Jürgen Habermas: anotações sobre a trajetória do conceito de
esfera pública
Estevão Bosco1
RESUMO: O objetivo principal consiste em delinear a trajetória interna na obra de Jürgen Habermas que resulta, na década de 1990, na proposição de uma "democracia constitucional cosmopolita". Como metodologia, orientamo-nos por uma perspectiva imanente, considerando apenas aspectos internos da obra, circunscritos aqui à associação histórica entre capitalismo e democracia e sua mediação por meio do conceito de esfera pública. Uma vez que os dilemas concernentes à relação entre política, economia e cultura perpassam, grosso modo, conjunto dos estudos do autor, faz-se necessário considerar um conjunto de livros específicos, ainda que não exclusivos: "Strukturwandel der Öffentlichkeit" (1962); "Legitimationprobleme im Spätkapitalismus" (1973); "Theorie des kommunikativen Handelns" (1981); "Faktizität und Geltung" (1992); e “Die Einbeziehung des Anderen” (1996). Como hipótese, argumento haver uma coerência interna, para não dizer uma complementaridade, entre o diagnóstico de crise da esfera nacional, a proposição de uma democracia cosmopolita, o diagnóstico de época elaborado no início dos anos 1970 e, em 1962, a tese da mudança estrutural da esfera. PALAVRAS-CHAVE: Habermas, Jürgen; Esfera pública; Democracia deliberativa. INTRODUÇÃO
O propósito geral de Jürgen Habermas é o de iluminar fundamentos normativos
para uma teoria crítica da sociedade. Em resposta a uma crítica da razão prisioneira de si
mesma, Habermas desenvolve um conceito de razão a partir da racionalidade possível da
práxis comunicativa quotidiana, mais especificamente, a partir do uso da linguagem
voltada ao entendimento. Para ele, a elaboração de um conceito de comunicação deve
ser tarefa de uma da filosofia em um diálogo sistemático com a teoria social e a teoria
política.
Nesse artigo, elaboro uma leitura, não exaustiva, da trajetória teórica da obra de
Habermas a partir do conceito de “esfera pública”. Com isso, pretendo iluminar aspectos
gerais de sua trajetória que permitiram resultar em seu modelo deliberativo de
democracia. Para tanto, faço principalmente uso de alguns livros: Strukturwandel der
Öffentlichkeit (1978b [orig. 1962]); Legitimationprobleme im Spätkapitalismus (1978a [orig.
1 Sociólogo pela Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara (UNESP), mestre em
sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutorando pela mesma universidade. Esta pesquisa é financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Contato: [email protected]
1973]); Theorie des kommunikativen Handelns (1987 [orig. 1981]); Faktizität und Geltung
(2003b e 2010 [orig. 1992]); e Die Einbeziehung des Anderen (2007 [orig. 1996]).
Como hipótese geral, argumento haver uma coerência interna no percurso do
autor, que pode ser caracterizada por uma ênfase específica em cada um desses
momentos da obra: sob a preocupação geral com a associação histórica entre capitalismo
e democracia, em 1962 e 1973 o acento é dado ao capitalismo, enquanto a partir dos
anos 1980, à democracia. Sugere-se, pois, que as tendências econômicas, políticas e
sócio-culturais para a crise, diagnosticadas em 1962 e 1973, mantiveram-se
empiricamente válidas e, deste modo, vieram a combinar-se com a "crise gerencial" de um
Estado nacional confrontado a uma globalização intensificada (Habermas, 2002 e 2003a).
Disso resulta uma crise mais profunda, que coloca em questão a capacidade de
legitimação do modelo nacional de democracia.
A INTUIÇÃO DE UMA ABERTURA INSUFICIENTE DAS INSTITUIÇÕES
DEMOCRÁTICAS E A ESFERA PÚBLICA EM STRUKTURWANDEL DER
ÖFFENTLOCHKEIT (1962)
Foi em 1962 que Habermas (1978b) elabora o conceito de esfera pública através
de uma reconstrução histórica da sociedade moderna, compreendida em fases
sucessivas, uma pré-capitalista, outra capitalista liberal, uma terceira capitalista burguesa
e uma quarta e contemporânea, a do capitalismo administrado. Para essa reconstrução, o
quadro teórico-metodológico elaborado por Habermas compreende inicialmente a
diferenciação entre Estado e esfera privada, cabendo à esfera pública a mediação entre
um e outro. O que interessa especificamente o autor é a compreensão da decadência do
projeto liberal do século XIX, que tinha, conforme sua demonstração, na esfera pública
liberal burguesa o seu espaço de mediação principal, pois é em sua constituição que
surgiram um conjunto de direitos civis que vieram garantir autonomia da esfera privada
perante a regulação estatal. A elaboração do conceito de esfera pública consiste aqui
numa inovação importante para a compreensão da sociedade contemporânea, e constitui
um marco metodológico para as Ciências Sociais. Mas a contribuição do estudo não é
somente essa: como argumenta Walter Reese-Schäfer, Habermas formula "uma forma
diferenciada de crítica à ideologia, a qual não denuncia ideias e ideologias como mera
consciência falsa, antes porém dirige criticamente seu potencial normativo excedente
contra uma atualidade decadente" (Reese-Schäfer, 2010, p. 43).
Apesar de a fundação teórico-metodológica do estudo de 1962 ter sido
reformulada nos estudos posteriores sobre a esfera pública (Habermas, 2003b e 2010; e
2007 [orig. 1992 e 1996), nele encontram-se muitas ideias que permaneceram centrais ao
longo de toda a sua trajetória. Daí a importância de compreender a concepção de esfera
pública elaborada a partir de 1992 (idem, ibidem) a partir de uma reconstrução
sistemática, pois ela permite ter clareza quanto ao projeto intelectual em seu conjunto, eo
ipso em relação à proposição de sua democracia deliberativa como resposta aos
problemas de legitimação nos dias atuais. E isso exatamente porque o potencial de
emancipação diagnosticado em 1962 deu lugar a um projeto político claramente
direcionado, tendo no direito a esfera de mediação institucional entre Estado e sociedade,
e na sociedade civil, o conteúdo normativo excedente, passível de institucionalização
(Habermas, 2010, p. 17-64 e 2003b, p. 57-122). Em 1962, Habermas propunha:
Primeiramente, de fato, a universalidade das leis num sentido rigoroso só é garantida na medida em que a autonomia, intacta, da sociedade civil enquanto esfera privada, permite afastar do material tratado pela legislação certos interesses cuja situação é sobremaneira especial, e de limitar o trabalho de codificação às condições gerais necessárias para o reequilíbrio dos mesmos interesses. Em segundo lugar, a verdade das leis só é garantida na medida em que uma esfera pública elevada, enquanto parlamento, à dignidade de órgão de Estado permite a discussões públicas fazer surgir as necessidades práticas que respondem ao interesse geral. (Habermas, 1978b, p. 187 [orig. 1962]).
Já em Strukturwandel des Öffentilichkeit (Habermas, 1978b), o diagnóstico de uma
crise de legitimação derivada da evolução específica do capitalismo e de uma participação
política restrita já vinha vinculado à ideia de uma democracia mais ampla, mais “radical”
porque indicava a necessidade de criação de mecanismos mais variados de participação
direta nos processos político-decisórios. Apenas “indicava”, porque ainda não resultava
num modelo de democracia propriamente dito. Entretanto, e apesar da fundação teórica
diametralmente distinta, a localização concreta do conceito de esfera pública permanece a
mesma de 1962 à 1992. Os efeitos de constrição sistêmica da sociedade burguesa
permanecem vinculados à circulação de mercadorias e trabalho, como sociedade de
pessoas privadas e cidadãos econômicos. No Estado concentra-se a organização do
político. E na esfera pública, temos os cidadãos políticos. A função de mediação social da
esfera pública entre Estado e esfera privada situa-se justamente no fato de que ela é
constituída, a rigor, por pessoas privadas que, na autonomia que lhes é conferida pela
propriedade econômica, reúnem-se enquanto público e deste modo reserva para si a
possibilidade de incidir sobre o poder político, sem, todavia, ter a intenção disputá-lo.
Tanto em Strukturwandel der Öffentlichkeit (Habermas, 1978b, p. 13-66 [orig. 1962]) como
em Faktizät und Geltung (2010, p. 73-118 [orig. 1992]), portanto, a esfera pública é
funcionalmente política e privada em sua composição.
No século XIX, constitui-se o que Habermas (1978b, idem) denominou esfera
pública liberal, um espaço comunicativo entre pessoas privadas cuja reunião se
caracterizava pelo raciocínio livre orientado para a verdade. Sua estrutura era composta
pela pequena família burguesa e por uma esfera pública-literária. Naquele momento,
diante do diagnóstico de mudança estrutural da esfera pública e da crise de legitimação
decorrente desse processo, Habermas então sugeria uma reestruturação das relações
entre Estado e sociedade a partir da reinserção, assegurada juridicamente, da esfera
pública liberal. Isso passava necessariamente por uma redefinição político-jurídica da
autonomia da esfera privada perante a esfera social e econômica. Pois, no século XIX, o
que conferia poder de intervenção política à esfera pública era a autonomia privada, obtida
através da propriedade privada e assegurada juridicamente, e a publicidade, através da
imprensa e do romance. Estruturalmente, a esfera pública liberal deve o seu surgimento
ao capitalismo primitivo de pequenos produtores, à circulação de mercadorias, à
conversão de informações comerciais em mercadoria, à difusão mais rápida de
comunicados jurisdicionais.
Finalmente, essa condição historicamente específica da sociedade permitiu
posteriormente dar publicidade também às opiniões do público burguês. Em um sentido
fundamental, a esfera pública liberal burguesa é constituída por pessoas privadas, que
reunidas na forma de público através de diferentes esferas, reivindicam e negociam as
regras que conformam os tipos variados de troca. Para o Habermas de 1962 (1978b, p.
38-66), a troca de mercadorias e a divisão social do trabalho compõem as dimensões
centrais da esfera pública. À luz das evoluções recentes, como o surgimento da questão
ambiental como um problema capaz de mobilizar as pessoas, os dilemas em torno da
genética, entre outros, podemos afirmar que vieram compor a esfera pública dilemas
relativos à repartição de responsabilidades e prejuízos.
Pressupõe-se, nesse sentido, a atribuição de poder a uma esfera não
exclusivamente estatal. Isso significa, para todos os efeitos, que a esfera pública liberal
burguesa de uma só vez consiste numa esfera de ação reivindicada pelas pessoas
privadas e regulamentada pela autoridade do Estado, esfera de ação privada que pode
justamente opor-se a essa autoridade. Mas a oposição que, na esfera pública liberal
burguesa, pessoas de direito privado fazem à autoridade política do Estado não pretende
substituí-la por outra: "[...] o poder, que advém do direito privado, de dispor da propriedade
empregada no modo de produção capitalista é, de fato, de natureza apolítica" (Habermas,
1978b, p. 39). Por definição, esse poder possui um fundamento privado, não público.
Deduz-se assim que na esfera pública liberal burguesa, pretende-se atribuir poder de
conformação da autoridade do Estado a pessoas de direito privado, na medida em que
estas últimas venham a tornar-se um público. Sendo privado em seu fundamento, esse
modelo de esfera pública compõe-se de uma subjetividade relativa tanto ao público
quanto às experiências próprias da esfera da família. Esse fundamento privado do poder
na esfera pública será retomado em 1992 com a sociedade civil, enquanto uma esfera da
sociedade que canaliza problemas que emergem na socialização privada e acabam por
influenciar o sistema política e as empresas, sem, contudo, ter por motivação disputar o
poder estatal.
A esfera pública liberal burguesa do século XIX está imbricada funcionalmente
com o Estado em três grandes eixos: primeiro, garante-se a liberdade de opinião,
associação e de inserção política; segundo, proteção da intimidade frente ao coletivo; e
terceiro, garantias de livre atuação econômica. Esse conjunto de eixos pode ser referido
como garantias de direitos políticos e direitos civis (Habermas, idem). Funcionalmente,
eles protegem a esfera privada e a esfera pública da intervenção arbitrária do poder
estatal. Sua contradição estrutural está no fato de que, nela, presume-se o acesso do
conjunto da população à propriedade e à educação, bens que estavam restritos a uma
pequena parcela de pessoas. Mas isso não significa que a esfera pública burguesa não
era efetiva já naquela época, pois apesar dessa estrutura social, argumenta Habermas, o
modelo se tornou efetivo na medida em que o interesse de classe burguês se afirmou
como interesse geral.
A transformação estrutural da esfera pública liberal do século XIX se deve a alguns
processos específicos (Habermas, 1978b, p. 149-158; 159-182; e 183-188). O primeiro é
a substituição progressiva do modelo de pequenos produtores por oligopólio e grandes
trustes, que tende a subverter a ideia liberal de livre-concorrência em virtude do poder
adquirido pela corporação de incidir sobre o preço da mercadoria Na esfera do
proletariado, surgem as grandes organizações sindicais e os partidos de trabalhadores.
Essas transformações tiveram por reflexo uma racionalização crescente do direito público
e do direito privado. A legislação trabalhista e anti-monopólio consistem em exemplos
emblemáticos da diversificação funcional do Estado, ou ainda, como formula Habermas
(idem, p. 153-158), da “socialização do Estado e da estatização da sociedade”. A esfera
pública se vê assim repolitizada, e nessa repolitização progressivamente se desfaz a
antiga separação entre o público e o privado. Com isso, já no século XX, dá-se início a um
processo crescente de juridificação do trabalho e da circulação de mercadorias que
resulta no Estado de bem-estar social. Há aqui certa influência democrática sobre uma
economia com tendência oligopolista, que impediu a redução da renda do trabalhador.
O segundo processo está vinculado diretamente à crescente diversificação da
oferta de mercadorias, que por um lado se deve à inovação tecnológica aplicada à
produção, com um incremento na produtividade, por outro, à inovação tecnológica
aplicada aos tipos de produtos. Ao alargamento e diversificação da obra cultural, enquanto
efeito anexo do desenvolvimento tecnológico, corresponde a transformação de pessoas
reunidas num público que fazia uso cultural de sua razão na forma de esfera literária, em
um público de consumidores de cultura (Habermas, idem, p. 159-182). Pois os produtos
da indústria cultural passam a introduzir-se na esfera privada, substituindo a esfera
literária pela esfera do tempo livre. A passagem de um público que discute a cultura para
outro que a consome, dilui a distinção entre esfera pública literária, na qual pensa-se a si
mesmo, a própria cultura, e esfera pública política, o contexto de ação por excelência.
Essa diluição só é possível mediante a integração entre informação e raciocínio, operação
esta feita pelas mídias de massas. Não resta à pessoa senão consumir a cultura
objetivada nas redações e conselhos executivos das empresas televisivas e de
propaganda. Aqui, a publicidade se converte em propaganda, e deste modo incorpora
interesses mais amplos presentes na economia e na política. A mudança na disposição
entre público e privado tem por efeito a mudança da função política da esfera pública, o
que consequentemente transforma a relação entre Estado e sociedade. Com o Estado
social, surge o tipo administrado de capitalismo e com ele uma democracia organizada.
Nessa sociedade, a esfera pública política do Estado social corresponde a uma forma
decadente da esfera pública burguesa do século XIX, o que significa dizer que a
discussão pública voltada para a decisão (nos salões, nos círculos literários, etc.) tornou-
se o acordo não-publicamente conquistado ou simplesmente imposto.
Assim, a tese de Habermas em torno à mudança estrutural da esfera pública
assenta sobre o diagnóstico de que a distinção característica da esfera pública liberal
burguesa entre público e privado se esvai simultaneamente à diversificação crescente do
mercado, das funções do Estado e da integração social. Isto é: da socialização do Estado
e da estatização da sociedade surge uma nova relação entre o público e o privado; surge
uma nova esfera, que "não pode ser considerada nem como puramente privada, nem
como autenticamente pública" (Habermas, 1978b, p. 159). Compreende-se dessa maneira
que Habermas analisa a trajetória da esfera pública burguesa como uma decadência;
devido às transformações inicialmente ocorridas na esfera econômica (oligopólios e
indústria cultural) o raciocínio livre voltado para a verdade da esfera liberal é substituído
pela propaganda e a democracia organizada de massas (idem, p. 183-188). A antiga
separação da esfera pública do sistema político se dissolve mediante a regulação social
do Estado de bem-estar e o poder de influência sobre os governos decorrente da
formação de oligopólios no mercado mundial. Em 1962, é a evolução específica do
capitalismo entre os séculos XIX e XX que acaba por constringir a esfera da política, a
esfera social e a esfera privada a uma racionalidade de tipo específico, a racionalidade
instrumental. O acento aqui, portanto, é dado ao capitalismo e seus efeitos sobre a
democracia.
Dessa trajetória da sociedade burguesa, resultam problemas específicos de
integração social e integração sistêmica, aos quais Habermas dedicou boa parte de seu
trabalho posterior à Strukturwandel der Öffentlichkeit. Em Legitimationprobleme im
Spätkapitalismus (1978b [orig. 1973]), os problemas de integração decorrentes da
transformação da separação estrutural entre esfera privada e esfera pública passam a ser
analisados através de uma forma teórica que permanecerá ao longo de sua obra: a esfera
da integração entre sistema e mundo da vida. De 1962 à 1992 as mudanças também não
cessaram, apesar de as ideias gerais colocadas em 1962 permanecerem ao longo da
obra. Nesse ínterim, o que é constitutivo do ponto de vista teórico é a passagem do que
Habermas (1978b, p. 112-126) então identificava como sociabilidade através do uso
cultural da razão no interior da relação entre esfera privada e esfera social, ao conceito de
atividade comunicativa e agir comunicativo (Habermas, 1987, v. 01, p. 14-17, 110-117 e
283-347).
UMA ESTRUTURA FUNDAMENTAL DA SOCIEDADE: SISTEMA E MUNDO DA VIDA
– LEGITIMATIONPROBLEME IM SPÄTKAPITALISMUS (1973) E THEORIE DES
KOMMUNIKATIVEN HANDELNS (1981)
Em Legitimationprobleme im Spätkapitalismus (1978a [orig. 1973]), o diagnóstico
ainda vai da análise da lógica de evolução do capitalismo aos efeitos da mesma sobre a
democracia. Nesse estudo, Habermas (idem, p. 11-19) introduz a diferenciação entre
sistema e mundo da vida como fundamento de seu diagnóstico de época, e é nessa
diferenciação que, anos depois e juntamente com estudos sobre teoria da comunicação,
repousa sua uma teoria geral da sociedade (Habermas, 1987, v. 1, p. 82-90 e v. 2, p. 125-
218). Tendo em vista que de 1973 (Habermas, 1978a, idem) a 1981 (Habermas, 1987, v.
2, idem) a construção dessa imbricação foi em diversos aspectos reformulada, a
formulação que figura em Legitimationprobleme possui aqui apenas intensão informativa2.
Retomando o conceito de sistema de Talcott Parsons e de Niklas Luhmann,
Habermas (1978a, p. 11 sq. e 1987, v. 2, p. 125-131 e 180-196) confere a ele um
significado próprio a partir de sua imbricação com o conceito de mundo da vida, que de
seu lado é retomado de Edmund Husserl, Alfred Schütz e Thomas Luckmann (Habermas,
1987, v. 2, p. 131-167). Se em Parsons e Luhmann a sociedade é tida, da perspectiva do
intérprete, como um sistema, em Habermas a sociedade é constituída pela imbricação
entre sistema e mundo da vida: o primeiro se refere aos sistemas funcionalmente
especializados (Estado e economia), o segundo ao conjunto de convicções básicas, tidas
como tácitas. A imbricação entre as duas dimensões é possível porque linguagem e
2 Em Theorie des Kommunikativen Handelns, Habermas aproxima sua interpretação de
sistema (Parsons e Luhmann) e mundo da vida (Husserl, Schütz e Luckmann) de uma intepretação da “teoria dos três mundos” de Karl Popper sob o registro da teoria da ação (Habermas, 1987, v. 1, p. 92-99 e v. 2, p. 131-140), aproximação esta inexistente em Legitimationprobleme im Spätkapitalismus (1978a).
cultura perpassam tanto a dimensão do sistema como a do mundo da vida, pois
constituem o sistema de referência do entendimento.
De acordo com a intepretação de Reese-Schäfer (2010, p. 54-58), essa condição
implica afirmar que, se de um lado linguagem e cultura podem configurar um ponto de
partida universal para a crítica, por outro a crítica está limitada na exata medida em que,
enquanto elementos de fundo do mundo da vida, linguagem e cultura remetem ao “desde
já” pressuposto no entendimento (Habermas, 1987, v. 2, p. 131 sq.). Esse “pressuposto
desde já do entendimento” implica dizer que há um conjunto de convicções básicas que
compõem o mundo da vida - e por imbricação dialética, também o sistema - que não
podem ser problematizadas, pois se inscrevem tacitamente no processo de entendimento.
Não podemos desfazer-nos de pressupostos contidos na linguagem e na cultura
justamente porque tentamos tornar inteligível a sociedade através da criação de uma
linguagem (Reese-Schäfer, idem).
A partir de uma reconstrução da fenomenologia do mundo social de Schütz e
Luckman com base no processo de entendimento, Habermas define três aspectos gerais
do mundo da vida: primeiro, o mundo da vida compõe a existência social “sob o modo da
evidência”, de maneira tática, e como “mundo da vida, é simplesmente impossível que ele
se torne problemático”, mas “pode desaparecer” (Habermas, 1987, v. 2, p. 144). Segundo,
enquanto “certeza” intrínseca à “intersubjetividade da intercompreensão mediada pela
linguagem”, o mundo da vida “está acima de qualquer tipo de dissenso”, pois repousa
sobre um saber – não um conhecimento – formado intersubjetivamente através de
experiências passadas que validam a “capacidade de agir sobre o mundo”, e uma vez
adquirida essa capacidade, ela “permanece enquanto princípio” – enquanto “disposição
natural” de uma “reserva de saber” do “pensamento” (idem, p. 145). E terceiro,
diferentemente das situações que compõem a vida social, o mundo da vida não possui
fronteiras, pois é constituído por uma reserva de saber imanente a cada mudança de
situação, sendo, por definição, irredutível – “O mundo da vida define situações de ação
como uma espécie de contexto pré-compreendido, mas que não pode ser invocado”
(idem, p. 146).
A existência do mundo da vida só é possível mediante a mediação da linguagem e
da cultura, posto ser a partir delas que o processo de entendimento se realiza, i.e que a
intersubjetividade é constituída. E linguagem e cultura cumprem essa função fundamental
no processo de conhecimento através da transmissão de um conjunto de convicções
básicas para todo indivíduo capaz de agir e falar. Isso quer dizer que Habermas, formula
Reese-Schäfer (2010, p. 55), ancora sua concepção de mundo da vida no “sempre já” da
“hermenêutica moderna [...]: em todo processo de entendimento temos sempre já que
fazer pressuposições” contidas na própria estrutura da linguagem, pois é ela que torna
possível o entendimento, i.e a própria cultura. Isso quer dizer que através desse “sempre
já”, “[...] Estamos sobre os ombros daqueles que se entenderam antes de nós” (idem,
ibidem). O entendimento consiste, portanto, no medium de direção do mundo da vida, do
que se deduz que a comunicação é o que torna possível a integração social (Habermas,
idem, p. 149 sq.). A sociedade civil, com suas associações, movimentos sociais, etc., é
composta por um tipo de atividade social cuja racionalidade está mais próxima do mundo
da vida do que do sistema, na medida em que nela prevalece o agir orientado para o
entendimento em sentido amplo. Por isso Habermas (2003b, p. 99-106) afirma que na
sociedade civil, o medium de direção é a solidariedade. Compreende-se assim que a partir
do conceito de mundo da vida temos os aspectos gerais do tipo mais elementar de
integração social: a integração pela linguagem. Nesse contexto, e por definição, as
potencialidades de integração são abertas e irredutíveis, cujos limites são conferidos pela
a própria linguagem. E isso na exata medida em que, no mundo da vida, a integração pela
linguagem está racionalmente orientada para o entendimento. No âmbito da ação política,
isso significa que, antes de qualquer coisa, é preciso um entendimento prévio entre os
participantes da ação.
Entretanto, justamente em virtude da natureza elementar da integração pela
linguagem, outros tipos de medium de direção podem fazer-se valer na integração social:
é o que Habermas designa por integração sistêmica, que tem por medium de direção o
poder (Estado) e o dinheiro (economia). A “disjunção” entre integração social (no mundo
da vida) e integração sistêmica está no fato de que, enquanto a primeira está
racionalmente orientada para o entendimento (racionalidade comunicativa), a segunda
está racionalmente voltada para meios e fins utilitários (racionalidade instrumental).
Mediums como o dinheiro e o poder partem de obrigações empiricamente motivadas; eles codificam o comércio racional com vistas para um fim com valores quantificáveis e calculáveis e tornam possível uma influência estratégica generalizada sobre as decisões de outros participantes da interação, contornando os processos de formação de um consenso pela linguagem. Não somente eles simplificam a comunicação linguística, mas também substituem-na através da generalização simbólica dos danos e das indenizações; o contexto do mundo da vida, no qual os processos de intercompreensão estão sempre inseridos, é desvalorizado no contexto de interações conduzidas graças aos mediums [poder e dinheiro]: não precisamos mais do mundo da vida para a coordenação de ações. Os sub-sistemas sociais diferenciados graças a mediums como esses podem se tornar autônomos em relação a um muno da vida relegado ao mundo ambiente do sistema. A recomposição da ação a partir de médiuns reguladores aparece então sob o ângulo do mundo da vida como uma maneira de amortecer o custo da comunicação e de seus riscos, como uma maneira de condicionar as decisões com margens de contingência maiores, e neste sentido como um
tecnicização do mundo da vida. (Habermas, 1987, v. 2, p. 200-201).
Direcionando o mundo da vida através dos mediums dinheiro e poder, as
possibilidades de entendimento contidas nos processos intuitivos de intercompreensão
são reduzidas a um critério cognitivo-instrumental: a intersubjetividade é colonizada pelo
critério teleológico de eficácia conforme meios e fins, no sentido utlitarista. O agir
comunicativo orientado para a intercompreensão é subsumido (mediante a regulação
estatal da vida social, a administração empresarial, etc.) pelo agir instrumental orientado
para o sucesso e mediatizado pelo poder e pelo dinheiro. “A mediatização da vida vivida
então toma a figura de uma colonização” e a reificação, nesse sentido, de uma “patologia
do mundo da vida sistematicamente induzida” (Habermas, 1987, v.2 p. 216).
Em outras palavras, a racionalidade de integração do mundo da vida difere
estruturalmente da dinâmica de integração do sistema, de modo que as estruturas de
funcionamento do sistema podem reificar as estruturas simbólicas do mundo da vida,
distorcendo-as sob a forma de subsistemas crescente e funcionalmente diversificados e
autônomos. Essa distorção se dá por meio da mediação do poder e do dinheiro. Como
uma expressão da mesma, há a disjunção característica da democracia burguesa entre
direitos garantidos universalmente (igualdade de direitos) na esfera do Estado e sua não
correspondência a condições efetivas de participação (desigualdade de condições de
vida). A colonização do mundo da vida pelo sistema consiste precisamente no diagnóstico
de época elaborado em a teoria do agir comunicativa.
Compreende-se assim haver uma espécie de crescendum na trajetória intelectual
de Habermas, pois o sentido do diagnóstico de 1962 (Habermas, 1978b) – o aumento de
conformação social e política da economia e do Estado no capitalismo administrado –
permanece na tese de colonização do mundo da vida. Digo bem “sentido”, pois a
fundamentação passa por incorporações crescentes: a distinção entre Estado e
economia, de um lado, e esfera privada, de outro (1962), assume a forma de sistema e
mundo da vida em 1973 (Habermas, 1978a), mas, até então, ainda permanecia
direcionada apenas pelo conceito de razão instrumental; é somente em 1981 (Habermas,
1987) que a fundamentação na teoria da comunicação é formulada e com ela introduzido
o conceito de razão comunicativa no diagnóstico de época. Como expressão que
caracteriza esse crescendum, temos a passagem de uma crise de legitimação decorrente
da mudança estrutural da esfera pública (Habermas, 1978b [orig. 1962]) e da
complexificação crescente das sociedades no capitalismo avançado (Habermas, 1978a
[orig. 1971]) para a colonização do mundo da vida pelo sistema (Habermas, 1987 [orig.
1981]) – com a particularidade de que o sentido de cada uma dessas formulações
permanece, grosso modo, o mesmo. Na trajetória de Habermas, a teoria crítica em muitos
aspectos influenciada por Adorno (Rolf Wiggershaus, 2010, p. 671 sq.), num primeiro
momento incorporou e elaborou uma concepção própria do conceito de sistema (Parsons
e Luhmann) e de mundo da vida (Husserl, Schütz e Luckmann), e num segundo
momento, introduziu nessa concepção própria a teoria da comunicação (Peirce e Frege)
sob o registro de uma teoria da ação (Weber). É somente a partir de então, isto é, a partir
do momento em que já havia formulado uma teoria geral da sociedade, que Habermas
(2003b e 2010 [orig. 1992]) se dirigiu para uma teoria da democracia (Rousseau e Kant).
A GUINADA LINGUÍSTICA EM THEORIE DES KOMMUNIKATIVEN HANDELNS
(1981): AÇÃO VOLTADA PARA O ENTENDIMENTO, SITUAÇÃO IDEAL DE FALA E
RAZÃO COMUNICATIVA
No quadro geral de uma teoria da ação, falar em integração social a partir da
comunicação significa dizer que sociologicamente existe um tipo específico de ação na
vida social dotado de uma racionalidade e um sentido específicos: que Habermas
denomina agir comunicativo, caracterizado por sua orientação racionalmente ao
entendimento, i.e um tipo de razão constitutiva da integração social (Habermas, 1987, v.
01, p. 110-117 e v. 2, p. 87 sq.). Somente são racionais pessoas capazes de agir e de
falar e, nessa medida, a primeira pergunta a ser respondida é a de saber em que medida
pode-se considerar racional uma pessoa, sua fala e sua ação em uma situação
específica. A concepção de racionalidade comunicativa elaborada por Habermas não é
definida por meio dos três critérios comumente utilizados para definir o que é racional, o
que possui uma racionalidade insuficiente ou que é irracional – a saber: se uma ação e a
expressão simbólica que a representa, incorpora um conteúdo criticável, se pode ser
fundada no mundo objetivo e se conserva um conteúdo idêntico quando transmitida, isto
é, se é dotada de uma “pretensão trans-subjetiva à validade” (Habermas, 1987, v. 1, p. 26
– p. 24-26).
A fundação racional da teoria do agir comunicativo está ancorada, como
argumenta Reese-Schäfer (2010, p. 21-31), em uma teoria em dois níveis do consenso da
verdade. Esses níveis do consenso distinguem, por um lado, o conteúdo objeto de
consenso, por outro, o procedimento, de aceitação compartilhada, que ratifica o conteúdo
consensuado. No âmbito específico dessa teoria, o conteúdo objeto de consenso é a
verdade em relação a algum estado. Para que a um conteúdo específico seja atribuída a
imputação de verdadeiro, é preciso, num momento ainda de comprovação, que haja
consenso não em relação ao objeto sob indagação, mas sobre as condições formais da
demonstração, e são elas que conferem veridicidade aos resultados. E na medida em que
tais condições formais de demonstração são discutíveis e que não prescindem do acordo
entre as partes, exige-se, pelos menos desde uma perspectiva ideal, que o consenso seja
universal, para que os procedimentos tidos por válidos não sejam válidos apenas para
alguns participantes. Isso evita uma relatividade quanto à validade dos resultados.
Dessa maneira, ao invés de apenas partir da pressuposição de uma ontologia do
mundo objetivo, o mundo passa a ter objetividade na medida em que passa a valer “como
um e mesmo mundo para uma comunidade de sujeitos capazes de falar e agir”
(Habbermas, 1987, v. 1, p. 29). Não partir de uma ontologia se justifica aqui pelo fato de
que a simples possibilidade de haver comunicação pressupõe um entendimento prévio
sobre o que acontece ou deve acontecer no mundo. Aqui estamos no pano de fundo da
objetivação: a possibilidade de comunicação pressupõe uma reserva de saber tácito que
funda a possibilidade de interpretação do mundo, que está posto desde já antes de
qualquer objetivação, de qualquer problematização possível. Esse saber garante um
contexto de vida comum, que só é possível porque intersubjetivamente partilhado (mundo
da vida).
Nesse sentido, se a pretensão à verdade é mediada pelo consenso e pelo
procedimento, torna-se possível um conceito de racionalidade fundado no entendimento,
mas um conceito de racionalidade que não se orienta pela distinção estrita entre correto e
falso, pois está fundado no consenso e no procedimento, o que implica dizer o conteúdo
hoje tido por verdadeiro pode revelar-se insuficiente num momento e situação posteriores.
Isto é, o conceito de racionalidade comunicativa comporta ou prevê o falibilismo da razão.
A presunção de objetividade total, e com ela também o princípio de Absoluto, é assim
substituída por uma objetividade possível, que produz um consenso em torno à verdade,
mas que, no interior da prática comunicativa que possibilitou esse consenso, está
consciente da crítica ulterior. Isso significa igualmente que para que uma ação seja
racional, não é necessário haver consenso, pois “não é apenas na aptidão de promover
um consenso ou de agir de forma eficiente que reside a racionalidade das pessoas”
(Habermas, 1987, v. 1, p. 31). Desse modo, a racionalidade comunicativa comporta, por
um lado, “a percepção descentrada das coisas e dos eventos assim como a faculdade de
dispor dela” – tal como pressuposto nos outros três tipos de racionalidade –, por outro,
amplia o espectro de avaliação racional ao fundar-se no “entendimento intersubjetivo à
respeito dessas coisas e eventos” (idem, p. 30). Nisso consiste precisamente a teoria da
verdade de dois níveis de Habermas, na qual está fundada a teoria do agir comunicativo –
e também, como veremos, a sua teoria da democracia.
Considerando que a “racionalidade que habita a prática comunicativa se estende
sobre um amplo espectro”, Habermas elabora um conceito de racionalidade capaz de dar
conta das “diferentes formas de argumentação” e das “tantas possibilidades de perseguir
o agir comunicativo por meios reflexivos” (idem, ibidem). Em outras palavras, Habermas
funda sua teoria da sociedade num conceito de racionalidade capaz de dar conta da
prática social cotidiana, que pode não estar mediada por critérios de funcionalidade, pela
eficácia ou justeza normativa dos meios empregados mediante uma pretensão de
sucesso ou um objetivo específico, no sentido de utilidade.
Assim, Habermas (1987, v. 1, p. 100-117) diferencia quatro tipos de agir, através
das relações “ator-mundo”: o agir teleológico, ou estratégico, no qual o ator é remetido
apenas ao mundo objetivo (todos os enunciados tidos por verdadeiros, imediatamente
acessíveis por todos aqueles capazes de agir e falar) e cuja racionalidade é avaliada por
meio dos critérios de eficácia e sucesso, sendo sua pretensão de validade a verdade, no
sentido de utilidade (adequabilidade dos meios conforme fins pretendidos – racionalidade
cognitivo-instrumental); o agir regulado por normas, que tem sua racionalidade medida
conforme a justeza normativa e sua pretensão à validade na correção normativa
(racionalidade moral-prática), aqui o ator está referido tanto ao mundo social (aspectos
normativos legítimos da vida social) quanto ao mundo objetivo; o agir dramatúrgico, no
qual o ator está referido ao mundo subjetivo e ao mundo objetivo, tem sua racionalidade
avaliada pelo sentimento pretendido e o sentimento provocado pelo ator no contexto
específico de uma representação cênica ou pictórica, sendo sua pretensão de validade a
veracidade (racionalidade estético-prática); e por último, o agir comunicativo tem sua
racionalidade mediada pela discussão e sua pretensão de validade é o entendimento
recíproco entre os participantes da comunidade de comunicação (racionalidade
comunicativa) e se remete reflexivamente aos conjunto dos três mundos, o objetivo, o
social e o subjetivo. De maneira esquemática, pode-se afirmar que essa categorização
das formas de agir que compõem a sociedade e a maneira como estão aqui dispostas
correspondem à maior ou menor proximidade de cada um deles ao conjunto de contextos
de interação altamente diferenciados que compõem a sociedade. Isso significa que eles
estão localizados nas intersecções entre sistema e o mundo da vida, já que para nosso
autor, a relação entre essas duas esferas é constitutiva. Nesse sentido, os tipos de agir e
suas racionalidades respectivas podem ser representados da seguinte maneira:
Quadro 1: estrutura da sociedade e tipos de agir
Ao contrário dos outros tipos de agir, no agir comunicativo a validade de uma
proposição não se remete diretamente a um mundo específico – mundo objetivo, mundo
social e mundo subjetivo; nele, o entendimento é direto, mas a remissão ao mundo é
indireta, uma vez que o ato de fala implica a contestação por outros participantes da
interação quanto à validade do que foi dito. Isso implica uma relativização do conteúdo
enunciado que pretende à verdade, relativização que é parte intrínseca do agir, posto ser
derivada da condição primeva de reconhecimento, enquanto atores capazes de agir e
falar. Assim, Habermas (1987, v. 1, p. 114-117) distingue quatro pretensões à validade no
agir comunicativo: inteligibilidade/entendimento e a dos demais tipos de agir, por remissão
reflexiva a seus respectivos mundos – verdade, correção normativa e veracidade. Não se
trata aqui, portanto, apenas de execução, como no contexto dos outros tipos de agir, mas
de comunicação - e indiretamente de execução, de uma execução, aliás, possível, não
presumida.
A possibilidade de crítica e de aceitação implica uma maior complexidade, e nessa
medida é mais adequada a relações sociais tal como se dão pro verus do que tipos de
agir que pressupõem a "intervenção direta": "[...] A referência reflexiva indireta ao mundo
possibilita, ao invés da postulação imediata de normas ou da intervenção direta, a validez
de abordagens diversificadas que, de outra forma, seria desconsideradas ou suprimidas"
(Reese-Schäfer, 2010, p. 48). Tendo em vista que o agir comunicativo, de seu lado,
refere-se reflexivamente a todos os três mundos aos quais correspondem esses tipos de
agir, para que sua avaliação seja possível, é necessário primeiro encontrar um tipo de
pretensão à validade que caracterize um tipo de racionalidade que represente essa
remissão: a remissão reflexiva aos outros tipos de agir se deve ao fato de que, como
pretensão à validade, a inteligibilidade/entendimento remete a uma premissa racional para
que sejam possíveis as outras pretensões à validade.
O tipo comunicativo de racionalidade é universal na medida em que a linguagem
perpassa todos as constelações da vida humana. Sua vantagem reside justamente nessa
universalidade: o critério de validade racional da comunicação, o entendimento, não reduz
a avaliação da ação à execução. Isso abre caminho para avaliar a validade de qualquer
forma de agir, pois são consideradas racionais, por definição, todas aquelas interações
das quais tomam parte pessoas capazes de agir e falar. A demonstração da validade
universal da racionalidade comunicativa consiste precisamente no objetivo principal de
sua teoria do agir comunicativo. É somente a partir disso que Habermas defende a tese
de que as patologias da modernidade advêm da intervenção direta e crescente de uma
racionalização de tipo cognitivo-instrumental no mundo da vida – através do sistema
(administração estatal e do mercado) –, levando a uma crise de legitimação (restrição da
liberdade e perda de sentido) devido à incompatibilidade entre as racionalidades que
gravitam entre essas duas esferas da sociedade, o sistema e o mundo da vida (cf. tópico
anterior).
Uma vez formulada essa fundação racional, Habermas então distingue entre um
consenso verdadeiro e um consenso falso com base em um conceito próprio, a situação
ideal de fala. Quatro critérios condicionadores se aplicam ao conceito: 1) os participantes
potenciais em um discurso devem ter igual oportunidade de atos de fala, no sentido de
intervenção e réplica; 2) essa oportunidade tem de ser de tal modo igual que permita
salvaguardar-se contra prejulgamentos; 3) todos os participantes têm de ter igual
oportunidade de atos representativos, no sentido de manifestar sentimentos, posições e
desejos; e 4) admitem-se no discurso apenas participantes que tenham iguais condições
de instituir princípios reguladores, como proibir, permitir, opor-se, julgar, mandar, inquirir,
de fazer promessas e de retirá-las, pois somente a reciprocidade plena das expectativas
de comportamento assegura uma intervenção dos participantes mais direcionada aos
aspectos fáticos da situação de fala, de modo a suspender as coações da realidade, de
modo que seja possível "passar para a dimensão comunicativa do discurso, dimensão
livre da experiência e desobrigada da ação3".
3 Walter Reese-Schäfer cita diretamente o trecho no qual Habermas define extensamente cada
um desses quatro critérios reguladores do conceito de situação ideal de fala – ver: Habermas, 1984, "Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns", p. 177ss, apud Reese-Schäfer, 2010, p. 24-25. Eles se encontram aqui resumidos. E é de interesse notar que tais critérios consistem no desdobramento da formulação de 1981, presente em seu Theorie des Kommunikativen Handelns: “Se considerarmos o discurso argumentativo enquanto processo, trata-se de uma forma de comunicação improvável, pois tendencialmente vinculada a condições ideais. É nesta ótica que tentei indicar, enquanto determinações de uma situação ideal de fala, as pressuposições comunicativas universais da argumentação. Tomada isoladamente, essa proposição pode ser insuficiente; mas o que tanto hoje quanto ontem me
Os critérios reguladores que dão forma ao conceito de situação ideal de fala estão
fundamentados no princípio de simetria. A eles correspondem “a esfera pública, a
distribuição equitativa dos direitos de comunicação, a autenticidade e a não violência”,
enquanto “precondições para uma compreensão procedimental da verdade” (Reese-
Schäfer, 2010, p. 25). É a conjunção entre essas quatro pré-condições e os quatro
critérios condicionadores da situação ideal de fala que permitem uma compreensão
procedimental da verdade – procedimental porque argumentativa. Evidentemente que tais
critérios condicionadores jamais se encontram preenchidos em situações empíricas. A
situação ideal de fala fornece uma ideia contrafática da situação empírica, na medida em
que através da inclusão de um critério externo de avaliação, e retrospectivamente, seja
possível a compreensão da situação empírica, se o discurso dos participantes, e o nosso
próprio, enquanto intérpretes, foi proferido de forma isenta de coações ou não (Habermas,
1987, v. 1, p. 39 sq. e 127-135).
Nesse sentido, portanto, a ideia de verdade sobre a qual tanto a teoria da ação
comunicativa quanto a teoria da democracia de Habermas estão fundadas, pretende à
validade por meio de uma combinação específica entre o procedimento argumentativo e o
conteúdo objeto de discussão: o procedimento abstrato formalmente consensuado entre
os participantes da interação e a opinião dele derivada, que imprime à realidade uma
verdade, sendo esta retrospectivamente objeto de discussão e de crítica possível,
desprovendo-a de uma justificação absoluta enquanto critério necessário de validação, i.e.
de legitimação. Daí em seu projeto de conhecimento - e de sociologia, portanto -,
Habermas igualmente renunciar a um sistema de pensamento, sem contudo renunciar,
em outra medida, ao procedimento consensuado na comunidade científica em torno à
pretensão de validade. Em última instância, isso significa que na teoria da ação
comunicativa e na teoria da democracia de Habermas, a verdade deixou de ser um
conceito substancial da tradição, tornando-se um conceito de procedimento, e nessa
medida, em última instância falível, provisório e desvinculado da natureza, isto é, a teoria
pretende uma fundação pós-metafísica.
Como prova suficiente da verdade, temos, portanto, que considerar a
aceitabilidade racional das condições mais ideais possíveis da comunicação. E o que
torna essa formulação do conceito passível de utilização para a teoria social e a teoria
política é, num sentido imediato, a evidência factual de que a aproximação do mundo está
parece justo, [1] é a intensão de reconstruir as condições da relação simétrica, condições que todo locutor competente é obrigado de pressupor como estando tendencialmente preenchidas [...] Aqueles que tomam parte na argumentação [2] são obrigados a pressupor geralmente que a estrutura de sua comunicação [...] exclui todo aspecto constringente [...] toda constringência com exceção do melhor argumento [...] Sob este aspecto, [3 e 4] a argumentação pode ser concebida como uma busca por meios reflexivos da atividade orientada para a intercompreensão” (Habermas, 1987, v 1, p. 41).
atravessada pela linguagem. O consenso em torno à verdade consiste, assim, apenas no
retrato de um estado atual do conhecimento, permanentemente falível, o que é diferente
de instável. No sentido de um projeto de teoria social crítica, cuja esfera de validade
implica a pretensão à emancipação possível em relação ao presente histórico, a verdade
figura além da situação empírica possível, sendo, para todos efeitos, um futuro possível e
passível de disputa no presente.
Como argumento Laurent Lemasson (2008, p. 40-42), enquanto interesse teórico,
Habermas pretende combinar a hermenêutica histórica com a epistemologia analítica4
através da substituição da natureza pelo entendimento, de modo que o homem possa
reger as leis para si sem qualquer tipo de limitação, sejam elas advindas do relativismo ou
da essencialização5. Enquanto interesse prático, a ausência de uma fundação ontológica,
natural, abre caminho para entretecer politicamente a tolerância vis-à-vis todas as formas
de vida culturais e todos os seres humanos, tolerância possível mediante a abertura
proporcionada pela comunidade ideal de fala, isto é, pela universalidade ideal da
linguagem. Diante disso, compreende-se melhor o potencial universalizante que
Habermas atribui aos direitos humanos, de tal maneira a poder constituir o fundamento de
um modelo democrático de esfera pública capaz de fornecer a engenharia institucional
para a diversidade (cosmopolita) das sociedades democráticas – pelo menos as
ocidentais.
A VOLTA DA INTUIÇÃO EM FAKTIZITÄT UND GELTUNG E DIE EINBEZIEHUNG DES
ANDEREN (1996): UM MODELO DELIBERATIVO DE DEMOCRACIA FUNDADO NO
PRINCÍPIO DE DISCUSSÃO
A crise de legitimidade (direito) e de legitimação (Estado) diagnosticada por
Habermas, que entre 1962 (Habermas, 1978b, p. 189 sq.), 1973 (Habermas, 1978a) e
1981 (Habermas, 1987, v. 2, p. 168 sq.) resulta na colonização do mundo da vida, levou a
uma filosofia do direito, que de seu lado, exige uma reconstrução do direito (Habermas,
2003b e 2010; 2007). Tal reconstrução, evidentemente, Habermas a empreende a partir
de uma derivação comunicativa da teoria da democracia. Com base em seu conceito de
situação ideal de fala, nosso autor introduz o princípio do discurso, cuja simetria
4 A preocupação com a incompatibilidade epistemológica entre a hermenêutica histórica e a
epistemologia analítica aparece primeiramente na obra de Habermas em “Zur Logik der Sozialwissenschaften”, obra que reúne textos redigidos entre 1967 e 1982 (Habermas, 2005) – ver no capítulo I, p. 07-25. 5 Em seu artigo “La démocratie radical de Jürgen Habermas”, Lemasson (2008) empreende
uma crítica metafísica e declaradamente liberal à teoria da democracia de Habermas, que justamente pretende uma fundação pós-metafísica e ancorada na neutralidade fornecida pela situação ideal de fala e seu princípio do discurso. Sua intepretação então perde força na medida em que empreende uma crítica externa ao pensamento de Habermas, o que consequentemente levanta a suspeita de uma crítica de fundo ideológico.
estabelece que as normas de ação válidas são aquelas de cuja formulação puderam
participar todos aqueles aos quais elas se aplicam, sendo o produto de um acordo.
Através da aplicação da simetria do princípio do discurso ao direito, Habermas lança do
direito como medium de definição para a reconstrução do sistema dos direitos e dos
princípios do Estado de direito e defende a tese de que, no exercício legítimo do poder,
Estado de direito e democracia pressupõem-se mutuamente e, nessa medida, devem ter
sua relação efetiva fundada de maneira simétrica (Habermas, 2010, p. 17-64).
Para estabelecer uma concepção de direito que possibilite a simetria desejada
entre democracia e Estado de direito no exercício do poder, Habermas (idem, 113-168 e
169-240) comprova uma concorrência interna entre direitos humanos (individuais) e
soberania do povo: há um déficit de racionalidade no interior da dogmática jurídica, no que
tange à “relação não-esclarecida entre direito subjetivo e público”, e na tradição do direito
racional, no âmbito do aspecto concorrencial entre direitos humanos e soberania do povo
tal como traduzida no processo de auto-legislação, que revela “que até agora não se
conseguiu harmonizar conceitualmente e de modo satisfatório autonomia privada e
pública” (idem, p. 115). Para o autor, a doutrina positiva do direito ao mesmo tempo em
que pretende assegurar, através do direito objetivo, a efetividade do direito subjetivo, elo
este que possui um sentido moral explícito, ela se desvincula de todo conteúdo moral no
momento da regulação da relação entre autonomia privada e autonomia pública. Em
outras palavras, a realização fática dos direitos humanos só é possível mediante a
constituição de condições de vida menos desiguais que permitam o exercício amplo da
soberania do povo. Nesse contexto, a validade jurídica dos direitos humanos não se torna
fática porque as condições de vida sob as quais é exercida a soberania do povo, são
desiguais.
A simetria que Habermas julga necessária se justifica quando considerada a
situação pós-metafísica que caracteriza as sociedades pluralistas contemporâneas, cuja
alta complexidade designa uma ancoragem sociológica da sociedade em formas culturais
e economicamente de vida diversificadas, impedindo que uma concepção de “vida boa”
seja compartilhada por todos. A intensificação dos processos de globalização constituem
os principais impulsos dessa pluralização social, cultural e econômica (Habermas, 2002 e
2003a). A ausência de uma concepção comum de “vida boa”, porque vinculada a uma
forma cultural e econômica de vida particular, dificulta o processo normativo, no sentido de
pessoas que buscam compreender-se mutuamente com vistas à definição de normas que
regulam sua vida em comum. Compreende-se assim que o déficit de racionalidade para a
fundação de normas legítimas (Estado) decorre da alta diversificação da sociedade
(democracia), da impossibilidade de haver uma concepção de “vida boa” compartilhada
entre todas as formas de vida que compõem a vida social (Habermas, 2007, p. 21-33 e
2010, p. 48-64). Na falta de formas de vida mais homogêneas, Habermas argumenta que
o que há de comum entre todas elas é que são estabelecidas através da comunicação.
Surge assim um elemento comum a todas as formas de vida e, nessa medida, neutro
diante das concepções de “vida boa” particulares a cada uma delas, a comunicação,
sobre o qual pode repousar o processo normativo: “O “bem transcendente” que falta só
pode ser compensado de forma “imanente”, com base no caráter inerente da práxis de
reuniões em conselho [...] A distribuição equitativa de liberdades comunicativas no
discurso e a exigência de sinceridade em favor do discurso significam direitos e deveres
argumentativos, e de forma alguma morais” (Habermas, 2007, p. 57-58-61).
Nesse sentido, a situação de fala composta por todos aqueles interessados na
definição de normas que lhe disserem respeito pode constituir a engenharia mais
elementar para a fundação de normas legítimas, uma vez que nela pessoas com formas
culturais de vida diferentes e, consequentemente, com concepções de “vida boa” distintas,
são reunidas e poderão encontrar um acordo mediante a discussão racional. A partir do
procedimento argumentativo e da pretensão criticável à validade do conteúdo de uma
expressão, se poderia atender à premissa de que uma “lei é válida no sentido moral
quando pode ser aceita por todos, a partir da perspectiva de cada um” (idem, p. 46). Isso
significa que, conforme sugere Habermas, a crise de legitimação que caracteriza nossa
época exige uma reformulação democrática das regras do jogo democrático: a
comunicação (princípio de discussão) fornece um fundamento racional (universalmente
válido) para instituir politicamente direitos iguais à comunicação e participação na
definição de normas e tomadas de decisão. O reconhecimento recíproco de tais direitos
nada mais é senão o pressuposto normativo para a auto-realização e a auto-
determinação. Em outras palavras, o reconhecimento mútuo dos direitos humanos
constitui o pressuposto normativo para a realização da soberania popular. Compreende-
se a partir disso que direitos humanos e soberania popular se pressupõem mutuamente
(Habermas, 2010, p. 116-138).
Tendo em vista que a preocupação central de Habermas são as condições
efetivas de vida (e necessárias) para a fundação legítima de normas na democracia,
pressupõe-se uma ancoragem moral, válida universalmente. Essa ancoragem encontra-
se na orientação para o entendimento e no pressuposto do reconhecimento mútuo de
igual direito à comunicação e participação, isto é, na derivação política do tipo
comunicativo de agir. A particularidade das recomendações dessa moral está em sua
neutralidade (princípio de discussão) diante de questões éticas, a neutralidade diante da
questão do “bem”. As implicações éticas dessa moral, portanto, derivam da convenção
(Lemasson, 2008, p. 43). “A política deliberativa obtém sua força legitimadora da estrutura
discursiva de uma formação da opinião e da vontade, a qual preenche sua função social e
integradora graças à expectativa de uma qualidade racional de seus resultados”
(Habermas, 2003b, p. 27-28).
A teoria da democracia de Habermas pressupõe a institucionalização de
procedimentos para a tomada de decisão que possibilitem que as transformações e
diversificação da auto-compreensão da sociedade (capitalismo e globalização) sejam
incorporadas sistematicamente pelas instituições reguladoras. Trata-se, em sentido estrito,
da institucionalização de uma concepção reflexiva de transformação, que seja de uma só
vez flexível o bastante para traduzir em normas as transformações da auto-compreensão
da sociedade e não restringir o conteúdo ético das normas a uma concepção fixa de “vida
boa”, i.e de verdade. Trata-se, em sentido preciso, da aplicação dos dois níveis da teoria
do consenso da verdade a um paradigma prodecuralista de processo deliberativo: na
dimensão do procedimento, define-se que as normas devem ser objeto de um debate
aberto, do qual todos aqueles que dela se sentirem implicados tenham o igual direito à
participação em sua formulação, de modo que seja possível que o conteúdo explícito da
norma seja objeto de consenso entre os interessados – dimensão do conteúdo objeto de
consenso. A partir da mudança no procedimento para a tomada de decisão, Habermas
pretende conter as implicações para o acesso igual à justiça oriundas da contradição entre
igualdade de direitos e desigualdade das condições efetivas de vida.
Compreende-se assim que devido à desigualdade das condições de vida, as
posições de poder tendem a ser assimetricamente distribuídas na sociedade, o que
significa dizer que a dominação política dos homens sobre os homens acaba por
conformar sociologicamente estatutos qualitativamente diferenciados de realização das
liberdades subjetivas. O problema entre facticidade e validade no interior do direito liberal
se deve, pois, ao fato de que historicamente ainda não surgiu uma forma correspondente
de Estado democrático de direito (Lemasson, 2008, p. 60-62). O problema do Estado de
bem-estar social está em sua insuficiência, pois nele o exercício das liberdades subjetivas
ainda não está subordinado à idéia de justiça social como concebida no direito civil, mas
está condicionado pela garantia de condições mínimas de vida. E isso é insuficiente, na
medida em que há uma tendência estrutural de proporcionalidade entre assimetria na
apropriação da riqueza socialmente gerada e ocupação das posições de poder. E onde há
assimetria na ocupação de posições de poder, tende a haver privilégios, i.e condições
desiguais de acesso à justiça (Habermas, 2003b, p. 59-72 e 127-146).
Se a resposta política de Habermas a esses problemas parte da necessidade de
ampliação do espectro de participação e influência civil nas decisões políticas,
compreende-se melhor o lugar constitutivo atribuído à esfera pública em seu modelo
deliberativo de democracia. A esfera pública consiste na dimensão institucional do mundo
da vida, o que depois da guinada linguística nos anos 1970, significa que ela é uma
estrutura comunicativa cuja ancoragem no mundo da vida se dá através da sociedade civil
(Habermas, 2003b, p. 91 sq.). Através da intermediação da sociedade civil, com suas
organizações, movimentos, associações, etc., problemas sociais assimilados na esfera
privada ganham ressonância na esfera pública. Nesse modelo deliberativo de democracia,
portanto, as decisões tornam-se legítimas na medida em que assimilado – ou mais
precisamente, uma vez regulado comunicativamente – um problema social na esfera
privada e amplificado na sociedade civil, esse problema atravessa os procedimentos civis
e políticos da democracia e do Estado de direito e se introduz no parlamento ou nos
(idem, p. 173-192).
Caberia então à esfera pública e à sociedade civil difundir os problemas sociais.
Em vista disso, pode-se afirmar que o processo político-deliberativo é definido por uma
ampla discussão da qual participam com iguais direitos à comunicação todo aquele
cidadão que se sente interessado pelo problema em questão. Através do debate público,
os cidadãos identificariam os problemas e traduziriam os mesmos em ações com vista a
exigir do poder público uma solução. A deliberação e a persuasão mútua dos cidadãos
seriam assim um processo permanente, dentro e fora das instituições políticas, sendo o
voto um momento específico de um processo mais amplo.
A concepção de esfera pública contida na democracia deliberativa busca, então,
abrir espaço para influências sobre uma administração e um parlamento que têm sido
influenciados excessivamente por aqueles cuja atuação no conjunto da sociedade está
dirigida para a reprodução das estruturas da esfera pública atualmente existente, isto é,
por aqueles que gerem e tomam as decisões que regulam os sistemas funcionalmente
especializados. Dito de outra maneira: na medida em que, conforme a concepção de
Habermas, a esfera pública não deve mais ser regulada pelo direito privado, a influência
dos atores dos sistemas funcionalmente especializados sobre o Estado de direito diminui
– ou deve diminuir – na mesma medida em que aumenta – ou deve aumentar – a
influência da sociedade civil sobre o mesmo. Isso permitiria que através da esfera pública
a sociedade civil pudesse dialogar e pressionar o Estado de direito com o propósito de
reivindicar uma nova, uma alteração ou uma reafirmação dos direitos e da regulação que
rege tanto a economia quanto a preservação dos direitos subjetivos e objetivos
institucionalizados.
De certa forma, a democracia deliberativa busca criar e assegurar
institucionalmente uma esfera de influência sobre o Estado de direito, voltada para a
regulação da economia, para aqueles que ainda não a possuem: os ativistas sociais, os
desempregados, os estrangeiros, etc. Ou ainda criar e assegurar um espaço de influência
sobre o Estado de direito semelhante àquele que os atores dos sistemas funcionalmente
especializados historicamente já possuem. Dessa maneira, de acordo com nosso autor,
seria possível incorporar na fundação normativa a diversificação cultural, social e
econômica oriunda tanto da evolução específica do capitalismo e de uma democratização
cultural da democracia, quanto da intensificação dos processos de globalização. Para
todos os efeitos, isso quer dizer que a esfera pública da democracia deliberativa é uma
esfera pública de tipo específico: uma esfera pública “cosmopolita”. E a institucionalização
de uma esfera de socialização como essa implica, evidentemente, maior pressão no
sentido da redistribuição das riquezas socialmente produzidas.
CONSIDERAÇOES FINAIS
Do ponto de vista sociológico, o que Habermas pressupõe em seu modelo de
democracia é um indivíduo cuja forma de vida e concepção de bem seja reflexiva, de
modo que o direito de manifestar seus interesses, de agir no mundo conforme sua
concepção de vida boa particular, seja por ele mesmo atribuído a outro indivíduo. De certo
modo, em Faktizität und Geltung Habermas (2010, p. 113 sq.) pretende reconstruir a
autonomia perdida da esfera privada perante a esfera social e pública diagnosticada em
1962 em Strukturwandel der Öffentlichkeit (1978a), através de uma espécie de resgate da
capacidade de conformação do direito e de seu aparelho executivo, o Estado de direito
(idem, p. 196 sq.): a preferência por uma forma cultural de vida, com sua concepção
particular de “vida boa”, teria na democracia deliberativa um estatuto social privado, não
sendo a sua unidade específica de conteúdo passível de apreciação pública. A autonomia
perdida da esfera privada (1962) corresponderia aqui à necessidade de salvaguardar o
mundo da vida diante do sistema (1987; 2003b e 2010). Se naquele momento, à perda de
autonomia da esfera privada correspondia uma espécie de resgate da esfera pública
liberal do século XIX, em 1992 Habermas compreende ser necessário refundar o direito
de modo a resolver a tensão entre facticidade e validade da norma, para que, a partir
disso, o processo político-deliberativo voltasse a se abrir para a esfera pública. Do ponto
de vista do projeto político, pode-se dizer no transcorrer desse período passou-se de
intuições socialista-democráticas para intuições democráticas com um viés anarquista, se
considerado a centralidade conferida aos princípios democráticos de auto-determinação e
auto-realização.
A luz da trajetória do conceito de esfera pública, ganha evidência a permanência
da tese segundo a qual o conjunto de evoluções materiais e simbólicas que marcaram a
sociedade burguesa europeia desde a revolução francesa desencadeou uma tensão
estrutural, no plano político e societário, entre esfera privada e esfera pública. Assim, há
uma conexão interna direta entre Strukturakwandel der Öffentlichkeit (1978b [orig. 1961]),
Légitimationprobleme im Spätkapitalismus (1978a [orig. 1973]), Theorie des
kommunikativen Handelns (1987 [orig. 1981]), Faktizität und Geltung (2003 e 2010 [orig.
1992]) e Die Einbeziehung des Anderen (2007 [orig. 1996]). Desde uma perspectiva mais
geral, essa conexão só existe porque foi mantida a preocupação de Habermas com a
associação histórica entre capitalismo e democracia e sua aposta em uma teoria
normativa da sociedade.
Isso permite apontar que, mais uma vez em um sentido bastante geral, ao
crescendum aludido anteriormente, cujo fio condutor seria a incorporação progressiva e
constante de novas perspectivas possíveis para a fundação teórica de uma teoria crítica
da sociedade, veio a corresponder um crescendum temático na dimensão do diagnóstico:
assim, à análise da evolução do capitalismo somou-se a análise do Estado-nação, da
ordem política e da integração social sob os efeitos tardios da globalização. Nesse
sentido, tudo se passa como se o diagnóstico de mudança estrutural da esfera pública
nunca tivesse cessado: entre 1962 e 1992, e apesar da fundação teórica distinta, a
transformação da esfera pública se deve, primeiro, à crescente e contínua racionalização
dos aparatos de regulação institucional, no âmbito da administração estatal e do mercado;
segundo, se deve a uma democratização cultural da democracia, que está na origem de
novas expectativas de participação nas decisões políticas; terceiro, a contradições
existentes no interior da relação histórica entre Estado de direito, democracia e
capitalismo; e quarto, se deve à perda de capacidade de conformação política de um
regime político nacional frente à intensidade dos processos de globalização. Nessa
trajetória, as condições sociológicas em constante transformação levam ao diagnóstico de
uma sociedade cosmopolita, cujo descompasso em relação a um sistema político em
muitos aspectos ainda nacional, sugere uma forma corresponde de Estado, um Estado
cosmopolita, e de esfera pública, que poderia ser denominada “esfera pública
cosmopolítica”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional. Ensaios políticos. São Paulo:
Litera Mundi, 2002.
_______. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. São Paulo: Edições
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avancé. Paris: Payot, 1978a.
_______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 01, Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 2010.
_______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 02, Rio de Janeiro:
Edições Tempo Brasileiro, 2003b.
_______. La constitution de l’Europe. Paris: Éditions Gallimard, 2012.
_______. L'espace publique. Archéologie de la publicité comme dimension
constitutive de la société bourgeoise. Paris: Payot, 1978b.
_______. Logique des Sciences Sociales et autres essais. Paris : PUF, 2005.
_______. Théorie de l'agir communicationnel. 2 vols, Paris: Fayard, 1987.
LEMASSON, Laurent. La démocratie radicale de Jürgen Habermas. Entre
socialisme et anarchie. In: Revue française de science politique, 2008/1 - Vol. 58,
p. 39-67.
REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. Rio de Janeiro: Editora
Vozes, 2010.
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