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Um duplo devir: quando a msica eletrnica de pistaencontra o xamanismo e o xamanismo encontra as mquinas
Pedro Peixoto Ferreira(CEBRAP)
Este texto servir de base para minha apresentao noXIV Jornadas Sobre Alternativas Religiosas en AmericaLatina (Buenos Aires, 25 a 28 de setembro de 2007),no simpsio "Psicoativos, xamanismo, religio, festa e poltica:
perspectivas cruzadas".2007
Resumo: Proponho apresentar o trajeto percorrido durante minha pesquisa de doutorado sobre as relaes entrexamanismo e msica eletrnica. A pesquisa focalizou o discurso nativo da msica eletrnica de pista no Brasil efontes etnogrficas sobre xamanismo amaznico, mas tambm considera casos de outras partes do mundo. Primeiroapresentarei aquilo que chamei de discurso nativo acerca das relaes entre msica eletrnica e xamanismo, isto ,aquilo que as pessoas diretamente envolvidas com a produo, distribuio e consumo de msica eletrnica de pistadizem sobre o potencial xamnico desse tipo de msica. Depois abordarei aquilo que chamei de o devir mquinado xamanismo tradicional, ou seja, situaes de contato em que xams indgenas, diante de mquinas e tecnologias
modernas, afirmam encontrar nelas materializaes mais ou menos completas de suas prprias capacidades, funese tcnicas rituais. Em seguida apresentarei algumas qualidades do transe maqunico da msica eletrnica,considerando o discurso nativo e tambm o acadmico. Por fim, apresentarei aqueles que se revelaram os princpiosfuncionais e parmetros elementares da mquina sonoro-motora que parece corporificar o xamanismo distribudo damsica eletrnica de pista.Palavras-chave: msica eletrnica, xamanismo, devir
INTRODUO
Em seu artigo O Nativo Relativo, Eduardo B. Viveiros de Castro (2002) forneceu a frmula
antropolgica que norteou a pesquisa de que aqui nos ocuparemos. Vale citar na ntegra a
passagem precisa daquele artigo na qual o antroplogo expe essa frmula em toda a suacomplexidade:
Quando um antroplogo ouve de um interlocutor indgena (ou l na etnografia de um colega) algo como"os pecaris so humanos", a afirmao, sem dvida, interessa-lhe porque ele 'sabe' que os pecaris no sohumanos. Mas esse saber um saber essencialmente arbitrrio, para no dizermos burro deve parar a:seu nico interesse consiste em ter despertado o interesse do antroplogo. No se deve pedir mais a ele.No se pode, acima de tudo, incorpor-lo implicitamente na economia do comentrio antropolgico, comose fosse necessrio explicar (como se o essencial fosse explicar) por que os ndios crem que os pecarisso humanos quando defato eles no o so. intil perguntar-se se os ndios tm ou no razo a esserespeito: pois j no o 'sabemos'? Mas o que preciso saber justamente o que no se sabe a saber, oque os ndios esto dizendo, quando dizem que os pecaris so humanos. [...] Assim, quando seusinterlocutores indgenas lhe dizem (sob condies, como sempre, que cabe especificar) que os pecaris so
humanos, o que o antroplogo deve se perguntar no se 'acredita ou no' que os pecaris sejam humanos,mas o que uma idia como essa lhe ensina sobre as noes indgenas de humanidade e de 'pecaritude'. [...]A pergunta [...] deve ser: para que serve essa idia? Em que agenciamentos ela pode entrar? Quais suasconseqncias? Por exemplo: o que se come, quando se come um pecari, se os pecaris so humanos?(Viveiros de Castro, 2002, p.134-5, 138; itlicos no original)
Durante muito tempo, li essas palavras como quem l um maravilhoso texto sobre uma realidade
extica, distante e desconhecida. Foi apenas pouco tempo antes de iniciar a redao final de
minha tese de doutorado1 que percebi o quo prximo o problema ali tratado estava dos
problemas de minha prpria pesquisa. O fato que esta pesquisa se desenrolou no confronto
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entre duas afirmaes anlogas (mas no idnticas) quela a que Viveiros de Castro se refere no
trecho supracitado ("os pecaris so humanos"): de um lado, DJs dizendo que so xams ("os DJs
so xams"), de outro, xams dizendo que so mquinas ("o xam uma mquina"). Desde o
incio, apesar de minha predisposio em aceitar ambas as afirmaes, a primeira sempre pareceu
mais difcil de sustentar do que a segunda. Se por um lado a afirmao do xam de que ele uma
mquina me parecia coerente com suas prticas rituais e suas cosmologias, por outro a afirmao
do DJ de que ele um xam sempre esbarrou na minha percepo da distncia que separa as suas
prticas e teorias daquelas dos xams tradicionais, situao que encontrava apoio em boa parte da
literatura e do discurso nativo2 e que no mudou durante a maior parte da pesquisa.3 Dito de outra
forma, mesmo acreditando que o xamanismo da msica eletrnica no deveria ser avaliado a
partir do conhecimento j estabelecido sobre o xamanismo tradicional, eu ainda no haviaencontrado uma maneira minimamente consistente de relacion-los, uma maneira que fizesse jus
s particularidades e complexidades de ambos e no me obrigasse a escolher entre simplificar o
xamanismo tradicional4 ou deslegitimar o xamanismo contemporneo.5
A leitura de O Nativo Relativo foi crucial para desbloquear meus hbitos de pensamento
por me mostrar (apesar de minha resistncia) que o fato de eu "saber" que os DJs no so xams
como eu normalmente os concebo no apenas parte importante da relevncia da relao entre
msica eletrnica e xamanismo para mim, mas tambm o motivo pelo qual essa relao relevante para o conhecimento em geral tanto sobre xamanismo quanto sobre msica eletrnica.
Em outras palavras, ao invs de perguntar "se" os DJs so "de fato" xams ("pois j no o
'sabemos'?"), seria preciso perguntar "o que" os DJs esto dizendo sobre xamanismo e msica
eletrnica quando dizem que so xams, "o que" essa idia pode nos ensinar de novo sobre
xamanismo e msica eletrnica, "o que", enfim, fazem DJs e xams (em que consiste suas
atividades), quando DJs so xams. O mesmo vale, ademais, para a outra relao que me parecia
menos problemtica: "o que" os xams esto dizendo sobre xamanismo e maquinismo quando
dizem que so mquinas?; "o que" a idia de que xams so mquinas pode nos ensinar denovo
sobre xamanismo e sobre as mquinas?; "o que" fazemos quando assistimos televiso ou ouvimos
rdio quando essas mquinas so xamnicas? Foi apenas aps esse deslocamento de questes que
minha pesquisa assumiu seu rumo definitivo. Mas o desejo de responder essas perguntas no
deve impedir-nos de perceber que apenas quando as perguntas alcanam uma formulao
minimamente condizente com a complexidade de seu objeto que as respostas comeam a ganhar
consistncia. Trata-se, como bem disse Henri Bergson, de "encontrar o problema e
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conseqentemente de coloc-lo, mais do que de resolv-lo", sabendo que "enunciar o problema
no somente descobrir, inventar" (Bergson, 1974:133; itlicos no original).
O DISCURSO NATIVO
Aps anlise de um material heterogneo composto por registros fonogrficos, mdia impressa e
eletrnica, entrevistas e experincias em festas,6 decidi dividir o assim chamado discurso nativo
em trs grandes grupos: (1) o cosmolgico, que envolve a orientao mais terica e
sistematizante do discurso nativo, interessada sobretudo na relao entre diferentes nveis da
realidade; (2) o ritolgico, que envolve a orientao mais prtica e operatria do discurso nativo,
interessada sobretudo na experincia de transe provocada pela dana e pela msica repetitiva; e
(3) o micropoltico, que envolve alguns aspectos da oposio entre o underground e omainstream, que nos pareceu ser a principal oposio conceitual do discurso nativo e um
importante critrio para distinguir as qualidades de transe no xamanismo da msica eletrnica.
verdade que todos os trs grupos de discursos podem ser encontrados, em diferentes momentos e
intensidades, na maior parte dos casos empricos. No obstante, cada caso assume, ao longo de
seu desenvolvimento discursivo, um tom predominante, e a que eles se distinguem enquanto
pertencentes a um dos trs grupos.
(1)Quanto orientao cosmolgica do discurso nativo, usamos os casos do DJ Mantrix 7 e do
promoter Mr. Lemon8 como exemplos para ilustrar aquelas que nos pareceram ser as linhas
gerais de um esforo discursivo por compreender o xamanismo da msica eletrnica num
contexto csmico mais amplo. Temos espao aqui apenas para apresentar os resultados dessa
investigao, que poderamos reunir em dois quadros. O primeiro quadro busca sintetizar a
cosmologia de Mantrix numa dualidade em que "esprito" e "matria" se opem de diversas
formas e em diversos nveis, comunicando-se no entanto atravs das tcnicas e poderes
xamnicos de introspeco-elevao e criao-presentificao (cf. Quadro 1):
ESPRITO MATRIAcriatividade, inteligncia mercado, mdia, capital
msica eletrnica Msica Popinterior exterior
superior inferiormundo extra-corpreo mundo corpreo
o mistrio, o invisvel, esotrico o banal, o visvel, exotriconatureza superior (nmero 7) natureza elementar (nmero 4)
introspeco-elevao criao-presentificaoestados alterados de conscincia,
transcendncia, introspeco
controle tcnico do poder criativo
do som, criao do novo mundo
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Quadro 1 Proposta de sntese da cosmologia do DJ Mantrix.
Quanto ao segundo quadro, ele busca sintetizar as idias de Mr. Lemon, partindo daquela que
pareceu ser a oposio organizadora de sua cosmologia, aquela entre o interior (energiaconcentrada) e o exterior (energiaemfluxodirecionado) (cf. Quadro 2):
INTERIOR EXTERIORpensamento (formas de energia) atividade cerebral (ondas cerebrais)
mente corpoinconsciente consciente
mundo espiritual mundo materialenergia concentrada energia em fluxo direcionado
crescimento-concentraoexteriorizao-transformaotcnicas de auto-conhecimento (acharseu dom), compromisso com a
seriedade, predisposio, transe
som, dana, forte rajada de energiadirecionada, produo
Quadro 2 Proposta de sntese da cosmologia de Mr. Lemon.
Os discursos do DJ Mantrix e do Mr. Lemon so cosmolgicos pois tentam explicitar o contexto
csmico no qual o xamanismo da msica eletrnica funciona. A principal caracterstica destas
cosmologias pareceu ser um dualismo dinmico, assimtrico e mediado por tcnicas especficas,
i.e., a existncia de dois nveis principais da realidade, um determinante e outro determinado,
entre os quais flui um certo poder criativo que os DJs-xams so capazes de modular e direcionar
atravs de tcnicas especficas, tcnicas essas que foram o foco de um outro tipo de discurso, oritolgico.
(2)
Diferentemente dos discursos cosmolgicos, mais interessados em religar/regular as tendncias
divergentes aps a sua bifurcao em plos como esprito/matria ou interior/exterior, os
discursos ritolgicos descrevem modos de interveno nos prprios processos de bifurcao da
experincia, eles tratam das prprias tenses e resolues mtricas e rtmicas que operam essas
rupturas. Os casos dos DJs Arlequim9 e Cludio Manoel10 serviram como referncia para seguir
aquelas que nos pareceram ser as linhas gerais de um esforo discursivo por refletir sobre o
xamanismo da msica eletrnica no seu contexto de manifestao. Poderamos sintetizar os
resultados dessa investigao em trs quadros. No primeiro quadro, sintetizamos aquilo que
poderamos chamar de "os dois 'passos' do ritual", etapas apresentadas por Arlequim como
compondo a experincia ritual da msica eletrnica tanto para o DJ quanto para o pblico (cf.
Quadro 3).
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OS DOIS "PASSOS" DO RITUAL (da perspectiva dos seus dois plos)Para o DJ Para o pblico
1 envolver o pblico ("puxar as pessoas")atravs de repeties, frmulas eperformance
"se fechar" ("ponto de fuga"), rompendo com aintersubjetividade social cotidiana e se deixando
envolver pelo som2 conduzir o pblico ("entrar na cabea")atravs de variaes e experincias
"se abrir" ("porta de entrada"), deixando a msica"entrar na cabea" e se deixando conduzir pelo somnum processo de introspeco e questionamentos
Quadro 3 Proposta de sntese dos "dois passos" rituais do DJ Arlequim.
No segundo quadro, tambm obtido principalmente a partir de entrevistas com o DJ Arlequim,
sintetizamos aquilo que chamamos de "as contingncias do ritual", i.e., os fatores dos quais
dependem os resultados de cada experincia ritual especfica, relacionados aos dois plos do
ritual (DJ e pblico) e ao ambiente em que ele ocorre (cf. Quadro 4).
AS CONTINGNCIAS DO RITUALDJ PBLICO AMBIENTE
"estado de esprito" (intenes,predisposies, drogas etc.)
setprogressivo ou linear? setexperimental ou comercial? estilo musical.
com ou sem drogas? atento ou disperso? buscando transformao ou
adaptao? predisposto a abrir a cabea?
luz (efeitos de iluminao)visual (decorao, roupas etc.)som (qualidade, intensidade)contexto (ambiente aberto ou
fechado?, festa comercial ouparticular? etc.)
Quadro 4 Proposta de sntese das contingncias do ritual segundo DJ Arlequim.
No terceiro quadro, com base, entre outras coisas, em textos de Cludio Manoel, sintetizamos os
temas do discurso nativo referentes aos rituais religiosos e indgenas (cf. Quadro 5)
Pontos em comum entre festas demsica eletrnica e rituais indgenas
estados alterados de conscincia (transe, xtase, hipnose, telepatia etc.) ambiente imersivo (msica alta, luzes, decorao etc.) msica repetitiva mantra DJ como xam (orientador da energia coletiva) jornada xamnica experincia religiosa (transcendncia) experincia psicossomtica drogas
Quadro 5 Proposta de sntese de temas dodiscurso nativo relativos a rituais indgenas.
Sobre o que fala esse discurso nativo quando afirma que "o mesmo impulso humano bsico que
estimulou e inspirou povos primitivos a pularem em suas cavernas e se reunirem num sbado
noite est emergindo novamente na cultura rave para satisfazer as mesmas necessidades
fundamentais" (Fritz, 1999, p.31)?11 Como entender a insistncia desse discurso na nossa
"ancestralidade primitiva", em "nossos ancestrais tribais"12 que "danavam em volta da fogueira e
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entravam em transe"?13 Aparentemente, h um ponto para o qual as diferentes direes que cada
vertente particular desse discurso prefere privilegiar convergem: a experincia do transe sendo
a msica o foco operatrio desse transe, qualquer outro elemento (como as drogas) aparecendo
como auxiliar. ao transe que o DJ Arlequim deseja conduzir um pblico que deseja ser
conduzido atravs dos dois passos rituais e o transe o principal elemento qualificador da
especificidade "tribal" da msica eletrnica xamnica. Mas no se trata de qualquer transe, e
isso que a distino entre o undergrounde o mainstream ajuda a entender.
(3)
Enfim, quanto orientao micropoltica do discurso nativo, usamos fontes mais heterogneas
para ilustrar aquelas que nos pareceram ser as linhas gerais de um esforo discursivo por
compreender as diferenas e as relaes entre as vertentes undergrounde mainstream de msicaeletrnica. Poderamos sintetizar os resultados dessa investigao no seguinte quadro (cf. Quadro
6):
UNDERGROUND MAINSTREAM
experimentao frmulas consolidadasinovao reproduo
criao apropriaoantes depois
evoluo sucessoconceitual comercial
conhecimento lucro financeiropesquisa didtica pesquisa de mercadodesenvolvimento reconhecimento
comunidade mercadocompromisso interesse
cultura moda (hype)autntico falso
amador profissionalvia alternativa via principal
secreto, raro pblico, banalminoritrio dominante
disco de vinil, mdias analgicas CD, mdias digitaisbom gosto mau gosto
msica eletrnica de qualidade "baba", "poper""ns" "eles"
overgroundArregimentao de aliados, apoiofinanceiro, transformao social
Renovao esttica, legitimidade,autenticidade.
Quadro 6 Proposta de sntese do discursonativo sobre o undergrounde o mainstream.
Uma importante constatao dessa investigao do discurso nativo foi a idia de que o
underground a "origem" daquilo que depois ser capturado pelo mainstream. Fazendo um
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paralelo com os discursos cosmolgicos, poderamos dizer que, assim como Mantrix atribuiu a
criatividade ao plo "espiritual", assim como Lemon descreveu o plo "interior" como "onde
tudo comea", tambm o underground descrito pelo discurso nativo como o lugar onde o novo
gestado. Ou ainda que assim como o papel do xam para Mantrix era "transmitir" para o mundo
"material" as qualidades do mundo "espiritual" e para Lemon era "exteriorizar" sua "energia
mental" ("poder intelectual") na transformao do mundo, o DJ underground tem como papel
arquetpico alcanar o maior nmero de pessoas atravs de um trabalho experimental e sem
compromissos comerciais, tornando-se overground. Tanto nas cosmologias de Mantrix e de
Lemon quanto nas micropolticas do underground, o plo negativo (i.e., o lado direito dos
quadros) , apesar de desvalorizado e apresentado como virtualmente inferior, sempre
reconhecido como atualmente dominante e contingentemente necessrio para a atualizao doplo positivo. Em outras palavras, se por um lado so "poucos" (por princpio e de fato) aqueles
que efetivamente constituem underground(ou, poderamos dizer com Mantrix, que "atentam para
as necessidades do esprito") e "muitos" aqueles que reproduzem o mainstream, por outro da
minoria underground que o mainstream se alimenta e atravs do uso estratgico dessa
dependncia que aquele acaba se beneficiando deste na condio de overground. Assim, em todas
as dualidades analisadas, temos um domnio atual do plo direito sobre o esquerdo, uma
superioridade virtual do esquerdo sobre o direito, e uma utilizao contingente dos elementos doplo direito pelo plo esquerdo para seus prprios fins.
Retomemos os trs grupos de discurso nativo sintetizados acima. Quanto aos aspectos (1)
cosmolgicos, tudo se baseia na idia de que a realidade composta por dois nveis, um
determinante e oculto e outro determinado e manifesto, o xamanismo consistindo num conjunto
de tcnicas capazes de operar uma mediao particularmente produtiva entre os dois nveis,
trazendo para a realidade manifesta novos conhecimentos e potncias (criao, transformao) e
levando para a realidade oculta novas experincias (introspeco, concentrao). Quanto aos
aspectos (2) ritolgicos, tudo se baseia na produo de um estado de transe, que alm de envolver
uma srie de fatores contingentes, exige necessariamente uma predisposio do DJ em se
esforar para conduzir o pblico atravs de experimentaes musicais (geralmente enfatizando a
repetio hipntica) e do pblico em se deixar levar por essas experimentaes. E quanto aos
aspectos (3) micropolticos, trata-se de perceber que apesar de existirem duas tendncias
qualitativamente distintas de operao sonora a mainstream (que busca reproduzir frmulas j
estabelecidas por estar a servio de interesses outros que no a experimentao) e a underground
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(que usa frmulas eficazes com o objetivo de experimentar novas combinaes e modulaes),
esta estando para aquela como o nvel determinante da realidade segundo as cosmologias est
para o seu nvel determinado , a qualidade do transe promovido por uma certa combinao de
fatores que torna a experincia xamnica ou no, qualidade essa que pode se manifestar para
alm da prpria dualidade como no caso arquettico do overground.
Olhemos agora para o xamanismo indgena contemporneo do ponto de vista de quem
deseja entender um xamanismo contemporneo no-indgena que se liga geneticamente ao
indgena atravs de um discurso coletivo. O que o discurso nativo da msica eletrnica est
falando sobre xamanismo quando diz que a msica eletrnica xamnica?
O DEVIR-MQUINA DO XAMANISMOImpressionado pela quantidade, variedade e qualidade de casos documentados de apropriao-
incorporao mito-ritolgica de mquinas tcnicas modernas por povos nativos tradicionais de
todo o mundo, mas curioso pela aparente falta de interesse acadmico pelo tema, decidi
investigar mais a fundo o assunto.14 Aps anlise de um material voltado principalmente para a
Amaznia (mas no somente), conclu que os casos podiam ser divididos em dois grupos: um
envolvento a relao mais geral e cosmolgica entre (1) mito e tecnologia, cujo caso mais comum
o do uso de esquemas mticos para interpretar e descrever mquinas modernas; o outroenvolvendo a relao mais particular e ritolgica entre (2) os xams e as mquinas, aqueles
encontrando nestas concretizaes exteriores de seus prprios poderes, capacidades e habilidades.
(1)
Quanto ao primeiro grupo, existem duas idias importantes a reter. Em primeiro lugar, preciso
perceber como o tempo mtico o tempo em que toda tecnologia (indgena ou no) foi no
apenas criada, mas tambm distribuda desigualmente entre os seres do mundo criado com o seu
trmino, entre os quais figura com destaque o homem branco,15 detentor atual das mquinas
criadas no incio dos tempos. Em segundo lugar, preciso notar que o contato histrico com o
branco freqentemente vivido pelos ndios como um retorno (efetivo ou latente) do tempo
mtico e, portanto, como um perodo de transio entre uma ordem anterior que se encontra em
colapso e uma ordem futura que est em gestao. Em outras palavras, segundo o discurso
indgena, o branco e suas tecnologias foram criados no tempo mtico junto com todos os outros
grupos humanos e suas respectivas tecnologias, e o contato histrico com eles , por isso, vivido
pelos ndios como um retorno do tempo mtico: um perodo de transio cheio de perigos e
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promessas entre uma velha e uma nova ordem que ameaa se consumar em uma ruptura anloga
primordial (tendncias milenaristas e messinicas).
Algo tpico ocorre quando povos indgenas entram em contato com os brancos e suas
tecnologias: o tempo mtico atualizado pelas potncias tecno-patolgicas e processos
milenaristas e xamnicos so deflagrados para controlar essas potncias. "Observou-se muitas
vezes", constatou Manuela Carneiro da Cunha, "o extraordinrio florescimento do xamanismo em
situaes de dominao de tipo colonial, ou mais exatamente quando povos so capturados nas
engrenagens do sistema mundial" (Carneiro da Cunha, 1998, p.8). Parece-nos que esse
"extraordinrio florescimento do xamanismo" em grande parte a conseqncia da derrocada do
mundo conhecido at ento e da subseqente busca por uma nova ordem, por um novo ponto de
vista a partir do qual fazer sentido da nova situao e organizar a ao. Os processos criativos edestrutivos colocados em movimento no contato com o branco e suas tecnologias parecem ser
diferentes de tudo o que j se viveu e exigem ser interpretados como um retorno coletivo ao
tempo mtico, o contexto em que processos anlogos se desenrolaram originalmente. Nesse
retorno, so os xams aqueles que se encontram melhor situados para controlar as foras em jogo
e para guiar os demais ao longo da "passagem perigosa".16 Entre os meios empregados, figura
com destaque a captura do poder das mquinas modernas pelos xams em seus rituais (quando
no a transformao do xam em mquina).(2)
Objetos de metal, armas de fogo, relgios, mquinas trituradoras, caminhes, helicpteros,
lanchas, avies, bicicletas... como se justifica a importncia que esses objetos e mquinas
assumem nos rituais indgenas? Rdio, gravador, telefone, televiso, cinema, fotografia, cabos
eltricos, escrita... como se explica a freqncia com que essas mquinas e tecnologias so
mobilizadas pelos xams em seus rituais e em suas descries de seus prprios poderes? 17 Num
primeiro momento, em todos esses casos aceitamos estar diante de um mesmo princpio: a
apropriao ritual de poderes sobrenaturais associados tecnologia dos brancos com o objetivo
de reverter seu efeitos negativos ou de aumentar o poder dos ndios frente aos brancos. Que isso
nos diz muito sobre a perspectiva nativa do contato com os brancos j , parece-nos, uma
conquista valiosa da Antropologia.18 Resta ainda, porm, considerar as conseqncias que esse
tipo de apropriao pode trazer para a perspectiva dominante sobre a prpria tecnologia que
apropriada. Afinal, o que os xams esto nos dizendo sobre nossas prprias mquinas que ainda
no sabemos?
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Seria preciso ver aqui o xamanismo menos como uma essncia fixa, uma propriedade de
tal ou qual indivduo, e mais como uma operatria, como uma maneira de colocar em contato
realidades distintas mas intimamente relacionadas. Assim, importam menos as diferenas entre as
mquinas escolhidas por cada xam ou a maneira como elas figuram em cada ritual particular e
mais a operao que lhes comum: a captao do imperceptvel (tornando acessvel aos sentidos
e ao intelecto aquilo que at ento lhes era inacessvel) e a modulao do difuso (canalizando
para fins especficos foras que at ento eram incontrolveis). Com isso, acreditamos no
apenas nos aproximar daquilo que os prprios xams esto dizendo, mas principalmente avanar
na compreenso de dimenses ainda praticamente desconhecidas das mquinas. O xamanismo
indgena contemporneo como meio de acesso a possveis xamanismos contemporneos no-
indgenas. Justamente, nesse caso o principal deixa de ser o significado que a mquina ou oxamanismo tm em seus contextos histricos originais e passa a ser a maneira como eles
funcionam juntos, o que permite esse funcionamento. Sugerimos aqui que se trata de uma
transformao mtua, um duplo devir no qual tanto o xamanismo quanto as mquinas se
transformam, aquele se externalizando e se distribuindo em mecanismos automticos e estas
assumindo funes e capacidades xamnicas especficas.
Retomemos os dois grupos de casos em que as tecnologias xamnica e moderna se relacionam demaneira reveladora. De uma perspectiva mais (1) geral e cosmolgica, segundo o discurso
indgena o branco e suas tecnologias foram criados no tempo mtico junto com todos os outros
grupos humanos e suas respectivas tecnologias, o contato histrico com eles sendo, por isso,
vivido como um retorno do tempo mtico: um perodo de transio cheio de perigos e promessas
entre uma velha e uma nova ordem que ameaa se consumar em uma ruptura anloga
primordial (tendncias milenaristas e messinicas). De uma perspectiva mais (2) particular e
ritolgica, constatamos que o contato com o branco tende a gerar uma intensificao do
xamanismo e que os xams, por sua vez, tendem a incorporar mquinas e tecnologias modernas
em seus rituais em seu esforo tradicional de "domar" as foras csmicas liberadas pelo retorno
descontrolado do tempo mtico. A maneira como essa incorporao feita, no entanto, sugere que
as tcnicas xamnicas, antes concentradas no corpo do xam, passam a ser assumidas pelas
mquinas,19 e que o xamanismo contemporneo se distingue do tradicional pelo deslocamento da
nfase, do controle individual das potncias sobrenaturais atravs de relaes com os seres da
floresta, para o controle distribudo das potncias sobrenaturais atravs de relaes com as
mquinas.
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O TRANSE MAQUNICO
A idia de que a msica eletrnica possa ser xamnica, quando aceita em seu prprio direito,
pode servir para olharmos o xamanismo indgena contemporneo com outros olhos (olhos
voltados para as suas relaes com a tecnologia moderna e no para ideais tradicionais). Mas uma
vez atentos s complexidades mtico-rituais das mquinas modernas, preciso voltar ao
xamanismo da msica eletrnica e buscar entender o que msica eletrnica quando a msica
eletrnica xamnica. Essa fase da pesquisa exigiu um distanciamento estratgico do
conhecimento j estabelecido sobre o tema e uma abertura aos potenciais imanentes da msica
(aquilo que poderamos chamar de o seu xamanismo distribudo). O que acontece quando nos
deixamos conduzir pela msica eletrnica de pista underground? Foi necessrio um esforometdico para desbloquear o pensamento e o corpo, para deixar-me afetar por essa msica, pela
experincia de dan-la e de ser movido por ela, para deixar com que a prpria experincia de
danar msica eletrnica conduzisse o pensamento e a reflexo por rumos inesperados e
inacessveis por quaisquer outros meios. Foi preciso, enfim, deixar depensar sobre a msica
eletrnica e medeixarpensarporela:20 sendo afetado pelas suas intensidades, sendo acelerado e
desacelerado por suas velocidades, sendo modulado por suas freqncias, sendo capturado por
seus ritmos. Logo de incio duas caractersticas extremamente importantes desse tipo de msicase destacaram: sua qualidade tcnica, maquinal, e a sua repetitividade. Juntas, a tecnicidade e a
repetitividade acabam promovendo uma experincia muito particular que poderamos chamar de
"transe maqunico": quando a msica toma posse do corpo da pessoa, quando os sons que ela
escuta parecem comandar os seus movimentos, quando ela se sente uma pea de uma mquina
que produzida na pista de dana e cujo som a prpria msica.
O discurso nativo encontra algumas maneiras de expressar essa experincia. Lemos num
depoimento encontrado na Internet, por exemplo, que o Techno " muito parecido com uma
mquina" que "junta, mi, vira e mistura para criar um produto", que "quando escuto Techno eu
me sinto parte dessa mquina, a msica se torna a minha respirao, energia, movimento e afeta
meu estado emocional e minha aparncia" e que as "sutis variaes nos sons produzidos pelas
mquinas mexem em algo muito profundo dentro de mim em que nenhuma outra msica mexe"
(Michalski, 1999).21 Num texto sobre a histria do Techno, l-se que "[n]s nos esquecemos que
estamos cansados, que a pessoa na nossa frente est invadindo o nosso espao com seus braos
balanando" e "[d]e repente, estamos l", "presos no transe, a energia maior", e "junto com
milhares de outros, ns decolamos" (Savage, 1993).22
Um jornalista nativo conclama: "liberte-se
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e dance", "[s]eja com o corpo ou com a alma, dance sem parar as infinitas combinaes de
tomos se movimentando daquela partcula que gerou a gua para gerar a correnteza que gerou
uma hidreltrica que gerou eletricidade para gerar msica nas caixas de som que esto gerando
movimentos em voc" (Croppo, 2002).23 Outro depoimento encontrado na Internet fala sobre a
sensao de ser "uma ferramenta ligando os DJs ao pblico": "era como se seus pensamentos,
vibraes e batidas entrassem diretamente em mim e eu danava da maneira como eles queriam.
Eu no pensava em nada. Eu sabia como a msica iria mudar antes que ela tocasse, como se a
msica estivesse dentro de mim, fazendo-me mover. Eu no tinha controle sobre meus prprios
movimentos. Eu havia dado o meu corpo aos DJs em nome de uma causa maior" (Weisberg et al.,
1996).24 Reynolds conta em seu livro que foi "instantaneamente capturado por um novo tipo de
dana [...] a agitao de corpos reduzidos a componentes separados e ento reintegrados nonvel da pista de dana como um todo": "Cada parte (um membro, uma mo em forma de pistola)
era uma pea de uma 'mquina desejante' coletiva, engrenada nos graves e riffs seqenciados do
sistema de som." (Reynolds, 1999, p.5)25 Ralf Htter, enfim, membro fundador do grupo
Kraftwerk, constata que "todos procuram o transe na vida" e que "as mquinas produzem um
transe absolutamente perfeito" (Savage, 1993).
Segundo Tim Becker e Raphael Woebs, justamente a "periodicidade implacvel [...] e a
diviso mecnica e exata do tempo ('no-humanizado')" na msica eletrnica de pista que "tornapossvel a sua dimenso mtica" (Becker e Woebs, 1999, p.63). a "estruturao exagerada e
ilimitada do tempo" que "cria a sensao de atemporalidade", a "desumanidade" do "tempo
musical 100% estruturado" que leva ao "transe", "um 'deixar-se levar' pela lgica de um ritmo
hipntico que flui em movimentos 'controlados por outrem'" (Becker e Woebs, 1999, p.63-4).26 O
papel do DJ ento estimular o transe coletivo atravs da coordenao desse som
"desumanamente preciso" com os movimentos do pblico (Becker e Woebs, 1999, p.64). Mas se
a preciso absoluta do tempo musical est diretamente ligada experincia do transe maqunico,
o mesmo se pode dizer da repetitividade do som tecnicamente reproduzido. Como bem nota Tony
Langlois, a "extensa repetio de um nico ritmo" produz uma "ambincia 'extraordinria'" que
estimula cada pessoa a "refugiar-se em seu prprio 'mundo danante'", a "perder-se na msica"
(Langlois, 1992, p.235-6). De fato, um mundo sensrio-motor extraordinrio, caracterizado pela
preciso tcnica e pela sincronizao entre som e movimento parece ser produzido pela msica
eletrnica de pista. Mas o ouvinte-danante de msica eletrnica percebendo-se como pea de
uma mquina no transe maqunico apenas um lado da estria. Vejamos agora como o DJ
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assume o papel de um operador-produtor dessa mquina composta pelo seu pblico, pela msica
e pelas mquinas tcnicas.
SOM E MOVIMENTO
Trataremos agora da formao-funcionamento da mquina sonoro-motora da msica eletrnica
de pista. Consideraremos, em primeiro lugar, (1) os dois mecanismos bsicos que produzem essa
mquina e que determinam o seu funcionamento o break, que tem a funo de capturar o
movimento, e o pulso constante, que tem a funo de mant-lo e modul-lo. Em seguida,
consideraremos (2) os parmetros tcnicos atravs dos quais essa mquina operada a
intensidade sonora, que produz um ambiente imersivo e vibratrio, asfreqncias, que trabalham
as densidades relativas desse ambiente, e a velocidade, que diferencia e reorganiza essasdensidades relativas em diferentes estratos.
(1)
Ritmo e metro so complementares, mas diferem por natureza. Ritmo a repetio-diferena,
incomensurabilidade, transformao, devir, enquanto metro repetio-medida, isocronismo,
continuao, ser. Segundo a ritmologia de Gilles Deleuze, a "repetio-medida/nua/superficial"
("uma diviso regular do tempo, um retorno iscrono de elementos idnticos") se distingue da
"repetio-ritmo/vestida/profunda" ("desigualdades, incomensurabilidades"), pois a primeira "apenas a aparncia ou o efeito abstrato da segunda" (cf. Deleuze, 1988, p.51-2, 449-51), e com
Flix Guattari, ele disse: "A medida dogmtica, mas o ritmo crtico, ele liga os instantes
crticos, ou se liga na passagem de um meio para outro. Ele no opera num espao-tempo
homogneo, mas com blocos heterogneos." (Deleuze e Guattari, 1997, p.119) A msica
eletrnica de pista trabalha, acima de tudo, com diferena e repetio: repetindo uma diferena,
tendncia cujo exemplo extremo o pulso constante, mas que envolve tambm a repetio de
padres mais complexos na forma de loops; e diferenciando suas repeties, tendncia cujo
exemplo extremo o break, mas que envolve tambm o uso de efeitos e filtros nas modulaes e
mixagens.27 Seria til lembrar aqui dos dois passos rituais do DJ Arlequim, pois o ritmo do break
no faz outra coisa do que trazer as pessoas para dentro da msica e de seu movimento imanente,
incentiv-las a "se fechar" para o mundo extra-sonoro e "abrir a cabea" para as "freqncias"
que "vo se acumulando" e "gerando efeitos diferentes",28 e o metro do pulso constante no passa
de um dispositivo extremamente eficaz de manter o movimento capturado no breakpara que se
possa experimentar com ele, uma maneira certeira de "entrar na cabea" do pblico atravs da
produo de um transe maqunico pela repetitividade hipntica: trata-se sempre de alternar
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momentos de ruptura com momentos de continuidade.29 Enquanto as diferenas e variaes
produzidas pelos breaks so como as "frmulas" que garantem ao DJ a captura do movimento de
seu pblico, a continuidade e a linearidade produzidas pela repetio de um mesmo pulso (ou
mesmo de loops mais complexos) so aquilo que transforma esse "ponto de fuga" em uma "porta
de entrada" para um novo mundo que a contrapartida do novo corpo sonoro-motor coletivo
produzido na pista de dana atravs da sondagem sensvel e intuitiva, pelo DJ, de seus limiares de
resoluo. Perceber-se como pea da mquina, entrar no transe maqunico, assumir
espontaneamente, por resoluo sonoro-motora, uma das diversas funes que compem esse
corpo.
Tudo comea com a captura do movimento, operao aperfeioada historicamente na
Nova Iorque dos anos 70 pela "cincia do breakbeat".30 Sem essa captura, sem a ruptura que elarepresenta entre dois regimes de movimento muito diferentes (um indiferente ao som e outro em
correspondncia direta com ele), no teremos as condies mnimas essenciais para a
concretizao de um corpo coletivo sonoro-motor. O movimento imperceptvel do som se torna
perceptvel na dana medida que o som imperceptvel da dana se torna perceptvel na msica.
Mas h uma grande diferena entre a captura do movimento e a sua manuteno, e uma
experimentao controlada com o corpo sonoro-motor concretizado pela captura do movimento
s possvel se esse movimento puder ser mantido pela proposio de uma grade abstrata quedistribuir pontos privilegiados nos quais uma sincronizao entre som e movimento deve
ocorrer. O pulso constante metronmico foi a soluo encontrada historicamente para o problema
da manuteno do movimento, caracterizando a contrao da durao especfica ao corpo sonoro-
motor concretizado graas sincronizao entre a msica e a dana e entre msicas diferentes.
Se o break a captura do movimento e a sua acelerao explosiva, como um turbilho
que captura um objeto para depois jog-lo distncia, o pulso constante a manuteno de um
movimento j existente, a sua continuao e perpetuao. Um como o despertar do corao (no
feto ou na vtima de parada cardaca) enquanto o outro como a continuao de seus batimentos
garantindo a continuao da vida. Um a partida do motor, o outro o seu funcionamento
regular. Um a superao da inrcia de um sistema, o outro a manuteno de seu movimento.
Na prtica, os DJs de msica eletrnica de pista usam esses elementos de maneira complementar,
os breaks servindo para incentivar o incio ou a retomada da dana (momentos de captura, em
que, de uma hora para a outra, as pessoas comeam a danar) e o pulso constante servindo para
manter esse movimento enquanto o DJ trabalha com outros parmetros. um equilbrio instvel
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esse da captura e da manuteno do movimento. preciso ter muita tcnica, mas tambm muita
intuio.
(2)
Tendo visto como o breake o pulso constante se complementam enquanto dois procedimentos
elementares que do partida e mantm o funcionamento da mquina do transe da msica
eletrnica de pista, resta agora ver como, uma vez funcionando, ela operada pelo DJ. Sabendo
que a msica eletrnica underground trabalha muito mais com a sondagem dos limiares de
resoluo do corpo sonoro-motor de uma mquina de transe do que com a apresentao de uma
narrativa musical, cumpre conhecer os trs parmetros elementares atravs dos quais eles operam
essa mquina, todos baseados nos efeitos sensrio-motores do som: os efeitos da altssima
intensidade (geralmente medida em decibis; dB) do som eletronicamente amplificado,caracterizados pela experincia de imerso corporal em um ambiente vibratrio; os efeitos
particulares de diferentes faixas defreqncias (geralmente medidas em hertz; Hz) e de suas
combinaes quando produzidas em altssimo volume e controladas de maneira precisa,
caracterizados pela experincia de diferenciao entre sons que penetram no corpo, que colidem
com ele e que o dissolvem; os efeitos de diferentes velocidades (geralmente medidas em batidas
por minuto; BPM) do tempo musical metronomicamente controlado, caracterizados pela
sincronizao de ritmos infra-, intra- e inter-corporais.Quanto intensidade, o fato de que a msica eletrnica de pista nofunciona a menos do
que 90dB coloca um limite mnimo para que o processo de individuao do corpo sonoro
coletivo na pista de dana se inicie.31 Existem pelo menos dois motivos para isso: (1) abaixo
desse limiar de intensidade as relaes intersubjetivas provavelmente permanecem ainda muito
presentes atravs das conversas; e mais importante ainda, (2) abaixo desse limiar de intensidade o
som (principalmente as freqncias mais graves) deixa de ter o impacto fsico no corpo que
promove a imerso no meio vibratrio prindividual. A intensidade tem, portanto, esse duplo
papel de contribuir para o rompimento da pessoa com o mundo comunicacional humano atravs
da dificultao da comunicao verbal e de imergir o corpo em um meio vibratrio prindividual
que formar o novo indivduo coletivo sonoro atravs do transe maqunico. Muitos outros estilos
musicais amplificados eletronicamente (notavelmente o Rock) tambm dependem de altas
intensidades para funcionar, igualmente isolando as pessoas em um mundo sonoro imersivo. O
que distingue, no entanto, a msica eletrnica de qualquer outro estilo musical amplificado, a
mesma diferena que Gregory Bateson apontou entre ser a fonte energtica que produz a ao ou
ser a maquinaria de deciso que a libera.32
No primeiro caso, o som produzido est
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imediatamente relacionado s constantes variaes expressivas do instrumentista, ao passo que
no segundo essa relao mediada por uma mquina automtica.
No caso das freqncias, essa especificidade maqunica da msica eletrnica radica no
fato de que enquanto para o instrumentista faz toda diferena o fato de ele tocar um instrumento
percussivo, de corda ou de sopro, para o DJ todos eles se igualam enquanto manifestaes de um
mesmo espectro sonoro. Em outras palavras, na relao com o seu pblico, o DJ de msica
eletrnica de orientao maqunica no trabalha com notas, acordes, melodias, harmonias, todo o
vocabulrio musical do instrumentista que precisa produzir sons especficos atravs da
manipulao de seu instrumento, mas apenas com a liberao controlada de freqncias. Para o
DJ, aquilo que realmente importa em um som o seu efeito no pblico quando amplificado a
altas intensidades. Por isso, a modulao cuidadosa das trs faixas de freqncias, s vezessuprimindo-as, s vezes intensificando-as, muito mais importante do que uma seqncia de
notas ou um campo harmnico em particular. Evidentemente, existem DJs mais interessados na
linguagem musical do que outros e h toda uma dimenso harmnica e meldica na msica
eletrnica de pista que pode ser trabalhada pelo DJ em suas mixagens, mas tudo isso secundrio
da perspectiva do transe maqunico que est muito mais ligado aos efeitos de sons extremamente
intensos e de diferentes freqncias sobre o corpo.
No caso das velocidades, a especificidade da msica eletrnica reside no duplo processode automao e simplificao da base rtmica. sabido que, a partir de meados da dcada de 70,
as msicas destinadas s pistas de dana foram rapidamente desenvolvendo uma espcie de
linguagem comum baseada na preciso metronmica e no pulso constante que culminou, na
primeira metade dos anos 80, na criao da House e dos estilos mais maqunicos de msica
eletrnica, baseados em faixas (tracks) mais do que em canes.33 Ao mesmo tempo em que o
baterista (quando no toda a banda) era eliminado junto com suas oscilaes expressivas de
velocidade, a prpria base da msica era reduzida a um pulso constante e impessoal que guarda
muito mais parentesco com um sinal sincronizador de mquinas do que com um ritmo musical.34
Isso permitiu no apenas a sincronizao precisa de duas ou mais gravaes diferentes pelos DJs,
mas tambm a especializao crescente do pblico em faixas de velocidade particulares, fazendo
da dana (i.e., da sincronizao dos movimentos do pblico com o som) a porta de entrada para
um transe maqunico.
Tornando-se linguagem de mquina ou, nas palavras do DJ norte-americano de Techno
Juan Atkins, "computadores conversando entre si" (cf. Brewster e Broughton, 2000, p.335) a
msica eletrnica de pista se tornou ela mesma o som de uma mquina cujas peas so, entre
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outras coisas, pessoas em movimento, danando em transe maqunico. Poderamos dizer que
enquanto o break e o pulso constante condicionam a formao do corpo dessa mquina
capturam e concretizam seus componentes e lhes impe um modo particular de existncia , os
trs parmetros bsicos constituem os controles pelos quais ela pode ser operada e conduzida
numa determinada direo o controle das intensidades, como um motor que determina os
limiares de potncia da mquina (o mnimo, de 90dB, abaixo do qual ela no funciona, e o
mximo, de 130dB, acima do qual ela ameaa destruir suas prprias peas tcnicas e orgnicas);
o controle das freqncias, como uma caixa de cmbio que coordena o engate de suas diferentes
peas (as trs faixas correspondendo a trs nveis possveis e diferentes de engate); e o controle
das velocidades, como um pedal de acelerao que controla a sua velocidade de funcionamento
(cada estilo com suas prprias velocidades mxima e mnima, a maioria se concentrando entre120 e 150BPM). A energia dessa mquina de transe vem tanto da rede eltrica que alimenta as
mquinas tcnicas quanto do metabolismo das pessoas maquinadas, o DJ limitando-se a liberar e
modular essa energia atravs dos seus parmetros de controle. O importante perceber que o DJ
um maquinista maquinado, que o seu controle sobre a mquina no maior do que o controle
que a mquina tem sobre ele. Isso pois a mquina da msica eletrnica uma mquina desejante,
seu funcionamento coincidindo com sua formao e o seu produto sendo apenas a sua prpria
auto-produo contnua, i.e., a contnua coevoluo entre som e movimento.
DEVIRES
"O devir", nos dizem Deleuze e Guattari, "no tem termo, porque seu termo [...] s existe tomado
num outro devir do qual ele o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o primeiro" (Deleuze e
Guattari, 1997, p.18). As relaes entre msica eletrnica e xamanismo se mostraram cada vez
mais interessantes medida que elas deixaram de expressar a confrontao entre duas realidades
sociais conhecidas e em muitos aspectos incompatveis e passaram a manifestar implicaes
mtuas entre realidades sociais ainda por conhecer. Parece-nos, com efeito, que o xamanismo damsica eletrnica muito melhor compreendido quando deixa de ser buscado em sua relao
com alguma essncia xamnica tradicional e passa a ser visto como uma manifestao particular
da distribuio tecnolgica do xamanismo contemporneo em geral: um devir-xamanismo da
msica eletrnica de pista como contrapartida de um devir-mquina do xamanismo indgena. O
principal para ns foi seguir at o fim a trilha do transe (no caso da msica eletrnica) e da
mquina (no caso do xamanismo), at o ponto em que convergiram no transe maqunico, no qual
a pessoa se percebe como uma pea de uma mquina sonoro-motora caracterizada pelos dois
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mecanismos bsicos que a produzem e que determinam o seu funcionamento a captura do
movimento pelo break e a sua manuteno pelo pulso constante e pelos trs principais
parmetros tcnicos atravs dos quais ela operada a intensidade sonora geral, a distribuio do
espectro de frequncias e a velocidade da msica.
Elias Canetti j disse que ns, modernos, no temos mais mitos (cf. Garcia dos Santos,
2003, p.71-2); mas o motivo disso no poderia ser o fato de que vivemos, como os prprios
ndios o dizem, para o bem ou para o mal, no tempo mtico ele mesmo? Se o xam indgena
encontrou nas mquinas concretizaes parciais e tecnicamente manipulveis de suas
capacidades e poderes que passam a ser acessveis aos no-xams, ento o que se observa uma
atualizao tecnolgica do tempo mtico atravs da distribuio tecnolgica do xamanismo.35
Nessa nova forma, o xamanismo no deixa de existir e nem perde sua importncia, apenas passaa funcionar de outra maneira, distribuda e geralmente parcial: cada mquina materializando
diferentemente tcnicas do xtase que antes eram concentradas em seu corpo individual. H, sem
dvida, um devir-xamanismo da msica eletrnica. Porm, diferentemente da tendncia
dominante no estudo do tema (e no prprio discurso nativo), que tende a procurar o nexo desse
devir na equiparao formal entre o indivduo DJ e o indivduo xam tradicional como se j
soubssemos o que um "DJ" e o que um "xam" mesmo antes de saber o que o xamanismo
da msica eletrnica , parece-nos que ele reside muito mais na maneira como a msicaeletrnica faz, de uma transformao especfica da operatria xamnica, um meio de tornar-se
xamnica ela mesma. Trata-se, em suma, de um duplo devir no qual a msica eletrnica e o
xamanismo se modificam mutuamente de forma a no poderem mais ser reduzidos quilo eram
fora de sua relao.
NOTAS1Msica eletrnica e xamanismo: tcnicas contemporneas do xtase, tese de doutorado em Cincias Sociais
orientada por Laymert Garcia dos Santos, financiada pela FAPESP e defendida em 2 de outubro de 2006 no IFCH-Unicamp (cf. Ferreira, 2006).
2 Optei por chamar de "discurso nativo" o discurso produzido por aqueles de alguma forma envolvidos na produo,reproduo e transformao do objeto desta pesquisa, o xamanismo da msica eletrnica. O fato de que no apenaso discurso dos DJs e de seu pblico, mas tambm aquele de qualquer um que se envolva de alguma forma com oxamanismo da msica eletrnica, seja considerado "nativo" exige, evidentemente, que abandonemos qualquerconcepo essencialista de natividade, concebendo a possibilidade de que pessoas se tornem nativos ou deixem des-lo com a mesma facilidade com que trocam de roupa, de corte de cabelo ou de assunto que algumas pessoastenham mais facilidade de realizar essas trocas do que outras apenas revela que existem graus variados denatividade. A opo pelo uso do termo "nativo" foi diretamente influenciada pela mxima "ningum nasce [...]nativo" de Viveiros de Castro (2002, p.119) e considera abertamente a possibilidade de que outros pesquisadoresencontrem outros discursos nativos dizendo coisas diferentes daquelas que aqui se ver, o importante sendo no acoincidncia dos enunciados particulares, mas sim a consistncia do campo ao qual eles esto ligados.
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3 Essa resistncia em aceitar a legitimidade do discurso da "msica eletrnica como xamanismo" (ou melhor dizendo,
em abandonar de vez a busca por alguma legitimao) pde ser observada ainda em minha apresentao ao Ncleode Transformaes Indgenas (NuTI-UFRJ) no Seminrio "Msica eletrnica e xamanismo" (cf. Ferreira, 2005)
realizado em 14 de outubro de 2005, menos de um ano antes do trmino da pesquisa.4 Exemplos de legitimao da relao entre xamanismo e msica eletrnica s custas de uma simplificao doxamanismo indgena tradicional podem ser encontrados em: Inkinen (1994); Rushkoff (1994, p.118, 121, 124-5,131-6); Ross et al. (1995, p.72); Toop (1995, p.221, 225-38, 250-1 e 277-80); Scott (1995); Mizrach (1996a,1996b, [s.d.]); Bull (1997, p.2); Vianna (1997); Castle (1998); Palomino (1999, p.140-1); Becker e Woebs (1999,p.64-5); Reynolds (1999, p.35, 150-6, 216, 306); Fritz (1999); Fry (1999a, 1999b); Hutson (1999, 2000); Shapiro(2000a, p.61); Marcus (2000, p.161, 164); Reighley (2000, p.11); Brewster e Broughton (2000, p.5-7, 62, 373,409); Miller (2001); Green (2001); Jouvenet (2001, p.5, 9); Vitebsky (2001, p.153); Neill (2002, p.6); Saldanha(2002, p.51, 54-5); McAteer (2002); Duarte de Souza (2001, p.64-8); Farrugia (2004, p.241); Ferla (2004, p.41);alm da seo "Technoshamanism: Spirit of Raving archive" do siteHyperreal:. Em Ferreira (2006, p.75-81 e 229-31) comento oscasos de Duarte de Souza (2001), Hutson (1999, 2000) e Green (2001).
5 Exemplos de deslegitimao da relao entre xamanismo e msica eletrnica podem ser encontrados em: Scott(1995); Toop (1995, p.278-9); Ross et al. (1995, p.72); Clarke et al. (1995); Lang (1996, p.8); Becker e Woebs
(1999, p.59); Radio-V (1999); Green (2001); Canevacci (2004, p.8); Matias (2004); Loizou (2005) e Martins(2005). O DJ de Techno Camilo Rocha, quando questionado sobre o assunto, disse considerar "meio viagem essaassociao" entre DJs e xams: "O xam algum que tem poderes de cura, e tudo mais. uma coisa mais mstica,acho que... exagerado [chamar o DJ de xam]... Acho que o DJ consegue fazer uma conexo espiritual com aspessoas no sentido de tocar uma msica que as pessoas gostam, se emocionam com essa msica... [...] Nada decomear a ficar muito mstico na histria... Os psicodlicos que devem gostar dessa associao de DJ-xam[risos]. Mas eu no sei... [...] Acho que o DJ no deve se considerar nenhuma entidade mstica." (Camilo Rocha,entrevista 10 de maio de 2003).
6 Essa pesquisa pode ser acompanhada em Ferreira (2006, Parte I).7 DJ Mantrix toca Trance desde 1998 e fundou, junto com outros DJs sediados em Fortaleza (Cear) em 2000, o
coletivo Undergroove, do qual se desligou no ano seguinte "para se dedicar apenas ao trance".8 Mr. Lemon entrou nesta pesquisa quando, no dia 15 de agosto de 2002, enviou ume-mail lista de discusso
"Pragatecno Brasil" onde dizia defender a tese de que os DJs fazem "largo" uso da prtica do "xamantismo [sic]",
"que tem ra[]zes seculares e largamente utilizada nos dias de hoje pelos DJ's". Presumindo que ele se referia aoxamanismo, estabelecemos contato com ele para aprofundar sua tese e entender melhor o alegado "largo" uso atualdo xamanismo pelos DJs.
9 DJ Arlequim toca desde os 13 anos de idade, tendo passado por diversos estilos (dentre os quais o Electro, o Trancee o Hard Techno) e na poca da pesquisa tocava as variantes "tribais" do Techno. Junto com outros DJs sediadosem Fortaleza (Cear) ele fundou o coletivo Undergroove em 2000, que posteriormente se associaria ao Pragatecno.O contato com Arlequim se deu por indicao do DJ e lder do Pragatecno Cludio Manoel Duarte de Souza.Desde o primeiro e-mail que trocamos, Arlequim se mostrou extremamente interessado nesta pesquisa e totalmentedisposto a contribuir, afirmando logo de partida considerar a msica eletrnica um "ponto de fuga"e "uma porta deentrada para outros horizontes" (entrevista por e-mail, 15 de novembro de 2001).
10 Cludio Manoel Duarte de Souza, alm de DJ e fundador do coletivo de msica eletrnica Pragatecno, temmestrado em comunicao com pesquisa sobre msica eletrnica e atua, entre outras coisas, como professor,jornalista e produtor cultural.
11
O tema das "necessidades humanas fundamentais/bsicas/tribais/instintivas" recorrente em Fritz (cf. 1999, p.46,87, 170, 173, 217, 265). Nas palavras de umravercanadense: "As pessoas tm hoje as mesmas necessidades tribaisque sempre tiveram, e a cena rave est satisfazendo essas mesmas necessidades humanas bsicas incrementadascom tecnologia" (Fritz, 1999, p.173).
12 A idia de que as festas de msica eletrnica so uma atualizao de rituais que "nossos ancestraisprimitivos/tribais" faziam em tempos pr-histricos encontrada repetidamente no discurso nativo.E.g.: Fritz(1999, p.4-6, 27, 40-1, 46, 99, 169-71, 265,); Reynolds (1999, p.169); Brewster e Broughton (2000, p.4-5); Green(2001, p.5, 10); Fontanari (2003, p.162); Jones (1994); Borges (2003); Shivaya ([s.d.]); DJ Thomas ([s.d.]). Naformulao direta de Fritz: "A rave parte de um processo evolutivo que comeou com nossos ancestrais dascavernas e continua forte no mundo veloz de hoje. Quanto antes aprendermos a aceitar e valorizar nossa heranatribal, mais cedo perceberemos que somos de fato uma tribo global com necessidades interdependentes e umdestino comum." (Fritz, 1999, p.265)
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13 Ainda Fritz, um porta-voz privilegiado desse discurso extremamente difundido: "Em tempos pr-histricos, ns
pintvamos nossos rostos e danvamos em volta da fogueira, mas medida que nos sofisticamos, o mesmoocorreu com nossos rituais." (Fritz, 1999, p.170)
14
No h espao aqui para expor mais do que os resultados dessa pesquisa, devidamente exposta e documentada emFerreira (2006, Captulos 5 e 6).15 Usaremos aqui as palavras "brancos" e "ndios" como par relacional que define as relaes entre as sociedades
tradicionais e nativas e a sociedade capitalista global. Sabemos que a idia de dois grupos homogneos de"brancos" e "ndios" apenas uma abstrao que elimina as complexidades e conflitos existentes tanto entre osassim chamados "brancos" (que podem ser de diversas "cores" e possuem interesses os mais divergentes) quantoentre os assim chamados "ndios" (que podem participar de sociedades muito diversas e defender interessesdivergentes dentro de uma mesma sociedade) e que assim pode se tornar inoperante em muitas situaes (cf. Hugh-Jones, 1999), mas trata-se de uma opo pragmtica pela simplicidade que feita tambm por diversosantroplogos (talvez a maioria) e mesmo pelo discurso poltico indgena cujos benefcios em nosso casoespecfico parecem ser maiores do que os problemas.
16 Sobre a mitologia da passagem perigosa, Eliade (1998) continua sendo uma referncia valiosa.17 Todos os exemplos aqui mencionados so apresentados com referncias em Ferreira (2006, Captulos 5 e 6).18 Coletneas comoRethinking History and Myth (Hill, 1988) e Pacificando o Branco (Albert e Ramos, 2002) e o
conjunto de narrativas amerndias "sobre a origem do mundo, a chegada dos brancos e os 500 anos do Brasil"tornadas acessveis pelo Instituto Socioambiental em, entre outras iniciativas, j no permitemleituras simplificadoras e unilaterais das situaes de contato.
19 Vale notar que a imagem que os xams fazem das mquinas que eles incorporam em seus rituais se aproxima maisdaquilo que Donna Haraway chamou de "nossas melhores mquinas" que "so feitas de raios de sol; elas so,todas, leves e limpas porque no passam de sinais, de ondas eletromagnticas, de uma seco do espectro"(Haraway, 2000, p.48) do que daquilo que Michael Taussig chamou de o "recentemente ultrapassado" (cf.Taussig, 1993, p.230-3).
20 Uso aqui a formulao dificilmente traduzvel de Murphy e Smith (2001): "WhatIhearisthinkingtoo".21 Outra conexo tecno-afetiva com a mquina da msica eletrnica foi sugerida por Jari Nousiainen, "raver
finlands": "Eu me conecto com a msica e deixo que ela jogue minhas emoes para l e para c." (Fritz, 1999,p.82).
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O tema da viagem talvez o mais comum, como quando a pessoa se sente "viajando num tnel ondulante quepulsa no ritmo do bumbo com luzes que piscam em minha direo" (Fritz, 1999, p.48) ou "viaja nas ondas damsica" rumo ao "espao" (Henao, 1995).
23 Uma nativa tambm vai nessa direo: "Voc se conecta em um nvel molecular com todos e com tudo" (Fritz,1999, p.52)
24 "Esse tipo de som tem poder sobre mim, ele hipntico", diz ainda a estudante paulista Raquel Vendi, de 19 anos(Frana e Okky de Souza, 1998, p.85).
25 Reynolds fala ainda, por exemplo, de uma garota que "se contrai e pula mecanicamente, seus membros largadostraando padres repetitivos no ar, como se ela fosse animada por uma vontade outra que no a dela" (Reynolds,1999, p.350).
26 "As tcnicas do xtase so elementos irrefutveis de todas as culturas, e o ritmo invarivel do Techno e suasdanas se provam particularmente apropriados para alcanar estados de transe." (Becker e Woebs, 1999, p.64).Esses pesquisadores chamam a ateno ainda para o papel das "luzes estroboscpicas" na produo do transe, ao
criarem "espaos virtuais que parecem congelar os movimentos das pessoas e assim evocar interdependnciaspermanentes entre os aspectos do tempo e do espao rituais e de sua desintegrao" (Becker e Woebs, 1999, p.65).De fato, seria preciso outra pesquisa para dar conta do papel da iluminao na produo do transe, em especial dasluzes estroboscpicas cujos efeitos alteradores j so comprovados desde a dcada de 30 e se popularizaram comos controversos estudos de Andrew Neher nos anos 60 (cf. Rouget, 1985, p.172-5; Becker, 1994, p.48; Achterberg,1996, p.49-50; Harrah-Conforth, 1992) , visto que a combinao entre luzes estroboscpicas e o pulso marcado damsica eletrnica de fato muito explorada nas festas.
27 O ritmo, num sentido mais geral, pode mesmo ser definido como "a repetio de um padro bsico de diferena"(Burns, 1987, p.3), e na formulao precisa de Murphy e Smith: "irregularidade mtrica em intervalos curtos detempo se torna regularidade rtmica em intervalos mais longos ou em nveis mais elevados da escala" (Murphy eSmith, 2001, p.25).
28 Termos usados pelo DJ Camilo Rocha (entrevista, 10 de maio de 2003) para descrever o transe no Techno.
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29 Uma linha de interpretao do funcionamento da msica eletrnica de pista semelhante a esta foi apresentada em
Bacal (2003, p.82-4).30 "A cincia do breakbeat", nos conta um de seus tericos, Kodwo Eshun, " quando Grandmaster Flash e DJ Kool
Herc [DJs envolvidos com a gnese do Hip Hop na Nova Iorque dos anos 70] e todos aqueles caras isolam obreakbeat, quando eles literalmente vo para o ponto do disco no qual a melodia e a harmonia so suprimidas e asbatidas da bateria e do baixo vm para o primeiro plano. Ao isolarem isso, eles ligaram um tipo de eletricidade,tornando a batida porttil, extraindo a batida." (Eshun, 1999, p.176) Eterno opositor da "escuta retroa[udi]tiva",Eshun prope a interpretao do breakbeatcomo um dispositivo de captura do movimento como alternativa interpretao retrgrada que faz dele um "retorno da percusso africana": "Obreakbeatdeveria ir para frente.Pense nele como um dispositivo de captura do movimento feito de vinil, antes que existissem os equipamentosdigitais usados atualmente. Se pudesse, Grandmaster Flash teria sido umdesignergrfico; se ele tivesse sido umdesenhista de animao, ele estaria fazendo captura do movimento. Ele apenas fez tudo antes no vinil." (Eshun,1999, p.181). Mais sobre a "cincia do breakbeat" em: Poschardt (1998, p.162, 167-75); Eshun (1999, p.13, 58, 68,70, 177); Reynolds (1999, p.252-4, 257-8, 360-1, 373-4); Reighley (2000, p.44-5, 50-1); Brewster e Broughton(2000, p.213-7); Berk (2000, p.198); Sharp (2000, p.140-1); Shapiro (2000b, p.152); Webber (2000, p.93-4); Toop(2000, p.60, 62-7); Dr Schmidt (2003); e Rocha (2004).
31 Bacal comparou o ambiente sonoro da festa de msica eletrnica a um "muro de som em que todos os 'tijolos so
sonoros'": " medida que voc se afasta das caixas de som [...] voc passa a ter uma sensao definitiva de estarsaindo de um ambiente, e quanto maior a proximidade das caixas de som maior a sensao de estarentrando noambiente sonoro" (Bacal, 2003, p.119; itlicos no original). Essa , provavelmente , a dimenso corporal daexperincia da msica eletrnica mais facilmente percebida por qualquer um, e a diferena entre "ouvir" e "sentir" freqentemente evocada pela literatura, e.g.: Langlois (1992, p.236, 238 nota 3); Tagg (1994, p.13); Bull (1997,p.3); Malbon (1998, p.271, 275); Poschardt (1998, p.115); Reynolds (1999, p.255, 283, 341, 349); Brewster eBroughton (2000, p.367); Jerrentrup (2000, p.69); Jouvenet (2001, p.12); Shapiro e Lee (2000, p.148); Bacal(2003, p.5-6, 119); Baldelli (2004, p.5). comum que o fato de ser possvel "conversar" no ambiente seja usadocomo argumento nas reclamaes sobre o "baixo volume do som" de festas de msica eletrnica (cf. Pinheiro ePassarelli, 2003; Zioni, 2004; Angelo, 2004, p.31). Diante da predominncia de sons graves em altas intensidadesna msica eletrnica de pista, Neil Todd e Frederik Cody (2000) concluram que "outras sensaes acusticamenteevocadas alm da audio normal esto sendo buscadas nesses ambientes", algo que j vem sendo chamado de "olimiar do Rock'n'Roll" (i.e., o fato de que esse tipo de msica parece s "funcionar" quando tocada acima de 96dB).
A explicao proposta pelos pesquisadores a "sensao prazerosa de auto-movimento" provocada pelaestimulao acstica do sistema vestibular (principalmente de um rgo chamado sacculus, filogeneticamenteligado s origens dos vertebrados; cf. Todd, 2005) por sons entre 100 e 500Hz (mdio-grave) e entre 90 e 120dB,uma sensao comparvel da oscilao em um balano (cf. Todd e Cody, 2000). Apesar de concordarmos comRouget (1985) que no possvel reduzir a explicao de fenmenos de transe apenas a mecanismospsicofisiolgicos, no vemos motivos para ignorar esse tipo de estudo quando ele pode contribuir para a avaliaode explicaes mais complexas (cf. Bateson, 1975; Gell, 1980).
32 "Na vida cotidiana, existem tipicamente dois sistemas energticos em interdependncia: um o sistema que usasua energia para abrir ou fechar a torneira ou o porto [...]; o outro o sistema cuja energia 'flui atravs' da torneiraou da grade quando elas esto abertas. [...] A combinao dos dois sistemas (a maquinaria de deciso e a fonte deenergia) leva a uma mobilidade parcial em cada um dos lados da relao. Voc pode levar um cavalo para a gua,mas voc no pode faz-lo beber. Beber assunto dele. Mas mesmo se o cavalo estiver com sede, ele no poderbeber a no ser que voc o leve at a gua. Lev-lo l assunto seu." (Bateson, 1985, p.113-4; cf. p.120-1). O que
Bateson mostra aqui que o cavalo a fonte da energia necessria para o ato de beber, ao passo que o condutor docavalo apenas a maquinaria de deciso que o leva at a gua. O fato de que, mesmo com sede, o cavalo s podebeber se for conduzido at a gua, mostra que maquinaria de deciso do cavalo (beber ou no) est aquisubordinada quela do seu condutor (lev-lo ou no). O fato de que, mesmo diante da gua, o cavalo s pode beberse estiver com sede, mostra que a fonte de energia do condutor (lev-lo at a gua) est aqui subordinada quela docavalo (beber). No caso do DJ, ele quem comanda a maquinaria de deciso, mas no ele a fonte de energiadeterminante para o funcionamento do sistema.
33 Eshun distingue duas tendncias na msica eletrnica de pista, opondo o "humanismogospel da 'cano'" "msica da mquina metlica da 'track'" (Eshun, 2000, p.78; 1999, p.-6). Ele chama a primeira tendncia deSoulful, que pode ser traduzido como "cheio de alma" mas tambm como "plenamente de acordo com a tradio damsica negra", e a segunda de Postsoul, que pode ser traduzido como "ps-alma", "sem alma" ou como"abandonando a tradio da msica negra". Reynolds fez a mesma distino opondo as "expresses sentimentaisderivadas do Rhythm'n'Blues" das "canes" ao "funcionalismo impessoal" das "tracks" (Reynolds, 1999, p.27,
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31). O que caracteriza as tracks o fato de serem geralmente "longas e estendidas repeties de padres" numa"reorientao intencional da msica rumo simplicidade e ao primitivismo" (Becker e Woebs, 1999, p.59). A idiada trackcomo literalmente uma "pista" ou "faixa" de movimentao foi plenamente percebida por Fritz: "A Acid
House [...] se distanciou bastante das suas razes musicais na Disco e evoluiu para uma forma musical interativaque criou um movimento irresistvel, transportando os danarinos numa viagem interior" (Fritz, 1999, p.69); "Amsica cclica e contnua e age mais como um catalisador de sua prpria viagem interior, mais um sistema detransporte do que um fim em si [...], seu efeito intencional inspirar uma reao fsica", "especialmente concebidapara fazer seu corpo se mexer" (Fritz, 1999, p.76, 79); e como disse o DJ Dave Ralph: "Essas faixas realmente televam a algum lugar e um bom DJ organiza esses elementos e cria uma viagem" (Fritz, 1999, p.81). Reynolds, queconsidera as tracks "veculos, motores rtmicos que levam o danarino para passear", compara as tcnicas demixagem a "dirigir um carro", e as tcnicas de turntablism "direo acrobtica" (Reynolds, 1999, p.30, 271-2).Mas alm de ser uma msica viajante, o Techno tambm pode ser visto como "a msica perfeita para viajar, [...]seus ritmos repetitivos, melodias minimalistas e modulaes timbrsticas sendo perfeitas para as constantesmudanas de perspectiva oferecidas pela viagem em alta velocidade", "seus sons reproduzindo fielmente o disparardas sinapses foradas a processar o fluxo incessante de informao" (Savage, 1993) No custa considerar tambm ofato de que o termo discjockey (cuja primeira meno em registro uma matria jornalstica de 1941; cf. Brewstere Broughton, 2000, p.27) significa, entre outras coisas, o "condutor" dos discos (como umjockey conduz um
cavalo; cf. Thornton, 1996, p.61-2; Brewster e Broughton, 2000, p.27-8), e que um dos nomes dados aos erros demixagem "desastre ferrovirio" (cf. Reighley, 2000, p.2, 110). Com astracks, como j se disse, "[p]ela primeiravez na histria da msica popular ocidental, letras, melodia e a voz humana foram eliminadas e a msica foidominada por aquilo que as mquinas fazem de melhor: repetir padres rtmicos que podem prosseguirindefinidamente" (Jones, 1994). "On And On" (algo como "o tempo todo" ou "sempre em frente"), foi justamente ottulo dado quela que normalmente considerada a primeira track(cf. Reynolds, 1999, p.36; Brewster eBroughton, 2000, p.306-9; Reighley, 2000, p.109; Shapiro e Lee, 2000, p.5; Eshun, 2000, p.75). Lanada pelo DJJesse Saunders em 1983, a faixa transformou em um produto aquilo que at ento era um processo, o hbito do DJde usar o pulso constante, preciso e simples de um sintetizador de ritmos como base sobre a qual sobrepor trechosespecficos de msicas (cf. Brewster e Broughton, 2000, p.307).
34 Estudos de laboratrio comprovam que os esforos para manter a velocidade constante na produo de algumritmo geralmente produzem, ao longo do tempo, aceleraes e ralentamentos que, apesar de sutis o bastante parano serem percebidos em um contexto musical, so suficientemente acentuadas para impedir qualquer
sincronizao entre duas msicas diferentes (cf. Clynes e Walker, 1983, p.176-7; Kramer, 1988, p.74). O DJ inglsDanny Tenaglia comenta que "as pessoas no percebem o quo difcil mixar [...] discos com bateristas humanos"(Brewster e Broughton, 2000, p.161), o DJ norte-americano Peter Calandra conta que "no h batidacomputadorizada [em discos antigos]" e que o DJ precisa "ter muita familiaridade com cada tempo e entender asnuances em cada ritmo" (Reighley, 2000, p.108) e o DJ pioneiro da House Jesse Saunders afirma que "o bateristatenta, mas ele ainda no consegue manter o tempo exato por todo o disco, ele oscila", "[] um pesadelo" (Reighley,2000, p.108). Sobre o assunto, ver ainda Brewster e Broughton (2000, p.136). Da a diferena (muitas vezesinconsciente, mas inegvel) introduzida pela msica eletrnica de pista a partir da segunda metade da dcada de 70,quando mquinas conhecidas como "baterias eletrnicas" passaram a substituir os bateristas com a sntese rtmica."Com a msica eletrnica de pista", constata Bob Ostertag, "a grade mental que permaneceu implcita durantemilnios de msica humana foi colocada em primeiro plano, no centro, e tornada audvel. [...] Isso revolucionrio." (Ostertag, 2002, p.11) Eshun, por sua vez, nota que apesar de "toda a percepo rtmica daspessoas ter mudado" com a introduo dos sintetizadores de ritmo, elas "evidentemente fingem que nada
aconteceu" (Eshun, 1999, p.186). preciso perceber que, com o sintetizador de ritmos, a preciso tcnica navelocidade musical alcanou um grau inimaginvel para um instrumentista humano, o que teve efeitos decisivostanto na prtica dos DJs que passaram a experimentar sistematicamente com sobreposies sincronizadas etransies imperceptveis entre msicas diferentes quanto na de seu pblico que passou a se diferenciar a partirde preferncias por velocidades especficas que antes eram praticamente inexistentes enquanto realidade empricaestvel. Quanto criao de estilos musicais pela simples alterao precisa da velocidade de reproduo dagravao, basta ver os casos do New Beat resultado da reproduo de gravaes feitas originalmente em 45rpmna velocidade mais lenta de 33rpm , do Jungle resultado do aumento de mais de 60% da velocidade original debreakbeats usados no Hip Hop e do Trip Hop resultado da diminuio da velocidade desses mesmosbreaks (cf.Reynolds, 1999, p.124; Fritz, 1999, p.98; Sharp, 2000, p.136). Quanto diferenciao de qualidades de movimentona pista de dana em funo da velocidade musical, basta verificar a organizao metronmica do repertrio, naqual as msicas so organizadas por faixas de velocidade e o DJ escolhe a msica de acordo com a velocidadeexigida pela pista de dana (cf. Rule, 1999, p.12; Reighley, 2000, p.110). Por fim, quanto diferenciao do
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pblico em si por faixas de velocidade, temos o caso histrico da faixa "Acid Tracks", lanada em Chicago em1987 pelo grupo Phuture na velocidade de 130BPM, que foi ralentada para 120BPM para que se adequasse spreferncias do pblico nova-iorquino (Brewster e Broughton, 2000, p.316), revelando assim que o pblico de
Nova Iorque era 10BPM mais lento do que o de Chicago (uma diferena dificilmente quantificvel sem a altapreciso da sintetizao metronmica do ritmo). A acoplagem direta dessas duas mquinas (o metrnomo e o toca-discos) atravs da eliminao da mediao que impedia a sua plena sinergia (o baterista humano) abriu assim umnovo campo de experimentaes sistemticas com a relao som-movimento.
35 O argumento desenvolvido em Ferreira (2006; Captulos 5, 6 e 7).
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