¹Graduado em Letras com habilitação Português e Inglês – AESA/CESA
Autarquia de Ensino Supe- rior de Arcoverde/Centro de Ensino
Superior de Arcoverde Aluno de Especialização em Língua portuguesa
e suas Literaturas – AESA/CESA Autarquia de En- sino Superior de
Arcoverde/Centro de Ensino Superior de Arcoverde e-mail:
[email protected] ²Pós-doutor em Linguística pela UFPA –
Universidade Federal do Pará. Professor do Curso de Especialização
em Língua Portuguesa e suas Literaturas – AESA/CESA, Autar- quia de
Ensino Superior de Arcoverde/Centro de Ensino Superior de
Arcoverde. E-mail:
[email protected]
MANGÁS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS DE FICÇÃO E
FANTASIA DA LITERATURA BRASILEIRA NOS DIAS DE HOJE
Raul Guilherme Macedo Silva¹
Edmilson José de Sá²
RESUMO
O presente artigo pretende verificar se existem influências dos
Mangás, enquanto possível gênero lite- rário, no processo de
construção de narrativas de ficção e fantasia da literatura
brasileira nos dias de hoje. O trabalho será delimitado por
pesquisa bibliográfica pautada em autores da teoria literária,
lite- ratura comparada, trabalhos e estudos acadêmicos sobre o
Mangá como marco da cultura japonesa e como gênero textual e
literário. A partir dos resultados será possível confirmar se
existe alguma influên- cia desse tipo textual na construção de
personagens e histórias narrativas de ficção fantástica e fanta-
sia, na literatura brasileira atua e que sã cada vez mais populares
e aceitas, principalmente entre os grupos mais jovens de
leitores.
Palavras-chave: Mangás. Gêneros textuais. Narrativa. Ficção
fantástica. Cultura japonesa.
ABSTRACT
This article intends to verify if there are influences of Manga, as
a possible literary genre, in the process of constructing
narratives of fiction and fantasy of Brazilian literature in the
present day. The work will be delimited by bibliographical research
based on authors of literary theory, comparative literature, works
and academic studies on Manga as marks of Japanese culture and as
textual and literary genres. From the results it will be possible
to confirm if there is any influence of this textual type in the
construc- tion of characters and narratives of fantastic fiction
and fantasy, in Brazilian literature, which are increas- ingly
popular and accepted, especially among the younger groups of
readers.
Keywords: Manga. Textual genres. Narrative. Fantasy fiction.
Japanese culture.
INTRODUÇÃO
A Literatura Comparada é uma das áreas dos estudos literários que
tem como
objetivo comparar as obras de um escritor e suas características
culturais, históricas,
políticas e sociais com a de outros, além de traçar paralelos entre
esses escritores e
2
outras áreas do saber. Segundo Carvalhal (2006), quando analisamos
uma obra, so-
mos levados a estabelecer paralelos e confrontos com outras obras
de outros autores
e gêneros, para que possamos ter fundamentos para entender o que
lemos, fazendo
juízos de valor. Assim, comparamos os textos não apenas com o
objetivo de concluir
sobre a natureza dos elementos confrontados, mas, principalmente,
para saber se são
iguais ou diferentes.
Desse modo, é impossível a desassociação de gêneros durante a
leitura. Sem-
pre iremos nos remeter a outras leituras prévias, principalmente
nos dias de hoje em
que os textos associados a imagens são bastante abrangentes e
aparecem com mais
frequência em nossa sociedade, sejam em desenhos animados na TV, os
famosos
animes, ou mesmo em formato de novelas gráficas, como as Histórias
em Quadrinhos
(HQs) e os Mangás japoneses.
Segundo Karnal (2012), as informações no mundo de hoje são
compartilhadas
em imagens, os jovens fotografam tudo e compartilham tudo através
da imagem, nós
somos seres imagéticos. Por isso, não podemos desconsiderar esses
textos como
gêneros literários que influenciam tanto a leitura quanto a escrita
de novas histórias,
principalmente, entre escritores e leitores mais jovens e
independentes.
Ao longo de sua história, as Histórias em Quadrinhos, foram vistas
sob várias
óticas e aspectos. Da era de ouro até as histórias contemporâneas
de super-heróis
elas ganharam os mais variados recursos e formatos e isso permitiu
que esse gênero
se tornasse cada vez mais adaptável e acessível as grandes massas,
o que por sua
vez também fez com que acabassem sendo vistos, por um longo tempo,
como um
subgênero.
No Japão, essas histórias acabaram ganhando nova roupagem, novos
traços
e temas, além de uma nova forma de leitura, dando origem ao Mangá
que conhece-
mos hoje. Elas acabaram anexando muito da cultura japonesa a seu
enredo e na
construção dos arquétipos de suas personagens, indo além da
literatura infantil e tra-
tando de temas mais complexos, inclusive possuindo uma divisão para
histórias com
temas e enredos adultos.
Graças a sua grande aceitação, principalmente entre o público mais
jovem, os
Mangás acabaram se difundindo pelo mundo, acrescendo à sua essência
nipônica as
essências das culturas de outros países e influenciando a produção
de histórias do
mesmo tipo e até mesmo textos literários narrativos em outros
lugares fora do Japão.
3
Este artigo visa justamente verificar as possíveis influências que
esse gênero
tem sobre a produção literária brasileira atual. Como a construção
das narrativas e
dos arquétipos das personagens podem ser afetadas por elementos
desse gênero
textual. Para tanto, irei primeiramente localizar os Mangás dentro
do grupo dos gêne-
ros textuais, em seguida falarei sobre o processo de construção do
texto narrativo, de
como a Literatura brasileira e a Literatura japonesa se cruzam ao
longo da história e
por fim tratarei sobre como se dão as possíveis influências dos
Mangás na construção
das narrativas aplicando essa teoria a textos ficcionais de
escritores brasileiros atuais.
1 MANGÁS NO GRUPO DE GÊNEROS TEXTUAIS
Os estudos dos Gêneros Textuais vêm ganhando cada vez mais espaço
no
mundo acadêmico, nos últimos anos devido a sua importante função
social e linguís-
tica bem como por conta da sua relevância para o ensino de língua
portuguesa na
sala de aula. Segundo Marcuschi (2008, p. 19), os gêneros textuais
seriam “entidades
sócio discursivas e formas de ação social incontornáveis de
qualquer situação comu-
nicativa”. Desse modo, podemos entendê-los como entidades textuais
que atendem a
necessidade de comunicação de cada indivíduo e expressam sua
intencionalidade
discursiva, podendo variar desde uma simples conversa cotidiana até
uma produção
mais complexa como, por exemplo, um romance literário.
Por conta dessa heterogeneidade que permite infinitas
possibilidades de comu-
nicação a variedade de textos passíveis de serem produzidos é
imensa. Cartas, Con-
tos, Romances, Poemas, entre outros, tudo vai depender da intenção
e da necessi-
dade e comunicação. É nesse contexto que encontramos as histórias
em quadrinhos
(HQs) e os Mangás japoneses.
Segundo Sales (2017, p. 4), “as HQs representam hoje uma mídia de
grande
penetração popular. Elas transmitem conceitos, modos de vida,
visões de mundo e
até informações científicas.” Nesse contexto, elas podem a um só
tempo reunir as
mais variadas informações e situações comunicativas em um só texto,
atrelando a ele
também a imagem, fazendo com que o leitor tenha que usar da
intertextualidade para
compreender o contexto da história.
Ao longo do tempo, essas histórias passaram por várias fases em que
um gê-
nero textual específico foi fundamental a sua produção, construção
textual e dissemi-
nação, principalmente no contexto da América do Norte, onde se
desenvolveram.
4
Contudo, segundo Postema (2018, p. 155), mesmo com todas essas
variações, “en-
quanto os novos formatos ou gêneros foram evoluindo, os anteriores
não desapare-
ceram; desse modo, a linguagem dos quadrinhos atualmente, abrange
uma série de
gêneros e seus “típicos” formatos de publicação.”
Nesse sentido, as HQs são um tipo de texto extremamente adaptável
as mu-
danças e as necessidades comunicativas da linguagem. Assim sendo,
podemos dizer
que elas são capazes de variar dentro de si mesmas, um exemplo
disso é o Mangá
japonês.
Porém, apesar de se enquadrar nas características gerais do texto
em quadri-
nhos, o Mangá tem suas próprias particularidades. Segundo Braga Jr.
(2005), existem
seis elementos que distinguem esse texto dos demais “a estética do
desenho; o layout
e a perspectiva beligerante; a narrativa invertida e leitura
gráfica; estereótipos e temas;
metalinguagem cômica; e, por fim, a noção de tempo e o ritmo
narrativo." Ou seja,
esse gênero difere das HQs com elementos que vão desde os desenhos
que marcam
esse tipo de texto até na forma de leitura dele. Como defendem
Andrade e Carlos
(2013, p.1):
As histórias orientais japonesas, conhecidas como Mangá, possuem
várias ca- racterísticas que as diferem das histórias em quadrinho
ocidentais. O principal fator é que a palavra Mangá não define
apenas a arte sequencial (quadrinhos), mas também é o termo usado
para definir a caricatura, assim como todo traço em papel que
procura ilustrar. Seria uma verdadeira capacidade de captar a
essência das coisas com os traços do pincel, no original
japonês.
Atualmente as histórias em quadrinhos japonesas são vendidas no
esquema
de coletâneas, que variam de tamanho a depender do sucesso da
história, tal qual os
livros em série do ocidente. Hoje, o Mangá vem ganhando cada vez
mais espaço tam-
bém no universo literário como uma nova forma de se contar
histórias, utilizando-se
de recursos das HQs ocidentais aliadas a construção de narrativas
fundamentadas na
cultura japonesa, mas que também recebe influências de outras
culturas de outros
países. De acordo com Andrade e Carlos (2013), sua importância é
tamanha que o
próprio governo japonês criou em 2007 um prêmio internacional para
reconhecer ar-
tistas que incentivam, produzem e disseminam esse tipo de
texto.
É através desse tipo de incentivo que o gênero do Mangá vem sendo
dissemi-
nado ao redor do mundo, principalmente entre os leitores mais
jovens, por conta das
temáticas tratadas em suas tramas. Histórias como The Seven Deadly
Sins, Fullmetal
Alchemist, Sakura Card Captors e Naruto, que saíram das páginas de
papel para as
5
telas de tv no formato de anime, um tipo de desenho animado japonês
que resgata as
características dos desenhos dos Mangás em suas animações, são
exemplos desse
gênero que acabaram sendo reconhecidos internacionalmente graças
aos seus fãs.
Na visão de Andrade e Carlos (2013, p. 3):
Podemos dizer que diversos Mangás que chegam a todos os pontos do
mundo têm virado verdadeiras mercadorias para comercialização, para
trazer lucros para seus autores e para as editoras originais que os
publicam. Histórias fan- tásticas sobre piratas, ninjas,
lutadores... temas reconhecidos em todas as par- tes do mundo, ou
até mesmo histórias simples, que fazem o leitor se reconhe- cer
dentro das situações apresentadas, têm sido bem-sucedidos ao redor
do mundo.
Tudo isso deixa evidente que o Mangá está entre os principais
gêneros textuais
da atualidade, não apenas pelas temáticas significativas de suas
histórias, mas, prin-
cipalmente, por atender as necessidades comunicativas de
determinado grupo de in-
divíduos e estabelecer entre eles um processo de comunicação
verossímil, através de
uma linguagem que mistura a estrutura das HQs com os traços
japoneses.
Assim, agora que compreendemos como o Mangá se encaixa entre os
gêneros
textuais precisamos compreender como se dá o processo de construção
de narrativas.
2 A CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS
Para que possamos entender como funciona o processo de construção
de tex-
tos narrativos, é necessário que primeiro pensemos em como se dá o
processo da
própria escrita. Partindo do ponto de vista histórico, a escrita é
um dos grandes marcos
divisores de águas da humanidade, existe o ser humano pré e
pós-escrita. Segundo
Harari (2016, p. 174), “a linguagem escrita pode ter sido concebida
como um meio
poderoso de reformatar a realidade. Quando relatórios oficiais
colidiram com a reali-
dade objetiva, foi a realidade que teve de se render.”
Através dessa concepção fica claro o poder que a palavra escrita
deu ao ser
humano. Através dela podemos modificar até mesmo a realidade,
fazendo com que
ela tenha que condizer com o que está escrito. De certo modo, a
palavra falada perde
seu valor com o advento da escrita. Ela também nos proporcionou a
capacidade de
registrar, armazenar e disseminar conhecimentos de forma
exponencial e de tal ma-
neira que hoje produzimos mais conhecimento do que somos capazes de
absorver.
No entanto, quando falamos da construção de narrativas, devemos
entender
que as histórias narradas surgiram muito antes da escrita. Gêneros
textuais como o
6
conto surgiram a partir da nossa necessidade de comunicação básica,
ou seja, os
seres humanos sempre gostaram de contar histórias. Do ponto de
vista de Harari
(2016, p.164):
Tudo começou 70 mil anos atrás, quando a Revolução Cognitiva
permitiu que o Sapiens começasse a falar de coisas que só existiam
na sua imaginação. Nos 60 mil anos seguintes, o Sapiens teceu
muitas teias ficcionais, mas elas continuavam a ser pequenas e
locais.
Assim surgem as primeiras narrativas partindo do que hoje
conhecemos como
os mitos e as lendas. Essas histórias, tradicionalmente eram
transmitidas a partir da
linguagem oral e permaneciam apenas no meio em que nasceram tendo
sentido ape-
nas para aqueles que as criaram. De acordo com Campbell (2007,
p.15):
Em todo mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as
circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma,
esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os demais produtos
possíveis das atividades do corpo e da mente humanos.
Foi através dessas narrativas ficcionais que os primeiros grupos
humanos pu-
deram começar a compreender o mundo a sua volta, bem como a
questionar a reali-
dade e desenvolver a literatura e as ciências. Mais tarde com a
escrita esses conhe-
cimentos se tornaram cada vez mais complexos, contemplando áreas
além dos textos
narrativos.
Entrementes, o próprio gênero narrativo acabou por se desenvolver e
se sub-
dividir em tipos de textos narrativos, cada um com sua
especificidade comunicativa,
indo de narrativas curtas como a crônica narrativa até os grandes
romances da litera-
tura mundial. Então, conforme Vogler (2006, p. 49), “essas
histórias são modelos de
como funciona a mente humana, verdadeiros mapas da psique. São
psicologicamente
válidas e emocionalmente realistas, mesmo quando retratam
acontecimentos fantás-
ticos, impossíveis ou irreais.”
Podemos entender, então, que a complexidade dessas histórias está
intrinse-
camente ligada ao desenvolvimento da própria mente humana e toda
sua carga de
relações de significação entre o real e o não real. Isso, por sua
vez, influencia direta-
mente a construção dessas narrativas e o seu processo de
escrita.
A elaboração dessas histórias é algo que demanda não apenas o
conhecimento
técnico da língua, mas também uma serie de conhecimentos
transversais que englo-
bam outras tantas áreas partindo do conhecimento de mundo do
escritor até tudo o
7
que ele sabe ou possa vir a descobrir sobre o objeto de sua
escrita. Além disso, deve-
se ainda levar em consideração aquele que lerá a história após sua
finalização.
Através dessa visão da escrita tida como expressão do pensamento e
do de-
sejo de comunicação do escritor que domina a sua língua, ações e
saberes Koch e
Elias (2014, p. 35, apud TORRANCE; GALBRAITH, 1999) entendem:
A escrita como a atividade de produção textual que se realiza,
evidentemente, com base em elementos linguísticos e na sua forma de
organização, mas re- quer no interior do evento comunicativo, a
mobilização de um vasto conjunto de conhecimentos do escritor, o
que inclui também o que esse pressupõe ser do conhecimento do
leitor ou do que é compartilhado por ambos.
A narrativa pode, então, ser entendida como a capacidade de se
colocar todos
esses conhecimentos numa sequência lógica de acontecimentos que
ocorrem em um
determinado lugar, num determinado tempo e com determinadas
pessoas/persona-
gens. Conforme Alves (2014, p. 189):
Contar, envolve a organização de uma série de atos e acontecimentos
em su- cessão, reais ou imaginários, e o modo narrativo está
presente em diferentes materiais semiológicos além dos textos
verbais, por exemplo, nos filmes, his- tórias em quadrinhos e peças
de teatro.
Isso nos permite compreender como a construção do pensamento e dos
co-
nhecimentos do escritor e do que ele pressupõe que o leitor
conhece, influenciam na
construção de narrativas, que vão além das histórias narradas em
livros, mas que
também está presente em outros gêneros que contam histórias como os
filmes, séries
de tv, histórias e quadrinhos e Mangás japoneses, por exemplo.
Agora é preciso que
haja uma compreensão de como a literatura brasileira e a literatura
japonesa se cru-
zam.
3 A LITERATURA BRASILEIRA E A INFLUÊNCIA JAPONESA
A Literatura Brasileira começa a ter influências da cultura
japonesa a partir de
meados do final do século XIX e início do XX quando começaram as
primeiras rela-
ções diplomáticas entre Brasil e Japão. Aluísio de Azevedo foi um
dos primeiros es-
critores brasileiros a tratar sobre essa mistura de culturas em
nossa literatura, princi-
palmente devido ao seu papel como vice-cônsul do Brasil no Japão no
final do século
XIX.
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As primeiras trocas entre nossas culturas se deram através do
próprio idioma,
com a emigração de japoneses para o Brasil, houve uma adoção
significativa de pa-
lavras de origem nipônica ao nosso idioma, tanto na literatura
quanto na oralidade. De
acordo com Vejmelka (2014, p. 213), a produção literária nesse
período “é uma pro-
dução limitada, muito influenciada pelos modelos europeus
contemporâneos, nomea-
damente o Japonismo e o Orientalismo.”
Entretanto essas produções textuais não vão ganhar espaço na nossa
literatura
até o movimento do Modernismo e só irão mesmo começar a ganhar um
pouco mais
de notoriedade a partir da década de 1980, quando começam a surgir
os primeiros
escritores considerados nipo-brasileiros, que em seus textos irão
além dos simples
registros sobre a comunidade japonesa no Brasil, se aventurando em
outros aspectos
literários, como o relato de memória, as biografias e
autobiografias, mas ainda sem
destaque entre as obras da nossa literatura.
Muitos romances de origem japonesa, ficcionais e não-ficcionais vão
ser consi-
derados de grande importância para o registro histórico da
imigração desse povo para
o nosso país, Vejmelka, em seu artigo O Japão na Literatura
Brasileira (2014), cita
vários exemplos como Sonhos bloqueados, de Laura Honda-Hasegawa
(1991), o es-
tudo histórico de O imigrante japonês, de Tomoo Handa (1987), entre
outros.
Entretanto, segundo ele, o primeiro romance desse gênero a ganhar
notorie-
dade na nossa literatura vai ser Nihonjin, de Oscar Nakasato
(2011), que acaba ga-
nhando o prêmio Jabuti, um dos maiores e mais importantes prêmios
literários nacio-
nais, em 2012 na categoria de melhor romance.
Hoje existe uma presença notável de influências da cultura japonesa
em nossa
literatura, as adaptações das obras de grandes escritores
brasileiros, como é o caso
do livro Helena de Machado de Assis, para gêneros textuais
tipicamente japoneses
como o Mangá, são um exemplo disso. A história foi adaptada para o
formato clássico
dos quadrinhos japoneses pelo Studios Seasons em 2014.
Essa não é a primeira obra clássica da nossa literatura a ganhar
nova roupa-
gem como uma HQ, mas é a primeira de Machado de Assis a adotar o
estilo dos
Mangás japoneses demonstrando que com a difusão desse gênero pelo
mundo cada
vez mais ele influencia as novas gerações de escritores e leitores.
Ela também quebra
o paradigma de que os Mangás só são escritos no Japão.
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Contudo, o processo inverso também vêm a ocorrer, não são apenas as
histó-
rias narrativas ou os clássicos que acabam por se tornar Mangás,
alguns novos escri-
tores vêm utilizando elementos desse gênero textual em suas obras
narrativas e é
justamente sobre esse aspecto que tratarei a seguir.
4 MANGÁS X NARRATIVAS: INFLUÊNCIAS POSSÍVEIS
Muitos jovens autores que cresceram lendo HQs e Mangás vêm se
utilizando
de vários recursos do gênero, seja em obras não reconhecidas por
editoras e publica-
das em plataformas online como o Wattpad ou em obras publicadas
através de pe-
quenas editoras que utilizam plataformas de auto publicação para
divulgar obras de
novos escritores, como é o caso do escritor J. P. Archanjo em seu
livro Mitópolis, onde
vivem os novos monstros de 2017, que começou a ser publicado online
e graças ao
grande número de leitores foi publicado por uma dessas editoras, a
Lua de Papel.
Porém, é preciso lembrar que as narrativas literárias não surgem do
nada, o
autor recebe influências de tudo o que acontece a sua volta e
escreve sobre isso,
direta ou indiretamente. De acordo com Vogler (2006, p. 49), o que
essas narrativas
têm ou terão em comum é que:
Tratam de questões universais e simples, que podem até parecer
infantis. Quem sou eu? De onde eu vim? Para onde vou quando morrer?
O que é o bem e o que é mal? Como devo agir com o bem e o mal? Como
será o amanhã? Para onde foi o ontem? Será que tem alguém lá em
cima?
Nesse contexto, é impossível dissociar o Mangá da própria cultura
japonesa,
visto que esses textos estão carregados de seus elementos
psicológicos, sociais e
mitológicos, mesmo em Mangás “não-japonesas”.
Conforme tratado anteriormente, contar uma história envolve muito
mais que
apenas encadear fatos numa ordem de sentidos, principalmente por
que narrar al-
guma coisa é o que fazemos na maior parte do tempo desde sempre.
Segundo Mou-
tinho e De Conti (2016, p. 1), “narramos hoje e narramos sempre.
Narramos sobre um
dia de trabalho, acontecimentos na família. Narramos sobre nós
mesmos, o que nos
é importante, pessoas com as quais lidamos.”
Diante disso e da popularização da literatura japonesa no Brasil,
podemos pres-
supor que a leitura de gêneros textuais como o Mangá pode acabar
influenciando na
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construção do enredo das narrativas, dos arquétipos das personagens
e nos univer-
sos em que elas vivem. Afinal:
Ao contarmos uma história, circunscrevemos os personagens no tempo
e no espaço, abrimos a possibilidade para tratar os personagens em
processo de transformação e, no enredo, colocamos os personagens em
relação uns com os outros, criando um mundo social no qual os
personagens entram em conflito e emergem com qualidades morais.
(MOUTINHO E DE CONTI, 2016, P. 01)
Na obra de J. P. Archanjo, citada anteriormente, encontrei essas
influências
não apenas nas personagens, mas no enredo e no espaço onde essa
trama se de-
senrola. O autor se utiliza de variadas outras referências para
construir arquétipos e
cenários na trama, mas para este artigo partirei dos elementos
japoneses presentes
no enredo e na caracterização das personagens.
Mitópolis, onde vivem os novos monstros conta a história de P. um
jovem hí-
brido de humano e dragão que foi amaldiçoado e vive uma vida um
tanto azarada
onde tudo parece não dar certo para ele nunca. O universo da trama
é apresentado a
partir de seu ponto de vista, nos revelando logo nas primeiras
páginas quem é essa
personagem, que vive amargurada por conta de sua sina. Mas é também
aqui que
podemos encontrar as primeiras referências as características das
personagens pre-
sentes no Mangá.
P. é um híbrido amaldiçoado, exatamente como outros tantos
personagens da
cultura das HQs japonesas como Naruto que em sua história é
amaldiçoado com o
espirito da Kyuubi/Kitsune a raposa de nove caudas da mitologia
japonesa, ou ainda
o Ichigo Kurosaki do Mangá Bleach que também acaba por ser
amaldiçoado com o
poder de ver os mortos e acaba ganhando a tarefa de encaminhar suas
almas para o
paraíso.
Figura 1: Raposa de nove caudas - retirada do Mangá Naruto vol. 01
(Editora: Panini, 2015)
11
O que todos eles têm em comum é o fato de precisarem se adaptar as
suas
novas vidas e poderes. No livro de Archanjo (2017, p.15), P.
expressa suas caracte-
rísticas da seguinte forma:
Por mais que eu sentisse saudades do dia, ainda não havia enjoado
da vida noturna. Meus sentidos ficavam mais aguçados, podia andar
em plena forma sem ter que disfarçar meu rabo escamoso. De dia eu
era apenas um mané, olhos castanhos, cabelos pretos e pele morena
clara, alguém com quem você esbarra por aí e nem se dá ao trabalho
de se desculpar. A noite tudo mudava: meus olhos acendiam verdes
fluorescentes e com ele vinha uma visão plena (mesmo meu lado
humano sendo ridiculamente míope).
É possível também perceber, através da descrição do narrador
personagem,
as características dos traços exagerados e misteriosos que as
criaturas ilustradas nos
Mangás também possuem, além da presença do dragão uma outra
criatura típica do
folclore japonês.
Essas referências se repetem ao longo de todo o enredo, aparecendo
aqui e
ali mescladas com criaturas mitológicas japonesas e de outras
mitologias como é o
caso dos sonhos de P. com o Youkai, outra criatura dos mitos
japoneses que no ro-
mance aparece com uma espécie de guia que aparece nos sonhos da
personagem
para ajuda-lo em momentos mais difíceis.
Figura 2: Ichigo Kurosaki em sua batalha com Zangetsu – re- tirada
do Mangá Bleach vol. 684 (Editora: Panini, 2018)
12
Outro escritor que também têm em sua obra uma presença recorrente
de ele-
mentos da cultura japonesa e do gênero textual do Mangá é Raul G.
M. Silva em sua
obra A Lenda dos Cinco Povos, a terra de Almar. O livro conta a
história de quatro
amigos que vão parar num universo paralelo após irem investigar um
estranho inci-
dente numa casa abandonada da cidade em que moravam. Ao chegarem
nesse novo
universo cada um acaba recebendo um poder mágico ligado a um
elemento natural
específico, fazendo com que cada um se torne um mestre no domínio
desse elemento
através da manipulação da natureza.
Na história o poder de cada personagem é representado por um
circulo mágico,
tal qual os poderes de Sakura em Sakura Card Captors que ao usar
sua magia tam-
bém a expressa por um circulo de magia, ou dos Alquimistas do Mangá
Fullmetal
Alchemist que também usam desenhos e círculos alquímicos para
expressar os seus
poderes mágicos no mundo real. Na história, em meio a uma batalha,
uma das perso-
nagens usa seus poderes e Silva (2013, p. 43) descreve a aparição
primeira aparição
desse elemento da seguinte forma “Nesse instante, Arthur viu algo
surgir e desapare-
cer no chão à volta dele e de Arverardo. Era um grande círculo de
linhas douradas e
foi apenas isso que ele conseguiu distinguir.”
Figura 3: Sakura usa seus poderes para capturar uma Carta Clow,
através da magia dos elementos - retirado do Mangá Sa- kura Card
Captors vol. 01 (Editora: JBC, 2013)
13
Mais tarde, na trama quando o personagem aprende a usar seus
poderes má-
gicos ele ganha seu próprio círculo mágico, no qual também estão
presentes os ele-
mentos alquímicos e outros elementos presentes em tramas de Mangás
e Animes. Na
descrição de Silva (2013, p. 65):
E um grande círculo mágico apareceu sob os pés de Albrair, era
ilustrado pelo sol que dominava o seu centro e pela lua que estava
a esquerda do astro prin- cipal, em quatro cantos nas bordas do
círculo pequenas bolinhas demarcavam as quatro direções sagradas do
Ar e em cada uma delas uma runa diferente fora caprichosamente
desenhada. Do círculo emanava uma luz dourada, um pouco esverdeada
ao mesmo tempo.
Figura 4: Alphonse e Edward Elric tentando usar a transmutação
humana para trazer sua mãe de volta a vida - retirado do Mangá Full
Metal Alchemist (JBC, 2016)
14
A diferença clara dos dois gêneros reside no fato dos recursos
imagéticos, no
Mangá temos a expressão desses recursos através da imagem
caricaturada dos de-
senhos, enquanto no texto literário temos apenas as descrições
escritas desses ele-
mentos pelo narrador da história.
Em linhas gerais, embora essas características não sejam exclusivas
do
Mangá, pode-se dizer que existe uma miscigenação de culturas nas
obras, entre as
quais está presente de maneira bastante recorrente a japonesa,
influenciando direta-
mente na construção de arquétipos de personagens e cenários. A
influência das per-
sonagens de Mangás populares é algo cada vez mais comum diante da
nova varie-
dade de escritores e leitores desse gênero e da difusão desse tipo
de HQ pelo mundo,
cruzando as fronteiras não apenas de seu país de origem, mas também
de sua cultura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise realizada neste artigo permitiu concluir que, mesmo o
Mangá sendo
um texto que usa recursos e características das Histórias em
Quadrinhos, não pode-
mos considerá-lo um subgênero desse texto, visto que o Mangá possui
características
próprias com seus desenhos monocromáticos e traço exagerado, sua
própria noção
de tempo narrativo, as variadas temáticas de que tratam suas
histórias e sua ordem
de leitura que é inversa a das HQs do ocidente.
Além disso, esse gênero textual tem hoje uma distinção natural do
universo
comum das HQs, ao ponto de ser produzida em todo mundo para as mais
variadas
faixas etárias atendendo das crianças até o público adulto. No
Brasil, ela vem ga-
nhando cada vez mais espaço, principalmente pelo fato de nosso país
possuir a maior
comunidade de japoneses e descendentes de japoneses fora do Japão e
desse texto
vir ganhando cada vez mais espaço principalmente entre o público
mais jovem.
Por essa razão, o Mangá acaba influenciando a construção das
narrativas e
dos arquétipos de personagens dos escritores de ficção e fantasia
mais jovens e des-
conhecidos, que encontram na internet e em plataformas de auto
publicação espaço
para a divulgação de suas obras, isso acabou trazendo para o
contexto literário das
narrativas brasileiras as características dos quadrinhos japoneses
e também de suas
temáticas, ao mesmo tempo que abriu espaço para o desenvolvimento e
a dissemi-
nação da literatura japonesa no Brasil.
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Graças a essa afinidade com esse gênero e por ser um autor que
encontrou
inspiração nele para minha própria produção textual, buscou-se
verificar nesta pes-
quisa se o Mangá poderia de fato estar sendo uma influência para
outros escritores
nos dias de hoje. Ao final, ficou claro que não podemos
desconsiderar essa possibili-
dade, mesmo que não seja a única fonte possível para pesquisa ou
influência na pro-
dução do texto literário, ele é capaz de incentivar a inovação nas
temáticas das histó-
rias e também na forma de escrever dos autores bem como no modo
como as suas
personagens são construídas.
Assim, posso afirmar que o Mangá faz cada vez mais parte do
cotidiano de
leituras do nosso país e acredito que ainda tenha muito a
contribuir para a nossa lite-
ratura. No mais, espera-se que este trabalho possa auxiliar no
esclarecimento sobre
esse gênero textual, que as vezes é malvisto e até mesmo
considerado um subgê-
nero, de modo que mais pessoas possam se interessar por sua leitura
e as possibili-
dades de escritas diferenciadas que ele oferece.
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