Grande Reportagem - Jornal Diário de Notícias
Unidos pela Fronteira
por HUGO COELHO
Vivem entre Portugal e Espanha como se a terra fosse toda deles. Houve tempos em que
eram contrabandistas que andavam à socapa e pela calada da noite para enganar a
guarda. Hoje já nem a alfândega se atravessa no seu caminho. Separa-os a hora - com
60 minutos de diferença - e a língua - uns com o português, os outros com o castelhano
-, mas entendem-se todos quando se encontram às compras, num café ou num
restaurante. Alguns, mais ousados, até desafiam a sabedoria popular, que desaconselha
os casamentos com quem quer que venha do país vizinho
Manuel Badalo, alentejano, alto e magro, de bigode, anda sempre uma hora atrasado em
relação à mulher. Quando no relógio dele são 07.00, tempo de se fazer à vida, no de
Hermina são 08.00 e já o dia de trabalho vai adiantado.
Todos esses 60 minutos de diferença são culpa do fuso horário. Ele, contabilista na Câ-
mara Municipal de Elvas, anda pela hora portuguesa. Ela, espanhola da Extremadura a
trabalhar como contínua numa escola do lado de lá da raia, anda pela hora espanhola. A
acrescentar a este pequeno problema, um outro: vivem os dois em Olivença, a única
cidade que ainda faz Portugal e Espanha desentenderem-se.
A Manuel, na verdade, interessa tão pouco a hora como a velha "questão" que dá que
pensar aos diplomatas - o duelo legal sobre o tratado de Badajoz, que deu Olivença a
Espanha, em 1801, e o artigo do Congresso de Viena que ia devolver a terra a Portugal,
em 1815. É português mas é também um homem da raia. Todos os dias de semana passa
a fronteira de facto sem pensar por um momento que está a mudar de país. "Desde que
abriram a fronteira não faz sentido preocupar-me com isso. Olivença, para mim, é como
qualquer vila alentejana."
A história já não escandaliza ninguém nestas terras de fronteira, mas Manuel ainda não
está a salvo de algumas piadas. Os colegas do trabalho chamam-lhe "Badalito". Afinal,
ele é o único na câmara municipal que vive com uma espanhola na terra dela e até o
presidente o conhece por isso.
José Rondão Almeida, socialista, governa Elvas desde 1993, um ano depois de Espanha
e Portugal terem aberto os 1 214 quilómetros da fronteira - que é das mais antigas do
mundo - como acordado no tratado de Schenghen.
Quando reflecte sobre os prós e os contras, começa por lembrar que perto de 200
pessoas caíram no desemprego por se fechar as alfândegas. Depois, avança para os
espanhóis que vieram para Portugal trabalhar, para as grávidas que vão a Badajoz parir
os filhos e só acaba no TGV. O comboio de alta velocidade, tudo indica, fará uma
paragem sobre a raia, na sua marcha entre Lisboa e Madrid, para servir os de Elvas e os
de Badajoz.
Mas isso é economia e obra que dá polémica. Antes há pessoas e o amor que não pára
na alfândega. A acreditar no presidente - que desafia o ditado popular que diz que de
Espanha "nem bom vento nem bom casamento" - os casamentos entre portugueses e
espanhóis têm vindo a aumentar. Mas há uma tendência curiosa. "É mais fácil um
português casar-se com uma espanhola que um espanhol com uma portuguesa", garante
Rondão. "Daí que a maior parte das vezes [os casais mistos] fiquem a viver do lado de
cá. O Badalo é um caso à parte."
Manuel Badalo nasceu em Elvas, a cidade que tem Badajoz à vista, vai fazer 50 anos.
Os pais mudaram-se para perto da fronteira do Caia, que ele aprendeu a passar ainda
pequeno. Na adolescência voltou à cidade para estudar, mas, quando tirou a carta de
condução, Espanha voltou a estar à distância de uma curta viagem. E Espanha era,
naqueles anos, antes de mais nada, as discotecas de Badajoz.
Tirando uns meses de intervalo para fazer a "guerra a seco" em Estremoz, Manuel saía
muitas vezes com os amigos para a noite no país vizinho. A única regra era voltar antes
de a fronteira fechar, à meia- -noite. Se falhasse as doze badaladas, "tinha de passar a pé
ou esperar pelas 07.00 para voltar de carro". Foi numa dessas noites de horas largas que
conheceu Hermina.
Hermina é uma excepção à quadra que diz "las muchachas de Olivenza/no son como las
demás/porque son hijas de España/y nietas de Portugal". A ter ascendência portuguesa
só se for do tetravô. Mas isso não foi obstáculo para nenhum dos dois. O namoro deu
em casamento nos anos 1980 e, quando chegou a altura de comprar casa, a conveniente
Avenida de Elvas, em Olivença, foi a morada de consenso. "Dava mais jeito por causa
do horário da minha mulher. Para mim era como Estremoz ou Campo Maior."
A viver vai para 30 anos do la- do espanhol, Manuel mudou, mas não muito. Aos
sábados, costuma passear pelas ruas de Olivença, com casas caiadas de branco e com
uma risca de cor ao fundo, e cruza-se com outros alentejanos emigrados a beber cafés
Delta tirados à espanhola. Na hora de comprar o jornal, embora cheguem ali os
matutinos e semanários portugueses, prefere o espanhol El País.
Em sua casa, abrem-se as prendas no Dia de Natal, em vez do Dia de Reis. E Manuel
fala sempre português com a mulher e os filhos - o João Pedro, 22 anos, a Inês, 20, e o
Carlos, 12 - mesmo que já se tenha resignado ao facto de a resposta vir "sempre em
espanhol".
Nada que cause surpresa. A língua é a melhor pista para se adivinhar a nacionalidade
das gentes da raia. Excepção feita ao barranquenho e ao mirandês - idiomas de mistura e
por direito próprio -, português e castelhano continuam a ser falados cada um de seu
lado e a marcar a fronteira entre Portugal e Espanha tão bem como um sinal à beira da
estrada. Mas também se diga que isso não impede ninguém de fazer conversa.
A prova viva são Armando Marques, 58 anos, e Julian Onneda, 67, em amena
cavaqueira ao balcão de um café em Sanlúcar, a aldeia espanhola vizinha de Alcoutim,
no Algarve. O português cumpre com a fama de desenrascado que não se envergonha de
usar do portuñol. O espanhol não arrisca tanto, mas também não deixa nada por dizer ou
perceber.
Falam do tempo em que os 200 metros do Guadiana entre as duas terras vizinhas eram
uma fronteira fechada que toda a gente queria passar. Especialmente quando em
Alcoutim era dia de festa. Onneda lembra-se de vir a Portugal, para dançar e beber, mas
também para ver as portuguesas, "a Maria Vitória, ruiva, e as três irmãs", de quem não
se recorda o nome, mas "eram morenas". O velho espanhol, que voltou à terra depois de
ter trabalhado num armazém do El Corte Inglés, em Málaga, conta que numa daquelas
noites ficou "tão bêbedo que não sabia para que lado era Espanha".
Armando, algarvio de baixa estatura, não era dado a excessos para não fazer essas
confusões. Ao português cabia andar de olhos bem abertos e uniforme engomado à
procura de contrabandistas. Era guarda fiscal, mas estava longe de ser um dos mais
temidos. Nascido e casado em Alcoutim, orgulha-se de dizer que em 26 anos de guarda
nunca fez uma apreensão. "Naquele tempo, toda a gente ia buscar coisas ao lado de lá.
Traziam um litro de azeite, um litro e meio. Os espanhóis levavam café. Nós
deixávamo-los passar, mas a Guardia Civil, quando os apanhava, mandava o café para o
rio."
O rio acompanhou Armando toda a vida. Quando o reformaram da guarda, ele passou-
se para o outro lado: fez-se barqueiro. Até há dois anos era a primeira ponte do
Guadiana entre Portugal e Espanha. Acordava todos os dias de manhã e ia buscar a
Sanlúcar dois portugueses que trabalham do lado de cá. Cobrava um euro pela viagem,
mas a falta de clientes convenceu-o a desistir e a deixar o monopólio da travessia a um
espanhol de poucas falas.
Hoje tem um barco pequeno e aparece todos os dias no cais. Com a promessa de um
café em Espanha, dá uma boleia a quem precise. E durante a viagem lamenta-se.
"Quando era guarda e não se podia passar, eram às 50 pessoas por dia a pedirem-me
autorização. Quando fui barqueiro tinha dias de fazer duas viagens. As pessoas só
gostam do que é proibido."
Enquanto em Alcoutim Armando Marques se queixa de que não há quem queira cruzar
a raia, outros, ao longo da fronteira, lamentam-se de ver os portugueses fugirem às
compras para o lado espanhol, onde o imposto e os preços são mais baixos. A história é
velha. Antigamente ia-se a Espanha para comprar rebuçados. Hoje vai-se a Espanha
fazer as compras do mês, atestar o depósito de combustível do carro e até parir os filhos.
Os principais supermercados de Fuentes de Oñoro, a cidade vizinha de Vilar Formoso,
concelho da Guarda, têm nos portugueses os seus principais clientes e também muitos
empregados. É a pensar neles que António Reinas dá as notícias pela Rádio Fronteira.
Filho de portugueses emigrados em Paris, António regressou à terra dos pais e desde há
oito anos é radialista da pequena estação que, sem olhar a países, emite para esse povo
que se diz ser da raia. O estúdio é numa minúscula casa quadrada construída mesmo
junto ao marco da fronteira de Vilar Formoso. Mas o que mais impressiona é a antena
de dezenas de metros de altura que emite num raio de cem quilómetros. Pode dizer-se
que é possível ir da Guarda a Salamanca e levar António Reinas na viagem. Basta
sintonizar na 106.9 FM.
António fala todos os dias em português. À terça-feira, uma jornalista espanhola fica
com o microfone para dar aos portugueses as novidades de Espanha, em castelhano. Um
dia depois, ele retribui o favor e dá actualidade de Portugal aos microfones da rádio
espanhola Onda Cero. É que não são apenas os portugueses que passam a fronteira às
compras. Também os espanhóis vêm a Portugal gastar os euros. Em Vilar Formoso, é
vê-los nos restaurantes. Em Valença do Minho, a centenas de quilómetros dali, são os
lençóis que os fazem passar a raia.
A tradição é antiga e teve personagens ilustres. Conta-se que a mulher do ditador
espanhol Francisco Franco, natural de Ferrol, na Galiza, ia ali comprar a roupa e os
travesseiros para a cama do Generalíssimo e arrastava consigo as mulheres dos
ministros espanhóis. A sua loja preferida era a Casa Alvarinho, no centro da vila.
A marca tem mais de 40 anos e foi criada pelo empresário Álvaro Pais. Hoje é o filho
do mesmo nome que lidera a empresa que já se estendeu até ao Chile. Na loja de
Valença, Álvaro Pais garante: "90 por cento dos nossos clientes são espanhóis".
Um deles é Mercedes Perez, da cidade de Tui, que acaba de entrar com a filha pela mão.
"A minha avó e a minha mãe compravam aqui os lençóis, é uma tradição familiar",
conta. "Hoje [Dia de Reis] vim com a minha filha escolher uns para ela." Ana Perez,
sete anos, escolheu um branco e outro roxo, "a minha cor preferida", apressa-se a dizer.
Quando se lhe pergunta, à saída, se costuma vir a Portugal, a espanholita responde com
um tímido "sim". A seguir fala-se em rapazes portugueses e ela põe o seu ar mais adulto
para dizer: "São como os outros."
Enquanto a mulher de Franco cruzava a fronteira carregada com a roupa de cama, outras
mulheres e homens da raia passavam a fronteira à socapa, pela calada da noite, com
gado e outros produtos para vender no país vizinho.
Nas palavras de Abílio Ruivo, pastor de grande bigode sentado ao balcão do café de
Vale da Mula, para falar de contrabando não há outro como o seu cunhado, o José
Inácio. O afamado pastor anda pela raia com as ovelhas. O "intercâmbio" acabou
quando as fronteiras abriram, em 1992, mas ele nunca deixou de levar o gado para a
linha que separa os dois países. "É um vício," conta.
Quando se lhe pergunta se foi ele o maior contrabandista de Vale da Mula, aldeia da
Guarda colada à fronteira, jura que "nem pouco mais ou menos". "Este é um povo pobre
e o contrabando era uma forma de sobreviver. Já no tempo do meu avô se passavam
carneiradas. Levavam-se ovos, sardinhas e urânio e trazia-se gado. Eu cá só passei umas
ovelhitas..."
É verdade que para muitos daqueles beirões a fronteira nunca foi chão que se evitasse
pisar. Nem para eles nem para os vizinhos de Aldea del Obispo. Os dois povos sempre
se entenderam melhor do que Lisboa e Madrid e no final dos anos 1980 até se juntaram
para construir uma ponte na raia.
A Guarda tinha proibido a empreitada, só que ninguém lhe deu ouvidos. Numa noite, a
população ergueu uma ponte tosca de pedra sobre a ribeira dos Tourões, que traça a
fronteira e no Inverno corre apressada para Vilar Formoso.
José Inácio era uma criança da primeira vez que a cruzou ilegal. "Era um dia de Janeiro
e havia festa do lado espanhol. O guarda português estava bêbedo e não deixava
ninguém passar. O meu pai pôs- -me às costas dele e fomos assim pela ribeira."
O jeito de fora-da-lei que traz sempre o "coração no bolso" pegou. José Inácio deu
tréguas à guarda entre 1970 e 1973, porque foi obrigado a ir para a guerra em Angola,
mas no regresso, para pedir a mão da namorada que deixara ficar, fez por merecer a
fama de contrabandista.
Sentado à mesa do café, a beber um Martini bianco, o pastor, deixa--se levar na sua
própria conversa. "A fronteira naquele tempo era sagrada. Atravessá-la era uma
transgressão", explica para impressionar quem não viu a alfândega fechada. "Tínhamos
tudo combinado. Normalmente era na hora da rendição da guarda ou à noite. À noite
todos os gatos são pardos, não é?" Herói a falar de si, jura que não subornava ninguém e
que nunca se deixou apanhar.
Para os mais desconfiados, admite: "Uma vez estiveram quase! Aconteceu-me o
seguinte: 'Estava em Portugal à espera de umas ovelhas. De repente ouço o barulho de
um jipe e escondo-me atrás de uma giesta. Espreito e vejo quatro guardias civis virados
para mim, aí a cinco metros. Pensei: 'O espanhol vem com as ovelhas por aí abaixo,
vamos ser apanhados!' Fiquei quieto. Nem respirava, nem me mexia, parecia um coelho.
Passaram alguns quinze minutos. Depois eles foram-se embora. Vi-os a virar o carro,
pensei: "Ide com Deus que eu também fico com ele.'"
Anos mais tarde, ainda com a fronteira fechada, José Inácio viu um jovem pastor
espanhol passar e levar-lhe a filha do meio, Laura. O casamento foi consentido e ainda
hoje dura. Ela é cabeleireira em Almeida e vive em Aldeia do Bispo com o marido, de
quem tem os pequenos José Miguel e a Iolanda.
"O José Miguel tem uma coisa engraçada", conta o avô. "É mais velho em Portugal do
que em Espanha. Ele foi nascer a Salamanca às 00.45 do dia 31 de Março". Em Portugal
eram 23.45 e o calendário estava na folha de 30 de Março.
José Inácio atravessa muitas vezes a fronteira para ir ajudar a filha ao lado de lá. Há
dias, foi para a matança do porco da comadre. Quando se lembra dos outros tempos,
admite: "Tenho saudades. Hoje qualquer um chega ali e passa a ponte. Antes era preciso
coragem para cruzar a raia."
Top Related