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FOLHA CIDADE MARÇO / ABR I L / 201014

GENTE / ZÉ LOBO

N aquele dia, Zé fugiuda rotina. Era uma se-gunda-feira de ma-

nhã, o céu iluminado pelas pri-meiras luzes do verão intensode dezembro, quando o des-pertador do relógio tocou. Em-bora o visor ainda marcasseseis horas, ele não pensouduas vezes: pulou da cama evestiu uma de suas melhoresroupas. Até o cabelo foi arru-mado, após anos distante dopente. Na cozinha, preparou otradicional leite com Nescau.Era a prova de recuperação naescola e ele havia estudado o mês in-teiro. Enquanto seus amigos iam àpraia, Zé ficava sentado em seu quar-to, no Arpoador, de frente para o mar,com livros sobre a mesa. O mesmoacontecia à tarde, durante as rodasde violão, ou à noite, nas sessões decinema ou festas. Mais do que passarde ano, ele não queria repetir a séti-ma série do Ensino Fundamental. Es-ta foi a primeira de três reprovações.

“O problema é que eu decidi abrira janela para ver como estava o cli-ma, se precisava levar um casaco pa-ra o colégio. Mas, logo à minha frente,vi um dia perfeito, sol escaldante emar clássico, como o Arpoador nãotinha há muito tempo. As ondas eramsensacionais”, diz. O resultado daequação não é difícil de descobrir,mas ninguém o explica melhor que opróprio protagonista da história. “Averdade é a seguinte: sétima sérietem todo ano. Aquele mar, não.” Eponto final. A vida de Zé Lobo, cario-ca de 1961 nascido em São Paulo co-mo Fernando José Cavalcanti Lobo,sempre foi assim: preto no branco. Evice-versa.

Ainda pequeno, descobriu a pai-xão que o acompanharia por toda ajuventude: o surfe. Aliás, tudo ligadoa esportes radicais o encantava. Zécresceu e, ao lado da irmã, com quembrigava dia sim, outro também, vivia

Texto e foto de Felipe Lobo

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trial, habilitação em Programação Vi-sual, pela UniverCidade (à época ain-da chamada de Faculdade da Cidade)com algumas das notas mais altas. Asua vida, no entanto, sempre girou emtorno do esporte: o surfe e, um poucomais tarde, a bicicleta, companheirainconteste de sua viagem à Ilha doMarajó, no Pará. Com o auxílio de bar-cos e, principalmente, sobre duas ro-das, ele rodou a região inteira durantepouco mais de um mês.

Em 1993, ao lado do sócio Luiz Feli-pe Hermeto (que, mais tarde, se tor-naria seu cunhado), criou o Bicicletá-rio, primeiro sistema de aluguel de bi-kes no Rio de Janeiro. O negócio foiadiante e, após alguns anos de suces-so, chegou ao fim. Mas não a paixãopelas magrelas – e o ódio dos patins.

Por ironia, Zé terminou um namoroapós nove anos e, aos 32, sonhavacom as regalias da vida de solteiro.Mas elas não duraram muito tempo.Um belo dia, andando pelo calçadãodo Arpoador, deu de cara com umamenina que, graciosamente, deslizavaem cima de um par de... patins. Foiamor à primeira vista. Começaram anamorar. E ele, a subir em oito rodas.Quatorze anos depois, Zé e Erika estãocasados e guardam, em casa, nove bi-

cicletas, 23 pares de patins etrês tênis. Juntos.

Após se especializar emaplicação de vinil e design grá-fico, Lobo fundou a Organiza-ção da Sociedade Civil de Inte-resse Público (Oscip) Trans-porte Ativo (TA). Voltada parao fomento aos transportesmovidos a propulsão humana,a entidade é, hoje, reconheci-da em todo o planeta. No Bra-sil, foi ela a responsável portrazer eventos como a Vaga Vi-va (em que, durante um diapor ano, a TA aluga duas vagasde automóveis em pleno Cen-tro da cidade, coloca gramaartificial, bancos feitos de gar-rafas pet e mostra que o espa-ço público pode ter outras uti-lidades) e o desafio Intermo-dal (no qual diversos veículos

saem de um ponto em comum no Cen-tro, na hora do rush, e chegam a umapraça do Leblon).

Conselheiro do projeto Kyoto Cities20/20 World Challenge, criado pelaONG parisiense Ecoplan para falar detransportes sustentáveis, Zé tambémé representante no Brasil da ONG ho-landesa I-CE. Por ela, viaja para confe-rências em todo o mundo a cada ano --esteve na Holanda, Bélgica, Alemanhae, em 2010, segue para a Dinamarca.Entre seus últimos feitos, está a Zona30, anunciada no dia 22 de setembropelo prefeito Eduardo Paes e que limi-ta a velocidade dos veículos a 30 km/hem todas as ruas de Copacabana, comexceção das dez principais.

Com sorriso no rosto, Zé passaseus dias entre palestras, organizaçãode eventos, reuniões com a prefeituracarioca, elaboração de relatórios so-bre as atividades da Transporte Ativoe muitas entrevistas para jornais, tele-visões e rádios. A prancha de surfe,escondida em algum canto de seuapartamento em Copacabana (paraonde se mudou após o casamento),sofre com a abstinência de seu pro-prietário, mas entende os motivos:apaixonado pelo mar, ele tem o sonhode reduzir consideravelmente o nú-mero de carros na cidade em que es-colheu viver. E isso se consegue comos dois pés firmes no pedal.

na praia. Ele, de prancha. Ela, de jaca-ré. Até que decidiu passar uma sema-na com os amigos na Ilha do Mel, noParaná. Por lá ficou seis meses, debermuda, sem camisa e descalço. Li-gava para casa de 30 em 30 dias, sópara dizer que ficaria mais um pouco.Com pouca grana no bolso, pescava ecarregava malas de turistas para ga-nhar um trocado. No resto do tempo,surfava. Àquela altura, após abando-nar o colégio e se formar em supleti-vos, vida melhor, impossível.

“O problema é que eu me casariadentro de dois dias, e o Zé era o padri-nho. Mas ele não queria voltar. O pa-pai teve que mandar um helicópterobuscá-lo”, revela Tiza, a irmã. Na vés-pera do casamento, Zé saiu do quartovestido com a roupa da cerimônia, pa-ra que a noiva aprovasse: calça Jean,tênis e camiseta. Saiu de lá carregadodiretamente para uma loja de ternos.Com a irmã casada, mudou-se com amãe e o padrasto para o frio do Cana-dá, em 1984. Lá, teve certeza absolutade que largaria a faculdade de meteo-rologia e que voltaria para continuar ocurso de programação visual.

Dono de um QI acima dos 130 pon-tos, muito acima da média, portanto,Zé Lobo se formou em Desenho Indus-

UMA VIDA NO PEDAL