CLAUDIA BRAGA MAIA
ODOLESSY
IGBÁBÒ:
Uma práxis pedagógica exuriana
Universidade Federal do Sul da Bahia
Mestrado em Ensino e Relações Étnico Raciais
Porto Seguro, BA
2020
CLAUDIA BRAGA MAIA
ODOLESSY
IGBÁBÒ:
Uma práxis pedagogia exuriana
Apresentação de Memorial como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais
/ PPGER / UFSB.
Colaborador: Prof. Dr. Alexandre Osaniiyi
(IFBA/PPGER)
Membros da Banca:
Profa. Dra. Joceneide Cunha (UNEB/PPGER)
Prof. Dr. Marcelo Máximo Niel (FAP)
Prof. Dr. Luís Rufino (UERJ)
Universidade Federal do Sul da Bahia
Mestrado em Ensino e Relações Étnico Raciais
Porto Seguro, BA
2020
Universidade Federal do Sul da Bahia
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO-PRPPG
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO E RELAÇÕES ÉTNICO- RACIAIS
ATA Nº 8
Aos vinte e nove dias do mês de maio do ano de 2020, às 14 horas por meio de webconferência endereço:
https://mconf.rnp.br/webconf/csc-1/ UFSB, realizou-se a prova de Defesa de dissertação/produto final, intitulado
IGBÁBÒ: UMA PRÁXIS PEDAGÓGICA EXURIANA, de autoria da Candidata CLAUDIA BRAGA MAIA,
aluna do Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais, em nível de Mestrado. A Comissão
Examinadora esteve constituída pelas/os professores/as: ALEXANDRE DE OLIVEIRA FERNANDES (ON/MCT
- Examinador Interno) ORIENTADOR; JOCENEIDE CUNHA DOS SANTOS (UNEB - Examinador Interno);
MARCELO MÁXIMO NIEL (UNIFESP - Examinador Externo à Instituição); LUIZ RUFINO RODRIGUES
JÚNIOR (UERJ - Examinador Externo à Instituição). Concluídos os trabalhos de apresentação e arguição, a
candidata foi aprovada pela Comissão Examinadora. Houve indicações de correções condicionais. Foi concedido
um prazo de 30 dias regimentares, para que a candidata entregue o trabalho em sua redação definitiva na Secretaria
Acadêmica e na Biblioteca do Campus. Para constar, foi lavrada a presente ata, que vai assinada pelos membros
da Comissão.
Dr. MARCELO MÁXIMO NIEL, UNIFESP
Examinador Externo à Instituição
Dr. LUIZ RUFINO RODRIGUES JÚNIOR, UERJ
Examinador Externo à Instituição
ALEXANDRE DE OLIVEIRA FERNANDES, IFBA
Examinador Interno
JOCENEIDE CUNHA DOS SANTOS, UNEB
Examinador Interno
CLAUDIA BRAGA MAIA
Mestrando
DEDICATÓRIA
A Exu, que abriu caminhos para o mestrado de Ensino e Relações Étnico Raciais. A
Yemanjá, que cuidou de meu Ori, permitindo o desenvolvimento da pesquisa e da escrita. A
Oxalá, que me trouxe paz nos períodos de turbulência. A Xangô, que me trouxe coragem para
reagir nos momentos de tropeços. A LogunEdé, que se revelou no momento mais difícil,
mostrando que eu deveria confiar. A Orunmilá Ifá, que me orientou a não desistir do mestrado,
no momento de maior fraqueza.
Ao meu pai carnal, João Batista Maia, homem forte de Xangô, que não se abateu com
uma cirurgia cardíaca e continua vivo para testemunhar meu sucesso. A minha mãe, carnal,
Júlia Maria Braga Maia, mulher acolhedora de Oxum, que em seu colo enxugou minhas
lágrimas me aconselhando a não desistir de meus sonhos.
Aos discentes participantes do curso: Jéssica, Kezia, Andréia, Sandro e Flavio, por terem
caminhado comigo até o final, e serem multiplicadores da Pedagogia de Terreiro. Aos
colaboradores: Danilo D’Oxóssi, André D’LogunEdé, Nena D’Oxum, Doté Balegunan, e Mãe
Luziene de LogunEdé, por terem ministrado aulas e terem nos recebido em seus espaços. Aos
colaboradores: Caíque e Eliza, por todo trabalho de secretaria, divulgação, filmagem, e suporte
técnico.
A Universidade do Estado da Bahia - UNEB, especificamente o Núcleo de Pesquisa e
Extensão - NUPE, pela emissão dos certificados do curso. Ao Espaço Cultural Viola de Bolso,
por ter cedido o espaço para a realização das aulas, pelo acolhimento e valorização de meu
trabalho.
Para o amigo Leandro Soares que presencia agora os frutos colhidos daquela orientação
que você me deu para a entrevista de ingresso ao mestrado!
À benção e gratidão a meu Babalorixá Dary Giberewá D’Jagun, zelador de meu orixá,
pois sem seus cuidados não teria trilhado uma trajetória que me levou ao PPGER.
À benção e gratidão a meu Oluwo Ifalola Eegungbade Akanmu, pois no decorrer de
minha trajetória me iniciei em Ifá, o que veio a somar ainda mais em meu processo de
crescimento espiritual e de me conhecer enquanto sujeito.
Para o amigo e irmão de caminhada espiritual, meu Pai Pequeno Doté Balegunan, que
há anos está comigo e entende a importância desse momento, te dedico, em nome de Oyá e do
Ilê Asé Silé Iná Tuntun Omo Torrundê, nosso egbe! Desculpe minhas ausências em momentos
de escrita!
IGBÁBÒ: Uma práxis pedagógica exuriana
RESUMO:
O objetivo da pesquisa-ação ora apresentada foi o de promover uma práxis exuriana como
metodologia de ensino, o que ocorreu através de curso de formação de professores, intitulado
“Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro: práticas antirracistas, decoloniais e a aplicabilidade
da Lei 10.639”. Desenvolvido no âmbito do Mestrado em Ensino e Relações Étnico-Raciais
(PPGER/UFSB), a ideia do curso implicou em tornar os participantes, multiplicadores em
espaços escolares com vistas a colaborarem para a decolonização e enegrecimento do currículo.
A metodologia utilizada no curso foi atravessada por categorias como ancestralidade, memória,
pertencimento, oralidade e mitologia. As atividades aconteceram com rodas de conversa, filmes
e debates, oficinas de culinária e dança, aulas de campo em terreiros de candomblé e recitação
de mitologia dos orixás, além de discussão de textos pertinentes à temática. Os frutos gerados
a partir desse curso e do trabalho intelectual desenvolvido durante o Mestrado são dois artefatos
finais: um memorial relatando minha trajetória profissional, acadêmica e pedagógica e o
documentário “Igbábò”, que traz as filmagens do curso. Elaborado com o intuito de servir como
material didático para escolas e universidades, especialmente para a formação de
professoras/es, “Igbábò” pode instrumentalizar para o pensamento decolonial, para uma práxis
libertadora e inspirar expectadoras/es e futuras/os pesquisadoras/es. Igbábò é estudo resultado
de ação colaborativa, que se coaduna com um pensamento decolonial e de resistência, logo,
propõe rupturas na construção hegemônica de saberes, corrói relações de poder
hierarquicamente eurocentradas, lega espaço aos saberes de Terreiro e coloca em tela uma
práxis exuriana para a Educação. Tendo como desafio o cruzo, o atravessamento de saberes,
com vistas à uma encruzilhada pluriepistêmica, Igbábò (o memorial e o documentário) trata do
avesso, ou seja, interessa-se por uma Educação que anda em sentido invertido e ancorada no
movimento espiralado de Exu. Rodopia em seu movimento e vai do caos a harmonia,
enegrecendo o pensamento e a relação saber/poder escolar.
Palavras-chave: Igbábò; Pedagogia de terreiro; Práxis exuriana; Decolonialidade.
IGBÁBÒ: An exurian pedagogical praxis
ABSTRACT:
The purpose of the action research presented here was to promote an Exurian praxis as a
teaching methodology, which occurred through a teacher training course, entitled “Pedagogy
of Ancestrality and Terreiro: anti-racist, decolonial practices and viability of Law 10.639”.
Developed within the scope of the Master in Teaching and Ethnic-Racial Relations (PPGER /
UFSB), the idea of the course involved the participation of educational staff in order to
collaborate for the decolonization and blackening of the curriculum. The methodology used in
the course was crossed by categories such as ancestry, memory, belonging, orality and
mythology. The activities took place with conversation circles, films and debates, cooking and
dance workshops, field classes in candomblé terreiros and recitation of Orixá mythology, in
addition to discussion of relevant texts. The fruits generated from this course and the intellectual
work developed during the Master's are two final artifacts: a memorial reporting my
professional, academic and pedagogical trajectory and the documentary “Igbábò”, which bring
footage of the course. Elaborated with the intention of serving as didactic material for schools
and universities, especially for the training of teachers, “Igbábò” can be used as a tool for
decolonial thinking, for a liberating praxis and to inspire viewers and future researchers. Igbábò
is a study resulting from collaborative action, which is consistent with a decolonial and
resistance thinking, therefore it proposes ruptures in hegemonic construction of knowledge, it
erodes hierarchically Eurocentric power relations, leaves space for Terreiro's knowledge and
puts on an exurian praxis for the education. With a view to a multi-epistemic crossroads, Igbábò
(the memorial and the documentary) deals with the reverse, that is, he is interested in an
Education that walks in an inverted direction and is anchored in the spiral movement of Exu.
Its twists in movement and harmony goes from chaos, blackening the thought and the
relationship between knowledge and school power.
Keywords: Igbábò; Terreiro pedagogy; Exurian praxis; Decoloniality.
SUMÁRIO
1. IGBÁBÒ: Resistir contra o memoricídio 10
1.1. Ensino Fundamental 10
1.2. Ensino Médio e Superior 11
1.3. Especializações e Trajetória Profissional: Giros, cruzos, encruzilhadas 12
1.3.1. Giros 12
1.3.2. Cruzos 13
1.3.3. Encruzilhadas 14
2. O TRAJETO DO MESTRADO E ATIVIDADES EXTRACLASSE 16
2.1. Primeiro ano no PPGER 16
2.2. Segundo ano no PPGER 21
3. A PRÁTICA PEDAGÓGICA 28
3.1. Trajetória Espiritual 28
3.2. As categorias de análise da Práxis Pedagógica Exuriana 35
3.3 Exu leva aos homens o oráculo de Ifá 40
3.4. Interpretação do Itan 42
3.5. O Curso Produzido 43
3.6. Sobre o Plano de Curso 45
3.7. Como os professores podem aplicar a Pedagogia de Terreiro? 62
3.7.1. Mas por que aplicar a Pedagogia de Terreiro? 62
3.7.2. Proposta de Andreia Silva Encarnação 69
3.7.3. Proposta de Sandro Leite Souza 74
3.7.4. Proposta de Jéssica da Silva Soares 76
3.7.5. Proposta de Kezia Merlo 78
3.7.6. Relato de Experiência dos Estudantes 84
4. O DOCUMENTÁRIO: Análise fílmica - IGBÁBÓ (Resistência) 86
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por uma educação às avessas 91
REFERÊNCIAS 94
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Educação às avessas baseada no Movimento Espiralado de Exu: uma
pedagogia de terreiro decolonizadora
88
Quadro 2: Janela intermediária padrão: recurso audiovisual ilustrativo com a
imagem de Exu, o movimento espiralado e a legenda.
89
10
1. IGBÁBÒ: Resistir contra o memoricídio
A incumbência de escrever sobre minha trajetória como educadora exigiu uma ação
complexa de rememorar e relembrar os movimentos discursivos que me levaram a refletir sobre
mim mesma, em um espaço potencialmente interpretativo. O presente memorial que ora
apresento a esta banca de Mestrado, busca fazer emergir e identificar uma etapa concreta de
minha vida, discorrendo sobre os percursos acadêmico, profissional e espiritual que nela estão
imbricados.
No transcurso da escrita, a banca poderá perceber as situações que julguei serem as mais
significativas. Essas questões estão ligadas à resistência necessária contra o pensamento único,
contra o apagamento de nossa memória e a agressão violenta que incide sobre saberes
historicamente recalcados. Daí intitular esse trabalho de retomada da memória como
“IGBÁBÒ”, ou seja, resistência.
Igbábò se coaduna com um pensamento decolonial de resistência, porque propõe
rupturas na construção hegemônica de saberes. Corrói relações de poder hierarquicamente
eurocentradas, lega espaço aos saberes de Terreiro, coloca em tela uma práxis exuriana para a
educação, tendo como desafio o cruzo, o atravessamento de saberes das e pelas encruzilhadas.
Com vistas a uma encruzilhada pluriepistêmica, Igbábò trata do avesso, ou seja,
interessa-se por uma educação que anda em sentido invertido e ancorada no movimento
espiralado de Exu, rodopia em seu movimento e vai do caos a harmonia, enegrecendo o
pensamento.
Nessa caminhada de (re)existência, a banca se encontrará agora com uma revisão sobre
minha vida acadêmica, a qual será atrela às minhas experiências espirituais e também às leituras
que me foram demandadas durante meus estudos no Mestrado. No final do texto, encontrará as
discussões pertinentes à pesquisa-ação desenvolvida por mim durante o Mestrado Profissional
em Ensino e Relações Étnico-raciais e o artefato construído.
1.1. Ensino Fundamental
Nasci no dia 02 de março de 1975, na cidade de Vitoria - Espírito Santo, fui criada no
seio de uma família amorosa, cujos valores mais importantes eram o respeito ao próximo e a
honestidade. Aprendi em casa que a única forma que se tem para vencer na vida é o trabalho e
11
o estudo. Na Vitória que crescia e o desenvolvimento que ora chegava, eu brincava e estudava
com crianças de minha rua, de diferentes classes sociais e etnias e, desde cedo, aprendi a não
julgar ninguém por sua condição social, religiosa ou étnica, mas, sim, pelo caráter. Minha mãe
é dona de casa e meu pai é professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo -
UFES.
Estudei as séries iniciais do Ensino Fundamental na Escola Municipal Álvaro de Castro
Matos, localizada no meu bairro. Terminei os anos finais em escolas particulares por conta da
minha família acreditar que seria o melhor para minha formação, período este marcado por
grande turbulência devido ao divórcio litigioso de meus pais, uma ruptura familiar que por
algum tempo afetou meus estudos, mas que depois foi superado. Passei minha infância neste
clima e não fui preservada das turbulências inevitáveis que ocorreram no seio familiar e social
da época. Sempre fui muito responsável com os estudos e tinha um excelente relacionamento
com os professores, sendo estes meus grandes amigos. Eu estudava muito, era uma aluna
dedicada, fazia grupos de estudo em minha casa, tomava a frente na execução dos trabalhos.
1.2. Ensino Médio e Superior
Estudei o Ensino Médio no Colégio Objetivo que, na época, distribuiu bolsas de estudo
no curso pré-vestibular para os estudantes que apresentassem boas notas e desempenho. Ganhei
a bolsa e estudava o segundo ano pela manhã e o curso pré-vestibular a noite.
Foi cansativo frequentar a escola em dois turnos e, no intervalo desses, produzir
atividades de estudos e pesquisas, mas o resultado conquistado foi passar no vestibular para
bacharelado em Turismo, cursando ainda o segundo ano do Ensino Médio.
Acionei a justiça para que fosse permitido que eu ingressasse sem ter cursado o terceiro
ano, a petição foi concedida por meio da prova do CEEJA - Centro de Educação de Jovens e
Adultos - de minha cidade, com isso consegui então obter a média para todas as disciplinas e
conquistei o certificado de conclusão do Ensino Médio, podendo iniciar meus estudos na
Faculdade de Turismo de Guarapari. Fiz o curso de forma empenhada, sempre participando de
grupos, eventos, visitas técnicas e obtendo boas notas.
12
1.3. Especializações e Trajetória Profissional: Giros, cruzos, encruzilhadas
1.3.1. Giros
Ao me formar em 1999, fui convidada por um colega da área para morar e trabalhar em
Porto Seguro – BA, assim o fiz e vivenciei meu primeiro grande emprego na área turística, no
parque aquático Paradise Water Park, hoje chamado Arraial Eco Park. Em um ano, fui
promovida a supervisora de promoção, cargo que ainda não existia, o qual foi criado porque
entreguei um projeto de execução de trabalho.
Após um ano de vivendo na Bahia, senti a necessidade de me qualificar e voltei ao
Espírito Santo no intuito de me especializar melhor na área de Marketing Empresarial e fiz a
minha primeira especialização latu sensu na Universidade de Vila Velha – UVV. Iniciei minha
vida como professora em diversas faculdades: Faculdade Espírito Santense de Ensino
Tecnológico, Faculdade de Turismo de Guarapari, Faculdade Novo Milênio e, por fim, a
Faculdade Estácio de Sá, de Vitória, sempre dando aulas relacionadas ao Turismo e Marketing.
Fiquei alguns anos ministrando aulas nessas referidas instituições, ora em uma, ora em outra,
intercalando.
No ano de 2004, como professora da Estácio de Sá de Vitória, tinha um salário muito
bom para os padrões da época, já havia ingressado no Mestrado em Educação, na Universidade
Estácio de Sá do Rio de Janeiro. Minha rotina era passar a metade da semana no Rio estudando
uma média de 300 páginas por semana, escrever e retornar para o Espírito Santo para cumprir
as minhas 40 horas de aulas semanais na Faculdade Estácio de Sá, de Vitória. Para além da
rotina estafante, eu era feliz, estava na minha zona de conforto, acreditando que era uma
educadora (hoje vejo que não) que se resumia a lecionar em uma instituição de ensino superior
particular.
A cabeça começou a dar nó a partir do momento em que percebi que tudo aquilo que eu
vivia era uma grande falácia por conta dos conteúdos estudados sobre Educação Ambiental e
Diferenças e que, fortemente, começaram desconstruir tudo que estava posto em minha mente
em relação aos ensinamentos neoliberalistas/capitalistas do Marketing. Estes conceitos me
provocavam, me deixavam confusa, então, nesse momento, concluí que eu não era educadora.
Era tão somente massa de manobra de e para uma educação excludente, colonial e racista
voltada para o mercado de trabalho.
13
A derradeira avalanche que fez descer ladeira a minha trajetória como pseudo-educadora
para o nascimento de uma “nova Claudia” se deu com um declínio da demanda pelos cursos de
Turismo, uma vez que muitos cursos fecharam as portas e os professores foram demitidos.
Também fiquei desempregada e não tive mais condições financeiras de arcar com as viagens e
com as mensalidades do mestrado, acabei tendo que me desligar do programa. Foram dois anos
de desemprego, à mingua financeira e depressão, por conta disso eu adoeci. No entanto, o
mestrado sempre foi algo que, desde sempre, foi muito almejado, desejado e eu havia lutado
por ele.
1.3.2. Cruzos
Em 2006, fui convidada por parentes para morar em Teixeira de Freitas e lá soube do
processo seletivo na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, campus de Eunápolis. Passei
pela seleção e lá trabalhei no colegiado de Turismo. Nesta instituição, comecei a perceber sinais
do que é educar: estudantes e professores lutarem pelo direito a condições melhores de uma
educação pública de qualidade e esta foi uma fase de grande aprendizado, eu aprendia mais que
meus estudantes, por conta das trocas e pelos embates.
Ao concluir meu contrato com a UNEB, retornei ao Espírito Santo e ingressei na
educação profissional, no curso técnico de Guia de Turismo Nacional, pelo Governo do Estado
do Espírito Santo. Nos anos de 2008 a 2010 retornei com força total aos estudos: fiz
complementação pedagógica em Geografia, na Faculdade Capixaba de Nova Venécia –
UNIVEN, especializações latu sensu em Educação Ambiental e também em Educação de
Jovens e Adultos, ambas no Instituto Superior de Educação e Cultura Ulysses Boyd - CESAP.
Logo em seguida, ingressei em uma nova experiência: dar aulas de Geografia no Ensino
Médio do Colégio Estadual de Vitória, onde tive meu primeiro contato com a comunidade surda
e com o idioma Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS. Por conta desta vivência, tive a
oportunidade também de trabalhar a Diferença e a Inclusão. Na escola, eu trabalhava os
conceitos de racismo, homofobia, preconceito, estereótipos e intolerância religiosa; ficou
também sob a minha responsabilidade a Semana da Consciência Negra. A partir daquele
período, minha vida mudara completamente.
Lecionar na educação básica e pública, e também para negros e surdos, me fez enxergar
de perto a realidade de meus estudantes e a dificuldade deles em se manterem na escola
14
mediante a sedução da criminalidade, pude perceber o quão é equivocada a leitura dos
professores de educação básica no trato com o “outro”, no que diz respeito à Diferença e a
Inclusão. Foi neste momento que pude me colocar no lugar do meu aluno e percebi o quanto é
necessário trabalhar a empatia e as relações de afeto para conseguir que meu trabalho desse
algum resultado e, com isso, fazer transformações na vida de cada um que atravessasse meu
caminho, nesse momento, me percebi como uma educadora de fato.
Aproveitei para fazer também minha segunda graduação, dessa vez em Pedagogia, na
Escola de Ensino Superior - FABRA e, a partir de 2011, atuei em escolas municipais e
estaduais, simultaneamente por sete anos, com duas cadeiras, um turno como professora de
Geografia e em outro como professora bilíngue de Libras/Português. Concluí outra
especialização latu sensu em LIBRAS, no Instituto Superior de Educação e Cultura Ulysses
Boyd – CESAP.
Depois disso, decidi que era o momento de ingressar novamente no Mestrado em
Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, com um projeto voltado para
Libras e não obtive sucesso, os caminhos estavam fechados. Permito-me contar melhor sobre o
assunto quando relatar minha experiência espiritual mais adiante.
1.3.3. Encruzilhadas
Novamente passei por um processo seletivo da UNEB e, em 2016, retornei à Bahia,
depois de oito anos. Fui contratada para atuar em disciplinas relacionadas ao Colegiado de
Turismo, mas assim que as coordenações de outros colegiados tiveram ciência de que atuava
como professora de LIBRAS, fui convidada a ministrar aulas nos cursos de licenciatura em
História e Letras - Língua Portuguesa. Dentre as diversas disciplinas ministradas, as que mais
tinha prazer eram: Tópicos Avançados do Turismo; Tendências do Turismo Contemporâneo;
Turismo e Manifestações Culturais; Antropologia e o Turismo; Sociologia do Lazer e do
Turismo e Geografia e Turismo I e II.
Ao ministrar tais disciplinas na UNEB, tive a oportunidade de discutir com meus
estudantes categorias chave como “diferença”, “racismo estrutural”, “homofobia”, “racismo
religioso” e, principalmente, a “decolonização dos saberes escolares”. Produzi eventos,
colaborei com monitores de ensino e trabalhos de conclusão de curso e tive a oportunidade de
ministrar cursos de extensão, em especial, o curso “Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro:
15
práticas antirracistas, decoloniais e a aplicabilidade da Lei 10.639/2003”, como elemento-chave
para a produção de meu artefato final para o Programa de Pós Graduação de Ensino e Relações
Étnico-Raciais – PPGER, da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB.
Ainda consegui, no segundo semestre de 2019, ser aprovada no processo seletivo para
professora substituta no Instituto Federal da Bahia - IFBA, em Porto Seguro, para dar aulas de
LIBRAS, assumi a vaga de 20h semanais, mas, infelizmente, tive que retornar para o Espírito
Santo. O vínculo que eu tinha com a UNEB se encerrou e como esta era minha maior fonte de
renda, isto me afetou diretamente no sentido de me manter na Bahia pagando aluguel e minhas
despesas pessoais.
Atualmente, resido em Vitória - ES, onde atuo como professora de LIBRAS (Prefeitura
Municipal da Serra), me dedico à escrita do presente memorial e à edição do documentário ora
apresentado em minha defesa de Mestrado, ambos artefatos para a obtenção de titulação
acadêmica.
16
2. O TRAJETO DO MESTRADO E ATIVIDADES EXTRACLASSE
Em junho de 2018, ingressei na Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB, em Porto
Seguro, como aluna de mestrado do Programa de Pós Graduação de Ensino e Relações Étnico-
Raciais – PPGER, na linha Pós-colonialidade e Fundamentos da Educação nas Relações Étnico-
Raciais.
Ser selecionada para o mestrado provocou e ainda provoca uma grande transformação. A
queda livre de minha trajetória profissional (em 2004, com a demissão da Estácio de Sá e a
perda da seleção no Mestrado em Educação) transforma-se agora numa caminhada para o alto
do topo. Definitivamente, eu subi a mesma ladeira onde tinha caído. E, nesse momento, é assim
que me sinto, recuperando tantos anos de sofrimento, sem a sensação de fracasso, 14 anos
depois.
Agarrei a oportunidade, enfrentei desafios para planejar o tempo, pois além de trabalhar
40h semanais na UNEB, concomitantemente atuava como professora de LIBRAS, na Prefeitura
de Santa Cruz de Cabrália, com 20h semanais e como colaboradora de 10 trabalhos de
conclusão de curso, na pós graduação Educação à Distância em LIBRAS da UNEB. Foi com
muita disciplina, foco e determinação que encontrei tempo para me dedicar ao mestrado. Abri
mão dos fins de semana, de vida social, sentimental, familiar e espiritual para dar conta da rotina
de planejamento de meus estudos. Foram cinco meses sem folga aos sábados e, posteriormente,
nove meses sem folga aos sábados e domingos, até a apresentação de minha qualificação.
2.1. Primeiro ano no PPGER
No componente curricular obrigatório “Políticas Públicas e Relações Raciais”,
ministrado pela professora Eliana Póvoas, pude ter o real entendimento do que vem a ser a
educação pública desse país. O que me foi ensinado no curso de Licenciatura de Pedagogia não
chegava nem próximo do estado de caos que se instalou em minha mente, ao perceber nas
entrelinhas as graves fissuras que existem no sistema educacional brasileiro: excludente,
colonial, racista, sexista, intolerante e cristão.
Apresentei como trabalho final para este componente o artigo intitulado
“Neoliberalismo Racial e Políticas Públicas: Candomblé nas escolas e a aplicação da Lei
10.639”, no qual procurei discutir sobre as falhas existentes na aplicação desta lei. Apresentei
17
uma breve explanação sobre o conceito de Rede de Políticas e dispositivos de poder para a
manutenção do status quo do capitalismo neoliberal, sobre o conceito e a organicidade do
neoliberalismo racial enraizado nas estruturas das esferas pública e privada, Estado e cidadãos.
Refletindo sobre isso, fiz o seguinte questionamento: Por que não levar os saberes do
candomblé para dentro dos espaços escolares? Estamos praticando o que preconiza a Lei
10.639/2003? Essa é uma das formas de descolonizar o saber escolar. O objetivo do estudo foi
criticar as políticas públicas e o atual currículo escolar onde a escola, infelizmente, é um espaço
legitimador de uma cultura incentivadora de práticas de intolerância. Os autores citados no
artigo foram os mesmos discutidos em sala: Stephen Ball (2004 e 2014), Gilles Deleuze (2000),
Michael Foucault (2008), Agustín Laó Montes (2018), Shiroma, Garcia e Campos (2011) e
Rachel Bakke (2011).
Falar sobre as sensações vividas com este componente curricular é particularmente
interessante; inicialmente porque dá uma sensação de desespero após repetidamente ler e não
entender as leituras de Stephen Ball (2006) sobre a Sociologia das políticas educacionais e
perceber que a turma toda compartilhava do mesmo problema. O resultado foi um grande
embate com a professora Eliana que, de maneira hábil e inteligente, modificou estrategicamente
sua metodologia para discussões ao ar livre, com rodízio de discussões abertas. Fiquei muito
realizada e feliz quando consegui transpor as barreiras que me impediam de enxergar as
engrenagens do sistema de políticas públicas educacionais, então, só a partir desse momento,
consegui partir para a escrita.
No componente curricular optativo “Educação e Estudos Culturais: Implicações para as
Práticas de Ensino”, ministrado por Alexandre Fernandes, várias discussões aconteceram,
dentre elas, “cultura e educação”, “estudos culturais e suas problemáticas”, “diálogos e
reflexões sobre Gênero”, “Currículo, Etnia, Raça e Nação”, como também sobre as “Diferenças
na Educação”.
Apresentei como trabalho final para este componente o artigo intitulado: “O
Candomblé, seus Saberes e a Contribuição dos Estudos Culturais”, no qual mergulhei no
universo dos terreiros de candomblé, valorizando a construção de seus aprendizados/saberes, a
pedagogia de terreiro, e isso tudo me levou a questionamento do motivo de não levar os saberes
do Candomblé para dentro dos espaços escolares. Estaríamos praticando o que preconiza a Lei
10.639/2003? Esta seria uma forma de descolonizar o saber escolar.
O objetivo do estudo foi criticar o atual currículo escolar onde a escola é um espaço
legitimador de uma cultura incentivadora de práticas de intolerância e propor que o componente
18
Estudos Culturais, trabalhado na formação de professores, possa transformar o olhar daqueles
que podem modificar a realidade escolar trazendo os saberes dos orixás para dentro da escola
pela formação um currículo que contemple as diferenças, baseando-se, prioritariamente, no
respeito. Os autores utilizados para a produção deste artigo foram os mesmos discutidos em
sala de aula e outros: Muniz Sodré (1988), Stela Caputo (2012), Oliveira e Almirante (2014),
Marialda Silveira (2004), Rachel Oliveira (2014), Caputo e Alves (2012), Marisa Costa, Rosa
Silveira e Luís Sommer (2003), Anna Oliveira (2009), Dagmar Meyer (2005), Carlos Skliar
(2002), Tomaz Tadeu da Silva (1996), Stuart Hall (1997), Kelly Russo e Alessandra Almeida
(2016) e Catherine Walsh (2007).
Os aprendizados obtidos e conteúdos discutidos neste componente foram fundamentais
em minha vida, pois eu os considerei extremamente importantes para minha experiência pessoal
e como educadora, pois aproveitei toda a discussão no componente “Antropologia e o
Turismo”, ministrado na UNEB, onde montei uma “Mostra de Cinema Amador de
Antropologia, Turismo e Contemporaneidade” discutindo questões como: misoginia,
machismo, homofobia, transfobia, racismo, xenofobia, intolerância religiosa e ódio nas redes
sociais. A metodologia utilizada pelo professor Alexandre de utilização de apontamentos
impressos na forma de síntese dos textos lidos e divididos por grupos a cada aula, funcionou
tanto que adotei em minhas aulas e meus estudantes adoraram porque proporcionou um giro de
saberes e uma maior interação entre os participantes.
As atividades extraclasse, desenvolvidas neste período, se deram com a participação em
dois grandes eventos. O primeiro deles foi realizado pelo próprio PPGER, Campus Paulo Freire
– Teixeira de Freitas: “I Seminário Regional de Ensino e Relações Étnico-Raciais, Mulheres,
Culturas e Políticas: diálogos interseccionais, memória, poder e resistências no sul baiano”.
Nunca tinha participado de um evento acadêmico como participante de um Grupo de
Trabalho – GT. Isto significa dizer que nunca tinha passado pela experiência de escrever um
resumo para submissão aos moldes da organização de um evento acadêmico que, após
apreciação e aprovação, teria que apresentar oralmente e, posteriormente, por escrito o resumo
expandido para publicação nos anais. Tudo sob a supervisão e correção de meu professor-
colaborador. Foi uma experiência marcante, uma vez que foi o primeiro GT. No dia, fui vestida
a caráter, por conta da abordagem do meu artigo: “A vestimenta do candomblé: prática de
resistência e afirmação cultural? ”. Isso ia ao encontro do que eu apresentava como tema, sendo
essa uma maneira de defender que os adeptos do candomblé têm nas vestimentas uma forma de
enfrentamento das práticas de racismo religioso.
19
O segundo evento teve o caráter dois em um, uma conferência internacional e um
seminário nacional, ambos realizados simultaneamente na Universidade Federal do Espírito
Santo - UFES. Esse evento foi surpreendente pela sua magnitude, o “World Conference on
Remedies to Racial and Ethinic Economic Inequality” – CORREEI – 5TH – “Conferência
Mundial em soluções para a Desigualdade Econômica, Racial e Étnica” - e o “Seminário
Nacional de Educação das Relações Étnico Raciais Brasileiras”.
Fiquei impressionada com a grandiosidade e a organização. Mais uma vez, assim como
o seminário que aconteceu em Teixeira de Freitas, o que mais ganhamos em participar de
eventos foram os conhecimentos nos momentos de troca ao ouvir outros colegas falarem nos
GT’s, e de fato compreender que o Outro tem muito a contribuir com suas falas em nossas
pesquisas. As palestras, oficinas e minicursos também foram fundamentais para fazer toda a
amarração do processo de pesquisa que estava desabrochando em mim.
Neste evento da UFES, participei de um GT, submeti um resumo expandido intitulado
“Candomblé e suas Práticas Culturais: para o desenvolvimento de espaços escolares que
contemplem as diferenças”. Procurei problematizar como as práticas religiosas poderiam ser
contempladas nos espaços escolares, ressignificando a comunidade escolar. Discuti que é
necessário ter um olhar sobre os adeptos das religiões de matrizes africanas em idade escolar
que sofrem com a intolerância religiosa, enraizada na sociedade e perpetuada pelo currículo
escolar hegemônico atual, apesar da implantação da Lei 10.639/03. A discussão foi analisada
por meio das leituras de Macedo (2006), Destro e Oliveira (2005) e Gonçalves e Silva (2000).
No componente curricular optativo “Currículo, Cultura, Diferença”, ministrado pela
professora Eliana Póvoas, foram discutidas questões que permeiam o currículo escolar,
principalmente porque meu objetivo-fim é a decolonização dos saberes escolares por meio da
discussão do currículo, e isto se deu por meio da proposta metodológica – Pedagogia de Terreiro
na formação de professores. Não tinha como fugir de uma discussão densa dentro deste
componente.
A discussões se deram na forma de seminários avaliativos individuais e a criação de
verbetes em cima dos textos propostos. Baseados nos autores Elisabeth Macedo, Tomaz Tadeu
da Silva, Stuart Hall, Michael Young, Sandra Mara Corazza e Rosângela Tenório de Carvalho
discutimos currículo, cultura, poder, alteridade, políticas educacionais, diferenças, gênero,
resistência, ruptura, representação e identidade, identidade e diferença, o papel das escolas,
currículo e educação, o discurso curricular intercultural e governamentabilidade.
20
Em “Estágio e Residência”, iniciei encontros semanais com meu professor-colaborador
para estudos por meio do Grupo de pesquisa em Linguagens, Poder e Contemporaneidade -
GELPOC/IFBA. A cada encontro aconteciam novas leituras e discussões. Lembro-me de
comentar com Alexandre e colegas que é como se eu desse um “salto” num trampolim a cada
encontro, de tão enriquecedor. Por vezes, me causava frustação quando apresentava um texto
“não apresentável” e Alexandre não poupava palavras para me chamar a atenção, nessa
caminhada pelo aprendizado, mas valeu a pena.
Não foi fácil chegar à construção do que viria a ser meu artefato final. Na caminhada a
este processo, encontrei vários tropeços que criaram entraves no meu processo de criação.
Fatores de ordem profissional e pessoal foram difíceis de contornar, pois testavam a minha
capacidade de me dedicar aos estudos. Os problemas de ordem profissional dizem respeito a
uma rotina estafante de aulas como professora e os percalços de ordem pessoal vieram junto
com a notícia de um câncer de um grande amigo, Leandro Soares.
Existem pessoas que escolhemos na vida para serem nossos irmãos e Leandro faz parte
desse grupo, fui, inclusive, sua madrinha de casamento. Ele é professor da UNEB. Foi ele quem
passou horas de seu tempo me auxiliando sobre como seria a entrevista para o ingresso no
Mestrado do PPGER. Se obtive sucesso, foi graças a ele.
Além de admirá-lo como profissional, Leandro faz parte do seleto grupo de pessoas das
minhas relações pessoais aqui na Bahia e receber a notícia sobre um grave câncer de um de
meus melhores amigos me tirou do eixo emocionalmente e modificou minha rotina, pois que
Leandro e seu companheiro tiveram que ir às pressas para Salvador enfrentar exames e eu,
juntamente com um grupo de amigos, ficamos responsáveis por cuidar de sua casa e seus
animais; fizemos um ciclo de trabalhos espirituais pedindo que Xangô intercedesse para que a
cirurgia fosse um sucesso.
Foi muito difícil o processo de produção nestas condições. O tempo era escasso, me
encontrava fisicamente esgotada com todos os afazeres e quando parava para produzir minha
mente viajava para Salvador e eu chorava, não conseguia me conectar. A conexão se deu
somente após a notícia de que a cirurgia tinha sido um sucesso, mesmo com um susto no pós
operatório, mas Leandro estava bem, com a certeza de que poderia retornar, a salvo.
Nessas idas e vindas fui construindo a proposta de meu artefato final e participei de
atividades extraclasse neste quadrimestre que findava o ano de 2018. Submeti resumos
expandidos em dois eventos, sendo um deles o “VI Simpósio de Integração, Ensino, Pesquisa
21
e Extensão: Novos Desafios para a Universidade – SINTEPE”, promovido pela UNEB –
Campus Eunápolis.
Apresentei o trabalho intitulado “Neoliberalismo Racial e Políticas Públicas:
Candomblé nas Escolas e Aplicação da Lei 10.639/03”, que foi meu trabalho final no
componente curricular de Políticas Públicas, ministrado pela professora Eliana Póvoas,
argumentei que existem falhas na aplicação e cumprimento dessa legislação, baseando-me em
autores como Oliveira (2014), Caputo (2012), Adorno (1995), Ball (2004 e 2014), Montes
(2018), Póvoas (2018), Bhabha (1989), Hall (2003), Foucault (2008), Sodré (2012), Caputo e
Alves (2012), Bakke (2011).
Defendi que para se ter um entendimento adequado sobre a exequibilidade de políticas
nacionais temos que fazer uma análise sobre a Lei e os contextos nos quais ela foi criada, sobre
o conceito e a organicidade do neoliberalismo racial enraizado nas estruturas das esferas pública
e privada. Apresentei breve explanação sobre a manutenção do status quo no capitalismo
neoliberal. O objetivo desse estudo foi o de criticar as políticas públicas e o atual currículo
escolar, defendendo que a escola ainda é um espaço legitimador de uma cultura incentivadora
de práticas de intolerância.
O segundo evento de que participei foi o “II Seminário de De(s)colonialidades –
Ancestralidade e Lugar de Fala: Outras Geografias de Olhares e Saberes”, promovido pelo
IFBA, Campus Eunápolis. Apresentei o trabalho intitulado “O Candomblé, seus Saberes e a
Contribuição dos Estudos Culturais”, que foi meu trabalho final no componente curricular
optativo, ministrado pelo professor Alexandre Fernandes.
Um elemento surpresa neste final 2018 que fez com que eu suspendesse todas as minhas
atividades laborais e acadêmicas foi uma cirurgia às pressas de retirada do ovário esquerdo, por
conta de uma endometriose que ocasionou uma crise. Tive que ser levada ao hospital em caráter
de emergência e após nove dias de internação fui operada. Participei desses eventos
convalescendo ainda da cirurgia.
2.2. Segundo ano no PPGER
No período de férias, no mês de Janeiro de 2019, aproveitei dez dias para ver minha
família no Espirito Santo e retornei para escrever o artigo intitulado: “Pedagogia de Terreiro:
22
Pela Decolonização dos Saberes Escolares” que, posteriormente, publiquei na Revista
Vivências, juntamente com os colegas Mariana Fernandes dos Santos e Yuri Miguel Macedo.
Neste trabalho, defendo que os saberes construídos cotidianamente no universo de
terreiros de Candomblé, sua história oral, tradição, axé e ancestralidade afro-brasileira são
epistemologias decoloniais, uma Pedagogia de Terreiro que tem muito a contribuir para a
formação do sujeito e de sua identidade. O objetivo deste estudo é apresentar caminhos na
construção do conhecimento de saberes afro referenciados apresentando críticas ao atual
modelo escolar legitimador de uma cultura de intolerância e racismo em que a escola rejeita e
exclui a identidade ancestral e cultural que o estudante negro traz consigo. Defendo que a partir
dos Estudos Culturais é possível construir rupturas com o paradigma colonial racista judaico-
cristão, pela formação de uma cultura que contemple as diferenças, baseada no respeito.
Ainda faltava um componente curricular obrigatório a cumprir, “Fundamentos dos
Processos de Ensino-Aprendizagem nas relações Étnico-Raciais”, ministrado pela professora
Eliana Póvoas. Este componente teve uma característica especial, pois tive o prazer de conviver
com a nova turma que iniciava no programa do PPGER, no ano de 2019, eram 45 pessoas em
sala. Debruçar sobre Spivak, Foucault, Deleuze, Sueli Carneiro fizeram discussões necessárias
sobre ensino-aprendizagem no momento em que eu estava colocando em prática o curso de
extensão de formação de professores, ao mesmo tempo em que escrevia um texto sobre esta
prática para apresentar na qualificação.
Como forma avaliativa deste componente curricular os grupos apresentaram seminários
interativos com entrega dos textos-sínteses e a produção de artigo baseado nas discussões,
produzido individualmente. Apresentei o artigo que fala do curso de formação de professores
que apresentei na minha banca de qualificação e, para minha surpresa, a professora não ficou
satisfeita com a minha produção.
Com quatro dias de prazo para a nova entrega, escrevi o artigo intitulado “Tá Amarrado
em Nome de Jesus! A Escola e o Aluno Negro Adepto do Candomblé”, no qual apresento que
as crianças negras adeptas do candomblé, ao adentrarem as escolas, sofrem com relações
conflituosas de preconceito e racismo religioso, pois a escola é um espaço legitimador de uma
cultura branca que tenta reduzir e invisibilizar a identidade da cultura negra, feita de forma
intencional, legando apenas uma imagem folclórica e humilhante da riqueza cultural da
ancestralidade africana.
O objetivo do estudo foi trazer reflexões sobre o silenciamento do aluno e as relações
de poder sobre o currículo escolar hegemônico, no intuito de romper com o paradigma colonial
23
racista judaico-cristão com uma análise sobre a Lei 10.639/2003. Os autores utilizados no
estudo sobre relação ensino-aprendizagem e pedagogia de terreiro foram: Carneiro (2005),
Caputo (2012), Oliveira e Almirante (2005), Spivak, (2010), Oliveira, (2014), Foucault, (2008)
e Veiga-Neto, (2007). Defendi, mais uma vez, que a educação tenha como formação uma
cultura e um currículo que contemplem as diferenças, baseadas no respeito. Apresentei resumo
expandido deste artigo no “III Seminário De(s)colonialidades: Ancestralidade, Educação e
Resistência”, promovido pela IFBA de Eunápolis, em 2019.
Neste segundo ano de PPGER, me inscrevi em “Orientação e Práticas de Pesquisa I e
II” e “Seminários Processuais I e II”; foram momentos intensos imersos na pesquisa, na leitura
e na escrita de meus textos para a qualificação e de planejamento do curso de extensão de
formação de professores: “Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro: práticas antirracistas,
decoloniais e aplicabilidade da Lei 10.639/2003”.
Ficou acordado com meu colaborador1 a produção de três textos para minha
apresentação na banca de qualificação:
Um texto cujo gênero textual é o “estado da arte”, com uma pesquisa completa de todas as
produções que eu encontrasse sobre “Pedagogia de Terreiro”, para que eu pudesse me
inteirar sobre o que estava sendo produzido sobre a temática. Para isso, fez-se necessária
uma operação “pente-fino”, que foi fundamental para que eu me aprofundasse na temática.
Um texto inédito cujo gênero textual seria “artigo”, no qual, por meio das leituras, eu
pudesse também dar minha contribuição acadêmica enquanto nova pesquisadora;
Um texto sobre meu artefato final, explicando detalhadamente do que se trata o estudo-
intervenção, explicitando o planejamento das atividades.
Acredito que o segundo ano no PPGER foi ainda mais difícil, porque além de dar conta
de pesquisas, leituras, escritas de três textos para a qualificação e do componente obrigatório:
“Fundamentos dos Processos de Ensino-Aprendizagem nas relações Étnico-Raciais”, tinha que
dar conta também de 40 horas aulas semanais da UNEB, 20 horas semanais da Prefeitura de
Santa Cruz de Cabrália e da colaboração com dez Trabalhos de Conclusão de Curso – TCC’s,
da Pós em LIBRAS EAD da UNEB. A situação se agravou quando comecei a ministrar o curso
de formação de professores.
1 Trata-se de tentar lidar com a academia de modo decolonial, logo, não há “oriente” a ser seguido, mas sujeitos
que colaboram conosco em nossa pesquisa, assim, escrevo “colaborador” e não “orientador”.
24
Houve momentos em que pensei em desistir de tudo e chorava muito. Pode parecer
piegas, eu sei, todo mundo que já passou por um mestrado ou doutorado passa por estas
situações. Trabalhar e fazer mestrado estava sendo um fardo muito pesado a carregar.
Foi quando recebi a notícia da internação de meu pai, em São Paulo, para a cirurgia do
coração. E, para piorar, a UNEB entra em greve neste período e eu fico sem salário durante três
meses. Sinceramente eu não sei se foi para o bem ou para o mal esta greve. Ficar sem trabalhar
me deu tempo para escrever: eram 10 a 12 horas diárias escrevendo sem parar para entregar os
textos da qualificação. Mas a pessoa mais importante de minha família ficou 30 dias internada,
justamente a que podia me ajudar financeiramente. A saúde reclamou, tive uma crise de coluna
e a síndrome da fibromialgia atacou, fui parar na emergência do hospital público de Cabrália
para tomar medicação intravenal, que não resolveu muito, por conta disso tive que tomar
medicações fortes à base de Tramal para combater as dores, remarquei minha qualificação por
causa disso.
Nunca podemos dizer que as coisas não podem piorar, pois elas podem. Além de toda a
situação de preocupação com meu pai da UTI em São Paulo e eu na Bahia, acompanhando à
distância, sem salário por conta da greve da UNEB, escrevendo 12 horas por dia, dando aula
em Cabrália, auxiliando na produção de TCC e ainda com crise de coluna, contraí anemia forte,
com tonturas, princípios de desmaios e hemorragias que chegavam a durar 30 dias; afinal, não
estava me alimentando adequadamente.
Minha mãe veio do Espírito Santo para me ajudar a cuidar de minha casa, de minha
alimentação e de minha saúde. Só que ela também estava com problemas financeiros, assim
como eu. Resumindo, tive que vender meu carro e ficar a pé depois de anos para conseguir
comprar um, e ainda nem havia conquistado a qualificação.
Por conta disso, pensei em abandonar tudo. Os processos de produção, as idas e vindas
de correção de meus textos cortavam em minha carne e eu não aguentava mais, estava
preocupada com a vida de meu pai, depressiva, anêmica, falida e cansada de tudo. E escrevendo.
Como sou feita de orixá, isso fez toda a diferença para seguir em frente. Mais uma vez
recorri a Xangô para que cuidasse de meu pai, que é filho de Xangô, e rodei um grande Amalá2
2 Amalá: alimento ritual oferendado ao Orixá Xangô, feito de quiabo picado refogado no camarão seco defumado,
cebola, azeite de dendê e sal, servido numa gamela forrada oval de madeira, com pirão de farinha de mandioca ou
acaçá. Por cima decora-se com 12 quiabos e a depender do contexto, leva bolas de arroz ou bolas de inhame pilado,
podendo ainda adornar com uma peça de carne de músculo inteira refogada. Fonte: a própria autora. (Notas
similares a essa encontram lastro em meu conhecimento empírico, haja vista que sou iniciada no Culto e Ialorixá.
Essas notas são um movimento contra-ABNT, a rasurar o pensamento autoritário europeu que separa sujeito-
objeto, respaldo-me, portanto, em meu lugar de fala, em meu conhecimento situado e na autoridade religiosa a
25
em minha casa no momento de sua cirurgia. Este momento fez lembrar de uma música especial:
o “Canto de Xangô”:
Eu vim de bem longe
Eu vim, nem sei mais de onde é que eu vim
Sou filho de Rei
Muito lutei pra ser o que eu sou
Eu sou negro de cor
Mas tudo é só amor em mim
Tudo é só amor para mim
Xangô Agodô
Hoje é tempo de amor
Hoje é tempo de dor, em mim
Xangô Agodô
Salve, Xangô, meu Rei Senhor
Salve, meu orixá
Tem sete cores sua cor
Sete dias para a gente amar
Mas amar é sofrer
Mas amar é morrer de dor
Xangô meu Senhor, saravá!
Xangô meu Senhor!
Mas me faça sofrer
Mas me faça morrer de amor
Xangô meu Senhor, saravá!
Xangô Agodô!3
Quanto ao estado de desânimo em que me encontrava, quem me levantou foi LogunEdé,
que veio em meus sonhos e disse para confiar em meu colaborador, que as coisas dariam certo.
Fui ao jogo de búzios e perguntei o que poderia lhe ofertar em agradecimento e o jogo apontou
que eu ofertasse comida seca para toda a família: um Axoxô4 para Oxóssi, o pai; outro Axoxô
para LogunEdé, o filho e; um Omolocum5 para Oxum, a mãe. Preparei toda comida seca de
agrado, ornamentei com joias, toquei meu adjá6, cantei e dancei, e após 3 dias arriei no olho
d´água do Rio Yayá, em Santa Cruz de Cabrália, conforme determinado pelo jogo. Ao orixá
encantado, dedico o poema recitado por Caetano Veloso, “Logunedé”:
mim concedida por meus ancestrais e pela mão que me cobriu com Adoxô e banhou meu corpo com ervas e o
pintou com efum). 3 Vinicius de Moraes e Baden Powell 4 Axoxô: prato típico dos rituais ofertados aos orixás Oxóssi e LogunEdé, a base é milho vermelho cozido refogado
na cebola, azeite de dendê, camarão seco defumado e sal, decorando com lascas de côco. Ornamenta-se o prato
numa tigela de barro funda amarrada com panos coloridos. 5 Omolocum: prato típico ritual ofertado ao Orixá feminino Oxum, a base é feijão fradinho cozido refogado na
cebola, azeite, camarão seco defumado e sal, esse feijão é pilado, e esta pasta é servida numa vasilha normalmente
branca e redonda, adornada com 05 ovos cozidos e camarões secos inteiros. 6 Adjá: instrumento musical de metal, formado de uma, duas ou três sinetas, com badalos. Pode ser confeccionado
em alumínio, ferro, ou latão dourado. Sinaliza que quem o utiliza é pessoa com poder de autoridade e graduação
dentro da religião. Utilizado para invocar os orixás, que imediatamente responde ao seu som.
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Da profundeza da beleza do rio Oxum
Ibualama é quem chama o menino Logun
É de longe a flecha
Mecha dourada que infesta a floresta
Seta que aponta a certeza que resta
Nem duzentas e tantas contas dão conta
O pescoço de moço do caçador
Homem caroço do pomo maior
Príncipe caça o princípio que for
Dono da fome que mata o que come
Não some o teu nome de chefe senhor
Não dorme. Toma
Domina Ijexá
Camarão do abdômen de fogo. Orixá
Nativo na mão abebé de ipondá
Erinlé, Pai Odé, efusivo no Ofá
Altivo do peito bem feito
Se move do jeito do seu ancestral
Peixe do feixe vermelho
A mancha de sangue se deixa no sal
Bico de papagaio, pata de elefante
Elegante na frente do fronte
Não sente a patente de ser general7
Apesar da fé renovada, eu estava fisicamente e mentalmente cansada, queria que tudo
aquilo acabasse. Finalmente chegou o grande dia da qualificação, ao chegar na UFSB, me dei
a oportunidade de ficar a sós com Exu, onde pude cantar para ele, agradecer por ter chegado até
ali, pois acredito que foi o orixá que abriu meus caminhos para ingressar no PPGER, e era sobre
ele que falaria nos próximos vinte minutos de defesa do meu tema.
Fingi estar calma e tentei falar pausadamente dentro da ordem na qual me propus a
apresentar meu trabalho. Estava mais cansada do que com tesão pedagógico naquele momento.
Observei que começara a chover no momento de minha fala e agradeci aos céus, pois chuva é
sinal de bênçãos. Acabei ultrapassando alguns minutos do tempo permitido. Me sentei, ouvi e
anotei atentamente as falas dos professores que participaram da banca; o professor convidado
Marcelo Niel, a professora do programa, Joceneide Cunha e, por fim, as considerações de meu
colaborador, Alexandre Fernandes. Finalmente agradeci e chorei. Foi um choro de
agradecimento, mas também de alívio por todas a situações de tensão vivenciadas nos últimos
meses, um choro de colo onde coloquei para fora todo aquele cansaço acumulado e, só assim,
7 Texto de Eduardo Brechó. “Logunedé”. Disponível em: http://caetanoendetalle.blogspot.com/2017/02/2017-
logunede.html. Acesso em: 01/05/2020.
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finalmente pude respirar. Estava visivelmente abatida, queria ter tido muito mais sentimento de
alegria por aquele momento, mas o esgotamento não me permitia. Tentei não transparecer, mas,
mesmo assim, fui festejar com o grupo que lá estava, pois o momento era de festa.
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3. A PRÁTICA PEDAGÓGICA
Pude perceber um grande aprendizado dessas vivências que culminaram em minha
qualificação, ao sentir minha evolução no processo de escrita e pesquisa. Não tenho vergonha
de confessar aqui que fiquei com raiva de meu colaborador, mas vi que depois de passar por
todo processo, uma gratidão imensa cresceu dentro de mim ao ver o quanto evoluí, devido às
suas duras falas, exigência, e ao seu rigor científico.
Esses elementos me atravessaram e me transformaram e, de alguma maneira, consegui
servir de espelho e exemplo para meus estudantes na graduação em Turismo e na pós graduação
em Libras EAD, da UNEB. Ao término das produções, todos defenderam seus trabalhos e
tiveram muito êxito em suas apresentações, com isso percebi que repliquei nos meus estudantes
todo processo de aprendizado em pesquisa que aprendi com Alexandre. O conhecimento que
me atravessara, passou como uma flecha nos meus estudantes e todos nós obtivemos sucesso
em nossas pesquisas.
O Ofá8 de LogunEdé9 trouxe seu axé para todos nós. O sentimento de gratidão que
brotou em mim por Alexandre, também brotou nos meus estudantes por mim, e nesse ciclo,
outros estudantes começaram a me procurar para futuros estudos.
Uma vez feita a qualificação, dei início ao curso de extensão para professores. Diversas
considerações foram feitas pela banca na qualificação. As correções eram necessárias. Eu estava
ciente de que nem sempre tudo sai conforme o planejamento, que o elemento surpresa é um
fato, mas que a partir dali, faria de tudo para obter êxito e alcançar meus objetivos.
3.1. Trajetória Espiritual
Sou de uma criação em que nenhum de meus parentes eram praticantes de religião, pelo
menos que eu não saiba, nem pais, tios ou avós. Nenhum deles frequentava igreja ou templo.
8 Ofá: Instrumento de trabalho dos orixás que estão ligados à caça e as matas. Uso obrigatório nos rituais e nos
assentamentos de Oxóssi e o identifica como representante maior dos caçadores. Formado por arco e flecha, pode
ser confeccionado por madeira ou metal. Também atribuído a LogunEdé, caçador e pescador (MAURÍCIO, 2009,
p. 212). 9 Alexandre Fernandes, também conhecido como Alexandre Osaniiyi, meu colaborador nessa pesquisa, é iniciado
em LogunEdé.
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Até o dia em que presenciei minha tia receber uma entidade de erê10 , chamada, Sandrinha, que
veio conversar comigo e acariciou meus cabelos. Esse foi meu primeiro contato com a
Umbanda. Minha mãe me revelou que tinha uma tia benzedeira que recebia muitas pessoas em
casa para cuidar e que seu avô era curandeiro no sertão de Pernambuco. Aquilo não fazia muito
sentido para mim, pois eu era criança. Algo que foi marcante nesta época eram as constantes
dores de cabeça. Periodicamente era levada numa benzedeira que morava na rua da casa de
minha avó materna, após a reza a dor passava.
Aos 14 anos de idade minha mãe me levou pela primeira vez num centro de umbanda
e, paralelamente, comecei a ler toda a literatura de Allan Kardek para entender um pouco sobre
a espiritualidade que aflorava em mim. Muitos sonhos, avisos premonitórios, com situações
que viriam posteriormente a acontecer e, principalmente, sonhos com a morte de conhecidos,
que vinham me assombrar e eu não sabia lidar com aquela energia que se aproximara de mim.
Me foi dada a indicação de que precisava desenvolver minha mediunidade, mas minha mãe não
concordou, disse que eu era muito nova e nos afastamos do centro. Em contrapartida, ganhei
um baralho cigano, comecei a estudar as jogadas sozinha (sozinha não estava, mas sob a
influência de minha pomba gira Sete Saias que me acompanha) e até hoje jogo as cartas.
Os anos passaram e, mais tarde, como professora de Turismo da Faculdade Estácio de
Sá de Vitória, ganhando bem, namorando e feliz, encontrei com um amigo de adolescência que
me levou a ter contato com a Umbanda novamente, ao colocar o pé no terreiro a entidade me
pegou, era vovó Maria Conga, que disse para eu ficar ali. Resolvi desenvolver minha
mediunidade e fiquei por alguns anos e, nesse período, passei no mestrado.
Como relatei anteriormente, minha vida virou de ponta a cabeça: perdi emprego, perdi
o mestrado, perdi o namorado, perdi a saúde, perdi a dignidade. Eu tentava entender o que
estava acontecendo comigo e não conseguia, me questionava como que uma pessoa que é
trabalhadora, estudiosa, de boa índole, que está em dia com a vida espiritual, praticando a
caridade pode perder tudo? Foram dois anos prostrada numa cama, desempregada e doente.
Minha segunda ida para a Bahia não foi ao acaso. Acredito que foi um processo que me
conduziu a conhecer o Candomblé. O tempo todo o espiritual e o profissional se entrelaçavam
e eu não me dava conta disso. Trabalhando na UNEB, a amiga, Rosângela Nascimento, me
conduziu ao terreiro de Mãe Luziene de LogunEdé. Este local foi meu primeiro contato com o
10 Erê: é a divindade infantil que todos os Orixás possuem. É por intervenção do Erê que o Orixá se torna mais
próximo do iaô na sua iniciação, possibilitando que este iaô se torne receptivo e morada perfeita para seu Orixá
(MAURÍCIO, 2009, p. 328).
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Candomblé. Frequentei, fiz alguns trabalhos de limpeza e agrados, Yemanjá se manifestou pela
primeira vez. Estreitei laços e amizades, mas era hora de voltar a Vitória - ES.
O retorno para Vitória não foi nada fácil. Desde a demissão da Faculdade Estácio de Sá,
eu não conseguira retornar as aulas em ensino superior e tampouco retornar a um mestrado.
Nem empregada estava, os caminhos estavam fechados. Pelas mãos de uma amiga, fui levada
ao Ilê Axé Palácio de Oxalá, foi um jogo de misericórdia, pois tinha somente o dinheiro da
passagem. Foram seis meses como abiyán11 , morando dentro da roça, aprendendo os saberes
do Candomblé até a decisão por minha iniciação. Me iniciei pelas mãos de Pai Edson
D’Oxogyan, filho de Mãe Meninazinha D’Oxum Tade, no Ilê Axé Palácio de Oxalá, Rua das
Cegonhas, 499, Costa Bela, Jacaraípe – Serra/ES.
Após a iniciação, ainda no resguardo, consegui emprego para trabalhar numa escola do
Estado, no curso Técnico de Guia de Turismo Nacional. Ganhava pouco, pois a carga horaria
era pequena, mas me sentia feliz. Trabalhava toda vestida de branco, pano de cabeça e kelê12 no
pescoço. Foi a primeira Semana da Consciência Negra que organizei, a pedido do diretor da
escola. Montei exposições: uma de paramentas de orixás, com placas explicando sobre cada
paramenta e a que orixá pertencia; e outra exposição de cartazes impressos em grande tamanho,
com cada orixá e texto explicativo dizendo quem era, cor, comida, paramenta, dia da semana,
arquétipo de seus filhos, elementos da natureza e saudação. Foi um sucesso, recebemos a visita
de pais e mães-de santo e do secretário de educação.
Nessa época, sofri muito com o coordenador do curso que, bem diferente do diretor da
escola, era intolerante e me perseguiu por causa de minha religião e competência. Isso o
incomodava, daí eu não aguentei a perseguição e pedi para sair do curso. Orixá é tão
maravilhoso que, no ônibus de retorno ao barracão, ainda em lágrimas, recebi o telefonema da
Secretaria de Educação - SEDU, perguntando se eu tinha interesse em substituir um professor,
com uma carga horária cinco vezes maior que aquela que acabara de abrir mão. Não somente
estava empregada, mas meu salário quintuplicou.
Sob a nova condição, Xangô permitiu que, estando empregada, os trâmites de entrada
num apartamento do programa Minha Casa Minha Vida fossem feitos em tempo recorde, sem
11 Abiyán: em ioruba pode ser traduzido como “nascer para um novo caminho” (abi = aquele que nasce; iyán =
caminho novo). Traz a ideia de início, de nascimento, e ele representa realmente o começo, pois é um pré-iniciado,
o primeiro momento de um futuro yawô (MAURÍCIO, 2009, p.69). 12 Kelê: é um objeto sagrado para os praticantes do candomblé considerado a joia do orixá. É um "colar" usado
pelo iniciado na religião e em seu período de resguardo. Confeccionado com miçangas intercalado com firmas de
porcelana ou pedras.
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impedimentos burocráticos. Em menos de um mês estava com a aprovação do financiamento,
com a assinatura do contrato. Priorizei a morada perto do axé e aguardei a entrega das chaves,
sempre dormindo mais na “roça” do que em minha casa, que dista 28km.
A vivência no terreiro foi marcada por alegrias e dores, amizades e inimizades,
momentos de sublimação ao louvar os orixás e processos que me levaram a crescer enquanto
sujeito. No terreiro, assim como qualquer templo religioso, frequenta todo tipo de gente, não
podemos romantizar o Candomblé e achar que tudo é belo, não posso, não devo e não vou ter
a inocência de discutir sobre os saberes que aprendi dentro de terreiro e retratá-los de uma forma
que não demonstre que esse aprendizado não veio com uma carga de dores e frustrações que
fazem parte do crescimento.
Uma criança, ao aprender a andar, antes, leva muitas quedas, ela tudo quer ao seu
alcance e tudo pede, por isso ouve muitos nãos que levam à formação de seu caráter, a um
adulto com valores éticos e com preparo para enfrentar a vida, para saber lidar com a frustração
e com o medo. Assim eu me sentia no Candomblé, uma criança, uma yawô13 que acabara de
nascer, recomeçando e aprendendo valores novos. Ao adentrar no barracão há um ritual a se
cumprir: despachar água na porta, ir a cozinha, beber água para esfriar o corpo, ir para o banho,
após o asseio, bater paó14 agachado, esperar o irmão mais velho jogar o banho de abô15; virar
no orixá, desvirar no orixá, vestir a roupa de ração, bater cabeça na porta do barracão, bater
cabeça para os atabaques, bater cabeça para a cumeeira16, bater cabeça para o pai de santo, bater
cabeça para a mãe pequena, bater cabeça para a jibonan17, pedir benção aos mais velhos e mais
novos.
Na construção de saberes de um terreiro, a primeira coisa que aprendemos é a
importância da ancestralidade, o respeito aos mais velhos, àquele que veio antes você, não
importando sua idade biológica ou sua condição sócio financeira, o mais importante é a vivência
e experiência.
13 Yawô: iniciados/feitos no candomblé, que ainda não completaram o ciclo de 7 anos. 14 Paó: é o conjunto de palmas em cadência, feito nos momentos de saudação, nos agradecimentos, usado por
quase todas as nações (MAURÍCIO, 2009 p.169). 15 Abô: (agbô, em ioruba), é uma infusão preparada com ervas sagradas e outros elementos que são utilizados nos
rituais. É guardado nos porrões de barro e muito usado nas iniciações e nas limpezas (MAURÍCIO, 2009, p. 169). 16 Cumeeira: Parte mais alta de um telhado no terreiro de candomblé, é o local onde se planta o axé - a energia
vital que dá vida ao lugar. Ponto central de energia do barracão, precisa ser muito bem preparada para proporcionar
a defesa da comunidade (MAURÍCIO, 2009, p. 45). 17 Jibonan: (ji- dar/bí-nascer/onã-caminho) - “dá caminho ao nascimento”, é a mãe ou pai que cria e são
responsáveis pela reclusão do iyawô (MAURÍCIO, 2009, p. 66).
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Conhecimento e prática são indissociáveis dentro do candomblé, para se aprender dentro
de uma roça de santo, é fundamental estar presente. É nas práticas de convivência coletiva que
se aprende, coletivamente: rezar, cantar, dançar, macerar folhas, cozinhar a comida de quem
está recolhido, a comida sagrada, lavar roupa dos membros e a roupa dos orixás, fazer faxina
de todos os espaços internos e externos, cuidar das plantas e dos animais, preparar o ritual de
sacrifício dos animais, limpar galinha e cabrito.
Percebe-se pela orientação dos mais velhos que existe o tempo certo para se aprender as
coisas. Segue-se uma hierarquia de acordo com a idade de iniciação, na qual sua idade indica
seu grau de experiência e de responsabilidade. O que significa dizer que o tempo indica
conhecimento e por sua vez, indica poder. Essa hierarquização é respeitosamente seguida;
conforme o yawô passa pelos rituais de idade, pagando suas obrigações de 1 ano e depois de 3
anos, novas responsabilidades lhe são atribuídas, até que chega os 7 anos em que atinge a
maioridade.
Para elucidar sobre hierarquia e relação com o poder do axé, eu sempre escutei dos mais
velhos o seguinte: você não pode doar aquilo que você não tem. Portanto, como um yawô que
não tem obrigação de 7 anos tomadas pode doar axé a este mesmo ritual se ele não passou por
ele? Por isso, este yawô que não tem os 7 anos tomados não participa do ritual. Isso serve para
o yawô que não tem seus 3 anos tomados, este não participa do ritual, e assim sucessivamente.
Por isso existe o tempo certo de aprendizado e de atribuição de responsabilidades e aquisição
de conhecimentos de acordo com a idade de iniciação.
Outra característica marcante que tive dificuldade na construção dos meus saberes de
terreiro foi a oralidade. Como educadora, estou acostumada com a escrita, com os livros e a
internet, por isso tive que ressignificar meu olhar, pois era nas rodas de conversas coletivas que
os mais velhos relatavam, por meio da história oral, atos e feitos dos antepassados, na mitologia
dos orixás, todo o emaranhado de significados que agregam valores para a autoestima do povo
de terreiro.
Para além da oralidade, o silêncio também ensina, atrelado ao movimento dos corpos;
por vezes ao lançar uma pergunta, nem sempre obtive uma resposta. Era no ver fazer e a partir
da observação do movimento dos corpos coletivos das situações vividas; na dança, no canto, na
faxina, na cozinha, na ritualística, que eu adquiria conhecimento. Os anos foram passando, me
mudei para o meu apartamento, casei e tomei minhas obrigações de 1 ano e de 3 anos. Sempre
senti uma sensação de incompletude, de que minha vida estava estacionada.
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Já atuava há alguns anos na educação básica, tendo a percepção do que é ser educadora
neste país, já me formara pedagoga com diversas pós graduações latu sensu na área da
educação, mas sempre carreguei comigo um caráter transgressor e rebelde de poder fazer mais
pela educação. Já enxergava com ressalvas o atual currículo escolar onde a escola é um espaço
que legitima uma cultura incentivadora de práticas racistas, e isso me incomodava
profundamente.
Queria voltar a dar aulas na educação superior, voltar a fazer mestrado em educação.
Sempre que eu conversava com meu pai-de-santo sobre esse assunto, ele dizia que “isto não
está mais no meu caminho, que eu tinha que me conformar”. Não tenho como traço de minha
personalidade me conformar com situações que me incomodam. Ao mesmo tempo que
internamente me sentia insatisfeita profissionalmente, espiritualmente fui colecionando
dissabores que fizeram parte de meu aprendizado na construção de saberes. Rodas de fofocas e
intrigas, disputas por poder com os quais nunca me envolvi me segregaram dentro da roça de
santo. Isso durou anos, fui impedida muitas vezes de participar de preparação de comidas de
rituais, de ebós18, de orôs19 e, por fim, fui vítima de roubo e falas injustas de irmãos de santo,
isso gerou muitos conflitos.
Comecei a ter perseguições no trabalho por ser do candomblé, com falsa denúncia de
agressão a uma aluna, ato este planejado em conjunto entre a pedagoga e a mãe da aluna, ambas
evangélicas. Nada conseguiram provar, pois tive o apoio do diretor da escola e da professora
regente de sala, que sempre esteve ali presente e nunca fiquei em nenhum momento sozinha
com a aluna.
Tive depressão e me desliguei de um dos empregos, me endividei e meu casamento
acabou, o marido não deu apoio. Nesse período, um carro me fechou e quase caí de moto num
barranco. Às vésperas de fazer a seleção para o mestrado na UFES, tomei uma queda dentro de
um ônibus e, por fim, ainda machucada por conta da queda, fui atropelada numa faixa de
pedestres.
Resolvi, diplomaticamente, me desligar da roça, após o jogo de búzios de meu pai de
santo tudo confirmar sob as quatro paredes do quarto de Exu. Estava num momento de que toda
18 Ebós: (èbò) para o povo ioruba, significa presentear ou sacrificar. Rituais que permitem o fortalecimento do axé.
Podendo ser o próprio jogo de búzios, alimentos e sacrifício de animais, como forma de encontrar respostas, fazer
súplicas, oferendas, limpezas corporais e espirituais, agradecimentos, agrados ou comemorações (MAURÍCIO,
2009, p. 95). 19 Orôs: conjunto de cantigas sagradas, um ritual realizado sempre que são entregues oferendas aos Orixás
(MAURÍCIO, 2009, p.163).
34
onda de má sorte que havia se abatido sobre mim por causa das injustiças de irmãos de santo;
irmãos estes que ele protegeu desmentindo o jogo que havia feito para mim.
Mesmo com a vida profissional e espiritual estacionada, sem dinheiro, sem marido, sem
pai de santo, eu tinha amparo em Exu, pois eu continuava a caminhar e nunca havia deixado de
acreditar que os Orixás estavam comigo, assim como nunca deixei de acreditar que tudo que
aprendi dentro do terreiro tinha me transformado numa pessoa melhor, pois aprendi o valor que
existe nos saberes da ancestralidade, oralidade, hierarquia, todas as práticas diárias feitas com
amor e, principalmente, com respeito aos orixás; tinha me tornado uma pessoa que trabalha a
empatia, que se coloca no lugar do “outro”. Depois desse tempo, vendi meu apartamento e
decidi voltar para a Bahia e tentar mestrado por lá, para poder transbordar tanto na área
profissional quanto na espiritual, pedindo que Exu e Yemanjá que me apontassem novos
horizontes.
Em 2016, retornando à Bahia e à UNEB, foi o período em que ingressei no Ilê Axé
Torrundê de Ajagun, que fica na Rua de Deus, nº 586, Paripe, Salvador, pelas mãos do
Babalorixá Dary Mota Giberewá D’Jagun. Tomei minha obrigação de 7 anos me tornando
yalorixá20, atendendo pela alcunha Odolessy. Os caminhos se abriram, eu tinha consciência de
que teria que passar por um processo de ressignificação de saberes, mas nada apaga todo
aprendizado adquirido no ilê em que Yemanjá nascera e hoje completo uma década de iniciada
no Candomblé. Para este momento dedico “A Força do Rumpi”:
O Rumpi que transpõe as cercas, Que rompe as mordaças do ignorar, Que o axé, Poder do orixá, Acumulada nos terreiros, Difundidas por alabês Na celebração/saudação. Só com a força do Rumpi, Os homenageados podem dançar. Ouvindo e sentindo o axé dos Rumpis, Batas, Tan-tans e Cotôs. Me envolve na profunda Magia do momento. E fui encontrar na África A benção e o louvor De meus inquices21
Na construção para projeto de seleção de mestrado, alguns colegas indagaram: “Por que
você, sendo uma educadora e pessoa de santo, não prepara um projeto de mestrado sobre suas
20 Yalorixá: figura central do candomblé, sacerdotisa, mãe que cuida do Orixá, chefe do axé. 21 Elque Santos, 2012.
35
vivências? ”. De fato, todas as vezes em que tentei ingressar em mestrados, as temáticas eram
outras, entendi nesse tempo que, mais uma vez, os caminhos, espiritual e profissional, se
entrelaçavam. Então pensei que era a oportunidade de questionar o currículo escolar no qual eu
mesma tinha sido vítima de perseguições por ser do Candomblé. Essa era a oportunidade de
discutir as práticas encrustadas e cimentadas de racismo religioso estrutural que não permitem
que a Lei 10.639/2003 não seja efetivamente colocada em prática. Estava cansada de tentar
praticá-la e sofrer retaliações por pais de estudantes e professores racistas e intolerantes.
Finalmente, quando resolvi discutir sobre o que vivenciava, alinhando minha vida
espiritual com a profissional, os caminhos se abriram e ingressei no PPGER e, muito mais que
isso, com um colaborador/pesquisador de Exu e da educação decolonial. É como se ocorresse
o encaixe das peças do grande quebra-cabeças que é minha vida.
3.2. As Categorias de Análise da Práxis Pedagógica Exuriana
Antes de relatar o trajeto de minha prática pedagógica é preciso explicar por que foi
preciso ministrar um curso de formação de professores e produzir um filme que questione o
sistema educacional brasileiro, sendo este hegemônico, eurocentrado, colonizador, judaico-
cristão, fundamentado sob o racismo estrutural. Portanto, é preciso “enegrecer” a discussão
sobre educação, as relações de poder e decolonização dos saberes.
Aníbal Quijano (2000, p.121), em “Colonidad del poder, eurocentrismo y América
Latina”, argumenta que a Europa, ao impor seu domínio colonial sobre todas as regiões do
planeta, provocou “um processo de re-identificação histórica”, a colonialidade de novas
identidades. Um padrão de poder e controle de todas as experiências, histórias, subjetividade,
cultura, “articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia europeia ou
ocidental” em que os colonizados aprendem a cultura e a religião dos seus dominadores, no
caso a religiosidade judaico-cristã.
Enfim, o êxito da Europa Ocidental em transformar-se no centro do moderno sistema-
mundo, segundo a apta formulação de Wallerstein, desenvolveu nos europeus um
traço comum a todos os dominadores coloniais e imperiais da história, o
etnocentrismo. Mas no caso europeu esse traço tinha um fundamento e uma
justificação peculiar: a classificação racial da população do mundo depois da
América. A associação entre ambos os fenômenos, o etnocentrismo colonial e a
classificação racial universal, ajudam a explicar por que os europeus foram levados a
36
sentir-se não só superiores a todos os demais povos do mundo, mas, além disso,
naturalmente superiores (QUIJANO, 2000, p.121)
Essa violência, na tentativa de apagamento da subjetividade do Outro, legitima a cultura
Ocidental, acaba por dizimar toda e qualquer identidade que não seja europeia, branca, judaico-
cristã. Franz Fanon (2008), em “Pele negra, máscaras brancas”, discute esse processo afirmando
que:
Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de
inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural — toma posição
diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto
mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua
selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será (FANON,
2000, p. 34).
Contra todo pensamento hegemônico, trago Paulo Freire (1987, p. 27) que, em sua obra
“Pedagogia do Oprimido”, discorre sobre como se sente o oprimido e diz que isso se dará na
convivência, afirma ainda que é na forma de ser e de se comportar que se refletem as estruturas
de dominação. Dentro da consciência oprimida é que se encontra o sofrimento, produto da
exploração do opressor:
De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem de nada, que não
podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo
isto, terminam por se convencer de sua “incapacidade” [...] os oprimidos dificilmente
lutam, nem sequer confiam em si mesmos. Têm uma crença difusa, mágica, na
invulnerabilidade do opressor (FREIRE, 1987, p.27-28).
Para que haja uma ruptura desse padrão colonizador imposto de uma cultura
hegemônica é preciso fazer o que Luciana Ballestrin (2013, p.89) chama de “giro decolonial”.
A autora defende “a opção decolonial – epistêmica, teórica e política – para compreender e
atuar no mundo marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida
pessoal e coletiva”. E aqui se destaca a colonialidade do saber.
“Giro decolonial” é um termo cunhado originalmente por Nelson Maldonado-Torres
em 2005 e que basicamente significa o movimento de resistência teórico e prático,
político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade. A decolonialidade
aparece, portanto, como o terceiro elemento da modernidade/colonialidade
(BALLESTRIN, 2013, p. 105).
Enquanto a Ballestrin (2013, p.108) utiliza como estratégias para a decolonização
epistemológica os termos: “desprendimento, abertura, de-linking, desobediência, vigilância e
suspeição epistêmicas”; procuro utilizar como categorias de estudo para esta pesquisa, a
37
“decolonização dos saberes, a pedagogia de terreiro e a pedagogia de terreiro exuriana”, em que
procuro trazer a tona, ações de “resistência, ruptura, transgressão e fazer coletivo”.
Walter D. Mignolo (2008), em seu artigo intitulado “Desobediência Epistêmica: a opção
descolonial e o significado de identidade em política”, defende que toda descolonização deve
suscitar uma desobediência política e epistêmica. Sem iniciar esse movimento, não será possível
um efeito em cadeia, portanto, permaneceremos estáticos diante do poder hegemônico de um
currículo escolar eurocentrado, sedimentado em bases racistas. É preciso resistência e
decolonizar a educação e a política:
Todas as outras formas de pensar (ou seja, que interferem com a organização do
conhecimento e da compreensão) e de agir politicamente, ou seja, formas que não são
descoloniais, significam permanecer na razão imperial; ou seja, dentro da política
imperial de identidades. A opção descolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula
dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de conhecimento
(MIGNOLO, 2008, p. 290).
Sandra Haydée Petit (2015), em sua obra “Pretagogia”, traz como eixos principais o
corpo-dança afroancestral como elo para a busca do pertencimento ancestral africano e a
tradição oral através da literatura. Tal vertente se alinha à proposta do curso de Pedagogia de
Terreiro ministrado e objeto de estudo deste mestrado, uma vez que também se trata de um
referencial teórico metodológico direcionado para um trabalho de formação docente.
Numa análise da obra de Petit (2015), observa-se que apesar de apresentar eixos
temáticos diferentes daqueles trabalhados no curso de Pedagogia de Terreiro (apresentados
neste memorial), os saberes trabalhados pela autora na formação de seus docentes são os
mesmos, pois são saberes ancestrais afro referenciados, como ela demonstra a seguir:
Esse respeito à ancestralidade reforça a senhoridade (respeito às mais velhas e aos
mais velhos) e promove um forte senso de comunidade. Por isso, as reverências se
fazem no Corpo-Dança Afroancestral nas diversas manifestações afro-brasileiras
ativando a memória coletiva [...] não importa a diversidade de linguagens, festas e
formas de danças brincantes negra, todas promovem relação de pertencimento
comunitário em torno do ato de reverenciar os antepassados (PETIT, 2015, p. 97).
Na ideia de fazer um curso filmado de formação de professores, em que dois objetivos-
fim fossem atingidos, foram eles: fazer com que esses docentes replicassem saberes de terreiro
dentro de espaços escolares e transformar o vídeo da formação em material didático para futuras
formações, abraço a obra de Paulo Freire (1996), Pedagogia da Autonomia.
38
O autor defende que “ensinar exige reflexão crítica sobre a prática”, esse foi o pontapé
inicial na primeira aula do curso, quando propus aos estudantes um pré-relato de experiência
em relação às suas vivências em sala de aula com a Lei 10.639/2003. Freire (1996) nos diz que
“ensinar exige reconhecimento e a assunção da identidade cultural”, fiz com que os docentes
do curso reconhecessem que o aluno negro deve ser o protagonista do espaço escolar e trazer à
tona a identidade ancestral; “Ensinar exige consciência de inacabamento”, é ter a consciência
de que apresentei uma proposta epistemológica em aberto, inacabada, um caminho que outros
possam seguir e abrir outras trincheiras, podendo enxergar outras possibilidades de diálogo.
E, por fim, “ensinar exige a convicção de que a mudança é possível”, por isso, acredito
na intervenção na realidade escolar, na transformação por meio da multiplicação de saberes de
terreiros e na decolonização do currículo escolar (Freire, 1996). Aponto caminhos para que Exu
interceda por todos aqueles que estão em pesquisa para que possam promover ações neste
sentido e tenham êxito.
A (s) Pedagogia (s) de Terreiro (s) são práticas sociais educativas, que fundamentam
valores e princípios dos conhecimentos aprendidos e ensinados dentro desses espaços, possuem
uma dinâmica interna própria, singular, diferenciando-se da pedagogia que é praticada em
espaços escolares.
Trago os saberes aprendidos e ensinados dentro dos Terreiros, por acreditar que
conhecimento se dá em diversos espaços formais e não formais, como é o caso, mas também
afirmo que estes saberes não devem ficar exclusivamente nestes espaços, estáticos, fechados,
limitados aos muros da roça, inertes, estanques. Eles devem transpor os limites geográficos e
territoriais desses espaços, atravessar as ruas e encruzilhadas e entrar nas escolas pela porta da
frente levados pelo Orixá Exu, que é quem dá o caminho, sendo este também o agente do
“caos”. Pois é no caos, o agente da mudança, onde teremos o processo de produção de
subjetividades já que a escola é um espaço, uma arena de luta e de disputa de conflitos
simbólicos.
Alexandre de Oliveira Fernandes e Emanoel Luís Roque Soares publicaram juntos o
capítulo “Asè: Enegrecendo as Filosofia nas Encruzilhadas de Exu”, dentro da coletânea
“Estudos Culturais: Diálogos entre Cultura e Educação”, um trabalho que nos traz o melhor
conceito de “Asè”, discussões sobre “pensamento preto” para marcar o processo de
empoderamento fazendo erigir a “filosofia negra”. Os autores argumentam que o tempo atual
exige uma nova epistemologia, uma pedagogia de terreiros, uma ecologia dos saberes exuriana
aberta, de movimentos circulares, que fecundam, retroalimentam, em todos os ambientes,
39
movimentos devires na formação de um sujeito cuja a identidade híbrida e transitória em
constante transformação seja a via de acesso ao empoderamento. Por isso devemos pensar o
terreiro para além da fixidez (2018, p.433).
Quão belo seria se a energia vital do Axé extrapolasse os muros do Terreiro, e pudesse
ser produzida e movimentada nos espaços escolares. Teríamos sujeitos culturalmente mais
empoderados imbuídos de atitude para lutar com potência/poder de realização e acontecimento,
por uma sociedade mais justa, que respeite as diferenças. Infelizmente pouco aproveitada, a
energia do Axé vai a segundo plano quando esse sujeito atravessa o portão para fora da roça,
atravessa as encruzas e se depara com a porta da escola.
A escola pratica o racismo institucional quando toma uma postura reducionista em
relação aos seus alunos negros quando barra/rejeita valores, costumes que esses alunos trazem
em sua bagagem cultural, subjetividades estas aprendidas com seus mais velhos, sendo adeptos
de religiões afro-brasileiras ou não, práticas que ficam barradas “para fora do portão”.
O racismo institucionalizado, a pedagogia comercial e hegemônica tem essa capacidade
de não respeitar as identidades e as diferenças, a prova disso é a não efetivação satisfatória da
Lei 10.639/2003. Racismo, fanatismo, intolerância religiosa, somados transformam-se em
Racismo Religioso praticado nas escolas de todo país contra os alunos negros, num regime de
verdade, que os desqualifica, os humilha, os exclui, num padrão de normatização e
performatividade que absurdamente considera “normal” destratar um menino negro de
periferia. Ora, não deveria a escola acolher esse aluno negro?
Trata-se de trabalhar com as diferenças, dinâmica e movimento, próprios da rica
pluricultura afro-referenciada desses adeptos, valorização e sentimento de pertença de suas
identidades. Escola e Terreiro precisam dialogar, as Pedagogia (s) de Terreiro (s) Exuriana (s)
precisam adentrar os portões da escola, pedagogia (s) múltiplas, mostrar o que elas têm a ensinar
ao povo brasileiro, Exu precisa entrar.
Defendo que Exu seja o patrono da Educação, e que tem uma forma peculiar de ensinar
através da inversão, uma educação às avessas num movimento espiralado, provocativo,
transgressor.
Por que uma educação às avessas baseada no Movimento Espiralado de Exu? Para
explicar uma educação que anda no sentido invertido e ancorado por este orixá, é necessário
frisar que é primeiramente no caos que o orixá brincalhão e provocativo gosta de atuar para
fazer com que a ordem natural das coisas faça com que a harmonia se reestabeleça e todo o
entorno se ressignifique.
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Proponho o desafio do movimento inverso: que os saberes ancestrais aprendidos-
ensinados dentro dos Terreiros possam atravessar as encruzilhadas e, levados por Exu, possam
entrar nos espaços escolares, provocando uma transformação epistêmica curricular, decolonial
dos saberes. Este desafio de inversão se dá por conta da atual estrutura curricular que não tem
condições de enfrentar o problema do racismo estrutural, mesmo com a existência da Lei
10.639/2003.
Alexandre Fernandes (2018, p. 6), em seu artigo “Espirais da linguagem de Exu: por
uma filosofia òkòtó”, discute sobre narrativas divergentes acerca da filosofia da linguagem e
apresenta a filosofia exuriana como a mais distante possível da literatura dos colonizadores.
Neste texto o autor diz que “conversar é dar voltas no pensamento”, que não é fixo, inerte, pois
envolve movimento, que “é espiralado, a rodopiar e disseminar sentidos”. O autor ainda
questiona: “Pode uma filosofia exuriana na Academia? Tem lugar na Academia uma filosofia
Afrodiaspórica ou o espaço está constantemente tomado pelo pela servidão euro-estadunense?”.
Um pensamento que traz o movimento espiralado, como o rodopiar de Exu, sem início
nem fim, é antes de mais nada um pensamento negro, transgressor e decolonial que rompe com
as regras de “todo o sentido ocidental e religioso colocado sobre as energias negras
(FERNANDES, 2018, p. 8). O autor descreve a filosofia òkòtó e o pensamento decolonial:
Deus nagô, conhecido como Odara, o bondoso, tem como um de seus signos, o Òkòtó,
um pião que apoiado na ponta do cone rola em espiral até se converter numa
circunferência aberta para o infinito [...] Em uma palavra – que nunca é apenas única
senão rastros e borraduras (im) possíveis – Exu é “palavra” que comunica e posterga
a morte, porque permite à narrativa o relato do relato, articulando a vida. Símbolo de
um processo de crescimento, Exu conduz o pensamento à vertigem, marcando no
discurso da metafísica os limites de sua conceituação (FERNANDES,2018, p. 9).
Assim como Fernandes (2018) convoca a Exu no auxílio e acolhimento infinito de um
pensamento “sem margens”, um “pensamento-risco”; também convoco a Exu a compartilhar
seu movimento e pensamento espiralado “de resistência”, de “coletividade”, de “diálogo”. No
sentido de propor possíveis rupturas na construção e discussão de saberes que rompam com as
relações de poder já postas.
3.3. Exu leva aos homens o oráculo de Ifá
Em épocas remotas os deuses passaram fome.
Às vezes, por longos períodos,
Eles não recebiam bastante comida
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De seus filhos que viviam na Terra.
Os deuses cada vez mais se indispunham uns com os outros
E lutavam entre si guerras assombrosas.
Os descendentes dos deuses não pensavam mais neles
E os deuses se perguntavam o que poderiam fazer.
Como ser novamente alimentados pelos homens?
Os homens não faziam mais oferendas e os deuses tinham fome.
Sem a proteção dos deuses, a desgraça tinha se abatido sobre a Terra
E os homens viviam doentes, pobres, infelizes.
Um dia Exu pegou a estrada e foi em busca de solução.
Exu foi até Iemanjá em busca de algo
Que pudesse recuperar a boa vontade dos homens.
Iemanjá disse:
“Nada conseguirás.
Xapanã já tentou afligir os homens com doenças, mas eles vieram lhe oferecer sacrifícios”.
“Exu matará todos os homens,
Mas eles não lhe darão o que comer.
Xangô já lançou muitos raios e já matou muitos homens,
Mas eles nem se preocupam com ele.
Então é melhor que procures solução em outra direção.
O homem não tem medo de morrer.
Em vez de ameaçá-los com a morte,
Mostra a eles alguma coisa que seja tão boa
Que eles sintam vontade de tê-la.
E que, para tanto, desejem continuar vivos”.
Exu retomou o seu caminho e foi procurar Orungã.
Orungã lhe disse:
“Eu sei por que vieste.
Os dezesseis deuses têm fome.
É preciso dar aos homens
Alguma coisa que eles gostem,
Alguma coisa que os satisfaça.
Eu conheço algo que pode fazer isso.
É uma grande coisa que é feita de dezesseis caroços de dendê.
Arranja os cocos da palmeira e entenda seu significado.
Assim poderás reconquistar os homens”.
Exu foi ao local onde havia palmeiras
E conseguiu ganhar dos macacos dezesseis cocos.
Exu pensou e pensou, mas não atinava
No que fazer com eles.
Os macacos então lhe disseram:
“Exu, não sabes o que fazer
Com os dezesseis cocos de palmeira?
Vai andando pelo mundo
E em cada lugar pergunta
O que significam esses cocos de palmeira.
Deves ir a dezesseis lugares para saber o que significam
Esses cocos de palmeira.
Em cada um desses lugares recolherás dezesseis odus.
Recolherás dezesseis histórias, dezesseis oráculos.
Cada história tem a sua sabedoria,
Conselhos que podem ajudar aos homens.
Vai juntando os odus
E ao final de um ano terás aprendido o suficiente.
Aprenderás dezesseis vezes dezesseis odus.
Então volta para onde vivem os deuses.
Ensina aos homens o que terás aprendido
E os homens irão cuidar de Exu de novo”.
Exu fez o que lhe foi dito e retornou ao Orum, o Céu dos orixás.
42
Exu mostrou aos deuses os odus que havia aprendido
E os deuses disseram:
“Isso é muito bom”.
Os deuses, então, ensinaram o novo saber
Aos seus descendentes, os homens.
Os homens então puderam saber todos os dias
Os desígnios dos deuses e os acontecimentos do porvir.
Quando jogavam os dezesseis cocos de dendê
E interpretavam o odu que eles indicavam,
Sabiam da grande quantidade de mal
Que havia no futuro.
Eles aprenderam a fazer sacrifícios aos orixás
Para afastar os males que os ameaçavam.
Eles recomeçaram a sacrificar animais
E a cozinhar suas carnes para os deuses.
Os orixás estavam satisfeitos e felizes.
Foi assim que Exu trouxe aos homens o Ifá.
(PRANDI, 2001, p. 78-80).
3.4. Interpretação do Itan
Partiu de Exu a iniciativa de encontrar a solução para o problema da fome e da guerra
entre os deuses, demostrando o caráter proativo de não se conformar e tampouco manter uma
postura inerte diante de situações difíceis, pelo contrário, aflora um comportamento inquieto e
transgressor para combater aos perigos.
Exu parte para o diálogo quando procura Yemanjá em busca de respostas e percebe que
não é punindo aos homens que irá conseguir atingir seu objetivo e, sim, fazer com que estes
voltem a agradar e alimentar aos deuses. A punição mais severa que seria a morte não os assusta
mais. O caminho para Exu alcançar o que queria seria inverso, por meio de estímulos, para
incentivar os homens através de algo que eles gostassem.
Exu é teimoso, sábio e bom ouvinte, procurou outros caminhos, se manteve aberto ao
diálogo através da oralidade e, em face disso, adquiriu as informações por meio de Orungã e os
macacos, de tudo que precisava saber sobre os segredos dos dezesseis cocos da palmeira do
dendê, que se transformariam em 256 histórias/oráculos de sabedoria que ajudariam aos deuses
e aos homens.
Sendo o próprio movimento e dono dos caminhos, Exu descortinou o segredo dos 256
odus, adquiriu novos saberes e os passou adiante para que pudessem ser multiplicados entre
homens e deuses, estabelecendo, assim, a harmonia no processo de adoração entre o Orun
(terra) e o Aiyê (Céu), por meio dos oráculos e oferendas a serem ofertadas para afastar todo
mal, toda fome e toda guerra.
43
Ao adquirir o conhecimento dos 256 odus, Exu torna-se grande detentor do saber. Ao
transmitir esse saber a outros, pode-se dizer que é patrono da Educação. Sendo Ele o
responsável pela efetiva comunicação entre os homens e os deuses, ninguém melhor que este
orixá para fazer com que o conhecimento circule, se movimente, se propague e se multiplique,
por intermédio de seus pares, sendo replicado pela oralidade e envolvimento coletivo.
Replicar conhecimento: Assim defendo que Pedagogia de Terreiro Exuriana possa ser
multiplicada pelos estudantes participantes do curso e por aqueles a quem eles replicarem os
saberes. Que, por meio da oralidade e da construção do fazer coletivo, a exemplo de Exu, deuses
e homens, que os educadores também possam modificar a realidade escolar decolonizando os
saberes, dando espaço para as diferenças e para o respeito.
3.5. O Curso Produzido
Como artefato educacional propus um curso de extensão para a formação de professores
na UNEB. Meu objetivo era o de problematizar a Pedagogia de Terreiro como uma metodologia
possível de ensino e, por meio dela, decolonizar os saberes escolares, discutir o atual currículo
escolar. As discussões e relatos dos estudantes participantes deste curso foram filmados e o
material transformado em documentário para que, esse material didático possa servir para
apresentações em escolas e universidades, com vistas ao combate ao racismo religioso.
A ideia era que os professores participantes do curso se tornassem multiplicadores desta
metodologia de ensino e replicassem a valorização desses saberes dentro dos espaços escolares,
decolonizando e enegrecendo o currículo, atravessado pelo axé. A metodologia é pautada pela
tríade:
- Ancestralidade/memoria/pertencimento;
- Oralidade/história oral/mitos;
- Coletividade/resistência/decolonização dos saberes.
A proposta era fugir dos muros da Universidade, para isso fiz parceria com o Centro
Cultural Viola de Bolso, utilizando este espaço para as aulas e discussões. Tive grande apoio
neste espaço, um grupo engajado com a temática me deu o suporte que eu precisei. Alguns
imprevistos de ordem audiovisual ocorreram, mas rapidamente foram sanados por uma equipe
que me auxiliou no exercício deste trabalho.
44
Fora este espaço, a ideia era fazer uma oficina de culinária no laboratório de alimentos
e bebidas da UNEB e visitas a barracões de candomblé da localidade de Eunápolis, onde estava
sendo ministrado o curso. A parceria com a UNEB se deu por meio do Núcleo de Pesquisa e
Extensão – NUPE, através de discussões quanto à elaboração do cartaz de divulgação do curso,
bem como a emissão dos certificados.
Infelizmente, não obtive o apoio que gostaria do Núcleo de Estudos Afro Brasileiros -
NEABI/UNEB, o qual solicitei que fizesse a ponte de contato com as secretarias de educação,
estadual e municipal, para a divulgação do curso. Era interessante o envio de um e-mail
institucional para as escolas, demonstrando uma parceria entre SEDU e UNEB para divulgação
do curso junto aos professores. Os representantes do NEABI se esquivaram na participação e
envolvimento com o curso, limitando-se a passar o telefone da secretária de educação que,
obviamente, não me retornou. Senti o peso da intolerância religiosa a partir daquele momento,
pois não queriam envolvimento nas discussões que tinham a ver com as questões de terreiro.
Apesar de rodar as escolas com os cartazes de divulgação, o fato de diretores e
professores não terem recebido um e-mail de parceria institucional pesou: apenas 10 estudantes
foram efetivamente inscritos, desses estudantes apenas 05 concluíram o curso. Ficou evidente
o quanto o município de Eunápolis é marcado por uma cultura racista e intolerante. Alguns
estudantes no primeiro dia de encontro desistiram ao ouvir a proposta do curso o que comprova
que o preconceito enraizado falou mais alto.
Outro ponto negativo foi a falta de apoio no uso do laboratório de alimentos e bebidas.
Em outro momento, produzi um evento na Universidade e precisei usá-lo, mas observei um
vazamento de gás. Com bastante antecedência da data agendada da Oficina de Culinária, avisei,
pelo e-mail institucional, sobre o problema e não obtive um retorno positivo, ficando, assim,
impedida de usar as instalações. Remarquei a aula, desta vez no Viola de Bolso, sob forma de
degustação, juntamente com palestra ao invés da oficina de culinária, mas não dei sorte. Desta
vez o palestrante teve problemas com uma pessoa doente na família e tive que cancelar a aula.
A oficina de vestimenta se realizou no espaço Viola de Bolso com os colaboradores,
Danilo D’Oxóssi e André D’LogunEdé, ambos historiadores. Estes também seriam os
responsáveis pela oficina sobre a importância das Folhas no Candomblé, com uma visita ao
terreiro de Pai Danilo, que é um grande conhecedor de folhas. A proposta surgiu mediante as
sugestões da banca no momento de minha qualificação, em substituição à discussão do filme
“Jardim das Folhas Sagradas”, no qual os professores apresentaram críticas construtivas a
respeito do uso ou não do filme em questão. Infelizmente, imprevistos acontecem e, na data
45
prevista para a visita ao barracão, a maioria dos estudantes e o cinegrafista não podiam
comparecer e o encontro teve que ser desmarcado.
A Oficina de Dança dos Orixás foi planejada para acontecer no Espaço Viola de Bolso.
Para minha alegria, o Ilê Asé Silé Iná Tuntun Omo Torrundê, um dos terreiros a serem visitados
pelos estudantes do curso, também iria promover a mesma atividade com a própria
colaboradora, Lúcia Helena, conhecida como Ojuomim, ou Nena D’Oxum. Conversei com o
Doté Balegunan, babalorixá do terreiro, e, em comum acordo, transferimos a oficina para seu
espaço. Aproveitei a visita ao seu terreiro juntamente com as aulas de dança, divididos em dois
dias.
Outra visita muito proveitosa foi ao Terreiro de Mãe Luziene D’LogunEdé, que nos
recebeu com muito carinho, nos deu seu relato de vida e uma aula sobre saberes, a estrutura
física de terreiro, folhas e sobre resistência. É válido ressaltar que seu terreiro foi o primeiro a
chegar na cidade. A proposta com mãe Luziene era de duas visitas, sendo que a segunda seria
no evento de caruru e candomblé que acontece anualmente e é muito conhecido na cidade.
Infelizmente, com a notícia trágica de falecimento de um familiar, a yalorixá entrou de luto dias
antes da festa acontecer e tivemos que desmarcar a ida ao barracão.
Uma vez apresentados todos os fatos que saíram do controle devido aos imprevistos,
vou objetivamente apresentar o plano de aula, as atividades desenvolvidas, as discussões feitas
com os estudantes do curso e o amparo teórico dessas discussões.
3.6. Sobre o Plano de Curso
Na 1ª aula, que aconteceu no dia 01/08/2019, fiz a apresentação do curso e plano de
trabalho para todos os participantes e expliquei sobre a autorização do uso de imagem devido
às filmagens. Dadas as devidas explicações de como seria a metodologia do curso e o objetivo
do mesmo, apresentei a Lei 10.639/2003 e perguntei aos estudantes qual a experiência deles na
aplicação da história afro-brasileira e africana no espaço escolar. Esse, então, foi o ponto de
partida para que relatassem suas experiências.
Na 2ª aula, no dia 08/08/2019, trabalhei a temática Pedagogia de Terreiro, por meio da
leitura, discussão e síntese dos seguintes textos: Stela Caputo, “Educação nos Terreiros” (2012);
Amurabi Oliveira e Kleverton Almirante, “Aprendendo com o Axé: processos educativos no
terreiro e o que as crianças pensam sobre ele e a escola” (2014); Jorge Maurício, “Candomblé
46
Bem Explicado” (2009). Nesse encontro, relatei minha experiência de iniciação, minha
construção dos saberes e como a Pedagogia de Candomblé tem como base estrutural a tríade já
relatada:
Uma vez feita a roda de conversa sobre hierarquia, sobre o aprender pela oralidade, pela
coletividade e pelos mitos e sobre o movimento de resistência que os adeptos do candomblé
enfrentam em espaços escolares, os estudantes se posicionaram:
Sabemos que a religião do candomblé, sempre foi à religião dos pretos, das minorias
e de todos aqueles que desejam fazer parte de suas manifestações. Os terreiros de
candomblé são acolhedores e estão sempre de portas abertas, no entanto, sabemos que
o candomblé não é aceito em todos os espaços sociais. É possível observar como nos
espaços escolares, que se fundamentam como espaços educativos, são palcos de
insultos diários contra os praticantes [...] os atos de preconceito ocorridos nas escolas
podem atingir esses religiosos, principalmente quando os insultos são contra as
crianças pertencentes à religião [...]. O curso ‘‘Pedagogia da Ancestralidade e
Terreiro’’, é uma formação que pode contribuir para o processo de aprendizagem do
professor e consequentemente do aluno. De modo igual, a formação pode preparar-
nos para o acolhimento de jovens e crianças, praticantes do candomblé, que sofrem
algum tipo de ataque (JÉSSICA SOARES, participante do curso, 2019).
Claudia Maria de Jesus Castro (2017), em sua dissertação de mestrado “Jovens e
tambores: preconceitos da religião afro-brasileira, pela Pontifícia Universidade Católica de
Goiás - PUC, discute sobre essa relação de jovens de terreiro no espaço escolar. A autora
argumenta que a escola, dita “laica”, é um espaço de disputas que abriga uma pluralidade de
culturas e credos religiosos, mas, ao falar em religião, ocorrem tensões e embates que geram
conflitos e desigualdades.
Castro (2017, p.66) questiona que, no interior do ambiente escolar existem diversos
agentes que pleiteiam apropriar-se da construção dos saberes, a exemplo dos neopentecostais.
E, quando os jovens de terreiro trazem consigo suas vivências e concepções de mundo, chocam
com a cultura legitimada pela escola que demonstra pouco ou nenhum interesse pelos saberes
desses jovens.
Ancestralidade
Memoria
Pertencimento
Oralidade
História oral
Mitos
Coletividade
Resistência
Decolonização dos
saberes
47
O sistema educacional brasileiro é historicamente criado e voltado para o ensino nos
moldes tradicionais hegemônicos que nos foram impostos séculos a fio [...]. A
necessidade de se reconhecer e incluir a pedagogia de terreiro nos espaços escolares
convencionais tem se tornado uma tarefa árdua e difícil, mas que precisa ser executada
para romper com as barreiras do preconceito e da discriminação não só religiosa, mas
também racial que perseguem as comunidades e terreiros de candomblé há décadas
causando traumas, medos e diversos conflitos (FLÁVIO PRATES, participante do
curso, 2019).
A relação de conflito entre aluno e professor se apresenta a partir do momento em que
os saberes de terreiro adentram o espaço escolar com suas ritualísticas próprias e transforma-se
num embate enfrentando o muro do preconceito sedimentado sob bases racistas, principalmente
de intolerância ao Candomblé.
Os terreiros de candomblé figuram como espaços ou redes educativas, através das
quais as crianças aprendem de forma natural no seu cotidiano. A aprendizagem ocorre
com a observação dos movimentos, brincadeiras, rituais, linguagens, enfim de todas
as manifestações presentes no ambiente. [...] O respeito, a ancestralidade e a
hierarquia pautada na transmissão/ aquisição de saberes, estabelecem fortes laços de
convivência e respeito entre os adeptos do candomblé. É fundamental perceber que os
espaços ou redes de aprendizagem presentes nos terreiros promovem uma construção
da identidade cultural das crianças (KÉZIA MERLO, participante do curso, 2019).
A escola sinaliza dificuldades em lidar com as diferenças quando tenta silenciar os
saberes ancestrais desses jovens e estes, ao sentirem na pele a força do preconceito, camuflam-
se, porque, invisibilizados, não sofrem com os atos de violência simbólica. Esses jovens tentam
sufocar seus saberes identitários, sua história, sua memória e autoestima para se sentirem
aceitos socialmente nesse ambiente.
O ambiente escolar formal não está preparado para lidar com as múltiplas identidades
que circulam nos seus corredores, é um local gerador de desigualdade e discriminação, sua
organização curricular não está de acordo com a realidade dos seus estudantes, por isso torna-
se necessário conhecer e reconhecer tais sujeitos que trazem para o ambiente escolar suas
identidades, culturas, classes sociais, etnias e tantas outras questões que muitas das vezes
passam despercebidas.
Na 3ª aula, que aconteceu no dia 15/08/2019, foi ministrada a Oficina Mitologia e Itan:
a importância dos mitos para os adeptos das religiões afro-brasileiras. Quais aprendizados e
saberes os mitos nos trazem? O livro trabalhado neste encontro foi o de Reginaldo Prandi,
“Mitologia dos Orixás” (2001). Já os autores, Daniela Barreto de Souza e Adílio Júnior de
Souza (2018, p. 110), em “Itan: entre o mito e a lenda”, conceituam mito como sendo “uma
narração que protagoniza personagens sobrenaturais e heroicos, que procuram explicar a
48
origem do mundo, os fenômenos naturais ou determinados aspectos religiosos vinculados a uma
comunidade ou civilização”.
O intuito da oficina, por meio do livro de Prandi, era trazer as narrativas/mitos dos feitos
dos orixás para a vivência pessoal dos estudantes e, a partir dessa vivência, fazermos as
discussões. A oficina de Mitologia dos Orixás aconteceu no Viola de Bolso e cada aluno fez a
leitura de um itan de um orixá diferente, uma leitura filmada, interpretada.
A palavra Itan é uma palavra de modo invariável mesmo quando for referida no plural.
O Itan é o conjunto de mitos e lendas do panteão africano que narra as histórias
envolvendo canções, danças, rituais e ensinamentos. Para os Yorubás é considerado
como verdade absoluta sobre a criação do mundo, possuindo grande respeito por ter
sido repassado oralmente como ensinamentos através dos mais velhos (SOUZA;
SOUZA, 2018, p. 102).
Após a leitura do itan, eu aprofundava a discussão sobre aquele orixá escolhido pelo
aluno com fotos, vídeos, histórias, experiências, por meio de uma roda de conversa. A respeito
da vivência desta oficina a aluna Kezia apresenta seu relato:
A oficina valorizou a mitologia dos orixás como uma ferramenta de informação e para
suprir um espaço que é pouco explorado nas nossas práticas em sala de aula. Através
da escuta desses relatos podemos proporcionar as crianças e jovens um melhor
entendimento de suas individualidades e também uma reflexão da sua identidade
cultural enquanto brasileiros. A identificação com algumas características de força,
coragem, honra e justiça, nos remetem a uma profunda reflexão sobre nossas
qualidades e fraquezas enquanto seres humanos. A aproximação com saberes que nos
ligam ao nosso passado cultural é mais significante do que a abordagem sobre
mitologia grega e romana. A oficina cumpriu o papel de incomodar sobre minhas
práticas, procurando levar a uma reformulação das temáticas buscando uma nova
abordagem para aprendizagem desses temas no espaço escolar (KÉZIA MERLO,
participante do curso, 2019).
É um assunto amplo, com gosto de quero mais, que não se esgotou em uma única aula,
obviamente. Um recorte sobre mitologia dos orixás poderia ser feito sob outro viés como, por
exemplo, a proposta de outros cursos sobre mitos e sua importância, o que daria 16 minicursos
baseados no xirê22, como proposta metodológica para se trabalhar a Pedagogia de Terreiro, mas
este assunto é uma proposta para meu doutorado.
Na 4ª aula, que aconteceu no dia 29/09/2019, foi ministrada a Oficina de Vestimenta,
pelo babalorixá Danilo D’Oxóssi e pelo egbomi André D’ LogunEdé, ambos historiadores com
22 Xirê: é uma sequência de cantigas para todos os orixás cultuados na casa de candomblé, começando por Exu e
indo até Oxalá.
49
estudos na área e conhecedores da arte do richelieu23. Iniciei uma roda de conversa com a
apresentação de um artigo meu intitulado “A vestimenta do Candomblé: prática de resistência
e afirmação cultural? ”, no qual defendo que o vestir dos adeptos é uma forma de afirmação,
resistência e ressignificação cultural. Em seguida, os palestrantes trazem uma série de estudos
e imagens sobre vestimentas e indumentárias com a apresentação de diversas roupas que os
estudantes puderam ter uma percepção visual incrível sobre textura, tamanho, cor, a que tempo
se remete, questão hierárquica e de gênero quanto ao seu uso, o que deu margem para grandes
discussões e isto enriqueceu muito a aula.
A respeito da oficina de vestimenta, solicitei aos estudantes que produzissem sínteses
sobre essa vivência. Queria saber deles quais sensações essa oficina provocara e quais reflexões
poderiam fazer a partir do que aprenderam.
A cultura sempre esteve presente como forma de organização social e é por meio dela
que os costumes, tradições, festas, danças, ritos, vestimentas codificam grupos em
seus diferentes tempos e espaços. Essa diversidade cultural fornece um arsenal amplo
para fomentar debates que ajudem a termos melhor compreensão de como os grupos
se organizam e através de suas crenças se manifestam. Dessa maneira e
particularmente o candomblé, podemos destacar como a simbologia e as vestimentas
também são importantes para compreender as ações de suas divindades. Todo esse
conjunto formaliza aspectos cruciais para a religião, explicando assim como ela
canaliza, através das roupas e acessórios, toda ancestralidade mostrando a força,
beleza e poder (ANDREIA ENCARNAÇÃO, participante do curso, 2019).
É a mitologia que dá sentido e significação aos trajes e rituais através dos povos
africanos trazidos ao Brasil e as transformações culturais sofridas no decorrer do tempo. A partir
dos mitos identifica-se a importância da ornamentação e o cuidado na preparação de adereços
e trajes para agradar ao orixá. A busca pela beleza é notável na elaboração das vestimentas e
indumentárias, mesmo daqueles que não possuem boas condições financeiras para tal para
oferecer o que há de melhor para o sagrado e demonstrar sua devoção.
Penso que a roupa dentro de uma comunidade de candomblé é uma maneira das
pessoas compartilharem sua cultura, identidade e funciona como um meio de
integração entre os membros do grupo, fortalecendo assim os laços entre as pessoas
que ali convivem [...] a vestimenta é um dos elementos fundamentais para se entender
e o que é um terreiro de candomblé. Carrega em si elementos simbólicos que revela a
tradição, a cultura e a identidade dos povos africanos que foram escravizados. Traz as
representações de uma cultura que luta para se estabelecer, lutando todos os dias
contra a segregação, a intolerância religiosa, política e social. Cada detalhe que é
23 Richilieu: tipo de bordado de origem francesa em que predominam desenhos florais como tema decorativo, é
aplicado sobre o tecido branco, e também perfila as bordas de cada peça que compõe o traje da baiana do
candomblé (ARGOLO, 2019, p. 45).
50
apresentado em uma peça de roupa conta um pouco da história do povo negro que até
hoje precisa se impor na luta por respeito e pela sua existência (SANDRO SOUZA,
participante do curso, 2019).
Anderson Almeida, Arlindo Cardoso e Jefferson Santos (2016, p. 31) em “Os trajes dos
orixás: design, plasticidade e símbolos do Candomblé”, pela Universidade Federal de Alagoas,
defendem que as vestimentas “dos adeptos e principalmente dos Orixás é o símbolo
característico e revelador da crença e dos aspectos mais importantes que revelam gostos,
temperamentos e regras individuais dos deuses para que eles possam realizar sua visita aos
humanos”.
Na 5ª aula, que aconteceu no dia 31/08/2019, fizemos a visita ao barracão da yalorixá
Luziene de LogunEdé, que fica no Bairro Juca Rosa, Eunápolis. Fomos muito bem recebidos e
muitos ali nunca tinham pisado dentro de um terreiro de candomblé. Feitos os devidos
cumprimentos, mãe Luziene nos encaminhou para o portão principal e ali nos mostrou os
assentamentos de Exu, Ogum, Kitempu e Oxóssi. Explicou por que Exu é guardião da porta de
todos os terreiros de candomblé, assim como explicou o que são os assentamentos24 e a sua
importância.
Em seguida, passamos pelo quarto de Omolu, um espaço pequeno de 2 metros
quadrados fechados por uma grade e cadeado, onde dentro ficam a imagem, assentamentos do
orixá e velas acesas, ali ela explicou a grande importância do Orixá e sua devoção. Em
homenagem por graças recebidas, ela oferta uma mesa farta de comidas e rezas anualmente, no
mês de maio.
O próximo quarto que foi visitado foi do assentamento de Oxóssi de pai Dedé, marido
de mãe Luziene e ogan25 da casa. Um quarto com tamanho similar, geminado ao quarto anterior,
com imagem do orixá, assentamento e objetos da entidade de pai Boiadeiro, como sela,
imagens, berrante, faca, chapéu e laço.
Adentramos o barracão e mãe Luziene explicou a importância dos atabaques, da
cumeeira, do sabaji26, do quarto de santo e do runkó27, que, inclusive, estava com yawô
recolhido. Não teve pudor em abrir o quarto de santo e deixou mostrar os assentamentos dos
24 Assentamentos: onde são colocados apetrechos e fetiches inerente a feitura de santo. Podendo ser de porcelana,
barro ou madeira. 25 Ogan: cargo masculino escolhido pelo orixá, permanece lúcido durante todas as funções mas provoca o transe
nos rodantes. Responsável por tocar e cantar. Fundamentais nos rituais de sacrifício. 26 Sabají: Sala intermediária que fica entre o barracão e o runkó, para onde são conduzidos os rodantes em transe
“virados no orixá” a serem vestidos, para que possam dançar em dias de celebração. 27 Runkó: quarto onde fica recolhido o futuro yawô para sua iniciação.
51
orixás de seus filhos de santo, “não tenho problema em mostrar não, viu minha cumadi? Por
que tá tudo tapado com os panos” (Mãe Luziene D’LogunEdé, 2019).
Atravessamos o barracão e fomos para os fundos da casa, uma área central, arborizada,
contendo no meio o assentamento de Ossaim. Ali ela fala da importância das folhas. Mostrou
muitas, explicou para que serviam, algumas ela mesma plantou desde sua chegada, há 43 anos.
Rodamos diversos espaços da roça e ela continuou explicando os saberes de cada folha, a que
orixá pertence, para que serve: para acalmar, para apaziguar, para saúde, para atrair emprego,
para o amor, para atrair clientes, para cozinhar, para defumar a casa e até mesmo qual planta
não é boa para banho, dependendo do orixá de cabeça da pessoa e ainda disse que “tem que ter
folha debaixo da unha meu filho! Se não souber mexer com folha, não faz candomblé não! ”
(Mãe Luziene D’LogunEdé, 2019). A yalorixá, ao falar do orixá das folhas, nos lembra o itan
“Ossaim dá uma folha para cada orixá”:
Ossaim, filho de Nanã e irmão de Oxumarê, Euá e Obaluaê,
Era o senhor das folhas, da ciência e das ervas,
O orixá que conhece o segredo da cura e o mistério da vida.
Todos os orixás recorriam a Ossaim
Para curar qualquer moléstia, qualquer mal do corpo.
Todos dependiam de Ossaim na luta contra a doença.
Todos iam à casa de Ossaim oferecer seus sacrifícios.
Em troca Ossaim lhes dava preparados mágicos:
Banhos, chás, infusões, pomadas, abô, beberagens.
Curava as dores, as feridas, os sangramentos;
As disenterias, os inchaços e fraturas;
Curava as pestes, febres, órgãos corrompidos;
Limpava a pele purulenta e o sangue pisado;
Livrava o corpo de todos os males.
Um dia Xangô, que era o deus da justiça,
Julgou que todos os orixás deveriam compartilhar o poder de Ossaim,
Conhecendo o segredo das ervas e o dom da cura.
Xangô sentenciou
Que Ossaim dividisse suas folhas com outros orixás.
Mas Ossaim negou-se a dividir suas folhas com os outros orixás.
Xangô então ordenou
Que Iansã soltasse o vento e trouxesse ao seu palácio
Todas as folhas das matas de Ossaim
Para que fossem distribuídas aos orixás.
Iansã fez o que Xangô determinara.
Gerou um furacão que derrubou as folhas das plantas
E as arrastou pelo ar em direção ao palácio de Xangô.
Ossaim percebeu o que estava acontecendo e gritou:
“Euê uassá! ”.
“As folhas funcionam! ”
Ossaim ordenou às folhas que voltassem às suas matas
E as folhas obedeceram às ordens de Ossaim.
Quase todas as folhas retornaram para Ossaim.
As que já estavam em poder de Xangô perderam o axé,
Perderam o poder de cura.
52
O orixá-rei, que era um orixá justo,
Admitiu a vitória de Ossaim.
Entendeu que o poder das folhas devia ser exclusivo de Ossaim
E que assim devia permanecer através dos séculos.
Ossaim, contudo, deu uma folha para cada orixá,
Deu uma euê para cada um deles.
Cada folha com seus axés e seus ofós,
Que são as cantigas de encantamento,
Sem as quais as folhas não funcionam.
Ossaim distribuiu as folhas aos orixás
Para que eles não mais os invejassem.
Eles também podiam realizar proezas com as ervas,
Mas os segredos mais profundos ele guardou para si.
Ossaim não conta seus segredos para ninguém,
Ossaim nem mesmo fala.
Fala por ele seu criado Aroni.
Os orixás ficaram gratos a Ossaim
E sempre o reverenciam quando usam as folhas.28
Ao fundo, mãe Luziene abriu uma outra porta de madeira com cadeado e grande
corrente, era o quarto de Exu. Um pouco maior que os outros quartos que já vira, em média 4
metros quadrados, mais escuro e abarrotado de imagens, velas, garrafas, taças, presentes e,
principalmente, assentamentos do orixá e os assentamentos de catiços e pombagiras.
O sino da igrejinha faz belem blem blom
Deu meia noite o galo já cantou
Seu Tranca Rua que é dono da Gira
O corre gira que Ogum mandou
(Domínio Público)
O conceito de Exu catiço se deu com o surgimento da Umbanda que do candomblé só
conservou o panteão dos orixás. Baseada pelo conceito cristão de caridade de espíritos que
ajudam os humanos em seus problemas, quais sejam, caboclos, pretos velhos e outros mortais
desencarnados que praticam essas ações de benevolência fazem com que esses espíritos entrem
num processo de evolução.
Todas as entidades trabalham para o bem, trazendo a relação de bem/mau envolvendo
também o conceito de pecado que, segundo Prandi (2001, p. 53), “ficou aprisionada numa
proposta umbandista de religião que desejava ser moderna, europeia, branca e ética, apesar das
raízes negras que, aliás, procurou apagar tanto quanto possível”. Com sua postura cristã, criou
dissimuladamente um universo paralelo rejeitado, de práticas do mal, demarcando fronteiras,
28 Prandi, 2001, p. 154.
53
chamado Quimbanda. E nele colocou os espíritos do mau desencarnados: a Quimbanda passou
a ser domínio de Exu catiço.
Exu, que é fundamental no atendimento dos clientes e devotos, portanto peça básica
da dinâmica religiosa, assumiu na umbanda o aspecto de humano desencarnado que é
a marca dos caboclos e demais entidades da direita. Diabo sim, mas diabo que foi de
carne e osso, espírito, guia [...] agora no plural, foram homens de questionável
conduta: assaltantes, assassinos, ladrões, contrabandistas, traficantes, vagabundos,
malandros, aproveitadores, proxenetas, bandidos de toda laia, homens do diabo, por
certo, gente ruim, figuras do mal (PRANDI, 2001. p. 54).
O mesmo se deu quanto aos espíritos desencarnados de mulheres, originando, assim, as
pombagiras, que Prandi (2001, p. 54) conceituou como “mulheres perdidas, por certo:
prostitutas, cortesãs, companheiras bandidas dos bandidos amantes, alcoviteiras e cafetinas,
jogadoras de cassino e artistas de cabaré, atrizes de vida fácil, mulheres dissolutas, criaturas
sem família e sem honra”.
Eu caminhava pela alta madrugada,
Quando no clarão da lua eu ouvi uma gargalhada
Diga morena formosa, me diga quem você é
Ela é a dona da rosa, é pombagira de fé
Cigana diga seu nome, me mostre quem você é
Você é uma rosa encantada, só não conhece quem não quer
(Domínio Público)
Mãe Luziene fala da importância de agradar primeiramente a Exu, dizendo que Ele é o
começo de tudo. O “orixá que come primeiro dentro do candomblé é Exu. E porque ele come
primeiro? É pra poder a abrir as estradas, o que tiver de ruim ele vai afastando, pros fluidos
melhores virem pra roça” (Mãe Luziene D’LogunEdé, 2019).
Egba rà bó mojuba rà (tenho fé e peço licença para louvá-lo em minha casa)
Egba kose (tenho fé, amém)
Egba rà bó mojuba rà (tenho fé e peço licença para louvá-lo em minha casa)
E mó dé ko e ko (nossa casa está limpa. Proteja nossa terra)
Egba rà bó mojuba rà (tenho fé e peço licença para louvá-lo em minha casa)
Egba rà um be be (minha fé me alimenta, peço, peço)
Tiriri lona (Exu que nos dá coisas valorosas no caminho)
Ògó rum gò (te louvamos com o tambor para que não se confunda)
Rum gò (o tambor é inconfundível)
Laaròyé (dê-nos compreensão)
(Domínio Público)
Sendo Exu a conexão entre os dois mundos, deve ser o primeiro então a receber os
sacrifícios votivos, já que o sacrifício é a forma que os humanos se dirigem aos orixás para
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firmar laços de amor e devoção. Para os iorubás, os homens habitam a Terra, o Aiyê, e os deuses
orixás, o Orum. Os homens agradam os orixás e, em troca dessas oferendas, os orixás protegem
aos seus descendentes. Essa é razão do sacrifício: alimentar a família e os ancestrais, promover
o sagrado, restituir e fortalecer o axé. As oferendas devem ser transportadas até os deuses e
quem tem este encargo de transportador é Exu, o deus iorubano. Para saber se os orixás estão
satisfeitos com oferendas é necessário que haja comunicação. E para que as mensagens sejam
recebidas é necessário que Exu propicie essa comunicação, portanto Exu é o orixá mensageiro
das orientações que os deuses enviam do Aiyê, sendo o porta voz entre os homens e os deuses.
Sempre que um orixá é interpelado, Exu também o é, pois a interpelação de todos se
faz através dele. É preciso que ele receba oferenda, sem a qual a comunicação não se
realiza. Por isso é costume dizer que Exu não trabalha sem pagamento, o que acabou
por imputar-lhe (PRANDI, 2010, p. 50).
Vanda Machado (2010), em artigo intitulado “Exu: senhor dos caminhos e das alegrias”,
argumenta que “Exu é o princípio, o meio e o fim”, ainda diz que o orixá “é o que faz comunicar
no incessante fluxo das vivências cotidianas entre o Orun e o Aiyê, o mundo espiritual e o
mundo natural”.
A autora é educadora, acadêmica e filha de santo da Comunidade de Terreiro Ilê Axé
Opo Afonjá e criadora do Projeto Político Pedagógico Irê Ayó na Escola Municipal Eugenia
Anna dos Santos (escola que falarei mais adiante) pergunta como acontece o aprendizado que
se transmite com canto, danças, rezas e gestos carregados de significados e sutilezas.
Machado (2010) defende a oralidade, princípio base de sustentação da Pedagogia de
Terreiro, pois que reúne inúmeras histórias míticas e memórias de vivências criadas para fixar
ensinamentos de uma educação iniciática que forma o sujeito para ações voltadas para o cuidado
com o outro, para o movimento coletivo. A autora acredita ainda num diálogo filosófico onde
Exu possa ser incluído, pois não crê que a compreensão de princípios da tradição e cultura afro-
brasileira se dê somente por legislação, pela aplicação das leis.
Se uma Lei se impõe para educar o afrodescendente na consideração pela sua cultura,
mais importante ainda é a urgência de criar-se uma linha de fuga que possa acolher
outra epistemologia, um outro contorno para um jeito de educar para ser no mundo,
sendo diferente. Que pedagogia nos daria um caminho? Seria essa uma filosofia
exuniana no seu vigor originante? Ou uma pedagogia que permite ao educador e
educando perceber o seu entorno como tessitura das suas contradições?
(MACHADO, 2010, p. 13).
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O que Vanda Machado (2010) trata como Filosofia Exuniana, eu dou o nome de
Pedagogia de Terreiro Exuriana, uma epistemologia decolonial, que tem como marca o caráter
transgressor de Exu, indo na contramão, fazendo todo caminho inverso do que está posto pelo
sistema educacional colonizador, branco, eurocêntrico vigente.
Na 6ª aula, que aconteceu no dia 05/09/2019, apresentei aos estudantes um dos textos
de minha qualificação “Um Olhar Sob a Música Exu nas Escolas: Uma Pedagogia de Terreiro
Exuriana”. Iniciei os trabalhos apresentando a música, interpretada por Elza Soares, para, em
seguida, esmiuçar a temática do texto. Utilizei os mesmos slides que apresentei da qualificação
e relatei a experiência que vivi com a banca. Procurei limpar a imagem negativa instituída a
Exu, usada para disseminar racismo e intolerância. Por meio do recorte da música, defendi que
é necessário afastar o Orixá do estereótipo demoníaco, ressaltando que Pedagogia Exuriana é
fundamental nas ações escolares, pois favorece o trabalho com a história e a memória ancestral
dos estudantes, contribuindo para o empoderamento de grupos marginalizados historicamente
e fomentando relações pedagógicas baseadas no respeito às diferenças. Uma vez que apresentei
meu ponto de vista, partimos para uma calorosa discussão na qual os estudantes puderam se
posicionar em suas sínteses:
A representação estereotipada e mal trabalhada nas escolas leva estudantes a
subjugarem e desqualificarem o Candomblé, Umbanda, Batuque, culto aos Egungun,
entre outras. Esse processo faz com que Exu não apenas possua sua representação
simbólica ao diabo, mas traz elementos cruciais para pensarmos como a Lei
10.639/2003 está sendo implementada em sala, se a mesma tem sido de fato
introduzida nos espaços escolares, como essas discussões estão sendo
problematizadas e se houve medidas para adequar o currículo escolar na formação dos
sujeitos (ANDREIA ENCARNAÇÃO, participante do curso, 2019).
O catolicismo, durante muito tempo, fortificou e demonizou outras religiões com a
relação bem/mal. Essa fantasia política e colonizadora fundamentou uma repressão rótuladora
baseada num conceito no qual o diabo se manifesta através de entidades pertencentes das
religiões afro-brasileiras. Esses ataques incentivam a intolerância, preconceito e o sofrimento
para os adeptos a religião.
A escola é um lugar de socialização, de troca de saberes e, principalmente, de formação,
além disso, um espaço de construções históricas. Nessa perspectiva, é fundamental desconstruir
ideias colonizadoras, etnocêntricas, os conceitos maldosos que destroem culturas e fortalecem
o ódio. Sendo assim, é inaceitável invisibilizar nas escolas e outras instituições saberes voltados
para a preservação e conhecimento das religiões africanas e afro-brasileiras.
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É preciso compreender que existe um processo histórico e africano que foram
incorporados à cultura brasileira desde que os escravizados forçadamente desembarcaram no
continente e aqui encontraram em sua religiosidade maneiras de preservar suas tradições,
conhecimentos, valores, memórias, uma identidade enraizada. Infelizmente, é nas escolas que
práticas de racismo formam sujeitos excluídos de sua história e memória ancestral, por isso a
imagem de Exu está relacionada às ações demoníacas, mas não podemos deixar passar que
essas afirmações racistas estão carregadas de conceitos de cor, ao negro e todas suas ações,
estão remetidas ao ruim, ao perigoso, desconfigurando todo um povo e suas narrativas.
Essa ideia equivocada tem atribuído à sociedade a não assumir a dívida impagável aos
africanos o direito de pertencimento e identidade. Ainda se tem muita resistência das escolas e
professores em abordar a temática e a inseri-la nos currículos. Tal consequência implica numa
sociedade alienada, racista e preconceituosa.
Sendo assim, conhecemos as escolas que fazem do pensamento livre dos alunos, um
questionamento preso, por isso, a escola oprime, porque impõe as crenças baseadas
no cristianismo. Em consequência as histórias vinculadas à ancestralidade dos
estudantes negros são negadas. Oprime na medida em que demoniza as religiões de
matriz africana. Oprime a partir dos assuntos baseados nos livros didáticos, que
trazem pouca ou nenhuma referência a respeito da luta e resistência do povo negro.
Contudo é possível desenvolver um trabalho referente à Pedagogia de Terreiro,
tratando-se de forma criativa e lúdica, a fim de apresentar e conceituar elementos
pertencentes à cultura afrodescendente, do mesmo modo, desmistificar negativamente
os orixás, muito embora os mitos sejam as importantes referências (JÉSSICA
SOARES, participante do curso, 2019).
É necessário que sejam utilizadas ferramentas como as músicas, poemas, literaturas e
tantos outros para desconstruir esses estereótipos. Levar a Pedagogia de Terreiro às escolas é
fundamental para que os sujeitos compreendam a existência desses elementos e suas formas de
contribuição na religião e na história desses povos, é perceber na essência a simbologia e a
representação que cada orixá, pulseiras, vestimentas, cantos, plantas e rituais enriquecem as
culturas e deixa claro que o Brasil não é um país hegemônico, mas com variadas e belas culturas.
Que se tenha consciência da importância desses saberes, que os mesmos precisam estar
presentes nos espaços escolares, fazendo parte do currículo oficial destas instituições. Para
tanto, o corpo docente necessita passar por uma formação (reciclagem epistêmica) para que se
possa cogitar a possibilidade de introduzir estes conhecimentos como parte oficial do currículo.
Pensar em uma pedagogia exuriana é se libertar do manto do etnocentrismo e se abrir
para outras possibilidades de aquisição de saberes e novas práticas de ensino. A escola
é um espaço de socialização de saberes que se encontra presa numa ancestralidade
57
epistêmica euro centrada [...] nesse sentido, ainda há de se travar inúmeras batalhas
para que consigamos desenvolver uma pedagogia que seja desenvolvida a partir da
valorização destes saberes (SANDRO SOUZA, participante do curso, 2019).
Pensar numa possibilidade de inserção de uma pedagogia exuriana nas escolas é uma
das formas de tornar esses saberes excluídos como parte dos componentes curriculares. Ou seja,
precisamos encontrar mecanismos que possibilitem uma rasura no denso muro epistêmico do
espaço escolar. Temos que condicionar a pedagogia exuriana para que coexista junto ao
currículo oficial.
A nossa formação identitária, cultural e social é atravessada por saberes tradicionais que
foram e são silenciados por uma cultura hegemônica que por séculos imperou como absoluta,
contudo, com todos os avanços dos estudos decoloniais, se busca a superação do
neocolonialismo, mas que ainda permanece operando nos dias de hoje em um padrão mundial
de poder.
Apesar de tantos avanços nas teorias quanto nas práticas educativas decoloniais, ainda
há muito que se enfrentar para que haja uma efetiva superação desse modelo eurocentrado de
ensino que hoje possuímos e saber correlacionar os saberes populares e tradicionais com os
oficiais é uma das formas de superação dessa dominação colonial disfarçada de modernidade.
Ainda nas discussões sobre a Pedagogia de Terreiro Exuriana, utilizei para fechar o ciclo
de discussões a respeito, a 7ª aula, que aconteceu no dia 19/09/2019, com a exibição do filme
“Besouro”, de João Daniel Tikhomiroff (2009). Estava interessada em que os estudantes
pudessem identificar no filme as relações de opressão, de poder, de racismo, de preconceito, de
intolerância, de fé, de luta pela liberdade, e de resistência; identificar os orixás, a importância e
interferência deles em relação ao personagem principal em cada momento do filme e extrair o
aprendizado que Exu nos traz quanto ao seu caráter polifônico, educador e transgressor. Neste
encontro, pedi para os estudantes refletirem sobre o uso de recursos audiovisuais no que tange
à aplicação da Lei 10.639/2003, uma vez que considero esse um excelente recurso, tanto que
me propus em meu mestrado, a apresentar um documentário como artefato.
A 8ª aula, que aconteceu no dia 26/09/2019, trabalhei os seguintes textos: “Tá Amarrado
em Nome de Jesus! A Escola e o Aluno Negro Adepto do Candomblé”, texto meu apresentado
ao PPGER, no componente Fundamentos nos Processos e Ensino e Aprendizagem, onde, mais
uma vez, apresento aos estudantes uma discussão sobre as relações conflituosas que crianças
adeptas do Candomblé sofrem ao adentrarem as escolas que são legitimadoras de uma cultura
branca e tentam reduzir e invisibilizar a identidade da cultura negra. O objetivo é trazer à tona
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o silenciamento do aluno e as relações de poder, o currículo escolar hegemônico, no intuito de
romper com o paradigma colonial racista judaico-cristão com uma análise sobre a Lei
10.639/2003.
Fizemos também a análise e discussão de trechos do artigo: “Mitos Afrobrasileiros: uma
proposta para a prática pedagógica”, de Danielle Milioli Ferreira e Leila Dupret (2012). As
autoras procuram trabalhar a Lei 10.639/2003 e ressaltar a relação de pertencimento e do viver
em comunidade que se busca a valorização dos mitos africanos nas práticas educativas em sala
de aula.
A discussão com os estudantes a respeito desses dois textos teve por objetivo fazer com
que pensassem quais ações deveriam ser tomadas no sentido de replicar a Pedagogia de Terreiro
baseando-se na Lei 10.639/2003, devido à proximidade com a reta final do curso e com o
calendário escolar da Semana da Consciência Negra nas escolas públicas onde a maioria atua.
Na 9ª aula, que aconteceu no dia 03/10/2019, fizemos a análise do livro “Pedagogia de
Terreiro: Experiências da Primeira Escola de Religião e Cultura de Matriz Africana do Baixo
Sul da Bahia – Escola Caxuté”, de Mam’etu Kafurengá, Maria Balbina dos Santos (2019).
Neste, a autora defende que:
Terreiro torna-se espaço de memória e valorização das tradições africanas
representadas pelos antepassados e que podem ser tomadas para enfrentar a
colonização dos saberes e relembrar as estratégias de resistência construídas pelo povo
negro e indígena no passado e vividas no presente. Assim temos um espaço político
de luta (SANTOS, 2019, p. 21).
A Mam’etu Kafurengá fala de suas experiências no Terreiro de Caxuté, fundado em
1994, que reúne convivência de descendentes de africanos e indígenas, que “não encontram na
escola uma forma de desenvolver auto estima, identidade e valorização de seu fazer/saber,
devido ao silenciamento e negação de seu modo de vida e de sua cultura” (Santos, 2019, p. 20).
A autora defende uma proposta de Pedagogia de Terreiro baseada em um “pensamento
bantu-indígena, demarcado na memória biocultural, ancestralidade, identidades, território e
resistências”, onde se alinha com a mesma base estrutural da pedagogia a qual apresento,
alicerçada na oralidade, no fazer coletivo e no movimento de resistência.
A 10ª e 11ª aulas aconteceram, respectivamente, nos dias 05/10/19 e 06/10/2019 com a
Oficina de Dança dos Orixás no Ilê Asé Silé Iná Tuntun Omo Torrundê, que fica na Estrada do
Alecrim, bairro Nacional, em Eunápolis, ministrada pela professora de dança, Ojuomim, Nena
D’Oxum. Como dito anteriormente, foi a junção de duas oficinas, a que seria ministrada no
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Viola de Bolso e a ofertada pelo próprio Ilê Asé, com certificação da UNEB/NUPE. Além dos
estudantes do curso, a “oficina dois em um” foi aberta ao público e começava às 9h da manhã
e terminava com um delicioso almoço de confraternização mediante o pagamento de uma taxa
simbólica para o custeio da refeição. Estavam presentes professores, universitários, médicos,
enfermeiros, babalorixás, yalorixás, yawôs, umbandistas, pesquisadores, adeptos da União do
Vegetal, artistas plásticos, esotéricos, músicos e cabeleireiros. Foi a oportunidade de todos
visitarem o Ilê Axé e de vivenciarem a experiência da dança como prática na construção dos
saberes dos povos de terreiro para a valorização de sua autoestima atrelada ao conhecimento de
história oral, do fazer coletivo, da hierarquia e do respeito, dos mitos dos orixás. É numa roda
de dança que se aprende tudo junto e misturado.
O objetivo da oficina de dança foi, mais uma vez, desmistificar crenças e medos sobre
a Mitologia dos Orixás. Acredito que somente por meio da informação e do conhecimento
poderemos romper com a barreira do preconceito, ou seja, conceito prévio. É válido registar
que essa oficina pode ser amplamente trabalhada nas escolas, a partir de uma experiência
estética sensorial de escuta, de narração das histórias e de movimentação corporal a fim de
valorizar as relações étnico-raciais nestes espaços.
As vivências das oficinas de dança devem ser acompanhadas de uma profunda discussão
e transformação do olhar de quem participa dessas experiências, seja para formação de
professores, seja diretamente com os estudantes da educação básica. Defendo que os indivíduos
sejam capazes de desconstruir preconceitos acerca de instrumentos, danças e cantigas em
ioruba, desfazendo o estereótipo do pacote “coisa de macumba”, tão erroneamente propagado
dentro dos espaços escolares.
Como a oficina possui um caráter pedagógico, as cantigas foram executadas de maneira
livre, mas com muito respeito à liturgia e aos orixás. Além disso, devido ao fato de a atividade
buscar homenagear e contar as histórias dos orixás, a ordem das cantigas também respeitou o
repertório de cada um deles, portanto o agueré29 foi executado para Oxóssi; o alujá30, para
Xangô, e assim por diante.
O Ilê Axé Silé Iná Tuntun Omo Torrundê naquele momento não contava com três ogans
para o toque dos instrumentos, optei por previamente fazer a gravação das cantigas de todo o
29 Agueré: é um toque para os Orixás, Oxóssi e LogunEdé, respectivamente. É reconhecido como um ritmo que
chama a vida e a movimentação, dançado de forma muito elegante, com porte refinado e majestoso (MAURÍCIO,
2009, p. 205). 30 Alujá: Toque de movimento rápido, que transmite muita energia, está relacionado ao Orixá Xangô. Demonstra
o caráter másculo e vigoroso desse Orixá, e é o ritmo principal da “roda de Xangô” (MAURÍCIO, 2009, p. 205).
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xirê, composto de três músicas de cada orixá, contabilizando um total das 48 cantigas mais
conhecidas para a realização da oficina, com o uso de uma caixa de som e meu notebook.
A ministrante da oficina, Nena D’Oxum, iniciou com uma música suave para que os
estudantes pudessem fazer alongamento e soltar o corpo. Devagar, começou a explicar sobre
mitologia de cada orixá junto com a dança, na ordem do xirê, sucessivamente de Exu a Oxalá.
Essa ação perdurou por dois dias, foi muito divertida, sempre finalizada com momentos de
relaxamento, almoço de confraternização, selfies e filmagens.
Aproveitei a oportunidade da oficina para conversar com os sacerdotes presentes sobre
a Pedagogia de Terreiro como forma de se trabalhar a Lei 10.639/2003 nas escolas. Quando
perguntado sobre a construção dos saberes ancestrais dentro do Candomblé, Pai Danilo
D’Oxóssi respondeu o seguinte:
O candomblé não tem uma cartilha a ser seguida, através da oralidade, tudo é passado
através dos mais velhos, todo iniciado tem acesso ao segredo, à medida que participa,
põe a mão de fato, esse segredo vai sendo passado através da preservação (PAI
DANILO D’OXÓSSI, 2019).
Quando lhe perguntei se dava para levar os saberes de terreiro para a escola e o que
deveria ser feito para combater o racismo religioso por meio da Pedagogia de Terreiro, Pai
Danilo respondeu:
Dá para levar, sim, os saberes para a escola. Através da religião, a construção
histórica, como se deu, de que forma essa religião chegou até aqui, de que forma ela
tem sido preservada, o próprio terreiro é uma escola, o cotidiano do terreiro é uma
escola, mostrar que de fato a duras penas os adeptos conseguiram preservar essa
religião, através da escola é o primeiro passo. Mostrar o que é a religião de fato, levar
alunos a visitações em terreiros é importante, independente da fé que você professa,
leve para conhecer, através de abordagens com filmes, hoje na mídia existe muito
material que pode estar sendo usado, existem diversas formas de abordagens, basta
querer (PAI DANILO D’OXÓSSI, 2019).
Ao egbomi André D’LogunEdé, perguntei sobre a importância da Pedagogia de Terreiro
e da construção dos saberes dentro de uma casa de santo.
A primeira coisa que a gente tem que ter é a construção de uma África dentro dos
terreiros. O terreiro de Candomblé agrega fatores históricos, fatores políticos, fatores
sociais, dentro de um único espaço que irá nos remeter as antigas sociedades africanas.
A visão das nações dentro do Candomblé, Ketu, Jeje, Fon, Angola, ela remete a essas
antigas sociedades. Dentro de um terreiro de Candomblé é possível você vislumbrar
territórios africanos, políticas africanas, toda uma identidade negra condensada dentro
de um único espaço (ANDRÉ D’LOGUNEDÉ, 2019).
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Enquanto historiador e mestrando em Ensino e Relações Étnico Raciais, como combater
o racismo religioso nas escolas?
A primeira ação a ser tomada dentro das escolas é desfolclorizar a cultura afro
religiosa. Porque quando vai se falar de cultura afro religiosa que é uma vertente da
culta afro-brasileira se coloca muito pelo lado do folclore, pelo lado da plástica, o
exótico, o diferente, é preciso entender que o Candomblé é uma religião, não é só uma
manifestação africana, e por ser uma religião ela tem seus dogmas, ela tem suas
tradições, ela tem sua história, ela tem os seus focos de resistência. Então é à partir da
desfolclorização dentro do trabalho educacional começar esse trabalho de combate a
intolerância, é um trabalho árduo, é um trabalho difícil, mas ele tem que ser começado
à partir desse pressuposto (ANDRÉ D’LOGUNEDÉ, 2019).
Mãe Luziene D’LogunEdé também fez questão de prestigiar a Oficina de Dança e se
sentou para conversar. Quando questionada sobre o ensinar e aprender dentro do Candomblé
ela respondeu:
É muito bom Claudia, saíram os mais velhos e ficaram os mais novos, então tem que
ter caminhos para esses que estão entrando na vida do Candomblé. Tem que ter
conhecimento e esse conhecimento tem que ir pra sala de aula, porque tem muitas
pessoas que enxergam o candomblé pelo outro lado, e o Candomblé é muito bonito
de se ver. Então tem que ir pra sala de aula para as crianças terem o conhecimento do
que é o candomblé (MÃE LUZIENE D’LOGUNEDÉ, 2019).
Por fim, consegui conversar com o babalorixá, responsável do terreiro, o Doté
Balegunan, meu pai pequeno, que durante toda oficina ficou ocupado com os afazeres da
cozinha, preparando o almoço de confraternização. Após a troca de bênçãos, lhe perguntei sobre
a construção dos saberes de terreiro e como podem ser trabalhados nas escolas, ao que ele
respondeu:
A gente considera que Candomblé é uma faculdade que ninguém se forma. Onde a
construção do saber é importante porque você vai reconstruir um processo de agregar
conhecimento e o conhecimento é algo libertador, e o saber funciona como agente
transformador. Eu falo sempre aos que me acompanham que eu quero pessoas
inteligentes, vivas e pensantes. O Candomblé traz essa coisa da oralidade como meio
de transmissão do saber e hoje a gente precisa perpetuar e partilhar esses saberes. Não
adianta eu ter conhecimento e não ensinar aos meus, porque esse saber irá se perder.
Então é necessário que essa troca aconteça (DOTÉ BALEGUNAN, 2019).
Quando perguntado se os saberes de terreiro podem contribuir para o combate ao
racismo religioso, ele respondeu que,
O racismo religioso sempre ocorreu porque nós fazemos parte de um segmento
religioso que historicamente sempre foi legado a preto, pobre e de periferia. E hoje
você consegue perceber a presença de doutores, de mestres, de pessoas com o nível,
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com o saber mais elitizado, e você percebe que no Candomblé não tem isso, porque
na religião vai ter esse doutor, mas vai ter também aquele que não tem nenhuma
formação, e dentro do segmento religioso os dois estão em pé de igualdade, então eu
vou ter em minha cozinha lavando prato a médica que é cirurgiã plástica, e vou ter
limpando o meu barracão o universitário ou aquela senhorinha que não tem nenhum
tipo de formação. Somos todos iguais nas funções do axé. Então o Candomblé permite
esse recorte de várias formações, de vários perfis financeiros, vai pegar o rico e o
pobre, o preto e o branco, e seremos todos iguais (DOTÉ BALEGUNAN, 2019).
Após o relato do zelador da casa, encerramos o último dia da oficina com um delicioso
almoço de confraternização com todos os presentes e muitas fotos, já com os estudantes
discutindo sobre suas apresentações para a próxima aula.
A 12ª aula, que aconteceu no dia 17/10/2019, foi uma Roda de Conversa sobre como
trabalhar a Lei 10.639/2003 nas escolas. Os estudantes entregaram seus relatos escritos,
baseados em todas as leituras, discussões e experiências vividas no decorrer do curso. Cada um
fez uma breve apresentação de seu projeto de como replicar a Pedagogia de Terreiro, mas a
discussão será feita no próximo capítulo.
A 13º aula, que aconteceu no dia 24/10/2019, foi o Relato de Pós Experiência do curso
filmado. Tudo que os estudantes leram, discutiram, aprenderam e vivenciaram nas oficinas, no
Viola de Bolso e nos terreiros visitados. No final das filmagens, fizemos uma confraternização.
A 14ª aula, que deveria acontecer no dia 31/10/2019, de degustação e palestra sobre
Culinária do Candomblé, trazendo como elemento principal o Acarajé, com Pai Danilo
D’Oxóssi e o egbomi André D’LogunEdé, como dito anteriormente, teve que ser cancelada.
3.7. Como os professores podem aplicar a Pedagogia de Terreiro?
Hoje me vejo numa situação interessante por ter retornado à educação básica, justamente
no momento em que escrevo o memorial de defesa do mestrado, porque me coloco na mesma
condição em que se encontram todas/os as/os professoras/es participantes do curso por mim
ministrado. Posso sentir na pele as angústias e dissabores de tentar praticar a Lei 10.639/2003,
em tempos tão sombrios.
3.7.1. Mas por que aplicar a Pedagogia de Terreiro?
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Trabalho numa escola de periferia, marcada pela criminalidade, a EMEF – Escola
Municipal de Ensino Fundamental Feu Rosa, no município de Serra, onde leciono Libras a um
aluno negro e surdo de 12 anos que, para além da surdez, utiliza prótese nas duas pernas por
conta de uma deficiência congênita e tem nas mãos o que se chamamos “garras de lagosta”, que
dificulta sua escrita. O garoto é um exemplo de superação, está sempre de bom humor, é
extremamente inteligente, proativo, interage com os colegas, encontrou no esporte seu meio de
superação, é para-atleta de jiu-jitsu, participa de campeonatos nacionais e, mesmo assim, apesar
da popularidade, enfrenta bullying por ser negro, surdo e usar prótese. Observo esse
comportamento segregador de estudantes e professores não somente com o meu aluno, mas uns
com os outros.
Essa semana, a professora de Língua Portuguesa chamou a coordenação em sala por
conta de ações de racismo em sala cometidas por dois estudantes ditos “quietinhos” contra um
menino negro, o qual o elegeram como o mais feio da sala. Todos riram dele, ele chorou de
desespero e saiu correndo pelo corredor da escola.
O professor de História me chamou na sala para dar minha opinião perante todos os que
ali estavam, pois um aluno estava depreciando o penteado black power da coleguinha, sendo
que este menino também é negro. Ele explicou historicamente sobre o movimento que deu
origem ao penteado e eu falei do empoderamento feminino através do cabelo para poder
desconstruir essas ações de preconceitos vindas de negro para negro. Este mesmo professor tem
medo de ter suas falas filmadas e postadas nas redes sociais sob a acusação de pregar ideologias.
Em vários momentos já presenciei os estudantes falando: “mas professor, isso é ideologia! Isso
é coisa de comunista! Você tá falando do meu presidente heim! ”, e ele devolve a provocação
retrucando: “eu tô brincando, tô falando da matéria, isso aqui não é dos dias de hoje não...”.
Esse mesmo professor de História inicia o conteúdo “Povos e Culturas Africanas” e, ao
fazermos uma análise do livro didático, ele pontua ser uma vitória que este esteja disposto à
frente do conteúdo europeu da “Idade Média”. No entanto, ao folhear as páginas pude perceber
o quão é raso e não contempla as religiões de matriz africana, que apresenta: os aspectos físicos
da África; o Império do Mali e sua formação e economia; os Bantos; o Reino do Congo; os
Bantos no Brasil; os Iorubás, sua política e economia; os Iorubás no Brasil, referenciando Pierre
Verger, voltando o recorte para música, com uma foto da cantora Margareth Menezes e do
Olodum; e um recorte para as artes, dando enfoque para Carybé, finalizando em Mestre Didi.
Em nenhum momento, o livro didático trabalhado pelo atual governo cita o Candomblé, que é
apagado da História.
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Mestre Didi, Deoscóredes Maximiliano dos Santos, guardião das tradições africanas,
sacerdote, escritor, ficou resumido ao “Didi artista”, nos livros didáticos oficiais. Foi um dos
visionários da Pedagogia de Terreiro, um representante da cultura afro-brasileira que passou a
vida tentando trazer reconhecimento ao Candomblé. Um de seus projetos mais agregadores foi
a Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, dentro do Ilê Axé Opô Afonjá, uma mini
comunidade Infantil Oba Biyi, dedicada ao ensino, tendo como base as comunidades ao redor.
Desde a fundação, por Mãe Aninha, em 1910, o Ilê Axé Opo Afonjá é um dos principais
e mais antigos terreiros do Brasil. Por isso, quem assume a cadeira de yalorixá assume também
a responsabilidade, até o fim da vida, pelo resgate de uma história da ancestralidade e da própria
imagem do Afonjá fora dos limites da roça. Por ser um dos mais antigos, é referência para os
demais e representa movimento de preservação da identidade cultural, dos saberes e de
resistência. A escolhida para substituir Mãe Stela D’Oxóssi no Ilê Axé Opo Afonjá, Mãe Ana
D’Xangô, pedagoga de formação, concedeu sua primeira entrevista ao Correio da Bahia, no dia
04 de janeiro de 2020, logo após assumir o posto.
Sobre como ela enxerga os recentes casos de intolerância religiosa, a yalorixá diz que
“Ninguém é obrigado a seguir uma religião única, o mundo é eclético. Por isso, é uma questão
de conscientização. Quando as pessoas aprenderem a respeitar, isso será minimizado” (Mãe
Ana D’Xangô, Correio da Bahia, 2020). Quando lhe foi perguntado como ela percebe isso no
dia a dia, na sala de aula, ela respondeu:
Os alunos têm uma visão muito ampla. Eu dialogo com eles muito tranquilamente.
São questões que precisam ser divulgadas. Minha função sempre foi essa, formar
alunos questionadores. Tenho certeza que em alguns deles eu planto sementinhas.
Alguns não mudam, continuam pensando as mesmas coisas. Mas tenho certeza de
que, em alguns, eu consegui distorcer a imagem [preconceituosa] que tinham do
Candomblé (MÃE ANA D’XANGÔ, Correio da Bahia, 2020).
A Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, dentro do Ilê Axé Opô Afonjá e a mini
comunidade infantil Oba Biyi, as varandas e o pátio trabalhavam atividades ao ar livre por meio
da oralidade, não havia a estrutura da chamada sala de aula. A Pedagogia de Terreiro foi
pensada na tradição africano-brasileira com o trabalho da autoestima e isso se dá há 30 anos.
Apesar de esforços do poder público e da nata intelectual da época, a escola sofreu
mudanças curriculares impostas pelo tempo. Municipalizada em 1998, hoje funciona
semelhante a outras escolas, mas há um legado que se mantém: trata-se de uma escola dentro
de um terreiro, o que, em si, facilita a relação de transmissão de conhecimento da cultura
65
africana. Sobre o futuro, o neto de mestre Didi pretende continuar sua arte em esculturas por
meio da oralidade, poder trabalhar os saberes ancestrais com as crianças do entorno:
Mais de 80% da periferia é negra. Se você tem uma escola que fala direto com a
autoestima, você não tem tiro sendo dado à toa [...] nós, dos saberes ancestrais,
precisamos chegar a todas essas pessoas. Para que todas essas pessoas cheguem além
(TONHO, neto de Mestre Didi, Jornal A Tarde, 2017).
Apesar do merecido legado em facilitar a relação de transmissão de conhecimento da
cultura africana através da Pedagogia de Terreiro, a Escola Municipal Eugênia Anna dos
Santos, após o processo de municipalização, sofre com as modificações impostas pelo sistema
nacional de ensino e acabou por cair no enquadramento do cartesianismo curricular europeu
branco na forma de ensinar.
Ações no sentido de se criar terreiros-escola são positivas e devem continuar. Existem
exemplos como a escola criada dentro do Terreiro de Lembá, em Camaçari BA que, tendo
metodologia aplicada de respeito às tradições e costumes africanos-brasileiros, obteve nota 6,6
no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB31.
Outro ponto a favor é a criação de vagas para crianças, jovens e adultos que moram no
entorno dos terreiros e que podem estudar dentro dos espaços que são a sua realidade
sociocultural. No entanto, ainda assim, não seremos capazes de combater o sistema de ensino
que entrará “chutando a porta” dos barracões com sua cultura colonial europeia branca racista.
Proponho justamente o desafio do movimento inverso: que os saberes ancestrais
africanos-brasileiros aprendidos-ensinados dentro dos Terreiros possam atravessar as
encruzilhadas e entrar por todos os portais das escolas, provocando uma transformação
epistêmica curricular, decolonial dos saberes.
Justifico este desafio de inversão por causa da atual estrutura curricular que não tem
condições de enfrentar o problema e, por conta disso, cria barreiras, mesmo com a existência
da Lei 10.639/2003. Sueli Carneiro (2005, p. 96), chama de epistemicídio o “processo de
destituição da racionalidade, da cultura e da civilização do Outro”. É um dispositivo que nega
a capacidade intelectual que apaga os saberes, afeta a autoestima e, por fim, acaba sendo mais
um eficaz instrumento de dominação racial.
31 Escola em terreiro tem o maior Ideb de Camaçari. AÇÃO NOTÍCIAS, 13 set. 2018. Disponível em:
http://acaonoticias.com.br/index.php/giro/93-bahia/968-escola-em-terreiro-tem-o-maior-ideb-de-
camacari?fbclid=IwAR0Co1BFQAMTdJvFVoZGb3VbqHeuZ0SL0Kbb045zBQhoq2YGZZB3lPfKvlA. Acesso
em: 21 mar. 2020.
66
Michel Foucault (2008) defende que vontade de poder é intencional, se produz no jogo
das práticas concretas que buscam satisfazer interesses e acabam por conferir legitimidades
(VEIGA-NETO, 2007) e a escola, enquanto espaço legitimador de cultura, é também um espaço
de poder intencional, normalizador, que legitima regras e condutas e, ao fazer isso, exclui
valores e culturas as quais não a interessa, barrando a cultura ancestral do aluno negro adepto
de religiões de matrizes africanas.
Ao legitimar a exclusão, a escola cria estereótipos para se encaixar. Um conjunto de
sujeitos “normalizados” que terão que se enquadrar nessas normas, docilizados, sujeitados, que
não se rebelam contra o modelo curricular hegemônico, fazendo com que o espaço para a
produção e o pensamento da “diferença” seja excluído da escola. Um regime de verdade é
trabalhado dentro das escolas por meio da internalização de convencimento, até que o
“conteúdo” imposto divulgado seja tomado como “verdade” absoluta e não questionável.
Defendo a Pedagogia de Terreiro como uma epistemologia de resistência. E Foucault
(2008) pensa nessa resistência de um modo diferente. O poder se dispõe numa rede, na qual há
pontos de resistência que são gerados dentro da própria rede, os quais são transitórios e
movediços. Nas malhas dessa rede, os indivíduos exercem o poder e sofrem com suas ações. O
poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles, atravessando-os. Onde há poder, há
resistência. Se, por um lado, novos saberes e tecnologias são criados no sentido de disciplinar,
controlar a sociedade, cada vez mais sujeitos lutam contra essas forças que tentam reduzi-lo a
um corpo dócil. Portanto, o poder não seria totalizador e as instituições, em face disso,
sequestram, proíbem e normalizam, mas sempre haverá alguém que escapa.
Na contramão do poder instituído como regime de verdade pelo racismo estrutural,
novamente trago as bases do pensamento da Pedagogia de Terreiro que acredito que devem ser
trabalhadas dentro das escolas, por meio de ações e valores comportamentais que devem ser
cultivados, replicados e multiplicados:
Defendo que terreiro de Candomblé é um espaço de aprendizado privilegiado para
transmitir seus saberes por meio da oralidade, do resgate da memória, do pertencimento, da
Ancestralidade
Memoria
Pertencimento
Oralidade
História oral
Mitos
Coletividade
Resistência
Decolonização dos
saberes
67
ancestralidade, como também da conexão e preservação da natureza. O respeito à terra,
enxergá-la como lama sagrada a qual pertence nossos ancestrais e para onde retornaremos é
essencial nesse aprendizado. Para construir esses saberes ancestrais é necessário um trabalho
com a história oral, a mitologia e o fazer coletivo. Dessa forma, o modelo de Pedagogia de
Terreiro pode servir de inspiração para construir novas formas pedagógicas, com outros recortes
que não sejam fundamentados sob pensamentos coloniais onde o negro é excluído.
Terreiros trazem em sua bagagem não somente ritos litúrgicos, mas memórias
identitárias e resistência cultural, formas de pensar que desencadeiam novas concepções
epistêmicas sob uma perspectiva insurgente e decolonial que a escola precisa urgentemente
trabalhar, pois a pedagogia excludente com a qual reproduz padrões de preconceito precisa ser
quebrada (Santos, 2019, p. 18).
Assim, terreiros são espaços de memória cultural, memória essa que foi roubada do povo
brasileiro, mas que pode ser trabalhada de forma transversal pela Lei 10.639/2003, pois a
história pode e deve ser contada em espaços escolares, uma vez que estes são capazes de
ressignificá-la transformando atitudes em práticas de resistência às colonizações sofridas pelo
povo negro.
Na nossa comunidade, cultivamos o orgulho de construímos valores afirmativos e de
lutarmos como negros/as. Assim, o terreiro reúne valores, práticas, memórias,
tradições e vivências ancestrais, instituindo uma pedagogia que busca utilizar-se deste
reservatório negro ancestral para formar sujeitos (SANTOS, 2019, p. 21).
É preciso encontrar outras formas de produzir saberes e fazeres que fujam do
enquadramento etnocêntrico já superado como “a imposição de um modelo único, que não
contempla a diversidade humana” (SANTOS, 2019, p. 35). Trabalhar a oralidade e a
coletividade de comunidades de terreiro, comunidades ribeirinhas, valorizar as práticas
daqueles que vivem nas favelas ou no campo, bem como outras formas de produzir
conhecimentos para além dos muros da universidade. Essas vozes não podem ser mais
silenciadas e invisibilizadas.
Santos (2019, p.29) utiliza como referência Paulo Freire (1987) em sua obra Pedagogia
do Oprimido, quando “questiona os referenciais eurocêntricos, a partir dos quais, o
conhecimento no campo das ciências sociais é produzido” e vai além para defender uma
educação de resistência:
68
Assim, para além da alfabetização, a educação é uma experiência cultural reflexiva,
critica e partilhada, com vistas à transformação. As pedagogias construídas a partir de
Freire devem ser capazes de fortalecer a comunidade por meio de valorização e
sistematização de seus saberes, reconhecendo-lhes a legitimidade. A educação
fortalece a capacidade de resistir e cultivar, além de propor uma existência com
parâmetros culturais de liberdade (SANTOS, 2019, p. 30).
A Pedagogia de Terreiro contribui para o fortalecimento da autonomia e autoestima do
povo negro, pois valoriza a memória e a resistência de um povo que é estigmatizado, haja vista
que a escola é um espaço que não foi feito para o aluno negro. Mediante essa inadequação,
esses estudantes são identificados como incapazes de aprender e acabam se tornando vítimas
da reprovação e, consequentemente, evasão. Quantas vezes vemos acontecer do aluno negro
deixar de frequentar a escola? Será que é por que a escola não faz o menor sentido para sua
vida?
Trabalhar a Pedagogia de Terreiro nas escolas é colocar o aluno negro como ator
protagonista do processo de aprendizagem, tomando este como referência, valorizando seus
saberes, como proposta no seu projeto político pedagógico. Ministrar o aprendizado da leitura
e escrita a partir de elementos construídos da cultura negra possibilita que os sujeitos recuperem
sua identidade. Trazer para a escola uma contextualização histórico-geográfica através do
acaçá, milho, banana, feijão fradinho, peixe, ovos, roupas, folhas, danças, mitologia, faz com
que haja a circulação de saberes (SANTOS, 2019, p. 43).
A tradição oral nos permite trabalhar ações coletivas procurando trazer à tona valores
ancestrais, nos quais o uso da palavra é gerador de compromisso firmado e uma ação moral,
uma vez que significa também expressão, acordo coletivo e respeito mútuo. Esse é o ponto de
partida para a ruptura do racismo estrutural e a base para a mudança comportamental em toda
estrutura preconceituosa e racista que irá ruir para dar espaço a uma nova forma de pensar e
agir.
Saberes e fazeres que reúnem sentimento, ritmo, dança, música, coletividade, troca,
espontaneidade, experiência, ancestralidade e muitas outras coisas são difíceis de
serem entendidos pelos recursos políticos da língua ocidental. Podemos afirmar sobre
a necessidade de sistematizar nossa pedagogia, mas também sobre a justaposição que
pode acontecer se não afirmarmos nosso legado “oral” (SANTOS, 2019, p.46).
Podemos afirmar que um dos princípios da Pedagogia de Terreiro é a tradição oral, que
potencializa os aprendizados ancestrais africanos e a melhor forma de se trabalhar a oralidade
nas escolas seria com rodas de conversas, por meio da contação de histórias, oficinas de
culinária, hortas, teatro, trabalhando elementos de música, dança e dramaturgia. Essas ações
69
desencadeiam o estímulo sensorial do corpo e mente: audição, visão, faro, paladar, tato,
movimento, empatia e espírito de coletividade.
Por fim, acredito ser fundamental replicar a Pedagogia de Terreiro. Que os professores
participantes do curso que ministrei possam multiplicar essa metodologia em suas escolas e que
seus estudantes sejam também multiplicadores desses saberes. Mas como fazer isso? Não existe
receita pronta. Propor isso neste memorial seria cair no abismo do erro eurocêntrico de achar
que tenho nas mãos o poder de dizer que encontrei a solução para o combate ao racismo
estrutural.
O calendário escolar já foi discutido e nele consta a Semana da Consciência Negra, no
mês novembro, como algo obrigatório a se cumprir, mas ações transversais não são discutidas
entre pedagogas e professores para se trabalhar atitudes antirracistas no decorrer do ano, uma
vez que o racismo está presente em toda estrutura escolar.
Sei que tenho que apresentar um artefato final, mas como me propus a trabalhar
formação de professores por meio de novas metodologias, acredito que as ações devem ficar
sempre em aberto, móveis, passiveis, em devir, em transformação e abertas a novas discussões.
Como uma ruptura, uma ferida que não cicatriza, um novo percurso de um rio, um espaço onde
se possa enxergar o Outro e, mais que isso, sem ele não consigo ir além porque a coletividade
é necessária.
Apresento abaixo a proposta dos estudantes acerca de como trabalhar a Lei 10.639/2003
sob as bases metodológicas da Pedagogia de Terreiro. Pude observar nesta análise que, a
depender da proposta, tende a dar mais ênfase a um dos alicerces sustentadores a esta
pedagogia, o que não exclui os outros. Ora o recorte é maior para ancestralidade, memória,
pertencimento, ora para oralidade, história oral e mitologia, assim como outras propostas que
legam um recorte maior à coletividade, resistência e decolonização dos saberes.
3.7.2. Proposta de Andreia Silva Encarnação
A aluna Andreia é graduanda do curso de Licenciatura em História pela Universidade
do Estado da Bahia – UNEB Campus XVIII e atua como agente cultural no Espaço Cultural
Viola de Bolso. Ela traz a proposta: “O Aprendizado Escolar a partir da Lei 10.639/2003: um
olhar sobre a capoeira enquanto instrumento de resistência negra a partir do filme Besouro de
Daniel Tikhomiroff”. Ela vem problematizar a importância da Lei 10.639/2003, que trata da
70
obrigatoriedade do ensino das relações étnico raciais nos currículos das escolas públicas, bem
como considerar sua relevância dentro dos conteúdos programáticos nas aulas de história por
meio do fazer pedagógico. Defende medidas voltadas para o reconhecimento e valorização da
educação dentro de uma perspectiva de inclusão e afirmação da identidade negra, por meio de
sua história e cultura.
Por mais que a cultura afro-brasileira venha reafirmando sua existência, ainda
perduram certas formas de pensar o negro como inferior na sociedade em geral; uma
sociedade que não reconhece os traços de sua própria cultura e ainda tenta camuflar a
existência da desigualdade étnico racial com o discurso da miscigenação
(FERREIRA; DUPRET, 2012, p. 29).
O discurso de ódio, a desvalorização das culturas de matriz africana e a demonização de
Exu nos faz pensar como a Lei está sendo trabalhada nas escolas, como os educadores pensam
metodologicamente a formação dos indivíduos e a forma de inseri-los numa sociedade que nega
o tempo todo o racismo, camuflado em brincadeiras preconceituosas.
A partir da Lei, o educador tem por finalidade implementar temáticas que visam a
compreensão acerca da cultura africana não mais a partir de uma relação de indivíduos passivos
em sua própria história, mas como sujeitos históricos ativos e construtores de estratégias de luta
e resistências.
Certamente o que se torna interessante a partir da promulgação da Lei é a percepção de
como a população negra é retratada nas escolas por meio dos livros didáticos, filmes e demais
suportes teóricos metodológicos ao longo do ensino, bem como ressaltar sobre a necessidade
de ressignificar os acontecimentos históricos que ao longo do período espaço-tempo esteve
pautada nos grandes atos de heróis eurocêntricos.
A Lei 10.639/2003 pressupõe-se novas maneiras do professor pensar a história das
relações étnico raciais por meio de novos temas e abordagens para além do livro didático, nesse
aspecto, deve-se considerar a importância dos recursos audiovisuais. Assim, o audiovisual é um
recurso que deve se fazer presente na operação historiográfica, o registro das imagens
propagadas deve ser usado como temas geradores de debates articulados com os conhecimentos
prévios obtidos a partir do olhar social dos estudantes.
Justifica-se assim o uso do filme Besouro, sob a direção de Daniel Tikhomiroff, e, como
ponto de partida, é importante compreender que uma das finalidades primordiais do audiovisual
é facilitar a percepção do indivíduo com o mundo em que o cerca por meio das experiências e
71
reflexões que possam estabelecer a relação de alteridade do sujeito para com o presente e o
passado, partindo do princípio das suas múltiplas realidades.
É importante considerar que o audiovisual permite o aguçamento das percepções e do
equilíbrio entre visão e audição e contribui para o desenvolvimento do pensamento crítico dos
indivíduos. Desse modo, pode-se estabelecer de maneira dinâmica e criativa como instrumentos
de colaboração para o ensino de História em suas diversas vivências, seja nos aspectos
econômico, social, político, cultural. É necessário compreender que o filme, enquanto recurso
metodológico, necessita ser vinculado a uma proposta que seja eficaz, clara e objetiva.
Ainda sobre o filme, notoriamente o que se pode constatar é que a compreensão do que
é a capoeira passou por significativas mudanças, ora em determinado momento se concebeu
como um espaço de marginalizados, ora se ateve como uma prática de identidade cultural para
a formação da sociedade brasileira. Em tempos atuais, não foge ao conhecimento humano que
a mesma é considerada tanto uma prática de entretenimento e diversão, como também é um
trabalho que exige treino, rapidez e técnica, bem como:
A capoeira é uma manifestação cultural que tem característica de multiplicidade,
envolve luta, dança e jogo. “Dessa forma, mantém ligações com práticas de
sociedades tradicionais, nas quais não havia a separação das habilidades nas suas
celebrações, característica inerente à sociedade moderna” (BRASIL, 2008, p. 19).
Como toda aceitação é um processo de longa duração, por mais que a capoeira tenha
conseguido ganhar espaço e visibilidade em termos sociais, ainda é preciso que se dê passos
largos para que a mesma venha ser contemplada de maneira mais abrangente nos espaços do
cotidiano, uma vez que, enquanto representação simbólica, ocupa um lugar de destaque na
formação de identidades plurais.
Nesse caso, a capoeira pode ser analisada enquanto dispositivo agregador das
diferenças, além de contribuir para a afirmação da cultura afro-brasileira em seus múltiplos
aspectos, em termos nacionais, regionais e locais. Além disso, é fundamental sinalizar que o
ensino da capoeira fornece elementos históricos que caracterizam a luta e resistência, um dos
alicerces da Pedagogia de Terreiro, pois:
O ensino da Capoeira é um rico processo pedagógico que valoriza uma educação
libertadora e consciente. Durante o seu ensino serão discutidos elementos históricos
dessa manifestação cultural que a caracterizam enquanto luta pela libertação,
enquanto símbolo de resistência contra vários tipos de dominação, e também enquanto
espaço para o exercício da cidadania, de construção da identidade, autoestima e
autonomia por parte de seus praticantes (JUNIOR; ABIB; SOBRINHO, 2000).
72
É importante destacar que, mesmo após a promulgação da Lei 10.639/2003, as temáticas
relacionadas às lutas dos movimentos negros, não são abordadas e discutidas de maneira
transversal no decorrer de todo ano escolar, restando-lhes a brecha de oportunidade na Semana
da Consciência Negra, que por vezes são trabalhadas com uma representação folclorizada e
estereotipada.
Os estudos voltados para a capoeira ou são escassos ou não existem, há uma dificuldade
de aceitação a respeito das tradições afro-brasileiras para se entender a formação da sociedade
brasileira, portanto, o objetivo é levar os sujeitos a compreenderem como a cultura de raízes
africanas faz parte do nosso cotidiano e da história do povo brasileiro, elencado a partir da
realidade social de cada indivíduo presente nos diversos ambientes.
Essa miscelânea cultural possibilita o diálogo com vários campos dos saberes-fazeres,
uma vez que a transdisciplinaridade enriquece o aprendizado. “A cultura brasileira que é
atravessada pela africana e precisa ser reconhecida e apreciada por todos, principalmente os
indivíduos ligados ou mesmo responsáveis pelo estabelecimento e desenvolvimento da
educação no país” (FERREIRA; DUPRET, 2012).
Andréia nos apresentou a introdução, os objetivos e justificou o porquê de trabalhar o
filme, conforme já explicado acima. Após explanação da sinopse, ela descreve o passo a passo
de seu trabalho metodológico, baseado nos alicerces da Pedagogia de Terreiro: “Ensinar e
Aprender através da Capoeira enquanto Símbolo de Resistência”.
De fato, a Lei proporciona uma tarefa muito importante, sabemos que o processo de
construção histórica nada mais é do que elencar uma cultura branca, elitista e que de
todas as formas tenta apagar a história de grandes povos e diversas culturas. No
entanto, trabalhar a Lei 10.639/2003 nos objetiva compreender que o Ensino de
História da África e das Culturas Africanas e Afro-Brasileiras é uma necessidade de
resgatar a identidade, problematizar os preconceitos e possibilitar novas
configurações das realidades plurais (ANDREIA ENCARNAÇÃO, participante do
curso, 2019).
No olhar de Andreia, ao pensar sobre a dimensão histórica da capoeira e sua importância
para o processo do ensinar-aprender em sala de aula, trabalha-se em diversos momentos/etapas:
● Primeiro momento - o docente começa a aula expositiva tendo como pano de fundo um
breve diálogo sobre a vinda dos povos africanos para o Brasil no período colonial,
considerando com suas práticas e hábitos culturais. “Junto com os africanos, aportaram
aqui no Brasil também sua rica cultura, que abrangia costumes, crenças, organização
73
social, tradições, conhecimento e história; elementos enviesados pela religião de matriz
africana” (FERREIRA; DUPRET, 2012).
● Segundo momento - argumentar a respeito da capoeira enquanto um instrumento
cultural trazido pelos negros escravizados que vieram da África para o Brasil. Mas, o
que é a capoeira? O que ela representa? Após os conhecimentos prévios, o educador
poderá problematizar sobre a origem e a trajetória da capoeira enquanto luta e
resistência, para isso é necessária a utilização de textos para leitura em grupos, onde se
pode discutir sobre as origens da capoeira no Brasil.
● Terceiro momento – utiliza-se, então, a ferramenta metodológica audiovisual, com a
apresentação do filme Besouro, onde se pode refletir sobre tais questionamentos:
refletir sobre o lugar do negro e do branco a partir de um roteiro no qual os sujeitos
deverão analisar o figurino, as vestimentas, acessórios, a referência do culto aos deuses
africanos, a cultura, as expressões do corpo e também a fala de cada personagem, pois
o modo de expressão do diálogo do negro é diferente do branco. Isso, muitas vezes, é
colocado intencionalmente como forma de demonstrar a posição social dos sujeitos a
partir da roupa e da dialética, com isso, os estudantes deverão analisar o lugar social do
negro e do branco, levando em consideração o ambiente em que ocupa cada sujeito
envolvido no filme.
● Quarto momento - A reprodução fílmica também poderá fazer um paralelo com a
canção “Jogo de Angola”, de Clara Nunes, a qual faz referência à capoeira enquanto
luta e diversão e, por sua vez, o trabalho musical a diferencia do intelectual,
predominante no ambiente escolar, e provoca sensações diferentes daquelas que se tem
na escrita e na leitura. O professor terá como foco discutir a respeito da letra fazendo
uma comparação com o filme, a partir do seguinte trecho:
E a dança que era uma festa para o dono da terra Virou a principal defesa do negro na guerra Pelo que se chamou libertação. E por toda força coragem, rebeldia. Louvado será todo dia Esse povo cantar e lembrar o Jogo de Angola Na escravidão do Brasil.32
32 Canção: Jogo de Angola, Clara Nunes, 1978.
74
A canção “Jogo de Angola” faz referência à adaptação da capoeira como espaço de
diversão, para um lugar de luta e resistência, nela podemos fazer alguns questionamentos em
sala, como: É possível fazer uma analogia que expressa a mesma opinião da canção? Quais os
atos de rebeldia praticados pelos jogadores de capoeira são presenciados no filme?
No filme, é possível identificar a capoeira como um ato de recreação, identificando em
que momento essa brincadeira se configura. A atividade poderá ser a elaboração de um texto
dissertativo e explicação do significado da capoeira enquanto resistência e sua importância para
a formação da identidade nacional, portanto é necessário compreender o seu papel social, além
dos conceitos que ela obtém como a história e cultura dos povos africanos. É crucial também
que os educadores tenham o conhecimento sobre a história afro-brasileira. Dessa forma, é
primordial que os saberes que vão além dos Griôs sobrevivam, garantindo a manutenção e
conservação da oralidade e memória das narrativas que correspondem à ancestralidade de povos
que aqui permaneceram reafirmando sua identidade étnica.
Podemos observar que a metodologia proposta por Andreia é atravessada pelos alicerces
de Pedagogia de Terreiro, uma vez que propõe nitidamente o uso da oralidade, da história oral,
da mitologia quando das discussões sobre o filme Besouro, que aborda sobre a ancestralidade,
memória e pertencimento. Estes são saberes que se misturam nos vários momentos propostos
pela aluna.
Nada mais justo que a Lei faça valer a obrigação de atuar como práticas pedagógicas
que desconstruam os preconceitos, que faça compreender a importância da Pedagogia
de Terreiro, e Exu nas escolas como valorização e respeito a outras religiões, em vista
que a história nada mais é que as narrativas do homem em seu tempo e espaço
(ANDREIA ENCARNAÇÃO, participante do curso, 2019).
Portanto, é preciso que haja uma relação direta entre Educador, Lei e Estado, firmando
um compromisso pelo qual a própria história seja capaz de fomentar, por meio da oralidade, da
memória, da identidade, sendo inegável suas presenças nos currículos.
Por fim, é necessário desfazer dos currículos o discurso desfasado que deslegitima a
cultura africana, eliminando o racismo, compreendendo a necessidade de fazer com que os
sujeitos sejam inseridos e respeitados em suas diferenças culturais.
3.7.3. Proposta de Sandro Leite Souza
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O aluno é graduado em História pela UNEB e faz pós graduação latu sensu em Educação
e Interculturalidade no Instituto Federal da Bahia - IFBA, Campus Porto Seguro. É professor
da Educação Básica no Colégio Estadual Eloyna Barradas e agente de saúde da prefeitura,
ambas instituições no município de Eunápolis - Bahia.
A proposta que Sandro traz é um plano de aula com o uso de filme como recurso didático
para decolonizar os saberes escolares. O tema é o racismo no ambiente escolar a partir do filme
“Vista minha pele”. É um curta-metragem de gênero ficcional educativo, com duração de 24
minutos, lançado em 2003 no Brasil, sob a direção de Joel Zito Araújo.
Sandro, por meio do curta-metragem, pretende compreender os mecanismos de
discriminação racial que afetam as crianças e jovens negros nos espaços educativos; discutir a
construção das relações raciais no Brasil; refletir acerca do papel da escola das representações
sociais positivas do segmento negro, bem como de sua história e cultura; e debater sobre os
preconceitos que ainda são presentes na sociedade brasileira para buscar suas raízes históricas.
O cinema, além de ser uma das grandes formas de arte, pode ser usado como um meio
educativo. Cada vez mais popular, transcendeu o lúdico e se fez presente em diferentes âmbitos,
como o acadêmico e na sala de aula. Nesse sentido, o filme é um importante recurso didático
que pode auxiliar o educador na hora de trabalhar conteúdos da temática africana e afro-
brasileira que se tornou, de maneira tardia, obrigatória no currículo escolar brasileiro.
O filme “Vista Minha Pele”, de direção de Joel Zito Araújo, conta uma história invertida
da realidade brasileira, na qual os negros são a classe dominante e os brancos são os dominados.
Os brancos foram os escravizados, os países europeus são subdesenvolvidos, enquanto os países
da África são desenvolvidos. Aborda, portanto, de forma invertida, propositalmente, uma
provocação para que faça brotar o espírito de empatia e coletividade em quem assiste o filme.
A escolha desse filme deu-se pelo fato de ter uma linguagem acessível, dialogar bem com a
realidade escolar, construir a inversão de situações e ainda guardar certo conteúdo de humor, o
que mantém os estudantes entretidos e atentos ao longo dos seus quase 24 minutos de duração,
aproximadamente.
A tratativa é sobre a questão do preconceito racial numa linha inversa para dar sentido
ao título. O autor trabalhou as duas “raças” (negros e bancos), como se uma vivesse a situação
de preconceito na pele da outra. As manifestações de preconceito refletidas são muito fortes
com relação aos brancos, numa demonstração do que realmente acontece em nossa sociedade
num sentido inverso. Por isso, Sandro propõe o uso do filme para debater estas questões na sala
de aula.
76
Mais uma vez, o audiovisual é apresentado como recurso imbricado à proposta
metodológica de Pedagogia de Terreiro, uma vez que, após a apresentação, é feita a roda de
conversa para que as discussões comecem com a valorização da oralidade, pautadas nos
objetivos que Sandro apresenta, sob um olhar de defesa às práticas que conduzam à formação
do professor:
Assim, as reflexões desenvolvidas durante o curso pedagogia de terreiro denotam que
é preciso que haja uma formação continuada dos professores para que levem estas
práticas pedagógicas para sala de aula e que se conscientizem sobre o passado recente
de caráter colonizador. É fundamental para que se tenha uma humanização e
emancipação dos sujeitos oprimidos pela hegemonia epistêmica do sistema
educacional. Nesse sentido, não se pode pensar em uma decolonização das práticas
pedagógicas sem contemplar a formação continuada dos agentes diretos que estão à
frente no processo pedagógico (SANDRO SOUZA, participante do curso, 2019).
Deve-se levar em conta que para o professor conduzir a mediação dos debates, deve
estar imbuído de amplo arcabouço teórico de história afro-brasileira para fazer o caminho
invertido, relacionando-o ao tema do filme.
Sobre os métodos e procedimentos da ação, Sandro propõe:
● Apresentar o filme, contextualizando sua produção e o tema abordado;
● Os estudantes assistirem ao filme;
● Em roda, possibilitar que todos os estudantes possam expor suas percepções em relação
ao filme;
● O professor fará considerações acerca das teorias raciais engendradas no contexto
brasileiro, ou seja, abordará a ideologia da democracia racial e o ideal de
branqueamento.
● Após a contextualização o professor/mediador solicitará aos estudantes que tentem
identificar se e como a escola, retratada no filme, reproduz a ideologia do
branqueamento.
3.7.4. Proposta de Jéssica da Silva Soares
A aluna é graduada em Turismo, pela UNEB, e faz pós graduação latu sensu em
Educação, Cultura e Linguagens, no IFBA, atua no Espaço Cultural Viola de Bolso com
projetos culturais, oficinas periódicas de artes visuais e rodas de leituras e argumenta que as
77
escolas são espaços de conhecimento, respeito e empatia, pelo menos é este o significado do
seu fundamento. No entanto, o contexto social transformou a escola em um dos espaços mais
oprimidos, omissos, de silenciamento, de torturas físicas e psicológicas.
O espaço escolar deveria ser o lugar de conforto e acolhimento, mas o seu modelo
eurocêntrico transforma a escola em um lugar de sofrimento. São muitos os estudantes
que relatam os episódios de ataques contra a cor da sua pele, seu cabelo e a sua
religião, especialmente de matriz africana, entre outros (JESSICA SOARES,
participante do curso, 2019).
Assim, observa-se que o espaço escolar não permite aos estudantes, o reconhecimento
de suas raízes culturais. Não permite que os estudantes iniciados no Candomblé utilizem fios
de conta e muito menos as vestimentas apropriadas para o seu resguardo. Muito além disso, o
modelo de escola eurocêntrica instalada no Brasil comporta educadores que não estão
preparados para defender os seus estudantes negros e de Terreiro dos ataques dos colegas
porque muitos desses educadores estão presos em padrões preconceituosos. Contudo, é possível
desenvolver um trabalho sob os moldes da Pedagogia de Terreiro, tratando-se de forma criativa
e lúdica, a fim de apresentar e conceituar elementos pertencentes à cultura afro-brasileira e, do
mesmo modo, desmistificar a imagem negativa atribuída aos orixás.
Nesta perspectiva, Jéssica aponta sua metodologia argumentando que é possível utilizar
a apresentação de imagens em power point de elementos da cultura afro-brasileira, sinalizando
a aparência dos elementos religiosos e sua ligação às histórias negadas dos povos africanos e
crioulos da época. “Histórias negadas ainda hoje! ” (JESSICA SOARES, participante do curso,
2019).
Como proposta pedagógica ela sugere a realização de rodas de conversa, por meio da
oralidade através do “Círculo de Cultura de Paulo Freire”, utilizado na pedagogia, sendo esta
uma importante estratégia de trabalhar as discussões. O desenvolvimento do trabalho com
aplicação do Círculo de Cultura requer um mediador para conduzir as dinâmicas em grupo,
baseadas em temas da comunidade. Nesta vivência, todos do grupo falam, pois valoriza-se a
construção coletiva do conhecimento, no qual os temas da realidade dos participantes, seu
universo vocabular e suas leituras de mundo são importantes na formação enquanto sujeitos
sociais críticos. O desenvolvimento do Círculo de Cultura consiste de três momentos:
a) A investigação temática, pela qual os componentes do círculo e o animador
buscam, no universo vocabular dos participantes e da sociedade onde eles(as) vivem,
as palavras e temas centrais de suas biografias; b) A tematização, mediante a qual
eles(as) codificam e decodificam esses temas; ambos buscam o seu significado social,
78
tomando assim consciência do mundo vivido; e c) A problematização, por meio de
que eles(as) buscam superar a primeira visão mágica por uma visão crítica, partindo
para a transformação do contexto vivido (MONTEIRO; VIEIRA, 2010, p. 398).
O Círculo de cultura é uma dinâmica muito utilizada nas vivências da Pedagogia Griô,
que oportuniza aos participantes um diálogo empírico sobre temas da vida sociocultural,
econômica, ambiental, entre outros. A aplicação dessa dinâmica pode ocorrer após a
apresentação de filmes sobre temas relacionados à temática étnico racial.
Outra proposta, segundo vivências da própria Jéssica, é a de utilizar estratégia da pintura
temática, os estudantes podem desenhar e pintar as imagens dos elementos culturais. Ainda no
campo da produção visual, é possível realizar uma colagem sobre o papel com imagens de
orixás feitas de recortes de revistas e trabalhar a contação de história oral e mitológica.
A criação de histórias em quadrinhos sobre a intolerância religiosa e outros preconceitos
também é uma forma de despertar nos estudantes um sentimento de reconhecimento,
valorização, respeito e autoestima. Por fim, existem muitas estratégias no campo da arte para
se trabalhar a Pedagogia de Terreiro com estudantes de diferentes faixas etárias. Para isso, é
necessário que os educadores conheçam as propostas da Lei 10.639/2003 para compartilhar
com os seus estudantes, se despindo de preconceitos através de uma sólida formação antirracista
trabalhada no currículo, que precisa ser “preto” (JESSICA SOARES, participante do curso,
2019).
3.7.5. Proposta de Kezia Merlo
A aluna é graduada em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Colatina - FAFIC, ES. Fez suas pós graduações latu sensu em Gestão Educacional e em História
do Brasil na Faculdade de Nanuque - FANAN, MG. É professora na rede estadual de ensino da
Bahia, atuando no Ensino Médio no Colégio Estadual Professor Jairo Alves Pereira, em
Eunápolis, Bahia.
Deixei para apresentar a proposta da participante por último porque gostaria de ressaltar
que as sugestões anteriores podem ser trabalhadas de forma transversal no decorrer de todo ano
letivo escolar. O trabalho de Kezia é direcionado para os eventos que são realizados na Semana
da Consciência Negra ou Novembro Negro, exigido no calendário, pela Lei 10.639/2003.
79
Kezia é idealizadora de um evento que acontece há vários anos neste espaço escolar,
com grande sucesso e me apresentou um projeto grande e estruturado que tentarei retratar aqui
momentos em que a Pedagogia de Terreiro os atravessa.
A proposta da Kezia tem como tema “África e Africanidades: cultura e memória na
construção da sociedade brasileira”, um evento que ocorre nos dias 20, 21 e 22 de novembro,
semana efetiva da data de comemoração ao Dia da Consciência Negra - 20 de novembro - nos
dois turnos, matutino e vespertino.
Considerando a Lei 10.639/03 que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" e no calendário escolar o dia
20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’ e, ainda, como efetivação da
proposta contida no Projeto Político Pedagógico do Colégio Estadual Professor Jairo Alves
Pereira, o projeto apresenta ações para reflexão e comemoração da identidade histórico-cultural.
Com isso, Kezia defende que os jovens e adolescentes brasileiros – e aqui estão inseridos
principalmente os estudantes do Ensino Médio – necessitam de intervenções que venham a
contribuir para a formação do cidadão crítico e principalmente transformador do espaço em que
está inserido. Os objetivos da proposta são:
● Resgatar e valorizar a identidade negra como um dos fatores da construção da cultura
brasileira;
● Entender a influência africana no Brasil na música, dança, arte, culinária, religiões e
linguagem e porque estes elementos são tão importantes na composição do panorama
cultural de nosso país;
● Discutir assuntos contemporâneos e pertinentes na sociedade brasileira como racismo,
intolerância religiosa e sistema de cotas, no sentido de compreender os processos
envolvidos em segundo plano, mostrando intervenções e mecanismos possíveis para
combatê-los.
Após a apresentação dos objetivos, o projeto detalha de forma pormenorizada um
calendário com os três dias de atividades para, em seguida, explicar a forma com que aos
estudantes serão avaliados, a decoração do evento e uma planilha de oficinas de palestrantes
convidados.
É no calendário das atividades propostas que Kezia apresenta sua metodologia que o
tempo todo é atravessada pelos alicerces da Pedagogia de Terreiro, como se verá a seguir.
Dia 20/11/2019
80
Abertura do evento com a participação de palestrante convidado, que discorrerá sobre a
relevância do estudo da África e africanidades nos currículos escolares.
Roda de Conversa sobre a história e importância da capoeira, seguida de apresentação
cultural de roda de capoeira.
Atividades direcionadas com o professor-colaborador para as palestras temáticas, nos dois
últimos horários para o matutino e vespertino.
O primeiro saber epistêmico/base de Terreiro é a Oralidade. Um palestrante que venha
falar a jovens negros, no qual História Oral, Ancestralidade, Memória e Pertencimento para o
resgate de sua autoestima é o ponto de partida. No segundo momento é permitido que esse
jovem interaja, que tenha voz, com conversa e capoeira, que a coletividade seja trabalhada.
Igualmente ocorre no terceiro momento quanto às atividades desenvolvidas juntamente com o
professor-colaborador.
Dia 21/11/2019
Abertura do evento: um convidado que fará um diálogo sobre a temática do Projeto
juntamente com os professores de História, Geografia, Filosofia e Sociologia do turno
correspondente.
Os estudantes apresentarão, nas salas de aula, o resultado das pesquisas teóricas. As
apresentações seguirão a escala de rodízio, permitindo que todos tenham acesso às pesquisas
de outras turmas.
No primeiro momento, a Oralidade, a História Oral, a Ancestralidade, a Memória e o
sentimento de pertencimento estão sendo trabalhados pelo palestrante numa ação conjunta com
os professores da escola. Ação que será multiplicada no segundo momento, porque envolve
pesquisa por parte dos estudantes, planejamento na apresentação e o rodízio das turmas permite
que o conhecimento se propague.
É preciso ressaltar que é também neste segundo momento que há um aprofundamento
das temáticas e que conteúdos como intolerância religiosa e Candomblé são discutidos. É aí
que saberes, como a mitologia pode ser trabalhada por meio da culinária, também na literatura,
no cinema e no teatro.
Sobre as apresentações, seguirão as seguintes temáticas:
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Sociedades africanas, antes da invasão europeia: organização social, política e
econômica;
Escravidão em suas mais diversas formas dentro e fora de África;
Influência africana na formação sociocultural do Brasil;
Literatura Negra no Brasil;
Religião, Religiosidades e Intolerância religiosa;
Assuntos étnicos contemporâneos: Racismo, Cotas, papel do negro na mídia
brasileira, empoderamento da mulher negra.
Nas turmas de 1º Ano, serão trabalhadas as sociedades africanas antes da dominação
europeia, bem como sobre a escravidão dentro e fora do continente. Os estudantes irão
desenvolver um trabalho onde serão separados por grupos e terão que pesquisar, produzir
material de divulgação, material artístico para ornamentação e exposição relacionado ao
conteúdo que ficou dividido pelos seguintes assuntos:
Antigo Egito: sociedade e cultura/política e economia/religião/conhecimentos
matemáticos e astronômicos;
Reinos Africanos: destacar os aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais
dos seguintes reinos – Reino Iorubá/Reino do Benin/Reino do Congo/Gana/
Mali.
Cinema e História: Os filmes, documentários, séries ou animações escolhidas
deverão contemplar uma das temáticas indicadas: escravidão, racismo,
intolerância religiosa, empoderamento da mulher negra.
Nas turmas do 2º Ano serão abordados temas pertinentes à influência africana na
formação sociocultural do Brasil. As apresentações irão contemplar elementos que foram e são
de extrema importância para a formação da cultura nacional. Os estudantes podem se valer de
indumentária, comidas típicas, músicas, coreografias, exibição de vídeos, videoclipes. As
temáticas por sala ficaram divididas da seguinte forma:
Linguagem e Literatura: autores negros na literatura nacional; análise da
presença do negro na literatura brasileira; a “africanidade” de nosso idioma, por
meio da criação de um pequeno dicionário sobre termos africanos no português
do Brasil;
Gastronomia afro-baiana: acarajé, caruru da Bahia, o azeite de dendê como
elemento principal da culinária afro-baiana e pratos diversos desta;
82
Música e Dança: O ritmo ijexá na MPB, o poder do axé music, o nascimento e
perpetuação do samba - permitidas apresentações de dança para todos os temas,
desde que precedidas de discussão teórica dentro do contexto que a apresentação
se pauta. Produção e apresentação por meio de exposição de instrumentos
musicais de origem africana;
Religião e Religiosidade: Candomblé, Umbanda, tambor de Mina - MA/
Batuque (RS).
Nas turmas de 3º Ano, os temas abordados tratarão das problemáticas e desafios étnicos
contemporâneos, tendo em vista que nestas turmas os estudantes estão aprendendo sobre a
história moderna e contemporânea do Brasil e da humanidade, observando que estes também
devem estar por dentro do mundo que os cerca por conta das possíveis temáticas de redação do
ENEM e outros vestibulares, entendendo, por sua vez, a grande relevância a discussão sobre
tais termas. Os estudantes irão desenvolver trabalhos para serem apresentados aos colegas,
professores e toda a comunidade externa visitante.
As temáticas por sala foram divididas da seguinte maneira:
Intolerância Religiosa;
Empoderamento da Mulher Negra;
Racismo.
Ficam abertos os métodos de apresentação: peça teatral, produção de documentário,
musical, apresentação de dança/coreografias, desde que estejam ligados ao tema de cada sala e
haja uma discussão prévia sobre o conteúdo abordado.
Na sexta-feira, dia 23/11/2019 serão realizadas as apresentações artístico-culturais. A
produção artística-cultural poderá ser individual ou em grupo e poderá ter um tema diferente da
pesquisa teórica realizada pela turma, desde que respeite a temática geral do projeto. A
apresentação poderá ser somente para sua turma ou no pátio para toda a escola, ficando o
professor-colaborador responsável pelo agendamento da apresentação.
Sugestões de Atividades Culturais a serem desenvolvidas pelos estudantes:
Desfile da Beleza Negra 2019 (Garoto e Garota Ébano 2019)
Os participantes deverão fazer uma pesquisa para caracterização de roupas e acessórios
voltados à temática africana, bem como fazer uma breve apresentação do caráter histórico de
83
todo o simbolismo da construção da vestimenta e indumentária. Serão escolhidos por meio
de uma banca de jurados.
Apresentação de grupos de Capoeira
Evidenciando o esporte como vertente cultural de resistência ao longo da história do negro
no Brasil.
Apresentações de musicalidade, dança e coreografias
Relevantes ao tema da Consciência Negra, os estudantes apresentarão trabalhos que tratem
de musicalidade e/ou dança no dia anterior, podem reapresentar as partes coreografadas de
seus trabalhos.
Exposição de telas, fotografias, grafite, histórias em quadrinhos, poemas e teatro.
Apesar de não concordar com o uso de critérios avaliativos por acreditar que tal atitude
vem de uma postura curricular eurocêntrica engessada, o projeto de Kezia propõe, como forma
de incentivo da participação dos estudantes ao evento, com atribuição de pontuação. São eles:
Apresentação dos trabalhos: nas apresentações, os grupos deverão demonstrar domínio
do conteúdo abordado e clareza nas informações, bem como organização tanto do
trabalho, quanto do espaço em que vão apresentar. No caso de grupos com exposições
artísticas como danças, artesanatos, arte tribal africana e gastronomia, deverão trazer
folders, cartazes e informativos a serem entregues aos espectadores, bem como fazer
uma pequena apresentação teórica do tema abordado. Para os estudantes que irão
discutir problemas contemporâneos, além de domínio e clareza, é importante que se
mantenha a imparcialidade ao discutir determinados assuntos. Estes quesitos terão valor
total de 1 (um) ponto;
● Criatividade, originalidade e relevância com o tema central das apresentações culturais:
os estudantes deverão se valer de dotes artísticos e culturais para desenvolverem um
trabalho (dança, música, teatro, poema, telas, cerâmica, fotos, grafite, história em
quadrinhos etc.), tudo dentro da temática do Projeto Consciência Negra. Valor total: 1
(um) ponto.
Obviamente, a proposta de Kezia só tem condições de ser executada anualmente devido
à complexidade de sua organização, diferentemente das outras metodologias apresentadas
anteriormente por Andreia, Sandro e Jéssica, que podem ser trabalhados durante todo ano de
forma transversal. As ações atendem ao que diz a Lei 10.639/2003 que inclui no currículo
84
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira",
no calendário escolar o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’. Ainda
sobre as propostas apresentadas pelos estudantes, é preciso ressaltar que o aluno Flavio Prates
Cruz não entregou sua proposta.
3.7.6. Relato de Experiência dos Estudantes
Conforme consta no plano de ensino, no primeiro dia de encontro eu perguntei aos
estudantes qual era a experiência que eles tinham com a Lei 10.639/2003, como forma de relato
de pré-experiência. Ao final do curso, solicitei que fizessem o relato de pós-experiência,
digitado e filmado. Seguem abaixo pequenos recortes do que considero mais interessante nas
falas dos estudantes sobre as leituras que tiveram com as vivências do curso.
No curso experienciei o quanto é fantástica a Pedagogia de Terreiro, percebi a
necessidade que extrapõe a Lei 10.639/03, dando o lugar de fala aos povos que
trouxeram suas raízes e fizeram da historicidade dos fatos a mistura simbólica e étnica
para construção do Brasil [...] Cada encontro nos fez pensar acerca dos conflitos
existentes, discriminação, preconceito, e a Lei enquanto medida no processo de
afirmação política dos povos negros em seus movimentos de luta e resistência. Além
disso, foi bastante prazerosa a proposta de um curso diferenciado que a todo o
momento nos trouxe o quanto é importante e desafiador trabalhar as características
como: Exu nas escolas, a importância dos terreiros, dos rituais, das vestimentas,
acessórios, das cores, comidas, plantas, dos orixás, a cultura como um todo dentro das
suas especificidades, e a contribuição desse arsenal no processo identitário brasileiro.
Por fim, é preciso fortificar as culturas africanas levando conhecimento, informações
que desfaçam a ideia do bem e do mal. Que se criem e se mantenham grupos de
estudos que busquem novos ângulos para fomentar e desconstruir preconceitos raciais,
estéticos, éticos, e religiosos, em vista de trazer a sociedade o respeito as diferenças e
a valorização da história africana (ANDREIA ENCARNAÇÃO, participante do
curso, 2019).
Transgredir é uma das palavras chave para se pensar uma prática pedagógica a partir
de uma Pedagogia de Terreiro e dar autonomia para os sujeitos que aprendem e para
os que ensinam. É reconhecer a importância do outro e valorizá-lo por isso. Nós,
enquanto professores, estamos presos em um sistema de dominação econômica,
política, cultural e epistemológica, e precisamos reinventar nossa forma de dar aula,
necessitamos da criação de uma nova práxis pedagógica e que elas cheguem aos
docentes que já estão em sala de aula; e é esse o grande desafio que se impõe. É preciso
que haja uma formação continuada dos professores para que esses levem estas práticas
pedagógicas para sala de aula e que se conscientizem sobre o passado recente de
caráter colonizador. É fundamental para que se tenha uma humanização e
emancipação dos sujeitos oprimidos pela hegemonia epistêmica do sistema
educacional (SANDRO SOUZA, participante do curso, 2019).
O curso de extensão Pedagogia de Terreiro me permitiu compreender melhor como
funciona e como se aplica a pedagogia da oralidade trabalhada dentro dos terreiros de
85
candomblé e principalmente como trazê-la para dentro do ambiente escolar. Ao longo
das aulas as experiências se mostraram cada vez mais enriquecedoras e
imprescindíveis para o aprendizado dos alunos e dos professores que com ela trabalha
ou dela se utiliza. O objetivo do curso foi preparar professores e membros da
comunidade civil para trabalhar com a Lei 10.639/03 de forma realmente eficaz dentro
da sala de aula, respeitando os costumes, a cultura, os hábitos e os conhecimentos
passados através da oralidade dentro das roças de candomblé, visando principalmente
o estreitamento entre o ambiente escolar convencional como conhecemos com o
ambiente de aprendizado por meio da oralidade que existe dentro das roças de
candomblé. Participar deste curso me fez perceber um mundo de possibilidades para
se trabalhar a história, a cultura, a língua e os dialetos, costumes e conhecimentos
tradicionais que só é possível conhecer através de estudos ou da participação dentro
de uma roça de candomblé. Trazer esses conhecimentos para a sala de aula nos
permitirá fazer com que os estudantes que compõem alguma comunidade afro se
sintam parte pertencente daquele ambiente e com que os demais conheçam e respeitem
as diferenças sociais, étnicas, culturais e religiosas dos demais (FLAVIO CRUZ,
participante do curso, 2019).
Esse curso formação de Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro tem sido muito
importante para mim, para a minha formação enquanto mulher preta, estudante,
professora, agente cultural, isto é, enquanto pessoa. Essa formação me permitiu
construir uma bagagem de conhecimento sobre o candomblé, pois, tudo que eu sabia
era muito raso. Com essa formação eu conheci as dinâmicas das vestimentas, das
danças, dos rituais, dos alimentos, das canções. Eu pude entender sobre a fé, o
compromisso com a fé. Enquanto agente cultural, contudo, essa formação da
‘‘Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro’’, me permitiu um conhecimento mais
aprofundado sobre o candomblé, me permitiu uma experiência muito significativa. É
lamentável que poucos educadores se interessem pela temática e são muitos que estão
presentes em sala de aula, com alunos negros e alunos pertencentes à religião do
candomblé. Ao falar do candomblé, eu acredito numa luta diária, muito antiga, jamais
vencida. É, sim, uma escola de significativa formação (JÉSSICA SOARES,
participante do curso, 2019).
Durante esse curso eu pude encontrar vários conhecimentos e debates, onde foi
relatado sobre ancestralidade, terreiro, oralidade, como as crianças adeptas do
candomblé sofrem preconceitos dentro do ambiente escolar, a gente pode observar
isso, que, de fato, existe intolerância religiosa nas escolas. Dentro do curso
aprendemos a tomar consciência sobre esse problema e reconhecer a riqueza que as
religiões de matriz africana têm para contribuir dentro do currículo da educação
formal. Trazer essa pedagogia de terreiro, trazer esse conhecimento e fazer com que
ele ganhe vida dentro das ações e das atividades que a gente realiza no dia a dia das
nossas escolas. Essa prática me inquietou muito, pois eu, enquanto educadora, procuro
trabalhar com os nossos alunos essa questão do respeito, do reconhecimento, dessas
religiões que existem na nossa cidade, para trabalhar a tolerância. E o curso me
possibilitou trazer ainda mais para minha prática, por meio da quebra de preconceitos,
buscando uma inserção real, porque a Lei em si não faz, quem realiza e realmente dá
vida a Lei somos nós, educadores de sala de aula. A proposta do curso foi muito boa
porque ela abriu o horizonte de inquietude e provocação. Esse ano eu inseri saberes
adquiridos no curso no projeto de Consciência Negra da escola, trabalhamos roda de
conversa, abordamos a religiosidade e intolerância religiosa (KEZIA MERLO,
participante do curso, 2019).
86
4. O DOCUMENTÁRIO: Análise Fílmica – IGBÁBÒ (Resistência)
Por ser um método interpretativo que não possui uma fórmula a ser seguida, optei por
criar um caminho próprio e desenvolver categorizações para dar embasamento à análise que
compreende a narrativa do filme e a sua composição enquanto artefato final. É nesse caminho
próprio que preciso percorrer no sentido de expor os passos que tracei para realizar uma análise
da implantação da Pedagogia de Terreiro Exuriana. A ideia surge da dificuldade encontrada
para tecer os caminhos da análise fílmica, já que não há textos exclusivos que explicitem
exemplos de como a temática é empregada em determinadas pesquisas.
O documentário IGBÁBÒ (Resistência)33, é fruto de filmagens feitas do curso de
formação docente “Pedagogia da Ancestralidade e Terreiro: práticas antirracistas,
de(s)coloniais e a aplicabilidade da Lei 10.639/03”, que retrata os meandros dessa formação. A
escolha do nome representa a ideia das vivências do curso, que os saberes de terreiro aprendidos
e ensinados possam ser multiplicados pelos professores participantes do curso transformando a
realidade em que atuam, por isso é preciso resistir.
Destaco que, diante da ideia de trabalhar com uma educação exuriana e levar saberes
referenciados por essa pedagogia para espaços escolares, procurei meu mais velho, meu
sacerdote, Ifalola Eegungbade Akanmu, para que me aconselhasse sobre o nome para dar ao
título do documentário. Ele fez o mesmo caminho e procurou ao sacerdote dele. Um diálogo
foi estabelecido para que eu explicasse o objetivo da pesquisa e do documentário.
Não se chegava a um consenso quanto aos termos “educação às avessas” numa tradução
que pudesse dizer em iorubá o que eu queria dizer. Expliquei novamente meu objetivo, qual
seja, produzir uma educação que resistisse à sanha do pensamento único europeizante. Meu
interesse era o de colaborar na luta contra o racismo estruturado nas escolas. Uma vez que meu
oluwo entendeu o sentido do que eu queria dizer, que compreendeu o movimento às avessas e
espiralado ali presente, ele me disse, consultei o africano: é igbábò, é resistência!
Para realizar a análise fílmica, consideramos aspectos que se referem aos elementos da
linguagem audiovisual os quais dão forma ao produto. É preciso decompor os elementos
constitutivos do audiovisual para recomporem-se novamente, sob nova interpretação:
É despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais
que não se percebem isoladamente “a olho nu”, pois se é tomado pela totalidade.
33 Link do documentário: https://www.youtube.com/watch?v=t8pQsy4mxPQ&t=655s.
87
Parte-se, portanto, do texto fílmico para “desconstruí-lo” e obter um conjunto de
elementos distintos do próprio filme (VANOYE; GOLIOT- LÉTÉ, 2002, p.15).
O filme deve ser reconstruído, em seus planos e sequências, seus enquadramentos e
cenas, em seus ângulos e sons, porque somente pela compreensão dos elementos decompostos
se consegue fazer a interpretação. Esse processo de desconstrução/reconstrução audiovisual
“permite uma visão das partes em relação ao todo, o que faz a diferença na hora de analisar e
interpretar; no entanto, é preciso ter cuidado para que não se construa outro filme”
(MOMBELLI; TOMAIM, 2014, p. 3).
O documentário diz muito sobre seu realizador, principalmente sobre suas intenções
com a produção. O primeiro aspecto e ser observado é o áudio, com isso pode-se observar os
sons que compõem o filme, os momentos em que são ouvidos. Neste caso foi feito um
tratamento de ruídos ao fundo das cenas; o uso de áudio de algumas cenas foi sobreposto em
cima de outras; o uso de música de fundo que melhor pudesse exprimir o sentimento sobre cada
assunto abordado nas cenas de relatos e discussões.
O segundo aspecto a ser observado é o visual. Uma vez feitas as filmagens, iniciou-se a
fase de cortes, já que foram 30 horas de filmagens. Foi como cortar na carne, transformar essas
30 horas em um documentário que tenha em média 40 minutos. Foi preciso observar a posição
da câmera em relação ao objeto e pessoas filmadas. Era necessário que o pano de fundo, o
enquadramento, a proximidade ou distanciamento da câmera conseguissem transmitir uma boa
mensagem visual e se realmente se fazia entender, não havendo ruídos imagéticos dando
margem a interpretações outras.
A edição, neste momento, foi fundamental, e foi feito um trabalho de parceria com o
editor de imagens, que fez a leitura e discussão de meu memorial. Neste aspecto visual,
trabalhamos a arte para situar o espectador. Como dito anteriormente, a sobreposição de outros
áudios em cima de algumas cenas; a sobreposição de fotos em cima de algumas cenas; a
sobreposição de cenas em cima de outras cenas, para que melhor representassem a mensagem
a ser transmitida; janelas intermediárias padrão quando muda de um tema para outro para situar
o espectador; legendas, tratamento de imagem, efeitos visuais de transição entre as imagens,
dentre outros recursos.
O terceiro aspecto é o sentido ideológico, uma vez que a mensagem transmitida pelo
documentário tem como objetivo-fim transformar a realidade dos sujeitos que venham a assisti-
lo.
88
Ainda, no que diz respeito aos métodos de análise fílmica, utilizamos a pesquisa
bibliográfica para a construção deste memorial, que foi instrumento imprescindível para
compreendermos as temáticas apresentadas no decorrer do filme, que estão imbricadas as
atividades produzidas no curso:
Quadro 1: Educação às avessas baseada no Movimento Espiralado de Exu: uma pedagogia
de terreiro decolonizadora Fonte: a própria autora.
Conforme apresentado no Quadro 1, o documentário retrata as atividades produzidas no
decorrer do curso de formação docente, no qual não há início nem fim, porque é envolvido no
movimento espiralado de Exu, que é dinâmico, uma vez que atividades decolonizadoras podem
levar à transformação da realidade escolar.
No curso ministrado, os temas propostos para que os saberes de terreiros pudessem ser
aprendidos/ensinados foram: Roda de conversa sobre Pedagogia de Terreiro Exuriana; visita a
Mãe Luziene de LogunEdé – o que é um Ilê; Oficina de Dança do Orixás no Ilê Asé Silé Iná
Tutun Omo Torrundê; Oficinas de Mitologia e Vestimenta, fechando com os Relatos Finais dos
estudantes participantes e sacerdotes do Candomblé.
Para situar o expectador em relação a cada um dos temas da Educação às avessas
baseada no movimento espiralado de Exu, o documentário apresenta, conforme o Quadro 2, um
recurso audiovisual ilustrativo de uma janela intermediária que traz o Orixá Exu em movimento,
vindo ao encontro do expectador, esvaindo-se num movimento espiralado de acordo com a
Pedagogia de Terreiro Exuriana
Mãe Luziene de LogunEdé
O que é um Ilê
Oficina de Dança
Ilê Asé
Silé Iná Tuntun Omo Torrundê
Oficinas de Mitologia e Vestimenta
Relatos Finais
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proposta do tema, formando a legenda do assunto a ser apresentado, com uma trilha sonora
padrão.
Quadro 2: Janela intermediária padrão:
Recurso audiovisual ilustrativo com a imagem de Exu, o movimento espiralado e a legenda. Fonte: a própria autora.
No documentário, há uma grande dependência de testemunhos na sua narrativa. Esse
uso massivo configura como lógica do fragmento, que nada mais é que, fracionar cenas do todo,
não contemplando a presença do inteiro. Assim, “o fragmento deixa-se ver pelo observador tal
como é, e não como um fruto de uma ação do sujeito”. O fragmento é um recorte, uma
reconstrução. Ao renunciar a pertença a um todo “o fragmento torna-se ele próprio sistema”,
compondo um novo inteiro (CALABRESE, 1987, p. 88-89).
A lógica do fragmento pode ser observada em vários momentos, principalmente nas
Oficinas de Mitologia e Vestimentas e nos Relatos Finais, nas quais os diálogos e contação de
histórias não são apresentados em sua versão integral, com início, meio e fim, mas sua
apresentação se dá por fragmentos sequenciados de cenas, onde a sua totalidade traz o
entendimento da mensagem que se quer transmitir.
O último aspecto de análise foi apoiar-se nos testemunhos das personagens por acreditar
que é necessário fazer ecoar as vozes através da oralidade, base da Pedagogia de Terreiro, diante
de dois grupos de vozes: os estudantes participantes do curso e os colaboradores. Sobre os
estudantes participantes foi primordial saber suas sensações por meio dos testemunhos sobre as
90
vivências no curso; e quanto aos colaboradores, babalorixás e yalorixá, todos com legitimidade
de fala, foi fundamental que testemunhassem sobre suas experiências de vida no Candomblé.
91
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Por uma educação às avessas
O documentário “Igbábò” foi fruto de filmagens do curso de extensão para formação
de professores, através da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus Eunápolis, que
teve por objetivo trazer a Pedagogia de Terreiro Exuriana, e, por meio desta, decolonizar os
saberes. A ideia é que os professores participantes do curso se tornem multiplicadores e
repliquem a valorização desses saberes dentro dos espaços escolares, decolonizando e
enegrecendo o currículo, atravessado pelo axé. As discussões do curso se pautaram na tríade:
-Ancestralidade/memoria/pertencimento;
- Oralidade/história oral/mitos;
- Coletividade/resistência/decolonização dos saberes.
Para fugir dos muros da Universidade, as aulas do curso ocorreram:
- No Centro Cultural Viola de Bolso, com discussões de textos, oficina “Mitologia dos
Orixás”, Oficina de “Vestimenta”, e “Relatos Finais”.
- Visita ao barracão de Mãe Luziene de LogunEdé, sob a temática “ O que é um Ilê”;
- Visita ao Ilê Asé Silê Iná Tutun Omo Torrundê, com a “Oficina de Dança dos Orixás”.
É necessário enfatizar sobre o risco que uma categorização de trabalho traz, a
metodologia utilizada no curso não se reduz ao enquadramento proposto, está aberta e mostra-
se continuamente borrada, sem impedir que novas discussões sejam feitas, pelo contrário, são
bem vindas.
Durante o curso já era perceptível o quanto os saberes atravessavam os participantes.
Ideias borbulhantes emergiam, brotavam de suas bocas durante as discussões e o saber
circulava, enquanto colaboradora agi como um instrumento mediador, o conhecimento foi
circular, nunca vertical ou horizontal, aprendi mais do que ensinei e, principalmente, uma
explosão de novas propostas surgiram, o que fizemos foi um “ebó epistemológico”:
Tomo como efeito de um ebó epistemológico a presença de Exu encruzado no debate
educativo. À medida que Exu atravessa o debate, fundamentando uma pedagogia que
lhe é própria, emergem transformações que desmantelam completamente a
organização das estruturas dominantes [...] Toda e qualquer ação que mire a
transformação radical presume o conflito e o tem como potência [...] A noção de ebó
epistemológico vem a contribuir para enfatizar as questões dos conhecimentos como
parte também de uma problemática étnico-racial. De fato, existem instâncias dos
conhecimentos versados na esteira ocidental que não só negam, como também são
incapazes de pensar o mundo a partir de elementos assentes em outros modos de
racionalidade (RUFINO, 2018, p.80).
92
Os participantes do curso apresentaram propostas que foram discutidas no decorrer do
curso, todas com possibilidade de realização. Duas já se concretizaram: o evento da participante
Kezia Merlo, na escola em que atua “África e Africanidades: cultura e memória na construção
da sociedade brasileira”, e o trabalho da participante Jéssica Soares no Espaço Cultural Viola
de Bolso, no qual ela trabalha com rodas de conversa e oralidade através do “círculo de cultura
de Paulo Freire”, a produção visual através de pintura temática, colagem sobre o papel com
imagens de orixás feitas de recortes de revistas, contação de história e mitos, criação de histórias
em quadrinhos sobre a racismo religioso para despertar nos estudantes um sentimento de
reconhecimento, valorização, respeito e autoestima.
Sobre o documentário Igbábò, que ele possa ter um grande alcance e possa ser visto por
muitas pessoas. Pelas redes sociais, através de palestras e aulas, que ele possa atravessar aos
olhos de quem assiste provocando uma transformação e ressignificação desse olhar. Que Exu
se encarregue de alargar os caminhos de contágio positivo e que a decolonização venha pela
educação às avessas. Que o filme tenha a função de material didático e sirva de inspiração para
futuros pesquisadores. Não descarto fazer uma edição em formato de série documental, para
diversas apresentações dentro de um curso de formação de professores, para provocar
discussões temáticas a cada nova aula.
Acredito que encontrarei diversas barreiras devido ao racismo religioso enraizado nas
almas de educadores “evangelizadores”. Não quero e não vou ter uma visão ingênua de achar
que conseguirei fazer com que sujeitos de crenças diferentes da minha (carregados de uma
bagagem pesada de preconceitos) assistam o filme, para esse público em especial, acredito que
terei mais êxito se trabalhar oficinas ministradas em curso de formação de professores. É um
desafio. Mais que ensinar a resistir – “Igbàbó”, é preciso ensinar para transgredir:
A academia não é o paraíso. Mas o aprendizado é um lugar onde o paraíso pode ser
criado. A sala de aula, com todas as suas limitações, continua sendo um ambiente de
possibilidades. Neste campo de possibilidades temos a oportunidade de trabalhar pela
liberdade, de exigir de nós e dos nossos camaradas uma abertura da mente e do
coração que nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente,
imaginamos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como
prática da liberdade (HOOKS, 2017, p. 273).
Sigo em frente numa atitude provocativa, a praticar os saberes de terreiro que aprendi,
plantando sementes, por acreditar que minhas ações atravessam e transformam o Outro, e que
essas sementes brotam num belo, florido e colorido jardim de conhecimentos decoloniais, em
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que a empatia é a base. Enxergar o Outro como um sujeito de amplas possibilidades, e que
somente numa ação coletiva poderemos transformar a realidade.
94
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