1
EXCELENTÍSSIMO SENHOR PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
PARTIDO DOS TRABALHADORES , através de seu Diretório Nacional, na forma do artigo 116, inciso XIII, de seu Estatuto Social, inscrito no CNPJ/MF sob o nº: 00.676.262/0001 -70, com sede no Setor Comercial Sul – Quadra 02 Bloco C nº 256, Edifício Toufic, 1º andar, CEP 70302 -000 – Brasília/DF, neste ato representado pelo seu Presidente Rui Goethe da Costa Falcão, brasileiro, casado, jornalista, portador da cédula de identidade RG nº. 3.171.369 SSP/SP e inscrito no CPF/MF sob o n°. 614.646.868 -15, na forma do seu Estatuto Social, vem, pelo seu advogado abaixo, com fundamento no disposto no art. 102, § 1oda Constituição Federal e nos dispositivos da Lei no 9.882/99, ajuizar a presente
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
COM PEDIDO DE CONCESSÃO DE MEDIDA CAUTELAR,
objetivando seja reconhecida a legitimidade constitucional dos artigos 2o, 3o e 4o, parágrafo único, da Lei Complementar n. 148 de 2014, com a redação que lhes conferiu a Lei Complementar n. 151 de 2015, e a ilegitimidade constitucional do art. 2º, §1º, I, do Decreto nº 8.616/15, e, em razão disso, determinada a adoção das providências listadas ao final, tendentes a sanar as lesões a preceitos fundamentais da Constituição, decorrentes da manutenção na ordem jurídica de textos normativos e interpretações jurídicas que, ao regular o procedimento legal fixado para a realização do refinanciamento da dívida dos Municípios brasileiros com a União de modo incompatível com o regime constitucional vigente, gera instabilidade jurídica, política, econômica e social no país.
2
- PARTE I –
QUESTÕES PRELIMINARES: LEGITIMIDADE, OBJETO E CABIMENTO DA ADPF 1.1. A LEGITIMIDADE ATIVA DO AUTOR DA ADPF 1. A lei n. 9.882/99, ao regulamentar a Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental, definiu que são legitimados para propô-la os mesmos
legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade (art. 2o, I), de modo que
o partido político possui legitimidade ativa para o ajuizamento da presente ação
de controle concentrado de constitucionalidade (art. 103, incisos VIII e IX, da
CF). Os partidos políticos são considerados pela jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal legitimados universais, podendo discutir a constitucionalidade
de qualquer ato normativo sem que se lhe exijam a demonstração de liame entre
os objetivos do partido e o pedido deduzido no âmbito da ação de controle de
constitucionalidade.
1.2. O OBJETO DA ADPF 2. A Lei Complementar n. 148, que dispôs sobre critérios de
indexação dos contratos de refinanciamento da dívida entre a União, Estados, o
Distrito Federal e Municípios, com a alteração levada a cabo pela Lei
Complementar n. 151, determinou a aplicação aos contratos de refinanciamento
da dívida dos Municípios as seguintes condições: (i) juros de 4% ao ano sobre o
saldo devedor atualizado; e (ii) atualização monetária calculada com base no
IPCA (art. 2o da LC n. 148, com a redação alterada pela LC 151). A pretexto de
regulamentar a Lei Complementar n. 148, a Presidente da República editou o
Decreto 8.616 de 29 de Dezembro de 2015, estabelecendo novas condições – não
previstas em lei – para a celebração dos termos aditivos aos contratos de
3
financiamento e de refinanciamento de dívidas dos Estados, do DF e dos
Municípios.
3. A presente Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental tem por objeto declarar a inconstitucionalidade parcial sem
redução de texto dos seguintes dispositivos da Lei Complementar n. 148,
afastando a interpretação segundo a qual a eficácia deles dependeria da edição
de autorização legislativa pelos entes federados locais (Estados e Municípios),
verbis:
Art. 2o A União adotará, nos contratos de refinanciamento de
dívidas celebradas entre a União, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios, com base, respectivamente, na Lei no 9.496, de 11
de setembro de 1997, e na Medida Provisória no 2.185-35, de 24
de agosto de 2001, e nos contratos de empréstimos firmados com
os Estados e o Distrito Federal ao amparo da Medida Provisória
no 2.192-70, de 24 de agosto de 2001, as seguintes condições,
aplicadas a partir de 1o de janeiro de 2013: (Redação dada Pela
Lei Complementar nº 151, de 2015)
I - juros calculados e debitados mensalmente, à taxa nominal de
4% a.a. (quatro por cento ao ano) sobre o saldo devedor
previamente atualizado; e
II - atualização monetária calculada mensalmente com base na
variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA), apurado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), ou outro índice que venha a substituí-lo.
§ 1o Os encargos de que trata o caput ficarão limitados à taxa
referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia
(Selic) para os títulos federais.
§ 2o Para fins de aplicação da limitação referida no § 1o, será
comparada mensalmente a variação acumulada do IPCA + 4%
a.a. (quatro por cento ao ano) com a variação acumulada da taxa
Selic.
§ 3o O IPCA e a taxa Selic estarão referenciados ao segundo mês
anterior ao de sua aplicação.
§ 4o (VETADO).
4
Art. 3o A União concederá descontos sobre os saldos devedores
dos contratos referidos no art. 2o, em valor correspondente à
diferença entre o montante do saldo devedor existente em 1o de
janeiro de 2013 e aquele apurado utilizando-se a variação
acumulada da taxa Selic desde a assinatura dos respectivos
contratos, observadas todas as ocorrências que impactaram o
saldo devedor no período. (Redação dada Pela Lei Complementar
nº 151, de 2015)
Art. 4o Os efeitos financeiros decorrentes das condições previstas
nos arts. 2o e 3o serão aplicados ao saldo devedor, mediante
aditamento contratual.
Parágrafo único. A União terá até 31 de janeiro de 2016 para
promover os aditivos contratuais, independentemente de
regulamentação, após o que o devedor poderá recolher, a título de
pagamento à União, o montante devido, com a aplicação da Lei,
ficando a União obrigada a ressarcir ao devedor os valores
eventualmente pagos a maior. (Incluído pela Lei Complementar
nº 151, de 2015)
4. Busca ainda, a declaração de inconstitucionalidade dos seguinte
dispositivos do Decreto n. 8.616/2015:
CAPÍTULO I
DOS TERMOS ADITIVOS AOS CONTRATOS DE
FINANCIAMENTO E DE REFINANCIAMENTO DE
DÍVIDAS
Art. 2º A adoção das condições previstas no art. 2º da Lei
Complementar nº 148, de 2014, e a concessão do desconto de que
trata o art. 3º da referida Lei serão efetivadas pela União
mediante a celebração de termos aditivos aos contratos firmados
entre a União e os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios.
§ 1º A celebração dos termos aditivos de que trata o caput
deverá observar previamente as seguintes condições, além de
outras previstas em lei:
I - autorização legislativa;
II - desistência expressa e irrevogável de ação judicial que tenha
por objeto a dívida ou o contrato com a União sobre o qual
incidam as condições previstas nos arts. 2º a 4º da Lei
5
Complementar nº 148, de 2014, e renúncia a quaisquer alegações
de direito relativas à referida dívida ou contrato sobre as quais se
funda a ação; (…)
5. A presente ADPF pretende alcançar, ainda, a declaração de
nulidade das cláusulas dos aditivos de contrato de financiamento já firmados
pela União com Estados e Municípios que impuseram como condição para a
celebração da alteração dos índices de juros e correção monetárias das dívidas
dos entes federados locais a desistência de ações judiciais que discutam a dívida
refinanciada.
6. Por fim, a presente ADPF tem por objetivo determinar que a União
e o Banco do Brasil (instituição financeira oficial que recolhe as parcelas mensais
das dívidas dos Estados e dos Municípios) forneçam, até o dia 31 de janeiro de
2016, aos entes federados devedores as informações atualizadas de acordo com a
LC 148/14 quanto ao saldo devedor e o valor das parcelas a serem pagas a partir
de 1o de fevereiro, evitando o pagamento a maior por parte dos já combalidos
Estados e Municípios.
7. É conhecida a grave crise orçamentária pela qual os Estados e
Municípios brasileiros passam atualmente. A falta de solução uniforme para os
problemas gerados para a grande maioria dos Estados e Municípios brasileiros
poderá multiplicar demandas judiciais e prolongar a indefinição quanto a esse
tema tão relevante para a saúde financeira desses entes federados e,
consequentemente, para a concretização de direitos individuais e sociais.
6
1.3. O CABIMENTO DA ADPF 8. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental,
prevista no art. 102, § 1º, da Constituição Federal, e regulamentada pela Lei nº
9.882/99, é vocacionada para se veicularem as impugnações ora apresentadas.
Ela permite a impugnação de atos dos Poderes Públicos que importem em lesão
ou ameaça a preceitos fundamentais da Constituição. Para o seu cabimento, é
necessário que (1) exista lesão ou ameaça a preceito fundamental, (2) causada
por ato dos Poderes Públicos, e (3) não haja nenhum outro instrumento apto a
sanar esta lesão ou ameaça no âmbito do sistema do processo objetivo. Estes três
requisitos estão plenamente configurados no presente caso, como se verá a
seguir.
9. Com efeito, a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental, instituída pela própria Constituição (art. 102, § 1º) e disciplinada
pela Lei nº 9.882/99, qualifica-se como típica ação constitucional destinada a
proteger e a preservar a integridade de preceitos fundamentais revestidos, em
decorrência de sua natureza mesma, de um claro sentido de essencialidade,
configurando “modalidade de integração entre os modelos de perfil difuso e
concentrado no Supremo Tribunal Federal” (ADPF 33/PA, Rel. Min. Gilmar
Mendes). No sistema constitucional brasileiro, há, como sabemos, duas
modalidades de arguição de descumprimento: uma de caráter autônomo (Lei nº
9.882/99, art. 1º, “caput”) e outra de natureza incidental (‘lex cit.’, art. 1º,
parágrafo único), como esclareceu esta Suprema Corte em precedente sobre a
matéria (ADPF 3-QO/CE, Rel. Min. Sydney Sanches). Impõe-se destacar, de
outro lado, que a arguição de descumprimento de preceito fundamental pode
ter por objeto de impugnação tanto ato estatal impregnado de conteúdo
7
normativo quanto ato do Poder Público despojado de qualquer atributo de
normatividade1.
10. A presente ADPF assume simultaneamente as modalidades
autônoma e incidental, na medida em que tem por objeto não apenas atos de
natureza tipicamente normativa (LC 148/14 e Decreto 8.616/15) como também
atos do poder público de natureza concreta praticados por ação e por omissão
(respectivamente, a celebração dos aditivos de refinanciamento contendo
cláusula nula e a falta de apresentação aos Estados e Municípios das
informações necessárias à realização dos pagamentos das parcelas da dívida
com vencimento a partir de 1o de fevereiro).
1.3.1. PRECEITOS FUNDAMENTAIS VIOLADOS
11. Nem a Constituição nem a Lei 9.882/99 definiram quais preceitos
da Constituição são fundamentais. Nada obstante, há sólido consenso
doutrinário e jurisprudencial no sentido de que nessa categoria figuram os
fundamentos e objetivos da República, assim como os direitos fundamentais,
previstos nos Títulos I e II da Constituição Federal.2A interpretação conferida
1Vale relembrar, no que se refere a esse específico ponto, valioso precedente firmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal: “Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Lei nº 9882, de 3.12.1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da referida medida constitucional. 2. Compete ao Supremo Tribunal Federal o juízo acerca do que se há de compreender, no sistema constitucional brasileiro, como preceito fundamental. (…) 4. Argüição de descumprimento de preceito fundamental como instrumento de defesa da Constituição, em controle concentrado. (…). 6. O objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental há de ser ‘ato do Poder Público’ federal, estadual, distrital ou municipal, normativo ou não (…)” (ADPF 1-QO/RJ, Rel. Min. Néri Da Silveira).
2Cf. Gilmar Ferreira Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pp; 1267-1269; Luís Roberto Barroso. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. Exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, pp. 562-563.
8
pela União à LC 148/14 – posteriormente traduzida no Decreto 8.616/15 – no
sentido de que o refinanciamento da dívida dos entes federativos locais exigiria
nova autorização legislativa de cada um dos Estados e Municípios implica
afronta aos seguintes preceitos fundamentais:
a) Princípio federativo, previsto nos artigos 18 e e 60, § 4º,
I, porque (i) a LC 148/14 consubstancia lei nacional – e não
apenas federal –, incidindo sobre todos os entes federados
indistintamente, contexto em que não se pode exigir a
aprovação de lei local autorizando a produção dos efeitos
previstos na LC 148/14, e também porque (ii) a criação de
óbices inconstitucionais à efetiva concretização do novo
marco normativo de refinanciamento das dívidas dos
Estados e Municípios produziria gravíssima repercussão
nos cofres públicos desses entes federativos, que traduziria
um inaceitável desiquilíbrio no pacto federativo em favor
da União;
b) Princípio da separação de poderes, previsto nosartigos
2º e 60, § 4º, III, seja porque a Presidente da República
impôs condição não prevista na LC 148/14 para a
celebração dos aditivos contratuais de refinanciamento da
dívida – com o que se viola também o inciso IV do art. 84
da CF –, seja porque a exigência de aprovação de nova lei
local autorizando a repactuação implica grave e ilegítima
limitação à competência dos Chefes do Executivo dos
Estados e Municípios;
9
c) Princípio do Devido Processo Legal, previsto no artigo
5º, LIV, da Constituição Federal, na medida em que o
Decreto n. 8.616/15 fixou prazo não razoável para a
satisfação pelos Estados e Municípios das condições nele
previstas para a celebração dos aditivos de
refinanciamento da dívida pública desses entes federados,
bem assim porque a União não disponibilizou
adequadamente aos Estados e Municípios as informações
necessárias à realização dos pagamentos das dívidas dos
entes locais de acordo com os novos parâmetros
normativos.
12. Além disso, como será demonstrado, o Decreto n. 8.616/15, ao
impor como condição para a celebração da alteração dos índices de juros e
correção monetárias das dívidas dos entes federados locais a desistência de
ações judiciais que discutam a dívida refinanciada, viola o direito de acesso à
Justiça e a inafastabilidade do Poder Judiciário (Art. 5o, inciso XXXV).
1.3.2. ATO DO PODER PÚBLICO E INEXISTÊNCIA DE OUTRO MEIO EFICAZ DE SANAR A
LESIVIDADE
13. De acordo com o art. 1° da Lei n° 9.882/99, os atos que podem ser
objeto de ADPF autônoma são os emanados do Poder Público, aí incluídos os de
natureza normativa, administrativa ou judicial. Na presente hipótese, a lesão a
preceitos fundamentais se origina da dúvida interpretativa quanto à natureza da
LC 148/14 – se nacional ou federal – e se estende ao art. 2o do Decreto n. 8.616/15,
decorrendo também da falta de informações precisas por parte da União aos
10
Estados e Municípios quanto ao novo saldo devedor e à nova parcela a ser paga
a partir de 1o de fevereiro, bem assim da celebração de aditivos contratuais de
refinanciamento contendo cláusula nula de impedimento de acionamento do
Poder Judiciário.
14. A doutrina e a jurisprudência convergem no entendimento de que
pressuposto da subsidiariedade da ADPF (art. 4º, § 1º, Lei 9.882/99) se configura
sempre que inexistirem outros instrumentos, no âmbito do controle abstrato de
constitucionalidade, aptos ao equacionamento da questão constitucional
suscitada. Nesse sentido, decidiu o STF:
“13.Princípio da subsidiariedade (art. 4º, § 1º, da Lei nº
9.882/99): inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão,
compreendido no contexto da ordem constitucional global, como
aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de
forma ampla, geral e imediata.
14. A existência de processos ordinários e recursos
extraordinários não deve excluir, a priori, a utilização da
argüição de descumprimento de preceito fundamental, em
virtude da feição marcadamente objetiva desta ação.”3
15. Na hipótese, não há qualquer outro instrumento no âmbito do
controle abstrato de normas que possa sanar as lesões a preceitos fundamentais
antes ressaltadas. Afinal, não se discute nesta ação tão-somente a
inconstitucionalidade de alguma norma jurídica superveniente à Constituição,
mas também a constitucionalidade do Decreto Presidencial e também de atos
concretos comissivos e omissivos praticados pela Administração Pública
Federal. No arsenal de instrumentos disponíveis na jurisdição constitucional
concentrada, não há nenhum outro instrumento, além da ADPF, que se preste a
3STF. ADPF 33, Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julg. 07.12.2005.
11
atingir os objetivos colimados nesta inicial. Sequer seria necessário realizar
maiores digressões doutrinárias para confirmar o não cabimento de ADI ou
ADC para discutir a validade de cláusulas contratuais presentes nos pactos de
refinanciamento das dívidas dos Estados e Municípios com a União, ou, ainda,
para discutir a legitimidade constitucional da falta de disponibilização pela
União das informações necessárias à readequação dos valores das parcelas a
serem depositadas pelos Estados e Municípios a partir de 1o de fevereiro deste
ano a título de pagamento das suas dívidas públicas4. De outro lado, convém
enfatizar que a pulverização de decisões judiciais singulares a propósito de cada
relação jurídica entre a União e os entes federados locais a propósito dos
mesmos temas produzirá uma quadra de insegurança e quiçá de ostensiva
violação ao princípio da isonomia. Vale ressaltar que o STF já afirmou a
necessidade de atenuação do significado literal do princípio da subsidiariedade
quando o prosseguimento das ações nas vias ordinárias não se mostra apto a
afastar a lesão a preceito fundamental5:
Da mesma forma, controvérsias concretas fundadas na eventual
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo podem dar ensejo a
uma pletora de demandas, insolúveis no âmbito dos processos
objetivos.
4Nesse sentido: “O controle concentrado de constitucionalidade somente pode incidir sobre atos do Poder Público revestidos de suficiente densidade normativa. A noção de ato normativo, para efeito de fiscalização abstrata, pressupõe, além da autonomia jurídica da deliberação estatal, a constatação de seu coeficiente de generalidade abstrata, bem assim de sua impessoalidade. Esses elementos – abstração, generalidade, autonomia e impessoalidade – qualificam-se como requisitos essenciais que conferem, ao ato estatal, a necessária aptidão para atuar, no plano do direito positivo, como norma revestida de eficácia subordinante de comportamentos estatais ou determinante de condutas individuais. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem ressaltado que atos estatais de efeitos concretos não se expõem, em sede de ação direta, à fiscalização concentrada de constitucionalidade. A ausência do necessário coeficiente de generalidade abstrata impede, desse modo, a instauração do processo objetivo de controle normativo abstrato” (ADI 2630 AgR, Relator Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 16/10/2014).
5STF, ADPF 33 MC, Relator Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 29/10/2003.
12
Não se pode admitir que a existência de processos ordinários e
recursos extraordinários deva excluir, a priori, a utilização da
arguição de descumprimento de preceito fundamental. Até
porque o instituto assume, entre nós, feição marcadamente
objetiva.
(...)
A possibilidade de incongruências hermenêuticas e
confusões jurisprudenciais decorrentes dos
pronunciamentos de múltiplos órgãos pode configurar
uma ameaça a preceito fundamental (pelo menos, ao da
segurança jurídica), o que também está a recomendar uma
leitura compreensiva da exigência aposta à lei de arguição,
de modo a admitir a propositura de ação especial toda vez
que a uma definição imediata da controvérsia mostrar-se
necessária para afastar aplicações erráticas, tumultuárias
ou incongruentes, que comprometam gravemente o
princípio da segurança jurídica e a própria ideia de
prestação jurisdicional efetiva.
Ademais, a ausência de definição da controvérsia – ou a própria
decisão prolatada pelas instâncias judiciais – poderá ser a
concretização da lesão a preceito fundamental. Em um sistema
dotado de órgão de cúpula, que tem a missão de guarda da
Constituição, a multiplicidade ou a diversidade de soluções pode
constituir-se, por si só, em uma ameaça ao princípio
constitucional da segurança jurídica e, por conseguinte, em uma
autentica lesão a preceito fundamental.
(...)
Essa leitura compreensiva da cláusula de subsidiariedade contida
no art. 4o, par. 1o, da Lei n. 9.882, de 1999, parece solver, com
superioridade, a controvérsia em torno da aplicação do princípio
do exaurimento das instâncias.
É fácil ver que a fórmula de relevância do interesse público para
justificar a admissão da arguição de descumprimento (explícita
no modelo alemão) está implícita no sistema criado pelo
legislador brasileiro, tendo em vista especialmente o caráter
marcadamente objetivo que se conferiu ao instituto.
Assim, o Tribunal poderá conhecer da arguição de
descumprimento toda vez que o princípio da segurança jurídica
restar seriamente ameaçado, especialmente em razão de conflitos
13
de interpretação ou de incongruências hermenêuticas causadas
pelo modelo pluralista de jurisdição constitucional.
16. Convém ressaltar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal é
competente para julgar, originariamente, ações que veiculem conflito entre a
União e os Estados-membro, mas não possui a mesma competência em relação
ao conflito de interesses entre União e Municípios6. Nesse contexto, a ampla
judicialização das controvérsias constitucionais deduzidas no âmbito desta
ADPF contará com a pulverização de ações na primeira instância da Justiça
Federal, o que aumenta a possibilidade de decisões contraditórias que fragilizem
o princípio da segurança jurídica.
17. Cabe ponderar que a dúvida interpretativa quanto à necessidade
ou não da edição de lei autorizativa pelos Estados e Municípios já existia antes
da entrada em vigor do inciso I do § 1o do art. 2o do Decreto n. 8.616/15 e persiste
após a positivação dessa opção hermenêutica. Isso porque a própria literalidade
desse dispositivo – “A celebração dos termos aditivos de que trata o caput deverá
observar previamente as seguintes condições, além de outras previstas em lei: I -
autorização legislativa (...)”– pode receber interpretação conforme a Constituição
de modo a fixar o sentido de que essa autorização legislativa foi cumprida com a
aprovação da própria LC 148/14.
6EMENTA AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO CAUTELAR PREPARATÓRIA. CONFLITO ENTRE MUNICÍPIO E A UNIÃO. IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DO ART. 102, I, “F”, DA MAGNA CARTA. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Incabível a pretendida interpretação extensiva do art. 102, I, “f”, da Magna Carta, com a finalidade de atribuirão Supremo Tribunal Federal a competência para processar e julgar, originariamente, conflito entre a União e Município. Precedentes do Plenário desta Corte: AC 3616 AgR, Relatora a Ministra Cármen Lúcia; ACO 1295 AgR-segundo, Relator o Ministro Dias Toffoli; ACO 1342 AgR, Relator o Ministro Marco Aurélio; e ACO 1364, Relator o Ministro Celso de Mello. Agravo regimental conhecido e não provido. (AC 3542 AgR, Relator Min. ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 16/10/2014)
14
- PARTE 2 -
CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA DA DÍVIDA DOS ESTADOS E MUNICÍPIOS
BRASILEIROS COM A UNIÃO 2.1. HISTÓRICO LEGISLATIVO ULTIMADO COM A EDIÇÃO DAS LEIS
COMPLEMENTARES N. 148/14 E 151/15 E DO DECRETO PRESIDENCIAL N. 8.616/15 18. Para que se tenha a exata compreensão do contexto em que está
inserida o refinanciamento da dívida dos Municípios brasileiros, é preciso,
inicialmente, entender o contexto histórico em que se deu a renegociação da
dívida dos Estados e Municípios, em virtude de um programa nacional de
federalização das dívidas estaduais, instituído pela Lei Federal no 9.496, de 11
de setembro de 1997.
19. Não se pode esquecer que poucos anos antes, em 1994, com o
surgimento do Plano Real, e, por conseguinte, o controle da inflação, os Estados
federados se viram obrigados a promover um forte ajuste fiscal. Isso porque a
estabilidade econômica tornou ainda mais evidente o desequilíbrio fiscal dos
Estados, cujas receitas estavam fortemente comprometidas com o pagamento de
pessoal, empresas públicas deficitárias e serviço da dívida.
20. Em 12 de agosto de 1997, foi editada a Medida Provisória 1.560-8,
embasada no Voto CMN no 162/957, estabelecendo critérios para a consolidação,
assunção e refinanciamento, pela União, da dívida pública dos Estados e do 7O Conselho Monetário Nacional aprovou o Voto 162/95, autorizando linhas de crédito pela Caixa Econômica Federal, desde que os estados adotassem metas de ajuste fiscal e saneamento financeiro, que incluíam, dentre outras medidas, corte de pessoal, privatização, concessões de serviços públicos e aprovação pelas respectivas Assembleias Legislativas, legitimando o programa.
15
Distrito Federal. Por fim, a referida Medida Provisória foi convertida na Lei
Federal no 9.496, de 11 de setembro de 1997, consolidando, assim, o Programa
de Apoio à Reestruturação e Ajuste Fiscal dos Estados. Na vigência dessa lei, a
quase totalidade dos estados brasileiros renegociaram suas dívidas nos anos de
1997 e 1998.
21. O programa de ajuste fiscal dos Estados foi estendido aos
Municípios, que também tiveram suas dívidas refinanciadas pela União,
conforme previsto na Medida Provisória 2.118-31, de 2001. Nessa renegociação,
a União foi autorizada a assumir as seguintes obrigações de responsabilidade
dos Municípios: (i) dívida junto a instituições financeiras nacionais ou
estrangeiras, cujos contratos tenham sido firmados até 31 de janeiro de 1999,
inclusive a decorrente de transformação de operações de antecipação de receita
orçamentária em dívida fundada; (ii) dívida junto a instituições financeiras
nacionais ou estrangeiras, decorrente de cessão de crédito firmada até 31 de
janeiro de 1999; (iii) dívida mobiliária interna constituída até 12 de dezembro de
1995 ou que, constituída após essa data, consubstancia simples rolagem de
dívida mobiliária anterior; (iv) dívida mobiliária externa constituída até 12 de
dezembro de 1995 ou que, constituída após essa data, consubstancia simples
rolagem de dívida mobiliária anterior; (v) dívida relativa a operações de
antecipação de receita orçamentária, contraída até 31 de janeiro de 1999; e (vi)
dívida relativa a operações de crédito celebradas com instituições financeiras na
qualidade de agente financeiro da União, dos Estados ou de fundos e programas
governamentais, regularmente constituídos.
22. Por outro lado, não estavam abrangidas pelo refinanciamento: (i)
as dívidas renegociadas com base nas Leis nos 7.976, de 1989, e 8.727, de 1993;
16
(ii) as dívidas relativas à dívida externa objeto de renegociação no âmbito do
Plano Brasileiro de Financiamento da Dívida Externa (BIB, BEA, DMLP e Clube
de Paris); (iii) as parcelas das dívidas referidas nos itens “i”, “ii”, “iii”, “v” e “vi”
citados acima que que não tenham sido desembolsadas pela instituição
financeira até 31 de janeiro de 1999; e (iv) as dívidas externas junto a organismos
internacionais multilaterais ou agências governamentais de crédito estrangeiras.
23. As condições do refinanciamento para os Municípios foram as
seguintes: prazo de até 360 prestações mensais e sucessivas, calculadas com base
na Tabela Price; juros calculados e debitados mensalmente, à taxa de 9% ao ano,
sobre o saldo devedor previamente atualizado; atualização monetária calculada
e debitada mensalmente com base na variação do IGP-DI, da FGV; vinculação
de receitas próprias e dos fundos de participação como garantia; e limite de
comprometimento de 13% da receita líquida real para cumprimento das
prestações.
24. Os contratos de refinanciamento deviam prever, a teor do art. 8o da
Medida Provisória 2.118-31, de 2001, que os Municípios somente poderão emitir
novos títulos da dívida pública mobiliária após a integral liquidação da dívida
objeto do refinanciamento e que os Municípios somente poderão contrair novas
dívidas, inclusive operações de crédito por antecipação de receita orçamentária,
se a dívida financeira total do Município for inferior à sua receita líquida real.
25. Com a edição da Lei Complementar no 148/2014, foram alterados
alguns dispositivos da Lei nº 9.496/97, dentre eles os encargos incidentes sobre o
saldo devedor e suas parcelas – os juros foram reduzidos para 4% (quatro por
cento) ao ano e o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo)
17
adotado como índice de correção monetária, com o somatório limitado à taxa
SELIC (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia). Não há como considerar,
entretanto, que a LC 148/2014 atenda ao seu propósito, uma vez que fora
editada em 25.11.2014 e, não obstante o art. 12 determinasse a vigência imediata
das suas disposições, até o momento a União acabou não adotando nenhuma
providência no sentido de implementar os novos parâmetros ali consolidados
para o recálculo da dívida do Estado. As modificações não estavam sendo
aplicadas, pois segundo entendimento do Ministério da Fazenda, havia
necessidade de regulamentação da citada Lei Complementar, para os
aditamentos dos contratos.
26. Tamanha a recalcitrância da União em implementar as alterações
trazidas pela LC 148/2014 que, em 24/3/2015, o Deputado Federal Leonardo
Picciani propôs o Projeto de Lei Complementar 37/2015, cuja redação original
dispunha:
Art. 1º A Lei Complementar nº 148, de 25 de novembro de 2014,
passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 4º..................................................................
§ 1º A União terá o prazo de até 30 (trinta) dias, da data da
manifestação do devedor, protocolada no Ministério da Fazenda,
para promover os aditivos contratuais, independente de
regulamentação. § 2º Vencido o prazo, previsto no §1º, o devedor
poderá recolher, a título de pagamento à União, o montante
devido, com a aplicação da Lei, ressalvado o direito da União de
cobrar eventuais diferenças que forem devidas. ”
Art. 2º Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua
publicação.
27. Veja-se que o texto do PLP 37/2015 finalmente viria a conferir
efetividade à LC 148/2015, pois ou a União teria de promover, em 30 (trinta)
dias, os aditivos contratuais previstos na dita lei complementar, ou o devedor
18
poderia liberar-se da obrigação mediante pagamento da parcela mensal
calculada conforme os critérios da LC 148/2015. O texto da justificativa do PLP
37/2015 não deixa margem de dúvida quanto à renitência da União em dar
cumprimento à LC 148/2015:
JUSTIFICAÇÃO
“A Lei Complementar nº 148, de 25 de novembro de 2014, é um
diploma legal de imediata aplicação e, portanto, independente de
regulamentação. A UNIÃO NÃO TEM CUMPRIDO A
CITADA NORMA LEGAL. Em consequência, os demais entes
federados têm recorrido ao Poder Judiciário para pleitear seus
direitos. Por oportuno, entendo que a aprovação da proposta
evitará inúmeras demandas judiciais e consistirá em importante
contribuição para o país. ”
28. Lamentavelmente, o projeto original sofreu emendas que
postergaram o cumprimento da LC 148/2015 a janeiro/2016, conforme o texto
definitivo aprovado e transformado na LC 151/2015:
“Art. 1o A Lei Complementar no 148, de 25 de novembro de
2014, passa a vigorar com as seguintes alterações:
(...)“Art. 4o .........................................................................
Parágrafo único. A União terá até 31 de janeiro de 2016 para
promover os aditivos contratuais, independentemente de
regulamentação, após o que o devedor poderá recolher, a título de
pagamento à União, o montante devido, com a aplicação da Lei,
ficando a União obrigada a ressarcir ao devedor os valores
eventualmente pagos a maior. ”
29. Entretanto, com a recente aprovação da Lei Complementar nº 151,
de 05/08/2015, a União terá até 31 de janeiro de 2016 para promover os aditivos
contratuais, independentemente de regulamentação. A recalcitrância do
Governo Federal em promover os atos necessários à concretização da LC 148/14
19
– absolutamente necessária para o reequilíbrio do pacto federativo no Brasil –
fez com o Congresso Nacional reagisse com firmeza aprovando a LC 151/15, a
fim de dar plena aplicabilidade ao novo parâmetro normativo de remuneração
da dívida pública dos Estados e Municípios com a União. Para tanto, a LC
151/15 promoveu duas importantes alterações na LC 148/14: (i) instituiu
obrigação legal impositiva à União – competência tipicamente vinculada –, sem
qualquer espaço para tergiversação ou mesmo para a tomada de decisão com
base em critérios de oportunidade e conveniência, notadamente ao fixar a regra
de que a União adotará os novos índices de juros e correção monetária; e (ii)
atribuiu caráter auto-aplicativo à LC 148/14, precisamente ao estabelecer que a
União terá até 31 de janeiro de 2016 para promover as modificações necessárias
à incidência dos novos parâmetros normativos de remuneração da dívida dos
Estados e Municípios com a União, fixando, ainda, a regra de que se os
respectivos aditivos contratuais não forem celebrados até essa data as regras
constantes da LC 148/14 passaria a ter imediata aplicação aos contratos de
financiamento da dívida pública desses entes federados8.
30. Todo o legítimo esforço do Congresso Nacional para promover um
reequilíbrio do pacto federativo – para o que concorre especialmente o
8Nesse sentido, o esclarecedor parecer aprovado pela Comissão de Tributação e Finanças da Câmara dos Deputados: “Assim, de acordo com o previsto na referida Emenda, a União terá impreterivelmente o prazo de 31 de janeiro de 2016 para promover os aditivos contratuais, com todas as previsíveis repercussões a partir do proximo exercicio. As demais condiçoes permanecem inalteradas: não haverá necessidade de regulamentação e o recolhimento das parcelas devidas pelos demais entes se dará automaticamente, de acordo com os novos valores devidos, ficando a União obrigada a ressarcir ao devedor os valores eventualmente pagos a maior” (disponível na internet em: http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1336688&filename=PSS+1+CFT+%3D%3E+PLP+37/2015).
20
tratamento adequado da relação entre União, de um lado, e, de outro, Estados e
Municípios em relação ao tormentoso problema da dívida destes últimos com o
ente federado central – corre o risco de não produzir seus efeitos em razão de
condutas comissivas e omissivas (normativas e administrativas) praticadas pela
União. A necessidade de conhecimento da presente ADPF decorre, em última
análise, da urgente necessidade de garantir que a vontade parlamentar
consubstanciada nas Lei Complementares 148 e 151 seja respeitada pelo
Governo Federal, reforçando, assim, a imperiosa exigência constitucional de
garantia da cláusula pétrea da forma federativa de Estado.
2.2. PREMISSAS TEÓRICAS: O FEDERALISMO COOPERATIVO E A RELAÇÃO ENTRE OS
ENTES FEDERADOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 31. O Estado Federal compreende sempre três ordens jurídicas
distintas e precisamente identificadas pela doutrina: (i) a coletividade central;
(ii) as coletividades-membros; (iii) e a comunidade total. As duas primeiras
situam-se no mesmo patamar jurídico – típica relação de coordenação – e estão
ambas submetidas à terceira, ordem jurídica superior. O Estado Federal
brasileiro (comunidade total) subordina a União (coletividade central), os
Estados e os Municípios (coletividades-membros)9. A União detém as
competências que lhe conferiu o Estado Federal por meio da Constituição. E os
Estados-membros detêm as competências que lhe conferiram o Estado Federal
na mesma Constituição. Daí porque constata-se que a União e os Estados-
membro – coletividades parciais –, na federação, encontram-se no mesmo plano
jurídico, compartilhando harmonicamente, a partir da divisão de competências 9“Nação se compoe da União, dos Estados, e, além destes e daquela, o Distrito Federal e os territórios. O continente não é a União, de que os estados fossem o conteúdo. O continente é a Nação soberana, e são conteúdo seu a União, os Estados e, mais, o Distrito Federal e os territórios (DORIA, Sampaio, Direito Constitucional, pág. 483).
21
traçada pela Constituição, o desempenho das funções estatais10. Importante, com
essa explicação, é desfazer confusão entre a União (ordem jurídica parcial) e o
Estado federal (ordem jurídica total), que constantemente atenta contra a ideia
de federação e do equilíbrio que deve reger as relações travadas entre os entes
federados11.
32. Nas palavras do Ministro Celso de Mello, “a Constituição da
República proclama estrutura política que dá configuração ao modelo federal de Estado, a
coexistência de comunidades jurídicas responsáveis pela pluralização de ordens jurídicas
normativas próprias que se distribuem segundo critérios de discriminação material de
competências fixadas pelo texto constitucional”12. Em um quadro de pluralidade de
ordens parciais é intuitivo a constante problemática do equilíbrio federativo.
Celso de Mello adverte que o “estatuto constitucional, em que reside a matriz do
pacto federal, estabelece, entre a União e as pessoas políticas locais, uma delicada relação
de equilíbrio, consolidada num sistema de discriminação de competências estatais, de que
10Nesse sentido: BANDEIRADE MELLO, Oswaldo Aranha. Natureza Jurídica do Estado Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1937.
11Vitor Nunes Leal ensina que “[a] doutrina tradicional erroneamente identifica a União com o Estado Federal total. Cada uma das comunidades parciais, tanto a União como os Estados-membros, baseia-se na sua própria Constituição – a Constituição da União e a Constituição do Estado-membro. Todavia, a Constituição da União, chamada “Constituição Federal”, é, ao mesmo tempo, a Constituição do Estado Federal total” (in Problemas de Direito Positivo).
12Na mesma oportunidade afirmou: “O relacionamento normativo entre essas instâncias de poder – União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios – encontra fundamento na Constituição da República, que representa, no contexto político-institucional do Estado brasileiro, a expressão formal do pacto federal, consoante ressaltam, em autorizado magistério, eminentes doutrinadores (PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 1/374, 1989, Saraiva; MICHEL TEMER, “Elementos de Direito Constitucional”, p. 55/59, 5a ed., 1989, RT; CELSO RIBEIRO BASTOS/IVES GANDRA MARTINS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 1/216-221, 1988, Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. I/131, item n. 38, 1989, Forense Universitária)” (RE 229096, Relator Min. ILMAR GALVÃO, Relatora p/ Acórdão: Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 16/08/2007).
22
resultam – considerada a complexidade estrutural do modelo federativo – ordens
jurídicas parciais e coordenadas entre si, subordinadas à comunidade total, que é o
próprio Estado Federal”13.
33. A noção de coordenação da relação travada entre os entes parciais
revela que tanto a pessoa jurídica central como as pessoas jurídicas regionais são
igualmente parciais. Aqui reside a razão pela qual se mostra equivocada a ideia,
de certo modo generalizada na cultura brasileira, de que a União,
quotidianamente confundida com o Estado Federal, subordina os Estados-
membros. Esse equívoco, quando transportado para a praxe institucional do
Estado Federal, deturpa o equilíbrio federativo ao retirar dos entes parciais
regionais, em favor do ente parcial federal, a plena autonomia que lhes atribuiu
a Constituição. É inegável a tendência centralizadora da federação brasileira,
notadamente se levarmos em consideração a forma como nosso federalismo
nasceu de um Estado unitário. Isso contribuir decisivamente para a constante
inclinação dos agentes estatais (políticos, administrativos e judiciais) em
conduzir para a esfera federal um sem número de decisões que dizem respeito
aos Estados e Municípios.
34. A Constituição de 1988 contribuiu decisivamente para o
desfazimento da recorrente confusão entre Estado Federal e União (simples
ordem parcial) ao fortalecer materialmente o feixe de competências dos Estados
e Municípios, ampliando, ainda, as possibilidades de estabelecimento de
relações coordenadas entre União e entes políticos locais. O Ministro Ricardo
Lewandowski, em conhecida lição doutrinária, assinala que “a nova Carta Magna
13RE 229096, Relator Min. ILMAR GALVÃO, Relatora p/ Acórdão Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 16/08/2007.
23
adotou o denominado ‘federalismo cooperativo’, em que “se registra um entrelaçamento
de competências e atribuições dos diferentes níveis governamentais (...) caracterizado por
uma repartição vertical e horizonte de competências, aliado à partilha dos recursos
financeiros”14. No mesmo sentido:
“O federalismo brasileiro, instituído de modo artificial e por
desagregação de um Estado que era, originalmente, unitário,
revela a opção pela descentralização política como método
preferencial para a gestão da coisa pública. (...) Sabe-se que o
constituinte de 1988 adotou a técnica alemã do “federalismo
cooperativo”, no qual se atribuem aos entes federativos
competências comuns, visando que eles se articulem para o
exercício conjunto. ” (ADI 4597 MC, Relator Min. MARCO
AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 30/06/2011).
35. Manifestação clara da opção por um federalismo cooperativo –
modelo que conjuga descentralização e atuação conjunta por meio de
instrumentos de coordenação –, notadamente no campo do endividamento do
Estado, pode ser encontrada a partir das seguintes normas constitucionais: (i)
atribuição da competência ao Senado Federal – casa legislativa que representa os
Estados-membros de maneira equilibrada15e por isso exerce papel fundamental
para o federalismo brasileiro16– para dispor sobre limites para a realização de
14LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Pressupostos materiais e formais de Intervenção Federal no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, pp. 20-21.
15O Senado representa, no sistema constitucional brasileiro, de maneira proporcional as unidades políticas internas que formam o conjunto da federação.
16Nesse ponto, estudos de ciência politica comprovam que “[a]importância do federalismo entre os elementos estruturantes do sistema politico brasileiro é um fator a mais para se ter em conta o Senado nas análises do processo legislativo e da produção de leis. Na última década, muitos estudos têm mostrado a relevância dos estados (e municípios) na condução das reformas constitucionais, bem como na formulação e na implementação de programas de politicas públicas apresentados pelo governo fede- ral (ABRúCIO; COSTA, 1998; ARRETChE; 1999, ANASTASIA; MELO, 2004, entre outros). Nesses processos, o Senado tem se mostrado um espaço estratégico de articulação politica, onde as demandas subnacionais se representam e
24
operações de crédito pelos Estados e Municípios (Art. 52, VI e VII); (ii) a
natureza de norma nacional das leis complementares que disciplinam a
responsabilidade fiscal dos entes da federação17 (art. 165, § 9o, II); e (iii) os
atributos de autogoverno e autoadministração que regem as relações contratuais
entre os entes da federação no âmbito do endividamento público18 (art. 18). Com
efeito, os modelos de federalismo cooperativo não realizam divisão estanque de
competências entre os entes federados, permitindo, e às vezes incentivando, a
comunicação de diversos modos de atuação estatal.
36. No campo das relações contratuais de operação de crédito
firmadas entre a União e os entes federados locais, como bem acentuou
recentemente o Ministro Luís Roberto Barroso, “[a]s relações entre entes da
Federação, especialmente entre a União e Estado-membro, devem ser regidas
por vetores constitucionais como lealdade federativa, solidariedade e equilíbrio
econômico-financeiro dos contratos” (AC 2178, decisão de 11.11.2013). A
propósito da necessidade de uma releitura constitucional do pacto federativo no
Brasil, o Ministro apresentou as seguintes pertinentes premissas téoricas:
ajudam a conformar a dinâmica das interaçoes das câmaras entre si e com o Poder Executivo” (ARAÚJO, Paulo Magalhães. O bicameralismo no Brasil: argumentos sobre a importância do Senado na análise do processo decisório federal. Política e Sociedade, v. 11, p. 83-125, 2012).
17De acordo com o Ministro Fernando Gonçalves, do Tribunal de Contas da União, em parecer publicado no DOU em 26/05/97, “Leis complementares prestam-se ao desenvolvimento normativo de temas materialmente constitucionais, é dizer, temas cujo conteúdo é proprio da Constituição, mas que dependem, para sua aplicabilidade, de um desdobramento e detalhamento que não se coaduna com o caráter tendencialmente sintético e rigido que se espera das constituiçoes”.
18Como afirmou o Ministro Luiz Fux, “Embora existam diferentes modelos de federalismo, há alguns elementos minimos sem os quais uma federação se descaracterizaria. Dentre estes elementos se destaca a efetiva autonomia politica dos entes federativos, que se traduz nas prerrogativas do autogoverno, auto- organização e autoadministração” (ADI 4060, Relator Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 25/02/2015).
25
II. NATUREZA DAS RELACOES ENTRE OS ENTES
FEDERATIVOS NA CONSTITUIC AO BRASILEIRA
7. O Brasil é uma Republica Federativa e sua
organizac ãopolítico-administrativa compreende a União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios (CF/88, arts. 1o e
18). No plano externo, o Estado federal se apresenta como uma
unidade soberana, um sujeito de direito internacional. No plano
interno, contudo, a autoridade estatal é exercida por varias
entidades políticas que, sendo auto nomas entre si, não se
subordinam formalmente umas as outras, mas se submetem
apenas a supremacia da Constituic ão. Embora coexistam diversas
ordens jurídicas parciais – central (União) e periféricas (Estados-
membros, Distrito Federal e Municípios) – a unidade do
ordenamento estatal é assegurada pela Carta Federal, responsavel
por demarcar os espac oslegítimos de atuac ãode cada ente.
8. União e Estados são pessoas jurídicas de direito publico.
Sujeitam-se, assim, nas suas relac oes jurídicas em geral – e
especialmente nas suas relac oes recíprocas – ao regime jurídico
de direito publico. Embora a summadivisio entre direito publico e
direito privado ja não conserve a mesma rigidez de outros
tempos, é fora de duvida que cada um desses ramos da origem a
um regime jurídicopróprio, com determinadas características
basicas. De fato, no regime jurídico de direito privado desfrutam
de proemine ncia a autonomia da vontade e a livre iniciativa, com
seus consectarios naturais: propriedade privada, livre
concorre ncia, liberdade de lucro e liberdade de contratar. Ja no
regime jurídico de direito publico, ao lado dos princípios da
soberania e da legalidade (juridicidade), avulta, também, a
supremacia do interesse publico.
9. O princípio da supremacia do interesse publico atravessa uma
quadra doutrinariamente convulsionada, sobretudo quando
aplicado as relacoes entre o Poder Publico e os particulares. Nada
obstante isso, ninguém ousaria sustentar que nas relac oes entre
entes publicos de uma Federac ão possam prevalecer os propósitos
privatísticos de lucro e maximizac ão de ganhos, sem qualquer
26
tipo de filtro constitucional. Legítimos como possam ser, assim os
lucros como os ganhos hão de estar sujeitos as ideias de lealdade
federativa, equidade e cooperac ão.
10. Em rigor, nem mesmo o direito privado se inspira, nos dias
de hoje, pelas doutrinas individualistas e voluntaristas que
assinalaram a elaborac ão do Código Civil napoleo nico (1804) e se
projetaram no Código Civil brasileiro de 1916. Sob o impacto da
constitucionalizacão do Direito, que marcou o quarto final do
século XX, nãosó a func ão social da propriedade e da empresa,
como também o princípio da solidariedade, passaram a nortear a
interpretac ão das leis e dos negóciosjurídicos.
11. No a mbito da Federac ão brasileira, União e Estados
relacionam-se entre si tendo por objetivo a realizac ão dos fins
constitucionais da Republica, inspirados pelo melhor
atendimento possível do interesse publico. Suas relac oes não
podem ser regidas pela lógica privada e, sobretudo, capitalista,
baseada na equac ão risco-lucro, sem qualquer temperamento.
12. Por certo, pessoas jurídicas de direito publico podem almejar
a obtenc ão de lucro na celebrac ão de negócios jurídicos, inclusive
entre si. No entanto, o ganho exacerbado de um dos entes, em
detrimento do outro, não pode ser visto como um mero efeito
colateral do sistema de livre mercado. Em rigor, como se sabe, o
desequilíbrio grave ja não é tolerado nem mesmo nas relac oes
privadas. Com muito mais razão não podera ser aceito com
naturalidade na relacão entre entes federativos. Ao contrario, tal
relac ão é condicionada pela Constituic ão e ha de ser movida por
objetivos comuns de atendimento a populac ão, prestac ão de
servicos publicos adequados e desenvolvimento harmonioso. A
lógica de ganhos e perdas do sistema privado não se transplanta
acriticamente para as relac oes entre União e Estados.
13. Tal circunstancia se torna tanto mais relevante quanto se
observa que o próprio sistema constitucional ja proporciona a
União Federal uma posic ão privilegiada. Com efeito, além de uma
concentracão tributaria relevante e da arrecadac ão de inumeros
fundos geradores de recursos extras (FGTS, FAT), cabe a União,
27
ainda, definir e conduzir a política econo mica do país. Sem
mencionar o poder de emitir moeda. Nesse contexto, não parece
razoavel que a União possa impor a Estados cronicamente
fragilizados condicoes contratuais draconianas ou agravadoras de
desequilíbrios.
14. Observo, ainda, para declinar um ultimo elemento de minha
pré-compreensão acerca da questão, que o federalismo
fiscalbrasileiro vive um momento delicado, marcado por
insuficiencias e desequilíbrios. Para tal situac ão contribuem,
entre outros fatores, o centralismo tributario da União, a
desonerac ão tributaria que produz impactos sobre o Fundo de
Participac ão dos Estados, uma guerra fiscal de todos contra todos
e as obrigações de amortização da dívida dos Estados com a
União. A interpretac ão de normas e contratos entre os entes
federativos não pode desconsiderar essa realidade fatica, cujo
equacionamento mereceu, inclusive, a instituic ão de uma
Comissão Especial Externa do Senado Federal, que estudou
amplamente a matéria e apresentou inumeras sugestoes
relevantes.
37. A discussão acerca das condições de financiamento da dívida dos
Estados e Municípios pela União está no centro de um debate mais complexo
que diz respeito à necessidade de encontrar uma nova fórmula – mais
harmoniosa e equilibrada – de conceber as relações entre o ente federado parcial
central (União) e os entes federados locais (Estados-membros e Municípios). A
atual grave assimetria na relação entre os entes federados – com o prestígio
excessivo e desproporcional da União em detrimento dos demais – sugere um
quadro que se encaminha para o reconhecimento de um verdadeiro estado de
coisas inconstitucional da federação brasileira a exigir a refundação do pacto
federativo a partir de uma nova divisão de competências e atribuições que
28
promova a real autonomia dos Estados-membros e dos Municípios19. A
aprovação pelo Congresso Nacional de condições mais favoráveis aos Estados e
Municípios no financiamento das suas dívidas públicas pela União corre risco
de surtir efeitos a tempo e modo adequados por força dos óbices
inconstitucionais criados pelo Governo Federal e presentemente combatidos por
meio desta ADPF.
- PARTE 3 -
VIOLAÇÕES AOS PRECEITOS FUNDAMENTAIS REALIZADAS PELA INTERPRETAÇÃO
ANÔMALA DA LC 148/14E PELO DECRETO N. 8.616/15 3.1. INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA
ESTADUAL OU MUNICIPAL PARA A CONCRETIZAÇÃO DO REFINANCIAMENTO: CARÁTER NACIONAL DA LC 148/14 E DESNECESSIDADE DE CONFIRMAÇÃO
LEGISLATIVA LOCAL (PRINCÍPIO FEDERATIVO) 38. Antes de enfrentar o mérito da controvérsia constitucional
deduzida nesta ADPF, convém registrar que a LC 148/14 sofreu alterações
significativas pela LC 151/15, que entrou em vigor no dia 5 de agosto de 2015.
Neste momento, e em razão mesmo do caráter auto-aplicativo conferido à lei 19Nesse aspecto, vale ressaltar a precisa observação do Ministro Luiz Fux: Neste aspecto, a federação brasileira ainda se revela altamente centralizada, muitas vezes beirando o federalismo meramente nominal. Vislumbro dois fatores essenciais para esse quadro. O primeiro é de indole juridico-positiva: a engenharia constitucional brasileira, ao promover a partilha de competências entre os entes da federação (CRFB, arts. 21 a 24), concentra grande quantidade de matérias sob a autoridade privativa da União. O segundo fator é de natureza jurisprudencial. Não se pode ignorar a contundente atuação do Supremo Tribunal Federal ao exercer o controle de constitucionalidade de lei ou ato federal e estadual, especialmente aquele inspirado no “principio da simetria” e numa leitura excessivamente inflacionada das competências normativas da União. (...) Acredito seja momento de a Corte rever sua postura prima facie em casos de litigios constitucionais em matéria de competência legislativa, passando a prestigiar as iniciativas regionais e locais, a menos que ofendam norma expressa e inequivoca da Constituição. Essa diretriz parece ser a que melhor se acomoda à noção de federalismo como sistema que visa a promover o pluralismo nas formas de organização politica” (ADI 4060, Relator Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 25/02/2015).
29
complementar de refinanciamento da dívida dos Estados e Municípios – ao qual
se associou a fixação de um prazo fatal (31.01.2016) para que União ultimasse os
procedimentos de reconfiguração dos montantes devidos e das novas parcelas a
serem pagas –, supunha-se que o Governo Federal estava atuando de boa-fé
para levar a cabo as determinações legais. Para a surpresa dos Estados e
Municípios, contudo, ao apagar das luzes do ano de 2015, mais precisamente em
29 de dezembro, editou o Decreto n. 8.616, por meio do qual a União, a pretexto
de regulamentar a LC 148/14, criou novas condições para a finalização do
refinanciamento. A esse propósito, cabe observar: (i) as novas cláusulas para o
refinanciamento da dívida dos Estados e Municípios constam da redação
originária da LC 148/14, que entrou em vigor em 25 de novembro de 2014; (ii) as
alterações promovidas pela LC 151/15, que serviram apenas para imputar grau
máximo de eficácia à sua redação originária, entraram em vigor em 5 de agosto
de 2015; (iii) somente às vésperas do encerramento do prazo fatal fixado pela LC
148/14 para que a União ultimasse todas as providências necessárias ao
cumprimento das novas regras de financiamento da dívida dos Estados e
Municípios, a Presidente da República edita o Decreto n. 8.616/15, por meio do
qual cria duas novas importantes exigências para o refinanciamento (a
necessidade de autorização legislativa local e a desistência de ações judicias
contra a União).
39. Com efeito, as novas regras estão em vigor há mais de um ano. A
LC 151/15, que conferiu a máxima eficácia às novas regras, está em vigor há
mais de seis meses. Nesse contexto, causa espécie que a União tenha editado,
durante o recesso de todos os órgãos legislativos estaduais e municipais (em
29.12.2015), um Decreto por meio do qual exige que Estados e Municípios
aprovem leis locais autorizando o refinanciamento até o dia 31.01.2016. Antes de
30
demonstrar a inconstitucionalidade que reside na exigência mesma de
autorização legislativa local para a celebração do refinanciamento da dívida dos
Estados e Municípios com a União, vale registrar que a postura adotada pela
União no contexto ora examinado afronta o princípio da boa-fé objetiva,
rompendo com a máxima segundo a qual “[a]s relações entre entes da
Federação, especialmente entre a União e Estado-membro, devem ser regidas
por vetores constitucionais como lealdade federativa, solidariedade e equilíbrio
econômico-financeiro dos contratos” (STF, AC 2178, decisão de 11.11.2013).
40. É truísmo dizer que o princípio da boa-fé deve ser atendido
também pela Administração Pública, e até com mais razão por ela, e o seu
comportamento nas relações com os cidadãos – e também com as
Administrações de outros entes federados – pode ser controlado pela teoria dos
atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos depois de
estabelecer relações em cuja seriedade os terceiros confiaram. Pois bem, a
postura da Administração, no caso concreto, deve ser analisada na perspectiva
da teoria dos atos próprios, enquadrando-se nas fórmulas jurídicas venire contra
factumproprio e tu quoque, como consectários do princípio da boa-fé objetiva.
41. A jurisprudência nacional é uniforme no sentido de que “a teoria
dos atos próprios impede que a Administração pública retorne sobre os próprios
passos, prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu
procedimento”20.Em sede doutrinária, o Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior
teve oportunidade de analisar a teoria dos atos próprios, também chamada de
proibição da venire contra factumproprium nos seguintes termos, verbis: A "teoria
20STJ, REsp 141879/SP, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 17/03/1998, DJ 22/06/1998, p. 90.
31
dos atos próprios", ou a proibição da venire contra factumproprium , uma parte contra
aquela que pretende exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento
assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão da conduta
seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios
da lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto com surpresa e
prejuízo à contraparte”21. Judith Martins-Costa explica a teoria dos atos próprios e
seus desdobramentos nos seguintes termos, verbis:
“Este vem amparado na teoria dos atos próprios, segundo o qual
se entende que ninguém é lícito fazer valer um direito em
contradição com a sua anterior conduta interpretada
objetivamente segundo a lei, segundo os bons costumes e a boa-fé,
ou quando o exercício posterior se choque com a lei, os bons
costumes e a boa-fé. O seu feito primordial é impedir que a parte
que tenha violado deveres contratuais exija o cumprimento pela
outra parte, ou valha-se do seu próprio incumprimento para
beneficiar-se de disposição contratual ou legal. A teoria dos atos
próprios desdobra-se em duas importantes vertentes. Numa
direção vem particularizada doutrinariamente sob a denominação
tuoquoque - "pela natureza do sinalagma, surgindo como uma
extensão da exceção de contrato não cumprido, uma vez traduzir
a regra pela qual a pessoa que viola uma norma jurídica, legal ou
contratual, não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica
que essa mesma norma lhe tivesse atribuído. Na segunda direção,
vem expressa pela máxima que proíbe venire contra
factumproprium.22
42. A proibição de ir contra atos próprios, portanto, revela a
preocupação do direito com a proteção da confiança suscitada e da boa-fé nos
terceiros, a demonstrar a vinculação da Administração não apenas à lei, mas
21Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). São Paulo: Aide Editora, 2004, p. 254.
22A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 460-461.
32
também a seus próprios atos concretos. A opção da União por “regulamentar” a
LC 148/14 mais de um ano após a sua vigência, criando condição de dificílima
satisfação por parte dos Estados e Municípios – a exigência de aprovação de leis
autorizativas foi criada durante o recesso dos órgãos legislativos (29.12.20150 e
tem como termo final o prazo de 31.01.2016 –, revela que o enorme atraso na
regulamentação da lei por parte da credora (União) acarretou significativa
dificuldade – por vezes insuperável – por parte dos devedores (Estados e
Municípios) para se ajustarem à nova exigência. Incide, na hipótese, a máxima
segundo a qual “ninguém pode se opor a fato a que [tenha dado] causa; é esta a
essência do brocardo latino nemopotestvenire contra factumproprium” (ACO nº
652/PI, Pleno, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 30/10/14).
43. Feito o registro de que a União não atuou em consonância com o
princípio da boa-fé objetiva ao criar a exigência de prévia autorização legislativa
local para a celebração do refinanciamento com Estados e Municípios – pois o
fez há poucos dias do termo final fixado em lei e durante o recesso dos
legislativos estaduais e municipais –, cumpre demonstrar que a própria
exigência contida no inciso I do § 1o do art. 2o do Decreto 8.616/15 padece de
inconstitucionalidade.
44. A LC 148/14, ao cuidar dos critérios gerais de financiamento das
dívidas estaduais e municipais pela União, possui caráter nacional, com eficácia
para a União, os Estados e os Municípios. Esse especial fenômeno jurídico-
constitucional mereceu de Geraldo Ataliba precioso estudo23, que, por sua
pertinência, merece transcrição parcial:
23Estudos jurídicos em homenagem a Vicente Ráo, p. 131 e ss.
33
As normas gerais de direito financeiro e tributário são, por
definição e pela sistemática constitucional, leis nacionais; leis que
não se circunscrevem ao âmbito de qualquer pessoa política, mas
os transcendem aos três. Não se confundem com a lei federal,
estadual ou municipal e têm seu campo próprio e específico,
excludente das outras três e reciprocamente.
(...)
A distinção entre norma nacional (geral, global, total) e a norma
simplesmente federal (parcial, central) é melhor compreendida na
meditação sobre a argumentação de KELSEN contra a tese de que
a supremacia da competência, no estado federal, se radica na
União.
Ao demonstrar a insubsistência deste pensamento, adverte,
depois de lúcidas e oportunas considerações, que a supremacia da
competência corresponde sempre à ordem total, jamais a qualquer
das ordens parciais. ‘Por isso, quando se fala que a União – pura
e simplesmente – possui a supremacia da competência, deve-se
pensar na União como ordem total (global) e não como mera
ordem central’.
Passamos a palavra a um dos mais autorizados publicistas
brasileiros (C. A. BANDEIRA DE MELLO, “Natureza Jurídica
do Estado Federal”), para sintetizar, em poucas linhas, o
pensamento kelseniano...:
A federação compreende três ordens jurídicas distintas; a
coletividade central, as coletividades-membros e a
comunidade total. As duas primeiras ordens são
juridicamente iguais, porque estão, na mesma medida,
subordinadas à ordem jurídica superior – a comunidade
total. Elas são ordens jurídicas parciais, pois as suas
competências se circunscrevem somente a certas matérias
que lhes foram conferidas pela ordem jurídica total.
As ordens jurídicas parciais, ao passo que se acham
subordinadas à ordem jurídica total – que possui a
suprema competência – encontram-se entre si numa
relação de coordenação. A coletividade central e as
coletividades-membros compreendem dois sistemas
harmônicos que se encerram na coletividade total. Esta
34
constitui verdadeiramente o Estado federal, pois, como
ordem jurídica total, abarca as duas ordens jurídicas
parciais – União e membros – e surge na sua completa
integridade.
A chamada ‘constituição federal’ pode ser desdobrada em
duas cartas distintas: a constituição total e a constituição
da União. A constituição total compreende a verdadeira
constituição federal e regula, portanto, os poderes do
Estado federal. A constituição da União dispõe somente
sobre as competências da coletividade central, delegadas
pela constituição total. Ela se encontra em plano idêntico
aos das constituições dos Estados-membros, que regem as
competências outorgadas pela Constituição total às
coletividades parciais. Desse modo se evitam confusões
entre a União – uma das coletividades parciais – e o Estado
federal – a comunidade total.
(...)
Em nada discrepa ... a inteligência que sobre a questão manifesta
SAMPAIO DORIA; são suas palavras:
Nação se compõe da União, dos Estados, e, além destes e
daquela, o Distrito Federal e os territórios. O continente
não é a União, de que os estados fossem conteúdo. O
continente é a Nação soberana, e são conteúdos seus a
União, os Estados e, mais, o Distrito Federal e os
territórios (Direito Constitucional, p. 483).
Idêntica compreensão da matéria tem a privilegiada inteligência
de VÍTOR NUNES LEAL, que ensina:
A doutrina tradicional erroneamente identifica a União
com o Estado Federal total. Cada uma das comunidades
parciais, tanto a União como os Estados-membros, baseia-
se na sua própria Constituição – a Constituição da União e
a Constituição do Estado-membro. Todavia, a Constituição
da União, chamada Constituição Federal, é, ao mesmo
tempo, a Constituição do Estado Federal total.
Límpida e cristalinamente se vê que a constituição da
35
União ‘dispoe somente sobre as competências da
coletividade central, juridicamente parificada às
constituições dos estados federados’ (“Problemas de Direito
Positivo”).
45. Com efeito, as Leis Complementares n. 148 e 151 integram rol das
leis de normas gerais de direito financeiro, juntamente com a LC nº 101/00 e
com a Lei 4320/64 (assim recepcionada pela CF/88), sendo leis nacionais, e não
federais. Assim, disciplina delas adentra na esfera jurídica de Estados e
Municípios, sendo prescindível uma autorização legislativa do poder local
para a o acolhimento de sua disciplina. Nesse sentido, vale registrar o
elucidativo precedente do STF que afastou a alegação de que o art. 35 da LC
101/00 afrontava o pacto federativo e autonomia dos Estados e Municípios,
reafirmando, no ponto, o caráter nacional da lei complementar que versa sobre
operações de crédito entre entes da federação, verbis:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR.
ARTS. 35 E 51 DA LEI COMPLEMENTAR N.º 101/2000.
OPERAÇÕES DE CRÉDITO ENTRE ENTES FEDERADOS,
POR MEIO DE FUNDOS. CONSOLIDAÇÃO DAS
CONTAS DA UNIÃO, DOS ESTADOS, DOS MUNICÍPIOS
E DO DISTRITO FEDERAL. ALEGADA VIOLAÇÃO AO
PRINCÍPIO FEDERATIVO. O art. 35 da Lei de
Responsabilidade Fiscal, ao disciplinar as operações de crédito
efetuadas por fundos, está em consonância com o inciso II do §
9.º do art. 165 da Constituição Federal, não atentando, assim,
contra a federação.Já a sanção imposta aos entes federados que
não fornecerem dados para a consolidação de que trata o art. 51
da LC 101/2000 igualmente não implica ofensa ao princípio
federativo, uma vez que as operações de crédito são englobadas
pela mencionada regra constitucional e que o
textoimpugnadofazreferênciatão-
somenteàstransferênciasvoluntárias. Medida cautelar
36
indeferida.(ADI 2250 MC, Relator: Min. ILMAR GALVÃO,
Tribunal Pleno, julgado em 02/04/2003)
46. Na oportunidade, o Ministro Ilmar Galvão esclareceu:
O art. 35, caput, e seus §§ 1 e 2 da Lei de Responsabilidade
Fiscal, como visto, disciplinam as operações de crédito celebrados
entre os entes federados, vedando expressamente sua realização
por meio de fundos públicos, o que, para o requerente, contraria o
principio federativo inscrito na Constituição Federal.
Tais regras, entretanto, estão em consonância com o inciso II do
§ 9 do art. 165 da Carta Política, que atribui a lei complementar
a competência para “estabelecer normas de gestão financeira e
patrimonial da administração direta e indireta, bem como
condiçoes para a instituição e funcionamento de fundos”.
O texto constitucional, desse modo, permite que a lei
complementar, no caso a LC 101/2000, regule a questão
financeira e patrimonial dos entes federados, mister que
engloba, por certo, as operações de crédito.
47. A Lei Complementar 148/14, ao cuidar do intrincado tema das
operações de crédito entre Estados e Municípios (devedores) e a União
(credora), possui evidente caráter nacional24, incidindo indistintamente sobre
todos os entes da federação, na esteira da orientação jurisprudencial acima
mencionada. Não é possível, portanto, condicionar a eficácia da lei nacional à
confirmação pelos entes federados parciais, o que implicaria grave violação ao
princípio federativo. Significaria colocar os entes parciais (Estados-membros e
24Ives Gandra Martins e Celso Bastos assim se manifestaram quando ao alcance das Leis Complementares: “Considero a lei complementar uma lei nacional. Inclusive no que diz respeito às leis complementares que veiculam normas auto-aplicáveis..... Por esta razão tenho defendido a tese de que a lei complementar, que cria normas gerais, é lei da federação e não da União, emprestando esta o seu aparelho legislativo à Federação, que, por maioria absoluta, das Casas Legislativas da propria Federação (Senado) e do povo (Câmara), produz uma lei de dignidade legislativa superior à lei ordinária” (BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 3° v., t. III. São Paulo: Saraiva. p. 70).
37
Municípios) em condição da paralisar a eficácia da lei complementar nacional
que dispõe sobre norma geral de direito financeiro. Ao contratar a consolidação
e refinanciamento desses débitos, nem os entes devedores nem a União estão
aumentando a sua dívida pública.
48. Ademais, impõe-se registrar que a União pretende com a
introdução da norma contida no inciso I do § 1o do art. 2o do Decreto 8.616/15
impor, por meio ato pretensamente regulamentar, obrigação aos Estados-
membros e Municípios. A exigência de autorização legislativa dirigida a esses
entes federados só poderia decorrer de norma jurídica de caráter nacional,
nunca de um Decreto editado pela União. Não custa lembrar que a União –
como ente federado parcial – está em pé de igualdade com Estados-membros e
Municípios – também entes federados parciais.
3.2. INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA
ESTADUAL OU MUNICIPAL PARA A CONCRETIZAÇÃO DO REFINANCIAMENTO: DESNECESSIDADE DO CONTROLE LEGISLATIVO ESTADUAL E MUNICIPAL PARA A
REALIZAÇÃO DE REFINANCIAMENTO QUE REDUZ O MONTANTE DE DÍVIDA JÁ
CONTRAÍDA (PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES) 49. A interpretação conferida pela União à LC 148/14 – posteriormente
traduzida no Decreto 8.616/15 – no sentido de que o refinanciamento da dívida
dos entes federativos locais exigiria nova autorização legislativa de cada um dos
Estados e Municípios implica afronta ao princípio da separação de poderes,
previsto nos artigos 2º e 60, § 4º, III, seja porque a Presidente da República impôs
condição não prevista na LC 148/14 para a celebração dos aditivos contratuais
de refinanciamento da dívida – com o que se viola também o inciso IV do art. 84
da CF –, seja porque a exigência de aprovação de nova lei local autorizando a
repactuação implica grave e desnecessária limitação à competência dos Chefes
38
do Executivo dos Estados e Municípios.
50. Isso porque, ainda que os argumentos deduzidos no capítulo
anterior – natureza nacional da LC 148/14 – não fossem procedentes, as novas
condições contratuais são mais benéficas para os devedores, não acarretando a
necessidade dos controles normativos para a celebração de operações de
crédito. Na verdade, com o ajustamento dos contratos em decorrência da LC nº
148/14, a dívida pública estadual e municipal é reduzida e não ampliada. A
justificativa para a exigência de autorização legislativa no âmbito local para a
realização de operação de crédito reside precisamente no controle do Poder
Legislativo sobre o endividamento público levado a cabo pelo Poder Executivo.
A redução do montante de dívida já assumida pelo Estado ou pelo Município
não enseja o acionamento da cautela consubstanciada na autorização legislativa
prévia, na medida em que não há o incremento da dívida pública ou o
comprometimento de verbas orçamentárias para o pagamento dessa mesma
dívida. Na verdade, sequer existe, na hipótese presentemente discutida, nova
operação de crédito. Senão vejamos.
51. Deve-se atentar, em primeiro lugar, para a disciplina contida na
Lei Complementar n. 101/00 a propósito do tema:
Art. 32.O Ministério da Fazenda verificará o cumprimento dos
limites e condições relativos à realização de operações de crédito
de cada ente da Federação, inclusive das empresas por eles
controladas, direta ou indiretamente.
§ 1o O ente interessado formalizará seu pleito fundamentando-o
em parecer de seus órgãos técnicos e jurídicos, demonstrando a
relação custo-benefício, o interesse econômico e social da operação
e o atendimento das seguintes condições:
I - Existência de prévia e expressa autorização para a
39
contratação, no texto da lei orçamentária, em créditos
adicionais ou lei específica; [...] - (grifo nosso)
Art. 33.A instituição financeira que contratar operação de
crédito com ente da Federação, exceto quando relativa à dívida
mobiliária ou à externa, deverá exigir comprovação de que a
operação atende às condições e limites estabelecidos.
§ 1oA operação realizada com infração do disposto nesta
Lei Complementar será considerada nula, procedendo-se ao
seu cancelamento, mediante a devolução do principal, vedados o
pagamento de juros e demais encargos financeiros. - (grifo nosso)
52. Na sequencia, complementando a Lei de Responsabilidade Fiscal,
surge o disposto no art. 21 da Resolução do Senado Federal de n. 43/01, verbis:
Art. 21. Os Estados, o Distrito Federal, os Municípios
encaminharão ao Ministério da Fazenda os pedidos de
autorização para a realização das operações de crédito de que
trata esta Resolução, acompanhados de proposta de instituição
financeira, instruídos com:
I - pedido do chefe do Poder Executivo, acompanhado de
pareceres técnicos e jurídicos, demonstrando a relação custo-
benefício, o interesse econômico e social da operação e o
cumprimento dos limites e condições estabelecidos por esta
Resolução;
II - autorização legislativa para a realização da operação;
III - comprovação da inclusão no orçamento dos recursos
provenientes da operação pleiteada, exceto no caso de operações
por antecipação de receita orçamentária;
[...]
XIV - lei orçamentária do exercício em curso; e
XV - Lei de Diretrizes Orçamentárias do exercício em curso.
53. Discute-se, nesse passo, se a LC 148/14 exige, para a sua incidência
nos contratos de financiamento da dívida pública dos Estados e Municípios,
expressa autorização legislativa desses entes federados locais. Em primeiro
lugar, deve-se relembrar que a LC 148/14 possui a mesma natureza e estatura da
40
LC 101/00, não sendo possível, portanto, alegar que a primeira, ao instituir novo
modelo de financiamento da dívida dos Estados e Municípios, violou a última.
Em segundo lugar, deve-se ponderar se há razões de estatura constitucional –
sob o prisma do princípio da separação de poderes – para submeter a celebração
do aditivo contratual previsto no LC 148/14 à chancela dos legislativos estaduais
e municipais. A tese defendida na presente ADPF é de que o conceito de nova
operação de crédito está associado à elevação da dívida pública, o que justifica o
controle legislativo sobre os atos do Chefe do Poder Executivo. Não havendo
nova operação de crédito, mas apenas a repactuação de operação antiga
realizada com o propósito de reduzir o montante da dívida e também os valores
tirados dos orçamentos locais para o pagamento à União, efetivamente não se
mostra razoável exigir prévia autorização legislativa dos entes federados
estaduais e municipais. Confiram-se, a propósito, as definições de operação de
crédito extraídas da doutrina especializada:
OPERAÇÃO DE CRÉDITO - Designação dada à tomada de
empréstimo ou de financiamento por entidade da administração
pública, com o objetivo de captar recursos (capital, bens ou
serviços) para a realização de projetos e/ou empreendimentos.
Tais operações são de Crédito Interno (quando realizadas com
agentes nacionais) e de Crédito Externo (quando realizadas com
instituições sediadas no exterior).
Para os efeitos das Resoluções nºs 96, de 1989, e 69, de 1995, do
Senado Federal - que regulam o endividamento da União,
Estados, Municípios e suas instituições -, ora substituídas pela
Resolução nº 43, de 2001, entende-se por operação de crédito toda
e qualquer obrigação decorrente de financiamentos ou
empréstimos, inclusive de arrendamento mercantil, mediante a
celebração de contratos, emissão ou aceite de títulos, ou a
concessão de quaisquer garantias, que representem compromissos
assumidos com credores situados no País ou no exterior. (In:
SANCHES, Osvaldo Maldonado. 2. ed. Dicionário de orçamento
41
e áreas afins. OMS: Brasília, 2004. p. 233)
+++
A operação de crédito é uma figura contratual que pressupõe
agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei,
nos exatos termos do art. 82 do Código Civil. Guarda a
peculiaridade, no caso de contratos públicos, pelo fato de que um
dos contratantes é ente federativo. Trata-se de compromisso em
razão de um empréstimo, gerando crédito e débito. Como salienta
Geraldo Ataliba, "tanto é operação de crédito o levantamento
direto de um empréstimo em dinheiro quanto a aquisição de bens
e serviços para pagamento a médio ou longo prazo"
(Empréstimos..., p. 42). No mesmo sentido a opinião de Aliomar
Baleeiro (Uma introdução à ciência das finanças, 15. ed.,
Forense, p. 488). - (grifo nosso) (In:OLIVEIRA, Regis
Fernandes. Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001. p. 63)
+++
Considera-se operação de crédito, na própria definição da LRF,
todo "compromisso financeiro assumido em razão de mútuo,
abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição
financiada de bens, recebimento antecipado de valores
provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento
mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso
de derivativos financeiros", equiparam-se também às operações
de crédito "a assunção, o reconhecimento ou a confissão de
dívidas pelo ente da Federação". Ou, em uma definição mais
concisa, as operações de crédito público "são aquelas realizadas
pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios
contemplando compromissos de pagamento a serem honrados no
futuro". - (grifo nosso) (In:CONTI, José Maurício. Comentários
à Lei de Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001. p.
220.)
54. Conclui-se, a partir das considerações doutrinárias acima
mencionadas, que a característica comum a todas as conceituações de operação
42
de crédito é o aumento do endividamento do ente público. É o
comprometimento dos orçamentos futuros que justifica a necessidade de
aprovação legislativa específica pelo ente estadual ou municipal que deseja
contrair nova dívida ou elevar dívida anterior. Não havendo qualquer risco de
quebra do sistema de checks and countercheks previsto na Constituição, inexiste
razão legítima para condicionar a eficácia da LC 148/14 à aprovação de leis
estaduais e municipais de anuência aos termos da lei nacional. A competência
deferida às chefias dos Executivos estaduais e municipais para celebrar com a
União o refinanciamento de suas dívidas – em condições mais benéficas – não
pode ser condicionada ao beneplácito dos respectivos órgãos legislativos se não
há qualquer possibilidade de elevação do endividamento público a justificar o
controle legislativo prévio sobre os atos do Poder Executivo.
55. Em sua redação original, a LC nº 148, de 25 de novembro de 2014,
previa, no seu artigo 2º, que a União estava autorizada a conceder condições
mais favoráveis aos Estados e Municípios, com a introdução dos juros de 4% ao
ano e atualização monetária das dívidas pelo IPCA-IBGE. Nesse cenário
normativo, era imprescindível a manifestação do Poder Executivo federal no
sentido de exercer a potestade que lhe foi conferida pela referida lei. Porém, o
referido dispositivo legal foi alterado pela LC nº 151, de 05 de agosto de 2015,
que transformou a faculdade em obrigatoriedade. A partir da introdução da
nova lei, a União é obrigada a adotar tais condições. Nesse novo cenário, é claro
que o Poder Executivo federal continua tendo o poder regulamentar, para
estabelecer o chamado regulamento de execução. Mas não mais possui a
discricionariedade normativa para decidir se vai ou não adotar tais condições,
ou ainda estabelecer requisitos que não estão na lei para servir de pressupostos
para a adoção do novo regime de financiamento.
43
56. Nesse ponto, surge, ainda, outro argumento que reforça a tese de
que a interpretação conferida pela União à LC 148/14 – posteriormente
traduzida no Decreto 8.616/15 – no sentido de que o refinanciamento da dívida
dos entes federativos locais exigiria nova autorização legislativa de cada um dos
Estados e Municípios implica afronta ao princípio da separação de poderes, qual
seja a de que a União não pode estabelecer requisitos que não estão na lei para
servir de pressupostos para a adoção do novo regime de financiamento25. Isso
porque, à vista do disposto nos arts. 2o e 5o, inciso II, c/c o art. 84, IV, todos da
Constituição Federal, tem-se que o poder regulamentar outorgado ao Presidente
da República está limitado ao conteúdo da lei. A atuação administrativa com
esse fundamento é legítima quando está restrita a expedir normas
complementares a ordem jurídico-formal vigente; em outras palavras, quando
configura exercício de função típica do Poder Executivo, qual seja, a execução
25Das lições de Celso Ribeiro Bastos, vejamos comentários acerca da Lei como fonte do Direito Administrativo - In: Noções de Direito Administrativo. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002. p. 23-24: “Embora a Constituição cuide de fixar principios e, mesmo, regular matérias que nela encontram a sua disciplinação ampla, nada obstante isso, resta um papel enorme às leis. Estas é que vão dar conteúdo à competência distribuída pela Constituição às pessoas de Direito Público para legislarem sobre as diversas matérias administrativas. A lei é a fonte por excelência do Direito Administrativo, até porque, quando se fala que este último obedecerá ao princípio da legalidade, entende-se que ele é todo regulado pela lei, que é a sua fonte normal, sua geradora por excelência, sua adaptadora às novas circunstâncias que vão surgindo no mundo em face da evolução econômica, tecnológica, social, cultural etc. Não se pode subestimar a importância da lei como fonte do Direito Administrativo em nosso país. Há uma verdadeira reserva da lei, isto é, não se autoriza a produção pela Administração de normas de Direito Administrativo com a mesma hierarquia das leis e da Constituição. A lei se destaca, pois, por ser a fonte primária, logo depois da Constituição, sem nenhuma co-divisão de competência com uma eventual atividade legislativa do Poder Executivo, como ocorre em alguns países que seguem o modelo francês, onde há uma competência do Poder Executivo para legislar diretamente, dependendo apenas da Constituição. [...] Não existe campo no Direito Administrativo alheio às leis, em decorrência do princípio da legalidade. Portanto, não há uma reserva administrativa, ou seja, um campo de atuação administrativa desvinculado de qualquer previsão legal. [...] Não há, como vimos, uma reserva administrativa no campo do atuar administrativo que fique isenta da regulamentação legislativa. - (grifo nosso)
44
das leis26. Sobre a matéria, ensina José Afonso da Silva:
“O poder regulamentar não é poder legislativo, por conseguinte
não pode criar normatividade que inove a ordem jurídica. Seus
limites naturais situam-se no a mbito da compete ncia executiva e
administrativa, onde se insere. Ultrapassar esses limites importa
em abuso de poder, usurpac ão de compete ncias, tornando írrito o
regulamento dele proveniente, e sujeito a sustac ão pelo
Congresso Nacional (art. 49, V).
Doutrinariamente, pelo menos, o regulamento assemelha- se a lei
em seu carater geral, impessoal e permanente; mas dela se
distingue não só por ser diferente o órgão que o estabelece, como
por ser uma norma jurídica secundaria e de categoria inferior a
da lei. Mas a distinc ão não é assim tão patente. (...)
Lei e regulamento são, ambos, normas jurídicas gerais e
abstratas, obrigatórias e relativamente permanentes. A distinc ão
fundamental, hoje aceita pela generalidade dos autores, esta em
que a lei nova inova a ordem jurídico-formal, seja modificando
normas preexistentes, seja regulando matéria ainda não regulada
normativamente. Ao passo que o regulamento não contém,
originariamente, novidade modificativa da ordem jurídico-
formal; limita-se a precisar, pormenorizar, o conteudo da lei. E
pois, norma jurídica subordinada. O regulamento tem limites
decorrentes do direito positivo. Deve respeitar os textos
constitucionais, a lei regulamentada e a legislac ão, em geral, e as
fontes subsidiarias a que ela se reporta” (Comentario Contextual
a Constituicão. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 484).
57. Conclui-se, assim, que o entendimento segundo o qual o
refinanciamento da dívida dos entes federativos locais exigiria nova autorização
legislativa de cada um dos Estados e Municípios implica afronta ao princípio da
separação de poderes sob duas vertentes: (i) em primeiro lugar, restringe de forma
ilegítima a competência deferida pela LC 148/14 aos Governadores e Prefeitos
26STF, RMS 27666, Relator Min. DIAS TOFFOLI, PrimeiraTurma, julgadoem 10/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-086 DIVULG 03-05-2012 PUBLIC 04-05-2012 RT v. 101, n. 922, 2012, p. 698-709.
45
para a celebração dos termos de adesão que consubstanciam o refinanciamento
sob condições mais benéficas; (ii) em segundo lugar, a própria edição do Decreto
n. 8.616/15 – que adicionou essa exigência na ordem jurídica – viola a separação
de poderes na medida em que cria, pela via do poder regulamentar deferido ao
Presidente na condição de Chefe do Poder Executivo federal (art. 84, IV),
requisito não previsto na LC 148/14 (lei de caráter nacional).
3.3. INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DE DESISTÊNCIA DE AÇÕES
JUDICIAIS QUE DISCUTAM A DÍVIDA REFINANCIADA COMO CONDIÇÃO PARA A
CELEBRAÇÃO DA ALTERAÇÃO DOS ÍNDICES DE JUROS E CORREÇÃO MONETÁRIA
DAS DÍVIDAS DOS ENTES FEDERADOS LOCAIS: AFRONTA AOS PRINCÍPIOS
CONSTITUCIONAIS DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO E DA
INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO
58. O tema atinente à constitucionalidade da exigência de desistência
de ações judiciais que discutam a dívida refinanciadora como condição para a
celebração da alteração dos índices de juros e correção monetária das dívidas
dos entes federados foi objeto de recentíssima decisão da Ministra Cármen
Lúcia, que, no dia 22.01.2016, no exercício da Presidência do STF, permitiu ao
Estado de Alagoas a repactuação da dívida com a União sem desistência de
ações judiciais, como dá conta a notícia veiculada no sítio eletrônico do
Tribunal27, verbis:
Segunda-feira, 25 de janeiro de 2016
Liminar permite repactuação da dívida de Alagoas sem
desistência de ações judiciais
A ministra Cármen Lúcia, no exercício da Presidência do
Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar ao Estado de
Alagoas para afastar uma das exigências impostas para a
27http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=308595.
46
repactuação da sua dívida com a União. A exigência, discutida
na Ação Cível Originária (ACO) 2805, é a necessidade de
desistência de ações judiciais referentes à dívida, o que no caso
específico de Alagoas poderia criar uma situação de onerosidade
excessiva para o estado, entendeu a ministra.
“Não pode o direito dar com uma mão e tirar com a outra, quer
dizer, oferecer a possibilidade de repactuar a dívida do ente
federado com a União para melhorar as condições do ajuste e
exigir a piora da situação do contratante”, afirma a decisão.
O Estado de Alagoas alega que será prejudicado pela desistência
de liminar concedida em 2012 na Ação Originária (AO) 1726,
na qual foi concedido ao estado o direito à redução dos índices
pactuados àqueles obtidos por outros estados. Assim, os juros
foram reduzidos de 7,5% para 6% ao ano, e o limite para
dispêndio com os pagamentos passou de 15% para 11,5% da
receita líquida.
A desistência dessa ação para o enquadramento nas novas
condições oferecidas pela União gerará impacto sobres as contas
do estado, diz o pedido analisado pela ministra Cármen Lúcia. A
ministra também ressaltou que a União ainda não disponibilizou
dados precisos sobre o cálculo e o valor do desconto do estoque da
dívida.
“Não pode o governador do estado fazer opção pela repactuação
sem prestar contas ao povo alagoano sobre as razões de sua
escolha, os efeitos econômicos, financeiros, administrativos e
sociais para o desempenho de seus serviços, demonstrando-se as
consequências de tal providência”, diz a liminar.
59. A decisão acima mencionada está em plena consonância com os
princípios da inafastabilidade da jurisdição e da indisponibilidade do interesse
público. Em primeiro lugar, deve-se salientar que a jurisprudência do STF é
uniforme no sentido de que “[o] controle jurisdicional é, portanto, sempre
admitido em abstrato, como corolário da garantia constitucional da
inafastabilidade da tutela judicial efetiva (CRFB, art. 5o, XXXV). O que irá variar
de caso a caso é o maior ou o menor grau de vinculação da Administração
Pública a juridicidade, ao que corresponderá maior ou menor grau de densidade
47
do controle judicial, em respeito ao postulado da Separação dos Poderes (CRFB,
art. 2o)”28. Como bem ressaltou o Ministro Luiz Fux em recente pronunciamento,
a inafastabilidade do controle jurisdicional dos atos do poder público constitui
elemento essencial da noção de Estado de Direito:
A noc ão de Estado de Direito (ruleoflaw) tem como nucleo a
limitac ão jurídica do exercício do poder político. Cuida-se da
histórica busca da domesticac ão da Administrac ão Publica com
uma espécie de barreira em face das arbitrariedades do Estado,
notadamente pela supremacia da lei (NOVAIS, Jorge Reis.
Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Ed.
Almedina, 2006, p. 40). Essa ideia de “controlabilidade” do
poder político a partir de para metros jurídico- normativos tem
como origem histórica mais imediata a superac ão do Estado
Absolutista, inicialmente pelo a ngulo formal, através da
organizac ão e da racionalizac ão do aparelho administrativo do
Estado segundo o princípio da legalidade. Evoluiu,
modernamente, para uma concepc ão também substancial ou
material, que “só adquire sentido, justificac ão e inteligibilidade
em funcão do respeito, garantia e promoc ão dos direitos e
liberdades fundamentais” (idem, p. 25), assim não mais se
compadecendo com uma espécie de casca vazia de legalidade,
conforme consagrada expressão de Ulrich Scheuner.
De qualquer modo, se a ideia de Estado de Direito caminha em
direcão a supremacia da lei como baliza para a atuac ão
administrativa, parece claro que as garantias do acesso a justica e
da tutela jurisdicional efetiva representam componentes
imprescindíveis a concretizac ão de tal princípio constitucional.
Haveria flagrante incoere ncia caso fossem proclamadas restric oes
de índole formal e material a atuac ão do Estado, mas não
existissem instrumentos que lhes assegurassem a observa ncia in
concreto, justamente ao que se destina a prestac ão jurisdicional.
Em ultima analise, em um cenario como este a própria violac ão
das normas de direito material pelo poder publico seria relegada a
28STF, RE 632853, Relator Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 23/04/2015, trecho do voto do Min. LUIZ FUX.
48
irrelevancia, ja que impossível desencadear de modo forc oso as
consequencias deste comportamento ilícito. Daí que as noc oes de
submissão da autoridade a lei e de controle jurisdicional dos atos
de poder me parecem faces simétricas do feno meno Estado de
Direito.
60. De fato, a garantia de acesso ao Poder Judiciário para a discussão
pretérita e futura de questões atinentes à relação travada entre União e os
demais entes da federação no que diz respeito ao financiamento da dívida
pública destas últimas dá concreção ao princípio da inafastabilidade da
jurisdição, que se qualifica como preceito fundamental consagrado pela
Constituição da República. De fato, a regra inscrita no art. 5º, inciso XXXV, da
Lei Fundamental, garantidora do direito ao processo e à tutela jurisdicional,
constitui o parágrafo régio do Estado Democrático de Direito, pois, onde
inexista a possibilidade do amparo judicial, haverá, sempre, a realidade
opressiva e intolerável do arbítrio do Estado.
61. Não se mostra consentâneo com a Constituição a pretensão da
União de excluir da apreciação do Judiciário, notadamente desse STF, o exame
de eventuais controvérsias ou conflitos federativos envolvendo o complexo
problema do financiamento da dívida pública no Brasil. A preservação do
equilíbrio da federação, dissipando controvérsias sobre competências
federativas, constitui uma das mais relevantes funções das cortes
constitucionais. Em Kelsen, nos primórdios da própria jurisdição constitucional,
lê-se:
“Mas é certamente no Estado federativo que a jurisdição
constitucional adquire a mais considerável importância. Não é
excessivo afirmar que a idéia política do Estado federativo só é
plenamente realizada com a instituição de um tribunal
49
constitucional. A essência do Estado federativo consiste (...)
numa divisão das funções, tanto legislativas como executivas,
entre órgãos centrais competentes para todo o Estado ou seu
território (Federação, Reich, União) e uma pluralidade de órgãos
locais (...) Em outras palavras, o Estado federativo é um caso
especial de descentralização. A disciplina dessa descentralização é
o conteúdo essencial da Constituição geral do estado (....) A
repartição de competências é o cerne político da idéia federalista.
(...) Qualquer violação dos limites assim traçados pela
Constituição é uma violação da lei fundamental do Estado
federativo; e a proteção desse limite constitucional das
competências entre União e estados federados é uma questão
política vital, sentida como tal no Estado federativo, no qual a
competência dá ensejo a lutas apaixonadas. Mais que em
qualquer outra parte, faz-se sentir aqui a necessidade de uma
instância objetiva que decida essas lutas de modo pacífico, de um
tribunal ao qual esses litígios possam ser levados como problema
de ordem jurídica e decididos como tal – isto é, de um tribunal
constitucional”.29
62. Esta é, sem dúvida, uma das principais funções do Supremo
Tribunal Federal. A definição do sentido e do alcance das normas
constitucionais delimitadoras das competências dos entes federados ganha
especial relevância na conformação do perfil da federação brasileira:
“A Constituição da Republica confere, ao Supremo Tribunal
Federal, a posição eminente de Tribunal da Federação (CF, art.
102, I, f), atribuindo, a esta Corte, em tal condição institucional,
o poder de dirimir controvérsias, que, ao irromperem no seio do
Estado Federal, culminam, perigosamente, por antagonizar as
unidades que compõem a Federação. Essa magna função jurídico-
institucional da Suprema Corte impõe-lhe o gravíssimo dever de
velar pela intangibilidade do vínculo federativo e de zelar pelo
29KELSEN, Hans. A jurisdição constitucional. In: Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 182-183.
50
equilíbrio harmonioso das relações políticas entre as pessoas
estatais que integram a Federação brasileira.”30
63. Nesse contexto, fica claro que a exigência de desistência de ações
judiciais que discutam a dívida refinanciadora como condição para a celebração
da alteração dos índices de juros e correção monetária das dívidas dos entes
federados afronta o princípio constitucional da inafastabilidade do Poder
Judiciário31 e retira indevidamente do STF a possibilidade de arbitrar conflitos
federativos. Como se não bastasse, a exigência também afronta simultaneamente
o princípio da indisponibilidade do interesse público, pois, como afirma
Diógenes Gasparini, “não se acham, segundo esse princípio, os bens, direitos interesses
e servicos publicos a livre disposic ão dos órgãos publicos, a quem apenas cabe cura-los,
ou do agente publico, mero gestor da coisa publica. ... . O detentor dessa disponibilidade
é o Estado”32.
3.4. INCONSTITUCIONALIDADE DA AUSÊNCIA DE DISPONIBILIZAÇÃO ADEQUADA
AOS ESTADOS E MUNICÍPIOS DAS INFORMAÇÕES NECESSÁRIAS À ATRIBUIÇÃO DE
EFICÁCIA AO REGIME JURÍDICO DA DÍVIDA PÚBLICA INSTITUÍDO PELA LC 148/14: VIOLAÇÃO À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E AO
PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
30ACO 2057 MC-Ref, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, j. 21/02/2013, DJe-048 12-03-2013.
31Cabe, aqui, uma distinção. Pode-se tomar o cânone “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” como um postulado do direito abstrato, público e subjetivo do direito de acionar o Poder Judiciário, ou se se preferir, do direito constitucional e abstrato de ação, o Rechtsschutzanspruch (literalmente, o direito de abrigo à pretensão). Nesse sentido, a regra constitucional significará uma garantia do direito abstrato de ação, sem que se voltem os olhos ao direito material, o qual poderá ou não existir. Não será, então, um princípio processual, senão um princípio da ação, entendida esta, insista-se, como um direito subjetivo público e abstrato, pertencente a todos os administrados, de, com razão ou sem esta, provocar, simplesmente, a atividade jurisdicional. Cf. Luigi Paolo Comoglio, “La Garantia Costituzionale dell’Azioneedil Processo Civile”, Cedam, 1970, nº 14, p. 78 e seg. e nº 17, p. 103.
32GASPARINI, DIOGENES. Direito Administrativo, 3a edição, São Paulo: Ed. Saraiva, 1993, p. 13.
51
64. Por fim, deve-se consignar que até o presente momento a União
não disponibilizou adequadamente aos Estados e Municípios as informações
necessárias à realização dos pagamentos das dívidas dos entes locais de acordo
com os novos parâmetros normativos. Como ressaltou em recente decisão a
Ministra Cármen Lúcia (ACO 2805), “a União ainda não disponibilizou dados
precisos sobre o cálculo e o valor do desconto do estoque da dívida”.
65. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, tem reafirmado a
essencialidade do princípio do devido processo legal, nele reconhecendo uma
insuprimível garantia que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade,
rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que
em sede materialmente administrativa33. É conhecida a lição de que faz parte do
direito ao devido processo legal o direito à informação. Não se pode garantir o
desenvolvimento escorreito do processo administrativo regulado pelo Decreto
n. 8.616/15 e tampouco a eficácia da LC 148/14 sem que sejam disponibilizados
com precisão a todos os Estados e Municípios dados precisos sobre o cálculo e o
valor do desconto do estoque da dívida e também sobre o valor da parcela a ser
recolhida por eles a partir do dia 1o de fevereiro. Ademais, tampouco os Estados
e Municípios poderão exercer o controle sobre a atividade administrativa
desenvolvida pela União se não lhes forem disponibilizadas todas essas
informações.
66. Sequer seria necessário, por fim, maior esforço argumentativo para
demonstrar que constitui dever de a União apresentar todas as informações
33STF, MS 27422 AgR, Relator Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 14/04/2015.
52
pertinentes ao cumprimento da LC 148/14 por força mesmo do princípio da
publicidade, “um dos mais altaneiros modos de concretizar a República
enquanto forma de governo”34. De fato, “a publicidade é princípio informador
da República democrática constitucionalizado pela Carta de 1988, e a ela se
submetem todos os comportamentos estatais. Isso porque o caráter republicano
do governo (res publica) e a cláusula segundo a qual “todo o poder emana do
povo” (art. 1o, parágrafo único, CF/88) pressupõem que haja transpare ncia nos
atos estatais, a qual, por sua vez, se obtém mediante a mais ampla publicidade
desses atos, possibilitando-se, assim, a todos os cidadãos que deles tomem
conhecimento e, desse modo, os legitimem”35. Ademais, o texto constitucional,
preocupado com a publicidade da atuação administrativa, consignou-a,
expressamente, em seu art. 37, caput, como princípio da administração pública,
consagrando constitucionalmente “o dever administrativo de manter plena
transparência em seus comportamentos”36.
67. A ampla transparência no tratamento das informações concernente
à dívida pública dos Estados e Municípios – a esta parte alteradas pela
incidência da LC 148/14 – é necessária para (i) possibilitar o controle de
legalidade dos atos da Administração Pública Federal, (ii) viabilizar a prestação
de contas pelos Chefes do Executivo estadual ou municipal aos cidadãos da
opção tomada por aderir ao refinanciamento e (iii) possibilitar o cumprimento
das novas condições legais de pagamento da dívida a partir do dia 1o de
fevereiro de 2016, na esteira da determinação legal.
34STF, SS 3902 AgR-segundo, Relator Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 09/06/2011.
35STF, ADI 2444, Relator Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 06/11/2014.
36MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 114.
53
- PARTE 4 - MEDIDA CAUTELAR E PEDIDOS
68. O pedido liminar tem como fundamento base todo o escorço
jurídico afirmado nas linhas acima.
69. Em primeiro lugar, porque as Leis Complementares n. 148 e 151
integram rol das leis de normas gerais de direito financeiro, sendo leis nacionais,
e não federais, razão pela qual a disciplina delas adentra na esfera jurídica de
Estados e Municípios, sendo prescindível uma autorização legislativa do poder
local para a o acolhimento de sua disciplina.
70. Em segundo lugar, porque a condição imposta por meio de um
Decreto Regulamentador n. 8.616/2015, que impõe aos Estado e Municípios a
desistência de ações judiciais que tenham como objeto o debate da dívida
pública, bem como que renuncie a qualquer direito relativo à dívida pública
acarretará sérios prejuízos para o interesse da coletividade, violará o interesse
público indisponível do Estado, bem como irá de encontro à ratio essendi das
legislações pertinentes ao programa de refinanciamento da dívida pública.
71. O fumus boni iuris é evidente na medida em que as condições
impostas pelo referido Decreto – incisos I e II do § 1o do art. 2o do Decreto n.
8.616/15 –implicarão dificuldade – para não dizer impossibilidade – de
cumprimento do programa de refinanciamento. A violação à autonomia do ente
federativo, bem como a violação ao princípio da supremacia do interesse
público são evidentes. A intenção é que os Estados e Municípios possam exercer
e participar do programa de refinanciamento para que possam realizar o
54
pagamento e se desvencilhar de um obstáculo econômico e financeiro que há
décadas solapam o orçamento de todos dos Estados e Municípios do país.
72. O periculum in mora reside na circunstância de que o prazo previsto
para que a União assine os Termos Aditivos aos Contratos encerra-se no dia 31
de janeiro de 2016, na forma prevista no art. 1° da Lei Complementar n°
151/2015 (o qual altera o art. 4o, parágrafo único, da Lei Complementar no
148/2014):
“(...) “Parágrafo único. A União terá até 31 de janeiro de 2016
para promover os aditivos contratuais, independentemente de
regulamentação, após o que o devedor poderá recolher, a título de
pagamento à União, o montante devido, com a aplicação da Lei,
ficando a União obrigada a ressarcir ao devedor os valores
eventualmente pagos a maior” (...).
73. Está claro que as exigências inconstitucionais inseridas pela União
nos incisos I e II do § 1o do art. 2o do Decreto n. 8.616/15 e também o fato de a
União até o momento não ter disponibilizado (I) os dados referentes ao cálculo e
o valor do desconto do estoque da dívida e (II) o valor exato da parcela a ser
paga pelos Estados e Municípios a partir do dia 1.2.2016 impedem seja levado a
efeito o reequilíbrio federativo pretendido com a aprovação das Leis
Complementares n. 148 e 151.
55
74. POR TODAS ESSAS RAZÕES, O AUTOR PEDE A
CONCESSÃO MONOCRÁTICA AD REFERENDUM DAS SEGUINTES
MEDIDAS CAUTELARES:
(i) Seja declarada a inconstitucionalidade parcial sem
redução de texto dos artigos 2o, 3o e 4o da Lei
Complementar n. 148, afastando a interpretação segundo a
qual a eficácia deles dependeria da edição de autorização
legislativa pelos entes Estados e Municípios;
(ii) Sejam declarados inconstitucionais incisos I e II do §
1o do art. 2o do Decreto n. 8.616/15; ou, sucessivamente,
apenas em relação ao inciso I, seja conferida interpretação
conforme a Constituição de modo a fixar o sentido de que
a autorização legislativa exigida foi cumprida com a
aprovação da própria LC 148/14;
(iii) Sejam declaradas nulas as cláusulas dos aditivos de
contrato de financiamento já firmados pela União com
Estados e Municípios que impuseram como condição para
a celebração da alteração dos índices de juros e correção
monetárias das dívidas dos entes federados locais a
desistência de ações judiciais que discutam a dívida
refinanciada;
(iv) Seja determinado que a União e o Banco do Brasil
(instituição financeira oficial que recolhe as parcelas
56
mensais das dívidas dos Estados e dos Municípios)
forneçam, até o dia 31 de janeiro de 2016, aos entes
federados devedores as informações atualizadas de acordo
com a LC 148/14 quanto ao saldo devedor e o valor das
parcelas a serem pagas a partir de 1o de fevereiro, evitando
o pagamento a maior por parte dos já combalidos Estados
e Municípios.
75. Em face do exposto, requer o autor que:
a) Seja recebida e julgada procedente a presente ADPF;
b) Sejam notificados a Presidência da República, e a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, por intermédio de seus presidentes, para que, como responsáveis pela elaboração das normas impugnadas, se manifestem;
c) Seja notificado o Exmo. Sr. Advogado-Geral da União para se manifestar sobre o mérito da presente Ação;
d) Seja notificado do Exmo. Sr. Procurador Geral da
República para que emita o seu Parecer;
e) Seja julgada procedente a presente ADPF para que o STF confirme todos os pedidos cautelares deduzidos.
Nestes termos, Pede e espera deferimento.
Brasília, 28 de janeiro de 2016.
BRENO BERGSON SANTOS OAB/SE 4.403
Top Related