de 1988, sendo serviço essencial de relevância pública,401 a empresa hospitalar deve merecer tratamento ou regime jurídico diferenciado, para impedir que o direito à saúde e à vida seja tratado como mercadoria ou objeto de relação de mercancia. Esse exemplo serve, exatamente, para demonstrar que, mesmo uma atividade de serviço público, como a saúde, pode adotar a forma de empresa, e que “elemento de empresa” compreende o modo como a atividade é organizada visando a obtenção de resultados econômicos, seguindo à mesma lógica e semelhante estratégia aplicável aos negócios comerciais ou mercantis.402

Assim, qualquer atividade profissional liberal, autônoma, científica ou artística, de prestação de serviços, poderá ser exercida sob a forma de empresa, desde que a pessoa organize os recursos necessários à exploração econômica. A jurisprudência vem considerando, ao diferenciar o profissional autônomo daquele que se organiza como empresa, para fins de recolhimento do Imposto sobre Serviços (ISS) na condição de pessoa física, que somente quando os serviços são realizados “sem estrutura ou intuito empresarial”, ou seja, ausente o “elemento de empresa”, resta configurado o trabalho autônomo.403

prestando um serviço resultante da sua atividade intelectual, e por isso não é empresário. Entretanto, se ele organiza fatores de produção, isto é, une capital, trabalho de outros médicos, enfermeiros, ajudantes, etc., e se utiliza de imóvel e equipamentos para a instalação de um hospital, então o hospital é empresa e o dono ou titular desse hospital, seja pessoa física, seja pessoa jurídica, será considerado empresário, porque está, realmente, organizando os fatores de produção, para produzir serviços”. (Sylvio Marcondes Machado, Questões de Direito Mercantil, cit., p. 11). 401 Constituição Federal – “Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”. 402 Segundo Giuseppe Ferri e Luisa Riva-Sanseverino, a ênfase vem recair não sobre o trabalho do profissional liberal, mas sim sobre a organização de uma verdadeira e própria empresa, e como tal organização não deve ser considerada meramente instrumental diante da atividade pessoal do profissional. Neste sentido se verifica a hipótese do professor que dirige uma escola privada, do farmacêutico que se encontra ao mesmo tempo como cabeça de uma empresa comercial, do médico que desenvolve a sua própria atividade em uma casa de saúde por ele gerida. (Comentario del Codice Civile – Del Lavoro, cit., p. 248). 403 “Processual civil e tributário. Imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISS. Base de cálculo. Tratamento diferenciado conferido aos profissionais liberais e às sociedades uniprofissionais. Artigo 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei 406/68. Norma não revogada pela Lei Complementar 116/2003. Precedentes. Empresário individual ou sociedade empresária. Inaplicabilidade. Precedentes da primeira seção. Exercício de profissão intelectual como elemento de empresa. Configuração. 1. A Primeira Seção

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O conceito de empresário, em síntese final, é conceito mais complexo e evoluído do que o do antigo comerciante, porque a organização passou a ser o elemento chave, e não mais a mercancia objetivada nos atos de comércio. A qualificação legal do empresário determina-se, assim, pela conjugação da atividade econômica organizada, com a vinculação ao registro de empresas, das categorias material e formal, que se completam e afastam as dúvidas empíricas que, ainda hoje, afetam a segurança jurídica na identificação do empresário.

4.4. A sociedade empresária como modo de exercício da empresa coletiva

A empresa, na perspectiva formal, pode ser exercida de modo individual ou coletivo, esta última como sociedade empresária. Segundo Rubens Requião, “a principal distinção, e mais didática, entre empresa e sociedade empresária é a que vê na sociedade o sujeito de direito, e na empresa, mesmo como exercício da atividade, o objeto de direito.”404 Empresa e sociedade empresária são conceitos distintos, que devem ser compreendidos e aplicados diferentemente na teoria e diante de cada caso concreto.

O caráter individual da empresa não resulta da quantidade ou do número de colaboradores dependentes envolvidos na organização econômica, mas sim do fato de que apenas um indivíduo, o empresário, responde pela alocação do capital necessário e assume, isoladamente, todos os direitos, obrigações e riscos resultantes da exploração. A empresa individual, também denominada firma individual e que pode

consolidou o entendimento de que "as sociedades uniprofissionais somente têm direito ao cálculo diferenciado do ISS, previsto no artigo 9º, parágrafo 3º, do Decreto-Lei nº 406/68, quando os serviços são prestados em caráter personalíssimo e, assim, prestados no próprio nome dos profissionais habilitados ou sócios, sob sua total e exclusiva responsabilidade pessoal e sem estrutura ou intuito empresarial" (EREsp 866.286/ES, Relator Ministro Hamilton Carvalhido, DJe 20/10/2010). 2. Segundo o artigo 966 do Código Civil, considera-se empresário aquele que exerce atividade econômica (com finalidade lucrativa) e organizada (com o concurso de mão-de-obra, matéria-prima, capital e tecnologia) para a produção ou circulação de bens ou de serviços, não configurando atividade empresarial o exercício de profissão intelectual de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores, que não constitua elemento de empresa”. (STJ, 1ª Turma, REsp 1.028.086/RO, Relator Ministro Teori Zavascki, DJe 25/10/2011). 404 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 60.

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adotar o modelo de responsabilidade limitada (EIRELI, CC, art. 980-A), é o tipo mais apropriado para a constituição de pequenas organizações, especialmente quando o empresário não pretenda dividir com outras pessoas o lucro ou resultado da atividade econômica.

A sociedade empresária, anteriormente denominada sociedade comercial ou mercantil, representa a forma de exercício coletivo da atividade empresarial, quando duas ou mais pessoas reúnem capital, visando determinada exploração econômica.405 A sociedade é uma espécie de contrato colaborativo entre sócios, dotada do requisito da pluripessoalidade, e que pode adotar tipos diferenciados, de acordo com a vontade e o interesse das pessoas que a constituem. No direito positivo brasileiro, qualquer tipo societário pode ser criado a partir da reunião de duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, não importando seja ela sociedade limitada, anônima ou qualquer outro tipo societário. Basta satisfazer o requisito da pluripessoalidade, sendo integrada por dois ou mais sócios (CC, art. 1.033, IV).

A sociedade empresária não possui vontade própria, vez que se manifesta organicamente, pelos seus órgãos de representação, através de pessoas naturais, dirigentes ou prepostos das pessoas jurídicas que dela fazem parte. Não detendo vontade própria, mas derivada, é inconcebível admitir que uma entidade ideal possa ser capaz de organizar, sem a participação dos membros que a integram, os elementos necessários ao exercício da empresa. Neste ponto, revela-se insuperável contradição terminológica, pela impossibilidade de tornar racionalmente compreensível a norma que atribui a um ente representado – a sociedade empresária - a hipotética capacidade de ter a iniciativa da empresa e de responder pela organização dos elementos materiais e imateriais do estabelecimento empresarial (CC, art. 1.142).

405 Conforme o conceito legal constante do art. 981 do Código Civil de 2002, “Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”. Esse conceito difere do conceito doutrinário, tal como formulado por Fran Martins, apenas no que se refere à questão do lucro, considerando que, na concepção doutrinária, a sociedade comercial é “a entidade resultante de um acordo de duas ou mais pessoas, que se comprometem a reunir capital e trabalho para a realização de operações com fim lucrativo”. (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 207).

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Diz a doutrina de Fábio Ulhoa Coelho que a sociedade é empresária, e não as pessoas que a integram: “é a própria pessoa jurídica a empresária – e não os seus sócios”.406 Como anteriormente esclarecido, a locução “empresária”, aqui, enquadra-se como adjetivo, relacionado com a empresarialidade, não como sujeito. O sujeito é o empresário em sentido estrito, titular da firma individual ou da EIRELI, ou a própria sociedade, que foi denominada empresária por força de um neologismo artificial, que não possui qualquer referibilidade com a prática e com o costume mercantil,407 os quais sempre moldaram os conceitos do direito comercial.408

Além de não ter capacidade própria e direta de representação, a sociedade empresária não pensa por si, não idealiza, não elabora, não cria, nada gera em termos do desenvolvimento intelectual de projetos para a exploração da atividade econômica. Quem pensa, idealiza, elabora, cria e gera é a pessoa natural do sócio ou acionista controlador, titular do aviamento subjetivo, que o Código de 2002 não considera como empresário, mas apenas como administrador de sociedade, por mero capricho terminológico.

De acordo com as estatísticas do Departamento Nacional do Registro do Comércio – DNRC, entre os anos de 1985 e 2005 foram criadas, no Brasil, cerca de nove milhões de empresas. O modelo da firma individual está presente em aproximadamente 4,5 milhões dessas empresas, o que corresponde a, exatamente, metade das pessoas econômicas constituídas nesse período. As sociedades comerciais ou empresárias, e as sociedades cooperativas, representam, assim, a

406 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 79. 407 Criticava Rubens Requião, de modo contundente, que, “às sociedades milenarmente conhecidas por sociedades comerciais se passa a inexpressivamente apelidar de “sociedades empresárias””. (Projeto de Código Civil, Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, RT, v. 17, 1975, p. 135. 408 Coerente com o entendimento de que a denominação “sociedade empresária” não passa de neologismo artificial e contraditório, apesar de assim estar definida no Código de 2002, também iremos empregar, em outras passagens deste trabalho, os conceitos de sociedade comercial ou sociedade mercantil para designar o modo de exploração coletivo da empresa, tal como adotado por outras normas de direito positivo (Lei 6.404/1976; Lei 8.934/1994; Lei 12.529/2011), como também assim continua sendo utilizado pela jurisprudência: “Empresarial e Processual Civil. Agravo no recurso especial. Ação de reconhecimento e dissolução de sociedade comercial. Estabelecimento empresarial. Composição do patrimônio - O estabelecimento empresarial (fundo de comércio) deve ser considerado para fins de apuração dos direitos do sócio retirante. Agravo no recurso especial não provido”. (STJ, 3ª Turma, AgRg no REsp 1.147.733/BA, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe 21/09/2012).

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outra metade desses entes, o que revela peculiar equilíbrio entre as formas empresariais adotadas no Brasil.409

A partir desses números, constata-se que metade das empresas brasileiras são organizadas como sociedades comerciais ou empresárias, dedicadas ao exercício coletivo de atividade mercantil, assim caracterizadas a partir do seu registro na Junta Comercial. A organização empresarial sob a forma societária assume, consequentemente, posição de destacada relevância na nossa realidade econômica e na prática do comércio. Este fato, por si só, sempre justificou, historicamente, a necessidade de disciplina normativa própria e específica para a regulação das sociedades mercantis.

A sociedade comercial, agora denominada empresária, constitui-se, geralmente, através de contrato, razão pela qual a sua disciplina jurídica foi inserida no Código Civil de 2002, como modalidade derivada do direito obrigacional unificado. A forma contratual do ato constitutivo, apesar de referida genericamente no art. 981 do Código, é própria das sociedades de pessoas, em que o vínculo personalíssimo decorrente da affectio societatis é o preponderante na relação entre os sócios. Esse contrato é definido na doutrina de Ascarelli como um contrato plurilateral, em que todas as partes estão vinculadas a um escopo ou objetivo comum, sem a presença de interesses contrastantes.410 Assim ocorre, em princípio, nas sociedades limitadas e nos tipos societários antigos e em desuso, como a sociedade em nome coletivo e a sociedade em comandita simples.

409 BRASIL, Departamento Nacional do Registro do Comércio (DNRC) – Constituição de empresas por tipo jurídico – Brasil – 1985-2005, in http://www.dnrc.gov.br, 23/10/2012; Essa é a última estatística de criação de tipos de empresas disponível no Brasil, inclusive porque o DNRC foi extinto pelo Decreto 8.001/2013 e substituído pelo Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, vinculado à Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência da República. Esse novo órgão não vem divulgando nenhuma série estatística específica por tipo de empresa a partir dos registros existentes nas Juntas Comerciais dos Estados da Federação. 410 “A pluralidade corresponde a circunstância de que os interesses contrastantes das várias partes devem ser unificados por meio de uma finalidade comum; os contratos plurilaterais aparecem como contratos com comunhão de fim. Cada uma das partes obriga-se, de fato, para com todas as outras, e para com todas as outras adquire direitos; é natural, portanto, coordená-los, todos, em torno de um fim, de um escopo comum”. (Tullio Ascarelli, Problemas das sociedades anônimas e Direito Comparado, São Paulo, Saraiva, 1945, p. 290).

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Para Waldirio Bulgarelli, constituem elementos específicos do contrato de sociedade, moldados desde o regime do Código Comercial de 1850:411

a) a contribuição de cada um dos sócios para a formação do capital social;

b) a participação de cada sócio nos resultados positivos ou negativos, nos lucros ou prejuízos;

c) a presença da affectio societatis, ou seja, a intenção dos sócios para a realização do fim comum.

Além de representar a forma de exercício de atividade econômica através da reunião de capitais por duas ou mais pessoas, a sociedade comercial expandiu-se ao longo da história, principalmente porque assegurava aos seus sócios a limitação da responsabilidade no exercício de atividade especulativa e de risco. Com efeito, o desenvolvimento do comércio experimentou contínua e acelerada evolução a partir do surgimento das sociedades por ações, no século XVI, sendo que esse tipo societário, além de ter como função mobilizar capitais e investimentos de grande número de pessoas, assegurava aos seus acionistas a limitação da responsabilidade, de modo que os bens particulares dos sócios permanecem incomunicáveis, e assim não poderiam ser alcançados em virtude da insolvência da empresa, caracterizada pela insuficiência do seu patrimônio para a cobertura do passivo perante seus credores. O máximo que o acionista iria perder no caso de prejuízos excessivos ou de quebra da companhia seria o seu investimento representado pelas ações adquiridas.

A alavancagem proporcionada às sociedades anônimas pela possibilidade de oferta e venda das suas ações no mercado, para aquisição pelo público, tornou esse tipo societário o mais evoluído e o mais aperfeiçoado instituto do direito comercial. A sociedade anônima é a espécie de sociedade mercantil mais apropriada para a estruturação das grandes corporações, que reúnem não apenas um alto volume de capital, mas que empregam milhares de pessoas e cuja propriedade acionária está pulverizada no mercado. Por isso, são consideradas instituições de interesse público ou entidades privadas publicizadas, na medida em que exercem uma função social,

411 Waldirio Bulgarelli, Sociedades Comerciais, cit., p. 24.

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tal como assim reconhecido na própria Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/1976).412

Mas, seja por meio da sociedade anônima, seja através da sociedade limitada, o exercício da empresa é desempenhado coletivamente, pelos acionistas e sócios que a integram e controlam. De acordo com a concepção do Código Civil de 2002, a empresariedade seria exercida e titularizada pela própria sociedade, que assim passou a ser denominada como sociedade empresária, e não pelos seus sócios ou acionistas. Essa idéia é tanto contraditória entre os elementos do conceito, porque o qualificativo correto deveria ser sociedade empresarial, assim como quando atribui à própria sociedade existência independente de seus membros, como se a sociedade empresária existisse por si mesma, com iniciativa e vontade próprias.

O Código de 2002 não apresenta uma definição para sociedade empresária. Todavia, o seu art. 982 remete o intérprete para a atividade dessa sociedade como própria daquela desempenhada pelo empresário, ou seja, de produção ou circulação de bens ou de serviços.413 A sociedade empresária, na concepção do jurista-legislador, confunde-se com a própria empresa.414

412 A Lei 6.404/1976, ao definir as responsabilidades do acionista controlador e dos administradores da sociedade anônima, prescreve, no parágrafo único do art. 116: “O acionista controlador deve usar o seu poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”; o art. 154 no mesmo sentido dispõe: “O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”. 413 Na interpretação de Maria Cristina Zucchi, “o parâmetro de distinção entre a sociedade empresária e a sociedade simples não é o propósito lucrativo, mas sim a exploração do objeto social de forma profissional, estruturada em uma organização, visando à produção ou à circulação de bens ou serviços,” e o “enquadramento no regime de sociedade empresária ou no de sociedade simples (...) dependerá apenas de tratar-se do exercício de atividade empresária ou não”. (Direito de Empresa, São Paulo, Harbra, 2004, p. 51-52). 414 “Não define a nova Lei Civil o que seja “sociedade empresária”, mas seu conceito resulta da definição dada à figura do empresário (art. 966). (...) Há, a bem ver, dois significados da palavra empresa: um corresponde à atividade econômica como tal, tanto assim que, inicialmente, o Livro II se denominava “Atividades Negociais” e não “Direito de Empresa”; a segunda acepção do termo concerne à pessoa jurídica que organiza essa atividade”. Miguel Reale, A sociedade simples e a sociedade empresária no Código Civil, in História do Código Civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, p. 251.

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A doutrina recente passou a classificar a sociedade empresária em dois tipos: sociedade empresária por natureza e sociedade empresária por equiparação.415 A sociedade empresária por natureza seria aquela que tem por objeto o desempenho de atividade tipicamente mercantil, que seria própria da sociedade comercial. Nesse tipo, ficariam enquadradas todas as socidades que exercem atividades de comercialização de produtos e mercadorias para revenda, empresas industriais, de locação comercial de bens móveis, de representação comercial, de serviços financeiros, de seguro e transporte. A sociedade empresária por equiparação, por sua vez, é assim considerada não em razão do objeto, e sim em virtude da forma legal, por adotar um modelo societário sujeito a registro na Junta Comercial, como as sociedades com objeto nas áreas de educação e saúde, de serviços não mercantis e do setor agropecuário, por exemplo.

Essa distinção das sociedades empresárias em razão do objeto é polêmica na doutrina, considerando que o regime do direito de empresa procurou neutralizar a comercialidade da empresa e somente admite o seu enquadramento em virtude da forma empresarial. Na opinião de Jorge Lobo, por exemplo, a sociedade empresária somente pode ser definida em razão da sua forma, não sendo admitida qualquer concessão quanto à discussão do seu objeto.416 Essa posição demonstra a plena adesão desse autor à concepção estéril e neutral do regime do direito de empresa, segundo o qual a sociedade empresária desempenha atividade econômica de qualquer natureza e assim se qualifica juridicamente, desde que vinculada ao registro público de empresas, independente da mercantilidade do objeto ou da finalidade lucrativa.

Divergindo dessa posição ascética, de neutralidade da empresa em relação ao seu objeto, Sérgio Campinho considera que tanto em função da sua forma, como em razão do seu objeto, a sociedade empresária pode ser assim caracterizada e se diferenciar da sociedade simples, que não é empresária.417 Esse entendimento

415 Ricardo Negrão, Manual de Direito Comercial e de Empresa, São Paulo, Saraiva, vol. 1, 3ª edição, 2003, p. 238. 416 Jorge Lobo, Sociedades Limitadas, Rio de Janeiro, Forense, vol. 1, 2004, p. 20. 417 De acordo com Sérgio Campinho, na caracterização dos tipos societários, “a distinção em função do objeto reside no tipo, na modalidade da atividade econômica desenvolvida pela pessoa jurídica, vez que, como temos sustentado desde a primeira edição desta obra, a exploração da atividade econômica e a partilha de lucros são a essência do conceito de sociedade trazido pela nova ordem”, devendo ter-

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reconhece a permanência dos dois sistemas de regulação da empresa, o regime neutro do direito de empresa, constante do Código Civil, e o sistema da comercialidade da legislação não codificada, que se observa especialmente nas empresas constituídas para desempenhar atividades de natureza eminentemente mercantil, assim definidas por lei, como, por exemplo, o da representação comercial autônoma (Lei 4.886/1965) e o da concessão mercantil de veículos automotores (Lei 6.729/1979).

O problema terminológico introduzido pelo Código Civil de 2002 resulta, principalmente, do fato do legislador haver transposto, de modo artificial e equivocado, o regime da sociedade comercial do direito italiano sem respeitar a natureza diferenciada do objeto da empresa. Com efeito, no Código italiano de 1942, inexiste a figura da sociedade empresária, como instituição unificadora do exercício coletivo de atividade econômica. Não existe, no Código italiano, do qual o Código de 2002 foi decalcado, nem essa figura esdrúxula da sociedade empresária nem qualquer conceito semelhante. Mas, no sentido oposto, o Código italiano estabelece um tipo específico para a sociedade que exerce atividade comercial.418

Segundo Auletta, os critérios em que se funda a distinção entre os tipos societários são três:419

a) a situação da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais; b) a natureza da atividade social; e c) a divisão do capital em quotas ou ações.

O sistema italiano, portanto, além de desconhecer essa figura exótica denominada sociedade empresária, reconhece a diferenciação da sociedade em razão do seu objeto, e tanto assim que, explica Auletta, se uma sociedade tem por objeto atividade comercial, não pode adotar a forma de sociedade simples, mas deve ser organizada como uma sociedade de responsabilidade limitada ou sociedade

se em conta que “a atividade econômica é um gênero que comporta várias espécies, diversas ramificações, as quais, estas sim, são a fonte de diferenciação do objeto das sociedades empresária e simples” (O direito de empresa à luz do novo Código Civil, cit., p. 36-37). 418 Codice Civile d’Itália – “Art. 2249 Tipi di società - Le società che hanno per oggetto l'esercizio di un'attività commerciale (2195) devono costituirsi secondo uno dei tipi regolati nei Capi III e seguenti di questo Titolo.” 419 Giuseppe Auletta e Niccolò Salanitro, Diritto Commerciale, cit., p. 99.

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anônima.420 Nessa passagem, Auletta, simplesmente, tece comentários ao disposto no art. 2.249 do Código Civil italiano de 1942, que, ao se referir aos tipos societários, prevê que a sociedade que tiver por objeto o exercício de uma atividade comercial, deve se constituir segundo um dos tipos societários apropriados à natureza mercantil.

A sociedade empresária, pois, é mais um exemplo da desconexão entre a realidade das relações econômicas e a linguagem esteriotipada do Código de 2002, que revela a pretensão do legislador de impor um modelo sem qualquer antecedente legislativo, doutrinário ou jurisprudencial que o justifique na experiência comercial brasileira. Essas inovações sem sentido foram radicalmente criticadas pela doutrina, como encontramos nas palavras de Requião, para quem o Código inventou “uma linguagem arbitrária aos nossos costumes, à nossa tradição para ajustar a uma codificação irreal e artificiosa”,421 situação que vem a provocar não apenas dificuldades de compreensão científica do que seja sociedade empresária, mas também confusões terminológicas na doutrina, vez que alguns doutrinadores, mesmo no regime vigente do Código de 2002, chegam a se referir a essas sociedades como empresariais, e não como empresárias, sua denominação técnica ou legal.422

A mesma imprecisão terminológica igualmente vem atormentando, até hoje, a jurisprudência, quando refere-se a “sociedades empresariais”, divergindo do conceito legal, positivista, sem deixar de ser anacrônico, de “sociedade empresária”.423

420 Giuseppe Auletta e Niccolò Salanitro, Diritto Commerciale, cit., p. 99. 421 Rubens Requião, Projeto de Código Civil, Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, v. 17, cit., p. 135. 422 Américo Luis Martins da Silva, Sociedades Empresariais, Rio de Janeiro, Forense, vol. 1, 2006. 423 “Apelação cível. Ação cominatória. Pretensão de regularização de imóveis que lhe foram transferidos em acordo homologado judicialmente em razão de disolução de sociedade empresarial. Sentença que julgou procedente o pedido para condenar o réu a indenizar a autora no valor equivalente aos imóveis.” (TJSP, 8ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 0044935-65.2009.8.26.0405/50000 – Osasco, Relator Desembargador Silvério da Silva, julgado em 12/11/2014). “Impugnação à execução. Legitimidade “Ad causam” – Rejeição. Sociedade empresarial integrante do mesmo grupo econômico da executada. Indícios de confusão patrimonial e desvio de função. Legitimidade passiva da agravante para responder a execução – Possibilidade. Ausência de fundamentação. Decisão concisa. Possibilidade. Recurso desprovido. Decisão mantida”. (TJSP, 21ª Câmara de Direito Privado, Agravo 2131977-96.2014.8.26.0000 – São Paulo, Relator Desembargador Ademir Benedito, julgado em 12/11/2014).

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Na opinião, definitiva, de Fábio Konder Comparato, a atribuição do caráter de empresário à própria sociedade, pessoa jurídica, não passa de evidente “abuso de retórica”.424

Assim, é preferível e mais coerente com a nossa realidade, que continuemos a utilizar a expressão sociedade comercial ou sociedade mercantil para designar a forma da empresa coletiva, definição mais específica e que compreende não apenas a organização societária em si, mas também a natureza particular da atividade econômica, como atividade comercial, com natural escopo lucrativo, como assim encontra-se bem definido pela experiência advinda da aplicação da Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/1976, art. 2º), empresa mercantil por excelência.

4.5. Tipologia da empresa

Toda empresa é organizada, existe e representa-se através de diversos tipos e modalidades, seja sob o aspecto formal, seja no que tange ao seu objeto ou porte econômico. Essa tipologia da empresa implica na análise do fenômeno empresarial a partir de uma visão da realidade, da verificação empírica dos fatos econômicos, mercadológicos e patrimoniais, em efetiva concreção.

As empresas, tipos particulares e individualizados, são todas elas diferentes, não apenas em razão de sua espécie jurídica, mas de diversos outros critérios, como reflexo da própria diversidade presente na sociedade humana e nas pessoas. Como produto nato, objetivo e imediato da criação humana, cada empresa reflete, na

424 “O Código Civil Italiano, embora fundando toda a organização jurídica da empresa sobre a figura do imprenditore, ainda manteve absolutamente intocado esse esquema, em completo divórcio com a realidade econômica. Reconheceu como empresário o que exerce, profissionalmente, uma atividade econômica organizada, com o fito de produzir ou trocar bens ou serviços (art. 2.082). Atribuiu-lhe a posição de chefe da empresa, comandando hierarquicamente seus colaboradores (art. 2.086). Tais atributos, escusa lembrá-lo, só podem existir no homem, não na pessoa jurídica. Tratando-se de sociedades não personalizadas, ainda é possível dizer que todos os sócios são empresários. Mas, no caso das companhias, mesmo os não-kelsenianos percebem que a ideia de um sociedade empresária constitui evidente abuso de retórica”. (A reforma da empresa, cit., p. 68).

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realidade, a situação social, econômica e cultural do empresário que tomou a iniciativa para a sua constituição.

Da mesma maneira que a sociedade civil encontra-se estratificada em classes e estamentos, dividida entre miseráveis, pobres, classe média, ricos e milionários, a realidade empresarial segue idêntica estratificação, podendo variar desde uma microempresa, com um mínimo de patrimônio, passando por uma média empresa, até a grande corporação transnacional. Esse é um reflexo direto e imediato da diversidade patrimonial histórica, secularmente existente na sociedade desigual. A desigualdade é determinada pela fonte ou origem das riquezas, que se localiza, geralmente, na atividade empresarial. Os ricos e milionários, invariavelmente, são os herdeiros de grandes fortunas, donos de grandes propriedades rurais, ou capitalistas controladores de grandes empresas e grupos econômicos.425

As disparidades econômicas existentes na realidade empresarial deveriam ser, natural e objetivamente, sempre consideradas pelo legislador. Não é logicamente sustentável, como observou Fábio Konder Comparato, “ter como iguais perante a lei a sociedade multinacional e a quitanda da esquina; a empresa energética e a fábrica de confeitos; o conglomerado financeiro e o conjunto de diversões circenses”.426 O direito deve, pois, considerar a ampla diversidade de situações presentes na atividade das empresas sob a perspectiva econômica. Contraditoriamente, essa não foi a orientação adotada pelo regime do direito de empresa no Código Civil de 2002.

Além da estratificação das empresas em razão do seu porte econômico e objeto mercantil, diversos outros aspectos diferenciadores devem ser considerados para uma apreensão integral, holística, do objeto do nosso estudo. A empresa compreende um organismo jurídico, uma realidade social, e assim a sua investigação exigirá, sempre, que certos aspectos distintivos sejam devidamente segregados, para efeito de compreensão do seu regime jurídico próprio, ou da incidência de normas específicas de regulação.

425 Sobre a evolução da desigualdade econômica resultante da exploração capitalista, passim, Thomas Piketty, O capital no século XXI, tradução de Mônica Baumgarten, Rio de Janeiro, Intrínseca, 2014. 426 Fábio Konder Comparato, A Reforma da Empresa, cit., p. 60.

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Nesse sentido, convém adotar os seguintes critérios para fins de classificação e de diferenciação das empresas no ambiente de mercado:

a) Forma da empresa; b) Tipo societário; c) Regularidade jurídica; d) Responsabilidade do titular ou sócio; e) Porte econômico; f) Objeto da atividade; g) Regime de constituição; h) Vínculo pessoal; i) Duração; j) Nacionalidade; k) Territorialidade; l) Emissão de valores mobiliários; m) Relação de participação; n) Relação de concorrência; o) Origem do capital; p) Objeto ou forma especial.

Dos critérios diferenciadores referidos acima, quase nenhum deles é tratado ou regulado no Código Civil de 2002. E nele tampouco caberiam. A maior parte dos aspectos tipológicos ou de taxonomia das empresas encontra-se prevista na legislação comercial extravagante, não codificada. Apesar da preocupação do legislador do Código em abranger, do modo mais amplo possível, o instituto da empresa, essa regulação restrita não leva em consideração suas particularidades concretas, assim como essa gama de características variadas, que faz com que a empresa se apresente através de múltiplos tipos, modelos e formas diferentes na realidade econômica.

De acordo com os critérios de classificação aqui propostos, a tipologia da empresa pode ser desenvolvida a partir do seguinte desdobramento, contendo, cada uma, o respectivo embasamento normativo, doutrinário ou jurisprudencial:

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a) Forma da empresa - O critério inicial de classificação é aquele legal, relativo à forma, em que a empresa deve ser classificada de acordo com seu caráter pessoal ou pluripessoal, determinante do seu regime jurídico específico:

1) empresário ou firma individual (CC, art. 966);

2) empresa individual de responsabilidade limitada - EIRELI (CC, art. 980-A);

3) sociedade empresária, comercial ou mercantil (CC, art. 982).

b) Tipo societário - Sendo a empresa constituída e organizada como sociedade empresária ou comercial, ela adota uma das seguintes espécies ou tipos, que definem o respectivo regime jurídico:

1) sociedade anônima (Lei 6.404/1976);

2) sociedade limitada (CC, arts. 1.052 a 1.087);

3) sociedade em nome coletivo (CC, arts. 1.039 a 1.044);

4) sociedade em comandita simples (CC, arts. 1.045 a 1.051);

5) sociedade em comandita por ações (Lei 6.404/1976, arts. 280 a 284);

6) subsidiária integral (Lei 6.404/1976, art. 251);427

427 A subsidiária integral é uma companhia unipessoal que somente pode ser constituída por sociedade anônima brasileira. De acordo com a Exposição de Motivos do Projeto que resultou na Lei 6.404/1976, conforme anotado por Modesto Carvalhosa, a possibilidade de ser constituída uma subsidiária integral “dá juridicidade ao fato diário, a que se vêem constrangidas as companhias, de usar “homens de palha” para subscreverem algumas ações, em cumprimento ao requisito formal de número mínimo de acionistas”. Todavia, para Carvalhosa, o motivo da “larga adoção do instituto não está baseada no falso quadro acionário, mas na suplantação, a partir dos anos 30, da visão da companhia como contrato, para erigí-lo como instituto.” (...) “A pluralidade de sócios é, pois, fruto do superado contratualismo como expresão da reunião de capitais. Já o acionista único é fruto do institucionalismo, que se funda na empresa e não mais no contrato.” (Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, vol. 4, tomo 2, São Paulo, Saraiva, 4ª edição, 2002, p. 116-117). A figura da sociedade unipessoal foi duramente criticada e assim contestada por Trajano de Miranda Valverde: “Com absoluta falta de senso, sugeriu-se a possibilidade de se constituir sociedade anônima com um único subscritor ou acionista. Gente que ouve cantar o galo, mas não sabe onde. Nenhuma lei consagra, ou poderá consagrar, essa monstruosidade jurídica – indivíduo-sociedade. Nem mesmo a lei alemã de 1937, a mais revolucionária de todas, dada a orientação política da Alemanha “nacional-socialista” ousou admitir essa anomalia (vide Quassowsky, Aktiengesetz, 1937, p. 225). Aqui, porém, sob o calor dos trópicos, tudo se funde, até o bom senso.” (Sociedades por ações, vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 3° edição, 1959, p. 261).

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7) sociedade em conta de participação (CC, arts. 991 a 996);428

8) sociedade cooperativa (CC, arts. 1.093 a 1.096; Lei 5.764/1971).

c) Regularidade jurídica - O critério de regularidade jurídica é resultante do registro da empresa na Junta Comercial, com o arquivamento dos respectivos atos constitutivos. Segundo esse critério, a empresa pode ser:

1) empresa regular: aquela que promoveu o arquivamento dos seus atos constitutivos na Junta Comercial (CC, art. 967; Lei 8.934/1994, art. 32), e torna-se apta para exercer todos os direitos e obrigações na ordem jurídica;

2) empresa em regularização: quando a empresa ainda está em fase de constituição, adotando as providências preliminares para o atendimento aos requisitos legais, como ocorre na sociedade em comum (CC, art. 986) e na sociedade anônima, até a realização da assembleia de constituição (Lei 6.404/1976, art. 87);

3) empresa irregular ou informal: quando o exercício da atividade econômica é realizado por pessoa física, isoladamente, ou por duas ou mais pessoas (sociedade de fato), sem registro na Junta Comercial, somente assumindo obrigações e deveres na ordem jurídica.

d) Responsabilidade do titular ou sócio – A responsabilidade é determinada

em razão do fato do empresário ou sócio de sociedade poder assumir, ou não, em caráter pessoal, com risco do seu próprio patrimônio, as dívidas e obrigações da empresa de que ele faz parte, sendo que as empresas podem adotar as seguintes modalidades:

1) empresa de responsabilidade limitada: quando a constituição regular da empresa tem como efeito a aquisição de personalidade jurídica pelo ente criado, como EIRELI ou sociedade empresária, que passa a dispor de patrimônio próprio,

428 Fábio Ulhoa Coelho, divergindo da doutrina dominante e da própria classificação legal, não considera a conta em participação uma sociedade, pelas seguintes razões: “A conta em participação, a rigor, não passa de um contrato de investimento comum, que o legislador, impropriamente, denominou sociedade. Suas marcas características, que a afastam da sociedade empresária típica, são a despersonalização (ela não é pessoa jurídica) e a natureza secreta (seu ato constitutivo não precisa ser levado a registro na Junta Comercial). Outros de seus aspectos também justificam não considerá-la uma sociedade: a conta de participação não tem necessariamente capital social, liquida-se pela medida judicial de prestação de contas e não por ação de dissolução de sociedade, e não possui nome empresarial”. (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 510).

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constituído a partir do capital integralizado, e o titular ou sócio não responde pelas dívidas da empresa (CC, arts. 980-A; 1.052; Lei 6.404/1976, art. 1º);

2) empresa de responsabilidade ilimitada: no caso de empresário de firma individual, de sócio de sociedade em nome coletivo ou comanditado, ou de sociedade irregular, quando não existe separação patrimonial e o sócio ou titular da empresa responde, subsidiariamente, com seus bens pessoais, pelas dívidas perante credores (CC, arts. 990; 1.024; 1.039; 1.046, parágrafo único; 1.158; CPC, art. 596);429

3) empresa de responsabilidade mista: quando, em determinado tipo societário, existem sócios de responsabilidade limitada, geralmente os investidores, e sócios de responsabilidade ilimitada, que exercem funções de direção, administração e representação da sociedade (CC, art. 1.045; Lei 6.404/1976, art. 280).

e) Porte econômico – Para efeitos da diferenciação de regime jurídico, bem como para definir a incidência de normas contratuais voltadas à tutela jurídica das pequenas empresas,430 economicamente mais vulneráveis ou que cumpram relevante

429 A sociedade regularmente constituída pode tornar-se irregular, seja por continuar a sua atividade após iniciada a dissolução (Código Civil, art. 1.036), seja pela aplicação da desconsideração da pessoa jurídica, como assim entende a jurisprudência: “Sociedade limitada. Pleito de desconsideração da personalidade jurídica. Notícia de dissolução irregular. Responsabilidade dos sócios. Agravo provido. A constatação de que a sociedade executada foi dissolvida irregularmente autoriza o reconhecimento da responsabilidade ilimitada dos seus sócios, a permitir a incidência da penhora sobre seus bens pessoais”. (TJSP, 31ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 204514-12.2013.8.26.00 - São Paulo, Relator Desembargador Antonio Rigolin, julgado em 17/12/2013). 430 O regime especial das micro e pequenas empresas está fundamentado, em primeiro plano, no princípio instrumental do inciso IX do art. 170 da Constituição Federal, segundo o qual a ordem econômica deve assegurar “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”. Esse princípio é novamente referido e detalhado no art. 179 da Lei Maior: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.” Segundo Eros Roberto Grau, o princípio do art. 170, inciso IX, “está parcialmente reproduzido no preceito inscrito no art. 179”, razão pela qual um complementa o outro no sentido de definir um regime próprio, diferenciado, para as pequenas empresas. (A ordem econômica na Constituição de 1988, São Paulo, Malheiros, 16ª edição, 2012, p. 254). O Código Civil de 2002 reproduz essa norma programática da Constituição, mas restrita ao procedimento de registro na Junta Comercial, ao dispor no art. 970: “A lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes”. O regime especial da microempresa e da empresa de pequeno porte está regulado, hoje, pelas Leis Complementares 123/2006, 128/2008, 139/2011 e 147/2014, normas de conteúdo dominantemente de direito tributário, e não comercial.

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função social,431 estas podem ser classificadas do modo seguinte, inclusive por força de lei:

1) microempreendedor individual (MEI): é o menor tipo de empresário regular assim definido por lei, adotando, sempre, a forma de empresário individual (CC, artigos 966 e 970), enquadrado nessa condição caso tenha auferido receita bruta anual no valor de até R$ 60.000,00, e seja optante do Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Simples Nacional (Lei Complementar 123/2006, art. 18-A, com a redação das Leis Complementares 128/2008; 139/2011 e 147/2014);

2) microempresa (ME): constituída sob qualquer forma de empresa, como empresário individual, EIRELI ou sociedade empresária ou comercial, que tenha auferido receita bruta anual igual ou inferior a R$ 360.000,00 (Lei Complementar 123/2006, art. 3º, inciso I);

3) empresa de pequeno porte (EPP): empresa que pode ser constituída como firma individual, EIRELI ou sociedade empresária, com receita bruta anual superior a R$ 360.000,00 e igual ou inferior a R$ 3.600.000,00 (Lei Complementar 123/2006, art. 3º, inciso II);

4) empresa de médio porte: não possui enquadramento legal, sendo considerada, apenas para fins estatísticos e para avaliação de capacidade financeira pelos bancos432 e institutos de pesquisa,433 como aquela que, não sendo microempresa ou empresa de pequeno porte, conta com mais de 50 e menos de 250 empregados;

431 A classificação das empresas de acordo com seu porte ou tamanho, medido pela sua receita bruta ou número de empregados, pode resultar em tratamento jurídico diferenciado, seja da forma expressamente determinada em lei, como no caso do regime das micro e pequenas empresas, seja considerando o desequilíbrio ou desigualdade entre agentes econômicos, e as relações de dependência ou subordinação entre empresas. Para Vincenzo Buonocore, a distinção entre pequena empresa e grande empresa resulta, em primeiro aspecto, de um caráter que ele define como “empresarialidade”, em que a diferença entre as empresas decorre do fator organizacional ou gerencial: “Na realidade, o primeiro e talvez determinante dado que necessitamos ter em conta é o ensinamento que vem de outra disciplinas, no âmbito das quais a distinção das empresas com base no critério dimensional responde, antes de tudo, às exigências que podemos definir, de modo amplo, como empresarialidade (aziendalistiche), que parte da contabilidade para terminar na gestão compreendida por um todo, ou mais precisamente, das diferenças existentes entre uma pequena e uma grande empresa no que se refere ao modo de assegurar os recursos e de administrar a empresa.” (L’Impresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 576). 432 Para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, instituição financeira pública federal, médias empresas são aquelas com receita operacional bruta anual superior a R$ 16.000.000,00 e inferior ou igual a R$ 300.000.000,00; grandes empresas são aquelas com receita operacional bruta anual superior a R$ 300.000.000,00. (Circular BNDES nº 11/2010, de 05/03/2010). 433 De acordo com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, “a análise de porte das empresas do CEMPRE adota como referência as faixas de pessoal ocupado total definidas pela Oficina Estatística da Comunidade Europeia - Eurostat (Statistical Office of the European Communities) e pela Organização das Nações Unidas – ONU, na Recomendação 2003/361/CE, de 20 de maio de 2003, da Comissão das Comunidades Europeias. De acordo com esta definição, microempresas são as empresas com até 9 pessoas ocupadas; empresas pequenas são as que possuem de 10 a 49 pessoas ocupadas; empresas médias, de 50 a 249 pessoas; e empresas grandes possuem 250 ou

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5) empresa de grande porte: é aquela definida, para fins estatísticos, como tendo mais de 250 empregados; todavia, para efeito de auditoria externa e publicação das demonstrações financeiras (Lei 11.638/2007, art. 3º) é considerada de grande porte a sociedade ou conjunto de sociedades, sob controle comum, que tiver, no exercício social, ativo total superior a R$ 240.000.000,00 ou receita bruta anual superior a R$ 300.000.000,00.

f) Objeto da atividade – O critério do objeto diferencia as empresas em razão do ramo de atividade, sendo um dos mais importantes para a caracterização da natureza mercantil e para a definição da incidência de normas especiais que regulam determinados tipos de atividades econômicas, assim subdivididas:434

1) empresa comercial: exerce típica atividade comercial de compra de mercadorias para revenda ou locação de uso, atividade que era característica do antigo comerciante, e que pode ter por objeto tanto bens móveis como bens imóveis; o comércio faz parte do setor terciário da economia, responsável pela circulação das mercadorias e por sua colocação no mercado; as empresas comerciais subdividem-se em empresas atacadistas (a grosso), que têm como clientes exclusivos outras empresas, e empresas varejistas (a retalho), que atuam no mercado de consumo, ficando assim submetidas às normas especiais de proteção do consumidor;435 as empresas comerciais atuam tanto através de estabelecimentos físicos, como em vendas à distância, realizadas via estabelecimentos virtuais na Internet.436

2) empresa industrial: compreende as atividades da indústria manufatureira e de transformação em larga escala,437 de produção de matérias primas, bens de capital,

mais pessoas ocupadas (Schmiemann, 2008)”. Estatísticas do Cadastro Central de Empresas 2009, Rio de Janeiro, IBGE, 2011, p. 27). 434 O Código Civil de 2002 não contém norma semelhante, porque somente classifica a empresa em razão da forma, e não segundo a atividade econômica. No Código italiano de 1942, a empresa é classificada, para efeito de registro, de acordo com a atividade ou ramo de negócio: “Art. 2195 Imprenditori soggetti a registrazione - Sono soggetti all'obbligo dell'iscrizione nel registro delle imprese gli imprenditori che esercitano: 1) un'attività industriale diretta alla produzione di beni o di servizi; 2) un'attività intermediaria nella circolazione dei beni; 3) un'attività di trasporto per terra, o per acqua o per aria; 4) un'attività bancaria o assicurativa; 5) altre attività ausiliarie delle precedenti (1754). Le disposizioni della legge che fanno riferimento alle attività e alle imprese commerciali si applicano, se non risulta diversamente, a tutte le attività indicate in questo articolo e alle imprese che le esercitano (att 100, 200).” 435 Existem regimes próprios e específicos para empresas estritamente comerciais, como, por exemplo, da representação comercial autônoma (Lei 4.886/1965), em que o representante sempre terá por objeto a intermediação da negócios mercantis, e da concessão comercial de veículos automotores (Lei 6.729/1979), em que a atividade da rede distribuidora ou concessionárias de automóveis enquadra-se como essencialmente comercial. A representação comercial autônoma corresponderia ao contrato de agência regulado no Código Civil de 2002 (arts. 710 a 721), enquanto a concessão comercial é um tipo específico de contrato de distribuição, também regulado junto com o contrato de agência. 436 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 3, cit., p. 49. 437 Carvalho de Mendonça refere-se à atividade industrial como “atos das empresas de fábricas”, esclarecendo que, “ao invés de oferecer a definição do que seja fábrica, seria melhor dizer que se trata

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produtos e mercadorias, máquinas, implementos e insumos, integrante do setor secundário da economia,438 constituída, geralmente, por médias e grandes empresas, sendo matéria de regulação e estudo, não exclusivo, pelo direito industrial ou da propriedade industrial (Lei 9.279/1996)439 e pelo direito concorrencial ou antitruste (Lei 12.529/2011).

3) empresa financeira e bancária: são as empresas sob a forma de sociedade anônima que atuam no setor de financiamento da produção e do consumo, das operações cambiais e de crédito, sujeitas a forte regulamentação estatal e fiscalização pelo Banco Central, no âmbito do mercado financeiro (Lei 4.595/1964), e pela Comissão de Valores Mobiliários, no tocante ao mercado de capitais e bolsas de valores, mercadorias e futuros (Lei 4.728/1965; Lei 6.385/1976);440 são legalmente equiparadas às instituições financeiras, para efeitos de regime jurídico e fiscalização pelo Banco Central, as empresas de arrendamento mercantil ou leasing (Lei 6.099/1974), consórcio de bens duráveis (Lei 11.795/2008), e todas as demais sociedades comerciais ou empresárias que exerçam atividade de intermediação financeira ou de concessão de crédito.441

4) empresa seguradora: as companhias seguradoras, que adotam também a forma de sociedade anônima e, podem estar, ou não, vinculadas a conglomerados

de atos de empresas industriais que elaboram a matéria prima para conseguir, mediante reuniões, separações ou transformações, cousas de valor (manufatura). Assim, essas empresas, “em virtude dos atos que as formam e de acordo com as exigências do mercado, constituem a verdadeira indústria de produção, não obstante se achar de ordinário aliada à operação fundamental do comércio, compra e venda; pode-se classifica-la ao lado da indústria comercial propriamente dita, destinada à distribuição das mercadorias”. (Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit. p. 495-496). 438 No Brasil, as cinco principais atividades industriais, segundo o IBGE, com maior participação nas receitas brutas das empresas fabris responderam por, aproximadamente, 56,1% do total das receitas brutas no ano de 2009 da indústria nacional. Os maiores setores são de fabricação de produtos alimentícios, fabricação de veículos automotores, indústria petrolífera, fabricação de produtos químicos e de metalurgia. (IBGE – Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Pesquisa Industrial, Rio de Janeiro, v. 28, nº 1, 2009, p. 29). 439 O direito industrial, na definição de Fábio Ulhoa Coelho, “é a divisão do direito comercial que protege os interesses dos inventores, designers e empresários em relação às invenções, modelo de utilidade, desenho industrial e marcas.” (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 153). 440 As atividades bancárias e financeiras são reguladas e estudadas no ramo especial do direito comercial, denominado direito bancário, o qual, na opinião de Waldírio Bulgarelli, trata-se de uma área de especialização do direito das obrigações mercantis, na qual também está inserido o direito bolsístico (ou bursátil), relativo às operações das bolsas de valores. (Direito Comercial, cit., p. 21-22). 441 Lei 4.595/1964 - Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Art. 18 (...) § 1º Além dos estabelecimentos bancários oficiais ou privados, das sociedades de crédito, financiamento e investimentos, das caixas econômicas e das cooperativas de crédito ou a seção de crédito das cooperativas que a tenham, também se subordinam às disposições e disciplina desta lei no que for aplicável, as bolsas de valores, companhias de seguros e de capitalização, as sociedades que efetuam distribuição de prêmios em imóveis, mercadorias ou dinheiro, mediante sorteio de títulos de sua emissão ou por qualquer forma, e as pessoas físicas ou jurídicas que exerçam, por conta própria ou de terceiros, atividade relacionada com a compra e venda de ações e outros quaisquer títulos, realizando nos mercados financeiros e de capitais operações ou serviços de natureza dos executados pelas instituições financeiras.

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bancários, têm como atividade a oferta de seguros de vida, acidentes, danos, infortúnios, responsabilidade e riscos de modo geral e a cobertura de sinistros, autorizadas e fiscalizadas pela Superintendência de Seguros Privados – SUSEP (Decreto-Lei 73/1966), ou de planos de saúde e assistência médica, sujeitas à autorização e fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS (Lei 9.656/1998); o regramento e estudo das atividades de seguro faz parte do direito securitário, que integra a disciplina do direito das obrigações mercantis.442

5) empresa de transporte: as empresas transportadoras respondem pelas funções essenciais de realizar a circulação das mercadorias e produtos, integrando, na economia, o elo logístico entre o processo industrial e o comercial; subdividem-se de acordo com o modal ou meio de transporte em marítimo, rodoviário, aéreo ou ferroviário;443 as empresas de transporte submetem-se a duplo regime jurídico, abrangendo os contratos de transporte, de passageiros e de carga, e os regulamentos de tráfego editados pelo poder público; o direito dos transportes compreende diversas normas de regulação e seus órgãos de fiscalização, destacando-se o ramo especializado e secular do direito comercial marítimo;444 as normas gerais dos contratos de transportes constam atualmente do Código Civil de 2002 (artigos 730 a 756).

6) empresa de depósito e armazém geral: enquadram-se como tais as empresas que realizam a guarda e depósito de mercadorias, situadas em portos, trapiches e entrepostos de transporte, sendo autorizadas a emitir títulos representativos das mercadorias armazenadas;445 as empresas de armazens gerais são reguladas por normas obsoletas, mas ainda em vigor (Decreto 1.102/1903), estando sujeitas a regime de matrícula na Junta Comercial (Lei 8.934/1994, art. 32), integrante da categoria dos agentes auxiliares do comércio, regulada na parte revogada do Código Comercial de 1850 (artigos 87 a 98).

7) empresa de serviços: as atividades de prestação de serviços, no anterior regime do Código Comercial de 1850 e do Código Civil de 1916, eram consideradas, geralmente, atividades civis, exercida por profissionais autônomos; somente as atividades diretamente relacionadas com o comércio e a indústria, atos de comércio por natureza, a exemplo dos serviços financeiros e de transporte, eram submetidos à lei mercantil; a partir do Código Civil de 2002, consolidando tendência evolutiva da atividade econômica e do processo de terceirização, as atividades de prestação de serviços, inclusive nas áreas de saúde e educação, passaram a ser classificadas como de natureza empresarial, sendo agora natural a adoção da

442 Waldírio Bulgarelli, Direito Comercial, cit., p. 22. 443 A Lei 9.611/1998 (art. 2º) disciplina, também, o transporte multimodal ou intermodal de cargas, definido este como “aquele que, regido por um único contrato, utiliza duas ou mais modalidades de transporte, desde a origem até o destino.” 444 A Parte Segunda do Código Comercial de 1850, regulando o comércio marítimo (artigos 457 a 796), ainda permanece em vigor, não havendo sido revogada pelo Código Civil de 2002. 445 Os títulos representativos das mercadorias sob guarda de armazém geral são o conhecimento de depósito e o warrant (Decreto 1.102/1903, art. 15); para os títulos do agronegócio, vinculados a mercadorias e commodities depositados, a legislação mais recente (Lei 11.076/2004) autoriza a emissão de Certificados de Depósito Agropecuário - CDA e de Warrant Agropecuário – WA.

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forma de empresário (CC, art. 966) ou sociedade empresária (CC, art. 982) em todas as modalidades de serviços.

8) empresa de tecnologia: graças à revolução da tecnologia e da informática, ocorrida no quarto final do século XX, novos tipos de atividades econômicas vem sendo constantemente desenvolvidas, em especial na indústria dos computadores, de sistemas e equipamentos de conectividade, nas redes de dados e de telecomunicações; assim, as empresas de tecnologia, desenvolvedoras de equipamentos, programas de computador, aplicativos ou softwares (Lei 9.609/1998), passaram a constituir categoria especializada, inovadora, diante dos critérios tradicionais de classificação das atividades empresariais referidos na lei.446

9) empresa de construção civil: a construção civil, como do próprio sobrenome infere-se, não consistia em atividade comercial, sendo regulada pelas normas do contrato de empreitada do Código Civil de 1916, até ser assim comercializada por força de lei: “São comerciais as empresas de construção” (Lei 4.068/1962, art. 1º); especialmente a partir da Lei 4.591/1964, que disciplina o condomínio, a construção e incorporação imobiliária, as empresas desse setor passaram a ser classificadas como indústria da construção civil, e os imóveis edificados, especialmente em obras privadas, dirigidas ao mercado imobiliário, são enquadrados como bens comerciais, ou seja, como mercadorias.447

10) empresa de comércio exterior: nesse segmento situam-se as empresas especializadas em realizar ou facilitar as operações entre empresas nacionais e estrangeiras; em geral, a empresa de comércio exterior dedica-se à exportação de produtos fabricados no país por empresas industriais, devendo adotar a forma de sociedade anônima (Decreto-Lei 1.248/1972, art. 2º) para usufruir os benefícios

446 São exemplos de empresas de tecnologia as desenvolvedoras de programas de computador e softwares, como Microsoft, Google, Mozilla, Adobe e Symantec. Essas empresas transnacionais desenvolvem e colocam à disposição dos usuários, via programas com download pago ou gratuito, sistemas e aplicativos profissionais, educacionais, de entretenimento, gerados para realizar uma série de tarefas e funções. As empresas de tecnologia também respondem pelo desenvolvimento de produtos e equipamentos de hardware, a exemplo da Apple, IBM, Intel e Hewlett-Packard (HP), como segmento especial da indústria com características diferenciadas, inclusive porque exploram intensivamente os recursos da Internet e da rede World Wide Web (www). 447 “Tributário. Cofins. Venda de imóveis. LC nº 70/91. Alteração do texto constitucional pela EC nº 20/98. Não incidência. Redefinição da matéria pela Primeira Seção. 1. Em vários julgamentos emiti pronunciamento no sentido de que a COFINS incide sobre o faturamento de empresas que, habitualmente, negociam com imóveis, em face de: a) o imóvel ser um bem suscetível de transação comercial, pelo que se insere no conceito de mercadoria; b) as empresas construtoras de imóveis efetuam negócios jurídicos com tais bens, de modo habitual, os quais constituem mercadorias que são oferecidas aos clientes compradores; c) a Lei nº 4.068, de 09.06.62, determina que as empresas de construção de imóveis possuem natureza comercial, sendo-lhes facultada a emissão de duplicatas; d) a Lei nº 4.591, de 16.12.64, define como comerciais as atividades negociais praticadas pelo "incorporador, pessoa física ou jurídica, proprietário ou não, promotor ou não da construção, que aliene total ou parcialmente imóvel ainda em construção, e do vendedor, proprietário ou não, que habitualmente aliene o prédio, decorrente de obra já concluída, ou terreno fora do regime condominial, sendo que o que caracteriza esses atos como mercantis, em ambos os casos, e o que diferencia dos atos de natureza simplesmente civil, é a atividade empresarial com o intuito de lucro" (Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, ob. já citada). (STJ, 1ª Turma, REsp 439.417-SC, Relator Ministro José Delgado, DJ 23/09/2002).

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fiscais concedidos pela legislação; a empresa de comércio exterior pode estruturar-se como trading company, para realizar operações de importação e exportação de mercadorias de outras empresas.448

11) empresa de diversões públicas: as atividades de espetáculos públicos sempre foram consideradas de natureza comercial, pelo seu modo de exploração de eventos oferecidos para o público, como o teatro, cinema, o circo, os parques de diversões; nesse segmento enquadram-se as empresas de espetáculos artísticos, musicais, cinematográficos, circenses e esportivos; desde que a atividade de diversão seja aberta ao público, que tem acesso mediante pagamento de ingresso, ela caracteriza-se como comercial ou empresarial.449

12) empresa extrativista: é aquela que está organizada para a exploração dos recursos naturais e produção extrativa animal, vegetal e mineral; em determinados casos, ela pode até ser considerada como empresa rural,450 mas se ela não for constituída como tal, particularmente nas áreas da pesca e da mineração, integra segmento especial, do setor primário da economia.

13) empresa rural: a atividade rural, em princípio, determinante da estrita separação entre os campos do direito civil e do direito comercial, não é qualificada como mercantil; a legislação admite, todavia, a adoção da forma comercial na exploração das atividades rurais, agrícolas ou pecuárias, inclusive conforme a redação do art. 971 do Código Civil.451 O próprio conceito de empresa rural, constante da Lei 4.504/1964 (Estatuto da Terra), qualificava a exploração econômica da propriedade rural, agrícola ou pecuária, independentemente da sua constituição formal no

448 O regime da empresa comercial exportadora está regulado no Decreto-Lei 1.248/1972, e nos artigos 247 a 253 da Portaria SECEX nº 23/2011 da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. A Portaria nº 438, de 26 de maio de 1992, do Ministério da Fazenda, regula a concessão do Registro Especial a Empresas Comerciais Exportadoras, assim prescrevendo: “Art. 2º. É permitido à Empresa Comercial Exportadora adquirir e exportar qualquer mercadoria de produção nacional, importar para comercializar no mercado interno, ou reexportar mercadorias estrangeiras, atendidas as normas estabelecidas no Regulamento Aduaneiro, aprovado pelo Decreto nº 91.030, de 5 de março de 1985, e demais legislação pertinente”. 449 Na lição de Carvalho de Mendonça, as operações das empresas de espetáculos públicos devem ser consideradas como “exercício da indústria tendo por objeto, recrear ou divertir o público mediante paga, visando benefícios pecuniários: teatros, circos, salões de concertos ou festivais, salas de conferência, cinematógrafos, hipódromos, velódromos, etc. As empresas constituídas para a realização desses fins, qualquer que seja o gênero de diversões permitidas e a forma da organização, são sujeitas às disposições do Código Comercial e leis complementares. São, portanto, comerciantes os respectivos empresários”. (Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. I, cit. p. 503). 450 “Agravo de instrumento. Recurso de Revista. Não-provimento. Prescrição rurícola (...) Cenibra Florestal. Empresa Extrativista. Atividade Rural. O entendimento jurisprudencial deste Tribunal é no sentido de que a empresa extrativista de madeira pertence ao ramo rural, caso da própria Cenibra, em que os precedentes reconhecem a sua qualidade de empregadora rural por explorar atividade agroeconômica, ou seja, plantio e exploração de madeira. Agravo de instrumento a que se nega provimento”. (Tribunal Superior do Trabalho, 5ª Turma, AIRR 4271900332002503 4271900-33.2002.5.03.0900, Relatora Ministra Kátia Magalhães Arruda, DJ 19/09/2008). 451 Código Civil de 2002 – “Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro”.

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registro de empresas.452 O Código de 2002, ao contrário, somente autoriza o enquadramento de uma empresa como rural em razão do seu registro na Junta Comercial.

14) empresa do agronegócio: compreende a empresa rural que explora propriedades agrícolas e pecuárias em grandes extensões, para produção de mercadorias com cotação em bolsas (commodities) e destinadas, geralmente, à exportação; as empresas do agronegócio, para o financiamento da sua produção, podem emitir títulos de crédito especiais, denominados de títulos ou cambiais do agronegócio, para securitização e comercialização no mercado financeiro.453

g) Regime de constituição – O regime de constituição, como ato de criação, é aquele que determina o modo e exigências pelas quais uma empresa pode ser criada a partir da iniciativa do empresário e de seus sócios. Como regra específica, deve prevalecer o princípio da liberdade de empresa estatuído pelo parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.454 Todavia, para determinadas atividades que a lei considerar de relevante interesse público ou social, a constituição da empresa dependerá de prévia autorização do Estado, como assim ocorre, por

452 De acordo com o art. 4º da Lei 4.504/1964, a empresa rural assim é definida: “Empresa Rural é o empreendimento de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente imóvel rural, dentro de condição de rendimento econômico da região em que se situe e que explore área mínima agricultável do imóvel segundo padrões fixados, pública e previamente, pelo Poder Executivo. Para esse fim, equiparam-se às áreas cultivadas, as pastagens, as matas naturais e artificiais e as áreas ocupadas com benfeitorias”. 453 Lei 11.076/2004, que dispõe sobre o Certificado de Depósito Agropecuário – CDA, o Warrant Agropecuário – WA, o Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio – CDCA, a Letra de Crédito do Agronegócio – LCA e o Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA. Os títulos de crédito do agronegócio são aqueles “vinculados a direitos creditórios originários de negócios realizados entre produtores rurais, ou suas cooperativas, e terceiros, inclusive financiamentos ou empréstimos, relacionados com a produção, comercialização, beneficiamento ou industrialização de produtos ou insumos agropecuários ou de máquinas e implementos utilizados na atividade agropecuária”. (Lei 11.076/2004, art. 23). 454 Para Eros Roberto Grau, “o preceito inscrito no parágrafo único do art. 170, que se tem enfatizado, na afirmação de que reiteraria, consolidando, o caráter liberal da ordem econômica na Constituição de 1988, tem relevância normativa menor. Pois é certo que postulação primária da liberdade de iniciativa econômica (...) é a garantia da legalidade: liberdade de iniciativa econômica é liberdade pública precisamente ao expressar não sujeição a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei. O que esse preceito pretende introduzir no plano constitucional é tão-somente a sujeição ao princípio da legalidade em termos absolutos – e não, meramente, ao princípio da legalidade em termos relativos (art. 5º, II) – da imposição, pelo Estado, de autorização para o exercício de qualquer atividade econômica”. (A ordem econômica na Constituição de 1988, cit., p. 205).

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exemplo, na atividade financeira e bancária. De acordo com o critério do regime de constituição, as empresas assim classificam-se:

1) regime de livre criação: para a imensa maioria das atividades econômicas, o Estado não exige nenhuma autorização prévia para a criação de empresas, prevalecendo o princípio do art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal; em decorrência desse princípio da liberdade de empresa, toda e qualquer pessoa pode exercer atividade econômica, desde que não sujeita a disciplina normativa própria do regime especial de autorização;

2) regime de autorização: quando a lei assim exigir, determinadas atividades econômicas somente podem ser exercidas com prévia autorização do Poder Público; o Código Civil de 2002 regula, em normas gerais, as sociedades dependentes de autorização (artigos 1.123 a 1.141), em especial para o funcionamento de empresas estrangeiras no país, sendo essa autorização sempre de competência do Governo Federal; o regime de autorização importa em modo de intervenção direta do Estado na atividade econômica, realizada por órgãos públicos, como o Banco Central do Brasil no âmbito do sistema financeiro nacional, exercendo poderes de normatização, fiscalização, intervenção e liquidação extrajudicial sobre as empresas sujeitas a esse regime;455

3) regime de monopólio: como decorrência do princípio constitucional da livre concorrência (CF, art. 170, inciso IV), é vedada a existência de monopólios em qualquer setor da economia; a Constituição Federal somente admite a existência de monopólio da União nos setores de petróleo e minerais nucleares (CF, art. 177), cabendo exclusivamente à lei regular todo modo de atuação monopolista, sendo qualquer tentativa ou ato de dominação no mercado objeto de repressão pela legislação antitruste ou de defesa da concorrência (Lei 12.529/2011).

h) Vínculo pessoal – O vínculo pessoal é considerado, regra geral, como resultante das relações familiares do empresário, ou dos sócios entre si na sociedade comercial.456 A vinculação familiar pode determinar a incidência de normas especiais

455 “O princípio da livre iniciativa é garantido constitucionalmente (art. 170, parágrafo único). Todavia, existem atividades cujo exercício afeta o interesse público. Assim, por exemplo, a atividade de intermediação financeira ou aquelas que tenham em vista a saúde ou a educação. Por tal razão, tendo em vista os interesses desenvolvidos, estas atividades somente podem ser exercidas por quem o Poder Público considere suficientemente habilitado. Daí a necessidade da autorização para funcionar. Destarte, o Poder Público exerce uma supervisão constante, a priori, verificando se o titular da atividade preenche os requisitos necessários para o seu exercício, sem o que não é concedida a autorização; durante o seu exercício, de molde a que não se afaste dos requisitos para a concessão da autorização, sob pena de cassação; a posteriori, disciplinando o modo pelo qual terá lugar a extinção do titular da atividade, como ocorre no regime de liquidação extrajudicial (Lei 6.024/74) das instituições financeiras.” (Vera Helena de Mello Franco, Manual de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 51-52). 456 Na opinião de Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede, a empresa familiar compreende a sociedade empresária, “cujas quotas ou ações estejam sob o controle de uma família, podendo ser

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nas relações empresariais, particularmente em questões de natureza societária e sucessória. De acordo com pesquisas e trabalhos científicos, de base empírica, as organizações familiares representam a grande maioria das empresas.457 Todavia, o conceito de empresa familiar comporta entendimento mais amplo, para também compreender o empresário individual que trabalha com o concurso de seus familiares e também a empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI, justificada pela existência da relação de sucessão hereditária. Por essa razão, a empresa familiar, individual ou coletiva, deve ser objeto de análise e tratamento jurídico específico,458 tal como regulada no Código Civil italiano de 1942,459 e que assim vem sendo diferenciada na jurisprudência.460 Segundo esse critério do vínculo pessoal, as empresas podem ser classificadas do seguinte modo:

administrada por seus membros, ainda que com o auxílio de gestores profissionais”. (Empresas familiares – O papel do advogado na administração, sucessão e prevenção de conflitos entre sócios, São Paulo, Atlas, 2ª edição, 2014, p. 11). 457 Gersick, Davis, Hampton e Lansberg destacam que entre 65% e 80% das empresas no mundo são familiares, de todos os portes e tamanhos (Kevin E. Gersick, John A. Davis, Marion McCollon Hampton, Ivan Lansberg, De Geração para geração: Ciclos de vida da empresa familiar, Harvard Business School Press, São Paulo, Negócio Editora, 1997, p. 3). No Brasil, Volnei Pereira Garcia chega a afirmar que 95% das 300 maiores empresas nacionais são controladas por famílias, e essas empresas familiares contribuem com mais de 50% do Produto Interno Bruto (PIB) e respondem por mais de três quartos dos empregos (Desenvolvimento das famílias empresárias, Rio de Janeiro, Qualitymark, 2001, p. 23). Estudo patrocinado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, destaca que mais de 70 % das pequenas empresas no Brasil são familiares (Antonio Domingos Padula, Empresa familiar, Porto Alegre, SEBRAE/RS, 1998, p. 7-8). 458 Ainda que não tenha sido atribuída caracterização legal específica no ordenamento jurídico brasileiro, observam Eduardo Goulart Pimenta e Maíra Leitoguinhos de Lima Abreu que “as sociedades familiares são objeto de análise pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sendo a elas aplicados institutos que não seriam cabíveis às demais. Um dos relevantes aspectos característicos das chamadas empresas familiares está na premissa de que as decisões no âmbito familiar são pautadas, em regra, no sentimento, pessoalidade e na tradição, o que confronta com a racionalidade e eficiência que deve prevalecer na prática empresarial” (Conceituação jurídica da empresa familiar, em Fábio Ulhoa Coelho e Marcelo Andrade Féres, coordenadores, Empresa familiar – Estudos jurídicos, São Paulo, Saraiva, 2014, p. 51). 459 Código Civil italiano de 1942 - Art. 230-bis Impresa familiare - Salvo che configurabile un diverso rapporto, il familiare che presta in modo continuativo la sua attività di lavoro nella famiglia o nell'impresa familiare ha diritto al mantenimento secondo la condizione patrimoniale della famiglia e partecipa agli utili dell'impresa familiare ed ai beni acquistati con essi nonché agli incrementi dell'azienda, anche in ordine all'avviamento, in proporzione alla quantità alla qualità del lavoro prestato. Le decisioni concernenti l'impiego degli utili e degli incrementi nonché quelle inerenti alla gestione straordinaria, agli indirizzi produttivi e alla cessazione dell'impresa sono adottate, a maggioranza, dai familiari che partecipano alla impresa stessa. I familiari partecipanti all'impresa che non hanno la piena capacità di agire sono rappresentati nel voto da chi esercita la potestà su di essi. 460 “Processual Civil – Execução Fiscal – Penhora – Bem de família – Impenhorabilidade – Imóvel de propriedade de sociedade comercial - Residência dos dois únicos sócios – Empresa familiar – Precedentes. 1. A Lei nº 8.009/90 estabeleceu a impenhorabilidade do bem de família, incluindo na série o imóvel destinado à moradia do casal ou da entidade familiar, a teor do disposto em seu art. 1º. 2. Sendo a finalidade da Lei nº 8.009/90 a proteção da habitação familiar, na hipótese dos autos, demonstra-se o acerto da decisão de primeiro grau, corroborada pela Corte de origem, que reconheceu a impenhorabilidade do único imóvel onde reside a família do sócio, apesar de ser da propriedade da

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1) empresa individual familiar: aquela constituída sob a forma de firma individual ou EIRELI, em que o trabalho é realizado e dividido entre o empresário, seu cônjuge e familiares, com ou sem relação de emprego, mas tendo estes poderes de representação ou preposição (CC, art. 1.169); a sucessão do titular na empresa individual familiar é um dos aspectos que revelam características próprias e específicas a justificar tratamento jurídico diferenciado ou regime normativo especial, não previsto no Código Civil;

2) sociedade empresária familiar: sendo a empresa constituída sob a forma de sociedade empresária ou comercial, como sociedade limitada ou sociedade anônima, será familiar quando as quotas ou ações de controle forem detidas por uma família ou núcleo familiar; a sociedade familiar entre cônjuges é prevista no Código Civil de 2002, ainda que, contraditoriamente, no capítulo relativo à capacidade do empresário individual (CC, art. 977);461 a sociedade familiar pode ser entre cônjuges (sociedade familiar conjungal) ou entre irmãos, pais e filhos, primos e primas (sociedade familiar parental); na sociedade empresária familiar, as relações de natureza societária e sucessória devem ser interpretadas e reguladas de modo diferenciado em comparação com a sociedade entre pessoas que não integram o mesmo núcleo familiar;

3) empresa impessoal ou profissional: nesta categoria enquadram-se as empresas em que a atividade principal do empresário é exercida sem o concurso ou participação de qualquer parente, ou nas quais o controle das quotas ou ações não pertença a nenhuma família ou núcleo familiar dominante, estando dispersa entre investidores no mercado, como ocorre nas companhias abertas, ainda que a empresa tenha origem familiar; na empresa impessoal, a gestão é desempenhada por administradores que não possuem grau de parentesco entre si ou por executivos profissionais, não prevalecendo qualquer aspecto personalíssimo, sentimental, afetivo ou solidário, como é próprio e característico nas organizações familiares.

i) Duração – De acordo com o critério de duração, as empresas são criadas e

constituídas, regra geral, para existir por tempo determinado ou indeterminado. Este critério somente aplica-se às sociedades comerciais ou empresárias, porque a fixação de um prazo, determinado ou indeterminado, para a duração da empresa depende de disposição em cláusula contratual ou estatutária. Essa determinação do prazo é com

empresa executada, tendo em vista que a empresa é eminentemente familiar. Recurso especial improvido”. (STJ, 2ª Turma, REsp 1.024.394/RS, Relator Ministro Humberto Martins, DJe 14/03/2008, LEXSTJ, vol. 225, p. 232). 461 Código Civil de 2002 – Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.

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relação à existência da própria sociedade, não da vinculação entre ela e os sócios.462

As firmas ou empresas individuais estão vinculadas, em princípio, à própria vida ou capacidade ativa e natural do seu criador, razão pela qual a lei (CC, art. 968) não exige a declaração de prazo para a existência da firma individual.463 Segundo esse critério, o tempo de duração das empresas pode ser:

1) empresa por prazo indeterminado: quando a sociedade empresária ou EIRELI é constituída sem prazo certo para ser dissolvida e extinta, de modo que sua duração dependerá de ato de vontade dos sócios, do falecimento destes ou de dissolução judicial, litigiosa ou falimentar;

2) empresa por prazo determinado: ocorre no caso da sociedade empresária ou EIRELI ser constituída com prazo certo de existência, devendo iniciar o processo de dissolução no implemento do tempo, após esgotado o objeto que justificou a sua criação,464 ou de condição estipulada no contrato ou estatuto social (Lei 6.404/1976, art. 206; CC, art. 1.033).

j) Nacionalidade – Principalmente, hoje, no mundo globalizado, cada vez mais internacional e sem fronteiras, as empresas ficam sujeitas a regimes jurídicos e jurisdições distintas, de acordo com as leis do país em que foram constituídas e dos países em que atuam e exercem atividade econômica. Conforme a nacionalidade, as empresas podem ser assim classificadas:

1) empresa brasileira de capital nacional: pode ser assim considerada a empresa criada sob as leis brasileiras, com registro na Junta Comercial, tendo todos os seus

462 No caso da estabilidade do vínculo entre a sociedade e seus sócios, estas podem ser classificadas, segundo Fábio Ulhoa Coelho, em sociedades empresárias de vínculo estável e sociedades empresárias de vínculo instável, dependendo da possibilidade do sócio desligar-se da sociedade, a qualquer tempo, por sua livre e espontânea vontade. A sociedade será de vínculo estável quando o direito de retirada ou de recesso seja de caráter excepcional, somente admitido em determinadas situações legalmente previstas (Lei 6.404/1976, art. 137). Será de vínculo instável a sociedade quando o sócio possa se retirar a sociedade a qualquer tempo mediante o reembolso de seu capital. (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 45-46). 463 No caso da empresa individual de responsabilidade limitada – EIRELI, por ser um tipo diferente, equiparado à pessoa jurídica (CC, art. 44, inciso VI), mais próximo da sociedade unipessoal, e como o art. 980-A, § 6º do Código Civil prescreve que se aplicam a elas, no que couber, “as regras previstas para as sociedades limitadas”, o ato constitutivo deve declarar o prazo de duração: “Instrução Normativa DREI nº 10/2013, do Departamento de Registro de Empresas e Integração - Anexo V – Manual de Registro da EIRELI - 1.2.20 - Prazo de duração da empresa - Deverá ser indicada a data de término do prazo da EIRELI, quando o mesmo for determinado, ou declarado que o prazo é indeterminado”. 464 Como exemplo desse tipo diferenciado, Egberto Lacerda Teixeira considerava sub-espécie da sociedade por prazo determinado aquela “constituída para fim ou obra certa”, que entra em dissolução, “pleno jure, com o término da empresa ou operação projetada”, tal como ocorre, hoje, nas sociedades de propósito específico - SPE (Das Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limitada, atualizado por Syllas Tozzini e Renato Berger, São Paulo, Quartier Latin, 2ª edição, 2007, p. 359).

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acionistas ou sócios controladores residentes e domiciliados no Brasil, sem qualquer ingerência ou influência administrativa originária de outra pessoa física ou jurídica estrangeira;465

2) empresa brasileira: é a sociedade criada sob as leis brasileiras, com registro na Junta Comercial de um Estado da Federação, que tenha sede e administração situada no Brasil (CC, art. 1.126),466 com acionistas controladores ou sócios majoritários residentes no país ou no estrangeiro, ainda que seu capital de controle esteja situado em outro país;

3) empresa estrangeira: é a empresa constituída sob as leis de país estrangeiro, cujos acionistas ou controladores sejam residentes ou domiciliados no exterior, e que atue no Brasil através de estabelecimento filial, escritório ou agência, sob regime de autorização do Governo Federal (CC, art. 1.134).

k) Territorialidade – Tal critério refere-se à amplitude ou âmbito de atuação da

empresa, se reservada ao mercado local, se desempenha atividade no mercado nacional ou de alcance internacional. A análise desse critério pode ser relevante, no âmbito interno, para avaliação do atendimento da empresa à função social relacionada a uma coletividade, em especial em situação de crise, que justifique a concessão de recuperação judicial (Lei 11.101/2005), assim como para vinculação a regimes tributários nacionais, estaduais e municipais; no que se refere às operações de empresas transnacionais, esse critério é determinante para definir o regime jurídico e foro aplicáveis:

1) empresa local ou municipal: empresa cuja atuação é restrita a determinado bairro, localidade ou município, situação geralmente circunscrita às micro e pequenas empresas e às firmas individuais;

2) empresa estadual: empresa que realiza operações e negócios no âmbito de todo o Estado em que foi constituída e centraliza os seus negócios, e que mantém

465 A redação original da Constituição Federal de 1988, assim estabelecia a diferença entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional: “Art. 171. São consideradas: I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País; II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades.” Não obstante esse dispositivo tenha sido totalmente revogado pela Emenda Constitucional nº 6, de 1995, o Código Civil de 2002 manteve essa diferenciação: “Art. 1.126. É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua administração”. 466 Código Civil de 2002, art. 1.126.

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relações exclusivamente com consumidores ou outras empresas estaduais, através de filiais localizadas em mais de um município;

3) empresa regional: compreende a empresa que possui matriz em um Estado e filiais em outros Estados da Federação, mas com atuação limitada a determinada região, sem amplitude nacional;

4) empresa nacional: é a empresa com atuação ampla em todo território nacional, esteja sob controle originário de grupo empresarial nacional ou estrangeiro, com filiais, representação comercial ou rede de franquias em todos os Estados da Federação, ou na maioria deles;

5) empresa brasileira transnacional: consiste na empresa de controle ou sociedade holding constituída sob as leis brasileiras, controladas por acionistas ou sócios brasileiros, mas que atuam no mercado nacional e no mercado internacional, não apenas em operações comerciais de importação e exportação, mas controlando empresas estrangeiras;

6) empresa estrangeira ou multinacional: compreende a empresa que tem a sua sede, foro e acionistas controladores localizados em outro país, atuante em vários mercados mundiais, e participa de negócios em território nacional através de filiais ou agências (CC, art. 1.134), ou, ainda, simplesmente, relaciona-se com as empresas e consumidores nacionais como exportadora ou importadora de bens e serviços.

l) Emissão de valores mobiliários – Conforme a possibilidade de emitir títulos

para assim captar recursos de terceiros investidores nos mercados financeiro e de capitais, essas empresas, que somente podem adotar a forma de sociedade anônima, classificam-se do seguinte modo (Lei 6.404/1976, art. 4º):

1) companhia de capital fechado: é a sociedade anônima constituída com o capital próprio dos seus acionistas fundadores e adquirentes de ações, sem oferta pública ao mercado;

2) companhia de capital aberto: caracteriza-se como a sociedade anônima autorizada a emitir ações e outros títulos e valores mobiliários para oferta pública em bolsa de valores ou no mercado de balcão,467 junto a bancos, instituições financeiras e sociedades corretoras e distribuidoras de valores mobiliários.

467 A companhia poderá emitir, além de ações do capital social, partes beneficiárias, debêntures e bônus de subscrição (Lei 6.404/1976, artigos 46, 52 e 75), bem como notas promissórias comerciais, denominadas commercial paper (Instruções Normativas CVM 134/1990, 292/1998 e 480/2009).

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m) Relação de participação – A relação de participação é aquela que vincula sociedades ligadas entre si, quando estas integrem o mesmo grupo empresarial. De acordo com tal entendimento, as sociedades devem ser assim classificadas segundo o grau de vinculação entre si, com base na participação dos seus sócios ou acionistas controladores:

1) sociedades coligadas: são as empresas que possuem vínculo ou relação comum de controle, dentro de um mesmo grupo empresarial não convencional ou de fato, sendo assim caracterizadas quando a sociedade controladora ou investidora “tenha influência significativa” (Lei 6.404/1976, art. 243, § 1º, com a redação da Lei 11.941/2009); por “influência significativa”, antes da reforma legislativa de 2009, consideravam-se coligadas as sociedades “quando uma participa, com 10% (dez por cento) ou mais, do capital da outra, sem controlá-la”;468 de acordo com o conceito do artigo 1.099 do Código Civil de 2002, “Diz-se coligada ou filiada a sociedade de cujo capital outra sociedade participa com dez por cento ou mais, do capital da outra, sem controlá-la.”;

2) sociedade controladora ou holding: são controladoras ou holding as sociedades que não exercem atividade industrial ou comercial, que servem apenas para deter títulos, ações ou quotas, de participação majoritária no capital de sociedades subordinadas, coligadas ou subsidiárias, vinculadas ao mesmo grupo econômico ou empresarial;469

3) sociedade controlada ou subsidiária: conforme o art. 243, § 2º da Lei 6.404/1976, “Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores”.

n) Relação de concorrência – Na relação de concorrência, as empresas

podem ser analisadas e classificadas de acordo com o seu modo de participação,

468 As relações de coligação e controle, na opinião de Modesto Carvalhosa, caracterizam-se como “modalidades fenomenológicas de concentração empresarial em que as sociedades envolvidas mantem sua identidade e, assim, sua personalidade jurídica e patrimônio individualizado, formando, pela participação relevante no capital das sociedades envolvidas, um grupo societário de fato, e, assim, uma entidade econômica de relevância jurídica”. (Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, vol. 4, tomo 2, cit., p. 11-12). 469 Na lição de Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, “a palavra holding é forma do verbo inglês to hold, que significa segurar, manter, deter ou possuir. Literalmente pode designar qualquer sociedade que detém ou possui ações de outra, mas usualmente é empregada no sentido de sociedade controladora”. (A Lei das S.A., cit., p. 77). Esclarece Modesto Carvalhosa que “as holdings são sociedades não operacionais que têm seu patrimônio composto de ações de outras companhias”, e são “constituídas ou para o exercício do poder de controle ou para participação relevante em outras companhias, visando, nesse caso, constituir a coligação”. (Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, cit., p. 14).

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ativo ou passivo, no mercado, e essas relações são objeto de regulação pela legislação de defesa da concorrência ou anti-truste, no mercado nacional (Lei 12.529/2011), ou internacional (Organização Mundial do Comércio – WTO).

1) empresas concorrentes: são as empresas que atuam normal e naturalmente no mercado, em um mesmo setor industrial, distribuidor ou comercial de bens ou de prestação de serviços, detentoras de marcas de produtos ou serviços, competindo diretamente entre si em determinada área de âmbito local, regional ou nacional, sob a égide dos princípios da livre empresa e da livre concorrência (CF, art. 170, caput e IV);

2) empresa de posição dominante: é aquela empresa ou grupo de empresas que seja “capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante”, sendo que este patamar percentual de dominação em mercado relevante poderá ser alterado pelo Conselho Administrativo de Defesa da Economia – CADE, “para setores específicos da economia” (Lei 12.529/2011, art. 36, § 2º);470 uma empresa que exerça posição dominante será capaz de impor preços e condições de comercialização de matérias primas e produtos finais, inclusive quando ofertados ao mercado consumidor;

3) empresa monopolista: consiste na empresa que detém um mercado relevante de bens e serviços com caráter de dominação exclusiva ou quase exclusiva,471 e que estabelece, unilateralmente, as condições de produção, preços e venda dos produtos e serviços nesse mercado, desconsiderando, quase que inteiramente, as empresas concorrentes e os consumidores;

4) truste ou cartel: compreende a reunião de empresas não vinculadas ao mesmo controle que, inobstante sejam pessoas jurídicas distintas, integrantes de grupos concorrentes, combinam, previamente, entre si, a divisão espacial de mercados ou a fixação artificial de preços mínimos e máximos, para dominação desses mercados ou para participação em licitações públicas.472

470 Considera Paula Forgioni que o agente econômico detentor de posição dominante não se restringe às empresas e grupos empresariais formalmente considerados, abrangendo, nessa definição, os assim denominados “grupos de fato”, porque estes “incluem não apenas aqueles constituídos por sociedades controladora e controlada, mas também refere-se a aglutinações derivadas de comunhão de interesses contratual, ainda que não formalizada”. (Os fundamentos do antitruste, cit., p. 281). 471 Para Calixto Salomão Filho, “a teoria do monopólio não se aplica exclusivamente àquelas empresas que detém 100% do mercado, mas, também, àquelas situações em que um dos produtores detém parcela substancial do mercado (por hipótese, mais de 50%) e seus concorrentes são todos atomizados, de tal forma que nenhum deles tem qualquer influência sobre o preço de mercado. Essas situações são, em linhas gerais, idênticas em suas consequências ao monopólio stricto sensu”. (Direito concorrencial – As estruturas, São Paulo, Malheiros, 3ª edição, 2007, p. 144). 472 O cartel, segundo Paula Forgioni, caracteriza-se como sendo o acordo horizontal “celebrado entre empresas concorrentes (que atuam, pois, no mesmo mercado relevante geográfico e material) e que visam neutralizar a concorrência existente entre elas”. (Os fundamentos do antitruste, cit., p. 326). Na Lei 12.529/2011, o cartel é tipificado dentre as infrações da ordem econômica: Art. 36, § 3º - I - acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma: a) os preços de bens ou serviços ofertados individualmente; b) a produção ou a comercialização de uma quantidade restrita

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o) Origem do capital – Essa classificação refere-se à origem, privada ou

pública, do capital aplicado nas empresas, por seus acionistas ou sócios, derivando desse critério a submissão a regime jurídico diferenciado de propriedade, controle, regulação e fiscalização:

1) empresa privada: privada será sempre a empresa em que o capital integralizado é exclusivamente particular, originário de aplicações financeiras e investimentos originários de pessoas privadas, físcas ou jurídicas;

2) empresa pública: considera-se empresa pública, para os efeitos legais, a empresa constituída por lei, “dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por fôrça de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito”. (Decreto-Lei 200/1967, art. 5º, II);

3) sociedade de economia mista: congrega a reunião de capital público e capital privado, em que o poder público detém o controle da sociedade, sendo legalmente definida como a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da Administração Indireta.” (Decreto-Lei 200/1967, art. 5º, III; Lei 6.404/1976, arts. 235 a 240).

p) Objeto ou forma especial – Considera-se de objeto ou finalidade especial

aquelas empresas que adotam ou seguem forma específica determinada, definidas ou reguladas pela legislação societária e outras normas próprias.

1) sociedade de propósito específico (SPE): é a sociedade, limitada ou anônima, constituída por tempo determinado para a execução de um objeto específico, que automaticamente entrará em processo de dissolução com o cumprimento do seu objeto social, podendo assumir características de consórcio entre empresas;473

ou limitada de bens ou a prestação de um número, volume ou frequência restrita ou limitada de serviços; c) a divisão de partes ou segmentos de um mercado atual ou potencial de bens ou serviços, mediante, dentre outros, a distribuição de clientes, fornecedores, regiões ou períodos; d) preços, condições, vantagens ou abstenção em licitação pública. 473 A sociedade de propósito específico (SPE) está expressamente prevista na Lei 11.079/2004, que regula as “normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada (PPP) no âmbito da Administração Pública (art. 9º), podendo adotar a forma de socidade limitada ou anônima, inclusive companhia aberta. A constituição de SPE também está prevista como meio de recuperação judicial que pode ser implementado pela empresa em crise: Art. 50. Constituem meios de recuperação judicial, observada a legislação pertinente a cada caso, dentre outros: (...) XVI – constituição de sociedade de

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2) sociedade de garantia solidária (SGS): consiste em tipo específico de sociedade anônima para participação de investidores, associados a micros e pequenos empresários, visando, especialmente, a concessão de garantias em suas operações;474

3) offshore: tipo de empresa constituída geralmente sob a espécie de sociedade limitada, sediada em país estrangeiro, geralmente nos chamados “paraísos fiscais”; tem como finalidade precípua servir como instrumento de planejamento fiscal, elisão tributária e proteção patrimonial;475

4) joint venture: compreede um tipo especial de consórcio de sociedades para realização de investimentos produtivos ou financeiros, geralment resultante de associação temporária entre empresas multinacionais ou transnacionais sediadas em países distintos;476

5) grupo de sociedades: o grupo de sociedades pode ser convencional ou legal, quando estruturado e formalizado nos termos do art. 265 da Lei 6.404/1976, com registro na Junta Comercial, ou grupo econômico não convencional ou de fato; no grupo convencional, a sociedade controladora e suas controladas ficam obrigadas

propósito específico para adjudicar, em pagamento dos créditos, os ativos do devedor.” A Lei Complementar 123/2006, a partir da redação da Lei Complementar 128/2008, incluiu a SPE como tipo societário de apoio às pequenas empresas: “Art. 56. As microempresas ou as empresas de pequeno porte poderão realizar negócios de compra e venda de bens e serviços para os mercados nacional e internacional, por meio de sociedade de propósito específico, nos termos e condições estabelecidos pelo Poder Executivo federal. 474 A sociedade de garantia solidária foi criada pela Lei 9.841/1999, antigo Estatuto da Micro Empresa e da Empresa de Pequeno Porte, assim caracterizada: “Art. 25. É autorizada a constituição de Sociedade de Garantia Solidária, constituída sob a forma de sociedade anônima, para a concessão de garantia a seus sócios participantes, mediante a celebração de contratos. Parágrafo único. A sociedade de garantia solidária será constituída de sócios participantes e sócios investidores: I - os sócios participantes serão, exclusivamente, microempresas e empresas de pequeno porte com, no mínimo, dez participantes e participação máxima individual de dez por cento do capital social; II - os sócios investidores serão pessoas físicas ou jurídicas, que efetuarão aporte de capital na sociedade, com o objetivo exclusivo de auferir rendimentos, não podendo sua participação, em conjunto, exceder a quarenta e nove por cento do capital social.” Apesar da Lei 9.841/1999 ter sido revogada pela Lei Complementar 123/2006, esta continua a fazer menção a esse tipo especial de sociedade como possível de ser constituída, tendo como “objetivo social a defesa exclusiva dos interesses econômicos das microempresas e empresas de pequeno porte (art. 3º, § 5º). 475 No entendimento de Fábio Ulhoa Coelho “as offshore companies são sociedades empresárias constituídas e estabelecidas em país estrangeiro. Não são necessariamente fraudulentas, mas podem servir, como todas as demais sociedades, de instrumento para fraudes ou abusos”. (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit. p. 68). 476 A técnica de joint venture, esclarece U.W. Rasmussen, é mais aplicável “nas estratégias de transnacionalização de grupos multinacionais, que tentam evitar os riscos políticos e econômicos de investimentos em subsidiárias ou filiais no exterior. (...) Empresas multinacionais participam com investimentos intangíveis e tangíveis em empresas brasileiras e vice-versa, empresas brasileiras participam em fusões com empresas estrangeiras em mercados ultramar. Por outro lado, as técnicas do “joint venture” servem a empresas “holding” e/ou grupos econômicos para executar estratégias de horizontalização, verticalização, pró-integração, retro-integração e transnacionalização”. (Holdings e joint ventures: uma análise transnacional de consolidações e fusões empresariais, São Paulo, Aduaneiras, 1988, p. 131-132).

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“a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns.”477

6) consórcio de sociedades: segundo o art. 278 da Lei 6.404/1976, as “companhias e quaisquer outras sociedades, sob o mesmo controle ou não, podem constituir consórcio para executar determinado empreendimento”, de tal modo que o consórcio representa uma associação acidental e temporária, em que as sociedades consorciadas mantém, cada uma, a sua individualidade e personalidade jurídica própria;

Como pode ser aqui constatado, após exaustiva – e quiçá cansativa - enumeração e definição dos tipos, subtipos e modalidades de empresas, o fenômeno empresarial é multifacetado, compreende formas diversas, modelos próprios, especializados, apropriados e adaptados segundo cada modo de exploração da atividade mercantil. Nesse contexto altamente diversificado, a normatividade generalista do Código Civil de 2002 não se enquadra. Pelo contrário, dela diverge, radicalmente. Com base na análise dessa tipologia empresarial, é válido reconhecer a absoluta incapacidade da legislação civilista para apreender e regular, em sua amplitude, as formas e modalidades comerciais. A empresa genérica tratada pelo Código Civil não representa, sequer, sombra da empresa comercial no mundo real.

O Código Civil define a forma básica da empresa na figura do empresário individual (art. 966), e o seu exercício pluripersonalizado através da sociedade empresária (art. 982). Na concepção codificada, todavia, somente existiria e assim seria reconhecida a empresa regular, isto é, aquela que adquire essa condição a partir da sua inscrição obrigatória no registro de empresas mercantis (art. 967). O Código de 2002 apenas se refere à empresa irregular, ou seja, ao exercício de atividade econômica através de uma empresa sem registro na Junta Comercial, quando trata da sociedade em comum (arts. 986 a 990). De acordo com o Código Civil, a sociedade em comum é um tipo transitório de relação societária, que se destina à legalização posterior, quando do registro dos seus atos constitutivos. Todavia, no que tange ao

477 Na definição de Modesto Carvalhosa, o grupo de sociedades consiste no “conjunto de companhias sujeitas a um controle comum, que, mediante convenção formal, visam a concentrar, sob a direção autônoma do grupo, a política de administração, os fatores de produção, o patrimônio e os resultados (lucros), mantendo cada uma das pactuantes a sua formal personalidade jurídica”. (Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, vol. 4, tomo 2, cit., p. 266).

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empresário individual irregular, o Código é silente, omisso. Essa situação jurídica da irregularidade do exercício da empresa é da mais alta relevância na realidade brasileira, considerando que a maioria das empresas brasileiras encontra-se em situação irregular, fazendo parte da denominada economia informal.478

Para o Código Civil, as atividades econômicas exercidas por milhões de pequenos comerciantes, autônomos, ambulantes, feirantes, artesãos e trabalhadores por conta própria, simplesmente não existem, não estando previstas em nenhum dispositivo legal, nem que seja de caráter sancionatório ou para desqualificar os atos jurídicos praticados através de empresas irregulares. Essa ausência de disciplina poderia ser atribuída à consideração de que o direito empresarial somente se aplicaria ao exercício regular da empresa, enquanto as atividades econômicas irregulares ficariam sujeitas às normas do direito civil, como se fossem praticadas por particulares. Mas não é bem assim, pois o comerciante irregular, o barraqueiro da praia, o dono da peixaria no mercado popular, da banca de jornal, do bar da esquina, o feirante, tais pessoas, na prática, exercem atividade econômica. Elas realizam, no dia a dia, faça chuva ou faça sol, a intermediação entre produtores, atacadistas e consumidores, aproximam partes interessadas em realizar negócios, celebram contratos verbais, exploram essa atividade habitualmente, com o intuito de ganhos que assegurem sua sobrevivência. E assim, ainda que na informalidade, essas pessoas deveriam ser reconhecidas, pela lei, como sujeitos nas relações jurídicas mercantis, merecedoras de uma mínima proteção legal.

478 Segundo as estatísticas da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, no ano de 2010 existiam, no Brasil, 5,1 milhões de empresas, entre comerciais, industriais e de serviços, em situação de regularidade formal (IBGE - Estatística do Cadastro Central de Empresas – CEMPRE; ftp:// ftp.ibge.gov.br/Economia_Cadastro_de_Empresas/2011/tabelas_pdf/tab1.pdf; 04/04/2014). Apenas na área urbana das médias e grandes cidades e suas regiões metropolitanas, o IBGE identificou, na última pesquisa, aplicada ainda no ano de 2003, a presença de mais de 10 milhões de pequenas empresas informais ou irregulares. (IBGE – Pesquisa Economia Informal Urbana – 2003, http://www.ibge.gov.br/ home/estatistica/economia/ecinf/2003/comentario.pdf; 18/09/2013). Ou seja, das aproximadamente 15 milhões de empresas brasileiras, dois terços delas são empresas irregulares, situam-se à margem da formalidade, mas desempenham atividade econômica da mesma maneira prática que as empresas regulares. Apesar da economia informal não representar, proporcionalmente, o mesmo volume de negócios em termos de patrimônio e de circulação de riquezas, a sua importância para a ocupação de grande contingente populacional é significativa, e deveria merecer uma regulação mínima, ao menos o seu reconhecimento, pelo sistema de direito positivo, como atividade econômica, para efeitos, principalmente, de incentivar e facilitar a sua inclusão na economia formal.

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O Código Civil de 2002, ao contrário dos dados da realidade e da legislação específica, nada dispõe sobre a diferenciação das empresas em razão do seu porte econômico, disciplinando a empresa de modo amorfo, linear, uniforme, como se todas as empresas fossem iguais, como se apenas importasse, juridicamente, a sua forma, como firma individual ou sociedade empresária. Essa omissão revela, também sob esse aspecto, a grande distância entre o regime jurídico da empresa no Código e a realidade empírica da economia e das relações empresariais.

No que se refere à natureza da atividade e ao objeto da empresa, como visto anteriormente, o Código de 2002 adota a concepção artificiosa de ignorar a diferença entre as empresas em razão da atividade econômica exercida. Ao contrário da sua norma matriz, o Código italiano de 1942, o Código Civil brasileiro não reconhece qualquer distinção entre empresas comerciais, industriais, de serviços, extrativas, bancárias ou de transporte, consideradas estas as principais atividades econômicas mercantis. O único conceito distintivo empregado pelo Código Civil refere-se à empresa rural, como tipo específico de exercício de atividade econômica (art. 971).

A ausência, no Código Civil, dos demais critérios demarcadores das grandes e inafastáveis diferenças entre os diversos tipos de empresa, demonstra que seu regime generalista não é compatível com os fatos da realidade econômica, com os usos e costumes comerciais, com a prática mercantil. Continuará sendo da competência normativa das leis comerciais extravagantes a determinação de regimes jurídicos diferenciados que reconhecem a existência, na prática e nos usos mercantis, de tipos distintos de empresas, para que a regulação de cada tipo de empresa observe as peculiaridades inerentes à espécie respectiva, e assim possa a disciplina jurídica ser mais apropriada, específica e compatível diante das exigências da realidade.

No direito italiano, como observado por Berardino Libonati, a empresa comercial encontra-se bem definida, no tocante ao seu objeto, frente à empresa agrícola (Codice Civile, art. 2.135) e, mais recentemente, da empresa instrumental (impresa strumentale), introduzida pelo Decreto Legislativo 153, de 1999, que consiste em um tipo de sociedade não lucrativa, que difere da natureza comercial das demais empresas pelas vantagens financeiras e fiscais que as beneficiam, como entidades

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quase altruístas.479 O caráter lucrativo, portanto, além do objeto, sempre demarcou a natureza comercial das sociedades no ambiente de mercado, aspecto diferencial que foi propositadamente excluído pelo regime neutral do Código Civil de 2002.

Tal ausência de definição na tipologia e caracterização da empresa, bem como diante da falta de estatísticas confiáveis, vem provocando, inclusive, certa dispersão na doutrina, quando esta vem a recusar relevância econômica para as atividades desempenhadas pelos empresários individuais, como na opinião, por exemplo, de Fábio Ulhoa Coelho.480 Sem embargo, apesar de não haver representação mais significativa na contribuição para o Produto Interno Bruto do Brasil, da ordem de cerca de 25 %, ou um quarto do PIB, de acordo com as estatísticas do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, com base nos censos econômicos do IBGE,481 os empresários ou firmas individuais, organizados sob a forma de micros e pequenas empresas, constituem, segundo as últimas estatísticas do Departamento Nacional do Registro do Comércio – DNRC, quase a metade das empresas brasileiras regulares ou formais.482

As firmas individuais, portanto, diante dessa representatividade, não exercem, apenas, atividades ou “negócios rudimentares e marginais”, como assim percebidas, restritivamente, por Fábio Ulhoa Coelho,483 mas devem ser consideradas, na verdade, como agentes econômicos que, no seu amplo conjunto e devido à sua penetração e capilaridade, contribuem, de modo efetivo, para a subsistência de grande parte da população e para a circulação real das mercadorias na ponta das relações de consumo, especialmente nos municípios, cidades e vilas mais distantes, no interior, no sertão, nos rios da Amazônia, onde as grandes empresas não chegam.

479 Berardino Libonati, Diritto Commerciale – Impresa e società, Milano, Giuffrè, 2005, p. 13/14. 480 “Não se tratará, senão em pouquíssimas passagens, do exercente individual da atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços, porque esta figura, na verdade, não possui presença relevante na economia.” (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 79). 481 BRASIL, Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE - Unidade de Gestão Estratégica – UGE, Participação das Micro e Pequenas Empresas na Economia Brasileira, Brasília, Julho 2014. 482 BRASIL, Departamento Nacional do Registro do Comércio (DNRC) – Constituição de empresas por tipo jurídico – Brasil – 1985-2005, http://www.dnrc.gov.br, 23/10/2012. 483 “Aos empresários individuais sobram os negócios rudimentares e marginais, muitas vezes ambulantes. Dedicam-se a atividades como varejo de produtos estrangeiros adquiridos em zonas francas (sacoleiros), confecção de bijuterias, de doces para restaurantes e bufês, quiosques de miudezas em locais públicos, bancas de frutas ou pastelarias em feiras semanais, etc.” (Manual de Direito Comercial, São Paulo, Saraiva, 23ª edição, 2011, p. 39).

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4.6. Transformação da empresa

No direito positivo brasileiro, a transformação sempre consistiu em operação relacionada, exclusivamente, à mudança de tipo societário, tal como definido na Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/1976, art. 220).484

Considera Modesto Carvalhosa que “a faculdade legal da transformação atende a dois princípios fundamentais, quais sejam, o da liberdade contratual e o da segurança jurídica dos sócios quanto às bases do contrato social que firmaram”.485 Nesse sentido, os sócios tem a liberdade de transformar o tipo societário adotado, de acordo com as suas conveniências e interesses, ressalvados os casos das companhias abertas, que se encontram sujeitas a outras regras de limitação relacionadas com a proteção dos investidores e dos acionistas minoritários.486 Para a doutrina italiana, a transformação é determinante de simples mutação na forma jurídica da sociedade.487 A transformação, objetivamente, para Fábio Ulhoa Coelho, consiste na “mudança do tipo da sociedade empresária”.488 O Código Civil de 2002, do mesmo modo, somente refere-se à transformação como ato societário.489

A transformação, regra geral, compreende a operação societária pela qual uma sociedade anônima muda de tipo jurídico para sociedade limitada, ou vice-versa, de sociedade limitada para companhia.490 Em toda e qualquer hipótese, a transformação

484 Lei 6.404/1976 – “Art. 220. A transformação é a operação pela qual a sociedade passa, independentemente de dissolução e liquidação, de um tipo para outro. Parágrafo único. A transformação obedecerá aos preceitos que regulam a constituição e o registro do tipo a ser adotado pela sociedade”. 485 Modesto Carvalhosa, Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, São Paulo, Saraiva, 4ª edição, vol. 4, tomo I, 2002, p. 183. 486 Lei 6.404/1976, “Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder. § 1º São modalidades de exercício abusivo de poder: (...); c) promover alteração estatutária, emissão de valores mobiliários ou adoção de políticas ou decisões que não tenham por fim o interesse da companhia e visem a causar prejuízo a acionistas minoritários, aos que trabalham na empresa ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia;” 487 Flavio Dezzani, Piero Pisoni e Luigi Puddu, Fusioni, scissioni, trasformazioni e conferimenti, Milano, Giuffrè, 1995, p. 505. 488 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 512. 489 Código Civil – “Art. 1.113. O ato de transformação independe de dissolução ou liquidação da sociedade, e obedecerá aos preceitos reguladores da constituição e inscrição próprios do tipo em que vai converter-se”. 490 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 512.

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não altera a pessoa jurídica como pessoa de direito, como ente coletivo, nos seus aspectos fundamentais, em especial quanto ao requisito da pluripessoalidade. Não alterava, vez que essa base tradicional veio a ser conceitual e dogmaticamente subvertida pela Lei Complementar 128/2008.

A Lei Complementar 128/2008 teve como finalidade atualizar o regime jurídico da microempresa e da empresa de pequeno porte, regulado na Lei Complementar 123/2006. Todavia, ainda que sendo assunto de interesse correlato às empresas menores, a Lei Complementar 128/2008 modificou os artigos 968 e 1.033 Código Civil, para possibilitar a conversão da firma individual em sociedade empresária e vice-versa, de sociedade empresária em firma individual.491 Essa conversão representa, na verdade, nova hipótese de transformação lato sensu, e não apenas simplificação de procedimento de registro na junta comercial, para que a empresa possa aproveitar o número de inscrição no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas).492

Com efeito, foi incorporado ao art. 968 do Código Civil, que trata da inscrição do empresário individual no registro de empresas, um parágrafo terceiro, de espectro bem mais abrangente. De acordo com a remissão expressa aos artigos 1.113 a 1.115 do Código Civil, que se referem ao ato de transformação em si, essa conversão da forma da empresa, de firma individual para sociedade empresária, resulta de

491 Código Civil – “Art. 968. A inscrição do empresário far-se-á mediante requerimento que contenha: (...) § 3º. Caso venha a admitir sócios, o empresário individual poderá solicitar ao Registro Público de Empresas Mercantis a transformação de seu registro de empresário para registro de sociedade empresária, observado, no que couber, o disposto nos arts. 1.113 a 1.115 deste Código. Art. 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer: (...) IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias; (...) Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV caso o sócio remanescente, inclusive na hipótese de concentração de todas as cotas da sociedade sob sua titularidade, requeira no Registro Público de Empresas Mercantis a transformação do registro da sociedade para empresário individual, observado, no que couber, o disposto nos arts. 1.113 a 1.115 deste Código”. 492 Na opinião de Fábio Ulhoa Coelho, no caso dos artigos 968 e 1.033 do Código Civil, a partir da redação da Lei Complementar 128/2008, “a lei apenas está garantindo a simplificação dos procedimentos administrativos e fiscais, ao permitir que o empresário individual aproveite seu CNPJ na sociedade que constitui com seus sócios”. (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 513). No mesmo equívoco conceitural e metodológico incorrem as teses discutidas nas Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: o Enunciado 465 igualmente diferenciou a transformação de registro da transformação societária: “A transformação de registro prevista no art. 968, § 3º, e no art. 1.033, parágrafo único, do Código Civil não se confunde com a figura da transformação de pessoa jurídica”. O Enunciado 483 também refere-se à operação de transformação de registro, admitindo, inclusive, contraditoriamente ao espírito das companhias, classificadas como sociedades de capital e institucionais, e não de pessoas e contratuais, a conversão de sociedade anônima em empresa individual: “Admite-se a transformação do registro da sociedade anônima, na hipótese do art. 206, I, d, da Lei n° 6.404/1976, em empresário individual ou e mpresa individual de responsabilidade limitada”.

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modificação na estrutura do capital e no controle da empresa, em razão do número de pessoas que contribuem para sua formação e, consequentemente, para a própria direção dos negócios empresariais. Essa conversão depende, pois, da admissão de uma ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, que passarão a dividir com o empresário individual a participação no capital e nos poderes resultantes desse investimento, na condição de sócios.

No sentido reverso, da transformação de sociedade para firma individual, o artigo 1.033 do Código Civil de 2002 passou a admitir, a partir da Lei Complementar 128/2008, que a falta de pluralidade de sócios não importa, mais, em dissolução societária, caso a pluripessoalidade não venha a ser reconstituída no prazo legal, de 180 dias.

Nesse contexto, o conceito de transformação deve ser estendido ou dilatado, para compreender, também, a transformação da empresa em sentido amplo. A transformação deve passar a ser entendida como negócio jurídico empresarial, mais amplo que a mera operação societária, cabendo afastar, portanto, sua referência como procedimento estritamente registral. De acordo com essa acepção mais ampla, a Instrução Normativa 10/2014, do Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, sucessor do Departamento Nacional do Registro do Comércio – DNRC,493 intérprete regulamentador desse novo procedimento de conversão do tipo de empresa no âmbito do registro mercantil, dispõe que a transformação de registro “é a operação pela qual a sociedade, a empresa individual de responsabilidade limitada ou o empresário individual altera o tipo jurídico, sem sofrer dissolução ou liquidação, obedecidas as normas reguladoras da constituição e do registro da nova forma a ser adotada”.

O ato jurídico de transformação não fica mais resumido ou restrito a uma operação societária, como assim a lei definiu por anos, mas passa a abranger a conversão da forma da empresa, de firma individual ou EIRELI para sociedade

493 BRASIL, Departamento de Registro Empresarial e Integração – DREI, Instrução Normativa 10/2014, item 2.3.11.1.

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comercial, bem como no sentido oposto, de sociedade contratual para empresa individual.

A transformação, portanto, não pode mais ser considerada, sem embargo, restrita ou exclusivamente, uma operação societária, apesar das incisivas e bem formuladas opiniões doutrinárias.494 Vale ressaltar que o registro é apenas consequência formal do ato ou negócio jurídico anterior, e serve para legalizar e publicizar o ato em si (Lei 8.934/1994, art. 1º).495 A operação empresarial ou societária é ato anterior, precedente, validamente celebrado. O registro confere, como procedimento complementar, publicidade e efeitos erga omnes aos atos submetidos ao seu sistema de controle da legalidade e de publicidade, para validade perante terceiros. O ato de registro, portanto, apesar de inerente e necessário à eficácia e publicidade do processo de transformação,496 não compreende ou abrange o conteúdo volitivo mutacional do ato jurídico em si e por si, e com este não se confunde.

A Lei Complementar 128/2008, apesar de dispor sobre a nova redação aos artigos 968 e 1.033 do Código Civil, referindo-se à “transformação do registro” de empresário individual para sociedade e de sociedade para empresário individual, trata do ato formal subsequente, perante a Junta Comercial, sem contudo desconsiderar o ato jurídico precedente ao registro, o ato material declaratório da vontade do

494 Na opinião de Alfredo de Assis Gonçalves Neto, não existe, na mudança de forma da empresa prevista no art. 968, § 3º do Código Civil, “minimamente, uma operação de transformação”, isto porque a transformação apenas “diz respeito a tipo societário e não a registro; e, no caso, está-se diante de empresário individual e não de sociedade”. Esse procedimento ele denomina de “convolação” da figura do empresário para sociedade empresária. (Direito de empresa, cit., p. 84). Para Erasmo Valadão Azevedo e Novaes França e Marcelo Vieira Von Adamek, analisando a hipótese no caso da empresa individual de responsabilidade limitada – Eireli, considerada esta como subtipo da sociedade limitada, “tecnicamente não há mudança do tipo societário e, portanto, não há propriamente transformação de sociedade”. Não caracterizaria, ainda, transformação, “a constituição de Eireli por meio da conferência ao capital social de bens, inclusive o estabelecimento inteiro, do empresário individual”, existindo, aí, “constituição (originária) da Eireli”. A conversão de Eireli em empresário individual também não se daria através de transformação, mas sim como “dissolução por distrato”. (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Lei nº 12.441/2011) – Anotações, em Luis André N. de Moura Azevedo e Rodrigo R. Monteiro de Castro, Coordenadores, Sociedade Limitada Contemporânea, São Paulo, Quartier Latin, 2013, p. 64-65). 495 Lei 8.934/1994 – Art. 1º. O Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, subordinado às normas gerais prescritas nesta lei, será exercido em todo o território nacional, de forma sistêmica, por órgãos federais e estaduais, com as seguintes finalidades: I - dar garantia, publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos das empresas mercantis, submetidos a registro na forma desta lei. 496 Lei 6.404/1976, art. 220, parágrafo único.

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empresário individual ou dos acionistas ou sócios da sociedade, que decidiram alterar a forma da empresa ou seu tipo societário.

O ato de registro somente poderá ser equiparado à transformação se o ato jurídico precedente contiver todos os elementos de vontade e de forma autorizativos da sua celebração, representados e expressos em uma ata de assembleia de acionistas,497 de reunião do conselho de administração, de diretoria ou de sócios,498 em protocolos e outros documentos, que justifiquem o conteúdo das deliberações colegiadas ou da manifestação unilateral do empresário individual. Portanto, o documento apresentado a registro não se confunde com o conteúdo volitivo autorizativo da transformação da empresa em si, na medida em que expressa e demonstra a existência de um ato antecedente, mas não do seu resultado no plano da eficácia, o qual depende da regularidade jurídica do ato precedente de manifestação de vontade dos sócios, acionistas ou do empresário individual.

A transformação, a partir dessa mudança radical operada no Código Civil de 2002 pela Lei Complementar 128/2008, deve ser definida também como alteração do tipo de empresa, e não apenas da espécie societária, passando a congregar duas modalidades distintas:

Transformação

Forma da empresa (CC, arts. 968 e 1.033) Tipo societário (CC, art. 1.113; Lei 6.404/1976, art. 220)

A regulamentação infralegal, constante das instruções normativas do DREI, órgão que substituiu o DNRC, adotam o conceito de transformação nesse duplo sentido, como transformação de registro ou forma da empresa, e como transformação societária.499 Deixando de lado o preciosismo tecnicista, em ambas as operações, é forçoso reconhecer, ocorre uma transformação jurídica, envolvendo a forma ou tipo

497 Lei 6.404/1976, art. 122, VIII. 498 Código Civil de 2002, arts. 1.072 e 1.114. 499 Instrução Normativa DREI 10/2014, Manual de Registro da Sociedade Limitada – item 3.3 - Transformação, incorporação, fusão e cisão de sociedades empresárias; item 3.9 - Transformação de sociedade empresária em empresa individual de responsabilidade limitada - EIRELI ou em empresário individual. Segundo essa Instrução Normativa, a transformação pode decorrer tanto de ato de conversão ou mutação jurídica do tipo societário, como da forma da empresa, de sociedade para empresa individual.

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da empresa ou da pessoa jurídica, a situação patrimonial, do nome empresarial, da responsabilidade do empresário e sócios, enfim, uma série de mutações que alteram a morfologia e o enquadramento legal da empresa.

Segundo o regime original do Código Civil de 2002, a perda do requisito da pluripessoalidade, permanecendo esse estado por 180 dias ou seis meses, implicava no início obrigatório do processo de dissolução societária, para fins de liquidação e consequente extinção da sociedade. Assim também já era previsto para o caso da sociedade anônima, que seria dissolvida de pleno direito caso a pluripessoalidade não fosse reconstituída no prazo de um ano, até a assembleia geral ordinária seguinte à que constatou a existência de um único acionista.500

Com efeito, o requisito da pluripessoalidade sempre foi necessário e inafastável para a constituição de qualquer ente corporativo ou sociedade no direito positivo brasileiro, salvo raras exceções, como nos casos de subsidiária integral501 e da empresa pública.502 Todavia, a partir desse novo critério ou parâmetro decorrente da Lei Complementar 128/2008, a pluripessoalidade passou a ser pressuposto acidental, passageiro, não constituindo mais causa para a extinção da empresa, e sim efeito transitório, como rito de passagem para outro estado formal.

Essa modificação no regime empresarial brasileiro deve ser recebida como altamente válida, meritória e benéfica. Sem embargo, restringir a transformação apenas aos tipos societários, como apregoado pela doutrina tradicional a partir da dogmática até então vigente, representa limitação formal que dificulta a flexibilidade necessária e inerente aos negócios empresariais. Assim, por exemplo, o direito positivo brasileiro jamais admitiu a evolução natural da firma individual para a

500 Lei 6.404/1966 – “Art. 206. Dissolve-se a companhia: I - de pleno direito: (...) d) pela existência de 1 (um) único acionista, verificada em assembléia-geral ordinária, se o mínimo de 2 (dois) não for reconstituído até à do ano seguinte, ressalvado o disposto no artigo 251;” 501 Lei 6.404/1976, “Art. 251. A companhia pode ser constituída, mediante escritura pública, tendo como único acionista sociedade brasileira”. 502 Decreto-Lei 200/1967, Art. 5º - II – “Empresa Pública - a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Govêrno seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito.” (Redação do Decreto-Lei nº 900, de 1969).

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sociedade por quotas, e vice-versa, da sociedade limitada reduzida a um único sócio para a empresa individual.

De acordo com a concepção corrente e dominante, até então adotada no direito positivo brasileiro, a sociedade unipessoal ou reduzida a um único sócio deveria ser extinta, com a baixa ou cancelamento do seu registro na Junta Comercial para, a partir de então, o sócio remanescente recomeçar da estaca zero, e assim viabilizar a constituição de nova empresa, como firma individual, sem qualquer relação jurídico-formal com a empresa extinta.

Todavia, independentemente da forma da empresa, a expressão ou representação exterior do estabelecimento é aquela que realmente importa, porque dessa representação depende a execução dos seus negócios, do seu objeto mercantil. Muito mais importante e relevante para o empresário são suas operações, a execução do objeto da empresa, suas metas ou perspectivas de faturamento, as relações contratuais com a clientela e fornecedores, o fluxo de caixa, o regime tributário e trabalhista, as implicações jurídicas resultantes dessas relações.

A jurisprudência, aos poucos, começa a reconhecer a aplicar tal conceito diferenciado e extrair as conclusões sobre a incidência desse novo regime jurídico, ainda vinculado à definição legal de “transformação do registro”, e não da transformação ou mutação do estado jurídico em si.503

A forma da empresa, sua fattispecie jurídica, é aquela definida pelo empresário ou seus sócios como mais de acordo ou em conformidade com seus interesses e com as estipulações determinantes para o exercício da empresa e para o retorno dos investimentos. No entanto, por força, também, do regime tributário, que interfere, dominante e abusivamente, na configuração da empresa na realidade brasileira, a

503 “Dissolução parcial de sociedade. Ação de retirada de sócio cumulada com apuração de haveres. Ausência de controvérsia quanto ao direito de retirada do sócio. Divergência que se limita ao valor apurado a título de haveres e à possibilidade de conversão da sociedade unipessoal em empresa individual. Laudo pericial bem elaborado que merece ser prestigiado. Pluralidade de sócios que deve ser recomposta no prazo de 180 dias, ou conversão do tipo societário. Parágrafo único do artigo 1.033 do Código Civil que permite a transformação do registro da sociedade para empresa individual ou para Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, desde que respeitado o prazo de 180 dias. Recurso parcialmente provido”. (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível nº 0000615-90.2012.8.26.0447; Comarca: Bragança Paulista; Relator: Desembargador Francisco Loureiro, DJe 22/03/2014).

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forma da empresa e do tipo societário passam a ser determinantes para o planejamento fiscal e para o equilíbrio financeiro da organização.

A forma da empresa, se firma individual, EIRELI, sociedade limitada ou anônima, representa aspecto que interessa bem mais ao empresário, aos credores e investidores, e raramente revela-se elemento decisor ou essencial à realização de negócios pelos principais protagonistas do mercado: os clientes e consumidores.

4.7. A empresa individual de responsabilidade limitada

Por séculos, desde os primórdios do comércio, o exercício de atividade comercial isolada, sem o concurso de sócios, parceiros ou terceiros investidores, sempre foi quantitativamente dominante, relacionada à figura do comerciante individual. O comerciante individual tinha sua atividade juridicamente regrada em disposições legais que bem o definiam e caracterizavam, mas eram omissas quanto à extensão e limites da sua responsabilidade.

O Código Comercial de 1850, por exemplo, pouco ou quase nada tratava a respeito da responsabilidade do comerciante individual, mas apenas dos sócios na sociedade comercial.504 A omissão da lei resultava da ideia, aparentemente óbvia, elementar, de que o devedor responde pela integralidade das suas dívidas, e sendo o comerciante individual uma pessoa natural, desprovido do anteparo fictício da pessoa jurídica, o seu patrimônio particular e familiar sempre restaria exposto, alcançável como garantia dos credores.

504 O Código Comercial de 1850 adotava como pressuposto lógico que a responsabilidade do sócio era pessoal e, por isso mesmo, ilimitada: “Art. 329. As obrigações dos sócios começam da data do contrato, ou da época nele designada; e acabam depois que, dissolvida a sociedade, se acham satisfeitas e extintas todas as responsabilidades sociais”. Carvalho de Mendonça observara que o Código de 1850 sequer reconhecia as sociedades comerciais como pessoas jurídicas, para efeitos de separação patrimonial: “Os legisladores de 1850, não tendo a concepção das pessoas jurídicas, como atualmente a estabelece a doutrina, não podiam assim considerar as sociedades de comércio. Nenhum artigo do Código lhes reconheceu a personalidade; ao contrário, parece que muitos a contestam. (Vejam-se, para exemplos, os textos dos arts. 313 e 315)”. (Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. III, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 5ª edição, 1954, p. 80-81).

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Sem embargo, a responsabilidade do comerciante individual perante terceiros, fornecedores, banqueiros, clientes, empregados, sempre teve como pressuposto sua honorabilidade pessoal, o nome e o sobrenome de família, sob critérios e aspectos personalíssimos.505 E estando vinculado à sua pessoa, o nome do comerciante respondia pelas obrigações do seu negócio, em caráter total, amplo e ilimitado.

Sendo ilimitada a responsabilidade do comerciante tradicional por dívidas da sua casa de comércio, não existia separação patrimonial absoluta entre seus bens particulares e as dívidas decorrentes da atividade mercantil explorada. No caso de insolvência do negócio, os credores executavam os bens particulares do comerciante e de sua família, que ficava, assim, exposta à ruína.

A limitação da responsabilidade foi criação da experiência societária, como fórmula legislativa inventada e adotada em determinado momento histórico para atrair pessoas interessadas em investir dinheiro em atividades especulativas, sem o risco de alcance ou execução do seu patrimônio particular pelos credores.506 O único perigo assumido por esses investidores consistia no próprio risco, na álea comercial, de perder o dinheiro aplicado, mas preservando íntegro seu patrimônio pessoal.

Na lição de Waldemar Ferreira, a sociedade em comandita, que tem sua origem histórica no contrato de comenda marítima da época dos gregos e fenícios, na era da

505 A propósito do conceito e da reputação pessoal do comerciante, Waldemar Ferreira assinalava: “Quando, observou-se, com alguma justeza, o comerciante instala seu estabelecimento, e prospera, passa a gozar de certo crédito, ou seja da confiança testemunhada pelos que o cercam ou nele se afreguesam. Obtida por habilidade, ou por efeito da simpatia pessoal, que provoque, ela resulta da qualidade das mercadorias e das condições por via das quais o comerciante as fornece, ao inteiro sabor dos fregueses. De gratuita, essa confiança, acrescenta o monografista, se torna fundada e se converte, naturalmente, na reputação do comerciante e do seu estabelecimento, que lhe vale e lhe assegura a freguesia. Aumenta, transpõe os limites da cidade ou da região. E essa reputação, que lhe vale o crédito, terá ele adquirido mercê do nome ou da designação, empregada nas suas obrigações e que se tornou a expressão da sua personalidade civil.” (Tratado de Direito Comercial, vol. 2, O Estatuto do Comerciante, São Paulo, Saraiva, 1960, p. 66). 506 Ao investigar a origem do regime da limitação da responsabilidade dos sócios, Walfrido Jorge Warde Junior discorre sobre a societas, no direito romano, tendo como origens o ercto non cito, ou consortium entre irmãos, passando pelas societates unius alicuius negotii e pelas societas publicanorum e também pelas societas argentaria. Analisando as características e natureza dos direitos patrimoniais dos sócios que participavam de uma sociedade, o autor entende “plausível sustentar que a limitação da responsabilidade dos membros da societas romana fundava-se em sua condição de credores dos resultados eventuais da empresa”, ao passo que, inversamente, “a ilimitação da responsabilidade decorria da natureza real dos direitos de um ou vários sócios sobre o patrimônio destinado à atividade e os resultados dela decorrentes.” (Responsabilidade dos sócios – A crise da limitação e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, Belo Horizonte, Del Rey, 2007, p. 18-19; 24; 27; 47).

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antiguidade clássica (entre V a.C e II d.C), representou o primeiro modelo de limitação da responsabilidade do sócio de capital ou investidor, denominado comanditário, porque este não exercia qualquer atividade ou função comercial, sendo ele, apenas, o destinatário dos resultados econômicos da exploração.507

A partir do século XIV, empresas maiores passaram a adotar a forma societária da comandita, adquirindo a sociedade personalidade própria, ficando assim limitada a responsabilidade do sócio capitalista.508 Todavia, nessa fase originária, a instituição da limitação da responsabilidade dos sócios investidores ocorria no sentido inverso, ou seja, não para que os credores da sociedade fossem impedidos de alcançar o patrimônio particular dos sócios, mas sim para impedir que os credores particulares dos sócios pudessem constranger ou atacar o patrimônio da sociedade.509

No caso da limitação da responsabilidade nas companhias ou sociedades de capital, Waldirio Bulgarelli registrou que a sociedade anônima “tem suas origens mais diretas nas companhias coloniais que foram fundadas a partir do século XVII para a exploração e colonização das terras do novo mundo”, reunindo capital da Coroa e de grandes investidores privados.510 As ações, como títulos de participação no capital da companhia, permitiam que pessoas particulares investissem seus recursos e poupanças na exploração colonial do Novo Mundo, propiciado pela era dos Descobrimentos, com a exclusão dos riscos decorrentes da incerteza e da competição entre as Nações, com a garantia da limitação da responsabilidade, isto em condições muitas vezes adversas, inerentes aos riscos da navegação de longo curso.511

507 “Ao começo, e durante muitos séculos, a comenda ostentava natureza contratual, como operação isolada do comércio de mar. Capitalista, que ficava em terra (o comendator, socius stans), ministrava dinheiro, mercadorias e até mesmo o navio, ao empresário (o accomanditarius, tractator, portitor ou portator), a fim de que este negociasse além-mar, com intuito de lucro e partilha do ganho”. (Tratado de Direito Comercial, vol. 3, O Estatuto da Sociedade de Pessoas, São Paulo, Saraiva, 1961, p. 212). 508 Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Comercial, vol. 3, O Estatuto da Sociedade de Pessoas, cit., p. 213. 509 Nesse sentido, Waldemar Ferreira esclarecia: “Então, a necessidade de defesa desse capital, como garantia dos credores sociais contra os ataques dos credores particulares dos sócios, fez sentir a conveniência de tornar pública, com o registro na corporação ou na comuna, a existência da sociedade, a medida das quotas conferidas pelos sócios, a firma ou razão social, tornando indispensável contabilidade distinta das operações sociais”. (Tratado de Direito Comercial, vol. 3, O Estatuto da Sociedade de Pessoas, cit., p. 213). 510 Manual das Sociedades Anônimas, São Paulo, Atlas, 3ª edição, 1994, p. 59. 511 “Essas companhias surgiram estreitamente ligadas ao Estado, que as privilegiava, por meio do sistema do octroi, com a personalidade jurídica plena, o reconhecimento do patrimônio autônomo e

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As sociedades anônimas pioneiras foram constituídas por iniciativa ou concessão do Estado, como assim ocorreu inicialmente na Inglaterra, com a criação da East India Company (1600), na Holanda, que fundou a Companhia das Índias Orientais (1602) e a Companhia das Índias Ocidentais (1621), e na França, com a Companhia Francesa das Índias Orientais (1664). Para exploração do Brasil, o Reino de Portugal constituiu a Companhia do Comércio do Brasil (1649).512

Entre os séculos XVIII e XIX, sob a garantia e segurança da limitação da responsabilidade, especialmente com a expansão das empresas de manufatura advindas da Revolução Industrial (1760-1840), as sociedades anônimas passaram a representar o modelo ideal para a exploração de diversos tipos de atividades econômicas de grande porte, especialmente nos setores da indústria, bancos, seguros e transporte.513

No final do século XIX, o modelo de limitação de responsabilidade das companhias vem a ser estendido às sociedades por quotas, tipo societário resultante de mera criação ou elaboração legislativa, e não da prática mercantil, porquanto destinava-se a incentivar a inclusão, no mercado, de novos empresários ou comerciantes titulares de pequenas empresas, em razão da vantagem da separação patrimonial, que protegeria os bens particulares face às dívidas da sociedade e ao

dois tipos de sócios: os principais e os secundários. Em regra, conferia-lhes o Estado inúmeros outros privilégios, em relação à sua atuação nas Colônias”. (Waldirio Bulgarelli, Manual das Sociedades Anônimas, cit., p. 60). Observa Tullio Ascarelli que “nas companhias coloniais já se delineam os característicos fundamentais hoje peculiares da sociedade anônima e que a distinguem entre as várias espécies de sociedades: responsabilidade limitada dos sócios e divisão do capital em ações, isto é, possibilidade de serem, as participações dos vários sócios, corporizadas em títulos facilmente circuláveis; a pessoa do sócio é, destarte, indiferente à caracterização jurídica da sociedade”. (Problemas das sociedades anônimas e Direito Comparado, cit., p. 336). 512 Waldirio Bulgarelli, Manual das Sociedades Anônimas, cit., p. 60. 513 “A despeito das crises, o desenvolvimento das sociedades anônimas – que aos poucos se estenderam a novos campos (o seguro, o banco, os transportes, a indústria e o comércio) – acompanhou o desenvolvimento econômico moderno. A sociedade anônima foi elaborando aos poucos sua disciplina: determinou-se a distinção entre os acionistas e os vários órgãos sociais e as funções destes; o conceito de um exercício social e da repartição periódica dos lucros; foram-se introduzindo as ações ao portador; foram-se precisando o conceito e os caracteres da responsabilidade limitada, e elaborando e precisando o conceito de capital social”. A partir de toda especialização desse aparato jurídico, a sociedade anônima passa a apresentar-se como “o instrumento típico da grande empresa capitalística e, com efeito, surgiu e se desenvolveu com este sistema econômico e em relação às suas exigências”. (Tullio Ascerelli, Problemas das sociedades anônimas e Direito Comparado, cit., p. 338-339).

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risco comercial.514 As sociedades limitadas surgem, assim, na Inglaterra, reguladas no Companies Act, de 1862, mas como modelo simplificado de sociedade por ações. Posteriormente, na Alemanha, pela Lei de 1892, foi criada a Gesellschaft Mit Beschränkter Haftung (GMBH),515 forma societária básica que posteriormente passa a ser adotada pelos demais países,516 não como mera simplificação da sociedade anônima, mas sim como tipo intermediário de organização econômica bem mais adaptável e apropriado às pequenas e médias empresas, com sua estrutura obrigacional definida conforme o interesse contratual, volitivo, dos seus sócios.

Investigando as características gerais inerentes à sociedade por quotas de responsabilidade limitada, Waldemar Ferreira considerava que, em razão da sua natureza jurídica, a sociedade por quotas “se aproxima da sociedade anônima”, contudo, “em sua essência econômica, se agrega ao grupo de sociedades de pessoas.”517 A sociedade por quotas de responsabilidade limitada representa, pois, tipo societário híbrido, não sendo puramente uma sociedade de pessoas, constituída mediante contrato, quando predomina o elemento vinculativo da affectio societatis, nem caracteriza uma sociedade de capital, em que o elemento central, dominante, é a contribuição econômica dos sócios em títulos de livre circulação, sem exposição ao risco de alcance do patrimônio pessoal pelos credores.

Bem, se as obrigações do empresário coletivo, dos acionistas e sócios da sociedade anônima e da sociedade limitada, inclusive dos administradores, estavam protegidas pela ficção jurídica da limitação da responsabilidade, não existia mais

514 Fábio Ulhoa Coelho esclarece que a criação da sociedade limitada é bastante recente em relação aos tipos societários históricos, como as sociedades em nome coletivo, em comandita e por ações, “e decorre da iniciativa de parlamentares, para atender ao interesse de pequenos e médios empreendedores, que queriam beneficiar-se, na exploração de atividade econômica, da limitação da responsabilidade típica das anônimas, mas sem atender às complexas formalidades destas, nem se sujeitar à prévia autorização governamental.” (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit. p. 394). 515 “Sentiu-se desde muito, na Alemanha, necessidade de criar forma societária em que se limitassem os riscos dos sócios a soma determinada, por quantia previamente estabelecida, do mesmo modo que na sociedade anônima, mas que, por outro lado, se rodeasse de maior simplicidade em suas constituição de desenvolvimento, de modo, e a observação é de Karl Heinsheimer, que servisse a empresas da ação restrita ou de caráter provisório, especialmente as empresas de família.” (Waldemar Ferreira, Tratado de Direito Comercial, vol. 3, O Estatuto da Sociedade de Pessoas, cit., p. 388). 516 Reproduzindo o modelo da sociedade por quotas de responsabilidade limitada regulado na lei alemã, praticamente todas as nações do mundo passaram a adotar esse regime societário para as pequenas e médias empresas: Portugal (1901); Áustria (1906); Brasil (1919); Chile (1923); França (1925); Hungria (1929); Argentina (1932); Uruguai (1933); México (1934); Bélgica (1935); Suíça (1936); Itália (1942). 517 Tratado de Direito Comercial, vol. 3, O Estatuto da Sociedade de Pessoas, cit., p. 388-389.

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justificativa científica, de ordem técnica, normativa, coerente ou plausível, que impedisse que essa mesma limitação, como direito garantidor, fosse estendida ao empresário individual. Afinal, o que se observava, na prática, era o registro, nas juntas comerciais, de milhares de contratos de sociedades limitadas e mesmo anônimas, em que existia um sócio majoritário, titular de mais de 90 % da quotas ou ações, e sócios minoritários que somente participavam e assinavam o contrato social para assegurar a limitação da responsabilidade do sócio majoritário, quase sempre e invariavelmente, do controlador da empresa. Esse sócio minoritário apenas participava, designado pelo jargão de mercado como “homem de palha”, para compor o quadro societário e, por conta da satisfação ao atendimento do requisito da pluripessoalidade, assim assegurar a responsabilidade limitada do sócio majoritário que, na verdade, ao fim e ao cabo, exercia o comércio como empresário individual.518

Como modo de superar ou mesmo desconsiderar essa brecha que a legislação societária passou a permitir para a constituição de verdadeiras sociedades unipessoais, os sistemas de direito positivo e a própria doutrina vieram a admitir a extensão e aplicabilidade da responsabilidade limitada para qualquer tipo de organização comercial, seja esta individual ou coletiva. A partir desse raciocínio utilitarista ou pragmático, foram desenvolvidas pela doutrina, desde o século XIX, várias teorias acerca da possibilidade jurídica de limitação da responsabilidade do comerciante ou empresário individual.

Essa discussão começa, segundo Calixto Salomão Filho, pela análise e crítica da teoria ficcionista de Savigny, quando este trata da possibilidade de personificação de ente individual, não coletivo, e assim admite a criação de novo centro de imputação

518 A respeito dessa simulação societária, Tullio Ascarelli observara: “Considera-se, por exemplo, a sociedade por ações com um único sócio – meio indireto para exercer, com responsabilidade limitada, um comércio individual: imaginaria societas, dir-se-ia, em linguagem romana. É frequente o caso de sociedades que, embora constituída por várias pessoas, são, no entanto, substancialmente dominadas por uma só, visando proporcionar a esta a possibilidade de exercer o comércio com responsabilidade limitada. As demais pessoas que intervém no ato constitutivo são normalmente amigos complacentes (o advogado que redigiu a ata, parentes, etc.), que, com frequência, logo após a constituição da sociedade, cedem as próprias ações ao único sócio e cuja participação é, de qualquer forma, irrisória e motivada por amizade”. (Problemas das sociedades anônimas e Direito Comparado, cit., p. 130). Na prática empresarial, segundo Wilges Bruscato, essas sociedades imaginárias são também conhecidas por “sociedade aparente, ficcional, de favor ou simulada”. (Empresário Individual de Responsabilidade Limitada, São Paulo, Quartier Latin, 2005. P. 26).

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de direitos e deveres.519 De acordo com a teoria da ficção, o racionalismo jurídico deveria superar o realismo social para criar soluções adaptadas às condições econômicas presentes à época, na Alemanha, na fase pré-industrial do século XIX. Naquele período, existia grande necessidade de “instrumentos que permitissem o agrupamento de recursos e, de outro, grande preocupação com a solvência das pequenas (e frequentemente sub-capitalizadas) empresas”.520

A segunda teoria é a do patrimônio de afetação, que defende a separação real de uma parte do patrimônio da pessoa natural para o exercício de atividade empresarial, defendida por Brinz e Bekker.521 O patrimônio de afetação ou regime fiduciário resulta de uma separação ou segregação patrimonial, quando o empresário individual destina uma determinada parcela do seu patrimônio para a exploração econômica. Essa parcela, constituída por bens móveis e imóveis, estará afetada aos negócios e representará a garantia dos credores, pondo o patrimônio particular do empresário a salvo, em princípio, de excussão por dívidas.

Sylvio Machado Marcondes afirmava que “o único critério seguro para reconhecer a existência do patrimônio separado é o da responsabilidade pelas dívidas”.522 No caso do patrimônio de afetação, somente este responderá pelas dívidas da empresa, com o mesmo efeito da separação patrimonial resultante da criação de uma pessoa jurídica.

A criação desse patrimônio de afetação ou regime fiduciário, com base na experiência histórica, pode se dar pela forma da empresa individual de responsabilidade limitada ou como sociedade unipessoal. A resultante de proteção do patrimônio particular do empresário é a mesma. A diferença reside, principalmente, na questão da personificação. A empresa individual possuiria um patrimônio apartado, mas não seria dotada de personalidade jurídica. A sociedade unipessoal, por seu turno, representa nova pessoa jurídica, mas nasceria de uma contradição

519 Calixto Salomão Filho, A sociedade unipessoal, São Paulo, Malheiros, 1995, p. 15. 520 Calixto Salomão Filho, cit., p. 17. 521 Calixto Salomão Filho, cit., p. 15. 522 Sylvio Marcondes Machado, Problemas de Direito Mercantil, São Paulo, Max Limonad, 1970, p. 97, apud Calixto Salomão Filho, cit., p. 27.

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caracterizada pelo contrato consigo mesmo, do contrato de um único sócio, o que não era digerido pelo tecnicismo exagerado da doutrina dominante.

Durante muitos anos, observa Calixto Salomão Filho, “a sociedade unipessoal viu-se sempre envolta em preconceitos e mitos que impediam que se fizesse uma pesquisa séria e objetiva sobre o assunto.”523 Ainda assim, assinala o mesmo autor, no Brasil, “já há muito tempo se debate a respeito da conveniência ou não de se fazer uma exceção ao princípio da responsabilidade integral da pessoa pelos seus débitos”.524 Exemplo desse debate pode ser observado no anteprojeto de reforma da Lei das Sociedades Limitadas, conduzido pelo Ministério da Justiça, e elaborado por uma de comissão de juristas, que iniciou os trabalhos no ano de 1999, mas que não se transformou em projeto de lei exatamente porque a opção do Governo Federal, naquele momento, foi a de promulgar o Código Civil.525 Nesse anteprojeto, era prevista e regulada a Empresa Unipessoal de Responsabilidade Limitada (EURL),526 em moldes semelhantes aos adotados, numa primeira fase, pela legislação de Portugal.527

523 Calixto Salomão Filho, A sociedade unipessoal, cit., p. 9. 524 Calixto Salomão Filho, cit., p. 41. 525 A comissão de juristas que elaborou o Anteprojeto da nova Lei de Sociedades Limitadas era integrada por Arnoldo Wald, Jorge Lobo, Cesar Asfor Rocha, Alfredo Lamy Filho, Egberto Lacerda Teixeira e Waldirio Bulgarelli. (Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Direito de empresa, cit., p. 124). 526 O Anteprojeto assim definia essa nova modalidade de empresa: “Art. 41. É considerada empresa unipessoal de responsabilidade limitada: I – a constituída por uma única pessoa, física ou jurídica, mediante instrumento público ou particular, assinado pelo fundador e subscrito por duas testemunhas; II – a sociedade por quotas de responsabilidade limitada que ficar reduzida a um único sócio após o transcurso do prazo previsto no § 2º do art. 6º. Parágrafo único. Cada pessoa só poderá ser sócia de uma única empresa unipessoal de responsabilidade limitada.” 527 O Decreto-Lei 248, de 1986, criou, em Portugal, a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRL. Todavia, a partir da Diretiva 667, de 1989, da Comunidade Europeia, que passou a incentivar a criação de sociedades unipessoais, o Código de Sociedades Comerciais (CSC) português foi aditado pelo Decreto-Lei 257, de 1997, para permitir a constituição de sociedades unipessoais, por derivação das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. (José Engrácia Antunes, O estabelecimento individual de responsabilidade limitada: crónica de uma morte anunciada, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra, Coimbra Editora, ano 3, 2006, p. 434). A legislação portuguesa, em suas características gerais, assim veio a definir a sociedade unipessoal: “Art. 270-A – Constituição – 1. A sociedade unipessoal por quotas é constituída por um sócio único, pessoa singular ou colectiva, que é o titular da totalidade do capital social. 2. A sociedade unipessoal por quotas pode resultar da concentração na titularidade de um único sócio das quotas de uma sociedade por quotas, independentemente da causa da concentração. (...) Art. 270-B – Firma – A firma destas sociedades deve ser formada pela expressão “sociedade unipessoal” ou pela palavra “unipessoal” antes da palavra “Limitada” ou da abreviatura “Lda.”. Art. 270-C – Efeitos da unipessoalidade – 1. O sócio único de uma sociedade unipessoal por quotas pode modificar esta sociedade em sociedade por quotas plural através de divisão e cessão da quota ou de aumento do capital social por entrada de um novo sócio, devendo, nesse caso, ser eliminada da firma a expressão “sociedade unipessoal”, ou a palavra “unipessoal”, que nela se contenha.”

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A responsabilidade limitada do empresário individual ou da empresa unipessoal restou consagrada, na Europa, ao final do século XX, sob a forma da sociedade unipessoal, como nova espécie societária de natureza contratual.528

A última tentativa, frustrada, de introdução de limitação da responsabilidade do empresário individual no direito positivo brasileiro, mesmo após o Código Civil de 2002, ocorreu quando da elaboração da Lei Complementar 123/2006, que instituiu o novo regime da microempresa e da empresa de pequeno porte.529 O dispositivo que previa a criação da nova figura do Empreendedor Individual de Responsabilidade Limitada, somente aplicável às micro e pequenas empresas. Contudo, a proposta foi vetada pelo Presidente da República, sob o argumento, inconsistente, de que essa norma estaria a invadir matéria de competência tributária, apesar da sua hierarquia de lei complementar à Constituição (CF, art. 146).

O legislador do Código Civil de 2002 passou ao largo dessa discussão histórica.530 Por uma estranha ironia do destino, o relator do livro do Direito de Empresa no Código Civil, Sylvio Marcondes Machado, foi autor, quase cinquenta anos antes, de um estudo inovador sobre a matéria da responsabilidade limitada do

528 A sociedade unipessoal foi assim criada, sucessivamente, na Dinamarca (1976), Alemanha (1980), França (1985), Holanda (1986) e Bélgica (1987). A Comunidade Europeia, através da Diretiva 667, de 1989, propôs a constituição de sociedades unipessoais de responsabilidade limitada, com base nos seguintes argumentos e disposições básicas: “Considerando que é conveniente prever a criação de um instrumento jurídico que permita a limitação da responsabilidade do empresário individual, em toda a Comunidade, sem prejuízo das legislações dos Estados-membros que, em casos excepcionais, impõem a responsabilidade desse empresário relativamente às obrigações da empresa; (...) Art. 2º. Item 1. A sociedade pode ter um sócio único no momento da sua constituição, bem como por força da reunião de todas as partes sociais numa única pessoa (sociedade unipessoal). (...) Art. 4º. O sócio único exerce os poderes atribuídos à assembleia geral de sócios. (...) Art. 7º. Um Estado-membro pode decidir não permitir a existência de sociedades unipessoais no caso de a sua legislação prever a possibilidade de o empresário individual constituir uma empresa de responsabilidade limitada com um património afecto a uma determinada actividade desde que, no que se refere a essas empresas, se prevejam garantias equivalentes às impostas pela presente directiva bem como pelas outras disposições comunitárias aplicáveis às sociedades referidas no artigo 1º.” 529 Dispositivo vetado na Lei Complementar 123/2006 - “Do Empreendedor Individual de Responsabilidade Limitada - Art. 69. Relativamente ao empresário enquadrado como microempresa ou empresa de pequeno porte nos termos desta Lei Complementar, aquele somente responderá pelas dívidas empresariais com os bens e direitos vinculados à atividade empresarial, exceto nos casos de desvio de finalidade, de confusão patrimonial e obrigações trabalhistas, em que a responsabilidade será integral”. 530 O Código de 2002 prevê, apenas, uma hipótese excepcional, de segregação patrimonial, para permitir a continuidade ou sucessão na empresa por pessoa incapaz: “Art. 974. Poderá o incapaz, por meio de representante ou devidamente assistido, continuar a empresa antes exercida por ele enquanto capaz, por seus pais ou pelo autor de herança. (...) § 2o Não ficam sujeitos ao resultado da empresa os bens que o incapaz já possuía, ao tempo da sucessão ou da interdição, desde que estranhos ao acervo daquela, devendo tais fatos constar do alvará que conceder a autorização.”

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comerciante individual. Todavia, contraditoriamente, ele não incorporou ao novo sistema legislativo as conclusões avançadas da sua tese acadêmica.531 Somente com a modificação resultante da Lei 12.441/2011, quase dez anos após o Código de 2002, foi admitida, pela legislação brasileira,532 a limitação da responsabilidade do empresário individual, sob a forma da EIRELI.533

A lei brasileira, contudo, não ousou na reconfiguração da empresa individual de responsabilidade limitada.534 A EIRELI foi concebida sob modelo híbrido e contraditório, como patrimônio de afetação dotado de personalidade jurídica, sem constituir, todavia, ente societário.535 Para esse fim, como criticado pela doutrina,536 o 531 Na sua tese de cátedra, Sylvio Marcondes Machado adota a concepção objetiva do patrimônio de afetação, situando a empresa individual “na categoria dos objetos de direito, por exigir o melhor desvêlo na elaboração das normas adequadas à constituição do patrimônio separado”. (Limitação da responsabilidade de comerciante individual, São Paulo, Max Limonad, 1956, p. 286). 532 “Foi assim que, depois de algumas tentativas legislativas frustradas e com aproximadamente 30 (trinta) anos de atraso em comparação à realidade de diversos países da família romano-germânica, só com o advento da Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011, o direito pátrio finalmente concebeu a sua própria e singular estrutura jurídica para limitar a responsabilidade de entes unipessoais exercentes de atividades econômicas”. (Erasmo Valadão Azevedo e Novaes França e Marcelo Vieira Von Adamek, Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Lei nº 12.441/2011) – Anotações, em Sociedade Limitada Contemporânea, cit., p. 43). 533 A Lei 12.441/2011 teve sua origem no Projeto de Lei 4.605/2009, apresentado pelo Deputado Marcos Montes Cordeiro (DEM-MG), inicialmente para inserir a empresa individual de responsabilidade limitada no título das sociedades, para inclusão do art. 985-A. O deslocamento da matéria para o título do empresário individual, assim como a sugestão para inclusão da EIRELI como pessoa jurídica de direito privado, alterando o art. 44 do Código Civil e a fixação de um capital mínimo, decorreram de emendas do relator na Comissão de Constituição e Justiça, Deputado Marcelo Itagiba (PSDB-RJ). A principal motivação e justificativa do projeto de lei consistia na “necessidade de fulminar com costume (sic) de constituir sociedades limitadas com o enfoque único de proteger o patrimônio pessoal do verdadeiro e único empreendedor e, para isto, era induzido a admitir um sócio apenas para ter o patrimônio pessoal protegido por eventuais dívidas derivadas da atividade econômica.” (Paulo Leonardo Vilela Cardoso, O empresário de responsabilidade limitada, cit., p. 70-71). 534 Código Civil de 2002 – “Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País. § 1º O nome empresarial deverá ser formado pela inclusão da expressão "EIRELI" após a firma ou a denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada. § 2º A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade. § 3º A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração. § 4º (VETADO). § 5º Poderá ser atribuída à empresa individual de responsabilidade limitada constituída para a prestação de serviços de qualquer natureza a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional. § 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.” 535 Na opinião de Fábio Ulhoa Coelho, a EIRELI, como instituto jurídico, seria, simplesmente, “o nome juris dado, no Brasil, à sociedade limitada unipessoal” (Curso de Direito Comercial, vol. 1, 18ª edição, 2014, p. 127). Essa conclusão ele justifica pela inclusão da EIRELI como pessoa jurídica de direito privado, bem como pela sua regulação subsidiária nas normas das sociedades limitadas. 536 Alfredo de Assis Gonçalves Neto observa que na lei brasileira “afora a questão da conveniência de se adotar a limitação da responsabilidade do comerciante ou empresário individual, verificou-se a

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art. 44 do Código Civil foi alterado pela Lei 12.441/2011 para inserir, entre as pessoas jurídicas de direito privado, a EIRELI. Nesse modelo híbrido, a lei brasileira ficou mais próxima do estabelecimento individual de responsabilidade limitada – EIRL, de Portugal, o qual se encontra em franco desuso,537 do que da forma da sociedade unipessoal, que passou a ser adotada e hoje predomina em Portugal desde o Decreto-Lei 257, de 1997, assim como em quase todos os países europeus.

Esse modelo indefinido da EIRELI levou alguns autores, a exemplo de Carlos Henrique Abrão, a confundir o capital mínimo com o limite da responsabilidade do empreendedor individual, de modo tal que o patrimônio de afetação “estaria subordinado ao capital social integralizado desde o início da constituição do negócio, ao teto de 100 salários-mínimos”.538 Assim, o limite da responsabilidade do empresário ficaria representado pelo capital mínimo, e as dívidas que ultrapassarem esse teto não estariam vinculadas aos efeitos da limitação, respondendo o empresário titular da EIRELI, ilimitadamente, pelo passivo excedente a 100 salários-mínimos. Tal entendimento, todavia, não deverá prosperar, porque inexiste, na lei, qualquer previsão nesse sentido.

mesma hesitação entre conferir ao empresário a limitação da sua responsabilidade ou admitir a sociedade unipessoal para o mesmo fim”. A Lei 12.441/2011, com efeito, seguiu, segundo ele, uma terceira via: “não atribuiu ao empresário individual responsabilidade limitada aos bens que afetar à sua empresa, na linha da mais recente orientação do direito francês (Lei 658, de 15.06.2010, que dispôs sobre o empreendedor individual de responsabilidade limitada); também não escolheu o caminho da sociedade unipessoal. Preferiu a fórmula não societária sob peculiar roupagem, regulando uma nova figura jurídica – a empresa individual de responsabilidade limitada -, próxima do modelo português do estabelecimento comercial de responsabilidade limitada, com a diferença do patrimônio destinado ao seu negócio pertencer a pessoa diversa, tanto do empresário quanto da sociedade empresária”. (Direito de empresa, cit., p. 123). 537 José Engrácia Antunes, O estabelecimento individual de responsabilidade limitada: crónica de uma morte anunciada, cit., p. 434. 538 “A maior novidade surgida em relação à criação do modelo da empresa individual se refere à limitação da responsabilidade adstrita ao capital mínimo de constituição, correspondendo à soma de 100 salários-mínimos. Propósito imediato do legislador, sem sombra de dúvida, caminhou no sentido de fomentar a constituição de empresa individual e, ao mesmo tempo, lhe conceder o modelo no qual a responsabilidade não alcançasse o patrimônio individual do seu titular”. (Empresa Individual, cit., p. 43; 89). Em sentido oposto, o entendimento de Alfredo de Assis Gonçalves Neto: “Do ponto de vista da sua origem, evidencia-se que a EIRELI foi criada indubitavelmente para limitar a responsabilidade do empresário (individual), sendo inscrita, inclusive, no Registro Público de Empresas Mercantis (CC, art. 1.033, parágrafo único); e, no que concerne ao seu regime jurídico, é pautado nas normas da sociedade limitada (art. 980-A, § 6º), que é encartada entre os tipos de sociedade empresária (art. 983).” (Direito de Empresa, cit., p. 133). Assim também converge o entendimento de Erasmo Valadão Azevedo e Novaes França e Marcelo Von Adamek: “Por essa senda, a autonomia patrimonial da Eireli é absoluta e vige, em ambos os sentidos: a favor, mas também contra o sócio único”. (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Lei nº 12.441/2011) – Anotações, em Sociedade Limitada Contemporânea, cit., p. 69).

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A limitação da responsabilidade do empresário na EIRELI decorre do simples fato desta ser constituída como pessoa jurídica, e ser a ela aplicável, subsidiariamente, o regime da sociedade limitada, não subordinada ao capital mínimo. A exigência de capital mínimo, como ressaltado por Modesto Carvalhosa, vem, inclusive, na “contramão” da nossa legislação societária.539

A justificativa para a fixação desse capital mínimo foi a de que a criação da EIRELI teve como fundamento básico evitar a constituição de sociedades fictícias, simuladas, em que um “sócio de palha” assina o contrato social apenas para assegurar a limitação da responsabilidade do sócio controlador, verdadeiro “dono” da empresa.540 Todavia, a fixação do valor de 100 salários-mínimos decorreu de critério eminentemente subjetivo, ou de não-critério, de um número cabalístico, porque, segundo o Deputado Marcelo Itagiba, relator do projeto de lei na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, esse seria o “montante a partir do qual se tem por aceitável a configuração patrimonial da empresa individual”.541 O citado deputado nada mais disse ou esclareceu a respeito da definição contábil do que ele entende por “configuração patrimonial” aceitável.542

539 “Saliente-se, a propósito, que a fixação pelo legislador de um valor mínimo ao capital vem na contramão de uma tendência de supressão dessa exigência legal. Esta tendência foi, inclusive, adotada pela Lei de S/A, que em sua exposição de motivos já esclarecia que “embora muitas das pequenas companhias existentes no País pudessem ser organizadas como sociedades por quotas de responsabilidade limitada, não há interesse em limitar arbitrariamente a utilização de forma de companhia”. (Prefácio à obra de Paulo Leonardo Vilela Cardoso, O empresário de responsabilidade limitada, cit., p. 14). 540 Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Direito de empresa, cit., p. 134. 541 Paulo Leonardo Vilela Cardoso, O empresário de responsabilidade limitada, cit., p. 77. Cabe observar que, na lei portuguesa reguladora do Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada - EIRL, criado pelo Decreto-Lei 248, de 1986, com a última atualização do Decreto-Lei 08, de 2007, no qual a lei brasileira, ao que parece, procurou se espelhar, foi definido o capital mínimo no montante de € 5.000,00, para a constituição da EIRL em Portugal. No Brasil, exige-se, hoje, para a constituição da EIRELI, capital superior a mais de quatro vezes o capital exigido em Portugal. 542 Visando reduzir o capital exigido da EIRELI, de 100 para 50 salários-mínimos, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2.468/2011; o autor do projeto, Deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), “propõe a redução do capital mínimo exigido – pela regra atual, são R$ 62,2 mil, o que cairia pela metade – baseado no argumento do professor Cássio Cavalli, da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). Cavalli ressalta que 100 salários mínimos superam o valor dos ativos empregados para a organização da maioria das pequenas empresas. “Não é de se esperar, por exemplo, que o proprietário de um carrinho de cachorro quente empregue mais de R$ 50 mil como capital social”, afirma. O professor acrescenta, a título de comparação, que com R$ 3 mil é possível constituir uma sociedade limitada, pois não há valor mínimo exigido”. (Câmara Notícias, Economia, 17/01/2012, http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/economia/207859).

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A sociedade anônima, espécime superior e a mais complexa construção dentre todos os tipos societários, pode ser constituída com o capital social desvinculado de qualquer patamar mínimo legal. A Lei 6.404/1976 exige, apenas, no ato de constituição da companhia, o depósito, em dinheiro, do valor correspondente a dez por cento do preço de emissão das ações subscritas (art. 80). Se o capital subscrito for, por exemplo, de R$ 100 mil, qualquer sociedade anônima pode ser constituída com o depósito mínimo no valor de R$ 10 mil. Somente em determinadas atividades de relevante interesse público submetidas a regime de autorização, como na atividade bancária,543 a legislação exige capital mínimo para a constituição dessas sociedades, especialmente porque tais empresas atuam no âmbito da captação de depósitos e poupanças privadas, ou seja, na esfera pública da economia popular.544

Para fins de constituição de sociedade limitada, a legislação sequer exige a integralização de capital mínimo. Qualquer sociedade limitada, independentemente do seu objeto, pode ser criada com qualquer capital subscrito, ainda que não venha a ser integralizado no ato da sua formação e registro.

Diante dessa realidade jurídica, isto é, de inexistir exigência de capital mínimo para a constituição de qualquer empresa ou sociedade comercial no Brasil, revela-se que a EIRELI representa, como assim observado por Modesto Carvalhosa, evidente “contramão” no âmbito da liberdade de escolha ou opção da forma da empresa.545

O efeito, todavia, poderá ser até contrário, como bem anotado por Erasmo Valadão França e Marcelo Von Adamek, isto porque, “longe de reforçar a regra de limitação de responsabilidade, a EIRELI, tal como estruturada, contribui ainda mais

543 Lei 4.595/1964 - “Art. 4º Compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República: (...) XIII - Delimitar, com periodicidade não inferior a dois anos o capital mínimo das instituições financeiras privadas, levando em conta sua natureza, bem como a localização de suas sedes e agências ou filiais;” 544 Normas de exigência ou fixação de capital mínimo: companhias financeiras e bancárias (Lei 4.595/1964, art. 4º, XIII; Resolução do Banco Central 2.099/1994; Regulamento Bacen, Anexo II, art. 1º, com a redação das Resoluções 2.607/1999 e 3.334/2005; Resolução 2.828/2001, art. 5º; Resolução 3.334/2005, art. 9º; Resolução 3.426/2006, art. 5º; Resolução 3.567/2008, art. 4º, I); companhias de seguro privado (Decreto-Lei 73/1966, art. 32, VI; Resolução CNSP 316/2014); sociedades de planos de assistência e seguros privados de saúde (Lei 9.656/1998, art. 35-A, IV). 545 No entender de Paulo Roberto Bastos Pedro, a exigência de capital mínimo seria, inclusive, inconstitucional, “pois trata o empresário individual de responsabilidade limitada de maneira diferente dos demais empresários que, de modo livre, fixam o valor do capital social”. (Curso de Direito Empresarial, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, p. 48).

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para o descrédito da regra de limitação de responsabilidade das sociedades em geral”.546 Neste aspecto, Carlos Henrique Abrão afirma que, como não existe “órgão de controle ou de fiscalização que possa, no momento da constituição da empresa individual, constatar, de maneira sólida e concreta, a existência do capital mínimo”, esse “capital mínimo poderá ser mero artificialismo, ou se constituir em simples escrituração fiscal, sem qualquer concretude ou realidade que proteja o próprio negócio e a massa de credores.”547

Diante dessa contradição do capital mínimo, a prática simulada de criação de sociedades fictícias permanecerá existindo. Se um empresário não pretende aplicar um montante de 100 salários mínimos (atualmente no valor de quase R$ 80 mil), para assim ficar protegido sob o anteparo da EIRELI, e desse modo assegurar a limitação da sua responsabilidade, ele poderá constituir uma sociedade limitada, arranjando um “sócio de palha”, participando com 0,01 % do capital social. Poderá, até, maxima contraditio, constituir uma sociedade anônima com qualquer valor do capital e, para atender ao requisito da pluripessoalidade, efetuar a doação de uma única ação a terceiro. Ou seja, o objetivo da inovação, que era evitar a existência de sociedades unipessoais simuladas, continuará desvirtuando a realidade empresarial.

A criação da EIRELI poderá resultar de procedimento de constituição originária, quando o empresário não era sócio ou titular de outra empresa, ou por procedimento derivado, mediante transformação da firma individual ou sociedade limitada em EIRELI. Ambos os procedimentos de constituição, originária ou derivada, estão regulados pela Instrução Normativa 10/2014 do Departamento de Registro de Empresas e Integração – DREI, no seu Anexo V.

Na constituição originária da EIRELI, o regulamento não define a natureza do ato constitutivo, se declaração de constituição, como na firma individual, se contrato,

546 Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Lei nº 12.441/2011) – Anotações, em Sociedade Limitada Contemporânea, cit., p. 56. 547 Empresa Individual, cit., p. 3.

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como próprio da sociedade limitada. O regulamento do registro de empresas apenas denomina-o como “ato constitutivo”, sem precisar sua natureza.548

Para efeito de constituição derivada, os procedimentos regulados pelas normas do registro de empresas denominam esses atos como de transformação (Instrução Normativa 10/2014, Anexo V, itens 3.2.14 e 3.2.15).549 A constituição derivada, no âmbito da transformação, deverá resultar, na maioria dos casos, da redução da sociedade limitada contratual a um único sócio, por falecimento ou retirada do outro sócio (CC, art. 1.033). Interessante destacar que o regulamento do registro de empresas somente admite a transformação da EIRELI em sociedade contratual ou vice-versa, não prevendo a transformação em sociedade institucional ou estatutária, como a sociedade anônima. Desse modo, uma sociedade anônima reduzida a um único acionista (Lei 6.404/1976, art. 206, IV) não poderá ser transformada ou

548 BRASIL, Departamento de Registro Empresarial e Integração (DREI); Instrução Normativa DREI 10/2014 – “1.2.4. Elementos do ato constitutivo - O ato constitutivo deverá conter, no mínimo, os seguintes elementos: a) título (Ato Constitutivo); b) preâmbulo; c) corpo do ato constitutivo: c.1) cláusulas obrigatórias; d) fecho; (...) Deverão constar do preâmbulo do ato constitutivo: a) qualificação do titular da empresa e, se for o caso, de seu procurador: titular pessoa natural (brasileiro ou estrangeiro) residente e domiciliado no País ou no exterior: nome civil, por extenso; nacionalidade; estado civil; (no caso de união estável, incluir o estado civil) data de nascimento, se solteiro; profissão; documento de identidade, número e órgão expedidor/UF; CPF; endereço residencial (tipo e nome do logradouro, nº, complemento, bairro/distrito, município, unidade federativa e CEP, se no País); b) tipo jurídico (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada). (...) 1.2.7 - Cláusulas obrigatórias do ato constitutivo - O corpo do ato constitutivo deverá contemplar, obrigatoriamente, o seguinte (art. 980-A, §§, c/c art. 1.054 do CC): a) nome empresarial, que poderá ser firma ou denominação, do qual constará obrigatoriamente, como última expressão, a abreviatura EIRELI; b) capital, expresso em moeda corrente, equivalente a, pelo menos, 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País (art. 980-A do CC); sendo desnecessária a atualização do capital social por alteração e/ou decisão do titular, quando houver mudanças no valor instituído pelo Governo Federal. Havendo qualquer outra alteração de dados, o capital deverá ser atualizado; c) declaração de integralização de todo o capital (art. 980-A do CC); d) endereço completo da sede (tipo e nome do logradouro, número, complemento, bairro/distrito, município, unidade federativa e CEP) bem como o endereço das filiais; e) declaração precisa e detalhada do objeto da empresa; f) prazo de duração da empresa; g) data de encerramento do exercício social, quando não coincidente com o ano civil; h) a(s) pessoa(s) natural(is) incumbida(s) da administração da empresa, e seus poderes e atribuições; i) qualificação do administrador, caso não seja o titular da empresa; e j) declaração de que o seu titular, não participa de nenhuma outra empresa dessa modalidade.” 549 BRASIL, Departamento de Registro Empresarial e Integração (DREI); Instrução Normativa DREI 10/2014 – “3.2.14 - Transformação do registro de sociedade empresária para empresa individual de responsabilidade limitada - EIRELI - O sócio remanescente, inclusive na hipótese de concentração de todas as cotas da sociedade sob sua titularidade, poderá requerer, no Registro Público de Empresas Mercantis, a transformação do registro da sociedade para Empresa Individual de Responsabilidade Limitada. A transformação do registro poderá ser requerida independentemente do decurso do prazo de cento e oitenta dias, desde que não tenha sido registrado ato de liquidação da sociedade. 3.2.15 - Transformação de registro de EIRELI para sociedade empresária - A transformação do registro de EIRELI para sociedade contratual, caso o titular queira admitir um ou mais sócios, poderá ser formalizada em um ou dois processos.”

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convertida em EIRELI, e tampouco poderá adotar a forma de subsidiária integral, visto que a sociedade instituidora e orginária desaparecerá com a perda da pluripessoalidade.

A doutrina, reunida nas Jornadas de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal,550 formulou diversos enunciados tratando da EIRELI, diante da novidade da sua implantação pioneira, ainda que retardada, no nosso país, da empresa individual de responsabilidade limitada.

Assim, o Enunciado nº 468 da Jornada de Direito Civil considerou que a EIRELI “só poderá ser constituída por pessoa natural”, e não por pessoa jurídica.551 Esse entendimento, desde a regulamentação pela Instrução Normativa 117/2011 do DNRC, é polêmico, de “legalidade duvidosa”, na opinião de Fábio Ulhoa Coelho.552 A dúvida decorre do fato de que o art. 980-A do Código Civil, com a redação da Lei 12.441/2011, não é explícito quanto à reserva de constituição da EIRELI apenas por pessoa natural: “A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social (...).” Como visto, a norma refere-se à presença de “uma única pessoa titular”, não distinguindo esta como pessoa física ou jurídica. Todavia, no § 2º adiante, o referido artigo prescreve: “A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade”. Em respeito à autonomia das normas, segundo a melhor técnica hermenêutica,553 aquilo que estiver disposto em um parágrafo pode conter regra excepcionante ou divergente do conteúdo do caput do artigo. A norma do § 2º do art. 980-A estabelece disposição restritiva quando a EIRELI for constituída por pessoa física ou natural, mas não proíbe, de modo algum, que uma pessoa jurídica participe de EIRELI. No sentido lógico, a norma permite que a pessoa

550 Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, ver em http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/jornadas-de-direito-civil-enunciados-aprovados, 25/04/2015. 551 Alfredo de Assis Gonçalves Neto entende que a EIRELI somente pode ser constituída por pessoa natural, e observa que na 1ª Jornada de Direito Comercial do CJF, realizada em outubro de 2012, esse tema voltou a ser discutido, “mas a proposta de permitir a criação de EIRELI por pessoa jurídica foi rejeitada por expressiva maioria”. (Direito de empresa – Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil, cit., p. 129). 552 Curso de Direito Comercial, vol. 1, 18ª edição, cit. p. 128. 553 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 4ª edição, 1947, p. 246.

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jurídica possa constituir mais de uma EIRELI, por se tratar de ente formado por várias outras pessoas, físicas ou jurídicas.

Em suporte a essa interpretação ampliativa, de admitir que a EIRELI possa ser constituída por pessoa jurídica, o § 6º do mesmo art. 980-A do Código Civil estabelece que aplicam-se à EIRELI, no que couber, “as regras previstas para as sociedades limitadas”. No âmbito do regime jurídico da sociedade limitada (CC, arts. 1.052 a 1.087), não existe qualquer norma que restrinja, limite ou proíba uma pessoa jurídica de ser sócia ou participar dos órgãos de administração da sociedade. Não existindo vedação expressa para a participação de pessoa jurídica na sociedade limitada, como sócia ou administradora, essa faculdade de participação deveria ser naturalmente estendida à EIRELI, e não vedada, como assim, de modo equivocado, o órgão do registro de empresas regulamentou. 554

Parte da doutrina entende, em consonância com as instruções normativas do DNRC/DREI e com o Enunciado nº 468 da Jornada de Direito Civil, que a EIRELI somente pode ser constituída por pessoa física ou natural.555 Todavia, de modo esclarecedor, Erasmo Valadão de França e Marcelo Von Adamek consideram que tal restrição não encontra justificação plausível, nem lógica, nem dogmática, inclusive porque, em todos os países da Europa, no âmbito da Diretiva nº 667, de 1989, a

554 A respeito dessa questão controversa da pessoa jurídica como titular da EIRELI, fazendo citação de outros doutrinadores, Leslie Amendolara comenta: “A Junta Comercial não permite o registro de EIRELI como pessoa jurídica, com fundamento na interpretação contrária dada à lei pelo Departamento Nacional do Registro do Comércio, órgão a que estão subordinadas as juntas. O advogado, ex-presidente da Junta Comercial de São Paulo, Armando Rovai, tem se posicionado reiteradamente favorável à EIRELI pessoa jurídica, afirmando que ao “DNRC deverá apenas caber a supervisão e coordenação da execução dos serviços de registro público a cargo das Juntas Comerciais”, deixando entrever, como assinala mais à frente, que se trata de “reflexo do indevido e equivocado controle material dos atos societários que deveria ser exercido unicamente pelo Poder Judiciário” (Jornal Empresa e Negócios). O professor e consultor jurídico Jorge Lobo defende também a tese da permissão de a EIRELI ser constituída por pessoa jurídica, afirmando textualmente: “A incorreta exegese do DNRC é, ademais, repelida pelo elemento histórico, porquanto o Projeto de Lei 4.605/09 que se transformou na Lei 12.441/11 dispunha, inspirado nas legislações do Chile, Peru, Paraguai (...) textualmente: “A EIRELI será constituída por um único sócio, pessoa natural”. (Jornal Valor). Ocorre que a proposta foi alterada no Congresso, “com a supressão do vocábulo natural”, concluindo Jorge Lobo, no mesmo texto: “a pessoa natural e a pessoa jurídica podem fundar uma EIRELI”. (Transformação de tipos societários em empresa individual de responsabilidade limitada, em Pedro Anan Junior e Marcelo Magalhães Peixoto, Coordenadores, Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – Aspectos econômicos e legais, São Paulo, MP Editora, 2012, p. 137-138). 555 Carlos Henrique Abrão Empresa individual, cit., p. 10; Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Direito de empresa – Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil, cit., p. 128-130.

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sociedade unipessoal pode ter como único sócio instituidor tanto uma pessoa física como uma pessoa jurídica.556

Através do Enunciado nº 469, a Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal - CJF, no que tange às suas características, entendeu que “a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI) não é sociedade, mas novo ente jurídico personificado”. A 1ª Jornada de Direito Comercial, também promovida pelo CJF,557 chegou a conclusão semelhante, ao aprovar o Enunciado nº 3, com a seguinte redação: “A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI não é sociedade unipessoal, mas um novo ente, distinto da pessoa do empresário e da sociedade empresária”.

Preliminarmente, sob interpretação topográfica estrita, a EIRELI não configuraria sociedade porque sua disciplina jurídica não está localizada na parte referente às sociedades no Código Civil (artigos 981 e seguintes), mas sim no título que regula o empresário individual (art. 980-A). Vale lembrar que, no projeto de lei originário, as disposições relativas à EIRELI foram propostas dentro do título das sociedades (art. 985-A).558 Logo, diante da indecisão do legislador, tal critério não se demonstra útil para a definição da natureza da EIRELI.

De acordo com a conclusão dos enunciados doutrinários acima citados, a EIRELI seria um terceiro ente, um tertium genus, pois não caracterizaria nem empresário individual, nem sociedade, mas modalidade híbrida. Por determinação expressa da lei, é forçoso reconhecer que a EIRELI é uma pessoa jurídica, por definição legal, não por mera equiparação. A partir do momento em que a Lei 12.441/2011 modificou o art. 44 do Código Civil para nele incluir, como pessoa jurídica de direito privado, a empresa individual de responsabilidade limitada,559 ao invés de

556 “Ainda que a EIRELI tenha sido idealmente concebida para estruturar pequenos negócios (algo que, pela exigência de capital mínimo elevado, perdeu-se nas boas intenções do legislador), nada obsta a que também venha a ser utilizada para os mais diversos fins, inclusive por médias e grandes empresas. Exatamente da mesma forma como ocorre no exterior”. Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Lei nº 12.441/2011) – Anotações, em Sociedade Limitada Contemporânea, cit., p. 50-51. 557 1ª Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, ver em http://www.cjf.jus.br/cjf/ CEJ-Coedi/jornadas-cej/LIVRETO%20-20I%20JORNADA%20DE%20DIREITO%20COMERCIAL.pdf. 558 Paulo Leonardo Vilela Cardoso, O empresário de responsabilidade limitada, cit., p. 70. 559 Código Civil de 2002 – “Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I - as associações; II - as sociedades; III - as fundações; IV - as organizações religiosas; (Incluído pela Lei 10.825/2003); V - os

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simplesmente reconhecer esta como modalidade societária, a norma criou nova espécime de pessoa jurídica, ainda que constituída por um só membro ou titular.

Do ponto de vista teórico, a partir dos princípios históricos do direito e da sua secular construção doutrinária, a inclusão da EIRELI como pessoa jurídica de direito privado representa inexplicável e abominável heresia. Jamais um ente formado pela vontade de uma só pessoa pode ser considerado como categoria definidora de pessoa jurídica, ente artificial, e não natural. A pessoa jurídica é uma entidade que surge pela conjugação de vontades, as quais definem, através de um contrato ou estatuto, o regime de conjugação e representação de interesses. A pessoa jurídica sempre foi considerada ente ou ser coletivo, sendo contraditório sua criação e a expressão exterior da sua vontade ser atribuída a uma parte autônoma, de modo unilateral. Sem embargo, neste caso, bastaria à lei criar a figura híbrida da empresa individual e, por equiparação, atribuir a ela certos efeitos próprios da pessoa jurídica.

Desde a edição do Decreto-Lei 200/1967 e da Lei 6.404/1976, isto é, durante mais de 40 anos, o direito positivo brasileiro reconheceu a existência de sociedades unipessoais, de direito público e de direito privado, como as empresas públicas e as subsidiárias integrais, isto sem a necessidade de redefinir a configuração legal das pessoas jurídicas no Código Civil e na legislação complementar. As pessoas jurídicas representam categorias fundamentais do direito, cujas definições básicas não podem ficar sujeitas aos caprichos e à ignorância dos legisladores leigos de plantão, como assim, infelizmente, vem ocorrendo, em vários casos, no âmbito do Congresso Nacional, nas últimas décadas.

Portanto, afastando as imprecisões conceituais e as contradições legais, a EIRELI deve ser definida como pessoa jurídica híbrida e excepcional, por equiparação, não uma pessoa jurídica autêntica, material, mas apenas formal.

A EIRELI deve ser tratada como pessoa jurídica imprópria inclusive porque a lei procurou atribuir efeitos patrimoniais determinados, diferentemente do regime geral do patrimônio próprio e separado das pessoas jurídicas. Esse dispositivo da lei,

partidos políticos; (Incluído pela Lei 10.825/2003); VI - as empresas individuais de responsabilidade limitada. (Incluído pela Lei 12.441/2011).”

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contudo, foi vetado quando da sanção da Lei 12.441/2011,560 sob o argumento, pífio, de que a expressão “em qualquer situação” poderia “gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil”. Para preencher o vácuo legislativo resultante do veto aposto ao § 4º do art. 980-A, o Enunciado 470 da Jornada de Direito Civil do CJF assim prescreveu, reproduzindo, quase que literalmente, o dispositivo vetado: “O patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica”.

Por óbvio, o principal efeito resultante da aquisição da personalidade jurídica é o da separação patrimonial.561 Os demais efeitos decorrentes do registro da pessoa jurídica (CC, art. 46), como denominação, objeto, foro e representação, são secundários. Com o nascimento da pessoa jurídica, esta passa a existir com patrimônio próprio, segregado, distinto do patrimônio dos seus membros. Se a responsabilidade dos sócios instituidores é limitada ou ilimitada, isso é outra questão.

No caso da EIRELI, mesmo diante do regime jurídico e dos efeitos inerentes à criação das pessoas jurídicas, a lei ainda buscou reforçar, inutilmente, em vão, esse caráter da segregação do patrimônio da empresa do patrimônio particular do empresário instituidor. Ora, se a EIRELI surge como pessoa jurídica formal, assim definida pela lei (CC, art. 44, VI), não poderiam remanescer quaisquer dúvidas quanto aos efeitos da separação patrimonial. O dispositivo vetado (CC, art. 980-A, § 4º), efetivamente, teve como resultado ou efeito, a representação da metáfora constante do adágio popular “chover no molhado”. Mesmo assim, a Presidenta da República, mal assessorada pelos seus jurisconsultos, resolveu vetar essa norma, veto este que, 560 Código Civil, art. 980-A (redação da Lei 12.441/2011) – Dispositivo vetado – “§ 4º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente”. 561 Sobre essa questão do principal efeito da personifização, José de Oliveira Ascensão enfatiza: “O primeiro aspecto está ligado à autonomia patrimonial. Há bens (os em comunhão) que respondem particularmente por certas dívidas. Cria-se por isso um património autónomo, como vimos; e, como esse património autónomo pertence a várias pessoas simultaneamente, designa-se património colectivo. Porém, segundo certos autores, como Carnelutti, para haver personalidade colectiva basta justamente a autonomia patrimonial. Temos aqui uma concepção minimalista da personalidade jurídica”. (Direito Civil – Teoria Geral, cit., p. 252).

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na prática, não produzirá, como visto, consequência alguma. Isto porque o § 6º do mesmo artigo 980-A dispõe que aplicam-se à EIRELI, “as regras previstas para as sociedades limitadas”. Ora, se no caso das sociedades limitadas, como o próprio nome assim já evoca e significa, “a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas” (CC, art. 1.052), então o regime patrimonial da EIRELI é o da limitação da responsabilidade do empresário instituidor, ou seja, da separação entre o patrimônio pessoal e o patrimônio destacado para a atividade empresarial.

Esse patrimônio destacado corresponde ao patrimônio de afetação, dito segregado ou sob regime fiduciário do empresário, aplicado no exercício da sua atividade econômica especulativa. E assim, do mesmo modo como a lei assegura a limitação da responsabilidade do sócio da sociedade por quotas ou limitada, o patrimônio pessoal do titular da EIRELI, a princípio, não se confunde com o patrimônio da empresa individual, mas fica sujeito, todavia, à aplicação, se for o caso, da regra de desconsideração da personalidade jurídica (CC, art. 50).

Em síntese final, constatamos que o legislador brasileiro optou por solução superada e divergente da dominante em outros países, ao afastar o regime da EIRELI da sociedade unipessoal,562 criando um tipo híbrido, indefinido, como patrimônio de afetação, mas ao mesmo tempo considerado como pessoa jurídica (CC, art. 44, VI), provocando dúvidas e insegurança da doutrina na caracterização desse novo ente.563 A adoção do modelo da sociedade unipessoal seria o mais correto e coerente, como categoria jurídica definida e com ampla base referencial no direito comparado.

562 No dizer da Carlos Henrique Abrão, “não se cuida de sociedade com único sócio, mas empresa de um empreendedor”. Empresa Individual – EIRELI, cit., p. 4. 563 À vista das disposições do art. 980-A do Código Civil, Alfredo de Assis Gonçalves Neto conceitua a EIRELI como “agente econômico personificado, constituído por ato unilateral de uma pessoa natural, mediante aporte de um patrimônio mínimo, ou mediante conversão de uma socidade unipessoal com patrimônio líquido mínimo para o fim de exercer atividade própria de empresário”. Direito de empresa – Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil, cit., p. 125.

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4.8. O regime da microempresa e da empresa de pequeno porte

Fiel à sua concepção generalista, o Código de 2002 não distinguiu a empresa em razão do seu porte.564 Apenas admitiu, como se legislador constitucional fosse, que a lei deveria assegurar tratamento favorecido ao pequeno empresário, que recebeu o mesmo tratamento da empresa rural.565 A caracterização da pequena empresa, pois, instituição econômica de relevante importância na realidade brasileira, não foi merecedora de quase nenhum destaque ou referência no Código de 2002, apesar da Constituição da República de 1988 assegurar, como princípio da ordem econômica, “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte” (CF, artigos 170, IX e 179).566

Como visto, a própria Constituição definiu as linhas gerais da política de incentivo às microempresas e empresas de pequeno porte, sendo essa norma bem mais detalhada e abrangente do que aquela contida no Código de 2002.

Na legislação comercial infraconstitucional, a Lei 7.256/1984, anterior à Constituição de 1988, foi a primeira a estabelecer um regime próprio para a microempresa, assim denominada, com tratamento diferenciado e favorecido nas esferas administrativa, tributária, previdenciária, trabalhista, creditícia e de

564 O Código italiano de 1942, fonte de inspiração do nosso Código de 2002, contém normas especiais que definem o pequeno empresário, assim caracterizado no art. 2.083: “Sono piccoli imprenditori i coltivatori diretti del fondo (1647, 2139), gli artigiani, i piccoli commercianti e coloro che esercitano un'attività professionale organizzata prevalentemente con il lavoro proprio e dei componenti della famiglia (2.202, 2.214, 2.221).” Ao pequeno empresário não se aplicam as regras que determinam obrigações específicas aos demais empresários, como a inscrição no registro de empresas (art. 2.202), a dispensa da escrituração contábil (art. 2.214) e a não sujeição à falência (art. 2.221). 565 CC, “Art. 970. A lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes.” 566 Constituição Federal – “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”. “Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.

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desenvolvimento empresarial (art. 1º). Esse diploma pioneiro foi revogado pela Lei 8.864/1994, que regulamentou o art. 179 da Constituição Federal, passando a estabelecer regimes específicos e diferenciados para a microempresa (ME) e para a empresa de pequeno porte (EPP), assim classificadas em razão do seu faturamento e com enquadramento formalizado perante a Junta Comercial.

A Lei 8.864/1994, por sua vez, foi revogada e substituída pela Lei 9.841/1999, que praticamente manteve o mesmo regime anterior, com pequenas modificações, mas que teve como finalidade principal adaptar o regime jurídico da microempresa e da empresa de pequeno porte à nova sistemática fiscal de pagamento de impostos e contribuições instituído pela Lei 9.317/1996, denominado SIMPLES (Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte).

A partir da Lei 9.841/1999,567 o regime de regulação da microempresa e da empresa de pequeno porte passa a ter caráter dominantemente tributário, relegando para segundo plano outros incentivos de ordem creditícia, comercial, trabalhista, previdenciária e de desburocratização dos procedimentos no registro de empresas.

A Lei 9.841/1999 vigorou por sete anos, sendo integralmente revogada pela Lei Complementar 123/2006.568 Somente em algumas poucas disposições normativas, a

567 Lei 9.841/1999 – “Art. 1o Nos termos dos arts. 170 e 179 da Constituição Federal, é assegurado às microempresas e às empresas de pequeno porte tratamento jurídico diferenciado e simplificado nos campos administrativo, tributário, previdenciário, trabalhista, creditício e de desenvolvimento empresarial, em conformidade com o que dispõe esta Lei e a Lei no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e alterações posteriores. Parágrafo único. O tratamento jurídico simplificado e favorecido, estabelecido nesta Lei, visa facilitar a constituição e o funcionamento da microempresa e da empresa de pequeno porte, de modo a assegurar o fortalecimento de sua participação no processo de desenvolvimento econômico e social.” 568 A preocupção maior da Lei Complementar 123/2006, atualizada pela Lei Complementar 128/2008 e depois pela Lei Complementar 147/2014, foi estabelecer um regime especial de tributação para as microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP), como previsto no seu art. 1º, o qual estabelece que as normas gerais aplicáveis a essas empresas instituem um tratamento diferenciado especialmente no que se refere “à apuração e recolhimento dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mediante regime único de arrecadação, inclusive obrigações acessórias”. De acordo com o art. 3º da Lei Complementar 123/2006, atualizada pela Lei Complementar 147/2014, consideram-se microempresas e empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário, do modo como previsto no Código Civil de 2002, desde que registrados perante a Junta Comercial, sendo que, para efeitos de definição e enquadramento legal, a microempresa é aquela que aufere uma receita bruta anual igual ou inferior a R$ 360.000,00, ou R$ 30.000,00 por mês, enquanto a empresa de pequeno porte será assim considerada aquela com receita bruta anual entre R$ 360.000,01 e R$ 3.600.000,00 (art. 3º), ou com faturamento médio mensal acima de R$ 30.000,00, e inferior a R$ 300.000,00. Acima desse valor de

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Lei Complementar 123/2006 contém matéria de natureza comercial, ao definir os requisitos, exigências e procedimentos para o enquadramento legal das microempresas e empresas de pequeno porte, como nos atos perante o registro de empresas mercantis (artigos 4º a 11), para a caracterização do pequeno empresário (art. 68), do nome empresarial (art. 72) e para o protesto de títulos (art. 73). Todo o resto dessa lei, todavia, é constituído de normas tributárias e de desoneração de algumas obrigações trabalhistas acessórias (art. 51).

A Lei Complementar 123/2006 não teve como objetivo disciplinar e regulamentar o princípio de proteção das empresas com menor capacidade econômica, como constante do art. 179 da Constituição da República, mas apenas estabelecer um regime de inclusão dessas microempresas e das empresas de pequeno porte no mercado formal, como contribuintes fiscais.569

Além da microempresa (ME) e da empresa de pequeno porte (EPP), a Lei Complementar 123/2006 criou uma nova figura jurídica, a do microempreendedor individual (MEI).570 O microempreendedor individual ou pequeno empresário,571 é o menor exercente de atividade econômica em caráter autônomo e formal, com registro regular na Junta Comercial. Necessariamente, o microempreendedor individual deve adotar a forma de empresário individual (CC, art. 966), não podendo constituir sua atividade como EIRELI (CC, art. 980-A) ou como sociedade empresária. Essa atividade do microempreendedor individual abrange e será sempre mais aplicada na micro indústria artesanal, no pequeno comércio de bairro, dos feirantes e ambulantes, entre proprietários de granjas, pescadores, donos de pequenos restaurantes, bares e

faturamento mensal de R$ 300.000,00, ocorrerá o desenquadramento como EPP, e esta passa a submeter-se ao regime jurídico normal aplicável às demais empresas. 569 A Lei Complementar 123/2006 foi modificada pelas Leis Complementares 127/2007 e 128/2008, com ênfase no seu caráter eminentemente tributário e não de incentivo ou promoção das pequenas e médias empresas. 570 Lei Complementar 123/2006 – “Art. 18-A. O Microempreendedor Individual - MEI poderá optar pelo recolhimento dos impostos e contribuições abrangidos pelo Simples Nacional em valores fixos mensais, independentemente da receita bruta por ele auferida no mês, na forma prevista neste artigo. § 1o Para os efeitos desta Lei Complementar, considera-se MEI o empresário individual a que se refere o art. 966 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), que tenha auferido receita bruta, no ano-calendário anterior, de até R$ 60.000,00 (sessenta mil reais), optante pelo Simples Nacional e que não esteja impedido de optar pela sistemática prevista neste artigo.” 571 Lei Complementar 123/2006 – “Art. 68. Considera-se pequeno empresário, para efeito de aplicação do disposto nos arts. 970 e 1.179 da Lei n°10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), o empresário individual caracterizado como microempresa na forma desta Lei Complementar que aufira receita bruta anual até o limite previsto no § 1o do art. 18-A.”

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pousadas, taxistas, profissionais autônomos de um modo geral, que exerçam seu trabalho de modo independente e sem vínculo empregatício.

O regime diferenciado da microempresa (ME) e da empresa de pequeno porte (EPP), de acordo com a Lei Complementar 123/2006 (art. 1º), deve compreender a existência de um sistema de normas gerais que garantam tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado a essas empresas menores no âmbito dos Governos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, especialmente para:

a) apuração e recolhimento dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mediante regime único de arrecadação, inclusive obrigações acessórias (SIMPLES Nacional);

b) cumprimento de obrigações trabalhistas e previdenciárias, inclusive obrigações acessórias;

c) acesso a crédito e ao mercado, inclusive quanto à preferência nas aquisições de bens e serviços pelos Poderes Públicos, à tecnologia, ao associativismo e às regras de inclusão;

d) uso de cadastro nacional único de contribuintes previsto no art. 146, parágrafo único, inciso IV, da Constituição Federal.

Em termos estatísticos, a importância das microempresas e das empresas de pequeno porte ganha muito maior relevo na realidade econômica brasileira, considerando que elas representam 99 % das empresas, a esmagadora ou quase totalidade das empresas nacionais.

De um total de 4.879.616 ou quase cinco milhões de empresas formais registradas pelas pesquisas da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e do Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas - SEBRAE, um montante de 4.605.607 (93,6%) são microempresas e 274.009 (5,6 %) representam empresas de pequeno porte. 572

572 Como critério de classificação, segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas - SEBRAE, as médias e grandes empresas são assim definidas: Média empresa: na indústria, de 100 a 499 pessoas ocupadas; no comércio e serviços, de 50 a 99 pessoas ocupadas; Grande empresa: na indústria, acima de 499 pessoas ocupadas; no comércio e serviços, acima de 99 pessoas ocupadas.

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As médias e grandes empresas, no Brasil, em números absolutos, resumem-se, apenas, a 23.652 organizações (0,5 %), apesar da representatividade econômica, na medida que participam com aproximadamente 80 % da geração de riquezas, aferida pelo Produto Interno Bruto - PIB. Na sua relação de participação na economia brasileira, as microempresas e as empresas de pequeno porte, formais ou regulares, respondem por cerca de 20 % do PIB, pela ocupação de 57,2 % dos trabalhadores e por 26 % da massa salarial distribuída.573

Portanto, apesar de quase que totalmente omitida pelas normas genéricas do Código Civil de 2002, as microempresas e empresas de pequeno porte são disciplinadas, de modo bastante específico, pela legislação infraconstitucional, regulamentadora do art. 179 da Constituição da República. Importante observar que o sistema de registro simplificado, destinado à criação e formalização das pequenas empresas, denominado de Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios - REDESIM, foi incluído e assim referido no Código Civil, a partir da modificação do seu art. 968, que trata do registro do empresário na Junta Comercial.574

As microempresas (ME), as empresas de pequeno porte (EPP) e o microempreendedor individual (MEI), para fins de registro nas Juntas Comerciais, devem obter o reconhecimento da sua regularidade jurídica na REDESIM.575 Essa

573 BRASIL, Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE; http://www.ibge.gov.br/ home/estatistica/economia/microempresa, última estatística disponível referente à pesquisa “As Micro e Pequenas Empresas Comerciais e de Serviços no Brasil”, 14/02/2012. 574 Código Civil de 2002 - Art. 968. (....) “§ 4o O processo de abertura, registro, alteração e baixa do microempreendedor individual de que trata o art. 18-A da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, bem como qualquer exigência para o início de seu funcionamento deverão ter trâmite especial e simplificado, preferentemente eletrônico, opcional para o empreendedor, na forma a ser disciplinada pelo Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios - CGSIM, de que trata o inciso III do art. 2º da mesma Lei. § 5o Para fins do disposto no § 4o, poderão ser dispensados o uso da firma, com a respectiva assinatura autógrafa, o capital, requerimentos, demais assinaturas, informações relativas à nacionalidade, estado civil e regime de bens, bem como remessa de documentos, na forma estabelecida pelo CGSIM.” (Parágrafos incluídos pela Lei 12.470/2011). 575 Lei Complementar 123/2006 – “Art. 2o O tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte de que trata o art. 1o desta Lei Complementar será gerido pelas instâncias a seguir especificadas: (...) III - Comitê para Gestão da Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios - CGSIM, vinculado à Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência da República, composto por representantes da União, dos Estados e do Distrito Federal, dos Municípios e demais órgãos de apoio e de registro empresarial, na forma definida pelo Poder Executivo, para tratar do processo de registro e de legalização de empresários e de pessoas jurídicas. (Redação da Lei Complementar nº 147, de 2014).

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rede, operada através da Internet, pelo Departamento de Registro de Empresas e Integração – DREI, subordinado à Secretaria da Micro e Pequena Empresa da Presidência da República, e por cada Junta Comercial nos Estados da Federação, está encarregada de processar os documentos de constituição, e assim deferir o arquivamento e registro a partir da análise parametrizada dos atos de enquadramento dessas pequenas empresas no regime legal especial.

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4.9. O estabelecimento comercial e sua positivação na legislação codificada

A positivação do estabelecimento comercial pelo Código Civil de 2002, que a ele dedicou os artigos 1.142 a 1.149, foi recebida pela doutrina como um dos poucos avanços introduzidos pelo regime do Direito de Empresa na novel disciplina do exercício da atividade econômica. Mantendo a orientação dominante da desmercantilização da empresa, o Código se refere a esse instituto do direito comercial simplesmente como “estabelecimento”, e não como “estabelecimento comercial”, como assim sempre foi definido e tratado pela doutrina.576

O Código Comercial brasileiro de 1850, apesar de não tratar, especificamente, dos elementos integrantes da organização da empresa, fez menção ao estabelecimento comercial ao dispor sobre a emancipação do menor comerciante (art. 1º, item 3),577 bem como empregou a expressão casa de comércio como designação genérica do exercício organizado da função mercantil (artigos 18, 39, inciso III; e 77). Observa Carvalho de Mendonça que a legislação também utilizava a expressão “negócio comercial” como sinônima de estabelecimento comercial.578

576 José Xavier Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. V, parte I, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 5ª edição, 1955, p. 15; Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 75. 577 Código Comercial de 1850 – “Art. 1º. Podem commerciar no Brasil: 1. Todas as pessoas que, na conformidade das Leis deste Imperio, se acharem na livre administração de suas pessoas e bens, e não forem expressamente prohibidas neste Codigo. 2. Os menores legitimamente emancipados. 3. Os filhos-familias que tiverem mais de dezoito annos de idade, com autorisação dos paes, provada por escriptura publica. O filho maior de vinte e hum annos, que for associado ao commercio do pae, e o que com sua approvação, provada por escripto, levantar algum estabelecimento commercial, será reputado emancipado e maior para todos os effeitos legaes nas negociações mercantis.” 578 “Como sinônima de estabelecimento comercial podemos adotar a expressão negócio comercial, empregada na Lei nº 2.024, de 17 de dezembro de 1908, arts. 2º, n. 7, 78, 157 et passim, no Regul. nº 738, de 1850, art. 15, e no Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, art. 191, letra g. O Código Comercial, no art. 301, alude à casa de comércio, no mesmo sentido. Aquela expressão equivale ao negotium ou negotiatio do direito romano, ao fonds de commerce do direito francês e belga, a azienda commerciale do direito italiano, ao Geschaeft ou Hendelsgeschaeft do direito alemão e austríaco, ao goodwill of a trade do direito inglês e norte-americano. Cada um desses direitos trata do instituto sob o ponto de vista, não diremos absolutamente diferente, mas peculiar às suas instituições e tradições.” (J.X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. V, parte I, cit., p. 16-17).

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Desde que foi regulado, pela primeira vez, em uma norma positiva, no ano de 1898, na França, o estabelecimento recebeu a denominação de fundo de comércio (fonds de commerce). Essa expressão revela que a organização da empresa sempre esteve caracterizada, intrinsecamente, por sua natureza comercial ou mercantil. Na Itália, o estabelecimento foi definido, de modo mais sintético, como azienda commerciale ou patrimonio aziendale. Na Inglaterra, a figura do estabelecimento consagrou-se sob a denominação goodwill of a trade, que expressa, por si só, a idéia de uma entidade mercantil. Na Espanha, a organização dos elementos da empresa veio a ser designada como hacienda ou establecimiento comercial, expressão incorporada no direito português como estabelecimento comercial e assim também adotada pela doutrina brasileira.

A idéia de estabelecimento comercial decorre do modo como o empresário organiza os fatores de produção e os recursos necessários à exploração da atividade econômica.579 A partir do momento em que o empresário integraliza o capital na empresa, ele irá estruturar o seu negócio, escolher o local que constituirá sua base física de atuação, passando, então, a adquirir bens, maquinário, equipamentos, matérias primas e mercadorias para revenda, organizando e dispondo dos recursos necessários à execução do objeto da empresa, contratando empregados, enfim, alocar e ordenar os meios para o exercício da empresa. O estabelecimento comercial restará configurado no momento em que esses recursos estiverem racionalmente organizados para o cumprimento da função econômica da empresa.

579 Na lição de Oscar Barreto Filho, o estabelecimento comercial define-se a partir de três elementos ou fatores: capital, trabalho e organização: “No sentido econômico, o patrimônio comercial, tanto da pessoa física quanto da pessoa jurídica, se constitui, inicialmente, pelo capital, que, de ordinário, é representado por dinheiro. Mas, para a consecução do objetivo econômico, faz-se mister aplicar o capital em bens adequados ao exercício do comércio (máquinas, matérias-primas, mercadorias, etc.). Da transformação do capital num complexo de bens apropriados para o exercício da atividade mercantil resulta o estabelecimento comercial. Não é suficiente, contudo, o elemento estático, representado pelo capital, para formar o estabelecimento comercial, como unidade econômica. Faz-se mister juntar-lhe o elemento dinâmico, representado pelo trabalho, que se converte em serviços, por sua vez adequados aos objetivos que se tem em mira alcançar. Esses bens (oriundos do capital) e serviços (provenientes do trabalho) são conjugados em função do fim colimado, e aí surge o elemento estrutural: a organização. (...) À combinação desses três elementos ou fatores – capital, trabalho e organização – que servem ao comerciante para o exercício de sua atividade produtiva é que se denomina, em economia, de estabelecimento comercial. Este se apresenta, sob o ponto de vista econômico, como um organismo unitário resultante da organização concreta dos fatores de produção dirigida para uma determinada atividade produtiva.” (Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 62/63).

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Todavia, ainda antes de viabilizar a obtenção dos recursos materiais imprescindíveis à implantação e funcionamento da empresa, o empresário planeja e elabora, racionalmente, seu projeto de exploração econômica. Várias são as idéias e concepções que antecedem à execução física do projeto empresarial, como a delimitação do objeto da empresa, a definição do nome pelo qual sua empresa será conhecida e identificada formalmente no mercado, a escolha do ponto comercial mais favorável à obtenção de resultados econômicos, assim como do título do estabelecimento ou nome de fantasia, que seja mais receptivo ou atraente para a captação da clientela.580

O estabelecimento comercial, sob esse ponto de vista, estará sempre representado pelo conjunto de bens e direitos, materiais e imateriais, organizado ideal e racionalmente pelo empresário, para a exploração da empresa.

De acordo com o conceito legal agora positivado no art. 1.142 do Código Civil de 2002, o estabelecimento foi assim juridicamente definido:

Art. 1.142. Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária.

O estabelecimento, a partir desse conceito, compreende a organização dos fatores de produção necessários ao exercício da empresa. Esta definição é cópia, quase literal, do art. 2.555 do Código Civil italiano de 1942, que conceitua a azienda nos termos seguintes:

Art. 2.555 - Nozione - L'azienda è il complesso dei beni organizzati dall'imprenditore (2082) per l'esercizio dell'impresa.

A única diferença entre esses dois conceitos é que o Código Civil brasileiro atribui a organização do complexo de bens do estabelecimento ao empresário e igualmente à sociedade empresária. A expressão sociedade empresária é criação do

580 O estabelecimento empresarial, assim explica Fábio Ulhoa Coelho, representa “elemento indissociável à empresa”, de tal modo que não existe como iniciar a “exploração de qualquer atividade empresarial, sem a organização de um estabelecimento”, podendo ser considerado como uma “propriedade com características singulares”, dependendo do modo como o empresário irá organizar e agregar os fatores de produção para a exploração do negócio. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit. P. 112-113).

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legislador brasileiro, sendo figura desconhecida no direito italiano. Como visto, segundo o regime codificado de 2002, quando a empresa é exercida coletivamente, quem a representa não é o empresário, mas a própria sociedade, noção contraditória diante da própria ausência de capacidade volitiva desse ente, que somente é reconhecido, juridicamente, como pessoa, em virtude de uma ficção legal.

De acordo com o entendimento doutrinário dominante, o estabelecimento é, necessariamente, comercial, e aquela pessoa natural que reúne e organiza os elementos e recursos para o exercício da empresa é um empresário ou comerciante, seja esse exercício desempenhado através de firma individual ou de sociedade comercial. Para Carvalho de Mendonça, “estabelecimento comercial é o complexo de meios idôneos materiais e imateriais, pelos quais o comerciante explora determinada espécie de comércio”.581 De modo semelhante, Oscar Barreto Filho considera que o “estabelecimento comercial é o complexo de bens, materiais e imateriais, que constituem o instrumento utilizado pelo comerciante para a exploração de determinada atividade mercantil”.582

Na caracterização dos bens materiais da empresa, como os imóveis, maquinário, equipamentos, mobiliário, veículos, matérias primas e estoques de produtos, por exemplo, não existe maior dificuldade para a compreensão desses elementos corpóreos que integram o estabelecimento, e que são mobilizados a partir do capital investido.

Os bens imateriais, por sua vez, não são perceptíveis de imediato, e vão se agregando lentamente ao patrimônio incorpóreo da empresa. Constituem bens imateriais do estabelecimento o nome empresarial, a insígnia,583 as marcas e patentes, o ponto comercial, os processos de gestão, os sistemas de franquia, os programas de software, a tecnologia e as demais criações intelectuais aplicadas na atividade da empresa. Esses direitos imateriais nascem da ação planejada, criativa ou intuitiva do empresário e de seus colaboradores na concepção de ideias aplicadas ao desenvolvimento da organização empresarial. Tais ideias são transformadas em

581 J.X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. V, parte I, cit., p. 15. 582 Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 75. 583 J.X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. V, parte I, cit., p. 23.

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elementos de exploração econômica que irão servir, em um momento subsequente, à atração e captação de clientes, visando a realização de negócios e à geração dos lucros do empreendimento.

O conceito de estabelecimento, como ressalta Oscar Barreto Filho, é correlativo ao conceito de empresa. Assim, seria inconcebível, ontologicamente, adotar a teoria da empresa sem introduzir nesse sistema a ideia reflexa do estabelecimento como projeção patrimonial da empresa.584 Apesar do instituto do estabelecimento ser mais reconhecido e melhor caracterizado no regime comercial, a teoria da empresa tomou emprestada a sua concepção como necessária para fornecer um mínimo de conteúdo material, patrimonial, para embasar a forma empresarial despida de significado concreto, pela deconsideração do elemento mercantil.

O estabelecimento comercial se exterioriza a partir de dois atributos essenciais, o aviamento e a clientela. O aviamento é “o resultado de um conjunto de variados fatores, materiais e imateriais, que conferem a dado estabelecimento in concreto a aptidão de produzir lucros”.585 O lucro, assim, é a medida do aviamento incorporado à empresa pela atuação do empresário, como objetivo essencial inerente a toda atividade mercantil.

O aviamento significa, em síntese, o modo como o empresário organiza os fatores de produção para a exploração da empresa. Todavia, como ensina Oscar Barreto Filho, o aviamento “é o resultado não só do conjunto da organização dos fatores de produção (bens e serviços), como também da atividade e das qualidades pessoais do comerciante (habilidade, cortesia, honestidade)”.586 Na ideia de aviamento deverá sempre estar presente a noção de que este depende, fundamentalmente, da atuação do empresário voltada para tornar a sua empresa sempre mais eficiente e competitiva no mercado. O aviamento se revela, assim, em

584 Considera Oscar Barreto Filho que “o exercício de atividade econômica organizada pelo empresário pressupõe, necessariamente, uma base econômica, ou seja, um complexo de bens que constituem o instrumento e, de certo modo, o objeto de seu trabalho”, de tal modo que “pode-se dizer que o estabelecimento representa a projeção patrimonial da empresa, ou, com precisão maior, o organismo técnico-econômico, por cujo intermédio se realiza a coordenação dos fatores de produção pela qual a empresa atua e se desenvolve” (Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 115-116). 585 Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 169. 586 Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 173.

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um primeiro momento, como a expressão do estabelecimento perante a sua clientela, o modo como a empresa é conhecida e avaliada exteriormente.

No direito anglo-saxão, o estabelecimento (goodwill of trade) é visto mais sob o aspecto prático, como resultado concreto da ação do empresário na gestão da empresa. Por isso, os ingleses passaram a distinguir dois tipos de manifestação do aviamento, o aviamento objetivo (local goodwill) e o aviamento subjetivo (personal goodwill). O aviamento objetivo representa as qualidades e fatores externos de exploração da empresa que ficam incorporados ao estabelecimento e assim são considerados como elementos concretos de atração da clientela.587

Exemplo marcante de manifestação do aviamento objetivo é o ponto comercial, que é o próprio local onde se encontra instalada a empresa, sendo este de importância estratégica e determinante na viabilidade econômica do empreendimento. O aviamento objetivo integra-se ao estabelecimento, podendo ser objeto unitário de direitos, ou seja, pode ser alienado ou arrendado, sem perda imediata das suas características negociais.

O aviamento subjetivo é assim denominado porque resulta da atuação pessoal do empresário, da sua experiência, da sua competência para o exercício de atividade econômica lucrativa. Esse aviamento subjetivo também pode ser traduzido como tino comercial, ou seja, a vocação natural que uma pessoa possui para ser profissional do comércio. Sendo atributo personalíssimo, o aviamento subjetivo se confunde com a própria pessoa do empresário, e por isso é intransmissível, desaparecendo com a morte ou afastamento do seu titular.

O segundo atributo do estabelecimento comercial é a clientela, considerada esta como “o conjunto de pessoas que, de fato, mantém com o estabelecimento relações continuadas de procura de bens e de serviços”, e que, por isso mesmo,

587 Segundo Oscar Barreto Filho, uma das mais clássicas definições de aviamento foi elaborada pelo Juiz Joseph Story (1779-1845), da Suprema Corte dos Estados Unidos, que assim a ele se referiu: “Aviamento é a vantagem ou proveito que é adquirido por um estabelecimento além do mero valor do capital, ações, fundos ou bens nele empregados, em conseqüência do geral apoio e estímulo público que ele recebe de clientes constantes ou habituais, por motivo de sua localização ou fama, reputação de perícia ou abundância, pontualidade, ou de outras circunstâncias acidentais ou necessidades, ou ainda de antigas parcialidades ou preconceitos” (Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 175).

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“constitui exatamente a manifestação externa do aviamento”.588 A clientela não se encontra em uma relação de domínio ou de controle por parte da empresa ou do empresário, mas o ordenamento jurídico reconhece um certo direito do empresário à manutenção da sua clientela, especialmente para evitar o desvio ilícito de clientela decorrente de atos de concorrência desleal.

É certo e induvidoso que, para a exploração econômica, a empresa depende dos seus clientes como condição essencial para a sua própria existência. Todavia, como ressaltado por Oscar Barreto Filho, “a clientela não é um bem imaterial, objeto autônomo de direito; é uma situação de fato, à qual se atribui um valor econômico, muitas vezes relevante, que é protegido indiretamente pela lei”.589 Essa proteção jurídica geralmente é representada por uma obrigação legal de não fazer, que consiste no impedimento ou proibição a que uma empresa concorrente tente desviar, ilicitamente, a clientela habitual de outro estabelecimento.

A tutela jurídica da clientela, no direito positivo brasileiro, encontra-se hoje regulada a partir da Lei 12.529/2011, também conhecida por legislação antitruste, que tem por objetivo estruturar o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC, e assim tipificar e reprimir as infrações contra a ordem econômica. Essa legislação específica, mais conhecida como lei antitruste, destina-se a garantir a livre concorrência entre as empresas no mercado, como assegurado pelo art. 173, § 4º da Constituição da República, através de restrições e vedações ao abuso do poder econômico, que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

No caso do sistema brasileiro, Paula Forgioni observa que o nosso regime antitruste possui, ainda, um caráter instrumental vinculado à proteção da economia popular e à defesa do consumidor, devendo a tutela da concorrência também atender, necessária e reflexamente, a esse escopo.590

A teoria do estabelecimento comercial está fundada, portanto, nesses dois atributos essenciais, o aviamento e a clientela, tanto para demonstrar a importância

588 Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 178. 589 Oscar Barreto Filho, Teoria do estabelecimento comercial, cit., p. 182. 590 Paula Andrea Forgioni, Os fundamentos do antitruste, cit., p. 170.

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dos fatores de organização da empresa, dos seus bens e direitos materiais e imateriais, como para evidenciar o reconhecimento da clientela como elemento imprescindível à própria existência da empresa. Daí porque a lei deve estabelecer um regime especial de tutela jurídica da clientela, exatamente para evitar práticas de concorrência desleal ou de qualquer outro ato ilícito, ostensivo ou dissimulado, de desvio artificial de clientes no ambiente competitivo de mercado.

O Código Civil de 2002, contudo, regulou esse importante instituto do estabelecimento comercial de modo tímido, restrito, muito mais com caráter limitativo do que para reconhecer e disciplinar os elementos essenciais do patrimônio material e imaterial da empresa. Para o Código Civil, o estabelecimento deve ser reconhecido, principalmente, como objeto de direitos e de negócios compatíveis com a sua natureza. Nesse sentido, o art. 1.143 enuncia:

Art. 1.143. Pode o estabelecimento ser objeto unitário de direitos e de negócios jurídicos, translativos ou constitutivos, que sejam compatíveis com a sua natureza.

Logo em seguida, o art. 1.144 exemplifica, como negócios jurídicos que podem ser realizados no âmbito do estabelecimento, “a alienação, usufruto ou arrendamento”.

A alienação ou trespasse do estabelecimento significa a venda integral da empresa ou de alguma instalação fabril ou comercial destacada, que passa ao controle ou subordinação de outra empresa. O trespasse é a modalidade mais comum de negócio jurídico tendo por objeto o estabelecimento. O trespasse não deve ser confundido com a alienação do controle societário ou com outras operações societárias em que a transmissão da propriedade da empresa realiza-se mediante a venda das quotas ou ações, e não de um patrimônio separado ou cindido. Nos casos de alienação de controle, de incorporação (Lei 6.404/1976, art. 227) ou de fusão (Lei 6.404/1976, art. 228), o objeto do negócio jurídico são os próprios títulos representativos do capital, e não o patrimônio segregado e contabilizado.

No trespasse, a empresa alienante do estabelecimento continuará existindo, salvo se vier a transferir a totalidade do patrimônio cindido. Com efeito, o objeto do negócio jurídico, na alienação do estabelecimento, são parcelas do patrimônio

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cindidas e transferidas para outra empresa. Assim encontra-se previsto, por exemplo, na Lei de Recuperação de Empresas e Falência (Lei 11.101/2005, art. 50, VII), ao contemplar a hipótese de trespasse do estabelecimento como um dos meios ou estratégias que podem ser adotados pelo plano de recuperação visando o saneamento da empresa em crise.

Através do usufruto do estabelecimento, o titular da empresa transfere a outra pessoa, física ou jurídica, o direito de percepção dos frutos, rendimentos ou lucros gerados pela exploração comercial, mantendo todavia, no seu domínio patrimonial, a nua propriedade do capital da empresa individual ou das quotas ou ações da sociedade comercial.

O arrendamento empresarial representa a cessão temporária dos direitos de exploração dos resultados do estabelecimento, mediante a celebração de um contrato entre o arrendador (empresário ou sócio controlador) e o arrendatário (novo explorador da empresa), em que o arrendatário passará a administrar e gerenciar a empresa durante um certo período de tempo, dividindo com o arrendador os lucros da atividade, ou pagando a este um valor previamente determinado no contrato.

Além dos negócios jurídicos expressamente relacionados no art. 1.144 do Código Civil, o estabelecimento e seus bens unitariamente considerados, podem ser objeto, ainda, de penhor industrial ou mercantil (art. 1.447), de anticrese (art. 1.506), de cisão patrimonial (Lei 6.404/76, art. 229) ou de penhora judicial do seu faturamento (Código de Processo Civil de 1973, art. 655, VII; Novo Código de Processo Civil de 2015, art. 837).

Dependendo da natureza do problema ou da criatividade dos operadores do direito, diversos outros negócios jurídicos podem ser realizados tendo o estabelecimento como objeto.

Na análise da disciplina do estabelecimento comercial no Código de 2002, Fábio Tokars revela a sua decepção com a preocupação do legislador em conceber o estabelecimento muito mais como instrumento de interesse dos credores do que com a própria configuração conceitual do estabelecimento como modo de organização dos

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fatores de produção e dos direitos imateriais dele resultantes.591 Isto porque os artigos 1.145 e 1.146 definem as regras de proteção dos interesses dos credores no caso de alienação ou trespasse do estabelecimento, antes mesmo de caracterizar a projeção desses direitos sob a perspectiva patrimonial.

De acordo com o disposto no art. 1.145 do Código Civil, se no trespasse do estabelecimento, ao empresário vendedor “não restarem bens suficientes para solver o seu passivo, a eficácia da alienação do estabelecimento depende do pagamento de todos os credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou tácito, em trinta dias a partir de sua notificação”. Essa regra exige a concordância da unanimidade dos credores para a validade da alienação do estabelecimento, reproduzindo norma que igulamente consta na Lei de Recuperação de Empresas e Falência (Lei 11.101/2005, art. 129, VI). Esse requisito, de quase impossível aplicabilidade, diante da necessidade da aceitação da totalidade ou unanimidade dos credores para a validade do trespasse do estabelecimento, revela evidente antinomia diante da tendência evolutiva recente do direito comercial, que passou a mover o seu foco antes centrado apenas no interesse dos credores, para a necessidade de preservação da empresa e para o cumprimento da sua função social.592

Na legislação comercial extravagante, como na parte disciplinada pela Lei de Recuperação de Empresas e Falência (Lei 11.101/2005), a alienação do estabelecimento comercial vem a ser considerada como uma das principais estratégias para a superação da crise patrimonial da empresa, e assim se observa em alguns de seus dispositivos.593 O Código Civil de 2002 não seguiu essa tendência

591 Fábio Tokars, Estabelecimento empresarial, São Paulo, Atlas, LTR, 2006, p. 13. 592 Considera Fábio Tokars que “o art. 1.145 repete a supramencionada regra do direito falimentar, estendendo seu âmbito de aplicação para além dos limites da declaração de falência do vendedor, possibilitando-se a declaração de ineficácia da venda do estabelecimento incidentalmente em qualquer modalidade de execução”. O legislador do Código, assim, partiu “de uma regra em si criticável, por presumir indevidamente a má-fé do adquirente do estabelecimento empresarial, para consagrá-la, tornando-a aplicável em qualquer relação de crédito” (Estabelecimento empresarial, cit., p. 13). 593 A Lei 11.101/2005 prevê, em dispositivo específico, a possibilidade do trespasse ou arrendamento do estabelecimento como um dos meios para a recuperação da empresa, dependendo essa alienação do consentimento da maioria dos credores, e não da sua unanimidade (art. 50, VII); somente no caso de falência da empresa, é que a alienação do estabelecimento sem o consentimento da unanimidade dos credores pode servir de fundamento para a decretação da quebra (art. 94, III, c) ou para que seja declarada ineficaz (art. 129, VI). Todavia, mesmo na falência, a alienação do estabelecimento pode ser realizada, judicialmente, sem a necessidade de concordância de todos os credores (art. 140).

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evolutiva, na medida em que coloca sob suspeição os negócios que tenham por objeto a alienação do estabelecimento.

Ocorrendo a alienação do estabelecimento, o art. 1.146 do Código prescreve que o adquirente do estabelecimento “responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento.”594 Desse modo, na alienação do estabelecimento, instaura-se uma situação de insegurança jurídica para o adquirente, que ficará como devedor solidário pelas dívidas da empresa existentes no momento da alienação, ainda que a esse passivo não tenha dado causa.595

A redação do art. 1.146 do Código Civil caracteriza, na opinião de Fábio Tokars, “evidente absurdo jurídico, decorrente da confusão entre sujeito e objeto de direito, e que gera dificuldades práticas de aplicação” nas operações de alienação do estabelecimento, instaurando um “estado de regulamentação imprópria, que impede materialmente a realização do negócio por empresários que sejam previamente informados quanto aos possíveis efeitos jurídicos do negócio, e que, desta forma, nega o princípio da preservação da empresa”.596

Como resultante desse princípio de preservação da empresa, que tem como fundamento um princípio constitucional superior, o da função social da empresa (CF, art. 170, III), no regime falimentar, no caso de alienação de ativos representados pelo próprio estabelecimento empresarial, ocorrendo a alienação da empresa como um todo, “o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do

594 O trespasse do estabelecimento, na opinião de Marcelo Andrade Féres, representa um negócio jurídico derivado, como assim por ele explicado: “Esse mecanismo negocial de aquisição derivada enseja a continuação da empresa (atividade) nas mãos do adquirente do estabelecimento. Assim, o trespasse deve importar na transferência das vicissitudes negociais do estabelecimento. Ao adquirente devem ser transmitidos sucesso ou insucesso da atividade desempenhada no passado da azienda. Esse é o intuito que orienta a escolha pelo trespasse e dele o sistema deve desincumbir-se”. (Estabelecimento empresarial: trespasse e efeitos obrigacionais, São Paulo, Saraiva, 2007, p. 45). 595 Segundo Fábio Tokars, “em vez de aprimorar o tratamento jurídico da matéria, concedendo maior segurança aos contratantes, o Código Civil acabou por elevar exponencialmente os riscos do adquirente do fundo de empresa, acatando a falsa premissa da necessidade de tutelar ao extremo os interesses dos credores” (Estabelecimento empresarial, cit., p. 13). 596 Fábio Tokars, Estabelecimento empresarial, cit., p. 13.

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arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho”. (Lei 11.101/2005, art. 141, inciso II). Todavia, no caso de recuperação judicial, esse efeito será mais restrito, pois somente não ocorrerá a relação de sucessão na alienação de filial ou unidade produtiva isolada, e não do estabelecimento como um todo (Lei 11.101/2005, art. 60, parágrafo único).

O Código Civil de 2002, na contramão da história e da evolução do direito mercantil, simplesmente reproduziu as normas do Código italiano de 1942, que consideram que o passivo do estabelecimento alienado fica sendo de responsabilidade conjunta e solidária do vendedor e do comprador (art. 2.560), adotando esse pressuposto no exclusivo interesse dos credores da empresa, e não das demais partes envolvidas nas relações jurídicas de natureza econômica, fiscal ou trabalhista. A sucessão nas obrigações civis, comerciais, tributárias e até trabalhistas do estabelecimento alienado passou a ser relativizada pela legislação comercial mais recente, agora mais preocupada com os novos paradigmas voltados à continuidade da organização produtiva.

Ainda na disciplina do estabelecimento comercial, o Código de 2002 vem a contemplar uma hipótese muito importante no âmbito da proteção da clientela, que trata da cláusula de não-concorrência no caso de alienação ou trespasse do estabelecimento. A norma que dispõe sobre tal situação, que representa um avanço tardio no direito positivo brasileiro, assim prescreve:

Art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes à transferência.

A cláusula de não-concorrência é também denominada, pela doutrina, de cessão da clientela. Isto porque o adquirente do estabelecimento deve assumir a obrigação de não constituir nova empresa para exploração do mesmo ramo de atividade daquele explorado pelo estabelecimento alienado. A cessão de clientela, apesar da clientela não se caracterizar como um objeto de posse ou de domínio do empresário, significa que o estabelecimento, ao ser alienado, estará sendo acompanhado dos seus atributos principais, representados pelo aviamento objetivo e

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pela clientela que, em condições normais, realiza negócios com aquela casa comercial.

No Código italiano de 1942, essa obrigação específica na alienação do estabelecimento foi denominada de proibição de concorrência, expressa em seu art. 2.557:

Art. 2.557 - Divieto di concorrenza - Chi aliena l'azienda deve astenersi, per il periodo di cinque anni dal trasferimento, dall'iniziare una nuova impresa che per l'oggetto, l'ubicazione o altre circostanze sia idonea a sviare la clientela dell'azienda ceduta (2.125, 2.596).

No mínimo, o adquirente do estabelecimento deve ter a garantia de que o alienante, ao receber a soma decorrente da venda da empresa e da cessão dos direitos de exploração econômica, não irá aplicar esse dinheiro na constituição de outra empresa para fazer concorrência no mesmo ramo de atividade. No direito positivo brasileiro, todavia, essa matéria estava sendo objeto de previsão, apenas, nos contratos de alienação do estabelecimento, não existindo nenhum precedente como norma cogente.597

A regra constante do art. 1.147 do Código Civil consagra o princípio de que o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, e reconhece, desse modo, que o trespasse do fundo de comércio importa também na cessão da clientela, ou seja, no direito do adquirente dos bens materiais de ser

597 O caso mais famoso relacionado à cláusula de não concorrência ou de cessão de clientela no Brasil ocorreu no processo envolvendo a alienação, no ano de 1913, da Companhia Nacional de Tecidos de Juta, de São Paulo, então controlada pelo Conde Sílvio Álvares Penteado, titular da Fábrica de Juta Santana, que fabricava sacos para acondicionamento de grãos de café destinado à exportação. Após haver alienado o seu estabelecimento, o Conde Álvares Penteado, decorrido o prazo de menos de um ano, veio a instalar uma nova fábrica para explorar a mesma atividade, através da Companhia Paulista de Aniagem, no mesmo bairro da capital paulista onde estava instalado o estabelecimento alienado. Sentindo-se prejudicada, a Companhia Nacional de Tecidos de Juta, adquirida por um grupo inglês, ingressou com uma ação indenizatória contra a Companhia Paulista de Aniagem, pedindo a condenação da parte contrária para que esta restituísse a importância de $ 3.000 contos de réis, correspondente à estimativa da clientela da fábrica alienada, considerando que a cessão da clientela estaria implícita na alienação do estabelecimento. Este caso foi considerado um embate ímpar entre dois dos maiores advogados e juristas brasileiros: de um lado, J.X. Carvalho de Mendonça como advogado do adquirente do estabelecimento, a Companhia Nacional de Tecidos de Juta, e, do outro lado, Ruy Barbosa, patrono dos interesses do Conde Álvares Penteado e da Companhia Paulista de Aniagem. Julgando a causa em grau de recurso, o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa ao alienante, Conde Álvares Penteado, entendendo que a cláusula de não concorrência ou de cessão da clientela, que não estava prevista no contrato, deveria ser expressa. (Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 349).

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também cessionário dos atributos e dos bens imateriais do estabelecimento. Somente após decorrido o prazo de cinco anos da alienação, poderá o alienante constituir nova empresa para explorar o mesmo ramo de atividade econômica, o que demonstra a aceitação, pelo nosso direito positivo, da existência de certos atributos imateriais do estabelecimento, em especial o direito à clientela.

No caso do aviamento, ainda que o Código Civil de 2002 não venha a se referir a esse atributo como integrante do estabelecimento, ele admite, no seu art. 1.187, parágrafo único, que “a quantia efetivamente paga a título de aviamento de estabelecimento adquirido pelo empresário ou sociedade” possa ser inserida e contabilizada nos valores do ativo da empresa compradora e cessionária dos direitos imateriais incorporados ao fundo de comércio.

Ainda que disciplinado em poucas regras no livro do Direito de Empresa, o simples fato da positivação do estabelecimento comercial pelo Código Civil, na opinião de Waldirio Bulgarelli, representa “uma inovação valiosa, permitindo que se liberte, na prática – principalmente no que toca aos negócios jurídicos de que é objeto - das inseguranças e incertezas em que está envolto, pela ausência de normas expressas”.598

Essa nova situação normativa irá permitir, em conclusão, um melhor tratamento doutrinário tendo por objeto a figura do estabelecimento comercial. E isto não apenas para consagrar a sua importância como instituto fundamental do Direito de Empresa, mas para reconhecer o estabelecimento como elemento essencial para a própria definição da empresa no contexto das relações patrimoniais, especialmente daquelas resultantes da ação criativa e inovadora do empresário na exploração da atividade econômica.

598 Waldirio Bulgarelli, Tratado de Direito Empresarial, cit., p. 243.

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Capítulo 5

A unificação do direito das obrigações

5.1. Pressupostos da unificação do direito das obrigações; 5.2. Princípios e modalidades contratuais no Código de 2002; 5.3. Aspectos diferenciadores da compra e venda mercantil; 5.4. Contratos mercantis regulados pela legislação especial; 5.5. A nova classificação dos contratos empresariais.

5.1. Pressupostos da unificação do direito das obrigações

Um dos principais objetivos do legislador do Código Civil de 2002, além da proposta de atualização do direito privado brasileiro, foi promover a unificação do direito das obrigações em nosso ordenamento jurídico.599 Essa concepção unificadora foi originariamente adotada pelo Código das Obrigações da Suíça de 1881, que teve como escopo a necessidade de tratamento igualitário para as obrigações, considerando que a sua estrutura relacional era e sempre seria comum para qualquer tipo de negócio jurídico, fosse este de natureza civil ou comercial.

A unicidade da estrutura obrigacional implica, necessariamente, no reconhecimento de um mesmo tratamento para qualquer tipo de relação jurídica de direito privado. Este aspecto é incontroverso, por óbvio, a partir da noção geral de obrigação, que se expressa pela relação em que um sujeito (credor) realiza seu próprio interesse com a cooperação ativa ou passiva de outro sujeito (devedor).600

599 Miguel Reale, Exposição de Motivos do Projeto do Código Civil, cit., p. 107. 600 Mario Rotondi, Instituciones de Derecho Privado, Barcelona, Labor, 1953, p. 308.

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Na sua origem, a obrigação resultava da prática de ato ilícito, e estava representada pelo estado de submissão em que o devedor posicionava-se perante o credor. Aí reside o próprio significado etimológico da expressão, derivada de obligare ou obligatio, que somente considerava-se cumprida diante do solvere, da solutio.601

Em um momento posterior da evolução do direito, a fonte das obrigações passou a ser o contrato, instrumento negociado de estipulação de deveres unilaterais ou bilaterais, mas tendo como elemento comum a relação jurídica, o vínculo instaurado entre credor e devedor.602

No contrato de mútuo, por exemplo, a obrigação é unilateral, cabendo ao devedor cumprir a única prestação admitida, juridicamente prevista, de pagar quantia determinada em dinheiro ao credor. O contrato de compra e venda, por sua vez, é bilateral,603 na medida em que “o vendedor é credor do comprador para que este preste, pagando o preço”, ao passo que “o comprador é ao mesmo tempo credor do vendedor, para que este preste, entregando a coisa vendida”.604

No âmbito dessa estrutura relacional, a obrigação revela-se una, como categoria fundamental do direito. Na evolução do direito civil, que passou a incorporar os princípios da sociabilidade e da sua inserção na nova doutrina da constitucionalização das relações privadas, com o deslocamento do objeto tutelado para a pessoa, colocando em segundo plano o conteúdo patrimonial da prestação, a

601 Na lição de Mario Rotondi, “obligare” quer dizer ligar com cordas, e “solvere” liberar das cordas, dos vínculos, das correntes”, do vínculo estreito de sujeição do devedor que somente é extinto com a satisfação do credor diante do adimplemento da prestação correspondente. (Instituciones de Derecho Privado, cit., p. 310). 602 Na sua acepção mais ampla, ensina Roberto de Ruggiero, a obrigação “exprime qualquer espécie de vínculo ou de sujeição da pessoa, qualquer que seja a sua fonte ou conteúdo, nela se podendo englobar qualquer obrigação que seja ditada pela moral, conveniência, honra, usos sociais, por outro lado qualquer obrigação imposta pelas normas jurídicas, sejam elas de direito público ou privado”, mas no seu sentido jurídico, considera-se obrigação “somente as que nascem de relações entre pessoas, têm um conteúdo patrimonial e implicam para uma pessoa o dever de fazer a outra uma prestação e, para essa segunda pessoa, a faculdade de a exigir da primeira”(Instituições de Direito Civil, vol. 3, Campinas, Bookseller, 1ª edição, 1999, p. 33-34). 603 Código Civil – “Art. 481.Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro.” 604 Paulo Luiz Netto Lobo, Teoria Geral das Obrigações, São Paulo, Saraiva, 2005, p. 21.

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obrigação, na lição de Pietro Perlingieri, “não se identifica no direito ou nos direitos do credor”, passando a se representar, destarte, autêntica “relação de cooperação”.605

Em qualquer esfera obrigacional no campo do direito privado, seja nos negócios civis ou comerciais, a obrigação, como relação de cooperação, mantém as mesmas características e produzirá os mesmos efeitos jurídicos: o adimplemento, simplesmente, extingue a obrigação; o inadimplemento, por sua vez, tem como conseqüência a execução forçada do credor contra o devedor, se com este não conseguir encontrar solução negociada para o atraso no pagamento.

Sob o aspecto estrutural, são três os elementos da obrigação, qualquer que seja a natureza ou o tipo do negócio jurídico: a existência de um vínculo jurídico entre duas pessoas, a duplicidade de sujeitos, um ativo (credor) e outro passivo (devedor), e a prestação, que constitui o objeto da obrigação.606

Considerando a unicidade da relação obrigacional, independentemente do seu objeto, essa estrutura formal aplica-se tanto aos negócios civis, entre particulares, como aos contratos empresariais, no qual deve figurar em um dos pólos da relação um empresário ou uma empresa comercial, assim como no que se refere aos contratos de consumo, regulados pela Lei de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990).

Partindo dessa diretriz unitarista, o legislador do Código Civil de 2002 entendeu conveniente e oportuno reproduzir a concepção reducionista do Código italiano de 1942, e assim veio a imprimir tratamento generalista ao direito das obrigações, sem considerar as peculiaridades inerentes ao objeto contratual específico dos negócios jurídicos mercantis e também às relações de consumo, em que sempre haverá em um dos polos do processo negocial uma empresa ou empresário, dito fornecedor.607

605 Segundo Pietro Perlingieri, a obrigação “configura-se cada vez mais como uma relação de cooperação. E tal fato importa em “uma mudança radical de perspectiva de leitura da disciplina das obrigações; esta última não deve ser considerada o estatuto do credor; a cooperação, e um determinado modo de ser, substitui a subordinação e o credor se torna titular de obrigações genéricas ou específicas de cooperação ao adimplemento do devedor” (Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional, Rio de Janeiro, Renovar, 2ª edição, 2002, p. 212). 606 Roberto de Ruggiero, Instituições de Direito Civil, cit., p. 37. 607 Lei 8.078/1990 – “Art. 3°. Fornecedor é toda pess oa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção,

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O Código Comercial de 1850, no seu Título V (arts. 121 a 139), estabelecia as normas gerais relativas aos contratos e obrigações mercantis. Cabe desde logo destacar que, nessa época, ainda não havia entrado em vigor o Código Civil, o que somente ocorreria 66 anos depois.608 A obrigação mercantil, portanto, foi definida no nosso direito positivo como categoria obrigacional específica ainda antes da conceituação da obrigação civil.

Essas disposições do Código Comercial não definiam a obrigação como mercantil, mas apenas continham regras de interpretação, prova e execução dos contratos comerciais, considerados estes como aqueles no qual em um dos pólos da relação encontrava-se a pessoa de um comerciante. Na sua estrutura deontológica, a obrigação comercial não se diferenciava da do direito comum, tanto que o art. 121 do Código Comercial estabelecia a aplicação subsidiária das normas de Direito Civil na regulação dos contratos mercantis.

O Código Comercial de 1850, na verdade, encerrava no seu contexto normas obrigacionais genéricas. O art. 129 do Código Comercial prescrevia as causas de nulidade dos contratos comerciais, enquanto em algumas outras disposições, estabelecia regras específicas para a formação, prova e interpretação dos contratos mercantis. Os artigos 135, 137 e 138 do Código de Comércio do Império mencionavam a existência da obrigação mercantil ou comercial, atribuindo, assim, natureza diferenciada da obrigação civil. Essas normas regulavam as hipóteses de contagem dos prazos dos contratos mercantis (art. 135), do prazo presumido para o início da execução da prestação do contrato (art. 137), assim como também os efeitos da mora quando não estipulada no contrato (art. 138).

No final da sua Parte Primeira, no Título XVII, o Código de 1850 definia, ainda, algumas regras sobre os modos de dissolução e extinção das obrigações mercantis

montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.” 608 Na opinião de Paula Castello Miguel, “as regras relativas a obrigações foram incluídas no Código Comercial, pois a nossa legislação civil da época era falha e desordenada”, e “para que os contratos comerciais tivessem uma fácil interpretação eram necessárias normas relativas ao direito obrigacional” (Contratos entre empresas, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2006, p. 63).

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(arts. 428 a 440), que eram na sua base originárias do direito civil, com normas limitadas ao pagamento, à novação e à compensação nos contratos comerciais.

No Código Comercial, a denominada obrigação mercantil confundia-se com o próprio contrato. Não existia um regime obrigacional amplo para os negócios mercantis, tal como posteriormente foi instituído pelo Código Civil de 1916. O Código Civil passou, a partir de então, a disciplinar as categorias e institutos fundamentais do direito das obrigações, como as suas modalidades deônticas básicas (dar, fazer e não fazer), as obrigações alternativas, divisibilidade e indivisibilidade, solidariedade, transmissão das obrigações, pagamento, novação, sub-rogação, dação em pagamento, efeitos da inexecução, a mora, as perdas e danos, os juros, e, por fim, a cláusula penal.

É necessário afirmar, neste ponto, que o direito das obrigações não se encontrava regulado no Código Comercial, e as referências à existência da obrigação mercantil, em alguns artigos, não importava no reconhecimento da existência de um direito obrigacional comercial, instituidor de regime diferenciado do regime geral do direito privado. O que o Código Comercial de 1850 regulava eram normas genéricas de obrigações e tipos específicos de contratos mercantis, praticados por comerciantes, que tinham por objeto bens móveis, e que eram executados e interpretados no “que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato”. (art. 131, item 1).

Os contratos mercantis, estes sim, sempre mereceram tratamento próprio, específico e adaptado às peculiaridades dos negócios comerciais. A simplicidade e a agilidade das fórmulas dos contratos mercantis exigiam, e ainda continuam a exigir, sem embargo, tratamento diferenciado daquelas aplicadas aos contratos civis entre particulares, ou seja, daqueles que não exercem, com profissionalidade, uma atividade especulativa e de risco.

Observa Paulo Lobo, ao comentar o Código Civil de 2002, que “as normas jurídicas estabelecidas nos arts. 233 a 420 do Código aplicam-se a todas as relações jurídicas obrigacionais, assim as negociais como as extranegociais, de natureza civil ou mercantil, previstas no referido Código ou na legislação especial.” Essas mesmas

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normas também são aplicáveis “às relações contratuais de consumo, supletivamente, no que não contrariarem o princípio constitucional de defesa do consumidor (art. 170, V, da CF)”.609

O objetivo do Código de 2002 foi estabelecer um regime obrigacional comum, qualquer que seja a natureza do negócio, sob o fundamento de que não existiriam mais razões históricas e metodológicas para a diferenciação entre a obrigação civil e a obrigação comercial.

O Código das Obrigações suíço do século XIX, contudo, teve como objetivo retirar do Código Civil a parte relativa às obrigações, exatamente porque o direito das obrigações, diferentemente dos outros ramos do direito civil, “é o que menos se torna sensível às mutações sociais”, sendo, segundo Álvaro Villaça Azevedo, “o que mais se presta à unificação”.610 Essa constatação é deveras válida, mas apenas no que se refere à parte geral do direito das obrigações, não sendo, todavia, apropriada ou extensível para as diversas modalidades contratuais, em razão do objeto específico correspondente a cada negócio jurídico.

O direito das obrigações resulta de um núcleo firme e imutável. Ou seja, o regime obrigacional decorre de uma estrutura unívoca, aplicável a qualquer tipo de relação jurídica em que estejam presentes duas partes, uma credora e outra devedora, independentemente da natureza do negócio ou do conteúdo da prestação.

Portanto, para evidenciar mais uma das relevantes antinomias presentes no regime do Direito de Empresa no Código Civil de 2002, o presente capítulo tem como finalidade destacar a existência de um regime comercialista específico aplicável, apenas, aos contratos mercantis, separado do regime genérico das normas do Código Civil. Para esse fim, será demonstrado que esse sistema mercantilista típico, que compreende dentro de si gama infindável de negócios e operações mercantis, não foi minimamente abalado ou modificado pelas normas do Código Civil, que, nessa parte relevante, nenhuma unificação promoveu no âmbito do direito privado.

609 Paulo Luiz Netto Lôbo, Teoria Geral das Obrigações, cit., p. 20. 610 Teoria Geral das Obrigações – Responsabilidade Civil, São Paulo, Atlas, 10ª edição, 2004, p. 26-27.

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A mera transposição de alguns tipos contratuais do Código Comercial para o novo Código Civil não representou, com certeza, a unificação do direito obrigacional em nosso sistema de direito positivo.611 Além do mais, a manutenção, quase intacta, da tipologia contratual regulada pelo Código de 1916 revela, isto sim, que os negócios contratuais previstos no Código de 2002 caracterizam-se muito mais como negócios de natureza civil, e não de natureza mercantil.

A disciplina própria e específica dos contratos comerciais apresenta-se, como será melhor demonstrado adiante, incompatível com o regime unificado adotado pelo Código de 2002. Isto porque o regime peculiar dos contratos mercantis deveria considerar a disciplina dessas relações contratuais, segundo assim entende Fábio Ulhoa Coelho, como “direito-custo”, que existe de modo diferenciado em face das “vantagens competitivas na economia”.612 A relação jurídico-mercantil, assim, compreende, em si, o caráter econômico dos contratos, e não uma natureza indefinida e despida de profissionalidade ou finalidade lucrativa.

O contrato mercantil, diferentemente do modelo generalista do contrato civil, possui como substrato essencial a regulação de negócios jurídicos especulativos, que são discutidos, elaborados e formalizados a partir, como referido por Fábio Ulhoa Coelho, de pressupostos e elementos de custos sempre presentes nas transações comerciais. Esse direito-custo significa que o contrato mercantil contempla aspectos diferenciais específicos estranhos aos contratos não-profissionais, de direito civil, celebrados esporadicamente para atender a fim determinado e que se esgotam em si mesmos, ao ser concluído o negócio jurídico.

Os contratos comerciais, ao contrário, se reproduzem em massa, são celebrados em série, se repetem em sequência, conferem a uma das partes, a

611 Em crítica contundente, Rubens Requião discorda, radicalmente, do projeto de unificação do direito das obrigações tal como proposto pelo Código de 2002, em crítica proferida ainda na fase do projeto: “Consiste a unificação, isto sim, na simples justaposição formal da matéria civil, ao lado da matéria comercial, regulada num mesmo diploma. Constitui, repetimos, simples e inexpressiva unificação formal. Isso, na verdade, nada diz de científico e de lógico, pois, como se disse em “Exposição de Motivos” preliminar, o Direito Comercial, como disciplina autônoma, não desaparecerá com a codificação, pois nela apenas se integra formalmente. O artificialismo desse critério criou no projeto a preocupação de proscrever o adjetivo “comercial” ou “mercantil”. Essas expressões são tabus...” (Projeto de Código Civil, Apreciação Crítica sobre a Parte Geral e Livro I (Das Obrigações), São Paulo, Revista dos Tribunais, nº 477, 1985, p. 12-13). 612 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 3, cit., p. 14.

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empresa, uma particular e específica natureza profissional e especulativa. A execução desses atos em massa, ofertados ao público pelas empresas através de recursos de publicidade e de estratégias de marketing e propaganda, com a finalidade de atrair a clientela e consumidores indeterminados, pressupõe a presença de elementos próprios de modo totalmente diverso daquele que é observado nos contratos civis não empresariais.

Em razão dessas características diferenciais, Fábio Ulhoa Coelho considera que essa distinção entre contratos civis e contratos mercantis “continua pertinente, mesmo após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, porque a unificação legislativa não importa na eliminação de diferentes disciplinas jurídicas”.613

Os contratos mercantis não poderiam ser simplesmente extintos ou juridicamente desqualificados pelo simples fato do legislador haver optado pela desmercantilização dos negócios privados, enquanto que, passando ao largo desse regime codificado, verificamos a existência de uma série de negócios e contratos que permanecerão tipificados como mercantis, ainda que o núcleo obrigacional dessas relações econômicas tenha sido artificialmente unificado.

Como visto, é no campo do objeto negocial que as relações contratuais devem ser inicialmente separadas e diferenciadas. Com efeito, os negócios mercantis continuarão assim sendo classificados em razão do peculiar objeto da prestação especialmente constituída, do modo de sua execução e da presença, em um dos pólos da relação, de uma empresa comercial.

Apesar da unicidade da relação obrigacional, os contratos mercantis possuem objeto próprio, que compreende a comercialização de mercadorias ou a prestação de serviços comerciais. O específico objeto mercantil, a predisposição das mercadorias para a sua venda no mercado, com o intuito de obtenção de lucro, representa um aspecto diferenciador de efetiva relevância jurídica, situação que não se faz presente nos contratos civis.

613 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 3, cit., p. 19.

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Por exemplo, no caso de uma empresa que tem por objeto a fabricação e comercialização de calçados, esta realiza negócios de compra de matérias primas, como o couro, produzido por um cortume, além de outros insumos, como pregos adquiridos de uma empresa metalúrgica, a cola de uma indústria química e a borracha dos solados fornecida por uma fábrica de produtos sintéticos, para em seguida submeter esses insumos a um processo de industrialização. Essa empresa não vende diretamente os calçados produzidos aos consumidores, mas realiza a distribuição dos seus produtos através de outras empresas atacadistas e varejistas ou por representantes comerciais. Nessa situação típica, o objeto das relações contratuais assume natureza estritamente mercantil, seja na aquisição de insumos de outras empresas comerciais, seja na venda dos produtos industrializados a empresas distribuidoras, varejistas ou representantes, também comerciais. As características dessas operações empresariais revestem-se de uma especificidade que não pode ser, de modo algum, enquadrada na generalidade dos contratos civis, celebrados entre particulares, que geralmente têm por objeto uma coisa fora do comércio e tampouco visam o lucro.

Os negócios comerciais são planejados, concebidos e implementados a partir de um desiderato lucrativo, em que a racionalidade contábil orienta e determina o conteúdo e os objetivos buscados nas relações contratuais. Todo contrato empresarial visa, necessariamente o lucro, ou seja, nas palavras de Paula Forgioni, tem o “escopo de lucro”.614 As estratégias mercadológicas para a oferta dos produtos no mercado, os modelos negociais adotados pelas empresas, a organização dos seus sistemas administrativos, a estruturação de processos industriais, a persecução constante de resultados econômicos, a cotação das ações das companhias abertas nas bolsas de valores, todos esses elementos, totalmente ausentes nas relações de Direito Civil,

614 “Nos contratos empresariais, ambos [ou todos] os polos são movidos pela busca do lucro, têm sua atividade – toda ela – voltada para a perseguição de vantagem econômica. (...) Talvez a onerosidade seja o atributo dos contratos mercantis mais destacado pela doutrina, que sempre os encarou como forma de obter proveito econômico. A empresa não atua no mercado por outra razão última que não a obtenção de lucro; assim, pode-se legitimamente supor que a celebração dos contratos interempresariais dá-se porque todas as partes acreditam que seus interesses estão sendo satisfeitos. O fim lucrativo é a característica fundamental a partir do qual se desdobram as demais peculiaridades dos negócios mercantis.” (Paula Andrea Forgioni, Teoria geral dos contratos empresariais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 56/57).

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evidenciam que os contratos mercantis não podem ser disciplinados sob um regime jurídico comum.

Ainda que a estrutura relacional do direito das obrigações venha a ser desenvolvida a partir de conceitos e institutos gerais, a tipologia dos contratos e as características próprias dos negócios comerciais sempre exigiram tratamento diferenciado, que respeite as peculiaridades das transações mercantis, função que é assumida, sem dúvida, pela legislação comercial suplementar e descodificada. Para o sistema unitarista e unificador do Código Civil de 2002, não seria mais conveniente manter a divisão entre os contratos civis e os contratos mercantis.

Na Itália, observa Paula Forgioni, “a teoria geral dos contratos comerciais restou estagnada, chegando a ser contestada a própria existência dos contratos mercantis”.615 Em determinado momento da história, entendeu a doutrina italiana que a distinção entre negócios civis e negócios comerciais não mais se justificava, e que esta separação representaria mesmo uma inutilidade ou ilegitimidade que estaria provocando grande dificuldade para a interpretação e aplicação das normas contratuais na esfera do direito privado.616

No Brasil, duas iniciativas anteriores de unificação do direito das obrigações, propostas por Teixeira de Freitas, no esboço do seu projeto do Código Civil (1866), e por Inglês de Souza (1912), apesar de não incorporadas ao nosso direito positivo, contribuíram para disseminar a idéia de que a dualidade de regimes obrigacionais representaria um problema metodológico somente superável pela supressão do sistema mercantil. Partindo de premissas equivocadas, a doutrina civilista entendia que, de certo modo, o direito das obrigações já estaria unificado em face da redação dos artigos 121 e 428 do Código Comercial de 1850, como também pela extinção da jurisdição comercial ocorrida em 1875.617

Resgatando das tumbas da história esses precedentes antigos e superados, o Código de 2002 desmercantilizou os contratos, retirou a natureza comercial dos

615 Paula Andrea Forgioni, Teoria geral dos contratos empresariais, cit., p. 41. 616 Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, I contratti dell’Impresa, Turim, G. Giappichelli Editore, 2006, p. 1. 617 Waldirio Bulgarelli, Tratado de Direito Empresarial, op. cit., p. 15.

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negócios das empresas, positivando uma situação fictícia, irreal, em contraposição à realidade do mercado, que a cada dia torna mais complexas as relações econômicas, na medida em que estas acompanham a evolução tecnológica e os novos modelos de operações empresariais resultantes do processo de globalização.

Ainda que a teoria geral das obrigações possa ser unificada num diploma codificado, os contratos mercantis sempre deverão merecer um tratamento específico, como categoria jurídica própria, porque dotados de elementos característicos singulares. É isso que buscaremos demonstrar neste capítulo.

5.2. Princípios e modalidades contratuais no Código de 2002

Na esfera do direito contratual, cuja proposta teórica originária, como observado, era a de promover a unificação do direito das obrigações, o Código Civil de 2002 passou a disciplinar várias espécies de contratos, tratados com neutralidade no que tange ao objeto de cada tipo de negócio jurídico. Sob a concepção unitarista, foram reunidos, em um único título, diversas modalidades contratuais, que seriam inerentes a todas as relações de direito privado, independentemente de ser celebrada por pessoa particular ou através de uma empresa comercial.

O Código Civil de 2002 define como contratos típicos e assim por ele foram regulados, um total de 16 espécies contratuais. De acordo com o regime unificado, esses tipos contratuais seriam suficientes para disciplinar vários tipos ou modalidades de relações jurídicas de conteúdo econômico, envolvendo tanto partes empresariais como não empresariais.

Basta, contudo, uma simples e superficial comparação analítica desse regime contratual frente ao Código Civil de 1916, para que se conclua que, das 16 espécies contratuais presentes no Código de 2002, apenas cinco não existiam no diploma revogado. De modo efetivo, o Código Civil apresentou como inovação, tão-somente, a disciplina tipificada para os contratos estimatório, de comissão, de agência e

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distribuição, de corretagem e de transporte, até então regulados na legislação comercial.

Essa constatação evidencia que a proposta de unificação do direito das obrigações e dos contratos no novo Código Civil revela-se tímida, limitada, restrita, por somente abranger tipos contratuais básicos do direito civil, mais compatíveis com os negócios entre particulares. Com efeito, o Código de 2002 nada dispõe sobre a utilização desses tipos contratuais nas operações empresariais, considerando que em todos os seus 372 artigos, ao regular os contratos em espécie (artigos 481 a 853), não existe nenhuma menção ou referência à aplicabilidade desses contratos à empresa ou ao empresário.

Diante da falta de compatibilização e consolidação entre os conteúdos normatizados no Código de 2002, este se limitou a regular tipos contratuais genéricos, tal como se observa a partir da análise do quadro abaixo:

Contratos típicos regulados no Código Civil

Tipo contratual Código de 2002 (artigos)

Código de 1916 (artigos)

Compra e venda 481 a 532 1.122 a 1.163 Troca ou permuta 533 1.164 Contrato estimatório 534 a 537 Sem previsão Doação 538 a 564 1.165 a 1.187 Locação de bens 565 a 578 1.188 a 1.215 Comodato 579 a 585 1.248 a 1.255 Mútuo 586 a 592 1.256 a 1.264 Prestação de serviços 593 a 609 1.216 a 1.236 Empreitada 610 a 626 1.237 a 1.247 Depósito 627 a 652 1.265 a 1.287 Mandato 653 a 692 1.288 a 1.330 Comissão 693 a 709 Sem previsão Agência e distribuição 710 a 721 Sem previsão Corretagem 722 a 729 Sem previsão Transporte 730 a 756 Sem previsão Seguro 757 a 802 1.432 a 1.476

De todos os tipos contratuais constantes do Código de 2002, as únicas inovações introduzidas dizem respeito, como visto, ao contrato estimatório, à comissão, ao contrato de agência e distribuição, à corretagem e ao contrato de

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transporte. Com exceção do contrato de agência e distribuição, os demais tipos contratuais eram regulados pelo Código Comercial de 1850, sob modalidade exclusivamente mercantil.

A partir do contrato de compra e venda, que representa a principal modalidade contratual de conteúdo patrimonial na atividade comercial, as demais espécies reguladas pelo Código Civil são tipos negociais de conteúdo genérico. Os contratos de permuta, doação, locação, comodato, empréstimo, prestação de serviços, depósito e mandato, por exemplo, são modelos que se prestam a disciplinar transações de conteúdo econômico restrito, não possuindo referibilidade imediata no tocante às operações de natureza mercantil, realizadas pelas empresas.

O Código de 2002, além de ser neutro e indefinido, reproduz quase na íntegra o antigo regime civilista dos contratos, o que demonstra a ausência de uma diretriz comum entre os diversos juristas relatores encarregados da elaboração do projeto. Na parte das obrigações e contratos, prevaleceu a concepção estritamente civilista do seu relator, Agostinho Alvim, enquanto que no título do Direito de Empresa, sob a responsabilidade de Sylvio Marcondes Machado, inexiste qualquer aspecto de referibilidade aos atos e contratos que seriam inerentes às atividades das empresas.

Em matéria contratual, além de modificações puntuais no regime de alguns contratos em espécie, a principal inovação introduzida pelo Código de 2002 está representada pela inserção de princípios ou cláusulas gerais aplicáveis aos contratos, como os princípios da função social dos contratos (art. 421), o da probidade e da boa-fé na celebração e na execução do contrato (art. 422), apesar do novo Código não se referir à boa-fé na fase pós-contratual,618 assim como o princípio da equivalência

618 Apesar de ser recebido como destacada evolução em matéria contratual, o princípio da boa-fé, tal como consta do art. 422 do Código Civil se releva limitado porque, como observa Gustavo Tepedino, “sequer cogita do dever de boa-fé na fase pós-contratual”, e essa omissão representa um “ponto gravíssimo uma vez que, na prática, os juízes vinham aplicando a boa-fé objetiva nas relações contratuais de maneira ampla, e serão tolhidos com a entrada em vigor do novo Código Civil” (O Novo Código Civil: duro golpe na recente experiência constitucional brasileira, in Temas de Direito Civil, Tomo II, cit., p. 359).

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material do contrato, mais presente na interpretação dos contratos de adesão (arts. 423 e 424).619

Além desses princípios, fruto de rica construção doutrinária e jurisprudencial nas últimas décadas, o Código de 2002 adota um regime de fixação de cláusulas gerais aplicáveis às relações contratuais, especialmente da incidência da cláusula resolutiva (arts. 474 e 475), da exceção do contrato não cumprido (arts. 476 e 477) e da hipótese de resolução por onerosidade excessiva (arts. 478 a 480).

Esse regime de cláusulas gerais não representa novidade no direito positivo brasileiro, principalmente em razão de que as normas de defesa do consumidor (Lei 8.078/1990), resultantes de princípios constitucionais postos pela Constituição de 1988, já definiam regras próprias de contratação e interpretação aplicáveis às relações de consumo. Desde que entrou em vigor o Código de Defesa do Consumidor, as disposições contratuais constantes do Código Civil de 1916, fundadas, dominantemente, no interesse patrimonial dos credores, foram derrogadas e restaram inaplicáveis e assim afastadas, em face da prevalência dos princípios e normas do direito do consumidor.

Na opinião de Paulo Lôbo, “o Código Civil de 2002, tal como o fez o Código de Defesa do Consumidor, tem como paradigma a funcionalização do contrato a fins sociais, equilibrando os interesses individuais e sociais, segundo os fundamentos ditados pelas Constituições do Estado Social, inaugurado em 1934, no Brasil, e bem delineado na Constituição de 1988”.620 Ainda que o Código de 2002 apresente uma regulação de princípios e cláusulas gerais de modo mais limitado do que aquela verificada na Constituição de 1988 e na legislação de defesa do consumidor, mesmo assim, a nova disciplina civilista deve ser considerada um avanço significativo no campo contratual, ainda que “com atraso de várias décadas”.621

O problema que se verifica é que essa socialização dos contratos não foi seguida da correspondente mudança de paradigmas na regulação dos negócios

619 Paulo Lôbo, Princípios contratuais, in A teoria do contrato e o novo Código Civil, Paulo Lôbo e Eduardo Messias Gonçalves de Lyra Junior, Coordenadores, Recife, Nossa Livraria, 2003, p. 15. 620 Paulo Lôbo, Princípios contratuais, in A teoria do contrato e o novo Código Civil, cit., p. 12. 621 Paulo Lôbo, Princípios contratuais, cit., p. 22.

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contratuais em espécie, que permanecem presos aos modelos clássicos previstos no Código de 1916. Tanto assim que, em nenhum momento, o Código Civil de 2002 adotou um tratamento diferenciado para os contratos celebrados sob a égide do regime do direito do consumidor.

A generalidade dos tipos contratuais regulados pelo Código de 2002 poderia ser atribuída à adoção da técnica de cláusulas gerais, como opção do legislador de estabelecer standards ou modelos básicos de negócios jurídicos, deixando às partes contratantes, em razão dos princípios da liberdade de contratar e da autonomia da vontade, o poder de estipular do modo mais conveniente aos seus interesses, o conteúdo obrigacional e os efeitos do contrato.622 Esse raciocínio seria mais próprio dos contratos típicos, ou seja, das modalidades mais comuns e usuais das relações contratuais previstas no Código ou na legislação supletiva.

No caso dos contratos atípicos, que são criados e desenvolvidos a partir das práticas e usos sociais,623 face à previsão do art. 425 do Código Civil, a técnica de cláusulas gerais revela-se mais apropriada para orientar a ação do intérprete, que deverá analisar e avaliar a execução do contrato a partir da adequação das suas normas e do comportamento das partes aos princípios superiores do ordenamento jurídico, como o da função social dos contratos, da boa-fé, da justiça social e dos direitos e garantias individuais.624

622 A liberdade de contratar, na explicação de Cláudia Lima Marques, significa “a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e os limites das obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, contando sempre com a proteção do direito”; (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, 4ª edição, 2002, p. 48). 623 O contrato atípico, para Giselda Hironaka, “é aquele não disciplinado pelo ordenamento jurídico, embora lícito, pelo fato de restar sujeito às normas gerais do contrato e pelo fato de não contrariar a lei, nem os bons costumes, nem os princípios gerais do direito”, sendo o seu traço característico “não estar sujeito a uma disciplina própria” (Contrato: estrutura milenar de fundação do Direito Privado. Superando a crise e renovando princípios, no início do vigésimo primeiro século, ao tempo da transição legislativa brasileira, Introdução Crítica ao Código Civil, Lucas Abreu Barroso, org., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 121). 624 Considera Gustavo Tepedino, quanto a este aspecto, que “a fragmentação dos conceitos (...) é acompanhada de técnica legislativa que se utiliza de cláusulas gerais, exatamente para que o intérprete tenha maior flexibilidade no sentido de, diante do fato jurídico concreto, fazer prevalecer os valores do ordenamento em todas as situações novas que, desconhecidas do legislador, surgem e se reproduzem como realidade mutante na sociedade tecnológica de massa”. (As Relações de Consumo e a Nova Teoria Contratual, in Temas de Direito Civil, cit., p. 227).

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Essa técnica legislativa de cláusulas gerais é bastante nítida nas normas do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece diversos princípios de proteção do consumidor (art. 4º), a fixação dos seus direitos básicos (art. 6º), a responsabilidade pelo fato de produto ou serviço (art. 12), as regras aplicáveis às práticas comerciais (art. 29), a vedação às cláusulas abusivas (art. 39) e as normas gerais de proteção contratual (art. 46).

O Código Civil de 2002, além de definir princípios e condições gerais para a elaboração, execução e interpretação dos contratos, também disciplina tipos contratuais específicos e, neste caso, o grau de liberdade de contratar é reduzido em razão da regulamentação legislativa. Neste ponto, instaura-se uma situação de controvérsia, que guarda referência na célebre frase de Grant Gilmore: “o contrato está morto”. Ou seja, em face do crescente intervencionismo estatal na definição e configuração das normas contratuais, a liberdade de contratar resta cada vez mais reduzida ou limitada pelas disposições de ordem pública.

Diante das contradições entre a estrutura conceitual do direito contratual no século XIX e o avanço da intervenção legislativa estatal do século XX,625 adotando o Código Civil de 2002 tanto o esquema de cláusulas e condições gerais das obrigações e contratos, a tipificação das novas modalidades negociais veio agora incorporar espécies antes reguladas pela legislação comercial.

É fato incontroverso que o legislador sempre demonstrou incapacidade de acompanhar a contínua evolução da realidade social e do desenvolvimento de novas fórmulas negociais, como observado por Gustavo Tepedino.626 E nem por isso as pessoas e as empresas deixaram de criar, de inventar novas espécies de contratos, de adaptar ou modernizar modalidades existentes, principalmente na esfera dos negócios comerciais e dos contratos de massa. Exemplos característicos dessa constatação verificamos no contrato de cartão de crédito e nas transações por meio

625 Gustavo Tepedino, As relações de consumo e a nova teoria contratual, Temas de Direito Civil, cit., p. 220. 626 Nesse sentido, explica Gustavo Tepedino: “Nos dias de hoje, a necessidade de se dar efetividade plena às cláusulas gerais faz-se tanto urgente na medida em que se afigura praticamente impossível ao direito regular o conjunto de situações negociais que floresce na vida contemporânea, cujos avanços tecnológicos surpreendem até mesmo o legislador mais frenético e obcecado pela autalidade.” (As relações de consumo e a nova teoria contratual, Temas de Direito Civil, cit., p. 226).

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eletrônico, os quais, apesar de jamais haver sido normatizados pelo legislador, são modalidades hoje bastante usuais nas transações mercantis.

Apesar da diretriz unificadora e da abrangência do Código Civil, no ordenamento jurídico brasileiro existe uma verdadeira fragmentação de normas contratuais, que encontramos tanto no âmbito da divisão entre os contratos típicos e atípicos, como na diferenciação que continuará presente entre os contratos civis, os contratos mercantis e os contratos de consumo. É necessário que essa fragmentação passe a ter um ponto comum de sustentação, um fundamento jurídico superior no qual possam estar ancoradas as diversas modalidades contratuais.

A unidade do sistema somente poderá resultar da Constituição, dos seus princípios gerais, que regem os direitos fundamentais e da personalidade, a função social da propriedade e da empresa, as relações econômicas e as demais reguladas instrumentalmente pela legislação infraconstitucional de direito civil como também de direito comercial. Desse modo, para Pietro Perlingieri, o “papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo texto constitucional”.627

O sistema contratual do Código de 2002, sem embargo, mantém uma estrutura tradicionalista, ainda que tenha feito algumas concessões a princípios gerais que podem ser diretamente compatibilizados com a Constituição, como o da função social do contrato, por exemplo. Todavia, não existe uma plena correlação axiológica e funcional entre a Carta de 1988 e o Código Civil projetado bem antes da Constituição.

Por essa razão, Teresa Negreiros observa que, apesar de “eleito como ponto de referência para a teoria crítica, o modelo tradicional acaba por determinar que a metodologia contemporânea padeça das mesmas limitações que pretende superar”.628

627 Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional, cit., p. 6. 628 Teresa Negreiros, Teoria do Contrato: novos paradigmas, Rio de Janeiro, Renovar, 2ª edição, 2006, p. 299.

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Fazendo uma comparação das dicotomias existentes entre o modelo clássico e a tendência evolutiva do direito contratual, Teresa Negreiros elaborou o seguinte quadro explicativo:629

Direito contratual tradicional Tendências modernas Neutralidade de conteúdo Enfoque contenudístico

Abordagem estática Abordagem dinâmica Antagonismo Cooperação

Atomismo Coletivismo Abordagem abstrata Abordagem voltada para a pessoa

Esse quadro revela as profundas diferenças entre a concepção e a filosofia do modelo tradicional, ao qual o Código de 2002 está materialmente filiado, ainda que procurando se fundamentar nos princípios da eticidade, da socialidade e da operabilidade,630 diante da visão contemporânea do regime contratual, fundado na constitucionalização do direito civil. A nova abordagem dinâmica e funcionalista do direito contratual, os elementos de cooperação e coletivismo que devem prevalecer nas relações privadas, não estão presentes de modo claro e objetivo no regime codificado.

Mais ainda no âmbito do direito de empresa, não se encontram vestígios da presença desses novos princípios relacionados com a função social da propriedade, das relações de cooperação, da preocupação com a dinamicidade e operabilidade das atividades comerciais, que constituem o objeto nato das organizações empresariais. Na descrição e tipificação dos contratos em espécie, os quais também são aplicáveis, por força da lei, aos negócios mercantis, o Código de 2002 basicamente reproduz a perspectiva patrimonialista dominante no Código de 1916, podendo ser nele constatada, como observado por Luiz Edson Fachin, “a ausência de uma tradição construída para tutelar a pessoa”.631

629 Teresa Negreiros, Teoria do Contrato: novos paradigmas, cit., p. 299. 630 Miguel Reale, Estrutura e espírito do novo Código Civil Brasileiro, História do Novo Código Civil, cit., p. 37. 631 Luiz Edson Fachin, Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Rio de Janeiro, Renovar, 2ª edição, 2006, p. 91.

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Além das dicotomias de princípios e de conteúdo que exsurgem do sistema do Código de 2002, no campo do direito de empresa as contradições do regime contratual são ainda mais flagrantes. Isto porque, a simples transposição de cinco tipos contratuais do Código Comercial de 1850 para o Código Civil de 2002 não podem representar, de modo algum, a instituição de um sistema contratual comum e aplicável a todos os tipos de negócios privados, empresariais e não empresariais.

Neste ponto, cabe concluir que a permanência de diversas outras modalidades de contratos mercantis regulados pela legislação comercial extravagante, demonstra a mais evidente e inafastável contradição do sistema unificado, a sua limitação diante das novas tendências do direito contratual. E esta situação contraditória exigirá do intérprete um verdadeiro contorcionismo hermenêutico, para poder compatibilizar dois sistemas antagônicos entre si.

5.3. Aspectos diferenciadores da compra e venda mercantil

Ao promover a unificação do direito das obrigações e do regime jurídico dos contratos de direito privado, o Código Civil de 2002 igualmente e por conseqüência lógica, também unificou o contrato de compra e venda. A partir do novo Código e sob a sua concepção exclusivista, não existiria mais a compra e venda mercantil. Todo contrato de compra e venda é civil e também civil o seu regime legal. Esta situação de exclusividade normativa ou de unicidade dogmática resulta, obviamente, da revogação de toda a parte primeira do Código Comercial de 1850, em especial dos artigos 191 a 220, que disciplinavam a compra e venda mercantil.

De acordo com a definição própria do contrato de compra e venda mercantil no Código Comercial de 1850, este se considerava “perfeito e acabado logo que o comprador e vendedor se acordam na coisa, no preço e nas condições”, acrescentando esse dispositivo que, “desde esse momento, nenhuma das partes pode arrepender-se sem o consentimento da outra, ainda que a coisa se não ache entregue nem o preço pago” (C.Com, art. 191). Para a devida caracterização da compra e venda

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mercantil, essa mesma norma estabelecia que “É unicamente considerada mercantil a compra e venda de efeitos móveis ou semoventes, para os revender a grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso”.

O Código Civil de 2002, ao conceituar o contrato de compra e venda, reproduz a mesma regra do Código de 1916 (art. 1.122), enunciando que “Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro” (art. 481). Em complemento a essa definição, o Código de 2002, ainda que parcialmente, menciona o critério de perfeição do contrato que era previsto no Código Comercial de 1850, ao prever que “A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço” (art. 482).

Além de reproduzir, de modo parcial, o conceito da compra e venda mercantil originariamente disciplinada no Código Comercial de 1850, o Código Civil de 2002 não definiu, propositadamente, o objeto da compra e venda nas operações e negócios realizados pelas empresas. Dessa maneira, o Código de 2002, com a pretensão de unificar o direito das obrigações, omitiu que a compra e venda empresarial deve ter, dominantemente, como objeto, coisas móveis, ou seja, mercadorias, tal como constava, de modo expresso e inquestionável, no Código Comercial revogado.632

O contrato de compra e venda previsto e regulado no Código de 2002, somente pode ser considerado como categoria negocial genérica, uma vez que a concepção adotada abrange tanto as operações com bens móveis como aquelas realizadas com bens imóveis, realizadas por pessoas particulares ou por empresas. As normas civilistas da compra e venda constantes do Código Civil devem ser caracterizadas

632 A doutrina, com base nas lições de Carvalho de Mendonça, passou a inserir no objeto da compra e venda mercantil as operações com bens imóveis, considerando que a exclusão dos imóveis do conceito de mercadoria não mais se justificava nos tempos atuais, em especial porque os imóveis podem ser objeto de negócios especulativos realizados em caráter profissional, por empresas construtoras e incorporadoras que perseguem o lucro, característica marcante das atividades mercantis. O simples fato do imóvel não ser passível de circulação física não descaracterizaria, pois, a sua natureza como mercadoria, tal como assim também consideram João Eunápio Borges, Waldirio Bulgarelli e Fran Martins. No direito positivo brasileiro, a Lei 4.068/1962, expressamente esclareceu no seu art. 1º, que “São comerciais as empresas de construção”, atribuindo, desse modo, natureza mercantil às atividades imobiliárias por estas efetuadas. Mas também em razão da forma, uma vez que as empresas do setor imobiliário são constituídas como sociedades comerciais e registradas perante a Junta Comercial, essas empresas ficam submetidas à legislação mercantil e os negócios de compra e venda de imóveis restam caracterizados como atos empresariais.

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como normas gerais, de conteúdo amplo, determinantes de diretrizes e efeitos comuns da compra e venda.

Na verdade, para as transações e negócios comerciais, a figura da compra e venda tradicional demonstra-se superada, ou seja, defasada, diante das práticas correntes no mercado, principalmente, nos dias atuais, com a introdução dos procedimentos eletrônicos de contratação e pagamento via Internet. A compra e venda regulada pelo Código Civil é absolutamente insuficiente para disciplinar as múltiplas variáveis e as condições dinâmicas de contratação da compra e venda mercantil, na realidade corrente do século XXI.

Esse regime genérico da compra e venda civil começa por ser derrogado e superado diante dos princípios e das cláusulas gerais aplicáveis aos contratos de consumo. As normas do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) que tratam das práticas comerciais (arts. 29 a 44) e da proteção contratual (arts. 46 a 54), com efeito, estabelecem um regime especial da compra e venda aplicável às relações de consumo, distinto, em vários aspectos, do sistema contratual civil.

Ainda sob a égide da concepção tradicionalista dos atos de comércio, a compra e venda mercantil era caracterizada, segundo Fran Martins, em razão da presença dos seguintes elementos:633

a) o fato de serem os objetos comprados destinados à revenda ou alugados; b) a necessidade de serem esses objetos móveis ou semoventes; c) a necessidade de ser comerciante o comprador ou vendedor. Apesar desses requisitos do contrato de compra e venda mercantil terem sido

concebidos de acordo com a teoria dos atos de comércio, esta situação não pode significar, a partir de um raciocínio simplista, que a mera supressão do regime dos atos de comércio venha a provocar a descomercialização total do contrato de compra e venda. Na opinião de Waldirio Bulgarelli, “a comercialidade da compra e venda não pode estar na dependência da confusa, difusa, e incompleta teoria dos atos de

633 Fran Martins, Contratos e Obrigações Comerciais, cit., p. 141.

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comércio”, isto porque, “o contrato será comercial quando for firmado por comerciante no exercício da sua profissão”.634

O elemento subjetivo destacado por Bulgarelli é perfeitamente adaptável e compatível com a teoria da empresa, podendo ser caracterizada como mercantil a compra e venda na qual um dos contratantes seja uma empresa, e esse contrato esteja vinculado ao exercício do objeto da atividade empresarial. De acordo com o Código Civil, constitui objeto da empresa o exercício de atividade econômica organizada destinada à produção ou circulação de bens ou de serviços. A compra e venda mercantil tanto pode, baseada nesse conceito legal, ser caracterizada no plano da empresa industrial que produz para vender, como da empresa comercial que compra a mercadoria produzida para revender ou para alugar o seu uso.

Em complemento à caracterização da comercialidade da compra e venda, o fato dessas operações serem realizadas de modo repetitivo, em massa, com caráter habitual e profissional, consistindo, inclusive, no objeto da empresa, que somente existe para promover tais negócios, isto demonstra que os contratos celebrados pelas empresas apresentam aspectos diferenciadores de uma simples compra e venda civil, celebrada entre particulares.

Assim, se uma pessoa oferece, através de um anúncio de classificados publicado em jornal, o seu automóvel para venda, e outra pessoa particular, não comerciante, negocia e contrata a compra desse bem, para uso próprio, essa transação pode ser satisfatória e suficientemente regida pelo modelo genérico da compra e venda civil.

Situação inteiramente diversa ocorre quando uma empresa industrial realiza a transformação de matérias-primas em produtos finais, para colocação no mercado através de uma rede de distribuição, e ambas as partes envolvidas na relação são empresas cujo objeto é a realização de negócios profissionais com escopo lucrativo. A empresa distribuidora adquire as mercadorias com a única finalidade de revenda, e não para uso ou consumo próprio.

634 Waldirio Bulgarelli, Contratos Mercantis, São Paulo, Atlas, 10ª edição, 1998, p. 177.

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Resulta claro, lógico, que os exemplos acima citados não podem ser regulados por normas idênticas, se a causa e a finalidade do negócio são totalmente distintos. A diversidade de situação fáctica exige um tratamento diferenciado, não podendo uma operação profissional ser regulada da mesma maneira que um negócio particular isolado.635

No sistema do Código Civil italiano de 1942, o qual foi reproduzido no Código Civil de 2002, ocorreu, como já referido, a supressão da distinção entre contrato civil e contrato comercial.636 Todavia, com o passar dos anos, como observado por Vincenzo Buonocore, a doutrina italiana veio progressivamente a admitir a existência de uma nova categoria de contratos comerciais, que foram então denominados de contratos de empresa ou contratos empresariais.637 Para Buonocore, a configuração dos contratos empresariais como categoria foi defendida por vários autores, com base na individuação de uma série de atos, tanto previstos no Código Civil como fora do Código, ou mesmo extranormativos, e que, diante de suas peculiaridades, conferem unitareidade e homogeneidade a várias figuras negociais compreendidas nas atividades das empresas.638

No âmbito específico dos contratos de troca e da compra e venda mercantil, segundo Buonocore, diversos fatores contribuíram para a especialização dos contratos empresariais, entre os quais, em particular, “as crescentes exigências da contratação, as mutações das técnicas de colocação dos produtos no mercado e os novos sistemas de integração industrial e comercial, que passaram a determinar um processo dúplice: de um lado, a fragmentação do contrato de venda em múltiplos subtipos e variáveis, e de outro lado, a diferenciação dos novos tipos negociais”.639

635 No mesmo sentido, Paula Castello Miguel considera que “não há como tratar de forma idêntica os contratos firmados por pessoas comuns, a fim de regular uma ou outra relação obrigacional, com os contratos firmados entre empresários no exercício de sua atividade econômica”. (Contratos entre empresas, cit., p. 67). 636 Observa Paula Forgioni, com a acuidade que lhe é peculiar, que “premidos pela influência do Codice Civile e pela centralidade do conceito de empresário, os doutrinadores abrigam os contratos interempresariais e os consumeristas na mesma categoria (“contratti dell’impresa” ou “contratti commerciali”), ainda que reconhecendo as diferenças entre eles”. (Teoria geral dos contratos empresariais, cit., p. 42). 637 Vincenzo Buonocore, et alli, Istituzioni di Diritto Commerciale, Torino, G. Giappichelli, 6ª edizione, 2006, p. 499. 638 Vincenzo Buonocore, et alli, cit., p. 500. 639 Vincenzo Buonocore, et alli, cit., p. 516.

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Os diversos subtipos e variações modais derivados da compra e venda mercantil, como os contratos de distribuição, fornecimento, franchising, leasing, alienação fiduciária em garantia, dentre os mais usuais, devem ser necessariamente considerados como contratos empresariais, não sendo possível admitir que o conteúdo generalista do Código Civil seja capaz de regular esses tipos contratuais específicos. Mesmo que reconhecida a tendência contemporânea de desregulamentação dos contratos a partir da fixação de modelos legislativos contendo cláusulas gerais, os contratos celebrados exclusivamente entre empresas, e que possam interferir, de modo significativo, nas relações econômicas, devem merecer uma disciplina legal própria, justificada por fatores de interesse público e pela necessidade do Estado controlar os tipos negociais de maior relevância para a estabilidade dos mercados.

No campo dos contratos internacionais, a Convenção de Viena, de 1980, assim como os Termos Internacionais do Comércio - INCOTERMS, compreendem, em sua estrutura, os elementos básicos de definição, de determinação das características e das condições gerais para a formalização dos contratos de compra e venda internacional.

Os INCOTERMS, criados no ano de 1936 e desde então editados e atualizados pela Câmara de Comércio Internacional (CCI), passaram a estabelecer as condições negociais que devem ser observadas entre empresas sediadas em países distintos, dispondo sobre uma regulação jurídica comum e uniforme válida para todos os contratos internacionais de compra e venda. De acordo com os INCOTERMS, que significa, em sua tradução literal, Termos Internacionais do Comércio, as condições e cláusulas padronizadas dos contratos de compra e venda internacional passaram a ser formuladas e tipificadas uniformemente. Assim, foram definidas as cláusulas básicas representativas dos mais utilizados contratos de venda internacional, sob as modalidades CIF (cost, insurance and freight) e FOB (free on board) e suas múltiplas variações, de acordo com as condições estipuladas entre vendedor e comprador para a entrega, embarque, seguro e para o transporte das mercadorias vendidas.

Na estipulação privada das operações de compra e venda no mercado interno, as cláusulas CIF e FOB foram também adotadas, por remissão analógica da

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legislação internacional da compra e venda mercantil, fato este que demonstra, de modo peculiar, que as empresas foram buscar nessas normas internacionais modelos contratuais não previstos, a esse nível de detalhamento, no sistema interno, ainda sob o regime do Código Comercial de 1850.

Nesse contexto, observando a prática mercantil, cumpre considerar que as normas genéricas da compra e venda reguladas pelo Código Civil não são suficientes nem apropriadas para disciplinar o incessante tráfico comercial que se realiza através dos contratos de compra e venda entre empresas. Desse modo, afigura-se necessária a instituição de um regime jurídico específico para regular essa principal modalidade de contratação mercantil, presente na maior parte das operações de produção e circulação de bens, quando não diga respeito a uma relação de consumo, que deve ser objeto de disciplina própria.

Neste sentido, alguns doutrinadores defendem, inclusive, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990) nas relações entre empresas, por exemplo, quando uma pequena empresa adquire um computador de uma grande empresa multinacional para uso na sua atividade comercial. Aqui, surgem duas correntes doutrinárias, na explicação de Paula Forgioni: a finalista, para a qual “não devem ser consideradas consumidoras as pessoas (especialmente as jurídicas) que adquirem produtos ou serviços utilizados em sua atividade profissional,”640 e a maximalista, cujos defensores, como Fábio Ulhoa Coelho,641 consideram que as normas do Código de Defesa do Consumidor devem proteger não apenas o consumidor em si, mas qualquer pessoa, física ou jurídica, que esteja em situação de vulnerabilidade ou presumida hipossuficiência econômica.642

640 Paula Andrea Forgioni, Teoria geral dos contratos empresariais, cit., p. 31. 641 De acordo com Fábio Ulhoa Coelho, “pode-se afirmar que, entre empresários iguais – isto é, com recursos para entabular negociações devidamente informados sobre a exata extensão dos direitos e obrigações em contratação -, aplica-se o regime cível; entre empresários desiguais, aplicam-se as normas especificamente editadas para o contrato (p. ex. as das leis sobre representação comercial) ou o regime do direito do consumidor (na hipótese de empresário consumidor ou vulnerável).” Por isso, na sua opinião, “submetem-se ao direito do consumidor, caracterizado pelas normas cogentes sobre as obrigações das partes, os contratos entre empresários em que um deles é consumidor (figura como destinatário final, sob o ponto de vista econômico e não físico, da mercadoria ou serviço) ou se encontra em situação análoga à de consumidor (vulnerabilidade econômica, social ou cultural).” (Curso de Direito Comercial, vol. 3, cit., p. 35-37). 642 A doutrina consumerista, todavia, representada por Cláudia Lima Marques, recusa que seja considerado consumidor o profissional empresário, qualquer que seja o seu porte, pois a finalidade do

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Alguns contratos estritamente mercantis ou empresariais, como a representação comercial autônoma (Lei 4.886/1965) e a concessão comercial de veículos automotores (Lei 6.729/1979), estabelecem um regime legal de proteção à empresa representante, geralmente de menor porte, nas suas relações com a empresa representada.

Em decorrência da condição econômica da empresa representada, de grande porte, existe, na maioria das vezes, uma relação de dependência comercial à qual se submete a empresa pequena ou média. Assim ocorre, segundo Paula Forgioni, nos contratos de distribuição, onde é comum “encerrar uma relação de poder desequilibrada, uma das partes sobrepondo-se à outra”, e essa “situação de dependência econômica influencia marcadamente a natureza das relações entre as partes e pode gerar explorações oportunistas”.643

Os conflitos decorrentes do desequilíbrio entre empresas de porte diferentes, ainda que vinculadas a contratos de colaboração, podem resultar em problemas tanto de ordem contratual como de práticas anticoncorrenciais, reprimidas pela legislação antitruste, gerando uma figura jurídica nova, diferente, definida por Paula Forgioni como “coibição do abuso de dependência econômica”644 da empresa menor, dominada, em relação à empresa maior, dominante.

Código de Defesa do Consumidor “é tutelar de maneira especial um grupo da sociedade que é mais vulnerável”, e quanto mais específico e restrito for o campo de aplicação das normas de proteção do consumidor, “ficará assegurado um nível mais alto de proteção para estes, pois a jurisprudência será construída em casos, onde o consumidor era realmente a parte mais fraca da relação de consumo e não sobre casos em que profissionais-consumidores reclamam mais benesses do que o Direito Comercial já lhes concede”. (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, 4ª edição, 2002, p. 254). 643 Paula Andrea Forgioni, Contrato de distribuição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, p. 344-345. 644 Paula Andrea Forgioni, Contrato de distribuição, cit., p. 347.

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5.4. Contratos mercantis regulados pela legislação especial

Não obstante a tentativa de unificação do direito das obrigações e dos contratos em espécie pelo Código Civil de 2002, continuam sendo regulados pela legislação comercial extravagante diversos tipos de contratos comerciais, cabendo destacar várias espécies de contratos interempresariais, denominados de contratos de colaboração mercantil. Na área específica dos contratos de colaboração mercantil podemos observar, com maior segurança, a incapacidade da legislação codificada de disciplinar, de modo completo e integral, as múltiplas relações comerciais entre empresas.

Os contratos de colaboração mercantil definem-se como sendo os vínculos negociais, com caráter de permanência, que se formam entre empresas comerciais visando a colocação e distribuição de produtos industrializados no mercado. Esses contratos, em sentido amplo, são considerados pela doutrina como contratos de representação, celebrados entre empresas industriais e empresas comerciais atacadistas ou varejistas ou mesmo através de representantes comerciais autônomos (Lei 4.886/1965).645

Os contratos de colaboração são contratos tipicamente interempresariais. Esses contratos demonstram-se imprescindíveis para a viabilização de certos tipos de operações comerciais, com participação destacada no processo de intermediação de negócios e de aproximação das empresas produtoras do mercado consumidor. A finalidade do vínculo de colaboração é o de representação de marcas e produtos para a comercialização no mercado, através da formação de redes de distribuição.

Uma rede de distribuição mercantil é constituída por empresas vinculadas contratualmente à empresa industrial titular da patente ou da marca de produto ou serviço, que atuam como pessoas jurídicas autônomas e formalmente independentes,

645 Waldirio Bulgarelli, Contratos Mercantis, cit., p. 145.

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sob cláusula de exclusividade, para a realização de negócios e colocação dos produtos da empresa representada no mercado. As empresas integrantes de determinada rede de distribuição exercem uma verdadeira função de intermediação de negócios (terceirização mercantil), facilitando a colocação de produtos no mercado e servindo como elo para a divulgação de marcas junto aos consumidores finais dos produtos comercializados.

Na prática comercial, destacam-se como principais tipos de contratos de colaboração mercantil os referidos e constantes no quadro abaixo:

Contratos de colaboração mercantil

Espécie contratual Legislação comercial Código 2002 (artigos)

Contrato estimatório ou consignação mercantil Código Comercial, art. 170 534 a 537 Comissão mercantil Código Comercial. arts. 165/190 693 a 709 Representação comercial ou agência Lei 4.886/1965 e Lei 8.420/1992 710 a 721 Distribuição Sem regulação 710 a 721 Concessão comercial Lei 6.729/1979 e Lei 8.132/1990 Sem previsão Franquia (franchising) Lei 8.955/1994 Sem previsão

Dessas espécies de contratos de colaboração, o contrato estimatório e a comissão, sem a caracterização da natureza mercantil, o contrato de agência e de distribuição, passaram a ser regulados pelo Código Civil. Contudo, o contrato de representação comercial, cuja lei especial (Lei 4.886/1965) é de conteúdo e especificidade bem mais ampla que o contrato de agência, continua ainda em vigor e considera a representação como espécie comercial de intermediação por excelência. É contrato mercantil, pois, e não de direito comum.

Dois tipos característicos de contratos de colaboração não foram regulados pelo Código de 2002, relativos a negócios tipicamente mercantis, e que não são exercidos senão através de empresas comerciais, compreendendo os contratos de concessão comercial de revenda de veículos automotores (Lei 6.729/1979) e o de franquia empresarial (Lei 8.955/1994).

A concessão comercial, de acordo com a sua definição legal, “é o contrato de distribuição de veículos automotores, de via terrestre, celebrado entre produtores e

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distribuidores, para fins de revenda de veículos e peças originais e prestação de serviços de assistência técnica” (Lei 6.729/1979, art. 1º). O contrato de concessão tem por objeto a representação da marca e a realização de vendas diretas aos consumidores e adquirentes de veículos automotores e máquinas agrícolas, com estipulações adicionais de garantia e assistência técnica.

A concessão comercial caracteriza-se, quanto ao seu elemento temporal, pela “permanência do vínculo contratual”646 que se forma entre a empresa industrial concedente e a empresa concessionária. Para exercer a função de integrante da rede de distribuição de determinada marca, deve a concessionária realizar investimentos e assumir custos operacionais e administrativos exigidos no contrato de concessão. Não se tratando de um mero contrato de revenda, mas sim de um contrato de natureza mista que envolve fornecimento, serviços, créditos e aplicação de tecnologias comerciais relacionadas com a marca, resulta disto a constatação de que o concessionário é quem suporta, financeiramente, o custo do processo final de distribuição dos automóveis fabricados pela concedente. Por sua conta e risco, como pessoa jurídica autônoma, a empresa concessionária é quem vai colocar, no mercado, os produtos da empresa concedente, sendo que esta, somente em casos especiais, pode vir a realizar operações diretas de venda final ou ao consumidor dos bens por ela fabricados (Lei 6.729/1979, art. 15).

Assim sendo, deve a formação e a execução do contrato de concessão comercial de veículos, ainda que típico negócio privado, subordinar-se a normas legais reveladoras de interesse público, a partir dos quais se erigem essas relações, de relevante importância e significação para a economia nacional, dada a representatividade econômica das atividades concernentes à produção, importação e comercialização de automóveis e utilitários. Mesmo que inaplicável a relações de natureza privada, contudo, por admissível extensão analógica, deve ser observado que o conceito de concessão pressupõe, se por prazo indeterminado, uma delegação contratual irrevogável e rescindível, apenas, na hipótese de culpa da concessionária (Lei 8.987/1995).

646 BRASIL, Ministério da Justiça, Exposição de Motivos ao Projeto da Lei nº 6.729/79, Diário do Congresso Nacional de 02/10/1979, p. 2.198.

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O contrato de concessão deve ser executado em condições especiais, gerando direitos concretos e com expectativa duradoura para ambas as partes. Na verdade, face à exigência de dedicação exclusiva à marca a que se filia, a empresa concessionária passa a depender economicamente da empresa concedente, que se apresenta em posição de supremacia contratual.647 Em decorrência dessa situação de prevalência e dominação da empresa concedente frente à empresa concessionária, faz-se necessário a intervenção estatal, seja através do dirigismo contratual imposto pela lei que regula o contrato de concessão mercantil (Lei 6.729/1979), seja pela recomposição do equilíbrio econômico entre as partes que pode ser objeto de decisão judicial.648

Ao analisar o desequilíbrio presente na relação contratual de concessão comercial, a doutrina francesa de Buisson, Lagger e Granrut destaca que “o concedente, como grande empresa, tende a tornar-se o senhor da relação contratual e fazer prevalecer, sobre cada concessionário isolado, a sua vontade, pois detém, graças à sua cadeia de monopólios justapostos, um terrível poder de domínio”.649 No mesmo sentido, na opinião do comercialista francês Jean Treard, o vínculo de subordinação e dependência existente entre a empresa concedente e a

647 Na opinião de Claude Champaud, o contrato de concessão comercial define-se como “[U]ma convenção pela qual um comerciante, denominado concessionário, põe sua empresa de distribuição a serviço de um comerciante ou industrial, denominado concedente, para assegurar, com exclusividade sobre um território determinado, durante um período limitado e sob a vigilância do concedente, a distribuição dos produtos cujo monopólio de revenda lhe é assegurado”. (La concession commerciale, in Revue Trimestrielle du Droit Commerciale, nº 24, Paris, 1963, p. 471, tradução livre). 648 A relação contratual constituída entre o concedente e o concessionário extrapola, todavia, o âmbito da relatividade dos efeitos desse vínculo, isto porque incide sobre a livre vontade das partes, um regime legal que estabelece regras protetivas em favor do concessionário, tal como observado por Carlos Alberto Senatore: “Contém assim a concessão comercial uma normativa complexa das relações entre concedente e concessionários, que se manifesta sob uma série de pactos que atingem não só as suas relações bilaterais como também a própria rede. Esses pactos se referem às partes, ao objeto da concessão, ao preço, à remuneração do concessionário, à exclusividade, à duração do contrato, sendo ainda freqüente pactos especiais que contêm manifestações mais ou menos amplas de um domínio da empresa concedente sobre a concessionária, tais como a cláusula de imposição do preço de revenda, a cláusula de quotas, de estoques, etc., chegando mesmo a coarctar de tal maneira a livre atuação do concessionário que este não pode dispor a seu livre arbítrio dos benefícios que resultam de sua exploração mercantil.” (A concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores de via terrestre no Brasil, in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, Editora RT, Nova Série, nº 36, Outubro/Dezembro 1979, p. 110). 649 Bernard Buisson, Michel Lagger e Bernard du Granrut, Étude sur le contrat de concession exclusive, Paris, Sirrey, 1968, p. 8.

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concessionária, evidencia o contrato de concessão sob o aspecto meramente formal.650

Essas características que integram a estrutura normativa do contrato de concessão comercial destacam a sua natureza mercantil e a comercialidade das suas obrigações. Cabe assim observar que a concessão é um contrato estritamente mercantil, porque somente empresas comerciais podem fazer parte dessa relação.

De igual modo, é também contrato estritamente mercantil e celebrado entre empresas, o contrato de franquia empresarial ou franchising, regulado pela Lei 8.955/1994. De acordo com o conceito legal exposto no seu art. 2º:

“Franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associada ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício.”

Segundo Fran Martins, franquia “é o contrato que liga uma pessoa a uma empresa, para que esta, mediante condições especiais, conceda à primeira o direito de comercializar marcas ou produtos de sua propriedade sem que, contudo, a essas estejam ligadas por vínculo de subordinação.”651 Orlando Gomes também destaca o caráter exclusivamente empresarial do contrato de franquia, ao definí-lo como sendo “a operação pela qual um empresário concede a outro o direito de usar a marca de produto seu com assistência técnica para a sua comercialização, recebendo, em troca, determinada remuneração”.652

650 “Na verdade, como também anotam os doutrinadores, o contrato entre as partes assume aspecto puramente formal, porquanto o concedente, determinando e controlando toda a atividade do concessionário, em suas compras, preços de mercadorias, estoques, margem de comercialização, áreas de atuação e demais atos de sua operação, estabelece uma subordinação econômica sob aparência de uma independência jurídica” (Jean Treard, Revue Trimestralle du Droit Commercial, Paris, 1972, nº 3, apud Nívio Terra, Contrato de concessão comercial – margem de comercialização, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, Editora RT, Nova Série, nº 71, 1988, op. cit., p. 97). 651 Contratos e obrigações comerciais, cit., p. 244. 652 Contratos, atualizado por Humberto Theodoro Junior, Rio de Janeiro, Forense, 21ª edição, 2000, p. 467.

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Sendo um contrato estritamente mercantil, a franquia tem como objeto diversos negócios e operações comerciais, reguladas pela legislação não codificada, especialmente pela lei de marcas e patentes (Lei 9.279/1996) compreendendo, ao mesmo tempo, uma cessão do direito de exploração de marca, a cessão do direito de exploração de patentes, o direito de venda ou revenda exclusiva ou semi-exclusiva de produtos, o direito de prestação exclusiva ou semi-exclusiva de serviços comerciais e a cessão do direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócios ou de sistema operacional.

O contrato de franchising tem natureza mista, pois contempla no seu objeto tanto a cessão de marcas e tecnologias comerciais, como uma prestação de serviços, e pode conter, ainda, obrigações relacionadas com a distribuição exclusiva de certos produtos.

Por exigência da própria lei, franqueador e franqueado devem ser empresas comerciais, constituída a franqueada especialmente para a exploração da franquia, ou vinculando-se o franqueador a empresa já existente, como empresa individual ou sociedade comercial regular, tendo como característica formal a autonomia jurídica do franqueado, enquanto não empregado ou dependente economicamente do franqueador. Essa autonomia do franqueado, todavia, é apenas jurídica e administrativa, mas não comercial ou operacional, nas quais é dependente da tecnologia transferida pelo franqueador.

Assim, nos contratos de colaboração mercantil, existem diversas espécies aplicáveis a cada tipo de negócio, compreendendo desde uma forma jurídica menos complexa, como presente nos contratos de distribuição, até alcançar formas jurídicas mais complexas, como no caso dos contratos de franchising.

Não é demais destacar que o contrato de franquia empresarial é uma das modalidades principais de exercício da atividade mercantil na atualidade, estando presente na maioria das operações de colaboração, nos diversos ramos de comércio, principalmente nos setores de vestuário e alimentação, representando grande parte da estrutura lojista presente nos grandes centros de compra (shopping centers).

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Esses contratos de colaboração demonstram o fato concreto de que as empresas produtoras necessitam, cada vez mais, de contar com estruturas descentralizadas e capilarizadas para a distribuição, colocação e venda, junto aos consumidores, das mercadorias por elas industrializadas, reduzindo seus custos de distribuição e repartindo os riscos da atividade comercial.

Todavia, essa realidade comercial de ampla significância no mercado não foi pensada nem minimamente contemplada na estrutura contratual do Código Civil de 2002. A pretensa unificação do direito das obrigações, por ser parcial e restrita, não pode ser considerada cientificamente como bastante para suprimir a dualidade econômica que separa as atividades estritamente civis das atividades mercantis, cujo conteúdo normativo continuará sendo parte integrante de um direito autônomo, com objeto próprio e método diferenciado daquele aplicável ao direito comum, dos contratos entre particulares.

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5.5. A nova classificação dos contratos empresariais

Com a supressão da natureza mercantil dos contratos e das relações econômicas das empresas, o Código Civil de 2002 simplesmente optou por recusar qualquer critério de classificação dos contratos de direito privado em razão da natureza do seu objeto ou das partes integrantes do vínculo negocial. Como observado, de acordo com o regime neutro ou estéril do Código, todo contrato é de direito privado, seja ele um contrato típico ou atípico, esteja ou não regulado no regime codificado.

Todavia, como primeira manifestação de inconsistência normativa desse regime codificado diante da realidade econômica e mesmo do direito positivo, o legislador do Código não foi nem mesmo capaz de reconhecer a existência de um sistema próprio de regulação das relações de consumo e de proteção dos direitos dos consumidores nas relações contratuais.

Desde a Constituição da República de 1988, a proteção do consumidor foi elevada a categoria de princípio constitucional (CF, art. 5º., XXXII; art. 170, V), sendo então o regime especial das relações de consumo regulamentado pela Lei 8.078/1990. Adotando como pressuposto a necessidade de proteger o consumidor na condição de parte economicamente mais fraca,653 a legislação consumerista introduziu um regime contratual diferenciado, que passou a reger as relações contratuais subsumidas na sua disciplina.

Em qualquer relação contratual entre um fornecedor e um consumidor, o regime jurídico diretamente aplicável é o da legislação de defesa do consumidor, ficando as normas obrigacionais do Código Civil relegadas ao plano periférico e supletivo, somente incidentes no caso de inexistência de norma específica na lei especial. De

653 De acordo com o art. 4º da Lei 8.078/90, foi instituída por essa lei a Política Nacional de Relações de Consumo, tendo por objetivo “o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de consumo.”

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acordo com esse regime especial de proteção do consumidor, as práticas comerciais (arts. 29 a 44) e as relações contratuais (arts. 46 a 54) reguladas por essa lei, passam a ser prevalentes de modo absoluto, inclusive para fins de interpretação dos contratos de consumo.654

Considerando esse regime específico e diferenciado de proteção do consumidor, é válido reconhecer um primeiro critério de classificação para os contratos privados, que devem ser, a partir de então, divididos em duas espécies: contratos civis e contratos de consumo.

O Código Civil de 2002, evidenciando, também sob esse aspecto, a sua desatualização e absurda defasagem diante da evolução legislativa das últimas décadas, desconhece as relações de consumo e não contém uma só disposição normativa dirigida à proteção do consumidor. Em apenas um único artigo (art. 1.467), ao tratar do penhor legal, o Código se refere ao consumidor, ao considerar que as bagagens, jóias ou dinheiro dos “consumidores ou fregueses” constituem penhor legal em favor dos hospedeiros ou fornecedores de pousada pelas dívidas contraídas. Mas, nessa norma, o consumidor é simplesmente equiparado ao freguês, como simples cliente, sem qualquer diferenciação de caráter protetivo.

Sob um segundo aspecto, a partir da constatação de que a unificação do direito das obrigações não importou na extinção do direito comercial como ramo autônomo do direito privado, tal como reconhecido pelo legislador, devemos admitir que os contratos celebrados entre empresas, diretamente relacionados com o objeto econômico das partes, não podem ser qualificados na mesma vala comum dos contratos civis. Tal situação específica ocorre, por exemplo, nas relações entre uma empresa fabricante de automóveis e uma empresa concessionária integrante da sua rede de distribuição.

654 A relação contratual de consumo é aquela que se constitui entre um consumidor, considerado este como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (Lei 8.078/90, art. 2º), e um fornecedor de bens ou serviços, definido pela lei como “pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços” (art. 3º).

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Estando esse contrato tipificado em uma lei especial, como disciplinado na lei de concessão comercial de veículos automotores (Lei 6.729/1979), e estabelecendo essa mesma lei que esse contrato é comercial, por esse motivo não se deve recusar o enquadramendo desse negócio jurídico como um contrato empresarial.

Seguindo essa ordem de raciocínio, Fábio Ulhoa Coelho entende, de modo acertado e coerente que, em matéria contratual, “o regime jurídico aplicável passou a variar segundo o contrato vinculasse empresário a empresário (direito comercial), empresário a não empresário (direito do consumidor) ou não empresário a não empresário (direito civil)”.655

No mesmo sentido, Paula Castello Miguel reconhece a existência desses três regimes contratuais diferenciados, o de tutela dos consumidores, o de direito civil e o de direito empresarial.656 Na esfera dos contratos celebrados pelas empresas, deve ser ainda aceita a distinção entre os contratos empresariais, como sendo “aqueles firmados por empresários, não se levando em conta o outro pólo da relação contratual”, e os contratos interempresariais, que são aqueles em que, nos dois pólos da relação jurídica, estão presentes duas empresas.657

Também Waldirio Bulgarelli adota esse critério de classificação, entendendo que os contratos das empresas subdividem-se em “empresariais e interempresariais, tendo em conta que estão destinados aos negócios das empresas entre si e a destas com não-empresários”.658 Segundo, ainda, Bulgarelli, serão sempre empresariais, por pressupor a participação de uma empresa, os contratos de arrendamento mercantil ou leasing, de alienação fiduciária em garantia, a locação mercantil, a compra e venda mercantil entre empresas, o seguro e o cartão de crédito, no vínculo entre o comerciante e a empresa administradora do cartão.659

655 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 3, cit., p. 18. 656 Paula Castello Miguel, Contratos entre empresas, cit., p. 58. 657 Paula Castello Miguel, cit., p. 62. 658 Waldirio Bulgarelli, Contratos e títulos empresariais: as novas perspectivas, São Paulo, Atlas, 2001, p. 28. 659 Waldirio Bulgarelli, Diretrizes gerais dos contratos empresariais, Novos contratos empresariais, Carlos Alberto Bittar, org., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990, p. 19.

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Os contratos interempresariais, além de celebrados entre empresas, destinam-se ao atendimento de uma função econômica, cumprem a finalidade de regular relações estritas de caráter profissional, e assim devem ser classificados como categoria distinta dos contratos civis e dos contratos aplicáveis às relações de consumo.

Mesmo contrariando a diretriz unificadora do Código Civil de 2002, a doutrina recusa essa generalização tecnicista e inapropriada em face da realidade de mercado, como assim considera a crítica de Salvatore Monticelli, ao observar que, sob o regime original do Código italiano de 1942, “a expressão contrato comercial esteve por décadas banida do léxico jurídico, ainda que para efeitos meramente descritivos”.660

Contudo, na atualidade, a expressão contratos empresariais voltou a ser adotada pela doutrina, a partir da teimosia de alguns autores, diz Salvatore Monticelli, que defendem a legitimidade e a utilidade de se considerar os contratos empresariais como uma categoria específica. A designação de contrato empresarial refere-se, exclusivamente, segundo Monticelli, “aos contratos nos quais uma das partes é caracterizada pelo status de empresa ou empresário e o contrato é estipulado como função instrumental do exercício da empresa”.661

Observa Monticelli que, a partir do início da década de 80 do século passado, profundas mudanças foram sendo introduzidas na legislação italiana, em consequência da recepção das diretrizes comunitárias da União Européia, e assim a figura tradicional e a disciplina dos contratos empresariais, progressivamente, se afastou do modelo codificado. Ao largo da legislação codificada, “foram nascendo vários microssistemas contendo a disciplina de tipos específicos e de classes de contratos, razão pela qual o Código perdeu a sua centralidade”. E esse fenômeno legislativo “não apenas assume proporções de relevância, incidindo de maneira significativa em todos os setores da vida econômica, mas, sobretudo, denota-se pela finalidade de regulação do mercado, delineando uma ordem de maior eficiência e

660 Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, I contratti dell’Impresa, cit., p. 1. 661 Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, cit., p. 2.

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equidade entre os protagonistas institucionais do mercado, da empresa e os consumidores, assim como das empresas entre si”. 662

O regime do direito de empresa, como posto no Código Civil de 2002, não faz qualquer referência ao mercado, como ambiente no qual se realizam e se verificam as operações econômicas nos mais variados níveis. Apenas em dois dispositivos (artigos 486 e 528) o Código faz menção ao mercado, mas com outro significado, relativo ao mercado de bolsa ou de capitais, ao tratar do contrato de compra e venda e do contrato com reserva de domínio. Portanto, para o regime codificado, o mercado como ambiente econômico simplesmente não existe, e tal omissão é reveladora do nível de alienação do legislador diante dos fatos concretos da realidade das empresas.

Os contratos empresariais, no entendimento Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, devem servir como disciplina especial de regulação do mercado, “tanto das relações entre consumidores e empresários quanto, como assim concebido mais recentemente, nas relações entre empresas, e essa concepção constitui uma das finalidades prioritárias da legislação nacional de derivação comunitária, e nesse contexto normativo se reafirma a redescoberta dos contratos empresariais como categoria unitária”.663

Enquanto a doutrina italiana vem modificando e atualizando o seu entendimento, ao reconhecer a necessidade da consolidação de uma disciplina específica para os contratos empresariais, e a legislação mais recente desconsidera o modelo unificado herdado do Código fascista de 1942, o direito positivo brasileiro claramente retrocede ao se estruturar a partir de um sistema superado pela modernidade. Os novos paradigmas tecnológicos e culturais resultantes dos avanços das telecomunicações e da informática, a existência de um mercado virtual de transações eletrônicas, as operações automatizadas, a influência e o poderio econômico das grandes corporações transnacionais, todos esses fatos de relevante influência na sociedade moderna não foram, nem mesmo superficialmente, tratados ou referidos pelo regime da empresa no Código de 2002.

662 Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, I contratti dell’Impresa, cit., p. 2. 663 Salvatore Monticelli e Giacomo Porcelli, cit., p. 3.

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A preocupação dominante do legislador brasileiro, ao desqualificar a natureza comercial da empresa como uma instituição de mercado, teve como conseqüência resultante a positivação de uma legislação obsoleta, retrógrada, divorciada e alheia aos fatos concretos da atual era da pós-modernidade e da globalização. Ao deixar de reconhecer a classificação dos contratos empresariais como categoria especial de regulação de determinadas relações econômicas no mercado, o Código de 2002 nem mesmo pode ser compatibilizado com a legislação de regência de modalidades contratuais tipificadas como mercantis, e que permanecem em vigor. Assim se verifica, por exemplo, no caso dos contratos bancários, de arrendamento mercantil (leasing), de franquia empresarial, de concessão mercantil, de representação comercial, de faturização (factoring), dentre outros.

Os contratos empresariais, nova denominação doutrinária dos contratos comerciais ou mercantis, devem ser admitidos como modalidades especiais de negócios jurídicos realizados pelas empresas. Como primeiro critério de classificação, os contratos empresariais podem ser subdivididos em contratos empresariais em sentido amplo e contratos empresariais em sentido estrito, ou interempresariais, conforme a qualificação das partes envolvidas na relação jurídica, da forma seguinte:

1) Contratos empresariais em sentido amplo – assim se caracterizam os contratos celebrados pelas empresas em decorrência do desempenho da sua atividade ou objeto econômico, sendo que o outro sujeito da relação jurídica não é uma empresa, mas sim uma pessoa física ou jurídica, de direito privado ou direito público; esta categoria pode ser subdividida em:

a) Contratos de consumo – quando o contrato está submetido à legislação de defesa do consumidor, que determina o regime jurídico das relações de consumo, qualificando-se a empresa como fornecedor de bens ou serviços;

b) Contratos administrativos – são os contratos celebrados entre empresas e órgãos ou entidades da administração pública, resultantes de processos de licitação, e que passam a ser regulados, em primeiro grau, por normas de direito público, mas que não ficam dissociados do regime geral dos contratos, e a execução desses contratos realiza-se através de práticas mercantis próprias das empresas privadas;

c) Contratos de bolsa e de atos societários – estão representados pelos contratos em que investidores adquirem ações e outros títulos de emissão das sociedades mercantis em bolsas de valores ou no mercado secundário, bem

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como de quotas de outros tipos societários, na condição de sócios de empresas;

2) Contratos empresariais em sentido estrito ou interempresariais – representam todas as espécies de contratos celebrados entre empresas mercantis, em que ambas as partes são empresas e a finalidade do contrato está relacionada com o objeto de exploração econômica, sendo desse modo caracterizados como contratos empresariais puros, que devem estar submetidos ao regime especial de Direito Comercial.

Em segundo nível, resultante da natureza do negócio ou do objeto mercantil correspondente, os contratos empresariais podem ser classificados de acordo com o seguinte critério:

1) Contratos de troca – compreende as operações típicas de compra e venda de bens e mercadorias entre empresas produtoras e distribuidores atacadistas ou varejistas, podendo ser subdivididos em:

a) Compra e venda simples – são as operações de venda de bens para pagamento à vista ou financiada pelo vendedor;

b) Compra e venda complexa – são os contratos de fornecimento ou de entrega de

bens em partidas ou lotes seqüenciados em prazos pré-determinados e os contratos de venda de bens e equipamentos com estipulação de assistência técnica ou garantia;

2) Contratos de uso de bens – nesta modalidade devem ser classificados os contratos que tenham por objeto o uso de bens com finalidade comercial, como a locação de móveis e imóveis e do ponto comercial, aluguel de bens com opção de compra (leasing) e os contratos de locação de lojas e espaços comerciais em shopping centers;

3) Contratos de colaboração mercantil - são os contratos celebrados entre empresas produtoras e empresas integrantes de redes de distribuição, sendo tipos característicos os contratos de representação comercial, agência ou distribuição, concessão comercial e franquia empresarial (franchising);

4) Contratos de serviços – estão neste grupo inseridos os contratos de prestação de serviços nas áreas de transporte, por via terrestre, marítima ou aérea, de assistência técnica, manutenção, empreitada, construção, locação de mão-de-obra, terceirização e outros conexos com essa modalidade de serviços de terceiros;

5) Contratos financeiros e bancários – compreende toda a gama e espécies de contratos de empréstimo, financiamento, mútuo, cartão de crédito e demais modalidades de operações realizadas através de instituições financeiras;

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6) Contratos de seguro – estão nesta categoria enquadrados os contratos de seguro celebrados através de companhias seguradoras, para a cobertura de riscos de vida, acidentes e bens;

7) Contratos societários – são representados pelos negócios de aquisição de ações ou quotas de sociedades comerciais, operações de bolsa de valores, transferência de controle societário, acordo de acionistas e de alienação ou arrendamento de estabelecimento comercial.

8) Contratos de cessão e transferência de tecnologia – nesta categoria devem ser classificados os contratos de cessão de direitos de propriedade industrial sobre marcas e patentes, de programas de computador (software) e de sistemas e processos tecnológicos (know-how e engineering).

As categorias e espécies de contratos relacionados acima, à primeira impressão, poderiam ser confudidos com a própria classificação dos atos de comércio, do modo como constava da enumeração do Código Comercial francês de 1807, ou do Regulamento 737, de 1850, no Brasil. Diante dessa semelhança, talvez por esse motivo, os legisladores do Código italiano de 1942 e do Código Civil de 2002, hajam recusado ou negado a qualificação de empresarial para essas modalidades contratuais típicas presentes nas relações das empresas.

Considerando os critérios de classificação apresentados acima, cabe reconhecer que, em virtude da especificidade dos contratos empresariais, estes devem merecer um tratamento legislativo próprio e singular, principalmente pela constatação óbvia de que as normas contratuais codificadas são insuficientes e incapazes de fornecer regras disciplinadoras aplicáveis aos diversos tipos de atos e negócios empresariais.

Esta demanda necessária por um regime especial para os contratos empresariais, ainda que seja para a fixação de cláusulas gerais, decorre das exigências de mercado, da necessidade da legislação definir e tipificar os tipos contratuais mais importantes para o normal desempenho das funções econômicas. Deveriam ser estabelecidas, no mínimo, regras e limites para a aplicação das cláusulas gerais, inerentes aos princípios da boa-fé, da função social do contrato e da equivalência material.

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Os contratos empresariais, derivados dos atos das empresas, são caracterizados como atos em massa, cujo modo de execução encontra-se relacionado e indissoluvelmente ligado com o objetivo lucrativo e a natureza especulativa característica dos negócios mercantis. Diante das peculiaridades próprias dos contratos celebrados pelas empresas, não se demonstra compatível com a realidade econômica considerar que os contratos empresariais derivam de um tronco comum, que seria originário do sistema de direito civil, como assim consideram alguns teóricos defensores da unificação,664 cujos argumentos se limitam a reproduzir as justificativas formuladas pelos autores do projeto do Código de 2002.

Essa doutrina minoritária chega ao ponto extremo de argumentar, baseada na concepção unificadora, que o direito comercial foi extinto e suprimido em virtude da revogação do sistema dos atos de comércio.665 Desse modo, os contratos empresariais não poderiam mais subsistir como categoria autônoma, apesar do Código de 2002 ter se limitado, praticamente, a reproduzir as mesmas espécies contratuais presentes no Código Civil de 1916.

664 Marcia Mallmann Lippert, A empresa no Código Civil – Elemento de unificação do Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 154. 665 De acordo com o entendimento dessa doutrina minoritária, o Código Civil de 2002 teria revogado o regime dos atos de comércio, sendo este substituído pelo ato empresarial, e assim, “se o ato comercial não mais existe e o Direito Comercial é o direito dos atos de comércio, necessariamente a conclusão lógica é que o Direito Comercial tampouco existe” (Marcia Mallmann Lippert, A empresa no Código Civil – Elemento de unificação do Direito Privado, cit., p. 156).

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Capítulo 6

A unificação parcial do direito societário

6.1. A nova classificação das sociedades; 6.2. A sociedade simples como tipo societário genérico; 6.3. As características e novo modelo burocrático da sociedade limitada; 6.4. Principais entraves na regulação da sociedade limitada; 6.5. Aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas; 6.6. A revisão necessária da sociedade limitada.

6.1. A nova classificação das sociedades

O Código Civil de 2002 instituiu um novo regime das sociedades no direito positivo brasileiro, ao promover a unificação parcial do direito societário, buscando disciplinar, em um sistema comum, os tipos societários de direito civil e os de direito comercial. Essa unificação foi parcial e não total porque as sociedades por ações (Lei 6.404/1976) e as sociedades cooperativas (Lei 5.764/1971) continuam sendo regidas por leis especiais, extravagantes ao Código. Desse modo, as normas do Código Civil não podem ser consideradas como um código societário, na medida em que não abrangem, principalmente, as sociedades anônimas, que representam o mais complexo tipo societário do direito comercial.666

O Código Civil de 2002 passou a classificar as sociedades, de um modo geral, conforme a sua situação legal, em sociedades personificadas e sociedades não personificadas, e segundo o objeto da atividade exercida, em sociedades simples e sociedades empresárias. As sociedades são espécies corporativas de associações,

666 Como anteriormente observado, o Projeto do Código das Obrigações de 1965 regulava todos os tipos societários de direito privado, inclusive a sociedade por ações, a partir da perspectiva do contrato de sociedade como uma das modalidades obrigacionais.

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integradas por pessoas, mas cuja existência depende da vontade dos seus sócios, que podem livremente extinguir a sociedade. As associações civis, por seu turno, apesar de estar enquadradas no primeiro nível classificatório das pessoas jurídicas, reguladas nos termos dos artigos 44 a 52 do Código Civil, são dotadas de autonomia funcional, do mesmo modo que as fundações, e caso sejam extintas, o patrimônio da entidade reverte para outra pessoa jurídica com a mesma finalidade. As pessoas jurídicas, de modo geral, estão assim classificadas no direito positivo brasileiro:

Classificação das pessoas jurídicas Direito Público Pessoas jurídicas Direito Privado

Associações Pessoas de direito privado Sociedades

(CC 2002, art. 44) 667 Fundações

As sociedades são formas contratuais destinadas ao exercício de atividade econômica, podendo ser assim classificadas, a partir do novo critério definido pelo Código Civil de 2002:

Classificação das sociedades Sociedade em comum Não Personificadas Sociedade em conta de participação Sociedades Sociedade simples Personificadas Sociedade empresária

667 A EIRELI, criação da Lei 12.441/2011, não foi incluída, aqui, como pessoa jurídica, por tratar-se de modalidade artificial, não representando a configuração característica de uma pessoa jurídica.

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As sociedades não personificadas, de acordo com o Código de 2002, são aquelas em processo de constituição e também aquelas outras que não se constituem de modo regular, ou seja, que não levaram os seus atos constitutivos para registro perante a Junta Comercial (sociedade empresária) ou no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (sociedade simples). São espécies de sociedades não personificadas a sociedade em comum (arts. 986 a 990) e a sociedade em conta de participação (arts. 991 a 996)

A sociedade em comum, assim como a sociedade em conta de participação, podem existir de fato, mas não adquirem personalidade jurídica, porque o ato constitutivo respectivo, o seu contrato social, não foi levado para arquivamento ou registro na Junta Comercial. Por isso, a existência da sociedade não personificada limita-se a produzir efeitos, apenas, entre os sócios que a integram, não valendo, assim, perante terceiros, que contratam com uma pessoa ou mais pessoas e não com uma sociedade.

A doutrina tratou de estabelecer uma divisão interessante e útil para as sociedades não personificadas, distinguindo-as como sociedades de fato e sociedades irregulares. A sociedade de fato é aquela em que seus sócios integrantes exercem atividade econômicam em comum, mas não providenciaram a elaboração de um contrato escrito, dispondo sobre os direitos e obrigações recíprocos. A constituição da sociedade ocorreu através de acertos verbais ou de outros documentos e provas sem um contrato formal.

Na opinião de Rubens Requião, a sociedade de fato é caracterizada como sendo aquela “que não está documentada, que viceja no mundo fático”,668 e a sua existência somente pode ser demonstrada com base em elementos de prova, das quais se possa inferir que houve alguma comunhão de interesses entre pessoas objetivando auferir resultados econômicos e repartí-los, mediante a divisão dos lucros. A sociedade irregular, por sua vez, possui um contrato escrito, assinado pelos sócios, contudo, o contrato não foi tornado público mediante seu arquivamento no registro competente.

668 Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 268.

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Mas, tanto no caso da sociedade de fato, como da sociedade irregular, nenhuma das duas adquire personalidade jurídica, e se fazem representar pela pessoa física ou jurídica exterior que aparece e contrata perante terceiros, como se fosse em seu próprio nome, com responsabilidade ilimitada pelas obrigações e dívidas que contrair.

A conta em participação é um tipo peculiar de sociedade em comum, tratando-se, na lição de Bulgarelli, de “sociedade interna, que nem sempre se exterioriza, permanecendo oculta”.669 Prescreve o art. 991 do Código Civil de 2002:

“Na sociedade em conta de participação, a atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade, participando os demais dos resultados correspondentes.”

A sociedade em conta de participação possui, assim, dois tipos de sócios, um ou mais sócios ostensivos e um ou mais sócios ocultos, que o novo Código denomina de sócios participantes. O sócio ostensivo, que pode ser tanto uma pessoa física como uma pessoa jurídica, é aquele que aparece e se relaciona perante terceiros, assumindo, em seu nome, os compromissos e as responsabilidades pelos atos praticados. O sócio oculto, que investiu dinheiro e colocou esse capital nas mãos do sócio ostensivo, apenas participa dos resultados da exploração, auferindo os lucros, se exitosa a empreitada. A sociedade em conta de participação existia com essas mesmas características e era regulada pelo Código Comercial de 1850 (arts. 325 a 328). A principal diferença decorrente do Código de 2002 é que essa modalidade de sociedade sem personalidade jurídica pode ser utilizada tanto em operações empresariais ou mercantis, como também em negócios civis.

As sociedades personificadas compreendem as sociedades regulares que se constituem legalmente, adquirindo personalidade jurídica a partir do arquivamento dos seus atos constitutivos no registro competente. As sociedades personificadas são divididas ou classificadas pelo novo Código Civil em sociedade simples e sociedade empresária.

669 Sociedades Comerciais, cit., p. 49.

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A sociedade simples, em princípio, por ter natureza civil e não empresarial, deve arquivar o seu contrato social em Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas (Lei 6.015/1976, arts. 114 a 126). A sociedade empresária, da sua parte, possuindo natureza comercial, deve promover o arquivamento do seu contrato social no Registro Público de Empresas Mercantis, função desempenhada pelas Juntas Comerciais (Lei nº 8.934/1994).

De acordo com o art. 982 do Código Civil de 2002, “Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais”, estabelecendo o parágrafo único do mesmo artigo que “Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.” A sociedade empresária, também denominada por alguns autores e pela jurisprudência como sociedade empresarial, seria a própria titular do exercício da empresa, desempenhando atividade de produção ou circulação de bens ou de serviços.

São sociedades personificadas as sociedades constituídas regularmente e que adquirem personalidade jurídica com o registro ou arquivamento dos seus atos constitutivos no órgão de registro competente, cujo tipo societário vem a ser definido de modo específico na legislação própria, tal como constante do quadro a seguir:

Tipos societários no Código Civil de 2002

Tipo Societário Código Civil de 2002 (artigos)

1) Sociedade simples 997 a 1.038 2) Sociedade em nome coletivo 1.039 a 1.044 3) Sociedade em comandita simples 1.045 a 1.051 4) Sociedade limitada 1.052 a 1.087 5) Sociedade anônima 1.088 e 1.089 – Lei 6404/1976 6) Sociedade em comandita por ações 1.090 a 1.092 – Lei 6404/1976 7) Sociedade cooperativa 1.093 a 1.096 – Lei 5764/1971

No que concerne ao tipo societário, entre as empresas regulares, o Código Civil de 2002 apenas regulou, efetivamente, a sociedade limitada, considerando que o regime das sociedades por ações, que compreende a sociedade anônima, a sociedade em comandita por ações e a subsidiária integral, continua sendo disciplinada pela legislação especial (Lei 6.404/1976). Portanto, sob esse critério de

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classificação, cabe considerar, quanto ao tipo societário válido, apenas as sociedades comerciais cujos modelos são aplicados, na prática, no Brasil, apesar do Código de 2002 ainda regular, de modo inútil, a sociedade em nome coletivo (artigos 1.039 a 1.044) e a sociedade em comandita simples (artigos 1.045 a 1.051), tipos societários ultrapassados, que caíram em completo desuso desde o início do século XX.

No projeto do Código das Obrigações de 1965, na parte dedicada aos empresários e às sociedades, também de autoria de Sylvio Marcondes Machado, a sociedade anônima foi inserida no regime geral de direito societário (arts. 1.276 a 1.406).670 O legislador do Código de 2002 não ousou tanto, apesar da tentação em proceder à unificação integral do direito societário.671 Todavia, reconhecendo a alto grau de especialização e a complexidade da sociedade anônima, bem assim sua incompatibilidade ontológica com o regime geral do direito de empresa, o Código Civil limitou-se, de maneira abreviada (art. 1.088), a reproduzir, apenas, o conceito de sociedade anônima constante da Lei 6.404/1976 (art. 1º).672

O Código Civil de 2002, de modo contraditório, manteve e ainda regula tipos totalmente inúteis de organização societária, como a sociedade em nome coletivo (arts. 1.039 a 1.044) e a sociedade em comandita simples (arts. 1.045 a 1.051). Essas sociedades, desde que surgiu no direito brasileiro a sociedade por quotas de responsabilidade limitada, em 1919, caíram em completo desuso e não existem mais, desapareceram da vida comercial.673 As sociedades em nome coletivo e em comandita simples desapareceram porque pertenciam a uma época (séculos XVIII e XIX) em que a responsabilidade dos sócios era ilimitada em face das obrigações sociais. Com a instituição do modelo simplificado de sociedade com responsabilidade limitada, esses tipos foram abandonados, porque inapropriados para o exercício de atividade especulativa, onde está presente o risco ou álea comercial. Nada justifica a manutenção dessas espécies superadas no Código Civil de 2002, podendo esse

670 BRASIL, Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Comissão de Estudos Legislativos, Projeto de Código das Obrigações, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1965, op. cit, p. 124-144. 671 Miguel Reale, Estudos preliminares do Código Civil, cit., p. 55. 672 Código Civil de 2002, Art. 1.088. Na sociedade anônima ou companhia, o capital divide-se em ações, obrigando-se cada sócio ou acionista somente pelo preço de emissão das ações que subscrever ou adquirir. Art. 1.089. A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código. 673 Paulo Penalva Santos, Comentários ao Código Civil Brasileiro – Do Direito de Empresa, vol. IX, Newton de Lucca, org., Rio de Janeiro, Forense-FADISP, 2005, p. 240.

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grave equívoco legislativo ser decorrente da preocupação do legislador brasileiro em decalcar, fielmente, o modelo italiano do Código de 1942.

Enquanto isso, na Europa, a legislação de diversos países, por orientação das diretrizes comunitárias, vem criando tipos mais flexíveis de organização empresarial, como a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada ou a empresa individual de responsabilidade limitada, como ocorreu na Alemanha (1980), em Portugal (1986), na França (1985) e mais recentemente na Espanha (2005), só para ficar nesses exemplos.674 Com pesar, observa Vera Helena de Mello Franco, “o novo Código Civil deixa passar em branco a possibilidade de introdução da sociedade limitada unipessoal em descompasso flagrante com as leis modernas”.675

O Código Civil de 2002 está filiado à concepção de que a sociedade será empresária se tiver por objeto o desempenho de atividade de produção ou circulação de bens ou de serviços. Desse modo, alguns doutrinadores entendem superada a teoria que diferenciava a sociedade comercial da sociedade civil em razão da finalidade lucrativa, segundo a qual se considerava como comercial a sociedade que perseguia o lucro como objetivo necessário para a remuneração do capital investido.

No Brasil, prevalece o sistema de ampla liberdade dos sócios para a constituição de sociedades comerciais ou empresárias, qualquer que seja a sua espécie. É bastante que se atenda ao requisito mínimo da pluripessoalidade, ou seja, a presença de dois ou mais sócios no momento da constituição da sociedade. Assim, os sócios podem decidir pela criação de qualquer tipo de sociedade, seja uma sociedade limitada ou mesmo uma sociedade anônima, bastando que definam a espécie desejada no contrato ou estatuto social.

Se a forma societária adotada pelos sócios for a de uma sociedade comercial ou empresária, mesmo que para o exercício de atividade civil, como no caso de empresa rural, um educandário ou instituição hospitalar, a sociedade é considerada como empresária em razão da forma, devendo arquivar seus atos constitutivos

674 Calixto Salomão Filho, A sociedade unipessoal, cit., p. 11. 675 Vera Helena de Mello Franco, O triste fim das sociedades limitadas no novo Código Civil, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo, Malheiros, nº 123, julho/setembro 2001, p. 84.

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perante a Junta Comercial, e passa a se reger pela legislação mercantil, codificada e não codificada. Em razão da natureza mercantil da atividade, o Código Civil de 1916 vedava (art. 1.364) que uma atividade comercial pudesse ser realizada ou desempenhada através de sociedade civil, o que não era possível em virtude do objeto comercial da empresa, voltado para a prática de atos de comércio, tal como agora prescreve o art. 982 do Código Civil de 2002.676 Para o desempenho de atividades não empresariais, o Código em vigor reserva a forma da sociedade simples.

A sociedade simples, sob uma perspectiva inicial, pode ser considerada como a sucessora ou substituta da antiga sociedade civil. Ela tem por finalidade servir para o exercício de atividades relacionadas com objeto não mercantil, destinando-se a profissões intelectuais, de natureza científica, literária ou artística (art. 966, parágrafo único), bem como de outras atividades que não se caracterizem como comerciais.

A sociedade empresária, segundo o Código de 2002, é aquela que tem por finalidade o exercício de atividade empresarial, destinada à produção ou circulação de bens ou de serviços, e sujeita a registro perante a Junta Comercial (art. 982). A sociedade é empresária, via de regra, quando desempenha atividade mercantil, de compra, revenda, locação e prestação de serviços comerciais, com finalidade lucrativa, devendo ser equiparada à antiga sociedade comercial. Para o Código Civil (art. 966), empresário é somente o titular de firma individual, que exerce sua atividade profissional, de natureza comercial, sem a participação de outras pessoas na formação do capital e na partilha dos resultados.

O exercício de atividade mercantil de modo coletivo, através de duas ou mais pessoas, preenchendo o requisito da pluripessoalidade, é próprio, assim, da sociedade empresária. Nesse contexto, o empresário ou titular da empresa é a própria sociedade, e não as pessoas físicas que a integram na condição de sócios ou acionistas. Os sócios que controlam o capital e exercem os poderes de administração, representação e gestão da sociedade são denominados, pelo Código Civil,

676 Exemplo de sociedade civil que não pode adotar forma empresarial é a sociedade de advogados, por vedação expressa do Estatuto da Advocacia - Lei 8.906/1994 – “Art. 16: Não são admitidas a registro, nem podem funcionar, as sociedades de advogados que apresentem forma ou características mercantis, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam sócio não inscrito como advogado ou totalmente proibido de advogar”.

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simplesmente, como administradores. Para Fábio Ulhoa Coelho, os sócios ou acionistas responsáveis pela representação e condução dos negócios da empresa deveriam ser designados de empreendedores,677 ainda que, na prática e no entendimento comum, em sentido amplo, possam ser considerados empresários.

O paradigma perfeito da sociedade empresária é a sociedade anônima, regulada pela Lei 6.404/1976, exemplo maior do tipo societário em que se destaca a impessoalidade, isto é, quando a existência e continuidade da sociedade não dependem da vontade pessoal dos sócios que a constituíram. A sociedade limitada também deve ser considerada como empresária, apesar do Código Civil não determinar assim a sua caracterização.

De todas as contradições conceituais resultantes do novo regime instituído pelo Código Civil de 2002, dois institutos devem ser destacados como os mais afetados por essa reforma legislativa: em primeiro lugar, a reconfiguração normativa do direito societário, em que o Código pretendeu estabelecer, com caráter de dogma absoluto, regras e disposições gerais para regulação das sociedades de fins econômicos, em particular da nova sociedade limitada, tipo preponderante de organização empresarial.

Em segundo lugar, na tentativa de unificar o direito das obrigações, o Código procurou abarcar, em sua ampla generalização, uma série de contratos comerciais que somente se aplicam, na prática, a atividades mercantis, ao passo em que deixou de tratar de várias espécies de contratos, típicos e atípicos, que são amplamente utilizados no cotidiano dos negócios comerciais exercidos pelas empresas. Muito além de pretender unificar o direito das obrigações, o Código Civil invadiu áreas de regulação que sempre foram próprias e inerentes ao direito comercial, como o próprio direito societário de regulação das empresas mercantis.

O Código Civil de 2002, na sua concepção civilista do direito de empresa, não define nenhuma atividade econômica das sociedades empresárias como sendo de natureza comercial ou mercantil. A princípio, toda adjetivação funcional designativa da atividade mercantil ou comercial foi banida pelo novo Código, que adotou uma posição muito mais radical e estereotipada do que aquela empregada pela sua fonte

677 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 6.

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material de origem, o Código Italiano de 1942. Essa injustificável esterilização conceitual representa mais um motivo que vem provocando dificuldades quase intransponíveis de compatibilização teórica do regime de empresa com o sistema mercantilista, que continua subsistindo na legislação extravagante ao Código Civil.

Na opinião de Geraldo Neves, “o Direito de Empresa ou Direito Empresarial, ou Direito Comercial, está dentro do Código Civil de 2002, mas está fora dele”,678

conclusão que resulta, exatamente, da constatação de que vários institutos fundamentais do direito comercial, como a disciplina das sociedades anônimas, dos contratos bancários, dos títulos de crédito, da propriedade industrial e da falência e recuperação de empresas, permanecem sendo regulados por leis comerciais especiais através de microssistemas normativos. Como anotado por Raquel Sztajn, a unificação do direito privado não veio a ocorrer nem mesmo na Itália:

“Se alguém fosse levado a entender que a unificação do direito obrigacional implique o desaparecimento do Direito Comercial, é preciso lembrar que, mesmo na Itália, em que o fenômeno data de 1942, Direito Civil e Comercial permanecem distintos. Também é de apontar que nunca houve grande preocupação, seja pela doutrina, seja pela jurisprudência, com a questão, porque, de regra, se entendem comerciais as atividades segundo noção econômica ou contábil.” 679

Relativamente ao regime da sociedade de responsabilidade limitada, o Código Civil confere a ela um tratamento em que essa entidade empresarial fica despida de sua intrínseca natureza mercantil. O sistema do direito de empresa, no Código de 2002, abomina a adjetivação comercial ou mercantil, como se, por um passe de mágica, o legislador pudesse negar a existência de relações jurídicas de natureza comercial, ao tentar subordinar à disciplina comum do direito civil o conteúdo eminentemente mercantilista das atividades empresariais. Tanto assim que o artigo 1.053 do Código vincula a regulação da sociedade limitada, nas omissões das normas específicas, ao regime comum da sociedade simples, e não da sociedade empresária.

678 Geraldo de Oliveira Santos Neves, Código Civil Brasileiro de 2002 – Principais alterações, Curitiba, Juruá Editora, 2003, p. 149. 679 Raquel Sztajn, Teoria Jurídica da Empresa, cit., p. 145.

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6.2. A sociedade simples como tipo societário genérico

A sociedade simples, sob uma perspectiva inicial, pode ser considerada como a sucessora ou substituta da antiga sociedade civil. Ela tem por finalidade servir para o exercício de atividades relacionadas com objeto não mercantil, destinando-se a profissões intelectuais, de natureza científica, literária ou artística (art. 966, parágrafo único), bem como de outras atividades que não se caracterizem como comerciais.

Dentro do espírito do Código Civil de 2002, a sociedade simples representa o tipo básico de sociedade, compreendendo na sua estrutura e relações as normas gerais do direito societário. Origina-se o modelo da sociedade simples do Código de Obrigações da Suíça (1881), ideia posteriormente adotada, com outra configuração, de modo inovador, pelo Código Civil Italiano (1942).680

O art. 530 do Código de Obrigações da Suíça enuncia que “A sociedade é uma sociedade simples (...) quando ela não oferece característicos distintivos das outras sociedades reguladas pela lei”. Portanto, a sociedade simples é uma espécie de sociedade genérica, modelo básico de sociedade, que assim se caracteriza se não for constituída sob outra forma societária prevista na legislação.681

Em termos gerais, pondera Vera Helena de Mello Franco:

“O fundamento da criação da sociedade simples no modelo de 1942 residiu, pura e simplesmente, na necessidade de criar uma sociedade civil apta ao exercício de atividades econômicas, posto que impedia de se valer das formas societárias

680 Para Francesco Galgano, “La società semplice è, como tipo de società, una invenzione del Codice Civile italiano del 1942: essa non ha precedenti nella nostra tradizione legislativa, né trova riscontro in corrispondenti figura di altre legislazioni” (Diritto Privato, Padova, CEDAM, 5ª edição, 1988, p. 657). 681 Na opinião de J.A. Penalva Santos, a sociedade simples “constitui o protótipo de sociedade de pessoas, e as suas normas, além de disciplinar o exercício coletivo de uma empresa não comercial, oferecem uma regulamentação aplicável a todas as sociedades de pessoas, comerciais ou não” (Comentários ao Código Civil Brasileiro – Do Direito de Empresa, vol. IX, cit., p. 171).

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comerciais chamadas de pessoas, dada a correlação entre forma e objeto (necessariamente comercial)”. 682

Além desse fato, Arnoldo Wald considera que, no direito italiano, “a necessidade de criação de tal tipo societário deu-se em virtude do anterior regime das sociedades civis não conceber, naquele país, a responsabilidade limitada dos sócios, que permaneciam titulares dos bens utilizados no desenvolvimento da atividade”.683

A sociedade simples, segundo a concepção originária do Código italiano de 1942, foi criada com uma dupla finalidade: tanto servir como um tipo societário destinado ao exercício de atividade não empresarial, sendo assim a sucessora da sociedade civil, como também para representar um modelo societário genérico, compreendendo as normas gerais de direito societário que podem ser aplicadas a todas as demais espécies de sociedade, exceto para as sociedades por ações.684

Desse modo, além de constituir um tipo societário de direito civil, uma espécie contratual, as normas que regulam as sociedades simples são aplicáveis, em caráter subsidiário, aos demais tipos societários de natureza pessoal, regidos pelo princípio da affectio societatis.685 Conclui Francesco Galgano que a sociedade simples representa “um protótipo da categoria das sociedades de pessoas ou, ainda, tem a função da disciplina geral das sociedades de pessoas, pois é destinada a regular, ainda que subsidiariamente, outros tipos societários.”686

Sob a crítica contundente da doutrina comercialista, que considerava mais apropriada a elaboração de um código ou de uma lei geral de sociedades, em respeito à longa formação histórica do nosso direito mercantil,687 a disciplina da sociedade 682 Vera Helena de Mello Franco, O triste fim das sociedades limitadas no novo Código Civil, cit., p. 82. 683 Arnoldo Wald, Comentários ao novo Código Civil – Livro II – Direito de Empresa, cit., p. 113. 684 Na justificativa ao projeto de lei do Código Civil, Sylvio Marcondes Machado defendeu a criação das sociedades simples porque elas “servem de esquema para a composição das sociedades não empresárias e, quanto a estas, funcionam como normas especiais, e como paradigma para os demais tipos societários” (Exposição de Motivos Complementar ao Anteprojeto do Código Civil, apud Arnoldo Wald, Comentários ao novo Código Civil – Livro II – Direito de Empresa, cit., p. 114-115). 685 Arnoldo Wald, Comentários ao novo Código Civil – Livro II – Direito de Empresa, cit., p. 116. 686 Francesco Galgano, Diritto Privato, cit., p. 568. 687 Sobre a sociedade simples na disciplina do Código Civil, Rubens Requião revela-se um dos seus maiores críticos: “Não nos parece esse o melhor sistema, subvertendo totalmente a tradição do direito brasileiro, que muito bem atendeu, até hoje, às necessidades jurídicas e técnicas no campo das sociedades. Pelo sistema adotado, a todo instante a doutrina e a jurisprudência seriam chamadas a opinar e decidir sobre quais os princípios das sociedades simples que lhes são específicos e quais os

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simples deverá ser, na prática, muito mais apropriada para regular esse tipo específico de sociedade, como a nova modalidade de sociedade civil, tal como se verificou na experiência italiana.

O Código Civil de 2002 não definiu a sociedade simples. Estabelece, de modo formalista, que a sociedade simples “constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público” (art. 997). Também não tratou o Código de especificar o seu objeto, sendo este determinado de modo residual, por exclusão, porque será simples a sociedade que não exerça atividade própria de empresário (art. 982), sendo que, conforme a norma, independentemente de seu objeto, “considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa” (art. 982, parágrafo único).688

Esse critério de configuração da natureza da sociedade contém um duplo equívoco. Em primeiro lugar, a sociedade por ações não é espécie societária, mas uma categoria de sociedade mercantil que compreende duas espécies, a sociedade anônima e a sociedade em comandita por ações. Assim empresária é a espécie societária, e não a categoria ou gênero. Em segundo lugar, a cooperativa somente é qualificada como sociedade simples por uma necessidade do legislador de impor o seu critério de neutralidade quanto ao caráter civil ou comercial da empresa, por recusar a adjetivação do objeto da atividade econômica. A sociedade cooperativa não pode ser uma sociedade simples porque é um tipo específico de sociedade civil, como assim define o art. 4º da Lei 5.764/1971: “As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados”.

gerais, para serem aplicados aos outros tipos de sociedade. (...) Em síntese, não há nenhuma razão de ordem científica, nem técnica, nem prática, para se transladar para o Direito brasileiro, ou novo tipo, ou nova nomenclatura de sociedade civil. Ao contrário do Direito italiano e do suíço o Direito brasileiro já tem modernamente muito bem constituída a sua própria teoria das sociedades” (Estudo crítico ao Projeto de Código Civil, in Aspectos Modernos de Direito Comercial, Estudos e Pareceres, São Paulo, Saraiva, 2ª edição, 1988, p. 234-235). 688 A respeito da ausência de um conceito específico para a sociedade simples no Código Civil, Mônica Gusmão considera que esse artigo 982 (apesar dela se referir, de modo equivocado, ao art. 983) “é um primor de obviedade quando diz que a sociedade empresária é aquela que exerce atividade típica de empresário. Trata-se de um conceito tautológico pois define pelo indefinido. Na parte final, obriga o intérprete a garimpar o conceito, por exclusão, isto é, sem ainda saber exatamente o que se entende por sociedade empresária, o intérprete se vê na contingência de entender que todas as outras são simples...” (Curso de Direito Empresarial, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 5ª edição, 2007, p. 126).

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Para a vinculação do gênero societário às espécies tipificadas no Código Civil, o art. 983 prescreve que “A sociedade empresária deve constituir-se segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092;689 a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um desses tipos, e, não o fazendo, subordina-se às normas que lhe são próprias.” Ao ser transposto o modelo da sociedade simples do direito italiano para o Código Civil de 2002, o legislador não considerou que a sociedade simples é estritamente aquela que não desempenha atividade comercial. De acordo, todavia, com o art. 2.249 do Código Civil italiano, os tipos societários são enquadrados do seguinte modo:

Art. 2.249. Tipi di società

Le società che hanno per oggetto l'esercizio di un'attività commerciale (2195) devono costituirsi secondo uno dei tipi regolati nei Capi III e seguenti di questo Titolo.

Le società che hanno per oggetto l'esercizio di un'attività diversa sono regolate dalle disposizioni sulla società semplice, a meno che i soci abbiano voluto costituire la società secondo uno degli altri tipi regolati nei Capi III e seguenti di questo Titolo.690

Assim, para o Código italiano, a sociedade ou é comercial ou é simples, e a sociedade simples serve também de modelo subsidiário para a regulação dos demais tipos societários. A sociedade simples, necessariamente, somente existe para o exercício de atividade não comercial, como de modo fácil, direto e objetivo está posto no direito italiano.691 Na opinião de Giuseppe Auletta e Niccolò Salanitro, “a sociedade simples, como indica o mesmo nome, constitui o tipo menos complicado de sociedade previsto pelo legislador, e diferentemente dos outros tipos sociais não pode desempenhar atividade comercial.” 692

689 A sociedade empresária pode assim adotar os seguintes tipos societários: a) sociedade em nome coletivo; b) sociedade em comandita simples; c) sociedade limitada; d) sociedade anônima; ou e) sociedade em comandita por ações. 690 Art. 2.249. Tipos de sociedade - As socidades que tenham por objeto o exercício de uma atividade comercial (2195) devem ser constituídas segundo um dos tipos regulados no Capítulo III e seguintes deste Título. As sociedades que tenham por objeto o exercício de uma atividade diferente, são regidas pelas disposições da sociedade simples, a menos que os sócios tenham desejado constituir a sociedade segundo um dos outros tipos regulados no Capítulo III e seguintes deste Título. 691 Na direta conceituação adotada pela doutrina italiana, “a sociedade simples tem necessariamente por objeto o exercício de uma atividade não comercial e é o tipo normal para essa atividade, e é geralmente constituída para as atividades agrícolas, artesanais e aquelas relacionadas às profissões intelectuais” (Francesco Ferrara Jr., Gli Imprenditori e Le Società, cit., p. 265). 692 Giuseppe Auletta e Niccolò Salanitro, Diritto Commerciale, cit., p. 106.

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O Código Civil de 2002 nem definiu a sociedade simples nem esclareceu que ela seria um tipo societário aplicável às atividades econômicas não comerciais. Diante da opção pela desmercantilização das sociedades comerciais, o legislador brasileiro, também neste ponto, obriga o intérprete a elaborar o seu próprio conceito de sociedade simples, quando seria muito mais fácil e objetivo, continuar adotando o modelo da sociedade civil, instituto bastante desenvolvido, de conceito claro e mais afeto à nossa cultura e história jurídica.

A antiga sociedade civil era facilmente identificada, na sua denominação, pela adoção da abreviatura S/C. Apesar do Código de 2002 nada estipular sobre a identificação da sociedade simples a partir da sua denominação, deverá ser empregada, como já vem sendo, a abreviatura S/S para esse fim.693

A sociedade simples pode adotar configuração empresarial, se constituída como sociedade limitada, em nome coletivo, em comandita simples ou em comandita por ações (art. 983). Todavia, o fato de adotar configuração empresarial não transforma a sociedade simples em empresária. Ela permanece vinculada ao regime que lhe é próprio, a sua constituição deve ser formalizada mediante o seu registro em Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, mas assume esse tipo peculiar algumas características da sociedade por quotas, como a limitação da responsabilidade dos sócios.

A sociedade simples sob forma limitada deve indicar na denominação a sua espécie jurídica, acrescida da expressão limitada, por extenso ou abreviadamente (S/S LTDA.), tal como era assim utilizado na antiga sociedade civil de responsabilidade limitada.

A sociedade simples deve ser constituída para o exercício de atividades econômicas que não sejam estritamente empresariais, como ocorre nos casos das

693 Essa abreviação S/S possui uma histórica conotação negativa, de triste memória, por lembrar a organização militar do Partido Nazista da Alemanha (Schutzstaffel) durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a qual se atribui a prática de crimes hediondos cometidos com o extermínio sistemático de judeus e de outras raças consideradas, pelos seguidores de Adolf Hitler, inferiores ao padrão ariano da raça pura. Revela-se imponderável e contraditório, por exemplo, que uma sociedade simples integrada por sócios de origem judaica venha a reproduzir, na sua denominação, uma sigla que lembre essa nefasta organização nazista.

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atividades rurais, educacionais, médicas ou hospitalares, de exercício de profissões liberais nas áreas da advocacia, engenharia, arquitetura, ciências contábeis, consultoria, auditoria, pesquisa científica, artes, esportes e serviço social.

Contudo, se o exercício de profissão intelectual ou científica, própria da sociedade simples, constituir elemento de empresa, isto é, se ela for organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, os sócios podem constituir a sociedade sob forma empresária, bastando que adotem, no contrato, uma das formas empresariais e submetam o ato constitutivo ao Registro Público de Empresas Mercantis, de competência da Junta Comercial. Em outras palavras, os sócios, mesmo exercendo atividade econômica não mercantil, podem adotar a forma de uma sociedade empresária ou comercial.

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6.3. As características e o novo modelo burocrático da sociedade limitada

A sociedade por quotas de responsabilidade limitada, agora denominada abreviadamente pelo Código Civil de 2002 como sociedade limitada, é o tipo societário dominante no âmbito da atividade comercial no Brasil. Ela representa, segundo estatísticas do Departamento Nacional do Registro do Comércio – DNRC, praticamente 98,5 % das sociedades comerciais existentes no País, diante de apenas 1,5 % de sociedades anônimas. No ano de 2005, por exemplo, foram criadas 246.722 sociedades limitadas no Brasil e apenas 1.800 companhias.694 Os demais tipos de sociedade comercial previstos pela legislação, como a sociedade em nome coletivo e a sociedade em comandita simples possuem uma representatividade residual, por serem, como já observado, modelos que caíram em completo desuso.

Esses dados demonstram, de modo enfático, que a sociedade limitada, principalmente por representar o tipo mais adequado para a organização das pequenas e médias empresas, deveria ser objeto de uma regulamentação simplificada, de fácil constituição e com uma organização de baixo custo administrativo para a empresa. Todavia, assim não pensou o legislador do Código Civil de 2002, quando veio a substituir o antigo regime da sociedade por quotas do Decreto 3.708/1919, por uma complexa normatividade, que agora faz a sociedade limitada se aproximar bastante do modelo de organização da sociedade anônima de capital fechado.695

694 BRASIL, DNRC - Departamento Nacional do Registro do Comércio - Estatística de empresas, em www.dnrc.gov.br, 24/03/2012. 695 Apesar do modelo de sociedade limitada adotado pelo Código de 2002 ser mais apropriado para as empresas de médio e grande porte, o próprio relator do projeto, Miguel Reale, reconhece que “as sociedades por quotas de responsabilidade limitada têm o mais amplo espectro, indo desde inúmeras microempresas, ou de empresas de pequeno porte, até as poderosas sociedades que que regem, às vezes, toda uma rede de grandes sociedades anônimas, sendo manifestamente inaplicáveis àquelas as disposições pertinentes a estas”. (Das sociedades limitadas e da propriedade fiduciária, in História do Novo Código Civil, cit., p. 215).

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A sociedade de responsabilidade limitada foi criada e regulada legalmente, pela primeira vez, na Alemanha, em 1892, sob a denominação de Gesellschaft Mit Beschräenkter Haftung ou, abreviadamente, GMBH. Consolidando o costume mercantil, uma lei inglesa de 1900 (Companies Act) regulamentou e disciplinou a constituição e a existência legal da sociedade limitada nos países e colônias britânicas.696

Em Portugal, uma lei de 1901 também criou, com base no modelo germânico, a sociedade por quota de responsabilidade limitada. A partir de uma versão da lei portuguesa, o jurista brasileiro Inglês de Souza elaborou, em 1912, um projeto de Código Comercial disciplinando, nesse projeto, a sociedade por quotas. Devido à demora na tramitação do Código, que nunca passou de projeto, o Deputado Joaquim Luis Osório redigiu um texto resumido extraído das normas do projeto de Inglês de Souza, e assim surgiu a lei brasileira da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, aprovada sob a forma do Decreto 3.708, de 1919, sendo o Brasil o quinto país do mundo a criar esse tipo de sociedade. O Decreto 3.708/1919 vigorou, sem alterações, durante todo esse tempo, sendo revogado pelo Código Civil de 2002.

Na atualidade, praticamente todos os países do mundo adotam a sociedade limitada como o modelo básico de sociedade para o exercício de atividade empresarial por empresas de pequeno e médio porte. O Código Civil de 2002 partiu de um outro pressuposto, o de que a sociedade limitada deveria também servir para a organização de grandes empresas, e pouco ou quase nada aproveitou do regime do Decreto 3.708/1919, preferindo seguir o modelo institucional da sociedade anônima e mesclar esse modelo com as regras aplicáveis às sociedades simples. Foi assim instituído um regime bastante diferente ao anterior, regulado pelo Decreto 3.708/1919 e pelas normas gerais societárias do Código Comercial de 1850.

696 Na Inglaterra, quase à mesma época, ao final do século XIX, observa José Waldecy Lucena, “os pequenos e médios comerciantes ingleses, procurando fugir às dificuldades e ônus próprios da criação das sociedades anônimas, e não querendo se submeter à responsabilidade ilimitada das sociedades de pessoas (partnerships), criaram, consoante o autorizava o direito costumeiro (common law), sociedades diferentes das sociedades anônimas, em cuja forma de constituição introduziram profundas modificações, e a essas sociedades o uso deu o nome de private companies”. (Das sociedades limitadas, Rio de Janeiro, Renovar, 5ª edição, 2003, p. 7).

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O modelo precedente das sociedades por quotas foi objeto de críticas por parte de alguns doutrinadores em virtude de um certo laconismo do seu texto, ou seja, pelo fato do Decreto 3.708/1919 conter apenas 19 artigos, e assim regular, de modo bastante sintético, as sociedades por quotas de responsabilidade limitada.697 Contudo, na opinião de Modesto Carvalhosa, “esse laconismo da lei acabou por se tornar o grande fator responsável pelo sucesso da sociedade limitada, pois lhe imprimiu grande flexibilidade, permitindo que a autonomia privada, no caso concreto, moldasse a sociedade segundo os interesses dos sócios, por meio do contrato social.”698

O modelo imposto pelo Código de 2002 às sociedades limitadas reduziu, de modo acentuado, a liberdade de contratar. Enquanto a legislação anterior da sociedade limitada, consubstanciada no Decreto 3.708/1919, regulava o regime legal da sociedade por quotas de responsabilidade limitada em 19 artigos, deixando para os sócios um alto grau de liberdade para dispor, no contrato social, sobre o conteúdo básico das relações jurídicas que deveriam prevalecer em cada sociedade, o Código Civil de 2002 contém 35 artigos (arts. 1.052 a 1.087) com diversos parágrafos e incisos, que compreendem, na verdade, 74 normas que, obrigatoriamente, devem ser observadas na regulação da sociedade limitada e assim previstas e incorporadas ao seu contrato social. A ampliação do número de normas de regulação da sociedade limitada foi notada e também criticada por Carlos Henrique Abrão, que considera esse novo regime, imposto pelo Código Civil de 2002, verdadeiro retrocesso.699

Um dos motivos pelos quais o Decreto 3.708/1919 teve longa vida, resultava do fato de que, apesar de seus defeitos técnicos, ele estabelecia um regime básico de definição e regulação da sociedade de responsabilidade limitada nos seus poucos artigos, e deixava que os sócios, através do contrato, estipulassem da maneira que

697 Na opinião de Egberto Lacerda Teixeira, um dos principais críticos do regime do Decreto 3.708/1919, diante das omissões existentes, não devem os juristas “levar ao exagero comodista de ver o Decreto 3.708 como o suporte ideal para a vida das sociedades limitadas no Brasil”. (Sociedades Limitadas e Anônimas no Direito Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 1987, p. 2). 698 Modesto Carvalhosa, Comentários ao Código Civil – Parte Especial – Do Direito de Empresa, vol. 13, Antonio Junqueira Azevedo, coord., São Paulo, Saraiva, 2003, p. 4. 699 Segundo Carlos Henrique Abrão, “aqui repousa a unanimidade da crítica, houve retrocesso, a uma pela demora na tramitação de quase três décadas, a duas pelo encarecimento e custo na constituição de uma limitada e por derradeiro sua emblemática percepção de sociedade simples ou indicativa prevista de anônima, o que levou a quase dobrar o número de artigos em relação ao revogado Diploma 3.708/19.” (Nelson Abrão, Sociedades Limitadas, atualizado por Carlos Henrique Abrão, São Paulo, Saraiva, 2005, 9ª edição, p. 25).

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fosse a eles mais conveniente o modo de organização da empresa.700 Pelo fato do Decreto 3.708/1919 conter poucas normas imperativas, a sua concepção privilegiava o contrato social, caracterizando a sociedade limitada como uma sociedade de pessoas, em que o vínculo da affectio societatis se destacava na relação entre os sócios,701 como assim anotado por José Edwaldo Tavares Borba.702 O Código Civil de 2002, ao contrário, aumentou a complexidade desse tipo societário que tinha na simplicidade das suas fórmulas a maior razão para o seu sucesso e sua ampla utilização como principal forma de organização da empresa em nosso país.703

A orientação adotada pelo legislador do Código Civil para a regulação das sociedades limitadas partiu, como visto, de uma concepção equivocada, direcionando esse tipo societário para estruturas empresariais de maior porte, e que seriam mais compatíveis como o modelo da sociedade anônima. Ao propor a adoção de mecanismos normativos voltados para a defesa dos sócios minoritários, o Código de 2002 exagerou na medida, estabelecendo para a sociedade limitada um regime jurídico divorciado da realidade da maioria das micro e pequenas empresas brasileiras.

A partir das normas do Código Civil de 2002 que instituíram um novo regime dotado de maior grau de complexidade para a sociedade limitada, podemos destacar

700 Nesse sentido, opina Waldirio Bulgarelli: “Essa lei, como já frisamos é bastante sucinta, apesar das críticas que mereceu e ainda recebe de muitos autores, serviu como uma luva à pequena e média empresa brasileira, e continua a sua marcha com grande sucesso, embora gere, como é natural, uma série de problemas, os quais, porém, via de regra, vêm sendo resolvidos sem maiores dificuldades pela nossa jurisprudência.” (Sociedades Comerciais, cit., p. 121). 701 Na opinião de Fábio Ulhoa Coelho, atualmente, “a utilidade do conceito de affectio societatis é pequena. Serve de referência ao desfazimento do vínculo societário, por desentenfimento entre os sócios, no tocante à condução dos negócios sociais, repartição dos sucessos ou responsabilização pelos fracassos da empresa. Quando se diz ter ocorrido a quebra da affectio, isso significa que os sócios não mais estão motivados o suficiente para manterem os laços societários que haviam estabelecido.” (A sociedade limitada no novo Código Civil, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 33). 702 Direito Societário, Rio de Janeiro, Renovar, 5ª edição, 1999, p. 76. 703 Fábio Ulhoa Coelho, todavia, alinha-se com a posição de Fran Martins para afirmar que “A Lei das Limitadas de 1919 era sucinta, o que lhe valeu, até mesmo, críticas severíssimas de tecnólogos do direito societário (Martins, 1960:317). Nela encontravam-se regras relativas à formação do nome empresarial, proibição de sócio de indústria, responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais, responsabilidade do sócio-gerente, delegação de poderes de gerência, retirada do sócio dissidente, responsabilidade dos sócios por deliberações contrárias à lei ou ao contrato social e algumas outras de eficácia nenhuma. Como se pode perceber dessa pequena lista, grande parte das relações internas e externas da sociedade limitada não se encontrava disciplinada na lei de 1919, o que despertava a questão doutrinária acerca do arcabouço legislativo aplicável a esse tipo de sociedade empresária.” (Curso de Direito Comercial, vol. 2, cit., p. 395).

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as seguintes características principais que definem e passaram a estruturar esse tipo societário, conforme quadro a seguir:

Características principais da sociedade limitada no Código Civil de 2002

Matéria Características Ato constitutivo A sociedade limitada constitui-se mediante contrato social,

adquirindo personalidade jurídica com o arquivamento do seu ato constitutivo na Junta Comercial.

Responsabilidade dos sócios

A responsabilidade dos sócios é limitada ou restrita ao valor das suas quotas respectivas no capital social.

Responsabilidade dos sócios

Enquanto o capital da sociedade não for integralizado, os sócios respondem solidariamente pela integralização.

Nome empresarial O nome empresarial deve ser formado através de firma social ou de denominação, sendo agora obrigatória a designação do objeto da empresa na denominação, vedada a sua alienação.

Regime jurídico Aplicam-se, supletivamente, na regulação da sociedade limitada, as normas que regem a sociedade simples.

Capital social O capital social divide-se em quotas, iguais ou desiguais, podendo ser integralizado em dinheiro ou em bens suscetíveis de avaliação em dinheiro.

Cessão das quotas O sócio pode ceder as suas quotas a outro sócio sem necessidade de consentimento dos demais, bem como a terceiro estranho, se não houver oposição de sócios que representem 1/4 do capital social.

Deliberações dos sócios

Os sócios devem deliberar através de Assembléia ou Reunião de Quotistas, previamente convocadas, com o registro de suas decisões em atas.

Administração da sociedade

A administração da sociedade limitada pode ser atribuída a sócio ou a terceiro, desde que autorizado pelo contrato social

Administração da sociedade

A destituição de sócio administrador designado pelo contrato depende da aprovação de sócios que representem 2/3 do capital social.

Balanço patrimonial Os administradores são obrigados a elaborar, anualmente, o inventário dos bens, o balanço patrimonial e o balanço de resultado econômico da sociedade, para prestação de contas aos demais sócios.

Conselho Fiscal A sociedade pode instituir um Conselho Fiscal, com a atribuição de fiscalizar os atos dos administradores.

Direito de recesso O sócio que discordar da alteração do contrato social, ou de operação de fusão ou incorporação decidida pela maioria dos sócios, tem o direito de retirar-se da sociedade, apurados os seus haveres em balanço especial.

Exclusão de sócio Os sócios que representem mais da metade do capital social podem decidir pela exclusão compulsória do sócio que esteja colocando em risco a continuidade da empresa.

Dissolução da sociedade

A sociedade limitada dissolve-se pelas mesmas causas aplicáveis às sociedades simples.

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A sociedade limitada é constituída e fixa as suas regras básicas a partir do seu contrato social. O contrato de sociedade é um contrato peculiar no âmbito do direito, que difere bastante das demais espécies contratuais. Isto porque, de uma maneira geral, os contratos privados são contratos bilaterais, em que estão presentes interesses divergentes, como nas relações entre um vendedor (credor) e um comprador (devedor), em que o credor busca um ganho com a obtenção de pagamento e o devedor objetiva a satisfação de uma necessidade de consumo.

Os contratos de sociedade, por sua vez, são contratos plurilaterais, em que todos os contratantes estão vinculados e unidos por interesses convergentes, sendo por isso mesmo considerados pela doutrina moderna como “contratos de colaboração e de organização”.704 Todos aqueles que celebram um contrato de sociedade possuem interesses comuns, e se relacionam a partir da vontade voltada para a obtenção de vantagens qualitativas uniformes ou idênticas, ainda que quantitativamente possam estas diferir em razão da participação, maior ou menor, de cada contratante, na formação do fundo (capital) aplicado na exploração da atividade mercantil.

Em virtude do aumento expressivo das normas legais que passaram a regular a sociedade limitada, em particular no que se refere aos órgãos sociais, à administração da sociedade e aos procedimentos para deliberação dos sócios, é fundamental que o contrato social da nova sociedade limitada seja elaborado ou adaptado para atender aos interesses particulares dos seus sócios, isto de modo a impedir a automática adesão das relações societárias internas às prescrições genéricas da legislação, importando, pois, em um maior aprofundamento e detalhamento das normas contratuais.

Considerando as características gerais do exercício coletivo da empresa, podemos apontar como elementos próprios e específicos do contrato de sociedade,705 fazendo a remissão correspondente diante das normas do Código Civil de 2002: a) a contribuição individual de cada um dos sócios para a formação do capital social (art.

704 Waldirio Bulgarelli, Sociedades Comerciais, cit., p. 24. 705 José Xavier Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. III, Freitas Bastos, 7ª edição, 1963, p. 22; Waldirio Bulgarelli, Sociedades Comerciais, cit., p. 24.

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1.055); b) a participação proporcional dos sócios nos lucros e nas perdas resultantes da exploração da atividade empresarial (art. 997, VII); e c) a cooperação ativa dos sócios para o alcance dos fins comuns, vinculados entre si pelo elemento da affectio societatis (art. 981).

Através do contrato social, os contratantes interessados estipulam as condições e regras que irão definir e caracterizar a sociedade em processo de criação, devendo constar do contrato as cláusulas básicas ou essenciais relacionadas no art. 997 do novo Código Civil.

O contrato social deve regular quatro níveis de relações jurídicas, aqui definidas como relações jurídicas societárias, que são as seguintes, segundo esquema desenvolvido por Egberto Lacerda Teixeira:706

1) Relações dos sócios entre si Derivam dos direitos e das obrigações assumidas por cada sócio em face das normas do contrato social, em particular no que tange à formação do capital, nomeação dos administradores, distribuição dos lucros, ingresso e retirada de sócios e dissolução total ou parcial da sociedade.

2) Relações dos sócios com a sociedade Importam, em primeiro lugar, na obrigação

de cada sócio de integralizar o capital em favor da sociedade, seguindo os demais deveres perante a empresa, como o dever de lealdade e de contribuir para a execução do seu objeto; as relações dos sócios com a sociedade assumem ora uma posição credora, ora uma posição devedora, dependendo da obrigação devida, como no caso da distribuição de lucros, em que os sócios são credores, ou no caso da integralização do capital, em que os sócios são devedores perante a sociedade.

3) Relações da sociedade com terceiros Naturalmente, na execução do seu objeto

social, a sociedade mantém relações com terceiros, como seus clientes, fornecedores, instituições financeiras, empregados e perante o próprio Estado e suas entidades da administração indireta. Nestas hipóteses, a sociedade contrata em seu próprio nome, enquanto tais obrigações estejam vinculadas à realização do seu objeto.

4) Relações dos sócios com terceiros Em princípio, os sócios não respondem

perante terceiros por dívidas da sociedade, mas poderão vir a ser demandados em caráter pessoal ou subsidiário nos casos de responsabilidade ilimitada por atos de gestão e administração ou de desconsideração da personalidade jurídica societária.

706 Sociedades limitadas e anônimas no direito brasileiro, cit., p. 47.

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Todos esses níveis de relações societárias devem ser cuidadosa e detalhadamente estipulados pelo contrato social. Após a elaboração definitiva do contrato social, esse instrumento, celebrado por escritura pública ou por documento particular, deverá ser assinado por todos os sócios. Em princípio, considera-se constituída a sociedade na data em que os sócios assinam o contrato social. Todavia, enquanto o contrato social não for levado para arquivamento na Junta Comercial, a sociedade ainda não adquiriu personalidade jurídica, devendo ser regida, nesse intervalo, como uma sociedade em comum, forma característica das sociedades irregulares, tal como previsto pelo art. 986 do Código Civil de 2002.

Prescreve, ainda, o art. 45 do Código Civil de 2002: “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de Direito Privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.” Desse modo, em razão dessa exigência legal, a sociedade limitada somente se considera validamente constituída e adquire personalidade jurídica com o registro do seu contrato social perante a Junta Comercial.

Como efeito principal da aquisição de personalidade jurídica societária, Rubens Requião destaca que a sociedade legalmente constituída representa um “sujeito capaz de direitos e obrigações”, como se pessoa natural fosse e a ela fica equiparada para todos os efeitos legais, e assim “pode estar em Juízo por si, contrata e se obriga”.707 No mesmo sentido, Bulgarelli ressalta que “implica a personalidade jurídica três elementos, que se podem considerar básicos: 1. capacidade patrimonial; 2. capacidade de atuar na ordem jurídica, praticando atos, adquirindo direitos e contraindo obrigações; 3. capacidade judiciária ativa e passiva.”708

A sociedade, como pessoa jurídica, é representada por seus administradores ou procuradores, designados no contrato social ou em ato separado (art. 1.060). Por isso a sociedade expressa a sua vontade organicamente, ou seja, através de seus órgãos de representação, considerando que a personalidade especial da sociedade é

707 Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 269. 708 Sociedades Comerciais, cit., p. 31.

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uma criação do direito que reconhece a sociedade como sujeito de direitos e obrigações, equiparando-as, para esse fim, às pessoas naturais.

Analisando, de modo comparativo, as principais modificações entre o antigo e o novo regime jurídico da sociedade de responsabilidade limitada, podemos destacar as diferenças de conteúdo normativo, como demonstradas no quadro abaixo:

Principais mudanças no regime da sociedade limitada

Decreto 3.708/1919 e Código

Comercial de 1850 Código Civil 2002

1) Denominação: sociedade por quotas de responsabilidade limitada (art. 1º).

1) Denominação abreviada: sociedade limitada (art. 1.052).

2) Contrato social regulado pelas normas gerais das sociedades comerciais (art. 2º).

2) O contrato social deve seguir as regras gerais da sociedade simples (art. 1.054).

3) Aplicação supletiva da legislação das sociedades anônimas (art. 18).

3) Aplicação supletiva das normas da sociedade simples (art. 1.053), salvo quando o contrato estipular a regência supletiva pela lei das sociedades anônimas (art. 1.053, parágrafo único).

4) Responsabilidade do sócio limitada à importância total do capital social (art. 2º).

4) Responsabilidade do sócio limitada ao valor das suas quotas (art. 1.052).

5) Na formação do nome da sociedade sob denominação, deve o nome empresarial, quando possível, dar a conhecer o objetivo da sociedade (art. 3º, § 1º).

5) Na formação do nome da sociedade sob denominação, esta deve designar, obrigatoriamente, o objeto da sociedade (art. 1.158, § 2º).

6) Distinção entre as quotas primitivas subscritas pelo sócio e as quotas que posteriormente vier a adquirir (art. 5º).

6) A nova legislação não estabelece qualquer distinção entre quotas primitivas e as quotas subscritas posteriormente.

7) Todas as quotas são iguais no tocante à atribuição de direitos dos sócios, havendo somente distinção entre quotas primitivas e quotas futuras (art. 5º).

7) As quotas podem ser iguais ou desiguais, de classes distintas, variando de acordo com os direitos conferidos aos sócios pelo contrato social (art. 1.055).

8) O sócio não pode ceder suas quotas a terceiro sem o consentimento dos demais sócios (Código Comercial, art. 334).

8) Se o contrato for omisso, o sócio pode ceder suas quotas a terceiro se não houver oposição de sócios que representem mais de ¼ do capital social (art. 1.057).

9) Os titulares de quota indivisa ou em condomínio, devem exercer em comum os direitos respectivos, e todos respondem solidariamente pela parte que faltar para a integralização do capital (art. 6º).

9) No caso de condomínio de quota, os direitos inerentes serão exercidos pelo condômino representante, ou pelo inventariante do espólio de sócio falecido, e os condôminos de quota indivisa respondem solidariamente pelas prestações necessárias à sua integralização (art.1056).

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Decreto 3.708/1919 e Código

Comercial de 1850 Código Civil 2002

10) Quando o sócio remisso deixa de integralizar a sua quota, não existe prazo para a sua constituição em mora (art. 7º).

10) Os sócios devem notificar o sócio remisso para que este integralize a sua parte no capital, no prazo de 30 dias, a partir de quando fica constituído em mora (art. 1.058 c/c art. 1.004).

11) A sociedade pode adquirir quotas liberadas com reservas disponíveis do patrimônio líquido, sem redução do capital social (art. 8º).

11) O Código Civil nada estipula sobre a aquisição de quotas integralizadas, que poderá ocorrer quanto o contrato expressamente permitir e com remissão aos procedimentos de resgate previstos na lei das S.A. (Lei nº 6.404/1976, art. 44).

12) Somente em caso de falência, todos os sócios respondem solidariamente pela parte que faltar para a integralização do capital (art. 9º).

12) Desde a constituição e a todo tempo, os sócios respondem solidariamente pela integralização do capital (art. 1.052).

13) A administração da sociedade compete ao sócio-gerente (art. 10), que pode ser pessoa física ou jurídica.

13) A administração da sociedade limitada é atribuição dos administradores designados no contrato social ou em ato separado (art. 1.060), somente podendo ser exercida por pessoa natural (art. 997, IV); a expressão gerente fica sendo exclusiva para o preposto ou empregado com poderes de administração (art. 1.172).

14) Os sócios-gerentes ou que derem nome à firma social respondem para com a sociedade e com terceiros solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei (art. 10).

14) Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções (art. 1.016).

15) Cabe ação de perdas e danos, sem prejuízo de responsabilidade criminal, contra o sócio que usar indevidamente a firma social ou que dela abusar (art. 11).

15) Responde por perdas e danos perante a sociedade o administrador que realizar operações, sabendo ou devendo saber que estava agindo em desacordo com a maioria (art. 1.013, § 2º).

16) Os sócios-gerentes poderão ser dispensados de caução pelo contrato social (art. 12).

16) O novo Código Civil nada dispõe a respeito da caução dos administradores, consistindo em matéria a ser prevista no contrato.

17) O uso da firma cabe aos sócios-gerentes; se, porém, for omisso o contrato, todos os sócios dela poderão usar (art. 13).

17) O uso da firma ou denominação social é privativo dos administradores que tenham os necessários poderes (art. 1.064).

18) É lícito aos gerentes delegar o uso da firma somente quando o contrato não contiver cláusula que se oponha a essa delegação (art. 13).

18) Se o contrato permitir administradores não sócios, a designação deles dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e de 2/3, no mínimo, após a integralização (art. 1.061).

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Decreto 3.708/1919 e Código

Comercial de 1850 Código Civil 2002

19) A sociedade responde pelos compromissos assumidos por seus gerentes, ainda que sem o uso da firma social, se forem tais compromissos contraídos em seu nome ou proveito, nos limites dos poderes da gerência (art. 14).

19) A sociedade adquire direitos, assume obrigações e procede judicialmente, por meio de administradores com poderes especiais, ou, não os havendo, por intermédio de qualquer administrador (art. 1.022).

20) As deliberações dos sócios são tomadas sem qualquer formalidade que não seja através da alteração do contrato social (art. 15).

20) As deliberações dos sócios devem ser tomadas através de Assembléia de Quotistas, se a sociedade tiver mais de 10 sócios, ou em Reunião de Quotistas, se foram 10 ou menos sócios (art. 1.072).

21) O sócio que divergir da alteração do contrato social tem a faculdade de se retirar da sociedade, mediante o reembolso de suas quotas calculadas com base no último balanço patrimonial (art. 15).

21) Quando houver modificação do contrato, fusão da sociedade ou incorporação, o sócio dissidente tem o direito de retirar-se da sociedade, com o reembolso das quotas calculados em balanço especial (art. 1.077).

22) O sócio que se retira da sociedade fica obrigado pelas dívidas e obrigações sociais correspondentes às quotas respectivas, até a data do registro da alteração do contrato social na Junta Comercial (art. 15).

22) A retirada, exclusão ou morte do sócio não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a alteração do contrato na Junta Comercial (art. 1.032).

23) As obrigações dos sócios começam da data do contrato, ou da época nele designada (Código Comercial, art. 329).

23) O sócio, admitido em sociedade já constituída, não se exime das dívidas sociais anteriores à sua admissão (art. 1.025).

24) A nulidade do contrato social não exonera os sócios das prestações correspondentes às suas quotas, na parte em que suas prestações forem necessárias para cumprimento das obrigações contraídas (art. 17).

24) Anulada a constituição da sociedade, as relações entre os sócios e destes com terceiros regem-se pelas normas aplicáveis à sociedade em comum (arts. 986/990).

A partir da análise das modificações relacionadas no quadro acima, podemos observar que essas mudanças foram relevantes e de significativa profundidade na disciplina jurídica da sociedade limitada. Isto porque a flexibilidade que antes existia para a regulação desse tipo societário foi substituída por um modelo que exige que o contrato social, de modo pormenorizado, venha a prever e estipular cada aspecto específico das relações societárias. Assim se verifica na obrigatoriedade de fixação, pelo contrato, da regência supletiva pelas normas das sociedades simples ou da sociedade anônima (art. 1.053), na caracterização das quotas como iguais ou desiguais no tocante aos direitos conferidos aos quotistas (art. 1.055), na

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possibilidade, ou não, de alienação das quotas a terceiros (art. 1.057), na necessária identificação e qualificação dos sócios administradores (art. 1.060), da exigência de que as deliberações dos sócios sejam tomadas através de reunião ou de assembléia de quotistas (art. 1.072), da mesma maneira como é exigido para as deliberações dos acionistas na sociedade anônima.

Além dessas modificações inseridas pelo Código de 2002, em comparação com a legislação anterior, diversas outras inovações passaram a constar do novo regime da sociedade limitada, e que não eram tratadas ou reguladas no Código Comercial de 1850 ou no Decreto 3.708/1919, cabendo destacar as seguintes:

Inovações no regime jurídico da sociedade limitada

Regra de inovação Código Civil 2002 (artigo)

1) Procedimentos para investidura dos administradores através de ato separado com assinatura de termo de posse.

1.062

2) Procedimentos para destituição dos administradores por deliberação dos sócios.

1.063

3) Introdução do balanço de resultado econômico entre as demonstrações contábeis obrigatórias da sociedade limitada.

1.065

4) Faculdade de criação e funcionamento de Conselho Fiscal na sociedade limitada, com amplos poderes de fiscalização dos atos da administração.

1.066

5) Representação dos sócios quotistas minoritários no Conselho Fiscal.

1.066, § 2º

6) Possibilidade de convocação de Assembléia ou Reunião de Quotistas por representantes dos sócios minoritários titulares de mais de 1/5 do capital social.

1.073, I

7) Exigência de convocação e realização anual de Assembléia ou Reunião de Sócios.

1.078

8) Regras específicas para os processos de aumento e redução do capital social.

1.081 a 1.084

9) Procedimentos para exclusão de sócio em virtude de conduta prejudicial aos interesses da sociedade.

1.085

10) Obrigação para que todas as sociedades por quotas de responsabilidade limitada venham a adaptar os seus contratos sociais ao novo regime jurídico estabelecido pelo Código de 2002.

2.031

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Considerando, portanto, as modificações promovidas pelo Código Civil de 2002 no regime jurídico da sociedade limitada, é importante que seja formulado um novo conceito que melhor apresente e coloque em destaque as características principais desse que é o principal tipo societário do direito brasileiro.

Assim, a partir das novas diretrizes legais estabelecidas pelo Código Civil de 2002, cabe definir a sociedade limitada como a sociedade que tem por finalidade dominante o exercício de atividade mercantil, com natureza de sociedade empresária, destinada à produção ou circulação de bens ou de serviços, sendo constituída por duas ou mais pessoas através de um contrato social, em que a responsabilidade dos sócios é limitada ao valor das suas respectivas quotas.

Esse conceito coloca em destaque, preliminarmente, o fato de que a sociedade limitada é uma sociedade empresária, por ser constituída para desempenhar atividade própria de empresário (art. 982). O seu ato constitutivo é representado por um contrato social, instrumento que vincula pessoalmente os sócios a partir das cláusulas e disposições discutidas e livremente pactuadas, tendo como limite e referencial as normas legais constantes dos artigos 1.052 a 1.087 do Código Civil.

Na opinião dos doutrinadores que assumem uma posição de contestação às mudanças do regime da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o Código Civil de 2002 veio “por abaixo a magnífica simplicidade de constituição e de funcionamento desse tipo societário tão bem aclimatado no País, pondo em seu lugar um modelo complexo”.709 E esse novo modelo imposto para a sociedade limitada, levando em consideração que essa parte do projeto original elaborada por Sylvio Marcondes Machado remonta ao ano de 1965, quando foi inserida no anteprojeto do Código das Obrigações, tem esse novo modelo uma “data mental”, como mencionou Pontes de Miranda ao analisar os precendentes do Código Civil de 1916,710 de mais de 40 anos. Ou seja, pelo menos na parte que regula a sociedade limitada, o Código Civil é uma lei que já nasceu velha, desatualizada, elaborada para uma outra

709 José Waldecy Lucena, Das sociedades limitadas, cit., p. 31. 710 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Fontes e evolução do Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, 2ª edição, 1981, p. 85.

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realidade, que não considerou os imensos avanços que a atividade econômica vivenciou nas últimas décadas.

São poucos os recentes comentaristas do Código e doutrinadores do Direito Comercial que assumem uma posição crítica com relação à reforma da sociedade de responsabilidade limitada. A maior parte da doutrina adota uma postura de exegese neutra, restringindo-se à interpretação mais literal das normas codificadas.711

A nova disciplina da sociedade de responsabilidade limitada, todavia, revela-se anacrônica a partir da própria denominação desse tipo societário pelo Código Civil, como sociedade limitada. Segundo a crítica de Egberto Lacerda Teixeira, “sacrificou-se o tecnicismo jurídico em favor da terminologia consuetudinária consagrada.”712

Na verdade e na estrita acepção do termo, limitada é a responsabilidade dos sócios em razão das quotas que cada um possui, e nunca a sociedade. A responsabilidade da sociedade é e sempre será ilimitada, pelo total do seu passivo. Se o nome do tipo societário houvesse de ser abreviado para facilitar a sua referência, deveria passar a ser sociedade de responsabilidade limitada, ou então, sociedade por quotas, como era também identificada na prática. Mas sociedade limitada não, porque revela esta denominação ser juridicamente incorreta e imprópria, e que pode até gerar certa confusão, quando podemos considerar que também a sociedade anônima seria uma sociedade limitada.

Mas não apenas por causa do nome, mas principalmente pelo excesso de normas burocratizantes e contraditórias diante da dinâmica da atividade comercial, é que a nova disciplina dessa sociedade limitada revela-se inadequada e por isso merecedora de críticas contundentes por parte da doutrina especializada. Na contramão do progresso e dos modernos institutos do Direito Comercial, o legislador transforma a sociedade de responsabilidade limitada em uma organização sujeita a normas rígidas, e no final, o que restou mesmo limitada não foi a responsabilidade, e

711 Nesse grupo de comentaristas axiologicamente neutros encontram-se autores como Amador Paes de Almeida, Celso Marcelo de Oliveira, Américo Luis Martins da Silva, Ricardo Negrão, Osmar Brina Corrêa-Lima, Rodrigo Prado Marques e Edmar Oliveira Andrade Filho. 712 Egberto Lacerda Teixeira, As sociedades limitadas e o Projeto do Novo Código Civil Brasileiro, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo, Revista dos Tribunais, nº 55, julho/setembro 1984, p. 162.

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sim a liberdade de contratação entre os sócios, que constituía um dos maiores méritos do Decreto 3.708/1919.

Além das contradições e indefinições de natureza conceitual, o novo regime da sociedade de responsabilidade limitada revela-se inadequado para regular o principal tipo societário de empresa existente em nosso país, considerando que a orientação dada a esse tipo societário, no Código Civil de 2002, partiu do equivocado pressuposto de que as suas normas devem ser dirigidas para regular as organizações empresariais de maior porte, em que a legislação deve estar preocupada com a proteção dos sócios minoritários, tal como ocorre na lei das sociedades anônimas.

Esse novo regime societário esqueceu e desconsiderou, ao revés, que as pequenas e médias empresas constituem a esmagadora maioria das sociedades limitadas, e que as sociedades de grande porte que se organizam como de responsabilidade limitada, em termos quantitativos, representam exceção na prática comercial.713 Em razão dessa regulação minuciosa, detalhista, a sociedade de responsabilidade limitada não mais se demonstra adequada para a organização das micro e pequenas empresas, considerando que o legislador somente tratou desse tipo societário estando voltado para as empresas de maior porte e para a proteção dos acionistas minoritários, como destacado na Exposição de Motivos do projeto.

E entre as diversas normas do novo Código Civil de regulação da sociedade limitada, observamos que várias estão voltadas para a proteção dos sócios minoritários, como aquelas que possibilitam a criação de Conselho Fiscal (art. 1.066), o rígido quorum de deliberação nas reuniões ou assembléias de cotistas (art. 1.076) e do procedimento para exclusão do sócio dissidente (art. 1.085). Essa preocupação com os sócios minoritários é típica da organização das grandes empresas, em que os

713 Essa orientação equivocada consta da Exposição de Motivos em que o Professor Miguel Reale procurou explicar as modificações na disciplina desse tipo societário: “Minucioso tratamento dispensado à sociedade limitada, destinada a desempenhar função cada vez mais relevante no setor empresarial, sobretudo em virtude das transformações por que vêm passando as sociedades anônimas, a ponto de requererem estas a edição de lei especial, por sua direta vinculação com a política financeira do País. Nessa linha de idéias, foi revista a matéria, prevendo-se a constituição de entidades de maior porte do que as atualmente existentes, facultando-se-lhe a constituição de órgãos complementares da administração, como o Conselho Fiscal, com responsabilidades expressas, sendo fixados com mais amplitude os poderes da assembléia de sócios.” (Exposição de Motivos do Projeto do Código Civil, Diário do Congresso Nacional, Seção I, Suplemento B, 13/06/1975, p. 120).

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acionistas que não participam da gestão social ficam dependentes das decisões e interesses dos controladores.

Mas esse não é o caso da maioria das sociedades de responsabilidade limitada existentes no Brasil, em que as relações societárias internas confundem-se com as relações familiares. Grande parte das sociedades limitadas são empresas familiares, com capital mínimo, que assumem essa forma muito mais para assegurar a limitação da responsabilidade dos sócios. São sociedades entre marido e mulher, pai e filhos, irmãos, amigos e pequenos empreendedores, que tinham na facilidade de constituição desse tipo societário um efetivo fator de descomplicação e desburocratização.

As mudanças promovidas pelo Código Civil de 2002 suprimiram essas vantagens facilitadoras de constituição para as sociedades limitadas familiares, na opinião de José Waldecy Lucena.714 Alguns outros comercialistas, mais preocupados com o aspecto interpretativo, como Egberto Lacerda Teixeira, apesar das “reservas quanto à sabedoria dessa orientação “civilista”, reconhecem, contraditoriamente, “que o tratamento mais extenso dado às sociedades limitadas pelo Projeto tenderá a diminuir, quiçá, as áreas de atrito hermenêutico, muito comuns na vigência do Decreto 3.708/1919.”715

Assim, no campo das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, o Código Civil de 2002, ao revogar o Decreto 3.708/1919, instituiu um regime complexo e burocrático que passou a disciplinar esse tipo societário. Desse modo, o perfil contratual da antiga sociedade por quotas, considerado um modelo adequado para a organização societária das pequenas empresas em razão da sua simplicidade e por assegurar aos sócios a garantia da limitação da responsabilidade, deixou de ter importância estratégica, sendo a simplicidade da sua estrutura relegada a segundo plano, em nome da proteção dos sócios minoritários, situação somente presente nas empresas de maior porte.

714 Para José Waldecy Lucena, “imposta a inevitável comparação entre o Decreto nº 3.708/19 e o novo Código, há de se concluir que, se foi aquele acoimado de atécnico e falto de regras indispensáveis, este, embora dotado de tecnicidade, não deixará de profligado como extremamente burocratizante da constituição e funcionamento das sociedades limitadas, assim eliminando uma das vantagens que levaram à criação e à ampla aceitação desse tipo societário.” (Das sociedades limitadas, cit., p. 31). 715 As sociedades limitadas e o Projeto do Novo Código Civil Brasileiro, cit., p. 164.

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6.4. Principais entraves na regulação da sociedade limitada

Por obra do legislador do Código Civil de 2002, a sociedade limitada, na sua estrutura, tornou-se mais complexa, com a introdução de novas exigências legais e novos procedimentos para o funcionamento dos seus órgãos e para a disciplina geral das relações entre os sócios. Considerando a organização das grandes empresas, notadamente das sociedades holdings e das empresas multinacionais, o modelo de sociedade limitada adotado pelo novo regime do Código Civil até que se revelaria apropriado.

A sociedade por quotas de responsabilidade limitada era considerada, pela doutrina, como um tipo híbrido de sociedade, porque possuía, ao mesmo tempo, características próprias das sociedades de pessoas e características inerentes às sociedades de capital, que tem como expoente maior a sociedade anônima.

A partir do Código Civil de 2002, a sua designação passou a ser simplesmente sociedade limitada, adotando, assim, uma denominação mais direta e corrente como a que vinha sendo empregada na prática mercantil. Ainda que o seu capital permaneça dividido em quotas, a nova titulação destaca como característica principal desse tipo societário o limite da responsabilidade dos sócios que a integram. Todavia, como visto, essa denominação sociedade limitada é imprópria, pois limitada é a responsabilidade dos sócios, e não da sociedade em si.

O Decreto 3.708/1919, por ser uma lei que apenas estabelecia normas básicas para a regulação desse tipo societário, deixava para a esfera volitiva e da autonomia da vontade dos sócios a estipulação das regras pelas quais a sociedade deveria se reger, como lei interna e peculiar aos interesses particulares das pessoas que a integravam.

Mas o Código Civil de 2002, contrariando todas as experiências de regulação da sociedade de responsabilidade limitada no direito comparado, estabeleceu um

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regime de significativa complexidade para a disciplina desse tipo societário, criando uma série de novas exigências e restringindo, de modo acentuado, a esfera da liberdade de contratação entre os sócios.

Para fins de constituição e elaboração do contrato social, o Código de 2002 define que as cláusulas básicas do contrato da sociedade limitada são as mesmas cláusulas adotadas para a sociedade simples (art. 1.054). Assim, desde logo, além do Código Civil vincular o contrato social de uma sociedade empresária ou mercantil ao modelo da sociedade simples, não empresária, ele exige uma remissão necessária que o intérprete deverá proceder para compatibilizar o conteúdo do contrato social ao prescrito por outro dispositivo do Código (art. 997).

O modelo do Código italiano de 1942 regula a constituição da sociedade de responsabilidade de modo autônomo, através de um dispositivo específico (art. 2.475), não havendo necessidade de remissão a outra norma, ainda mais quando referente a um tipo societário não empresarial.

O Código de 2002 admite que o contrato social estipule quotas desiguais, ou seja, quotas que confiram direitos diferenciados aos sócios (art. 1.055). A desigualdade entre as quotas pode ser também em razão do seu valor, como já era assim admitido pelo Decreto 3.708/1919.716 Na sociedade anônima, os direitos conferidos aos acionistas podem ser também diferenciados, de classes distintas, atribuídos de modo diferenciado a cada espécie de ação em razão, por exemplo, do direito de eleição de administradores, exigência da nacionalidade brasileira para o acionista, para a prioridade na distribuição de dividendo ou no reembolso do capital (Lei 6.404/1976, arts. 16 e 17).

A criação de classes especiais de quotas na sociedade limitada somente deveria ser admitida quando a sociedade fosse constituída por um elevado número de sócios, em que a diferenciação de direitos fosse justificada, como acontece nas sociedades anônimas, para que determinadas quotas sejam mais ou menos atrativas para os investidores externos. Mas como a sociedade limitada não pode ofertar as

716 Paulo Penalva Santos, Comentários ao Código Civil Brasileiro – Do Direito de Empresa, vol. IX, cit., p. 322.

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suas quotas ao público, e a adoção de quotas desiguais não se encontra disciplinada pelo Código, essa possibilidade de diferenciação de quotas será de pouca ou quase nenhuma utilidade na prática societária.

Outro exemplo que demonstra a preocupação do legislador do Código de 2002 de conferir à sociedade limitada uma estrutura societária de grande empresa, encontra-se na possibilidade do sócio ceder as suas quotas a outro sócio ou a terceiro estranho, sem o exercício do direito de preferência (art. 1.057).

Considerando que a sociedade limitada é, dominantemente, um tipo de sociedade de pessoas, regida pelo princípio da affectio societatis, não se admitia, na legislação societária, que alguém pudesse ingressar na sociedade sem o consentimento dos demais sócios. Ou, ainda, que um dos sócios adquirisse com exclusividade as quotas de um sócio retirante, passando, assim, a ser majoritário, sem que o outro sócio remanescente tivesse o direito de manter a sua posição proporcional no capital da empresa.

De acordo com a regra do art. 1.057 do Código Civil, “Na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social”. Assim, um sócio minoritário que detenha 1/5 do capital social não precisa ser comunicado da alteração da composição societária, o que representa uma quebra do princípio do direito de opção, uma vez que, como observado por Egberto Lacerda Teixeira “os sócios têm evidente interesse patrimonial em que o status quo ante não se modifique sem a sua concordância ou, pelo menos, sua ciência prévia”.717 Essa norma se apresenta, inclusive, em contradição com o art. 1.081, § 1º do Código, o qual prescreve que “terão os sócios preferência para participar do aumento, na proporção das quotas de que sejam titulares.”

Nesse sentido, considera Arnoldo Wald que esta permissividade do art. 1.057 é contraditória e equivocada, porque, em razão da “evidente possibilidade da regra aposta no novo Código Civil quebrar o equilíbrio previamente estabelecido em uma

717 Das Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limitada, cit., p. 244.

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estrutura societária, é que entendemos ser reprovável tal escolha legislativa.”718 Para evitar a transferência de quotas sem o consentimento dos demais sócios, deverá existir no contrato expressa estipulação quanto ao exercício do direito de preferência. Todavia, se os sócios se opuserem à alienação das quotas a terceiros, assim entende Modesto Carvalhosa, “ficarão obrigados a adquirir essas quotas pelo preço e condições pré-acordados entre o sócio cedente e o terceiro pretendente”.719

Outra demonstração da opção do legislador em estruturar as sociedades limitadas como modelo mais apropriado para as médias e grandes empresas, reside na previsão da possibilidade de criação de conselho fiscal (arts. 1.066 a 1.070). Com efeito, o conselho fiscal é um órgão societário próprio para as sociedades integradas por um grande número de sócios ou acionistas, como assim é exigido pela Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/1976, arts. 161 a 165). O conselho fiscal tem como principal função o exame e aprovação das contas anuais dos administradores, elaborando o parecer respectivo que será levado para apreciação da assembléia geral de acionistas. Sendo órgão de fiscalização, ele existe no interesse e para a proteção dos acionistas minoritários.

Ainda que o conselho fiscal seja um órgão de constituição facultativa (art. 1.066), não existe justificativa para a sua criação e funcionamento em uma sociedade limitada, a não ser no caso de uma sociedade composta por centenas ou milhares de sócios, contudo, nesse caso, o modelo mais adequado para a sua organização será o da sociedade anônima. Por esse motivo, o Código Civil italiano de 1942 não prevê, nem mesmo facultativamente, a constituição de conselho fiscal na sociedade de responsabilidade limitada.

Exemplo também evidente da restrição à liberdade de contratar e de gestão da sociedade de responsabilidade limitada, é a exigência de quorum elevado para as deliberações societárias, que devem ser, agora, tomadas em reuniões ou assembléia de sócios.

718 Comentários ao novo Código Civil - Livro II – Direito de Empresa, vol. XIV, cit., p. 380-381. 719 Comentários ao Código Civil – Parte Especial – Do Direito de Empresa, vol. 13, cit., p. 87.

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Nos termos dos artigos 1.061, 1.063, § 1º e 1.076 do Código Civil, são previstos os seguintes quoruns mínimos para as deliberações dos sócios:

Quorum Matéria Unanimidade dos sócios Designação de administradores não sócios quando o

capital não estiver totalmente integralizado. 3/4 do capital social a) Modificação do contrato social;

b) Incorporação, fusão ou dissolução da sociedade. 2/3 do capital social a) Designação de administrador não sócio;

b) Destituição de sócio administrador nomeado no contrato social.

Maioria do capital social a) Designação dos administradores; b) Destituição dos administradores; c) Remuneração dos administradores; d) Pedido de recuperação judicial.

Maioria dos presentes Demais casos previstos na lei ou no contrato social.

De acordo com o Código de 2002, é necessária a aprovação de sócios que representem 3/4 do capital para a aprovação de qualquer alteração ao contrato social (art. 1.076), até mesmo para a criação de uma filial, para o aumento do capital ou uma simples mudança de endereço.720

No modelo matriz constante do Código italiano de 1942, a regra básica para aprovação das deliberações na sociedade de responsabilidade limitada é a da maioria do capital social (art. 2.486). Nas sociedades anônimas, a lei brasileira sempre fixou como regra geral para a aprovação das matérias de maior significação para a companhia, o quorum qualificado da maioria do capital social com direito a voto (Lei 6.404/1976, art. 136).

O Código Civil exige, para a sociedade limitada integrada por mais de dez sócios, a existência de assembléia geral de quotistas, devendo ela ser convocada e instalada anualmente (art. 1.072). O Código de 2002 suprimiu, assim, uma das principais vantagens presentes na legislação anterior da sociedade por quotas, que não exigia a prática de qualquer ato societário de caráter regular para demonstrar o

720 Visando corrigir essa exigência absurda para aprovação de qualquer matéria, o próprio Relator final do projeto, Deputado Ricardo Fiúza, diante da avalanche de críticas da doutrina, apresentou um projeto de lei (PL 7.160/2002) propondo a redução do quorum mínimo obrigatório para a maioria do capital social. Em razão do falecimento do Deputado Ricardo Fiúza, e não sendo reapresentado, esse projeto de lei foi arquivado em 2008.

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funcionamento legal da sociedade. Pelo menos a cada ano, a assembléia geral ou a reunião de quotistas deverá ser realizada para a aprovação das contas dos administradores, cabendo em seguida apresentar para registro perante a Junta Comercial a ata e documentos correspondentes às deliberações tomadas (art. 1.075, § 2º).

Diversas outras exigências de natureza burocrática e que importarão em custos administrativos para as sociedades limitadas são previstas nas normas do Código Civil de 2002. São exemplos as exigências de que deve a sociedade manter e escriturar livro de atas da administração (art. 1.062), livro de atas e pareceres do conselho fiscal, se instalado (art. 1.067), livro de atas da assembléia geral ou da reunião de quotistas (art. 1.075, § 1º), bem como do livro de protocolo de entrega aos sócios das demonstrações contábeis (art. 1.078, § 1º).

As exigências e procedimentos burocráticos previstos nas normas acima citadas seriam até justificáveis no caso de sociedades limitadas de médio ou grande porte, integradas por um grande número de sócios, como uma empresa holding ou uma corporação multinacional. Tendo em vista, todavia, que mais de 80 % das sociedades limitadas no Brasil são empresas enquadradas, em razão do porte, como micro e pequenas empresas, a maioria delas de natureza familiar, essa burocracia desnecessária imposta pelo Código Civil de 2002 poderá, inclusive, provocar um aumento no grau de informalidade e de irregularidade nessas empresas, em face do custo administrativo que elas serão obrigadas a suportar para cumprir essas exigências legais.

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6.5. Aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas

No que se refere ao regime jurídico dominante nesse tipo societário, o art. 1.053 do Código Civil prescreve que “A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas das sociedades simples”, mas o contrato social “poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima”. Essa disposição normativa apresenta uma grave contradição, por recusar, em princípio, a natureza da sociedade de responsabilidade limitada como sociedade empresária, empurrando-a para a proximidade do regime aplicável às sociedade simples. Todavia, a sociedade limitada deve ser considerada como uma sociedade empresária, por desempenhar atividade mercantil, e a regulação supletiva do seu contrato deveria ser através da Lei das Sociedades Anônimas e não das normas da sociedade simples, como previa, aliás, o art. 18 do Decreto 3.708/1919.721

Como elemento conclusivo do conceito da sociedade por quotas, destaca-se a responsabilidade limitada dos sócios que integram a sociedade, em que cada sócio tem a sua responsabilidade restrita ao valor de suas quotas respectivas no capital da sociedade, o que é próprio das sociedades mercantis, e não da sociedade simples.

A sociedade limitada sempre foi considerada pela doutrina como uma sociedade de pessoas. Na sociedade de pessoas, existe uma forte vinculação pessoal entre os sócios e encontra-se nela presente, na maioria dos casos, o elemento personalíssimo denominado affectio societatis. O elemento da affectio societatis implica em uma relação de confiança e aceitação recíproca entre todos os sócios que integram a sociedade, representado pela “intenção dos sócios de envidar seus esforços para a consecução do objeto comum”.722

721 Decreto 3708/1919 – “Art. 18. Serão observadas quanto ás sociedades por quotas, de responsabilidade limitada, no que não for regulado no estatuto social, e na parte applicavel, as disposições da lei das sociedades anonymas.” 722 Waldirio Bulgarelli, Sociedades Comerciais, cit., p. 39.

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As sociedades de pessoas possuem natureza contratual, isto é, são constituídas mediante contrato social, ato formal do qual participam todos os sócios no momento da sua criação. Contudo, a sociedade limitada é vista pela doutrina como uma sociedade de natureza híbrida, na medida em que congrega, ao mesmo tempo, características tanto das sociedades de pessoas, como das sociedades de capital. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal apresenta julgados que afirmam que “A sociedade por quotas de responsabilidade limitada é mista e não de pessoas”,723 tendo em vista, principalmente, o fato de que o contrato social pode até prever a cessão ou alienação de quotas a terceiros estranhos, sem a necessidade do consentimento dos demais sócios.

Todavia, ainda que a natureza da sociedade limitada possa ser considerada como híbrida ou mista, nos seus aspectos característicos dominantes, ela deve ser classificada como sociedade de pessoas, de natureza contratual, situação esta que vem agora reforçada pelo Código Civil de 2002, que manda aplicar as normas que regem as sociedades simples, que são sociedades personalíssimas, na falta ou lacuna de norma disciplinadora específica.

No quadro abaixo, procuramos evidenciar a natureza da sociedade limitada a partir da combinação dos elementos característicos próprios, por um lado, das sociedades de pessoas, e por outro lado, das sociedades de capitais:

Elementos característicos da sociedade limitada

Características como sociedade de pessoas

Características como sociedade de capital

Constituição mediante Contrato Social. Responsabilidade limitada dos sócios. Presença do elemento da affectio societatis.

Uso de denominação na formação do nome empresarial.

Divisão do capital em quotas. A sociedade não se dissolve pela morte ou retirada de sócio.

Restrições para a alienação das quotas a terceiro não sócio.

Não existe a obrigatoriedade de ser sócio para exercer função de administração.

723 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 320.

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Pelo fato de ser constituída, necessariamente, através de contrato social, o que implica em uma vinculação personalíssima entre os sócios (sociedade intuitu personae), estes participam do capital da sociedade limitada adquirindo as quotas respectivas. E as quotas do capital são títulos que, diferentemente das ações das sociedades anônimas, não são livremente negociáveis, porque, em princípio, salvo exceção expressa no contrato social, a alienação das quotas a terceiro estranho depende do consentimento dos demais sócios ou daqueles que representem a maioria do capital. Essa restrição à livre negociação das quotas é mais um aspecto que confere à sociedade limitada característica própria das sociedades de pessoas.

Dependendo do modo como a sociedade limitada estipular a vinculação supletiva ao regime jurídico da sociedade simples ou ao regime jurídico da sociedade anônima, ela poderá ser definida com maior segurança em razão da sua natureza. Mas, nos termos genéricos da lei, segundo Arnoldo Wald, “a partir da análise das novas regras, pode constatar-se que a disciplina das sociedades limitadas do Código Civil não se adequa na integralidade nem às sociedades de capitais, nem às sociedades pessoais.”724

A sociedade de capital, que tem como espécie típica a sociedade anônima, é uma sociedade de natureza estatutária, sendo constituída através de estatuto social, que é um instrumento bem mais complexo do que o contrato social, porque deve seguir um padrão normativo determinado pela legislação. A sociedade de capital tem natureza institucional, uma vez que deve atender a uma função social, destacada pela Constituição Federal (art. 170, III) e pela Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/1976, art. 116, parágrafo único).

Desse modo, podemos considerar que a sociedade de capital transcende aos interesses particulares dos seus acionistas para assumir um fim público, e os administradores da companhia, no exercício das suas atribuições, devem observar “as exigências do bem público e da função social da empresa” (Lei 6.404/1976, art. 154). Esse aspecto da função social da empresa, por decorrer de um princípio

724 Comentários ao novo Código Civil - Livro II – Direito de Empresa, vol. XIV, cit., p. 304.

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constitucional, deve também ser atendido pela sociedade limitada no âmbito da execução do seu objeto mercantil.

Mas a principal característica da sociedade limitada resultante dos princípios que regem as sociedades de capital diz respeito à responsabilidade limitada dos seus sócios. A responsabilidade limitada sempre representou uma garantia dos acionistas das sociedades de capital, enquanto nas sociedades de pessoas a responsabilidade dos sócios era ilimitada, ou seja, não existia uma nítida separação entre o patrimônio da sociedade e o patrimônio particular dos sócios. Se o patrimônio da sociedade fosse insuficiente para o pagamento das dívidas sociais, os credores poderiam executar o patrimônio particular dos sócios. A garantia da limitação da responsabilidade dos sócios foi a causa principal que propiciou o vertiginoso crescimento da sociedade limitada na realidade econômica e no direito contemporâneo a partir do início do século XX.

Outro aspecto interessante e próprio das sociedades de capital incorporado às características da sociedade limitada reside na possibilidade de formação do seu nome empresarial através de denominação. Nas sociedades de pessoas, somente admite-se a formação do nome comercial através de firma social, no qual deve constar o nome completo ou abreviado dos sócios comerciantes ou daqueles que podem fazer uso da firma, assinando em nome da sociedade. A denominação oculta a identidade dos sócios, fazendo referência, apenas, ao objeto da empresa.

Na sociedade de responsabilidade limitada, assim como também ocorre nas sociedades de capital, não é necessária a presença de sócio na administração da sociedade, em que a participação dos sócios controladores do capital na gestão da empresa é facultativa, sendo permitida a designação de terceiros não sócios para o exercício das funções de representação e administração da sociedade, nomeados através de ato em separado (art. 1.062).

A sociedade limitada deve ser considerada, a partir das suas particularidades, como uma sociedade empresária, porque tem por objeto primordial promover a produção ou a comercialização de bens ou de serviços no mercado.

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A atividade de produção ou circulação de bens ou de serviços deve continuar sendo considerada e classificada como atividade comercial ou mercantil, apesar da tentativa do Código Civil de 2002 de abandonar esse critério de classificação, uma vez que:

a) o objeto negocial quase sempre é uma mercadoria, seja esta mercadoria um bem móvel ou imóvel, ou a prestação de um serviço;

b) a produção, negociação ou comercialização das mercadorias e a prestação de

serviços realiza-se dentro de um espaço físico ou virtual denominado de mercado; c) o agente responsável pelo processo de produção ou de circulação da mercadoria

ou do serviço é uma empresa, devidamente organizada e estruturada para esse fim;

d) toda atividade de produção e negociação de mercadorias ou de prestação de

serviços realizada no ambiente de mercado deve ser considerada como mercantil; e) o exercício de atividade mercantil, em caráter habitual ou profissional, é

denominado como mercancia, função própria do empresário que atua através da empresa.

Em face dessa realidade, a sociedade limitada, tanto sob o ponto de vista teórico, como sob o aspecto prático e concreto, existe para desempenhar, predominantemente, atividade comercial ou mercantil, devendo, por conseguinte, ser considerada como uma sociedade empresária, ainda que a sociedade simples, de natureza civil, possa ser constituída como sociedade de responsabilidade limitada.

A sociedade limitada representa o caso típico de um instituto jurídico criado especialmente para preencher uma lacuna existente na legislação comercial, diante da evidente distância existente entre as sociedades de pessoas ou familiares, com a responsabilidade ilimitada dos sócios, e as sociedades anônimas, forma jurídica que atende às necessidades das grandes corporações.

Dependendo da aplicação supletiva do regime da sociedade simples e da sociedade anônima, Lucila de Oliveira Carvalho opina que “passarão a coexistir dois tipos de sociedades limitadas, as reguladas supletivamente pelas regras que disciplinam as sociedades simples e as reguladas supletivamente pela lei das

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sociedades anônimas, conforme for da escolha dos contratantes”.725 Fábio Ulhoa Coelho vem a reforçar esse entendimento, ao classificar essas sociedades como “limitadas com vínculo societário instável, que são reguladas supletivamente pelas normas das sociedades simples, e limitadas com vínculo societário estável, quando a elas se aplica supletivamente a legislação das sociedades anônimas”.726

Quando a sociedade de responsabilidade limitada adotar como regime supletivo as normas das sociedades anônimas, não existirão dúvidas de que se trata de uma sociedade empresária. Caso adote o regime supletivo da sociedade simples, ela será empresária apenas em razão da forma, ainda que o seu objeto não seja de natureza mercantil.

Diante de todas as características ressaltadas como próprias e inerentes à sociedade limitada, não há como negar que este tipo societário é muito mais apropriado para o desempenho de atividade comercial, tal como se verifica na prática. Nessa condição, diante da natureza mercantil do seu objeto e do caráter lucrativo da exploração da atividade econômica, a sociedade limitada deve ser sempre regulada, em caráter supletivo, pela Lei das Sociedades Anônimas, não cabendo a aplicação supletiva do regime da sociedade simples, senão quando o objeto da sociedade estiver relacionado com o exercício de atividade rural ou de natureza literária, artística ou científica, como, aliás, estabelece o parágrafo único do art. 966 do Código Civil de 2002.

725 A responsabilidade do administrador da sociedade limitada, Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 19. 726 A sociedade limitada no novo Código Civil, cit., p. 23-24.

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6.6. A revisão necessária da sociedade limitada

Considerando as relevantes modificações decorrentes do Código Civil de 2002 destinadas a disciplinar a sociedade de responsabilidade limitada, a inclusão do estudo mais aprofundado desse tipo de empresa no presente trabalho tem como finalidade evidenciar, em termos dogmáticos e também empíricos, o aumento desnecessário e inexplicável do grau de complexidade da sociedade limitada, que pode ser até equiparada a uma sociedade anônima fechada, e as dificuldades conceituais que decorrerão do próprio conceito de sociedade empresária.

Ao procurar abarcar o vasto campo do direito comercial em algumas normas do novo Código Civil, o legislador veio a causar uma grande confusão conceitual e metodológica no direito positivo brasileiro, sob a justificativa de que estava, apenas, unificando o direito das obrigações em seu tronco comum. Nesse diapasão, considera Geraldo Neves que “a tentativa do legislador civil de absorver o Direito Comercial foi tímida e improdutiva”,727 uma vez que diversos e amplos institutos do direito comercial continuam sendo regulados por leis mercantis especiais.

A intervenção no direito societário foi ainda mais grave, porque o novo Código Civil apresenta sérias incongruências temáticas, ao se basear em uma realidade de 60 anos atrás, ainda disciplinando tipos societários superados.728 E assim o Código de 2002 passou a regular, de modo anacrônico, a sociedade por quotas de responsabilidade limitada, apesar desta ser o tipo societário mais utilizado pelas micro, pequenas e médias empresas. Apenas tendo em mira as exceções, que são as grandes empresas organizadas como sociedades limitadas, o legislador ignorou, solenemente, a realidade da esmagadora maioria das empresas brasileiras.

727 Geraldo de Oliveira Santos Neves, Código Civil Brasileiro de 2002 – Principais alterações, cit., p. 116. 728 A permanência de normas de regulação das sociedades em nome coletivo e em comandita simples, tipos superados desde o início do século XX e que caíram em total desuso, demonstra, sob o aspecto societário, a defasagem normativa dessa disciplina no Código Civil de 2002.

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A sociedade limitada, diante da variabilidade das formas de sua organização, deveria ser disciplinada não sob uma única modalidade, como adotado pelo Código Civil, mas este poderia muito bem prever a regulação de três ou quatro tipos de sociedades de responsabilidade limitada, com graus variáveis de complexidade, das mais simples, que poderia ser a sociedade unipessoal, às mais complexas, representada, exatamente, pelo modelo burocrático e complexo concebido pelo legislador civilista.

Diante da tendência contemporânea da descodificação e da regulação de institutos jurídicos através de microssistemas normativos, a opção do legislador civilista revela-se não só defasada historicamente, como também totalmente divorciada da realidade econômica e da necessidade objetiva da fixação de regimes diferenciados em razão das diversas formas e modalidades de exploração das atividades comerciais pelas empresas.

Observa Rodrigo Prado Marques que “uma outra via costumeiramente apontada seria a união de todo ordenamento jurídico societário em um único Código, fazendo-se um Código Societário completo e abrangente, a exemplo do que fizeram a França em 1966, a Argentina em 1972 e Portugal em 1986.”729 Essa posição representa uma alternativa válida, de muito maior coerência, e teria por finalidade regular, exclusivamente, em um microssistema normativo, as sociedades mercantis, deixando para o Código Civil a disciplina das sociedades não econômicas, como as associações, as fundações e as sociedades simples.730

No direito português, por exemplo, foi criado, através do Decreto-Lei 248/1986, o estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada, ou seja, a empresa individual limitada, modalidade de exploração comercial mais apropriada

729 Rodrigo Prado Marques, Sociedades limitadas no Brasil, São Paulo, Editora Juarez de Oliveira, 2006, p. 57. 730 Divergindo apenas quanto à reunião, em um mesmo código, da disciplina integral do direito societário, José Waldecy Lucena opina: “Há de se concluir, de conseguinte, que o legislador brasileiro estaria em harmonia com o pensar deste início de século, destes novos tempos de globalização (mondialisation), se tivesse retirado do novo Código Civil todo o Direito Societário ali disciplinado, e que passaria a ser objeto de um corpo legislativo em separado, isto é, de um microssistema à parte, integrado pela Lei de Sociedade Anônima, que o próprio Código já excluiu, e pela disciplina de todos os demais tipos societários, qualquer que seja seu objeto, seja empresarial (comercial), seja não-empresarial (civil), contanto que tenha uma finalidade econômica.” (Das sociedades limitadas, cit., p. 37).

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para as micro e pequenas empresas, e que, no Brasil, representam praticamente a metade das organizações empresariais. O simples fato de se atribuir a limitação da responsabilidade aos empresários individuais, tem o efeito direto de evitar a constituição de sociedades fictícias ou simuladas, e que ocorre quando o capital social pertence, de modo majoritário, a um único sócio, e que a participação restante seria formalizada, apenas, pelo sócio minoritário, com a única finalidade de garantir a responsabilidade limitada aos seus integrantes.731

Na Espanha, a Lei 02/1995, ao regular a Sociedade de Responsabilidade Limitada (SL), permite aos seus sócios ampla margem para estabelecer, no contrato, as normas sobre a organização e administração interna da sociedade, sendo esta uma sociedade extremamente flexível e adaptável aos interesses dos sócios, podendo adotar modelos diferenciados de acordo com o seu porte econômico. Todavia, para o devido enquadramento da sociedade de responsabilidade limitada no correspondente regime legal, esta não pode ter um capital social inferior a € 3.500 euros, o que representa um requisito patrimonial mínimo que a legislação brasileira sequer cogita para a definição do tipo societário.

Como tipo intermediário mais apropriado para as sociedades de médio porte, a legislação espanhola, através da Lei 7/2003, prevê a constituição de outro tipo societário. denominado Sociedade Limitada Nova Empresa (SLNE), cujo capital social não poderá ser inferior a € 3.012 euros nem superior a € 120.202 euros. Caso o seu capital seja aumentado e venha a ultrapassar esse valor, esse tipo societário deverá adotar, obrigatoriamente, a forma de sociedade anônima.

Nos exemplos citados acima, a legislação dos países europeus estabeleceu critérios e patamares, em razão do capital, para a configuração dos tipos societários. A fixação de critérios objetivos para a definição do tipo societário, seja em razão do capital, seja pelo valor do faturamento anual, seja pelo número de empregados, deveria ser também seguido e considerado pela legislação societária brasileira, tal como ocorre, por exemplo, para a organização das companhias de capital fechado

731 Esta situação bastante comum verifica-se nas sociedades familiares, em que o sócio majoritário é detentor de 99 % do capital, e o sócio minoritário possui mera participação residual, apenas para conferir, de modo artificial, caráter societário à empresa para limitação da responsabilidade.

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(Lei 6.404/1976, art. 176), bem como para o enquadramento das micro e pequenas empresas (Lei Complementar 123/2006).

O Código Civil de 2002, contudo, não contém qualquer parâmetro classificatório ou determinante, com base em critérios objetivos, para a definição do tipo societário que deve ser adotado pelos sócios ou acionistas na constituição de qualquer empresa.732 Para o direito positivo brasileiro, sendo satisfeito, apenas, o requisito da pluripessoalidade, com a presença de dois ou mais sócios, qualquer empresa pode ser constituída e estruturada como sociedade limitada ou como sociedade anônima, independentemente do porte, do volume de negócios ou do capital social. E essa ausência de critério, destarte, faz com que a legislação societária brasileira permaneça atrelada a modelos e estruturas superadas, que não foram discutidas ou sequer questionadas em todo o longo processo legislativo de elaboração do Código Civil de 2002.

Espera-se, portanto, em síntese final, que o regime da sociedade de responsabilidade limitada no Código Civil de 2002 tenha existência breve, para que os seus graves defeitos de origem sejam corrigidos, que uma nova legislação societária venha a substituir um regime que já nasceu velho, arcaico, e que se demonstra mais preocupado com a afirmação de concepções filosóficas pessoais e com as idiossincrasias dos seus criadores, do que com a praticidade e utilidade que deveriam predominar nas normas jurídicas societárias, principalmente no âmbito das atividades das empresas comerciais.

Com a proposta de projeto de um novo Código Comercial, como será explorado no capítulo seguinte, aguarda-se a reconfiguração necessária da sociedade de responsabilidade limitada, para que ela retorne ao seu modelo simplificado e adaptável, tanto para servir à constituição e organização de empresas de pequeno porte, como para atender às exigências de estruturação jurídica das empresas maiores.

732 Somente a partir da Lei 12.441/2011, que introduziu o art. 980-A no Código Civil para assim criar a figura esdrúxula e indefinida da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, com capital obrigatório de 100 salários mínimos, a legislação brasileira passou a estabelecer um patamar de capital integralizado para a constituição desse tipo de empresa. Ver seção 4.7 do Capítulo 4 acima.

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Capítulo 7

A renovação do direito comercial

7.1. Os problemas de adaptação do regime do direito de empresa à realidade econômica brasileira; 7.2. Dificuldades no âmbito do registro de empresas; 7.3. Restrições científicas e didáticas no direito empresarial; 7.4. O projeto de novo Código Comercial e sua justificação; 7.5. O retorno metodológico aos princípios do direito comercial; 7.6. Redefinição das fronteiras do direito comercial, do direito civil e do direito do consumidor.

7.1. Os problemas de adaptação do regime do direito de empresa à realidade econômica brasileira

A disciplina da atividade econômica, no Brasil, sempre esteve relacionada com a natureza comercial ou mercantil da atividade empresarial. O próprio conceito de mercancia, agregador da exploração mercantil, como assim encontrava-se expresso desde o Código de Comércio do Império de 1850 (art. 4º), representava a ideia, a concepção, de que a função comercial é inerente ao exercício da empresa e à atividade do empresário.

Sob a perspectiva ontológica, da definição do ser em si, o Código Civil de 2002 buscou afastar o conceito de mercantil ou comercial do âmbito da caracterização da empresa, não obstante o enquadramento legal da sociedade anônima como mercantil e da sua vinculação necessária, por força de norma positiva, às leis e à prática comercial.733

733 Lei 6.404/1976 - “Art. 2º, § 1º. Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil e se rege pelas leis e usos do comércio.”

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A empresa, segundo a concepção civilista, compreenderia, genericamente, qualquer atividade econômica, esteja essa atividade voltada à industrialização e comercialização de bens, ao transporte de mercadorias, às operações de crédito ou à prestação de serviços. Todavia, como pressuposto para sua caracterização normativa, a atividade econômica da empresa deve estar dotada minimamente de uma infraestrutura básica, compreendendo organização tecnológica, administrativa, gerencial e contábil, com informações detalhadas dos seus elementos patrimoniais. Nessa perspectiva, a empresa é um ente, sujeito de direito, e não apenas representação de uma função ou atividade.

Na opinião de Fábio Ulhoa Coelho, a empresa, na estrita acepção do termo, somente pode ser caracterizada e definida, como atividade, a partir da reunião racional desses elementos organizacionais e estruturantes.734 Em resumo: não existe empresa sem a organização mínima dos fatores essenciais de produção: capital, trabalho, bens (móveis e imóveis) e tecnologia.

A princípio, a discussão a respeito de tal questão conceitual poderia parecer mero diletantismo teórico ou preciosismo acadêmico. Mas não é. A determinação das características próprias de uma atividade econômica revela-se essencial para a definição do correspondente regime jurídico, de natureza comercial, com seus elementos de interpretação. Tal circunstância deve afastar, consequentemente, da regulação e solução de problemas concretos inerentes aos negócios comerciais, a incidência das normas de direito civil e de direito do consumidor.

O direito comercial é o ramo do direito privado que tem por objeto regular as relações entre empresas e empresários. Exclusiva e estritamente. Não tem o direito comercial a função ou condão de disciplinar as relações econômicas e patrimoniais entre pessoas, quando as partes não sejam empresários ou não exercitem atividade econômica com finalidade lucrativa.

734 “A empresa é atividade organizada no sentido de que nela se encontram articulados, pelo empresário (que organiza), os quatro fatores de produção: capital, mão de obra, insumos e tecnologia. A noção de organização, ínsita à ideia de empresa, envolve, portanto, um certo grau de sofisticação da produção ou circulação de bens ou serviços.” (Comentários à Lei de Falências e de recuperação de empresas, São Paulo, Saraiva, 10ª edição, 2014, p. 43-44).

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A partir dessa separação simples, direta e objetiva, as normas de direito comercial devem servir para regular as relações entre pessoas, físicas ou jurídicas, que exerçam atividade empresarial, com caráter profissional.

O “núcleo do Direito Mercantil moderno”, como assim posto por Oscar Barreto Filho, é a “empresa comercial”.735 E o conceito de empresa comercial, dentro da realidade econômica, “no estágio atual do Direito, não pode ser reduzida a um conceito unitário, devendo ser considerada sob vários aspectos diferentes”,736 a exemplo do modo como tratada por Asquini, sob a perspectiva de ser um fenômeno poliédrico.737 E no quadro da realidade econômica, a função social da empresa passou a ser, além de princípio consagrado pela Constituição Federal de 1988,738 elemento definidor da própria empresa, considerada como ente imprescindível à sustentação da economia, na geração e distribuição de riquezas e na satisfação das necessidades de consumo da sociedade de um modo geral.

Antes do Código Civil de 2002, a regulação da atividade comercial encontrava-se disciplinada, residualmente, pelo Código Comercial de 1850. A legislação não codificada, como visto anteriormente, disciplinava as sociedades comerciais, a falência, o registro do comércio e uma série de contratos mercantis. A partir da promulgação do Código de 2002, passa a existir um dúplice regime normativo, o do direito de empresa e o da legislação comercial supletiva ou complementar. A existência de dois sistemas dispositivos, com conceitos que não dialogam entre si, vem causando dificuldades de toda espécie, a começar pela própria definição de

735 A dignidade do Direito Mercantil, Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, RDB, vol. 6, set.dez/1999, São Paulo, RT, 1999, p. 304. 736 Apesar dessa lição de Oscar Barreto Filho haver sido proferida em uma aula magna de abertura dos cursos jurídicos da Faculdade do Largo de São Francisco, no longínquo ano de 1973, ele já antevia a necessidade da legislação separar a figura do empresário individualista da instituição empresa, destacando “três ordens de fenômenos econômico-sociais que se traduzem em impulsos evolutivos no sentido de modificar a estrutura jurídica da empresa, organizada sob a forma de sociedade anônima: a) a progressiva separação entre a propriedade e a gestão da empresa, que se observa principalmente no quadro das grandes companhias; b) a gradativa afirmação de um direito de co-gestão atribuído aos colaboradores da empresa, de modo a limitar a liberdade dos proprietários dos meios de produção (v. François Bloch, L’Ainé, Pour une reforme de l’entreprise, 1963); c) a elaboração do conceito da função social da propriedade empresarial, acarretando não só restrições, mas também deveres positivos para com a coletividade por parte dos proprietários. Estas atitudes traduzem, em síntese, na atribuição aos empresários de maior consciência de sua responsabilidade social, perante seus colaboradores e a coletividade à qual destinam seus produtos.” (A dignidade do Direito Mercantil, cit., p. 304-305). 737 Perfis da Empresa, cit., p. 109/126. 738 Constituição Federal, art. 170, inciso III.

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empresa, quando esse espaço ainda continua sendo ocupado pelas antigas figuras do comerciante e da sociedade comercial.

O primeiro problema decorrente da introdução artificial do regime do direito de empresa no nosso sistema de direito positivo, é, portanto, de ordem ontológica, referente à própria conceituação da empresa, e à caracterização da sua natureza como ente mercantil. O Código de 2002, apesar de erigir a empresa à categoria fundamental do sistema, resume sua compreensão a um conceito meramente funcional, de atividade de produção e circulação de bens e de serviços, conceito indireto, extraído da norma que define o empresário (art. 966).

A empresa não vem a ser definida como sujeito de mercado ou agente econômico, que é a sua real imagem exterior, do modo como as pessoas assim apreendem na sua representação externa. O conceito legal de empresa, resultante da fórmula do legislador do Código de 1942 na Itália fascista, reduzido à atividade de produção e circulação de bens e de serviços, demonstra-se insuficiente e contraditório para exprimir o seu significado concreto, econômico, social e jurídico, “em completo divórcio com a realidade econômica”, nas palavras de Fábio Konder Comparato.739

A doutrina, apesar dessa evidente limitação conceitual, insiste em referir-se à empresa meramente como atividade, e não no seu sentido subjetivo, de ente econômico. Alguns autores, inclusive Fábio Ulhoa Coelho, defendem a vinculação estrita às definições positivistas, ao qualificar juridicamente o empresário individual e a sociedade empresária, recusando tratar, cientificamente, esses agentes no seu sentido genérico como empresa, por exemplo, como em alguns casos quando a lei assim dirige-se aos destinatários das suas normas na legislação de recuperação de empresas e falência.740

739 A reforma da empresa, cit., p. 68. 740 Lei 11.101/2005 – “Art. 1o Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.” A delimitação dos sujeitos destinatários da lei, o empresário e a sociedade empresária, vem provocando a rejeição de doutrinadores, como Fábio Ulhoa Coelho, em utilizar a figura da empresa como destinatária genérica do regime recuperacional e falimentar: “Na verdade, no direito brasileiro, “empresa” deve forçosamente ser definida como atividade, uma vez que há conceitos legais próprios para empresário (CC, art. 966) e estabelecimento (CC, art. 1.142). Estas faces do poliédrico fenômeno descrito por Asquini, entre nós, devem ser adequadamente referidas pelos termos que o legislador a ela reservou. Ademais, como deflui do conceito legal de empresário, “empresa” só pode ser entendida

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A empresa não pode ser entendida somente como atividade, como expressão da sua função de produção e troca no mercado. A empresa, antes de mais nada, é o principal agente da atividade econômica e, por isso mesmo, sujeito juridicamente tutelado como destinatário de normas de proteção em face do reconhecimento de sua relevante função social. Na designação genérica de empresa devem ser enquadrados todos os agentes econômicos, sujeitos de direito, qualquer que seja sua forma, se empresário individual ou sociedade comercial, de responsabilidade limitada ou por ações. Destacando a centralidade e importância da empresa, como elemento fundamental e explicativo do próprio direito comercial, Vincenzo Buonocore afirma:

“Isto reforça a convicção de que, hoje, a empresa é, ao mesmo tempo, o fundamento do direito comercial e o elemento unificador de todos os institutos que nesta matéria estão naturalmente compreendidos. Sem temor de ser repetitivo, se pode reafirmar que o direito comercial é o direito da empresa e o sujeito que a exercita – o empresário – é o inconteste protagonista da matéria”.741

Para Ascarelli, entender a empresa como atividade exige uma compreensão bem mais ampla. Ora a empresa pode ser vista como atividade na sua função econômica, ora com o mesmo sentido de estabelecimento, ora como organização do trabalho humano.742

A empresa, assim considerada por Oscar Barreto Filho, é necessariamente comercial.743 A adjetivação como comercial ou mercantil, insistimos, é inerente à atividade da empresa. Essa a segunda consequência da neutralidade do conceito de empresa no Código de 2002, que revela evidente limitação na caracterização da empresa, ao omitir o conteúdo e natureza específica da sua atividade. Toda essa riqueza e diversidade conceitual da figura poliédrica da empresa e da natureza da sua atividade foi afastada pela neutralidade conceitual do Código Civil de 2002, que se afastou, inclusive, da sua matriz italiana. Esse problema terminológico e conceitual, como visto, causou toda uma confusão e anacronismo no tratamento jurídico da empresa, exigindo uma nova configuração dogmática desse instituto.

mesmo como uma atividade revestida de duas características singulares: é econômica e é organizada.” (Comentários à Lei de Falências e de recuperação de empresas, cit., p. 38). 741 L’Impresa - Trattato di Diritto Commerciale, cit., p. 49. 742 Corso di Diritto Commerciale, cit., p. 36. 743 A dignidade do Direito Mercantil, cit., p. 304.

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7.2. Dificuldades no âmbito do registro de empresas

Uma das consequências imediatas do regime do direito de empresa no Código Civil de 2002, e que provocaram profundas alterações na sistemática legal da atividade econômica, diz respeito ao registro de empresas, função exercida pelas Juntas Comerciais, de acordo com os procedimentos da Lei 8.934/1994.

O regime da Lei 8.934/1994, que regula o sistema de registro público de empresas mercantis, foi concebido e estruturado com base nas definições e na terminologia do Código de 1850 e da legislação comercial. Assim, ele trata e refere-se às empresas, às firmas individuais e às sociedades como mercantis (artigos 1º e 2º).744 O sistema do registro de empresas, de acordo com essa lei, encontra-se vinculado, técnica e normativamente, ao Departamento Nacional do Registro do Comércio (DNRC), e suas funções executadas pelas Juntas Comerciais. Assim, a atividade da empresa, sob a perspectiva técnica do registro, é mercantil, comercial.

Enquanto as questões epistemológicas, conceituais e metodológicas, que substituíram os alicerces teóricos do antigo direito comercial, estavam restritas aos círculos acadêmicos, as empresas, na prática, passaram a se deparar com um expressivo aumento das exigências burocráticas para a constituição, registro e alteração dos contratos sociais nas Juntas Comerciais.

E essa incompatibilidade de regime normativo se fez sentir de imediato, constatada pela própria insegurança do legislador que, através de sucessivas medidas provisórias e leis, prorrogou o prazo de adaptação do empresário e das

744 Lei 8.934/1994 - Art. 1º O Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, subordinado às normas gerais prescritas nesta lei, será exercido em todo o território nacional, de forma sistêmica, por órgãos federais e estaduais, com as seguintes finalidades: I - dar garantia, publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos das empresas mercantis, submetidos a registro na forma desta lei; II - cadastrar as empresas nacionais e estrangeiras em funcionamento no País e manter atualizadas as informações pertinentes; III - proceder à matrícula dos agentes auxiliares do comércio, bem como ao seu cancelamento. Art. 2º Os atos das firmas mercantis individuais e das sociedades mercantis serão arquivados no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, independentemente de seu objeto, salvo as exceções previstas em lei.

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sociedades empresárias às novas formas e definições do Código de 2002. Na sua redação original, o art. 2.031 do Código Civil definiu o seguinte prazo para a adaptação das firmas individuais e das sociedades comerciais a esse novo regime jurídico:

Art. 2.031. As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, terão o prazo de um ano para se adaptarem às disposições deste Código, a partir de sua vigência; igual prazo é concedido aos empresários.

Em virtude das dificuldades naturais decorrentes dessa mudança radical em todo um regime jurídico, principalmente pela incapacidade dos órgãos do registro de empresas mercantis de adotar um entendimento uniforme sobre os modelos de atos dos empresários e dos contratos das sociedades empresárias que deveriam ser observados com base nesse novo regime legal, a entrada em vigor desse art. 2.031 foi sendo sucessivamente prorrogada. Até que, finalmente, veio a ser fixado um prazo definitivo, quando foi, enfim, determinada a data de 11/01/2007, ou seja, 4 anos após a sua vigência inicialmente prevista, para a adaptação dos contratos das sociedades empresárias sujeitas ao novo Código às suas disposições.745

Todavia, a partir de 2002, o DNRC passou a editar uma série de instruções normativas e a emitir pareceres jurídicos no sentido de aplicação das burocráticas medidas de registro previstas no Código Civil, aumentando, com essa excessiva intervenção, o grau de dificuldades das empresas na elaboração dos seus instrumentos registrais e societários.746

745 A redação do art. 2.031 do Código Civil de 2002 foi sucessivamente modificada pelas seguintes normas: Lei nº 10.825, de 22.12.2003 – inseriu um parágrafo único no art. 2.031 para excluir as organizações religiosas e partidos políticos da exigência de modificação dos seus estatutos sociais; Lei nº 10.838, de 30.01.2004 – Nova redação do Art. 2.031: “As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, terão o prazo de 2 (dois) anos para se adaptar às disposições deste Código, a partir de sua vigência igual prazo é concedido aos empresários; Medida Provisória nº 234, de 10.01.2005 – Nova redação do Art. 2.031: “As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, bem assim os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2006"; Lei nº 11.227, de 28.06.2005 - Nova redação do Art. 2.031: “As associações, sociedades e fundações, constituídas na forma das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2007.” 746 A Instrução Normativa do DNRC 92, de 04/12/2002, veio a exigir a conversão do nome de todas as firmas individuais existentes no País, apenas para mudança na caracterização do tipo de empresa: Art. 4o. As Firmas Mercantis Individuais, que a partir de 11 de janeiro de 2003 passam a ter a denominação de empresários, têm até 10 de janeiro de 2004 para se adaptarem às disposições da Lei no 10.406/2002, devendo promover, no âmbito do Registro Público de Empresas Mercantis, o arquivamento de Requerimento de Empresário e demais instrumentos determinados por aquela Lei.

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No caso das sociedades por quotas, que passou a se chamar sociedade limitada, o DNRC editou a Instrução Normativa 98, em 23/12/2003, estabelecendo uma série de exigências de conteúdo e cláusulas obrigatórias nos contratos sociais, extrapolando, bastante, o próprio conteúdo do artigo 997 do Código Civil.747 Essas dificuldades adicionais derivadas de uma regulamentação excessiva, terminam por ampliar o grau de litigiosidade entre as Juntas Comerciais e os usuários dos seus serviços, diante do absurdo de exigências formuladas para o registro dos atos das empresas.748

747 BRASIL – Departamento Nacional do Registro do Comércio (DNRC) – Manual de atos de registro de Sociedade Limitada - 1.2 - Orientações e Procedimentos - Elementos do Contrato Social - O contrato social deverá conter, no mínimo, os seguintes elementos: a) título (Contrato Social); b) preâmbulo; c) corpo do contrato: c.1) cláusulas obrigatórias; d) fecho. Deverão constar do preâmbulo do contrato social: a) qualificação dos sócios e de seus representantes: sócio pessoa física (brasileiro ou estrangeiro) residente e domiciliado no País ou no exterior: nome civil, por extenso; nacionalidade; estado civil; data de nascimento, se solteiro; profissão; documento de identidade, número e órgão expedidor/UF; CPF; endereço residencial (tipo e nome do logradouro, nº, complemento, bairro/distrito, município, unidade federativa e CEP, se no País); sócio pessoa jurídica com sede no País: nome empresarial; nacionalidade; endereço da sede (tipo e nome do logradouro, nº, complemento, bairro/distrito, município, unidade federativa e CEP); Número de identificação do Registro de Empresa – NIRE ou número de inscrição no Cartório competente; CNPJ; sócio pessoa jurídica com sede no exterior: nome empresarial; nacionalidade; endereço da sede; CNPJ; b) tipo jurídico da sociedade (Sociedade Limitada). 1.2.7 - Cláusulas obrigatórias do contrato social - O corpo do contrato social deverá contemplar, obrigatoriamente, o seguinte: a) nome empresarial, que poderá ser firma social ou denominação social; b) capital da sociedade, expresso em moeda corrente, a quota de cada sócio, a forma e o prazo de sua integralização; c) endereço completo da sede (tipo e nome do logradouro, número, complemento, bairro/distrito, município, unidade federativa e CEP) bem como o endereço das filiais; d) declaração precisa e detalhada do objeto social; e) prazo de duração da sociedade; f) data de encerramento do exercício social, quando não coincidente com o ano civil; g) as pessoas naturais incumbidas da administração da sociedade, e seus poderes e atribuições; h) qualificação do administrador não sócio, designado no contrato; i) participação de cada sócio nos lucros e nas perdas; j) foro ou cláusula arbitral. 748 “Civil e administrativo. Sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Baixa do registro da mesma pela Junta Comercial. Ocorrência de erro na interpretação do negócio jurídico. 1. Por força da disposição inscrita no artigo 112 do Código Civil Brasileiro, nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção neles substanciada do que o sentido literal da linguagem. 2. Pondo em evidência o instrumento de "distrato social de sociedade limitada", levado a registro na Junta Comercial do Estado do Mato Grosso, que a vontade declarada não fora a de extinguir a sociedade, mas tão só encerrar as atividades de filial, ilegítimo o ato de baixa da pessoa jurídica. 3. Remessa oficial não provida.” (Tribunal Regional Federal da 1ª Região, 6ª Turma, REOMS - Remessa Ex-Officio em Mandado de Segurança 00014647520114013600, Relator Desembargador Federal Carlos Moreira Alves, 11/02/2014). “Administrativo. Mandado de segurança. Junta comercial. Arquivamento. Filial. Colidência de nome empresarial. Alteração da denominação social. Exigência desproporcional. Princípio da livre iniciativa. I - Afigura-se, na espécie, desarrazoada e desproporcional a exigência imposta no art. 10, inciso II, da Instrução Normativa nº 116/11 do Departamento Nacional de Registro do Comércio, de que a abertura de filial, quando houver caso de identidade ou semelhança entre nomes empresariais, será condicionada à alteração do nome empresarial da sociedade, eis que tal exigência, em face do prejuízo a ser ocasionado, equivaleria a impedimento ao exercício da atividade no respectivo ente federativo, em flagrante violação ao princípio constitucional da livre iniciativa. III - Apelação e remessa oficial desprovidas. Sentença mantida.” (Tribunal Regional Federal da 1ª Região, 5ª Turma, Apelação em Mandado de Segurança 00209666120104013300, Relator Juiz Federal Carlos Eduardo Castro Martins,

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7.3. Restrições científicas e didáticas do direito empresarial

Com a vigência do Código Civil de 2002, alguns autores, alienados de qualquer rigor científico, passaram a entender que, simplesmente, o direito comercial veio a ser extinto, perdeu a sua autonomia e a disciplina mercantil varrida do perfil acadêmico dos cursos de direito.749 A partir do Código de 2002, o direito comercial teria sido até mesmo revogado,750 e toda a normatividade dessa matéria ancestral, ancorada em forte base consuetudinária, substituída pelo novel direito empresarial.

Além dessa questão preliminar, da supressão do direito comercial como disciplina autônoma, mesmo na fase de transição, com a atualização dos currículos de direito comercial para a nova denominação de direito empresarial ou direito de empresa, vieram a ocorrer choques ou superposições curriculares, entre o direito comercial e o direito civil, especialmente em matéria societária, a partir das noções iniciais de pessoas jurídicas e, principalmente, em matéria contratual, considerando a tentativa do Código Civil de unificar o direito das obrigações. Desse modo, passou a haver duplicidade de matérias contratuais, especificamente a partir da compra e venda, que deixou de ser mercantil, ao passar a ser espécie negocial genérica. Outras modalidades contratuais, como a agência e distribuição e de transporte, de natureza

DJe 01/08/2013) “Administrativo. Mandado de segurança. Registro de alteração contratual na Junta Comercial. Sociedade entre cônjuges. Disposição do novo Código Civil ainda não vigente, à época. Inaplicabilidade. I - A regra inserta no art. 977, do novo Código Civil, que impede aos cônjuges, casados no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória, contratar sociedade entre si ou com terceiros, tem aplicação a partir da sua vigência, ocorrida em 11/01/2003, não atingindo os atos contratuais anteriores a esta data. II - Remessa oficial desprovida. Sentença confirmada.” (Tribunal Regional Federal da 1ª Região, 5ª Turma, REOMS 00159125220034013400, Relator Desembargador Federal Souza Prudente, DJe 18/04/2005). 749 Gustavo Ceroni Guedes, A Transformação do Direito Comercial em Direito Empresarial, FAEF, http://faef.revista.inf.br/imagens_arquivos/arquivos_destaque/QnPqODaM10HHXxG_2013-4-24-10-4-37.pdf, 25/11/2014. 750 Sobre a “revogação” do direito comercial, afirma Nadialice Francischini: “Com a promulgação do Código Civil de 2002, foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro o Direito Empresarial revogando o Direito Comercial, juntamente com a primeira parte do Código Comercial. Este era regulado pela teoria dos atos de comércio, dependendo de descrição legal dos mesmos para determinar quais atividades eram tuteladas. Por sua vez, o Direito Empresarial está fundamentado na teoria da atividade da empresa, sendo esta a atividade economicamente organizada com o fim de lucro.” Direito Empresarial: muito além do Direito Comercial, Revista Direito, artigo eletrônico, em http://revistadireito.com/direito-empresarial-muito-alem-do-direito-comercial/, 20/05/2014.

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comercial por excelência, passaram a ser objeto de estudo tanto nas cadeiras de direito civil, como nas disciplinas de direito empresarial ou comercial.

Todavia, os contratos empresariais ou mercantis seguem uma metodologia própria, porque são contratos em cadeia e executados em massa, que não se esgotam na relação contratual entre duas pessoas, como acontece, por exemplo, com uma compra e venda civil. A metodologia interdisciplinar dos contratos mercantis, que estão sempre interagindo com questões econômicas, tecnológicas, administrativas, mercadológicas, tributárias, trabalhistas, exige uma abordagem científica bem mais ampla nos cursos de direito.

No campo didático-pedagógico, o direito comercial não desapareceu dos currículos acadêmicos. A matéria comercial não foi, sem embargo, simplesmente incorporada ao direito civil. Tamanha heresia científica jamais poderia ter sido cometida. Mas, na grande maioria das faculdades de direito, a partir do Código de 2002, a denominação da disciplina foi alterada para direito de empresa ou direito empresarial. Em matérias como sociedades anônimas e falência, todavia, a disciplina comercial permaneceu intocada em seus princípios e fundamentos dogmáticos.

Na opinião de Ivo Waisberg, o direito comercial possui características especiais e próprias, podendo ser definido como o direito do mercado, o direito que representa o suporte jurídico do capitalismo.751 O sistema produtivo e as relações econômicas são apreendidos e assim objeto de regulação pelo direito comercial, como direito especializado. Essa especialização exige um tratamento metodológico e científico separado do direito privado comum, das relações em que o caráter patrimonialista e econômico não possui referibilidade profissional, permanente, relacionado com a cadeia produtiva, com os atos em massa da atividade comercial.

751 “O direito comercial é o ramo do Direito que se desenvolveu e deu suporte ao meio de produção capitalista. Em outras palavras, o surgimento de uma subárea do direito privado voltada fundamentalmente para viabilizar a relação entre os comerciantes inicialmente e, mais tarde, entre os agentes econômicos de produção, incluindo a indústria e o que veio a se constituir economicamente como empresa, foi peça vital para o progresso do capitalismo. É inegável a relação entre o tipo específico de meio de produção e o surgimento do direito comercial”. (O Projeto de Lei nº 1.572/2011 e a Autonomia do Direito Comercial, em Fábio Ulhoa Coelho, Tiago Asfor Rocha Lima e Marcelo Guedes Nunes, org., Reflexões sobre o projeto de Código Comercial, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 69).

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7.4. O projeto de novo Código Comercial e sua justificação

O regime do Código Civil de 2002, sem sombra de dúvidas, gerou uma mudança radical nos conceitos e na disciplina normativa da empresa no âmbito da atividade econômica. A empresa passou a ser considerada como objeto e conceito fundamental do direito comercial, regulado pelo novo direito empresarial. Mas, como observado anteriormente, o regime comercialista não desapareceu nem foi pulverizado pela codificação civilista, permanecendo hígido e vigorante, como, por exemplo, na legislação das sociedades anônimas, na tipologia dos contratos mercantis e no sistema falimentar.

O Projeto de um novo Código Comercial, diante de todas as contradições e incongruências do regime do direito de empresa do Código Civil de 2002, surgiu, pelos idos de 2011, por obra de uma iniciativa quixotesca do Professor Fábio Ulhoa Coelho. E o ponto de partida para a discussão da real necessidade de um novo Código Comercial decorreu da constatação de que o direito comercial estava perdendo os seus valores, seus princípios históricos, que sempre modularam a sua evolução, ao considerar que “os valores do direito comercial estão esgarçados.”752

Esgarçar tem como sentido o ato de rasgar, de desfiar o tecido, mas também pode significar o ato de fragmentar.753 Na verdade, podemos considerar que os valores e princípios do direito comercial encontram-se fragmentados, espalhados por diversas outras áreas e subramos do direito privado, sem uma unicidade lógica, perdidos desde que o direito comercial teve constestadas as suas autonomias científica, legislativa e didática. Na opinião de Fábio Ulhoa Coelho, por culpa dos próprios comercialistas. 754

752 O futuro do direito comercial, São Paulo, Saraiva, 2011, p. 7. 753 Antonio Houaiss, Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Edição Beta, São Paulo, www.uol.com.br, 2014. 754 “A responsabilidade pelo esgarçar dos valores do direito comercial é dos comercialistas, que tardaram a perceber as mudanças introduzidas pela argumentação por princípios na forma como se decidem as demandas judiciais entre nós, depois da Constituição de 1988. A resistência a estas mudanças, embora heróica e competente, não produziu nenhum resultado significativo. O direito comercial, malgrado os esforços doutrinários empreendidos, não consegue firmar-se numa sintonia

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Todavia, demonstrou-se evidente a desconexão científica do direito de empresa disciplinado dentro do sistema de direito comum. Essa desconexão científica entre o direito comercial e o direito privado geral é até mesmo reconhecida pelos civilistas, a exemplo de Luiz Edson Fachin, ao analisar as razões que estão hoje a justificar um novo projeto de Código Comercial.755

Diante da crise do direito comercial, da ausência de consistência e de deficiência do sistema normativo, provocado pela imposição artificial do direito de empresa pelo Código Civil de 2002, foi se formando e crescendo um legítimo movimento pela revitalização do direito comercial no Brasil a partir de uma avaliação coerente das reais necessidades de recodificação do sistema normativo empresarial. Observou então Fábio Ulhoa Coelho que, a partir de uma iniciativa desbravadora, instaurou-se “um pungente movimento de revitalização do direito comercial. O seu motor de propulsão é fácil de identificar: a maturação do processo de desenvolvimento econômico”, e essa nova “posição econômica demanda um novo direito comercial.”756

O projeto de Código Comercial nasceu dessa necessidade de restaurar a dignidade do direito mercantil e de reafirmação dos seus valores e da sua autonomia como disciplina jurídica especializada. Mesmo sob as críticas de alguns doutrinadores ao processo de codificação,757 inclusive em face do movimento de descodificação e

própria.” (Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 19). 755 “Faticamente, os valores inerentes ao Direito Comercial estão esgarçados, vez que dita unificação do direito privado das obrigações acabou por olvidar as especificidades de tal desinência jurídica”, e assim, “enveredamos a reproduzir um entendimento anacrônico, fazendo contratar a complexidade social ante os estagnados axiomas do Direito Comercial”, e “ao encastelar o Direito Comercial em uma unificação legislativa, observamos, mesmo sob a moção de novos ventos”, [que] foram mantidos “vetustos e anacrônicos conceitos que engessam, ainda mais, o exercício hermenêutico e jurisprudencial.” (Correspondência citada por Fábio Ulhoa Coelho, em Princípios do direito comercial, com anotações ao Projeto de Código Comercial, São Paulo, Saraiva, 2012, p. 59-60. 756 Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 11. 757 Um dos principais críticos do projeto de Código Comercial, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, assim manifestou sua opinião: “A ideia de código, em primeiro lugar, é algo deslocado no tempo. Só se justificaria para exprimir um conjunto de regras jurídicas gerais, o que o projeto em questão não faz. Pelo contrário, é de uma exuberante prolixidade, contendo 670 artigos, afora incisos e parágrafos, e pretende regular matérias as mais díspares, tais como o empresário e as sociedades empresárias, o estabelecimento, as obrigações e contratos empresariais, os títulos de crédito (entre os quais os "títulos armazeneiros"), a recuperação judicial, extrajudicial e a falência, o agronegócio, o "processo empresarial", etc., propondo ainda alterações nos Códigos Civil e Penal. (...) Não é necessário um novo Código Comercial. No que diz com o direito das obrigações, sua unificação segue a sábia lição do nosso grande Teixeira de Freitas que, décadas antes de Vivante, em 20/09/1867, a propôs ao Governo Imperial. Muitos outros equívocos do projeto poderiam ainda ser apontados, mas o reduzido espaço deste artigo é insuficiente para tanto. (...) Esse desiderato,

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de regulação dos microssistemas normativos defendido por Natalino Irti,758 a iniciativa de um novo sistema comercialista seguiu angariando a acumulando, cada vez mais, apoio diante dos problemas práticos derivados do inconsistente regime do direito de empresa regulado no Código Civil.

Fábio Konder Comparato já havia observado que, “na família dos direitos romano-germânicos, pode-se dizer que a função precípua de um código é exprimir um conjunto de regras jurídicas gerais, constituintes de um novo jus commune, que enforma e ilumina a interpretação desse mare magnum crescente da legislação extravagante.”759 Essa nova conformação jurídica demonstra, hoje, evidente exigência de restauração do direito comercial e dos seus princípios, diante das contradições conceituais do regime civilista do direito de empresa, que está a confundir-se e confrontar-se diante da legislação comercial complementar.

Especialmente no âmbito do direito comercial, em que a legislação extravagante até superava o quantitativo de normas do velho Código Comercial do Império, como nas normas societárias, contratuais e falimentares, mais ainda se torna apropriada uma nova codificação, que, se antes era justificada em razão da possível compatibilização do regime do direito de empresa dentro do Código Civil, no momento presente esse processo de recodificação representa a única alternativa legislativa lógica para a restauração da unicidade e coerência científica do direito comercial.

Segundo assim coloca Fábio UIhoa Coelho,760 autor do primeiro projeto que começou a tramitar na Câmara dos Deputados, em 2011,761 a recodificação do direito

segundo nos parece, não pressupõe um novo Código Comercial, o qual não tinha sido reclamado por ninguém até agora, e seguramente não será alcançado pelo projeto que ora tramita no Congresso Nacional.” (Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, O projeto do Código Comercial, Migalhas, Revista Eletrônica, http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI146663,61044-O+projeto+do+Codigo+Comercial, 22/07/2014). 758 Natalino Irti, L’età della decodificazione, cit., p. 22. 759 Fábio Konder Comparato, Projeto de Código Civil, em Ensaios e pareceres de Direito Empresarial, cit., p. 545. 760 “Propus um código que pudesse servir de instrumento ao inadiável recoser dos esgarçados valores do direito comercial. Para tanto, tem que ser um código com forte acento principiológico, que enuncie, no direito positivo, os princípios do direito comercial. Sendo algo inédito, em todo o mundo, um Código Comercial assim caracterizado, entendi que a forma mais direta e eficaz para apresentação da proposta seria por meio de uma minuta.” (Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 22). 761 BRASIL, Câmara dos Deputados, Projeto de Lei 1.572/2011, apresentado pelo Deputado Vicente Cândido (PT/SP).

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comercial brasileiro justifica-se, também, para retirar o direito comercial do estado de isolamento a que foi relegado, com a perda da sua centralidade, coerência interna e de harmonia científica.762 Esse processo de isolamento resultou da imposição civilista do regime do direito de empresa, totalmente alheio ao processo econômico nacional, da construção histórica das práticas de mercado na realidade atual de revolução tecnológica e de globalização.

Na verdade, existem dois projetos de lei destinados a implantar um novo Código Comercial no Brasil. O que foi apresentado e encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 1.572/2011), e outro que foi elaborado no âmbito do Senado Federal, por uma Comissão de Juristas, também sob a coordenação do Professor Fábio Ulhoa Coelho, e que começou a tramitar em 2013 (PLS 487). A ideia é que ambos os projetos corram paralelamente, permitindo uma apreciação simultânea por ambas as casas do Congresso Nacional, o que facilitará e certamente agilizará sua aprovação final.

A finalidade precípua do novo Código Comercial é, assim, segundo Fábio Ulhoa Coelho, recuperar a centralidade do direito comercial,763 a partir da restauração da organicidade da matéria empresarial e da atualização normativa, de acordo, coerentemente, com a realidade econômica nacional.

A matéria comercial encontra-se dispersa por várias leis e prejudicada pela ausência de sistematização normativa, e a sua pretensa unificação e uniformização no Código Civil de 2002 muito mais dificulta do que facilita a compreensão da dogmática empresarial. Tanto para o empresário nacional, como principalmente para o investidor estrangeiro, o modo de regulação acéfalo do direito de empresa no Brasil dificulta a sua inclusão no mundo econômico globalizado. Por isso, a preocupação

762 “O resultado do isolamento do direito comercial foi lamentável. Regras importantes da nossa disciplina, destinadas a proteger e atrair investimentos – como é, por exemplo, a regra da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais -, tiveram sua eficácia seriamente comprometida pela generalizada distorção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.” (Os desafios do direito comercial, com anotação do projeto de Código Comercial, São Paulo, Saraiva, 2014, p. 13). 763 “Um Código é principiológico quando corresponde ao paradigma dos princípios. Quando, em outros termos, confere centralidade aos princípios. E aqui, adentra-se ao cerne da questão. A palavra-chave para compreender tanto o paradigma dos princípios como o caráter principiológico do Projeto de Código Comercial em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal é esta: centralidade.” (Os desafios do direito comercial, com anotação do projeto de Código Comercial, São Paulo, Saraiva, 2014, p. 15).

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principal do projeto de Código Comercial foi resgatar a coerência intrasistemática do direito comercial e organizar, de modo bem mais compreensível, o conjunto de normas que devem regular as atividades das empresas nas relações de mercado.

O projeto de Código Comercial em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 1.572/2011), após amplos debates, em seminários e reuniões de trabalho da Comissão Especial em todos os Estados da Federação, da apresentação de emendas e consolidação das suas disposições, inclusive em razão da tramitação paralela do projeto no Senado Federal (PLS 487/2013), encontra-se estruturado do modo seguinte:

Livro I – Da empresa. Livro II – Das sociedades empresárias. Livro III – Das obrigações dos empresários. Livro IV – Da crise da empresa. Livro V – Do agronegócio. Livro VI – Do direito comercial marítimo. Livro VII - Do Alcance deste Código, das Disposições Finais e Transitórias.

A partir do projeto apresentado na Câmara dos Deputados, com as melhorias resultantes de emendas e discussões nas audiências públicas realizadas, uma Comissão de Juristas, integrada pelos principais doutrinadores do direito comercial brasileiro,764 à frente o Professor Fábio Ulhoa Coelho, elaborou um novo projeto de Código Comercial para apresentação pelo Senado Federal. Esse segundo projeto (PLS 487/2013) incorporou uma série de propostas de aperfeiçoamento, a começar pela concentração dos princípios do direito comercial nas disposições iniciais, conferindo maior organicidade na sua estruturação, e inserindo três outros institutos regulados por leis esparsas e ainda pela parte que vigorava do Código Comercial de 1850: o direito do agronegócio, o direito comercial marítimo e o processo empresarial.

764 Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Arnoldo Wald, Bruno Dantas, Cleantho de Moura Rizzo Neto, Clóvis Cunha da Gama Malcher Filho, Daniel Beltrão de Rossiter Correia, Eduardo Montenegro Serur, Felipe Lückmann Fabro, Jairo Saddi, Marcelo Guedes Nunes, Márcio Souza Guimarães, Newton de Lucca, Osmar Brina Corrêa Lima, Paulo de Moraes Penalva Santos, Ricardo Lupion Garcia, Tiago Asfor Rocha Lima e Uinie Caminha.

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Também ficou definitivamente pacificado que o novo Código Comercial não deveria regular os demais microssistemas normativos consolidados, como a legislação da sociedade por ações (Lei 6.404/1976) e de recuperação de empresas e falência (Lei 11.101/2005). Apenas os princípios relativos a esses microssistemas foram enunciados na parte geral do projeto do Senado, que assim está estruturado:

Parte Geral - Livro I – Do Direito Comercial - Título Único – Das normas do direito comercial - Capítulo I – Das disposições introdutórias - Capítulo II – Dos princípios do direito comercial - Capítulo III – Da autorregulamentação. Livro II – Da Pessoa do Empresário - Título I – Do conceito e registro do empresário - Capítulo I – Do conceito - Capítulo II – Do Registro Público de Empresas - Título II – Do empresário individual - Capítulo I – Da inscrição - Capítulo II – Da capacidade e impedimentos - Capítulo III – Do empresário casado - Capítulo IV – Do exercício da empresa em regime fiduciário. Livro III – Dos bens e da atividade do empresário - Título I – Dos bens do empresário - Capítulo I – Do nome empresarial - Capítulo II – Do estabelecimento empresarial - Título II – Da atividade do empresário - Capítulo I – Do registro contábil da atividade - Capítulo II – Da concorrência desleal e parasitismo. Livro IV – Dos fatos jurídicos empresariais - Título Único – Dos negócios jurídicos empresariais - Capítulo I – Do conceito, validade e interpretação do negócio jurídico empresarial - Capítulo II – Da prescrição e decadência. Parte Especial - Livro I – Das Sociedades - Título I – Das disposições comuns a qualquer sociedade - Capítulo I – Das disposições introdutórias - Capítulo II – Dos atos societários - Capítulo III – Da personalidade jurídica - Capítulo IV – Da nacionalidade da sociedade - Capítulo V – Da sociedade dependente de autorização - Título II – Das sociedades por quotas - Capítulo I – Das quotas - Capítulo II – Da constituição da sociedade - Capítulo III – Das deliberações sociais - Capítulo IV – Da administração - Capítulo V – Dos sócios - Capítulo VI – Da Liquidação de quota - Capítulo VII – Da dissolução e liquidação - Capítulo VIII – Das espécies de sociedades por quotas - Título III – Das sociedades por ações - Capítulo Único – Da sociedade anônima - Título IV – Da Sociedade de profissão intelectual - Título V – Das operações societárias - Capítulo I – Da transformação - Capítulo II – Da incorporação, fusão e cisão - Título VI – Das ligações societárias - Capítulo I – Das Sociedades Coligadas, Controladoras e Controladas - Capítulo II – Do grupo de sociedades - Capítulo III – Do consórcio. Livro II – Das obrigações dos empresários - Título I – Das obrigações empresariais - Capítulo I – Das normas específicas sobre as obrigações entre empresários – Capítulo II – Da responsabilidade civil - Título II – Dos contratos empresariais - Subtítulo I – Dos contratos empresariais em geral - Capítulo I – Do Regime Jurídico dos Contratos Empresariais - Capítulo II – Da vigência e extinção

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do contrato - Capítulo III – Da revisão do contrato empresarial - Subtítulo II – Dos contratos empresariais em espécie - Capítulo I – da compra e venda mercantil - Capítulo II – dos contratos de colaboração empresarial - Capítulo III – Dos contratos de logística - Capítulo IV – Dos contratos financeiros - Capítulo V – Do contrato de investimento conjunto - Capítulo VI – Do contrato fiduciário - Capítulo VII – Do Fomento Mercantil - Capítulo VIII – Do contrato de Shopping Center - Título III – Dos títulos de crédito - Capítulo I – Das disposições gerais - Capítulo II – Dos atos cambiários - Capítulo III – Da duplicata - Capítulo IV – Dos títulos armazeneiros - Capítulo V – Do Conhecimento de Transporte de Cargas. Livro III – Do agronegócio - Título I – Da Atividade Empresarial no Agronegócio - Capítulo I – Dos conceitos fundamentais - Capítulo II – Dos negócios e da alocação dos riscos na cadeia agroindustrial - Título II – Do contrato de integração agroindustrial - Capítulo I – Dos conceitos - Capítulo II – Dos requisitos - Capítulo III – Do sistema de integração - Título III – Dos títulos de crédito do agronegócio - Capítulo I – Das disposições gerais - Capítulo II – Da Cédula de Produto Rural - Capítulo III – Dos títulos armazeneiros do agronegócio - Capítulo IV – Dos títulos vinculados a direitos creditórios. Livro IV – Do Direito Comercial Marítimo - Título I – Das disposições gerais - Capítulo I – Da regência do Direito Comercial Marítimo - Capítulo II – Do âmbito de aplicação do direito comercial marítimo - Capítulo III - Das embarcações e sua propriedade - Título II – Dos sujeitos - Capítulo I - Do armador - Capítulo II - Do operador ou administrador de embarcações - Capítulo III - Do capitão - Capítulo IV - Do prático - Capítulo V - Do agente marítimo - Capítulo VI - Dos operadores de transporte - Título III – Das obrigações, contratos e títulos de direito marítimo - Capítulo I – Das disposições introdutórias - Capítulo II - Dos contratos de utilização de embarcação - Capítulo III - Do transporte aquaviário de cargas - Capítulo IV - Do conhecimento marítimo - Capítulo V - Da limitação de responsabilidade do armador - Título IV - Da hipoteca naval e dos privilégios marítimos - Capítulo I - Da hipoteca naval - Capítulo II - Dos privilégios marítimos - Título V – Das Avarias - Capítulo I - Da natureza e classificação das avarias - Capítulo II - Da liquidação, repartição e contribuição da avaria grossa - Título VI – Dos danos causados por abalroação - Título VII – Das arribadas forçadas. Livro V – Do processo empresarial - Título I – Das regras comuns ao processo empresarial - Capítulo I – Das disposições gerais - Capítulo I – Das provas - Título II – Dos procedimentos especiais - Capítulo I – Da ação de dissolução parcial de sociedade - Capítulo II – Da Superação do Impasse - Capítulo III – Da ação de responsabilidade civil por danos à sociedade - Capítulo IV – Da tutela específica de acordo de acionistas ou quotistas - Capítulo V – Da ação de exigir contas - Capítulo VI - Das ações de invalidação de deliberações assembleares - Capítulo VII - Da intervenção judicial - Título III – Do processo empresarial marítimo - Capítulo I – Das disposições gerais - Capítulo II - Do Embargo de Embarcação - Capítulo III - Do procedimento de limitação de responsabilidade - Capítulo IV – Da execução para recebimento de fretes - Título IV - Da falência e da recuperação judicial transnacionais - Capítulo I – Da falência transnacional - Capítulo II – Da recuperação

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judicial transnacional - Título V – Da jurisdição especializada - Capítulo Único – Dos juízos, turmas e câmaras de direito comercial ou empresarial. Parte Complementar - Livro único – Das disposições finais e transitórias - Título I – Das disposições finais - Capítulo I – Do alcance do Código Comercial - Capítulo II – Das disposições finais sobre o Registro Público de Empresas - Capítulo III – Das disposições finais sobre microempreendedor individual, microempresário, empresário de pequeno porte e sociedades de grande porte - Capítulo IV – Das demais disposições finais - Título II – Das Disposições Transitórias - Capítulo I – Das alterações no Código Civil - Capítulo II – Das alterações na Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 - Capítulo III – Das demais alterações - Capítulo IV – Das revogações e vigência.

Além da consolidação da quase integralidade do regime normativo de regulação da empresa, o Projeto de Código Comercial do Senado restaura a lógica da regulação das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, que voltam a ser denominadas como sociedades por quotas. De modo coerente, o projeto não adota mais o nome sociedade empresária para as sociedades, que devem ser designadas como sociedades comerciais ou mercantis, como assim sempre foram conhecidas na história do direito comercial. A nomenclatura da sociedade comercial como sociedade empresária, introduzida artificialmente pelo Código Civil de 2002, sempre foi criticada por Fábio Konder Comparato, que considera essa expressão evidente “abuso de retórica”.765

Com a aprovação do novo Código Comercial, todo o Livro II do Código Civil (artigos 966 a 1.195), que regula o Direito de Empresa, restará revogado, e o sistema de direito comercial irá recuperar a sua lógica, harmonia e historicidade, como o regime especial da empresa, sepultando, em definitivo, esse incongruente e anacrônico regime civilista da atividade econômica e do mercado.

765 A reforma da empresa, cit., p. 68.

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7.5. O retorno metodológico aos princípios do direito comercial

Os princípios sempre representaram, para o direito, um vetor essencial de interpretação normativa. São os princípios considerados sobrenormas porque sua valência e eficácia orienta a aplicação das normas inferiores. Todavia, do mesmo modo que as normas, os princípios enunciam regras gerais de conduta, dirigidas mais ao intérpretes e aplicadores da lei, inclusive no processo de integração normativa.766

Especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, uma carta principiológica, os princípios passaram a representar o método hermenêutico preponderante, denominado como argumentação por princípios.767

No âmbito específico da ordem econômica, o art. 170 da Constituição estabelece uma série de princípios estruturantes,768 que devem orientar e limitar, também, a atuação do legislador. Todavia, desde o art. 1º da Constituição, está expresso que o princípio da livre iniciativa ou livre empresa, representa fundamento da própria República, do seu sistema econômico capitalista.

Os princípios do direito comercial são elaborados pela doutrina e assim reconhecidos pela legislação quando alcançam esse status de norma fundamental,

766 Na definição de Fábio Ulhoa Coelho, “Os princípios jurídicos são regras de conduta, como todas as demais normas componentes do ordenamento vigente num país. Caracteriza-os a extensa proporção de seu âmbito de incidência, de modo a servirem de elementos informadores da interpretação das demais normas jurídicas e à solução de lacunas.” (Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 13). 767 “Do direito tributário, a argumentação por princípios disseminou-se para o direito constitucional, administrativo, previdenciário, processual civil e, enfim, dominou todo o campo publicista.” (Fábio Ulhoa Coelho) Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 15. 768 CF, Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

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em uma situação de supraordenação normativa, como assim descortinava Lourival Vilanova.769 Para Fábio Ulhoa Coelho, “os princípios não são, por si sós, normas jurídicas prevalecentes sobre as demais regras de conduta. Auxiliam a interpretação destas e suprem lacunas, mas não as substituem, nem podem (por si sós) afastar sua aplicação.”770

Os princípios aplicáveis ao direito comercial sempre foram assim desenvolvidos e estudados, nas áreas da teoria da empresa, como o princípio da função social da empresa, do direito societário, como o princípio da desconsideração da personalidade jurídica, ou no campo do direito cambial, a exemplo do princípio da inoponibilidade das exceções pessoais.771

Todavia, os princípios do direito comercial estavam fragmentados em diversos diplomas legais, sem uma compreensão coerente e uniforme, razão pela qual o Projeto de Código Comercial adotou como fundamento essencial para sua aplicação e interpretação a fixação clara dos princípios aplicados às empresas, como fonte de integração normativa.772 A característica básica ou objetivo maior do projeto de Código Comercial foi a de resgatar e reafirmar os princípios do direito comercial. Esses princípios encontravam-se dispersos, fragmentados e esgarçados, perdidos e até esquecidos na confusa disciplina civilista da empresa.

Nesse sentido, o Projeto de Código Comercial considera como princípios fundamentais do direito comercial: a liberdade de iniciativa empresarial;773 a liberdade

769 As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., p. 66. 770 Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 14. 771 Observa Fábio Ulhoa Coelho que, “Entre os sub-ramos do direito comercial, o cambiário é o único, desde sempre, marcadamente principiológico” (Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 55). 772 PLS 487/2013 - Art. 4º. São normas do direito comercial: I – os princípios e regras da Constituição Federal aplicáveis; II – as regras prescritas por este Código, pela lei, tratados e convenções; III – os princípios expressamente enunciados neste Código ou na lei comercial; IV – as regras prescritas pelos decretos, instruções e regulamentos editados pelas autoridades competentes; V – as de autorregulamentação; e V – as consuetudinárias. § 1º. A norma consuetudinária não tem eficácia enquanto vigorar outra norma de direito comercial. § 2º. Nenhum princípio, expresso ou implícito, pode ser invocado para afastar a aplicação de qualquer disposição deste Código ou da lei, ressalvada a hipótese de inconstitucionalidade da regra. 773 PLS 487/2013 - Art. 6º. Decorre do princípio da liberdade de iniciativa empresarial o reconhecimento: I – da imprescindibilidade, no sistema capitalista, da empresa privada para o atendimento das necessidades de cada um e de todos; II – do lucro obtido com a exploração regular e lícita de empresa como o principal fator de motivação da iniciativa privada; III – da importância, para toda a sociedade, da proteção jurídica assegurada ao investimento privado feito com vistas ao fornecimento de produtos

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de competição;774 a função econômica e social da empresa775 e a ética e boa-fé776 (PLS 487/2013, art. 5º).

Para cada um dos livros ou matérias do código, como relativos às sociedades comerciais,777 aos contratos empresariais,778 aos títulos de crédito,779 ao direito do agronegócio,780 à recuperação de empresas e falência,781 ao direito comercial marítimo782 e ao processo empresarial,783 também foram enunciados os princípios instrumentais aplicáveis e que devem orientar a compreensão de cada um desses institutos do direito comercial.

A reconstrução do direito comercial a partir dos seus princípios é o maior desafio legislativo que os operadores do direito comercial terão pela frente, pela qual

e serviços, na criação, consolidação ou ampliação de mercados consumidores, na inovação e no desenvolvimento econômico do país; e IV – da empresa privada como importante pólo gerador de postos de trabalho e tributos, bem como fomentadora de riqueza local, regional, nacional e global. 774 PLS 487/2013 - Art. 7º. No âmbito deste Código, a liberdade de iniciativa empresarial e de competição é protegida mediante a coibição da concorrência desleal e de condutas parasitárias. 775 PLS 487/2013 - Art. 8º. A empresa cumpre sua função econômica e social ao gerar empregos, tributos e riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econômico da comunidade em que atua, ao adotar práticas empresariais com observância de toda legislação aplicável à sua atividade, em especial aquela voltada à proteção do meio ambiente, dos direitos dos consumidores e da livre competição. 776 PLS 487/2013 - Art. 9º. Pelo princípio da ética e boa-fé, o empresário deve buscar a realização de seus interesses na exploração da atividade empresarial cumprindo rigorosamente a lei e observando os preceitos morais aceitos pela sociedade brasileira do seu tempo, bem como adotar constante postura proba, leal, conciliatória e colaborativa. 777 PLS 487/2013 - Art. 10. São princípios gerais aplicáveis às sociedades: I – Autonomia patrimonial; II – Tipicidade; III – Preservação da empresa economicamente viável; IV – Proteção do investidor pela limitação de sua responsabilidade na aplicação de recursos na atividade econômica; V – Formação da vontade social por deliberação dos sócios; e VI – Proteção dos sócios não controladores. 778 PLS 487/2013 - Art. 17. São princípios aplicáveis aos contratos empresariais: I – autonomia da vontade; II – plena vinculação dos contratantes ao contrato; III – proteção do contratante empresarialmente dependente nas relações contratuais assimétricas; e IV – reconhecimento dos usos e costumes do comércio. 779 PLS 487/2013 - Art. 22. São princípios do direito cambial: I – literalidade; II – autonomia das obrigações cambiais; e III – inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé. 780 PLS 487/2013 - Art. 26. São princípios aplicáveis ao agronegócio e sistemas agroindustriais: I – sustentabilidade das atividades do agronegócio; II – integração e proteção das atividades da cadeia agroindustrial; III – intervenção mínima nas relações do agronegócio; e IV – parassuficiência dos que inserem sua atividade no agronegócio. 781 PLS 487/2013 - Art. 32. São princípios aplicáveis à falência e recuperação das empresas: I – inerência do risco a qualquer atividade empresarial; II – impacto social da crise da empresa; III – transparência nas medidas de prevenção e solução da crise; e IV – cooperação judiciária internacional; 782 PLS 487/2013 - Art. 39. São princípios do direito comercial marítimo: I – princípio do risco marítimo; II – princípio da garantia patrimonial; III – princípio da limitação de responsabilidade; IV – princípio da origem costumeira; V – princípio da informalidade. 783 PLS 487/2013 - Art. 46. São princípios do processo empresarial: I – Autonomia procedimental das partes; II – Presunção de igualdade real das partes; III – Intervenção mínima; e IV – Atenção às externalidades. Parágrafo único. No processo empresarial, serão observados os princípios que informam o devido processo legal, da celeridade e da economia processual.

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devem unir os esforços e a pressão política necessárias ao avanço do projeto de novo código. Esse esforço, que começou isoladamente com a iniciativa do Professor Fábio Ulhoa Coelho, aos poucos vai somando mais e mais adeptos e granjeando apoio na academia, na classe empresarial, entre os advogados e demais operadores do direito, e, como esteio fundamental, no Congresso Nacional e no Poder Executivo da União.

Como destacado por Fábio Ulhoa Coelho, “o direito comercial está visivelmente isolado no processo de disseminação da argumentação por princípios”,784 e a sua revitalização depende, hoje, da “enunciação, exame e difusão dos princípios desta área jurídica”.785

Deve ser observado, todavia, que a aplicação dos princípios não poderá servir para banalizar e pasteurizar a interpretação das normas comerciais, pois cabe considerar que “um princípio só será hierarquicamente superior a determinada regra se tiver sido enunciado por norma de categoria mais elevada”.786

Nesse sentido, o enunciado pelo § 2º do art. 4º do PLC 487/2013: “Nenhum princípio, expresso ou implícito, pode ser invocado para afastar a aplicação de qualquer disposição deste Código ou da lei, ressalvada a hipótese de inconstitucionalidade da regra”. Apesar desse disposto ter sido apontado por alguns comercialistas como contraditório,787 essa regra vem, exatamente, esclarecer que o princípio não pode ser aplicado ou incidir contra expressa regra de lei, devendo servir, isso sim, como farol de orientação do intérprete, para a melhor aplicação do direito e também para suprir as lacunas que, inevitavelmente, sempre surgirão no âmbito dos casos concretos e dos fatos relacionados a um direito bastante dinâmico e tão inovador como o direito comercial.

784 Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 16. 785 Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 14. 786 Fábio Ulhoa Coelho, Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 13. 787 Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, O projeto do Código Comercial – Um arremedo de projeto de lei, Migalhas Revista Eletrônica, http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI154743, 51045- O+projeto+de+Codigo+ Comercial+um+arremedo+de+projeto+de+lei, 22/07/2014.

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7.6. Redefinição das fronteiras do direito comercial, do direito civil e do direito do consumidor

O novo Código Comercial deverá, se corretamente aplicado, possibilitar a redefinição clara das fronteiras dogmáticas entre o direito comercial, o direito civil e o direito do consumidor. Essas fronteiras encontram-se, até hoje, ainda confusas e com áreas cinzentas de interpenetração, pela ausência de normas que delimitem a incidência e regulação por cada área ou ramo do direito privado ou econômico. Nesse sentido, o art. 380 do Projeto de Lei do Senado 487/2013 tem como finalidade esclarecer e demarcar as fronteiras de aplicação das normas empresariais, separando, de modo claro e objetivo, o direito comercial do direito do consumidor, assim prescrevendo: “O Código de Defesa do Consumidor não é aplicável às obrigações dos empresários”. 788

As obrigações comerciais, portanto, não deverão mais ficar submetidas à interferência das normas consumeristas, restando eliminada ou definitivamente afastada a confusão criada pela vã tentativa de unificação do direito das obrigações pelo Código Civil de 2002, o qual ignorou, solenemente, o regime especial de proteção do consumidor instituído pela Constituição de 1988 (art. 5º, XXXII e art. 170, V) e regulamentado pela Lei nº 8.078/1990.789

Todavia, além de apartar a incidência simultânea de sistemas normativos distintos, pondera Fábio Ulhoa Coelho que “os valores do direito comercial não serão recosidos se simplesmente insistirmos em repetir sua formulação originária, acentuadamente individualista.”790 Isto porque, além de (re)construir um regime 788 PLS 487/2013 - Art. 380 - § 2º. No que não for regulado por este Código, aplica-se às obrigações dos empresários o Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002). § 3º. O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990) não é aplicável às obrigações dos empresários. 789 “Ignorando as especificidades do direito comercial, e seus princípios próprios, a unificação legislativa acabou não somente contribuindo enormemente para acentuar o esgarçar dos valores da disciplina, como também privou a ordem jurídica nacional do regramento adequado para o atual estágio de evolução da nossa economia, fortemente integrada ao processo de globalização. A unificação legislativa foi um erro. É preciso corrigí-lo, o quanto antes.” (Fábio Ulhoa Coelho, O futuro do direito comercial, cit., p. 8). 790 O futuro do direito comercial, cit., p. 7.

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normativo específico para a regulação da empresa, ele deve ser um regime novo, voltado para o mercado, e não para o individualismo que prevalecia à época que o direito comercial era um direito eminentemente corporativista.

Por essa razão, os mais eminentes e experientes juristas do Brasil, a exemplo de Arnoldo Wald, defendem a aprovação do projeto de novo Código Comercial,791 para que seja restaurado e viabilizado um sistema moderno de regulação da empresa, coerente com o crescimento do país e com a sua inserção no mundo globalizado.

Na justificação e fundamentação da necessidade de implantação do novo Código Comercial, Fábio Ulhoa Coelho entende que “uma vez assentado que a segurança jurídica resultante da redução da imprevisibilidade das decisões judiciais aproveitaria a toda economia brasileira (a todos os brasileiros, por conseguinte), impõe-se a indagação: Como aumentar a previsibilidade das decisões judiciais atinentes às relações entre os empresários?”792 Para isso, Fábio Ulhoa Coelho considera que “precisamos mudar o foco e mostrar o quanto a proteção desse interesse privado dos sócios corresponde à proteção de interesses metaindividuais da coletividade, ao limitar os riscos e, portanto, contribuir para o barateamento dos produtos e serviços oferecidos ao mercado consumidor.”793

Sem embargo, existe, efetivamente, “uma necessidade do Brasil, de ajustar o arcabouço legislativo ao seu novo momento econômico,”794 para reduzir o grau de litigiosidade presente no sistema jurídico brasileiro, e assim diminuir e tornar previsíveis os custos das transações, ao contrário de opiniões contrárias e refratárias à reconstrução do nosso sistema normativo, sob a base de um falso laissez-faire, que

791 “Em tese, várias soluções legislativas poderiam ser adotadas, abrangendo desde a revisão do Código Civil até a elaboração de vários microssistemas, tratando das diversas matérias do direito empresarial. Mas a aprovação de um novo Código Comercial ou Empresarial nos parece o caminho mais lógico ou eficaz. É o que explica a boa acolhida da oportuna sugestão de um novo Código Comercial ou Empresarial, como direito especial, ao lado do nosso Código Civil, que continuaria sendo o diploma de direito comum. Teremos, assim, ao lado das normas gerais do cidadão (Código Civil), regras especiais de proteção ao consumidor (Código de Defesa do Consumidor) e ao empregado (CLT) e outras, tratando da estrutura e funcionamento da empresa e dos contratos empresariais (Código Comercial), dando maior coerência e segurança ao sistema jurídico e adequando-o às necessidades do século XXI, com uma visão do presente e do futuro.” (O Código Civil e o Projeto de Código Comercial, em Fábio Ulhoa Coelho, Tiago Asfor Rocha Lima e Marcelo Guedes Nunes, org., Reflexões sobre o projeto de Código Comercial, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 30). 792 Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 18. 793 O futuro do direito comercial, cit., p. 8. 794 Princípios do direito comercial, com anotações ao projeto de Código Comercial, cit., p. 11.

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defende uma intervenção mínima do Estado na atividade econômica, inclusive na esfera normativa.

Dentre os objetivos resultantes de um novo Código Comercial, encontra-se, pois, a necessidade de redução de litígios entre empresas e do consequente custo relativo a processos derivados da insegurança jurídica. Todavia, partindo de falsa premissa, alguns estudos passaram a ser divulgados no âmbito da doutrina especializada, entre os economistas e repercutidas pela imprensa, de que o novo Código Comercial iria representar um aumento no grau de litigiosidade, e que esse grau de litigiosidade iria implicar em uma elevação significativa de custos jurídicos.795

O projeto de novo Código Comercial tem como diretriz exatamente o sentido oposto: pacificar a interpretação e aplicação das normas comerciais, pela fixação de regras mais claras e inteligíveis para o empresário brasileiro e para o investidor estrangeiro.

Em conclusão, demonstra-se imperioso afastar do nosso sistema normativo uma regulação confusa, inespecífica, incompleta, obtusa, diante da matéria e dos negócios mercantis, elaborada sob outra realidade, para assim resgatar os valores e princípios do direito comercial que resultam, diretamente, da nossa real experiência econômica, social, cultural e tecnológica.

795 Em trabalho patrocinado pelo Insper, e desprovido de qualquer base científica confiável, elaborado pela economista Luciana Yeung, esta aduz que a aprovação de um projeto de Código Comercial representaria um enorme custo de R$ 182 bilhões para o País, custo esse que seria suportado pelas empresas brasileiras e estrangeiras com negócios no Brasil, em razão da suposta insegurança jurídica decorrente dessa inovação legislativa. Esse estudo parte de uma falsa, senão inapropriada premissa, ao considerar, para cálculo dos impactos do novo Código Comercial, ou como “parâmetro de comparação a Lei 11.101/2005, a chamada “Nova Lei das Falências”. Trata-se de uma lei que igualmente atingiu as empresas, mas de dimensão menor, com apenas 201 artigos, e sendo mais pontual”. Essa base de comparação demonstra-se absolutamente inconsistente, impertinente e inadequada. Não se pode comparar um novo sistema de direito comercial, baseado em princípios e normas que visam, exatamente, tornar mais claras e objetivas essas mesmas normas e princípios dos sujeitos do processo e de elaboração dos contratos e de relações mercantis, com uma lei que tem por natureza imanente, restrita, a litigiosidade entre credores e uma empresa devedora inadimplente, objeto de sua regulação (Lei 11.101/2005). A comparação ou utilização, tomando como base de análise, para alcançar essa conclusão absurda quanto ao suposto ou projetado custo da litigiosidade, referente a um novo Código Comercial, a partir de uma lei de insolvência, é demonstração evidente, cabal, de que essa pesquisadora, de direito e matéria jurídica, conhece muito pouco, ou quase nada. Sobre esse estudo carente de qualquer rigor científico e consistência jurídica, ver Luciana Yeung, Medindo os Impactos do PL 1.572 da Câmara dos Deputados, ou do PL 487 do Senado Federal, que propõem o Novo Código Comercial Brasileiro, Insper, Maio 2014, http://www.insper.edu.br/noticias/codigo-comercial-pode-gerar-perdas-de-r-182-bi-diz-estudo/, 12/05/2015).

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Capítulo 8

Do direito comercial ao direito empresarial

Partindo do regime jurídico de regulação da atividade econômica tal como hoje existente na legislação comercial não codificada, extravagante ao Código Civil de 2002, pretendeu este estudo realizar uma comparação entre as normas de conteúdo mercantil que têm por objeto disciplinar o fenômeno da empresa. Considerando, ademais, a necessidade de formulação de conceitos normativos próprios aplicáveis à regulação da atividade empresarial, este trabalho procedeu à análise de determinados fatos que não só servem como elementos de esclarecimento quanto a relações econômicas positivadas, mas que podem ser utilizados para questionar os critérios axiológicos que influenciaram o legislador no curso do processo de positivação do Código Civil de 2002.796

Em termos metodológicos, o presente trabalho teve como objetivo desenvolver:

a) a análise e interpretação das normas positivas de regulação da atividade da empresa no Código Civil de 2002 e na legislação comercial supletiva;

b) a pesquisa de precedentes doutrinários anteriores ao Código de 2002 que tratam do direito de empresa e dos conceitos normativos definidores da figura do empresário e das sociedades comerciais;

c) o estudo da bibliografia especializada em direito comercial e direito de empresa, nacional e estrangeira, para fins de fundamentação das razões e conclusões exploradas neste estudo;

d) a pesquisa da legislação comparada para investigação e análise dos modelos dogmáticos e dos sistemas de legislação empresarial adotados por outros países na regulação da empresa, especialmente na Itália, França, Espanha e Portugal.

796 Karl Engish, Introdução ao pensamento jurídico, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 6ª edição, 1983, p. 236.

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Com base nas fontes investigadas, este estudo analítico procurou destacar as principais antinomias presentes no regime do direito de empresa disciplinado nas normas do Código Civil de 2002, principalmente para demonstrar a ausência de critérios lógicos para a imposição desse regime estranho à normatividade histórica e à prática mercantil prevalentes em nossa realidade econômica.797 No plano de investigação teórica, o presente trabalho demonstrou que o direito comercial representa um complexo de normas que regula especial categoria de relações privadas, complexo de normas que, colocando-se no mesmo plano das outras normas contidas no Código Civil, destas se diferencia pela especialidade da matéria regulada, isto em relação ao conteúdo, não do ponto de vista estritamente formal.798

A comercialidade ou a mercantilidade do ato econômico deve ser juridicamente considerada, isto para que as atividades empresariais sejam diferenciadas das demais atividades econômicas não empresariais ou civis. Essa diferenciação é necessária para que o específico objeto do ato ou negócio seja legalmente determinado, e assim se possa definir:

a) a incidência e aplicação das normas de Direito Comercial na regulação de atos e negócios jurídicos de natureza econômica, em face da legislação supletiva especial e extravagante ao Código Civil;

b) a determinação da natureza mercantil da empresa para a caracterização da sua jurisdição administrativa de competência do Registro Público de Empresas Mercantis, função exercida pelas Juntas Comerciais, nos termos da Lei nº 8.934/1994;

c) a sujeição das empresas mercantis aos processos de recuperação e de falência, segundo o regime da Lei nº 11.101/2005;

d) a competência da jurisdição comercial especializada que vem sendo implantada em alguns Estados, com a criação de Varas Empresariais, para julgamento de processos de natureza mercantil e de obrigações derivadas de contratos comerciais não sujeitos ao regime especial de defesa do consumidor.

797 Sintetizando o pensamento de uma corrente doutrinária do direito comercial no Brasil, Haroldo Malheiros Duqclerc Verçosa pondera que “no campo do Direito de Empresa, o Código Civil/2002 não merece tão propalada glória. Mesmo porque veio na contramão do “direito da descodificação”, e, como não conseguiu unificar sob suas normas toda a tutela da empresa – velho problema conhecido de todos os comercialistas -, o tratamento da empresa constante do Código Civil/2002 não abrange, evidentemente, todo o Direito aplicável à empresa, mas somente pequena parte dele”. (Curso de Direito Comercial, vol. 1, cit., p. 105). 798 Giuseppe Ferri, Manuale di Diritto Commerciale, cit., p. 12.

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Além desses aspectos relacionados com a necessidade de diferenciação do direito comercial e da fixação da especificidade do seu objeto, em termos metodológicos, encontramos vários outros elementos que apontam sempre no sentido de manter a matéria comercial apartada do direito civil. Ainda que vinculados a uma base comum de direito privado, constante da parte geral e do direito das obrigações no código civil, o direito comercial retira o seu fundamento de validade diretamente da Constituição Federal (CF, art. 22, I), e assim determina seu próprio objeto e o método de tratamento do fenômeno econômico, centrado na atividade e nas relações da empresa.

Sendo, como visto, uma entidade essencialmente mercantil, a empresa não pode ser considerada como um ente de direito comum, nivelada às demais pessoas reguladas pelo direito civil, que não desempenham atividade com fins lucrativos. A empresa existe a partir de uma estrutura patrimonial destinada a essa função econômica, o que não se aplica na esfera privada não mercantil.799

A profissionalidade do exercício da empresa, a exigência de capital e de recursos, o caráter sempre oneroso das operações, a especialidade da sua organização, principalmente nas grandes empresas e corporações, suas demandas tecnológicas, todos esses fatores, por si só, exigem um tratamento diferenciado, que a estaticidade e conservadorismo do direito civil jamais poderá suprir.

Quando os doutrinadores contrários à unificação do direito privado contestavam, com argumentos dessa ordem, a impropriedade de redução do direito comercial a uma zona dogmática nas dependências do direito civil, Waldirio Bulgarelli observava que essas críticas eram “representativas das dificuldades de compreensão e aceitação do novo regime empresarial, devidas, em grande parte, à existência ainda viva da comercialidade”.800 Essa existência da comercialidade, sem dúvida, continuará sempre a dominar o cenário empresarial, e a tendência natural do comércio será a de

799 Francesco Galgano considera que, no âmbito do direito privado, o particularismo do direito comercial estará sempre representando pelo “economismo”, como valor histórico determinante nas relações da empresa (Lex Mercatoria, cit., p. 13). 800 Tratado de Direito Empresarial, cit., p. 248.

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aumentar, de modo progressivo, o seu grau de especialização, proporcionalmente ao processo de avanço tecnológico das empresas, tal como se verifica no mundo globalizado. Com efeito, a globalização torna as empresas de ponta, altamente desenvolvidas, em organizações a cada dia mais complexas, em que o fluxo financeiro e de mercadorias aponta para níveis de especialização sempre mais evoluídos.

Em termos mais estritamente dogmáticos, estamos nos deparando com contradições efetivas no campo da regulação da empresa tal como veio a ser imposto pelo regime simplista do legislador do Código Civil de 2002. As empresas deixam de ser consideradas como organizações tecnicamente especializadas e passam a ser tratadas como instituições comuns, despidas da sua natureza mercantil. Apesar desse raciocínio crítico ser aplicável com maior intensidade na análise das grandes corporações empresariais, não deixa de ser válido também para as pequenas e médias empresas, que atuam em um ambiente de mercado competitivo, mercado este que exige constantes progressos nas fórmulas aplicáveis aos negócios, contínuas adaptações às exigências da clientela, das relações de consumo e da compatibilidade com os avanços da tecnologia.

O Código de 2002, desde a sua origem legislativa, sempre se apresentou defasado diante da evolução do comércio e carente de qualquer visão prospectiva futura frente ao processo de globalização econômica, que se delineava a partir do final dos anos setenta do século passado. A sua idéia de empresa permaneceu arraigada na concepção superada do Livro “Del Lavoro” do Código italiano, de sessenta anos atrás. Apesar de dissimulada sob a justificativa da necessidade de unificação do direito das obrigações, o Código Civil tentou modificar a própria estrutura deontológica em que historicamente estava assentado o Direito Comercial brasileiro.

Além da incerteza da situação legislativa, diante da tentativa de se modificar, de modo significativo, o livro do direito de empresa, uma segunda ordem de argumentação, de natureza doutrinária, corrobora com as conclusões deste estudo no que tange ao problema da unificação do direito privado.

Partindo do aspecto doutrinário, devemos considerar que a doutrina civilista continuará inteiramente separada da doutrina comercialista, investigando e

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analisando os institutos históricos que sempre integraram o direito civil, especialmente nos campos dos contratos, família e sucessões. O estudo da empresa, por sua vez, permanecerá restrito ao âmbito da doutrina comercial especializada. Os comercialistas deverão manter o seu campo próprio de investigação, a sua pesquisa interdisciplinar nas interfaces econômica, financeira, contábil e mercadológica da empresa, áreas de estudo em que poucos civilistas ingressam.

A confirmação desse argumento doutrinário encontra-se no fato de que os civilistas brasileiros, nas obras de comentários ao novo Código Civil, nos manuais de direito civil, nas suas compilações, não abordam nem tratam do livro do direito de empresa. O estudo da empresa, tal como se constata nas principais obras clássicas dos nossos civilistas, não passou a integrar o direito civil.

As coleções e manuais de direito civil continuam adotando a clássica divisão dos seus capítulos em parte geral, obrigações e contratos, direito das coisas, da família e sucessões. Apenas na abordagem dos contratos em espécie, alguns autores civilistas discorrem sobre negócios mercantis, como os contratos de distribuição, agência e transportes, agora regulados no Código Civil de 2002. As obras de direito civil editadas e atualizadas a partir do novo Código, mantém a separação do objeto estudado, e não tratam da matéria do direito de empresa.801

Nas principais coleções de comentários ao Código Civil, a parte do direito de empresa coube aos comercialistas,802 o que demonstra, também por esse ângulo, que

801 As principais obras e manuais de Direito Civil editadas no Brasil, a partir do Código de 2002, não tratam do livro do Direito de Empresa, conforme se observa nos seguintes autores civilistas: Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, atualizado por Maria Celina Bodin de Moraes e outros, Rio de Janeiro, Forense, 21ª edição, 2005; Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, atualizado por Carlos Alberto Dabus Maluf, São Paulo, Saraiva, 33ª edição, 2007; Silvio Rodrigues, Direito Civil, São Paulo, Saraiva, 34ª edição, 2003; Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil, Saraiva, São Paulo, 24ª edição, 1977; Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil, São Paulo, Atlas, 7ª edição, 2007; Carlos Roberto Gonçalves Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 4ª edição, 2004; Paulo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de Direito Civil, São Paulo, Saraiva, 7ª edição, 2006; Roberto Senise Lisboa, Manual de Direito Civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 3ª edição, 2004. 802 Os artigos 966 a 1.195 do livro do Direito de Empresa foram objeto de comentários em trabalhos de maior porte e profundidade, como em: Arnoldo Wald, Comentários ao Novo Código Civil - Livro II – Direito de Empresa, vol. XIV, Rio de Janeiro, Forense, 2005; Modesto Carvalhosa, Comentários ao Código Civil, vol. 13, São Paulo, Saraiva, 2003; Newton de Lucca e outros, Comentários ao Código Civil Brasileiro, vol. IX, Rio deJaneiro, Forense-FADISP, 2005.

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a matéria mercantil é especial, que o estudo do direito comercial exige um conhecimento diferenciado da clássica abordagem civilista.

Nestas conclusões procuramos evidenciar, assim, que não foi coerente nem cientificamente apropriada a imposição de um regime civilista para a empresa, diante das contradições inerentes a objetos díspares, a métodos incompatíveis e, principalmente, pela especificidade da matéria mercantil que continuará prevalente na legislação extravagante ao Código Civil. O regime da comercialidade, assim, não perdeu a sua autonomia, mas continuará dominante porque dotado de características e elementos próprios, que não foram modificados, como visto, pela tentativa de unificação do direito privado.

A tendência futura, como vem sendo adotado nos países europeus, é a elaboração de uma legislação especial para a disciplina da empresa e do empresário, contendo, também, normas gerais de direito societário e a regulação dos tipos de sociedades de acordo com as necessidades do mercado, não apenas da sociedade limitada, mas de outras modalidades, como a empresa individual de responsabilidade limitada e a sociedade unipessoal.

No campo do direito das obrigações, este permaneceria, logicamente, como instituto geral e regulado pelo Código Civil, como norma de direito privado. Os contratos empresariais, todavia, não podem ficar submetidos ao regime civilista, e devem continuar sendo regulados por leis especiais, ou através de sistemas de cláusulas gerais, como se encontra estruturado o sistema de proteção do consumidor.

Alguns autores, como Jarbas Macchioni entendem que “seria conveniente suprimir o Livro II, da empresa, para promulgar-se um código de atividades empresariais”,803 como vem sendo desenvolvido no projeto de novo Código Comercial. Mas a idéia sob análise passa por esse raciocínio, da revogação de todo o Livro II do Código Civil e a sua substituição por uma legislação empresarial codificada, e a parte suplementar, como sociedades anônimas e falência, estruturada em microssistemas, como reconhece Ricardo Lorenzetti, para quem a atividade empresarial constitui “um

803 Jarbas Andrade Macchioni, Novos Fundamentos do Direito Comercial sob o Código Civil de 2002, in Direito Empresarial Contemporâneo, Adalberto Simão Filho e Newton De Lucca, org., São Paulo, Juarez de Oliveira, 2ª Edição, 2004, p. 361.

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verdadeiro microssistema da empresa, que exibe os seus próprios princípios, normas, fontes de criação, doutrina e jurisprudência”.804

A necessidade de mudança desse Código, que nasceu defasado e sob concepção de nítida inspiração fascista, vem sendo motivo de diversas manifestações doutrinárias na esfera do direito privado, e não apenas entre os comercialistas, mas também no âmbito da melhor doutrina civilista.805 A toda evidência, o vigente Código Civil, apesar de apresentar ares de modernidade, por haver sido sancionado no século XXI, nasceu “de costas para o presente”, e não concebe a empresa como uma instituição em constante evolução, impulsionada pelo desenvolvimento tecnológico, pela concorrência no mercado, pela internacionalização das suas relações no mundo globalizado.

A permanência do atual regime do direito de empresa no Código Civil de 2002, reconhecido como impróprio e defasado pela doutrina comercialista dominante, representará a progressiva desconexão do direito positivo brasileiro de todos os demais sistemas da atual era da pós-modernidade, aprofundando, ainda mais, o desnível da tecnologia jurídica da empresa, diante de uma realidade em constante evolução. Mesmo em uma fase ou tendência de descodificação, o momento histórico exige a substituição do regime civilista da empresa por um novo Código Comercial, para que seja restaurada a harmonia e logicidade do sistema de regulação da economia de mercado, e assim facilitar o entendimento e aplicação das regras desse sistema pelos seus principais operadores e protagonistas: os empresários.

804 Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, p. 47. 805 “É o inegável envelhecimento do que já nasceu passado, pois foi parido de costas para o presente. Outro horizonte, inquietante e interrogativo, bate às portas cerradas do sistema. O medievo que emoldura os institutos do status quo se mostra em pânico pois, à medida que o civilismo pretensamente neutro se assimilou ao servilismo burocrata doutrinário e jurisprudencial, não conseguiu disfarçar que não corresponde aos fatos e às situações que brotam da realidade contemporânea”. (Luiz Edson Fachin, Teoria Crítica do Direito Civil – À luz do novo Código Civil Brasileiro, Rio de Janeiro, Renovar, 2ª edição, 2003, p. 11).

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Apêndice

O longo processo legislativo do Código Civil de 2002

O projeto original do Código Civil de 2002 é fruto da elaboração de uma comissão de juristas de renome, formada no ano de 1969, em plena ditadura militar, e assim instituída por ato do então Ministro da Justiça Alfredo Buzaid, denominada Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, coordenada pelo jusfilósofo conservador Miguel Reale. Nessa comissão, foram designados como relatores responsáveis por cada uma das partes do novo Código, José Carlos Moreira Alves (Parte Geral), Agostinho Alvim (Direito das Obrigações), Sylvio Marcondes Machado (Direito de Empresa), Erbert Chamoun (Direito das Coisas), Clóvis do Couto e Silva (Direito de Família) e Torquato Castro (Direito das Sucessões).806

A comissão constituída para a elaboração do anteprojeto do novo Código Civil adotou como base teórica e conceitual o próprio Código Civil de 1916, e aproveitou as contribuições derivadas de projetos anteriores de reforma legislativa para a elaboração de um Código de Obrigações, redigido em 1965 pelos juristas Orosimbo Nonato, Caio Mário da Silva Pereira, Sylvio Marcondes Machado, Orlando Gomes, Theóphilo de Azeredo Santos e Nehemias Gueiros,807 bem como um anteprojeto de Código Civil, de 1963, de autoria de Orlando Gomes.808

Após sucessivas versões apresentadas e discutidas pela Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil entre os anos de 1970 e 1974, a proposta final do projeto foi encaminhada ao Congresso Nacional, em exposição de motivos assinada pelo então Ministro da Justiça Armando Falcão e aprovada pelo Presidente General Ernesto Geisel, sendo publicada no Diário do Congresso Nacional, em uma sexta-

806 Miguel Reale, Exposição de Motivos do Projeto do Código Civil, Diário do Congresso Nacional, I, Suplemento B, 13.06.1975, p. 107. 807 Estados Unidos do Brasil, Comissão de Estudos Legislativos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Projeto de Código das Obrigações, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1965. 808 Miguel Reale, Exposição de Motivos do Projeto do Código Civil, cit., p. 109.

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feira, 13, do mês de junho do ano de 1975, quando iniciou a sua tramitação na Câmara dos Deputados sob a forma do Projeto de Lei nº 634/1975.

Desde a sua recepção na Câmara dos Deputados, o projeto do novo Código Civil foi relegado a segundo plano, e pouca atenção mereceu dos parlamentares.809 Tanto assim que, após o encerramento do prazo para apresentação de emendas, em 26/09/1975, o projeto permaneceu paralisado por quase oito anos, sem qualquer procedimento de discussão, até o mês de abril de 1983. E, nesse período, diante da paralisação do projeto por longo tempo, o Deputado Fernando Coelho (MDB-PE) veio, inclusive, a requerer, em 13/06/1979, perante a Mesa da Câmara, o arquivamento do projeto do Código Civil e a dissolução da Comissão Especial constituída para a sua apreciação. O argumento para o arquivamento do projeto do Código Civil era de que ele se apresentava defasado diante da nova realidade política e social brasileira, principalmente por ser resultado de proposta encaminhada ao Congresso Nacional sob os auspícios de um governo ditatorial.

Apenas no mês de junho de 1983, foram retomadas as discussões do projeto do Código Civil na Câmara dos Deputados, agora sob a coordenação do Deputado Ernani Sátyro (PDS-PB), seu novo relator. Após a análise e breve discussão das emendas apresentadas no ano de 1975, a Câmara dos Deputados aprovou, na sessão realizada em 09/05/1984, a redação do projeto do novo Código Civil, sendo o projeto então enviado ao Senado Federal.

No Senado da República, o projeto do Código Civil tomou o número 118/1984, sendo designado como Relator Geral o Senador Murilo Badaró (PDS-MG). De 1984 a 1989, ou seja, por mais de 5 anos, o projeto permaneceu sem nenhum andamento no Senado, e apenas em 24/08/1989 a Comissão Temporária destinada à sua

809 No início da tramitação do Projeto do Código Civil na Câmara dos Deputados, apesar do pouco interesse demonstrado pelos parlamentares no encaminhamento do projeto, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados realizou uma série de palestras e conferências com os membros da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil e com os principais juristas do país, havendo participado dessas sessões: Miguel Reale (05/08/1975), Caio Mário da Silva Pereira e Ebert Vianna Chamoun (06/08/1975), Clóvis do Couto e Silva (07/08/1975), Alfredo Lamy Filho e José Luis Bulhões Pedreira (12/08/1975), Rubens Requião (13/08/1975), Torquato Castro (14/08/1975), José Carlos Moreira Alves (19/08/1975), Fábio Konder Comparato (21/08/1975), Philomeno Joaquim Da Costa (03/09/1975) e Egberto Lacerda Teixeira (04/09/1975); http://www2.camara.gov.br/proposicoes/PL63475.

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apreciação foi reinstalada, com a designação do Senador Wilson Martins (PDS-MS) como Relator Geral.

Em virtude da paralisação do projeto no Senado Federal por vários anos, sem que a comissão responsável promovesse qualquer encaminhamento, o projeto do Código Civil chegou a ser arquivado pela Mesa do Senado em 17/12/1990. Graças a gestões políticas resultantes da instalação de uma nova legislatura, o projeto foi desarquivado pela Mesa em 19/06/1991, sendo reconstituída a comissão especial e designado Relator Geral o Senador Josaphat Marinho (PMDB-BA).

Somente após decorridos quase 4 anos, em 11/04/1995, foi reaberto o prazo para a apresentação de emendas pelos senadores, oportunidade em que se aproveitou para se promover a compatibilização parcial do projeto do Código Civil diante das profundas mudanças inseridas na legislação de Direito Privado pela Constituição da República de 1988, notadamente na Parte Geral e no Direito de Família. Após a apreciação das emendas, o Relator Geral, Senador Josaphat Marinho apresentou o seu parecer final em 05/11/1997, e nas sessões de 26/11/1997 e 12/12/1997, o projeto foi discutido e aprovado pelo plenário do Senado Federal, e devolvido à Câmara dos Deputados.

Com a instalação da nova legislatura no ano de 1999, o Deputado Federal Ricardo Fiúza (PFL-PE)810 tomou a iniciativa de assumir a relatoria da tramitação do projeto na Câmara dos Deputados, para fins de aprovação das emendas inseridas no Senado. A Mesa Diretora da Câmara dos Deputados criou, então, uma Comissão Especial destinada a proferir parecer sobre as emendas inseridas no projeto do Código Civil pelo Senado Federal, de modo a dar prosseguimento à tramitação do projeto. O próprio Deputado Ricardo Fiúza veio a ser designado relator do projeto na

810 O Deputado Ricardo Fiúza (1939-2005), que exercia mandato na Câmara desde o ano de 1970, foi um dos mais influentes deputados conservadores integrantes do chamado “Centrão” durante a Assembleia Constituinte (1986-1988). Ele teve a sua imagem política bastante abalada por haver integrado o Governo deposto de Fernando Collor de Mello (1989-1992) como Ministro da Ação Social, além de quase ter perdido o mandato, envolvido em denúncias no chamado escândalo dos “Anões do Orçamento” do Congresso Nacional (1992-1994). Como estratégia para recuperar seu prestígio, também em razão de sua formação jurídica e profundo conhecedor do processo legislativo, aproveitou essa oportunidade ímpar para assumir a função de Relator-Geral no período final de tramitação do Projeto do Código Civil na Câmara dos Deputados, conseguindo superar as resistências e fazer aprovar o novo Código Civil, sancionado como a Lei 11.406, em 10 de janeiro de 2002.

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Comissão Especial, sendo esta comissão investida de poderes de revisão e de adaptação do projeto aos princípios e normas da Constituição da República de 1988.

A Comissão Especial recebeu, desse modo, atribuições para apreciar as emendas aprovadas pelo Senado Federal, bem como para promover emendas de ajustes e de revisão ao texto.811

Com efeito, o relatório final da Comissão Especial não se limitou a promover meras adequações constitucionais e legais ao texto aprovado pelo Senado Federal, mas inseriu várias modificações de fundo e de forma em diversos artigos do projeto. Somente na parte do Livro II – Direito de Empresa, em comparação com o projeto aprovado no Senado, foram modificadas 35 normas do código, entre artigos e parágrafos, sendo que algumas dessas modificações implicaram em uma nova adjetivação para o regime do registro de empresas, entrando em contradição com o espírito inicial do projeto, que visava afastar da atividade empresarial a sua intrínseca natureza mercantil. 812

No dia 06/12/2000, a Comissão Especial aprovou o parecer do Relator Geral Deputado Ricardo Fiúza.813 Com a aprovação do relatório final, o projeto seguiu para

811 O Relator-Geral do projeto nessa etapa final, Deputado Ricardo Fiúza, assim se pronunciou sobre o trabalho realizado nessa fase: “A despeito de seus ponderáveis e sólidos argumentos, a corrente contrária à codificação e favorável a reformas parciais é opção já vencida, na medida em que a aprovação do projeto de reforma total terminou consagrando a tese prevalecente, tanto pela Câmara quanto pelo Senado. Constitucional e regimentalmente portanto, nosso dever se circunscreveu à manifestação relativa às 331 emendas do Senado ao texto acolhido por esta Casa e às adequações constitucionais e legais do texto, dentro dos limites fixados pela Resolução 01/2000 do Congresso Nacional.” (Relatório Final ao Projeto de Lei 634/1975, Comissão Especial da Câmara dos Deputados, in http://www.camara.gov.br/sileg/integras/303077.htm). 812 Dos 230 artigos do Livro do Direito de Empresa, o parecer final do Relator Deputado Ricardo Fiúza introduziu modificações em 35 disposições normativas, constantes dos seguintes artigos: Art. 967; Art. 968, § 1º; Art. 969 e parágrafo único; Art. 971; Art. 976; Art. 979; Art. 980; Art. 984; Art. 990; Art. 1.011, § 1º; Art. 1.013 e § 1º; Art. 1.014; Art. 1.052; Art. 1.058; Art. 1.059; Art. 1.061; Art. 1.066, § 2º; Art. 1.075, § 2º; Art. 1.084, § 3º; Art. 1.085, parágrafo único; Art. 1.088; Art. 1.093; Denominação do Capítulo VIII e art. 1.097; Art. 1.098, inciso I; Art. 1.099; Art. 1.129; Art. 1.144; Art. 1.150; Denominação do Capítulo II e Art. 1.155; Art. 1.164; Art. 1.167; Art. 1.168; Art. 1.174 e parágrafo único; Art. 1.181; Art. 1.192, parágrafo único. 813 A Comissão Especial aprovou, sem qualquer modificação e por unanimidade, o parecer final do Relator Deputado Ricardo Fiúza, o qual introduziu um total de 59 emendas, alterando a redação do projeto originário do Senado Federal, sendo essas emendas numeradas de 01 a 03, 14, 85, 135, 136, 160 a 164, 167, 168, 170, 178 a 180, 182 a 184, 187, 188, 190, 193, 195, 196, 198 a 200, 202, 204, 207 A 210, 213, 215, 217, 219, 222 a 225, 227 a 230, 232 a 234, 243, 245, 249 a 251, 273, 274, 278, 283, 297 e 300 (Resolução 01/2000-CN), o que demonstra que o Relator Geral, nessa fase final, deteve poderes para alterar, de modo significativo, vários artigos do projeto (http://www2.camara.gov.br/proposicoes).

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discussão e apreciação em plenário. Em 12/12/2000, iniciou-se a discussão, em primeiro turno, do projeto pelo plenário da Câmara dos Deputados, mas apenas na sessão realizada em 15/08/2001 é que ocorreram os principais debates e a aprovação das emendas constantes do relatório final. Sendo rejeitadas algumas emendas apresentadas ainda na fase de aprovação pelo Senado Federal, o projeto do Código Civil retornou à Comissão Especial, e somente em 06/12/2001 foi novamente submetido ao plenário e aprovada a sua redação final. No dia 12/12/2001, a Mesa da Câmara encaminhou o projeto à sanção presidencial, encerrando uma fase de tramitação legislativa que durou 27 anos.

Em solenidade realizada no Palácio do Planalto, tendo como convidado de honra o Professor Miguel Reale, que proferiu o discurso principal, o novo Código Civil foi sancionado, em 10/01/2002, pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, na forma da Lei nº 10.406/2002.

Um outro argumento de ordem legislativa vem, ainda, a demonstrar não apenas a insegurança do legislador, mas o reconhecimento explícito das imperfeições e antinomias presentes no regime do direito de empresa no Código Civil de 2002, e que reside no fato de que o próprio relator do projeto final do Código, o hoje falecido Deputado Ricardo Fiúza, veio a apresentar dois projetos de lei que poderão modificar, substancialmente, o texto original do Código. Através do Projeto de Lei 6.960, de 12/06/2002, e do Projeto de Lei 7.160, de 27/08/2002, foram propostas alterações de redação em 87 dos 229 artigos do livro do direito de empresa, o que significa uma mudança substancial em quase quarenta por cento do texto original.814

De modo contraditório, nesses dois projetos de lei foram apresentadas propostas de modificações para seis artigos, de números 966, 999, 1.053, 1.094, 1.099 e 1.165, que constam em ambos os projetos. Essa duplicidade de previsão para

814 Projeto de Lei 6.960, de 12/06/2002 – proposta de alteração de 14 artigos do Livro do Direito de Empresa: arts. 966, 977, 999, 1.053, 1.060, 1.086, 1.094, 1.099, 1.158, 1.160, 1.163, 1.165, 1.166, 1.168; Projeto de Lei 7.160, de 27/08/2002 – proposta de alteração de 79 artigos do Livro do Direito de Empresa: arts. 966, 968, 997, 999, 1.000, 1.002, 1.003, 1.004, 1.007, 1.010, 1.013, 1.017, 1.019, 1.020, 1.022, 1.023, 1.024, 1.025, 1.026, 1.030, 1.039, 1.040, 1.041, 1.043, 1.044, 1.045, 1.053, 1.055, 1.061, 1.062, 1.063, 1.065, 1.066, 1.067, 1.068, 1.069, 1.071, 1.072, 1.073, 1.074, 1.075, 1.076, 1.077, 1.078, 1.080, 1.081, 1.082, 1.083, 1.084, 1.085, 1.087, 1.094, 1.095, 1.097, 1.099, 1.101, 1.102, 1.103, 1.108, 1.109, 1.110, 1.117, 1.122, 1.125, 1.126, 1.127, 1.134, 1.144, 1.145, 1.146, 1.147, 1.148, 1.149, 1.150, 1.151, 1.152, 1.153, 1.161 e 1.165.

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a alteração de normas, originária do mesmo deputado relator, demonstra, também por esse ângulo, a inconsistência do processo legislativo do Código Civil no Congresso Nacional e a persistência de dúvidas acerca de definições fundamentais do regime da empresa. Apesar de ambos os projetos de lei encontrarem-se, hoje, arquivados,815 a proposta de imediata modificação do livro do direito de empresa, logo em seguida ou quase simultaneamente à sanção do Código de 2002, revela o reconhecimento, por parte do legislador, da existência de sérias defasagens e incongruências, tal como apontadas no presente estudo, principalmente na regulação da sociedade limitada.

Dos 27 anos em que demorou a sua tramitação, durante quase 15 anos o projeto do novo Código Civil ficou totalmente paralisado e esquecido nos escaninhos do Congresso Nacional. Ao que se constata por esse fato, a maioria dos parlamentares não demonstrou grande interesse na conclusão de um projeto elaborado sob a égide de um regime constitucional ultrapassado e moldado no período da ditadura militar.

Com efeito, a gênese de inspiração conservadora prevalente no projeto original do Código Civil, não obstante o saber jurídico e o brilhantismo dos juristas que integraram a comissão responsável pela elaboração do projeto, decerto contribuiu para prejudicar e desmobilizar a corrente teórica que defendia a revisão do Código de 1916, originário de projeto do jurista Clovis Bevilacqua, mas inspirado em uma realidade superada da sociedade pré-industrial brasileira e ainda recém saída de uma atrasada economia de base escravocrata.

No campo da Ciência do Direito, ao final da década de 1970, encontrava-se em plena efervescência o movimento pela descodificação do direito civil, fruto de profundos debates em congressos de civilistas realizados em Roma (1979) e Caracas (1982).816 E essa tendência que não entendia mais justificável, naquele momento histórico, uma nova codificação do direito privado, tornou-se a principal corrente crítica do Código Civil de 2002.

815 Desde 31/01/2007, os Projetos de Lei 6.960/2002 e 7.160/2002 foram arquivados por despacho da Mesa da Câmara dos Deputados, conforme informação em http://www2.camara.gov.br/proposicoes. 816 Orlando Gomes, O problema da codificação, cit., p. 17.

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