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Da “crise urbana” à crise do trabalho? Contribuições a uma abordagem possível
da (crise de) reprodução de relações sociais nas metrópoles brasileiras
Luiz Antônio Evangelista de Andrade
Docente no Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) – Campus Guarapari
e-mail: [email protected]
I
Nossa proposta neste texto consiste em realizar uma reflexão que, ao invés de
trazer respostas prontas, leve a novas indagações, de modo a podermos sobre elas
refletirmos. Uma questão norteia nossa fala inicial, senão vejamos. Embora exista uma
dimensão urbana da crise, ela é derivada de uma crise mais profunda e que alcançou as
diferentes sociedades, entre elas a brasileira: a crise do trabalho. A nosso ver, a partir da
abordagem da crise do trabalho, teríamos uma melhor interpretação da dimensão urbana
da crise e das várias dificuldades com as quais os agentes econômicos têm se defrontado
para com ela lidar. E o atual aprofundamento dos negócios com a urbanização tanto é
parte das estratégias empresariais diante da crise do trabalho, como é a expressão de
uma reprodução crítica das relações sociais assentadas no trabalho.
De modo a construir nosso raciocínio e responder à questão proposta, torna-se
preciso definirmos aquilo que estamos chamando de crise do trabalho. E, dadas as
diferentes formas como ela se determina objetivamente, torna-se preciso também
demarcarmos qual de seus aspectos deverão ser abordardos. Tendo em conta que a crise
do trabalho emerge no interior da reprodução do capital como um todo, centrar-nos-
emos nas determinações desta crise na esfera produtiva. Em seguida, iremos abordar
tais determinações sobre a forma política estatal e a reprodução social do espaço.
Quando falamos de sociedade capitalista, algo a ser levado em consideração é a
concorrência empreendida pelos diversos capitais na busca pela acumulação, seja
aqueles capitais que atuam dentro de um mesmo setor da economia, seja entre setores
diferentes. E a acumulação, basicamente, dá-se através de três fontes de rendimento:
1) o lucro sobre o capital investido no processo produtivo, após comprar e
utilizar a força de trabalho para produzir produtos que são vendidos nos mercados como
mercadorias;
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2) a obtenção de uma renda fundiária, por parte do proprietário de terras, sobre
imóveis e terrenos alugados ou construídos e vendidos;
3) os juros cobrados sobre o capital-dinheiro emprestado a uma pessoa física ou
jurídica, ou obtidos através da remuneração de investimentos em títulos e papéis na
bolsa de valores.
Portanto, lucro, renda fundiária e juros são três fontes de rendimento através das
quais, respectivamente, o proprietário de capital, o proprietário de terras e o proprietário
de dinheiro podem acumular ao investirem nos diferentes negócios à sua disposição.
No senso comum cotidiano, costumamos chamar de “lucro” todo e qualquer
retorno sobre um investimento feito, seja na produção de mercadorias, na compra e na
venda de imóveis ou, por exemplo, no empréstimo de dinheiro feito por um banco ao
consumidor ou a uma empresa. Com a intenção de facilitar a exposição, iremos, por ora,
abstrair das formas renda fundiária e juro e focarei na forma lucro. Mais à frente
retornaremos às duas primeiras formas, no desenvolvimento dos meus argumentos.
Havíamos dito que uma das características centrais da sociedade capitalista é a
concorrência entre os diferentes capitais. Essa concorrência se dá porque esses capitais,
ou melhor, os diferentes empresários capitalistas que empregam seus capitais, são
coagidos ou obrigados a “chegar primeiro” que seu concorrente na busca pelo lucro.
Ganhar novos mercados ou fortalecer os antigos, atrair novos consumidores através da
criação de novas necessidades ante um produto novo, novas técnicas de produção, de
gestão, inovação, etc., são algumas entre as diversas estratégias que devem ser seguidas
pelos capitalistas para serem competitivos e chegarem à frente do seu concorrente.
E uma estratégia particularmente importante, a qual historicamente vem sendo
utilizada pelos capitalistas na busca por aumentar a sua produtividade, expandir a sua
produção e baixar o preço dos seus produtos, tem sido o de substituir a força de trabalho
pelo emprego de tecnologias. Não é preciso muita pesquisa para descobrirmos que,
sobretudo nos últimos 40 anos, tem havido um decréscimo relativo da força de trabalho
nas fábricas e nas empresas. E relativo porque, em números absolutos, até mesmo por
causa do aumento da população mundial, a força de trabalho utilizada cresceu.
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Em sua crítica da economia política, Marx, ao avançar em relação a economistas
como Adam Smith e David Ricardo, demonstrou quatro aspectos importantíssimos na
compreensão das relações sociais de produção no capitalismo, senão vejamos.
1) Não é todo e qualquer trabalho ao longo da história da humanidade que
produz valor. O pressuposto para tal compreensão é o duplo caráter do trabalho na
sociedade capitalista, o trabalho concreto e o trabalho abstrato. O único trabalho que
produz valor é o trabalho abstrato, o qual, nessa sociedade, tornou-se “trabalho social”,
uma forma geral que indistingue os diferentes trabalhadores e seus trabalhos concretos;
2) Marx elevou o valor a um artifício teórico dotado de múltiplas determinações
conceituais (diversas formas de aparição nas relações de troca e nas relações sociais
como um todo), permitindo-lhe desvelar como e por que um determinado modo de
existência da atividade humana foi alcançado pela produção mercantil;
3) o valor é uma forma social historicamente determinada e não é exterior às
mercadorias produzidas pela força de trabalho. Naquelas mercadorias está representada
uma respectiva forma de aparição do valor, dada por uma relação de quantidade. Nessa
determinação imediata, o valor da mercadoria é medido pelo tempo de trabalho
socialmente necessário à sua produção;
4) a análise do tempo de trabalho deveria dividi-lo entre “trabalho necessário” à
produção da mercadoria, o qual, por assim dizer, corresponderia à fração que equivale
ao preço do seu trabalho; e “trabalho excedente” – ou mais-valia – que é o trabalho não
pago pelo empresário capitalista ao trabalhador, cuja força de trabalho ele compra.
Como dissemos anteriormente, a introdução de novas tecnologias com vistas a
aumentar a produtividade do trabalho e produzir mais mercadorias, leva à economia
com força de trabalho. E uma consequência da introdução de novas tecnologias é que,
numa fábrica de sapatos, p.e., serão produzidos mais sapatos com menos trabalhadores e
também com um menor tempo necessário e com um menor preço de produção.
Vejamos o exemplo da produção de sapatos: antes da revolução industrial, esta
produção era feita de modo artesanal por um sapateiro. Digamos que ele conseguisse
produzir um sapato após um dia inteiro de trabalho, dado por uma jornada de 10 horas.
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Com a introdução de máquinas de cortar e costurar o couro, passou-se a produzir 10
sapatos em um dia no lugar de apenas um. O empresário, que comprou as matérias-
primas necessárias à produção e também a força de trabalho para operar as máquinas,
consegue colocar no mercado um número muito maior de sapatos com um preço bem
menor do que os do sapateiro. Como a produção do sapateiro é apenas um décimo da
produção do empresário, ele vê o seu trabalho inviabilizado, tendo que sair do mercado.
E onde reside o problema disso tudo? No fato de que, ao agir por conta própria e
conseguir produzir mais mercadorias com preços menores, empregando menos tempo e
menos trabalhadores, um determinado empresário capitalista torna-se mais competitivo
e obtém taxas de lucro maiores que as dos seus concorrentes diretos. Desencadeia-se,
por parte destes concorrentes, tanto uma migração para o setor da economia em que as
taxas de lucro estão acima da média, quanto uma verdadeira corrida para adquirir uma
tecnologia semelhante àquela até então possuída apenas pelo empresário inovador. Tão
logo tal tecnologia esteja disseminada, e as taxas de lucro equalizadas, um novo nível de
produtividade, através de uma nova tecnologia, será exigido, levando o empresário que
a aplicou a obter uma taxa de lucro acima da média. E, assim, sucessivamente.
A cada vez que se aumenta a produtividade, o “valor” contido na mercadoria
produzida, isto é, em sua determinação imediata como tempo de trabalho socialmente
necessário à sua produção, segue baixando na mesma proporção. De tal sorte, o valor
excedente e, assim, o lucro possível também seguem caindo. Em que pesem as diversas
tendências em contrário, verifica-se uma tendência à diminuição da taxa de lucro entre
os diferentes capitais. Não entraremos nessa controvérsia, visto que ela é interminável e
há uma série de autores, pelo menos nos últimos 100 anos, que debateram intensamente
a temática em apreço. Nosso interesse aqui é demonstrar que o capital em geral, na sua
necessidade de se autovalorizar, personificou-se e tornou-se uma lei cega a tal ponto que
impõe a todos os empresários capitalistas aumentarem a produtividade do trabalho,
substituindo a força de trabalho por novas tecnologias.
Durante um bom tempo, o capitalismo lidou relativamente bem com essa
contradição, por meio das tendências em contrário. A cada crise, a cada dificuldade do
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capital em geral para garantir as taxas de lucro adequadas, aumentava-se a produção ou
expandiam-se as relações capitalistas para locais onde elas ainda não haviam chegado
ou haviam chegado de maneira tímida, proporcionando matérias-primas baratas ou
quase sem custos, força de trabalho em condições de superexploração ou intensificação
do seu trabalho, mercados consumidores exclusivos, etc. Essas expansões também
possibilitavam o reinvestimento de capitais ociosos em estradas, portos, ferrovias, etc..
Nos países do centro do capitalismo, as intervenções do Estado (o chamado Estado de
bem-estar social) regulavam as relações entre capital e trabalho, de modo a estabilizar
os conflitos e garantir demanda efetiva para o consumo das mercadorias.
Porém, desde fins dos anos 1960, essas saídas capitalistas das crises foram se
tornando cada vez mais difíceis. E por qual motivo? Com a enorme crise que afetou
diretamente a economia dos Estados Unidos, coordenadora do sistema comercial e
financeiro mundial, gerando estagnação de investimentos e queda nas taxas de lucro,
diversas medidas econômicas, jurídicas e institucionais tiveram de ser tomadas. Uma
dessas medidas econômicas, especificamente ligada aos rearranjos técnicos e
organizacionais tomada pelos grandes grupos empresariais, foi a chamada “revolução
microeletrônica”. Junto a ela, vieram novas formas de organização do trabalho e dos
processos de produção, as quais ficaram conhecidas como toyotismo. A partir do que já
dissemos anteriormente, não é difícil imaginar o que ocorreu: um grande número de
demissões, a enorme expansão do setor de serviços (que, inclusive, acomodou parte
significativa da força de trabalho demitida nas fábricas), um expressivo aumento da
produtividade do trabalho, o surgimento de linhas inteiramente novas de produtos, a
recomposição momentânea das taxas de lucro, etc..
Segundo o filósofo alemão Anselm Jappe (2013), “investimentos cada vez mais
gigantescos eram necessários para se fazer com que os poucos operários restantes
trabalhassem segundo os padrões de produtividade do mercado mundial. O acúmulo de
capital ameaçava parar” (p.49). Uma enorme quantidade de mercadorias tinha de ser
produzida para compensar a ínfima quantidade de tempo de trabalho nelas contida. Se
houve um momento cujo lucro possível com 1 sapato era X, com o revolucionamento
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das tecnologias tornou-se preciso produzir 20, 50 sapatos para se obter a mesma massa
de lucro de outrora.
Foi na década de 1970 que uma parte cada vez maior da riqueza acumulada e
sem uma base de valorização e de lucro adequadas na produção fabril de mercadorias
buscou formas de valorização no chamado setor de serviços e, principalmente, na esfera
financeira. Trata-se de uma enorme expansão da esfera financeira, através daquilo que
Marx chamou de “capital fictício”. Cada vez mais as atividades das grandes empresas se
situam em investimentos nos fundos de pensão, na compra de ações de outras empresas,
de títulos do tesouro, de “derivativos”, nas operações cambiais, etc. Não é à toa que
empresas como Coca Cola ou Perdigão-Sadia, para ficarmos com dois exemplos, há
algum tempo não obtêm seus lucros apenas com a venda de refrigerantes e de sucos ou
com carne processada.
Podemos então explicar dois fatos que são fundamentais para nossa exposição.
O primeiro deles se refere ao avanço do neoliberalismo, também nos anos 1970: não se
tratava – como afirma Jappe (2013) – de um “jogo sujo” de capitalistas gananciosos
apoiados por políticos sem escrúpulos ou complacentes com a situação, como boa parte
da esquerda quis e quer fazer crer. Ao contrário, o neoliberalismo era “... a única
maneira possível de prolongar por um pouco mais de tempo o sistema capitalista”
(p.50). O segundo fato, se refere à migração desses capitais da esfera produtiva para a
esfera financeira e, daí, para a sua aplicação no financiamento da urbanização – ou, de
maneira mais precisa, nos negócios imobiliários. É partir daqui que poderemos ver as
manifestações da crise da urbanização, isto é, a “crise urbana” como expressão e
condicionante de uma crise mais ampla que é a do trabalho como a fonte do valor.
II
Obviamente que o debate sobre a modernização brasileira não pode prescindir da
presença das inúmeras contribuições teóricas que permitiram desvelar os fundamentos
através dos quais esta se deu. E tais contribuições tiveram uma enorme perícia em
demonstrar de que modo um processo de modernização que rompeu parcialmente com
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sua base agrária e se assentou em um padrão de acumulação tipicamente urbano-
industrial, levaram a um expressivo crescimento econômico. E um crescimento que não
se converteu em melhoria das condições de vida de enormes frações da classe
trabalhadora brasileira, sobretudo aquelas que foram diretamente mobilizadas pela
modernização. Ao contrário, esse crescimento econômico a altas taxas foi obtido,
basicamente, à custa daquilo que Lúcio Kowarick chamou de “espoliação urbana”: a
combinação de uma hiperexploração da classe trabalhadora combinada com a quase
ausência de um padrão de distribuição via salário indireto, como aquele verificado nos
países do centro do capitalismo.
A expansão das periferias metropolitanas, as alternativas de morar, as formas de
organização política das classes trabalhadoras para além do chão-de-fábrica, as
conquistas daí advindas e os novos circuitos de relações sociais nos quais as classes
trabalhadoras foram inseridas... Todos esses fenômenos são de grande importância para
compreendermos o estatuto mais recente da nossa formação social. Porém, propomos
aqui, em linhas gerais, apresentar o modo como o padrão de acumulação urbano-
industrial e a urbanização brasileira, notadamente nas três últimas décadas e devido à
crise por que passa o próprio capitalismo, progressivamente vêm se subordinando a
outro padrão, o qual diversos autores vêm chamando de dominância financeira.
Sob quais pressupostos o Brasil – ou melhor, a urbanização brasileira – veio a se
tornar uma plataforma de valorização dos capitais excedentes que circulam na esfera
financeira? Embora não seja possível darmos maiores detalhes, cabe mencionar o marco
regulatório do financiamento imobiliário e as mudanças institucionais que permitiram
que o setor imobiliário (tanto o residencial quanto o comercial) fosse integrado ao
mercado financeiro no Brasil, permitindo assim a expansão dos negócios imobiliários.
Fazemos também menção a uma lei que foi de suma importância nesse marco
regulatório. Trata-se da Lei Federal nº 9.514/1997, que criou o Sistema de
Financiamento Imobiliário (SFI). Seu objetivo principal foi o de transformar o mercado
de capitais, por meio da bolsa de valores, no local de captação de recursos para o
financiamento imobiliário, seja aquele voltado à aquisição de um imóvel ou para a
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construção de um empreendimento. A ideia foi a de retirar do Estado essa estrutura de
financiamento e passá-la para os investidores da esfera financeira. E essa lei permitiu
que as dívidas do financiamento de um imóvel, feitas por uma família, pudessem se
transformadas num título capaz de ser negociado livremente nas bolsas de valores. A
Lei nº 9.514 também trouxe uma mudança importante nos contratos de financiamento: a
alienação fiduciária. Com esse instrumento é possível manter aquele que financia o
imóvel apenas como detentor da sua posse. A propriedade efetiva e o acesso à sua
escritura só ocorrem depois de quitada a dívida. Caso haja falta de pagamento durante
mais de três meses, o imóvel pode ser tomado pelo banco que o financiou.
A referida lei, bem como os diversos instrumentos que ela trouxe consigo,
permitiram transformar o imóvel, que, até 15 ou 20 anos atrás, era uma mercadoria com
certa dificuldade de ser vendida por seu proprietário (baixa liquidez), em uma
mercadoria em geral com grande facilidade de ser negociada (alta liquidez),
principalmente quando transformada em um título negociável nos mercados financeiros.
Obviamente, essa nova característica atraiu muitos investidores (nacionais e
estrangeiros). Diversas empresas ligadas à construção civil e à incorporação imobiliária
se tornaram empresas de capital aberto, ou seja, permitiram que esses investidores
injetassem seu capital nessas empresas e, assim, financiassem a produção de
empreendimentos e a aquisição de terrenos. Aliás, é preciso abordar essa aquisição, pois
ela está diretamente ligada a um aspecto que irei tratar ao final da nossa exposição.
Do que esses investidores estão atrás quando eles injetam seu capital naquelas
empresas e adquirem suas ações? Lembram-se quando dissemos, no início da nossa
exposição, que, para falar do lucro, iríamos abstrair da renda fundiária cobrada pelo
proprietário fundiário e dos juros sobre o dinheiro emprestado pelo seu proprietário? Os
investidores estão atrás dos juros cobrados pelos empréstimos de financiamento à
produção imobiliária e da renda fundiária obtida com as altas especulativas dos preços
dos terrenos e imóveis nas aglomerações urbanas. E, de quebra, ficam com parte do
lucro, que vem sob a forma dos juros e é originado, por exemplo, da exploração da força
de trabalho utilizada pelos empresários da construção civil na produção imobiliária. Por
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isso, esses investidores fazem pressão pelos resultados das empresas, cobrando a
expansão dos negócios e o aumento das vendas de imóveis.
E quais são as consequências desse tipo de negócio surgido com a urbanização –
através da produção e da circulação do ambiente construído urbano – sobre as
populações nas metrópoles e, sobretudo, sobre as populações mais pobres?
Dissemos acima que os terrenos e os imóveis urbanos passaram a ser no Brasil,
principalmente nos últimos 15 anos, duas mercadorias com níveis de preço crescentes.
Esse fenômeno não ocorreu apenas no Brasil: trata-se de uma tendência mundial, com
consequências mundialmente graves. Eis a explicação básica para as altas dos níveis de
preço: os agentes econômicos (empresas dos ramos da construção e da incorporação)
estão sempre buscando dar um determinado uso aos terrenos numa dada área de uma
aglomeração urbana, um tipo de uso que permita a maior rentabilidade possível do
negócio, obtendo-se a máxima renda fundiária. Com isso, os preços desses terrenos e
dos imóveis construídos, que expressam as rendas fundiárias, tendem a um aumento
crescente. Como na construção civil as inovações tecnológicas foram intensas, reduziu-
se o peso do trabalho na composição de valor da mercadoria imóvel. Frente a isso, o que
se tem é um peso cada vez maior do preço dos terrenos no total do preço do imóvel,
com consideráveis repercussões sobre a produção e o acesso à moradia.
Obviamente, para alcançarem a rentabilidade desejada, os agentes econômicos
não atuam sozinhos. O poder público é chamado a intervir, seja através das mudanças
na legislação, seja através de grandes intervenções urbanísticas no espaço (construção
de avenidas, projetos arquitetônicos, grandes equipamentos urbanos, etc.).
Contudo, em 2008, uma forte crise, novamente originada nos EUA, abalou o
mundo e teve importantes repercussões no Brasil. Por aqui, um dos setores econômicos
mais atingidos foi o imobiliário. As empresas de capital aberto e os investidores ficaram
apavorados, pois começaram a ter enormes dificuldades de expandir seus investimentos
e até mesmo de negociar os empreendimentos já existentes. Diante dessas dificuldades,
representantes das entidades de classe da indústria da construção civil e da incorporação
pressionaram o governo federal para que um pacote habitacional fosse criado. Essas
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empresas tinham um enorme estoque de terrenos e sua intenção era chegar à construção
de 200 mil unidades habitacionais voltadas às populações com menores rendimentos.
Na formulação desse pacote habitacional ficaram de fora o Ministério das
Cidades e a equipe que vinha construindo o Plano Nacional de Habitação juntamente
com movimentos sociais e outras entidades de luta pela moradia. Assim, pautas sociais
históricas desses movimentos, que fizeram parte da Reforma Urbana, como o projeto de
lei de iniciativa popular que criara o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social
(SNHIS), foram simplesmente esquecidos.
Em março de 2009, foi lançado com MCMV, cuja meta inicial era construir 1
milhão de moradias, mobilizando recursos de 34 bilhões de reais, na forma de subsídios
para a construção das moradias e o financiamento imobiliário. As empresas construtoras
poderiam não só definir o terreno e o tipo de projeto como se encarregar dos trâmites
legais para vender os empreendimentos para a Caixa Econômica Federal. Não à toa,
essas empresas ampliaram a corrida para adquirirem terrenos em áreas periféricas das
metrópoles e formar um banco de terrenos para construírem grandes empreendimentos,
com centenas de unidades habitacionais, chegando a mais de 9000 mil em alguns casos.
Com o MCMV, o setor imobiliário como um todo e, especialmente, as empresas
construtoras e incorporadoras e seus investidores, puderam recompor suas taxas de lucro
em declínio e retomar o valor de mercado de suas ações em bolsa de valores.
Inúmeras consequências sociais desse modelo crítico de urbanização pode ser
mencionadas. A primeira se refere aos empreendimentos produzidos nas frentes de
expansão das metrópoles. Estes, não contam com a mínima infraestrutura adequada,
sem espaços comerciais e equipamentos coletivos e dispondo de precárias condições de
transporte e mobilidade. Mesmo quando tais empreendimentos se localizam nas porções
das metrópoles que dispõem desses elementos, apesar de contarem com equipamentos
coletivos e disporem de alguma diversidade de comércio e serviços, ainda prevalecem
as mesmas precárias condições de vida.
A segunda consequência social do avanço dos empreendimentos do MCMV são
os conflitos pelo acesso e a permanência nas áreas de expansão daqueles moradores que
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não dispõem dos rendimentos para consumirem os imóveis. Cria-se uma escassez
artificial de terras e imóveis, cujos mecanismos nada mais são do que a enorme
elevação dos seus preços, de modo a garantir a rentabilidade dos agentes econômicos. E
muitos desses moradores são oriundos das “expulsões pelo mercado”, e suas enormes
dificuldades para arcarem com os preços dos aluguéis os levaram a “residir” nas
ocupações residenciais, presentes atualmente em diversas metrópoles brasileiras.
Outra consequência social dessa urbanização refere-se às altas crescentes nos
preços dos imóveis nas metrópoles, altas que têm levado ao endividamento de um
número cada vez maior de brasileiros, incentivados a adquirir a “casa própria” via
financiamento imobiliário. Como disse Flávia Martins (2010), em pesquisa sobre o tema
do endividamento na aquisição da moradia, “...o desencadeamento da dívida em longo
prazo provoca uma subordinação do trabalhador – e da venda da única mercadoria que
historicamente lhe sobrou para vender: seu trabalho – aos ritmos de valorização e de
desvalorização do imóvel frente à produção urbana do espaço” (p.73).
Portanto, a compreensão do modo como atuam as forças sociais que
transformaram as metrópoles e demais centralidades urbanas em negócio é de suma
importância para dar sentido às lutas sociais que estão surgindo e ganhando força. E
esses negócios expressam o problema central, posto ao capital no seu processo
reprodutivo: a sua necessidade de afirmar o trabalho como fonte da sua autovalorização,
ao mesmo tempo em que precisa negá-lo, expelindo a força de trabalho do processo
produtivo. E as lutas por justiça social, as quais também vêm se expressando na luta por
condições minimamente dignas às urgências da reprodução imediata da vida, por mais
duras que seja, ainda não são uma luta pela superação da sociedade do trabalho.
Que o horizonte utópico das lutas por justiça social seja feito de consciências
negadoras do trabalho social e verdadeiramente autônomas.
Referências bibliográficas:
JAPPE, Anselm. Crédito à morte – A decomposição do capitalismo e suas críticas.
São Paulo: Hedra, 2006. 241p.
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KOWARICK. Lúcio. São Paulo 1975: crescimento e pobreza. São Paulo: Loyola,
1981. 160p. MARTINS, Flávia Elaine da Silva. A (re)produção social da escala metropolitana: um estudo
sobre a abertura de capitais nas incorporadoras e sobre o endividamento urbano em São Paulo;
2011. 209 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, L.I V.I e II.[1867] 1998.
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