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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 5 a 9/9/2016
Mise-en-scène noir em Vivian Maier: entre o imaginário e o real1
Fabíola Paes de Almeida Tarapanoff2
Márcia Rodrigues da Costa3
FIAM-FAAM-Centro Universitário e Universidade de Sorocaba (UNISO)
RESUMO
O artigo estabelece relações entre a obra de Vivian Maier e a estética noir, partindo da concepção da
imagem não só enquanto índice, mas também como imaginação. A atuação da fotógrafa, ocultada pela
profissão de babá, é analisada conforme os elementos também presentes nos filmes de Hitchcock, como o
suspense, a fantasia, os contrastes entre o claro e o escuro. Assim como em Hitchcock, a mise-en-scène de
Vivian Maier é pontuada pelo curioso, pelo inesperado e pelo misterioso, revelando ao espectador a
coexistência das suas duas identidades (a babá e a fotógrafa) e a interlocução com a cidade.
Sua fotografia é fortalecida pelo imaginário que gira em torno dela, motor
das suas construções ficcionais, de uma estética permeada pelo noir.
Palavras-chave: fotografia; cinema; Vivian Maier; Hitchcock; cinema noir.
1. Introdução
Foi somente há alguns anos que o mundo passou a conhecer Vivian Maier.
O trabalho da agora famosa babá fotógrafa americana só foi revelado após sua morte.
Depois de 50 anos mantendo segredo sobre o ofício de fotógrafa, sua obra ganhou
notoriedade depois que o historiador John Maloof comprou os negativos de Maier em
uma casa de leilão em 2007, na cidade de Chicago (EUA).
Maloof descobriu inúmeros registros que Maier produziu em diversas cidades,
essencialmente em Chicago e New York, durante os quarenta anos em que ela viveu nos
Estados Unidos. Parte da sua produção realizada de forma catártica, espontânea e
sensível consta no livro organizado pelo historiador, intitulado Vivian Maier: uma
fotógrafa de rua (2014).
1 Trabalho apresentado no GP Fotografia, XVI Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento
componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutora em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e professora universitária do curso
de Comunicação Social – Habilitação: Jornalismo do FIAM-FAAM-Centro Universitário. E-mail:
[email protected]. 3 Pós-doutoranda em Comunicação e Cultura na Universidade de Sorocaba (UNISO - bolsista Capes), doutora e
mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Bernardo do Campo e especialista em História e
Historiografia de São Paulo pela Universidade Bandeirantes (Uniban), também com Bolsa Capes.
E-mail: [email protected].
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A figura da talentosa fotógrafa foi, durante anos, ocultada pela figura de babá.
No entanto, ela, que nunca aparentemente estudou formalmente a fotografia, produziu
mais de 100 mil imagens entre 1950 e 1990 coletadas em dezenas de países,
principalmente nos EUA.
Aqueles que conviveram com a babá contam no documentário Finding Vivian
Maier (2013), dirigido por Maloof (e que concorreu ao Oscar de Melhor Documentário
em 2015) que ela era uma pessoa de hábitos excêntricos (como colecionar jornais com
notícias bizarras e muitos outros tipos de objetos, agrupados por ela em um grande
galpão alugado), de vida reservada e misteriosa. Viveu de maneira privada,
provavelmente nunca se casou, não teve filhos nem nutriu muitas amizades.
Eis “[...] alguém que existe unicamente nas coisas que viu”, escreveu Geoff Dyer no
livro organizado por Maloof (2014, p.8).
Vivian Maier produziu muitos autorretratos ao longo de sua vida, tanto em
ambientes internos quanto externos, uma autobiografia por meio de imagens.
Registrava com sua câmera cada momento que lhe atraísse a atenção, como moradores
de rua, afrodescendentes, animais, o comércio ativo, as mulheres, em muitas cenas que
captavam o espírito da cidade em transformação (como ruínas de casas antigas e
construções novas). Também produziu muitos autorretratos, tema do qual nos ocupamos
mais neste artigo.
Interessa-nos aqui os autorretratos de Maier4 produzidos na cidade, em que ela
se insere no cenário de forma curiosa, em diálogo com pessoas que circulam pela
metrópole em desenvolvimento, algo próprio da sua mise-en-scène, conceito sobre o
qual nos deteremos neste artigo. Chama a atenção o fato de a figura de Vivian surgir em
cena de forma curiosa e surpreendente, tal qual um personagem de Hitchcock. É o que
ocorre, por exemplo, na foto em que ela projeta sua imagem em um espelho que está
sendo movimentado na rua por um trabalhador, surgindo de forma inusitada na cena.
Em outra ocasião, registra sua imagem de dentro de uma cabina, enquanto em muitas
outras fotografias ela congela sua imagem de frente para a vitrine das lojas.
4 As fotografias de Vivian Maier aqui apresentadas foram extraídas do site oficial sobre a fotógrafa (ver Referências).
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Imagens 1, 2, 3 e 4 - Vivian Maier
Percebe-se que tanto no livro e no filme organizados por Maloof há toda uma
narrativa construída em torno da babá misteriosa, cuja paixão pela fotografia poucos
conheceram. Tal narrativa, que provém de um imaginário criado em torno de sua figura,
nos auxilia a entender o interesse que suas fotografias provocam no público. Por trás da
imagem aparente de Vivian Maier está um mistério que instiga a imaginação do
espectador sobre a vida dividida entre a atuação como fotógrafa e como babá.
2. Imaginário e autoreferência em Vivian Maier e Hitchcock
Segundo Maffesoli, “o real é acionado pela eficácia do imaginário, das
construções do espírito” (p. 75). Ele é, para além de “[...] um conjunto de elementos e de
fenômenos passíveis de descrição”, [...] configurando-se como “[...] o estado de espírito
de um grupo, de um país, de um Estado nação, de uma comunidade, etc.
O imaginário estabelece vínculo. É cimento social” (p.76). Contém “o onírico, o lúdico,
a fantasia, o imaginativo, o afetivo, o não racional, o irracional” (pp.76-77) e
principalmente o mistério.
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Na sua relação com o tempo, a fotografia de Vivian Maier carrega em si “um
reservatório do imaginário”, termo cunhado por J.M.Silva (apud GISLENE SILVA, p.6,
2010), por “agregar sentimentos, lembranças leituras de vida”. Enquanto “motor,
elemento propulsor”, o imaginário, conforme Silva, “retorna ao real, seria um sonho que
realiza a realidade, funcionando como catalisador, estimulador e estruturador das
práticas”. Assim, afirma o autor, “todo indivíduo submete-se a um imaginário
preexistente e todo sujeito é um inseminador de imaginários”:
Não se trata de algo simplesmente racional, sociológico ou psicológico,
pois carrega também algo de imponderável, um certo mistério da
criação ou da transfiguração. O imaginário é uma força social de ordem
espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível,
mas não quantificável.
3. Entre luzes e sombras: estética noir
Em História do cinema mundial, Fernando Mascarello (2006, p.78) dedica
importância à afirmação de que o noir não seria um gênero, principalmente por acolher
vários gêneros. O autor ressalta que as concepções sobre essa estética variam conforme
os estudiosos do campo: “para Raymond Durgnat, por exemplo, o noir seria uma
“atmosfera”; para Paul Schrader, um “tom”; Janey Place e Robert Porfirio vêem-no
como um “movimento” e Jon Tuska como um “estilo” e uma “perspectiva quanto à
existência humana e à sociedade”. (184). Dessa forma, conclui Mascarello que “[...] o
noir não é gênero, nem tom, nem estilo. É um fenômeno, e acima de tudo social
(espectatorial). A maior prova de que existe? A fascinação que produz, o desejo que
desperta: a “mística noir” (p. 185).
O noir é “um objeto de beleza” por sua estranheza e por fazer uma crítica ao
“capitalismo selvagem”, explica o autor, citando Vernet. O fascínio do noir ocorre “em
termos de “fantasia, um desejo pela categoria enquanto tal, uma necessidade de que ela
exista para que se ‘tenha’ um conjunto de filmes reunido” (p.121).
O autor promove, por meio das explicações de Timothy Corrigan, uma relação
entre o filme cult e o noir. Ao que parece, ambos têm um apelo excêntrico e marginal,
ao qual o espectador responde bem. Isso ocorreria por conta da transformação do
público em privado, com vistas à construção de espaços privativos, facilitadores da
encenação (experimentação) de novas subjetividades. Com base nessa influência, teria-
se, no noir, um redimensionamento da identidade do homem. “Mas, sendo privado,
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reluta ainda em se mostrar público...” (p. 186). Ou seja, a estética noir é definida
principalmente por sua capacidade de produzir narrativas enigmáticas:
Em sua busca por produzir narrativas mais enigmáticas, os filmes
alemães também se destacavam por um tipo de decupagem em que o
uso do espaço offscreen (o espaço fora da tela) adquiria diferentes
significados, especialmente o de fonte de imprevisibilidade e enigma.
No emblemático A rua (1923), de Karl Grune, um cidadão burguês
(Anton Edhoefer) se perde no caos urbano e nos perigos da noite, em
situações que seriam repetidas muitas vezes pelo cinema alemão e pelo
cinema noir. Nesse filme, a atenção do espectador é dirigida
freqüentemente para o espaço fora da tela, enfatizando a ameaça do que
não pode ser visto. (2000, p.91)
Na obra Tudo sobre cinema afirma-se que suas origens remontam às sombras,
aos ângulos e ao mundo paranóico do Expressionismo Alemão, de cineastas como
Friedrich Wilhelm Murnau com Nosferatu (Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens,
Alemanha,1922) e Fritz Lang com Metrópolis (Metropolis, Alemanha,1927).
A expressão noir foi aplicada pela primeira vez a um filme pelo crítico francês Nino
Frank, em 1946, por analogia com os romances policiais da Série noire, uma coleção
criada pela Gallimard, em 1945. Eram livros que tinham capa preta e amarela, com
sobrecapa preta e bordas brancas.
Entre os recursos cinematográficos do noir, inspiradas no Expressionismo, estão
a iluminação chiaroscuro, ângulos inusitados, flashbacks, narração sobreposta em
primeira pessoa, narrativa não linear e diálogos ácidos e rápidos. O primeiro filme
considerado noir em Hollywood é O homem dos olhos esbugalhados (Stranger on the
third floor, EUA, 1940), dirigido por Boris Ingster, um suspense complexo e sombrio,
estrelado pelo expatriado europeu Peter Lorre.
A obra mais defendida como a originária do ciclo noir em Hollywood seria
O falcão maltês (The maltese falcon, EUA, 1941 – dirigido por John Huston e baseado
em romance de Dashiel Hammett), com Humphrey Bogart, que traz todas as marcas que
consagram o estilo: iluminação chiaroscuro e herói que tem uma personalidade que
oscila entre luzes e sombras, amargo com o passado e atormentado pela paixão por uma
femme fatale - como foi o caso de Gilda (EUA, 1946 - Direção: Charles Vidor),
personagem do filme homônimo estrelado por Rita Hayworth, que seduz os homens e
os leva à ruína.
Esses filmes de temática mais adulta abordavam histórias de detetive, crimes, em
oposição aos alegres musicais que tanto marcaram os anos 1930 e 1940. Eram reflexo
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também dos tempos da Segunda Guerra Mundial e várias obras mostram essa questão,
como o aclamado “maior romance de todos os tempos”: Casablanca (EUA, 1942,
dirigido por Michael Curtiz) com Bogart e Ingrid Bergman. O gênero caracteriza-se
assim
pela falta de confiança entre os personagens, pela perda da inocência,
por um cenário urbano hostil […]. O noir serviu como uma reação aos
musicais e comédias românticas hollywoodianas da época. Enquanto o
cinema tradicional se orgulhava de seus heróis imaculados e de suas
heroínas adocicadas, o cinema noir exibia um pelotão de anti-heróis e
femme fatales (KEMP, 2011, p.169).
Outro grande cineasta marcado pela estética expressionista e que compreendeu o
potencial do cinema em criar efeitos psicológicos complexos, ao mesmo tempo em que
abordava temas controvertidos, foi o mestre do suspense, Alfred Hitchcock.
Seu primeiro filme considerado noir foi A sombra de uma dúvida (Shadow of a doubt,
EUA, 1943). Era o filme favorito do diretor e tinha marcas do noir como falso
moralismo e uso de luzes e sombras.
Aclamado pela geração de diretores da Nouvelle Vague e da revista Cahiers du
Cinèma, como François Truffaut, Eric Rohmer e Claude Chabrol por seu cinema mais
autoral, Hitchcock continuou a usar muitas características do noir em seus filmes, como
o tema da culpa, do desejo, do homem acusado injustamente e recursos narrativos como
flashbacks, câmera subjetiva, com o ponto de vista do personagem, como em Janela
indiscreta (Rear window, EUA, 1953) e Um corpo que cai (Vertigo, EUA, 1958) e
espaços confinados, que influem na psicologia dos personagens e leva a uma
dramatização teatral, como em Festim diabólico (Rope, EUA, 1948). O próprio
Hitchcok era teatral e gostava de deixar sua marca, aparecendo nos filmes. Como as
pessoas passaram a prestar atenção demais em quando surgiria nas suas obras, ele
começou a aparecer logo no início, para que não desviassem a atenção da história. Eric
Rohmer e Claude Chabrol escreveram um livro sobre sua obra, Hithcock: The First
Forty-four Movies e dizem o seguinte sobre o diretor:
Hitchcock é um dos grandes inventores da forma em toda história do
cinema. Talvez apenas Murnau e Eisenstein podem sustentar uma
comparação com ele em termos de forma. Nosso esforço não será em
vão se pudermos demonstrar como todo um universe moral foi
elaborado com base na sua forma e no seu rigor. No mundo de
Hitchcock, forma não embeleza o conteúdo, o cria
(ROHMER and CHABROL apud BUCKLAND, p.96).5
5 Tradução realizada pelas autoras a partir do original em inglês.
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4. Mise-en-scène em Viver Maier e Hitchcock: aproximações segundo a
estética noir
Além da imagem que atua como índice do real (DUBOIS, 1993), servindo como
marca ou traço da existência da fotógrafa (então oculta pela babá), a obra de Vivian
Maier é pontuada por uma forte presença do imaginário que vem à tona por conta do seu
mise-en-scène, tal qual ocorre no cinema de Hitchcock. Fernão Pessoa Ramos, no artigo
“A mise-en-scène realista: Renoir, Rivette e Michel Mourlet” define mise-en-scène
como o espaçamento de corpos e objetos em cena. Trata-se de uma herança do teatro,
do final do século XIX e início do século XX e surge com a valorização do diretor,
responsável pela criação da narrativa no espaço cênico. O cinema reafirma sua mise-en-
scène singular nos anos 1950 quando grandes diretores e atores criam uma linguagem
própria cinematográfica:
Mise-en-scène no cinema significa enquadramento, gesto, entonação
da voz, luz, movimento no espaço. Define-se na figura do sujeito que
se oferece à câmera na situação de tomada, interagindo com outrem
que, por trás da câmera, lhe lança o olhar e dirige sua ação. Na cena
documentária, o conceito de mise-en-scène desloca-se um pouco e
pousa, de forma mais solta, na fagulha da ação da circunstância da
tomada (RAMOS, 2012, p.54).
Jacques Aumont, no artigo Renoir le Patron, Rivette le Passeur
(AUMONT, 1992/93), desenvolve interessante análise da mise-en-scène com corte
realista. Aumont explica que duas artes foram responsáveis por criar o cinema: o teatro
e a pintura. Quando se traz o teatro no cinema, torna-se “sensível uma estrutura de
espaço, fundada sobre o fechamento e a abertura”. Nessa perspectiva, Aumont faz uma
linha evolutiva, aproximando os cineastas Jean Renoir e Jacques Rivette: o primeiro,
mais realista, o outro com clara influência teatral. Aumont aponta que nos anos 1940 e
1950 o cinema de Hollywood foi fortemente influenciado por cineastas europeus, como
Otto Preminger, “de de quem os filmes nos anos 1940 e 1950 são remarcáveis pela
precisão maníaca dos gestos, pela movimentação dos corpos, pelo ritmo” (1993, p.229).
O cinema revela assim sua clara influência das artes cênicas e a estética que
surge no período dos anos 1930 a 1950 “é uma concepção de mise-en-scène como
cálculo, como mise-en-place, como construção de ritmo pela montagem, como
marcação de elementos significantes pelo enquadramento” (AUMONT, 1992/93,
p.229). Há ainda a clara influência da pintura e da fotografia, como o próprio Aumont
explica em outra obra O olho interminável (cinema e pintura). Ele considera Louis
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Lumière, criador do cinema ao lado de Auguste Lumière, como o “último
impressionista”, pois busca a partir das suas “fotos em movimento” registrar momentos
que não mais se repetirão, como faziam com seus pincéis velozes pintores como Jean
Renoir e Henri Matisse, fixando o efêmero, o chamado instante impregnante, tema caro
também à fotografia (AUMONT,2004, p.35):
[...] os efeitos de realidade são paradoxais e, em sua vertente, são logo
os fantasmas que encontramos: o fantástico, o de Nosferatu e de
Vampyr, surgindo como efeito exacerbado da realidade mais banal e
tranquila. O extraordinário no ordinário (AUMONT, 2004, p.37).
Em seus autorretratos, o olhar de Maier impulsiona o espectador a fantasiar, a
imaginar sobre sua vida, sobre o que o seu passado ocultou. A estética de Vivan Maier é,
pois, pontuada pelo clima noir, presente nos filmes de Alfred Hitchcook.
Em seus filmes, o cineasta, tal qual Maier, se insere na cena de forma inusitada e
curiosa, captando o olhar do espectador. Suas aparições surgem como um corte, “gesto
radical”, pois “a imagem fotográfica interrompe, detém, fixa, imobiliza, destaca, separa
a duração, captando nela um único instante. Espacialmente, da mesma maneira, fraciona,
levanta, isola, capta, recorta uma porção de extensão”, afirma Felipe Dubois (p. 161).
Segundo o pesquisador francês, trata-se um “Pequeno bloco de estando-lá, pequena
comoção de aqui-agora [...]”.
Imagens 5 e 6 – Hitchcock em Psicose (1960) e Marnie (1964)
Nos cenários em que constrói seus autorretratos, Vivian recorre aos recursos do
espelho, da vitrine e da sombra. Nas fotografias feitas nas ruas da cidade a vitrine atua
como reflexo da sua imagem, seja como parte integrante do enquadramento e da
composição fotográfica, seja como acessório que permite a ela se colocar na foto junto
com seu dispositivo fotográfico, o que implica, como explica Dubois, em incluir no
enunciado o próprio processo de enunciação (1993), mesma ação realizada por
Hitchcock.
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Seus autorretratos e fotografias de ação de rua apontam sua presença, sua marca
na cidade, seja em ambientes internos (banheiros privados ou públicos, por exemplo) ou
externos, em diálogo com o movimento das ruas de Chicago e Nova York, inserida em
uma “modalidade visual que expressasse a vida moderna, sua mudança, velocidade e
alienação resultante” (LEDERMAN, 2012, p.289). Se nos espaços fechados ela se
fotografa geralmente só, na cidade registra-se também acompanhada de outros
personagens urbanos, que aparentam ser desconhecidos seus. Há pelo menos uma foto
em que ela posa ao lado de uma das crianças que provavelmente cuidava como babá.
5. Realidade e ficção em Vivian Maier
A imagem de Vivian Maier é indício de algo que está por trás da tela (a vida
enigmática e oculta) ou indicativo de uma presença que surge, cortando a cena. Eis o
“golpe do corte”, conceito que segundo Dubois permite relacionar a imagem com o real
e com o espaço e o tempo. Essa relação com algo que está fora da tela (que Dubois
denominaria de fora-de-campo) é visível na narrativa que permeia a vida de Maier e que
contamina o olhar do espectador. É como se essa narrativa, esse imaginário sobre ela
atuasse com seu poder de sugestão nesse espaço que o autor chama de “espaço
offscreen”.
Esse imaginário é reforçado pela estética da imagem. Do ponto de vista formal,
marca forte do noir é o uso da fotografia em preto e branco, além dos contrastes
acentuados entre claro e escuro. É dessa forma que Maier acentua, por meio da sombra
e da luz, a relação dual e ambígua de sua vida, marcada pelo que revela e o que oculta,
pela dupla função que executava (fotógrafa e babá). Eis características bastante
evidentes na imagem abaixo:
Imagem 7. Vivian Maier
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Aqui percebe-se a influência do noir, um termo que, logo que cunhado, foi
empregado para denominar “obras de tons escurecidos, temática e fotograficamente”, de
“representação crítica e fatalista da sociedade americana” e que buscavam a “subversão
à unidade e estabilidade típicas do classicismo de Hollywood”, conforme Mascarello
(p.179).
A fotografia de Vivian Maier também traz, no seu enquadramento, a influência
dessa estética (p. 181) por meio da “iluminação low-key (com profusão de sombras), o
emprego de lentes grande-angulares (deformadoras da perspectiva) e o corte do big
close-up para o plano geral em plongée (este, o enquadramento noir por excelência)
(p. 182)”. Assim como na fotografia de Vivian Maier, o cinema noir é rico na utilização
de elementos como “[...] espelhos, janelas (o quadro dentro do quadro)”.
No autorretrato por sombra, reflexo, espelho ou disparador automático, a
imagem de Vivian Maier emerge apresentando também o que Dubois chama de um
‘problema de duplo” (p. 343, p. 344). Em seu autorretrato de frente para uma vitrine,
nos deparamos com a seguinte provocação fantasmagórica: “Ei-lo, esse Sujeito em sua
corrida louca entre dois mundos” (a babá e a fotógrafa), como disse o autor (p. 351), ao
falar de aparências que se conflitam ou dialogam na construção de uma realidade e de
uma ficção que se misturam.
Com relação ao tempo, a foto promove uma imobilização eterna da imagem de
Maier, fixa seu rosto, promove uma passagem, “transposição” do “tempo evolutivo ao
tempo petrificado, do instante à perpetuação, do movimento à mobilidade, do mundo
dos vivos ao reino dos mortos, da luz às trevas, da carne à pedra”, explica Dubois
(p.168). Essa passagem, tal qual a morte, provoca uma áurea de medo, presente na
imagem da Medusa, no seu olhar que alude ao olhar do morto “petrificado, congelado,
estatuificado por ter sido visto – por ser visto a si mesmo como outro. A petrificação
fotográfica não é nada além dessa passagem, infernal e especular” (p.169). Assim, a
fotografia de Maier surge como processo de fantasmização do seu próprio corpo (p.222).
Nessa passagem, “transposição”, ao invés de perda, tem-se “uma outra forma de
sobrevida pelo corte e fixação das aparências” (p.169), agora uma “película da
eternidade” (p.170). Uma máscara pelo olhar cortante ou cortado (p.172), onde a câmera
“executa o corte e congela” a cena, e sua imagem é perpetuada pela câmera, pelo
reflexo.
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A fotografia de Maier é exemplo de que o campo de representação também
inclui o imaginário, formado por imagens e discursos, dando à imagem de Maier a
característica de “imaginário no real” (p.348), atuando, conforme Felipe Dubois, não
apenas como índice, mas também como imaginação, fantasma, ficção. A imagem da
babá-fotógrafa é “Flutuante”, ela “flutua na certeza, oscila-se entre as duas identidades,
em uma diluição “da segurança de identidade do Sujeito”. A construção de uma imagem
dupla por uma única cena, cenário, configura-se em um silêncio que narra “tentativas de
palavras em torno das imagens” (p.354), como fez Denis Roche, explica Dubois.
São “conversas silenciosas”, “circulações nas dúvidas”.
O olhar, enquanto uma categoria de signo “embreante fora de campo” (p.187), é
categoria de índice que ajuda a formar uma atmosfera de mistério, compondo o clima
noir que circunda Vivian Maier, acrescida pelo potencial que a fotografia preto e branco
tem de produzir dramaticidade e do tipo de cenário curioso ou mise-en-scène que
produz.
Em seus autorretratos o olhar de Maier é quase sempre frontal (p.183), como se
ela fitasse o espectador na tentativa de com ele se comunicar, tal qual um fantasma que
anuncia sua presença. Neles ela aparenta a mesma aparência séria por meio de uma
expressão distante, tímida e ao mesmo tempo trágica, pontuada por certo temor, como
ocorre nos filmes de suspense ou terror.
Suas imagens, carregadas da habilidade de unir diversas camadas de significados,
provocam um certo voyeurismo nosso. Seu autorretrato parece revelar e ocultar um
segredo, intrigando o espectador diante das possibilidades que sua figura ou suas
representações suscitam no imaginário de quem olha. No artigo “O fotográfico como
retrato e readymade: a propósito de Alfred Hitchcock”, José António Leitão fala do
retrato enquanto apropriação, ficção:
Toda a tradição retratística se estende, em tensão, entre verdades e
mentiras, em frequentes trocas de papéis: visível-invisível, superfície-
profundidade, interior-exterior, material-imaterial, duradouro-
passageiro, ficção-realidade. Em troca de papéis porque a autenticidade
do retrato se desloca entre os termos – e não só de um para o outro, mas,
literalmente, no meio deles, em territórios contaminados por ambos, por
vários, por todos. (2008, p.210)
Como não se conheceu a figura pública de Vivian Maier, ela tornou-se
conhecida apenas após sua morte. Sua presença se faz pela fotografia, pelo retrato, que
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resgata no tempo, suspenso por meio da própria presença da representação: fora do
tempo e no presente, porque as histórias sobre essa personagens são retomadas, re-
fantasiadas por cada representação.
Após se tornar imagem, a identidade de Maier diluiu-se entre o individual e o
coletivo, o privado e o público, o interior e o exterior, o eu e o outro, o singular e o
plural, o construído e o apropriado, o rosto e o corpo. Marca forte da sua identidade
dá-se pelo seu rosto, seu olhar a nos contatar, a marcar sua atuação para além do tempo,
o retorno pós-morte que surge para reafirmar a identidade de fotógrafa.
Suas roupas, discretas, frias e imperceptíveis tais quais as de um fantasma,
ajudam a compor o figurino de uma personagem de hábitos extravagantes, construindo,
ficcionando e revelando o que há muito esteve oculto: as identidades de babá e da
fotógrafa. Morta ou viva na fotografia que imobiliza o rosto, ela traz seu testemunho
por meio do invisível da fotografia, da imortalidade da alma.
Os mortos povoam as fotografias com os seus corpos: os seus corpos
ainda vivos, convocados em fotografia (tornada natureza-morta) para o
interior de outras fotografias de vivos (hoje mortos) – e os seus corpos
já mortos, encenando a vida ou aceitando a morte. Mas os mortos
povoam as fotografias até sem os seus corpos: plasmas, hesitando entre
o visível e o invisível que se podia acreditar acessível à fotografia
(p.212).
A fotografia de Maier expõe o seu “eu múltiplo, em tensão” (p.213), o um
interior invisível, múltiplo, complexo, fugidio – que se “esquiva” no rosto por meio do
retrato, que revela o “transitório, o complexo, o peculiar, o invisível” e que, por isso,
“podem conduzir o retrato para lá da imagem mimética. Eis o potencial da imagem “que
contém o olho no centro e segura um compasso aberto. Atração da imagem para fora
das aparências para melhor retratar. Interior invisível, complexo, múltiplo”.
No que aparenta ser, à primeira vista, algo ordinário (a simples figura de uma
babá), eis que surge a figura extraordinária de uma mulher que por anos ocultou seu
talento fotográfico. Como Hithcock, Vivian surge na cena de forma despropositada, mas
acaba por ser “lida” com o olhar encantado do espectador que se deixa levar pelas lentes
do enigma.
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Conclusões
Um olhar apurado pela imagética de Maier enxerga em sua mise-en-scène as
características típicas do noir, seja pela via do enigma, seja pela veia do humor (a forma
como cria imagens inusitadas), do realismo (a confirmação da existência da fotógrafa,
que ocorre via fotografia), da influência teatral (o gesto, a presença na ausência).
Nesse sentido, a fotografia de Vivian Maier é representação como encenação, presença
evidente de uma criação e de uma tradição de pose e de composição da personagem.
Sua fotografia apresenta-se como imaginário (fantasia). Ela é
predominantemente marcada pela mise-en-scène presente na estética noir, causando no
espectador um interesse pelo suspense, pelo fantasioso, pelo personagem da fotógrafa-
babá que se revela e se oculta entre a luz e a sombra.
Imagens 8 e 9. Finding Vivian Maier/ Hitchcock em Janela indiscreta
Como Hitchcock, mesmo tímida, ela gostava de se colocar em cena, sempre
trazendo uma narrativa quase teatral, um mise-en-scène próprio a suas imagens.
Suas fotos em preto-e-branco têm um clima noir, com luzes e sombras e mostram o
cotidiano de Chicago e Nova York e congelam um efêmero intrigante, guardando um
mistério que lembra os filmes de Hitchock. E para isso, ela não usa de truques, apenas
têm um olhar apurado para ver o mistério e a beleza do cotidiano. A força de suas
imagens estão nessa antítese: a fixação pela autoimagem (self) em um jogo de espelhos,
faria nos acreditar que estamos diante de uma artista performática ou narcisista. Nada
mais enganoso. Maier era discreta: foi babá por quarenta anos e ninguém soube de
detalhes de sua vida ou de sua enorme paixão pela fotografia, imagens reveladas em um
quartinho escuro e publicadas somente após sua morte, em 2009.
Em um mundo com uma explosão de imagens e em que o self aparece de forma
tão banalizada, Maier surpreende com seus autorretratos, pois ela não buscava se
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autopromover. Como Hitchcock, ao aparecer em suas imagens, buscava imprimir a
marca autoral de uma artista. Em Janela indiscreta ele parece quebrar com a “quarta
parede”’, efeito que se dissolve, quando ele se vira e responde ao pianista. No entanto, o
fascínio de ver o próprio diretor olhando cúmplice para seus espectadores já foi criado.
Nos sentimos vouyeurs, cúmplices de seus crimes, suas histórias e de sua genialidade.
Mas de forma anônima, ao contrário de Hitchcock, que conseguiu fama mundial pelos
seus filmes em vida. Maier só ficou conhecida após sua morte. Ambos eram artistas e
ganharam filmes sobre sua vida: Hitchcock dois filmes recentes (Hitchcock, EUA,
2012), dirigido por Sacha Gervasi e A garota (The girl, EUA, 2012), dirigido por Julian
Harrold) e Maier o documentário que concorreu ao Oscar. E tinham uma característica
comum: viam o lado poético do banal cotidiano e buscaram fixar o mistério da vida.
Mas acabaram deixando impressos em suas imagens o mistério de suas próprias vidas.
Referências bibliográficas
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