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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ivan Canoletto Rodrigues
Chagas da Exclusão:
Internação Compulsória e Leprosário do Padre Bento
(São Paulo 1930-1986)
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
SÃO PAULO
2016
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ivan Canoletto Rodrigues
Chagas da Exclusão:
Internação Compulsória e Leprosário do Padre Bento
(São Paulo 1930-1986)
Mestrado em História Social
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre
em História Social sob orientação da Profa. Dra.
Maria Izilda Santos de Matos.
SÃO PAULO
2016
3
Banca Examinadora
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_____________________________________
_____________________________________
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A presente pesquisa foi realizada com o apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
5
Agradecimentos:
A trajetória de uma pesquisa é um trabalho árduo, de um longo percurso, que
jamais conseguiria ter percorrido sozinho, sou muito grato a todos que me auxiliaram e
acompanharam.
Agradeço à minha esposa e filha, pela compreensão de minhas várias ausências e
incentivo para sempre seguir em frente.
Aos meus pais, que sempre me estimularam e, em alguns momentos financiaram
meus estudos.
Aos grandes amigos Márcio Hasegava e Allan Santana, pelos momentos de
reflexão que compartilhamos, assim como as necessárias horas de lazer. Companheiros
com quem pude contar sempre.
Ao Leonardo Guandeline, amigo e revisor deste trabalho, pelas dicas e pelos
atendimentos nos horários mais inoportunos.
A todos os meus colegas da PUC-SP, que comigo compartilharam
conhecimento, mas também angústias, aflições, e momentos de descontração. Destaco
dois deles, que foram grandes parceiros ao longo desse mestrado, Carlos Assis e Carlos
Eduardo, mais conhecido como Caê.
A todos os professores da PUC-SP, sempre muito atenciosos e com sugestões
valiosas, tendo notório prazer em compartilhar seu vasto conhecimento acumulado.
Às Professoras Tânia Soares da Silva e Mirtes de Moraes, que compuseram
minha banca de qualificação, foram extremamente amáveis, e com sugestões bastante
contributivas.
Finalizo agradecendo à pessoa sem a qual este trabalho não seria possível, à
minha orientadora, Profa. Dra. Maria Izilda Santos de Matos, que ao longo da pesquisa
foi a responsável pela ampliação da minha visão sobre História, sempre fazendo
apontamentos fundamentais, prestativa em seus atendimentos, compartilhando de
maneira generosa sua vasta experiência. Um exemplo de historiadora e competência.
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Resumo
A presente pesquisa trata da internação compulsória dos hansenianos no Estado
de São Paulo, bem como dos fatores que motivaram a institucionalização desse
processo, sua influência no cenário nacional e suas consequências para as pessoas por
ele diretamente atingidas. Além disso, apresenta elementos do cotidiano de um
leprosário, tomando como objeto o Sanatório Padre Bento, em Guarulhos, considerado
uma referência dentro do sistema de asilos-colônias (leprosários).
As internações compulsórias se intensificaram a partir dos anos 1930,
estendendo-se até 1986. Entretanto, suas consequências reverberam até os dias atuais, já
que as pessoas internadas tiveram suas famílias desmanteladas, passaram muitos anos
isoladas da sociedade e ainda sofrem com o estigma da doença, o que dificultou em
muito sua reinserção social após as liberações dos leprosários, fazendo com que alguns
optassem por continuar vivendo nos alojamentos dessas instituições.
Nos anos 1930, pouco se sabia sobre as formas de transmissão da hanseníase. O
único vetor conhecido era o próprio doente, fazendo com que a reclusão e o estigma
fossem apresentados como uma necessidade no combate à lepra. Entretanto, a pesquisa
indica que os motivos para tal medida não eram exclusivamente médicos, havendo
influência da medicina higienista e até mesmo de ideias eugenistas, sendo a exclusão
utilizada como forma de “limpeza” social. Isso está relacionado ao contexto de
modernização e industrialização que o Brasil e, especialmente, São Paulo estavam
passando.
Mesmo com boa parte dos leprosários contando com ampla estrutura e da
tentativa dos internos de ter um cotidiano próximo da realidade externa, foram muitos
os anos de cerceamento da liberdade sem existência de uma cura ou tratamento. As
consequências drásticas dessa medida autoritária fizeram com que os hansenianos
iniciassem uma luta enquanto movimento social, na busca por ressarcimentos por parte
do Estado.
Palavras-chave: Lepra, hanseníase, internação compulsória, Sanatório Padre Bento,
asilos-colônia, leprosário, isolamento.
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Abstract
This research deals with the compulsory hospitalization of leprosy in São Paulo,
as well as the factors that led to the institutionalization of this process, its influence on
the national scene and its consequences for the people directly affected by it. Besides, it
presents everyday elements of a leprosarium, taking as object the Sanatorium Padre
Bento, in Guarulhos, considered a reference in the nursing homes colonies system
(leprosariums).
Compulsory admissions intensified from 1930, extending through 1986.
However, its consequences reverberate to the present day, matter of fact the hospitalized
people had their families dismantled, spent many years isolated from society and still
suffer from the stigma of the disease, making it difficult in much social reintegration
after the release of leprosariums, causing some chose to continue living in the
accommodation of these institutions.
In the 1930s, little was known about the modes of transmission of leprosy. The
only known vector was the patient himself, causing the incarceration and stigma were
presented as a necessity in the fight against leprosy. Meantime, the research indicates
that the reasons for such a measure were not strictly medical, with influence of hygienist
medicine and even eugenic ideas, exclusion being used as a means of social "cleaning".
This is related to the modernization and industrialization context that Brazil and,
especially, São Paulo were passing through.
Even with most of the leprosariums counting with great structure and the attempt
of the inmates to have as close as possible to the everyday reality out there, there were
many years of restriction of freedom without existence of a cure or treatment. The
drastic consequences of this authoritarian measure caused the leprosy initiate a fight as a
social movement, in seeking remedies from the State.
Keywords: Leprosy, Compulsory admissions, Padre Bento Sanatorium, nursing homes
colonies, leprosariums, isolation.
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Sumário:
Apresentação..................................................................................................................11
1 – Hanseníase, Internação Compulsória e “Modelo Paulista”.................................19
1.1 - Hanseníase: Doença e Profilaxia.............................................................................19
1.2 – Estratégias de Controle: “modelo paulista”............................................................28
1.3 –Brasil de Vargas: políticas, práticas e influências...................................................38
2 – Leprosário do Padre Bento: Padrão, Caixa Beneficente e Pérgola....................47
2.1 – Leprosário Padre Bento: padrão, gestão e práticas.................................................47
2.2 – Caixa Beneficente: ações e fraudes........................................................................62
2.3 – Pérgola: encontros e desencontros..........................................................................71
3- Internação Compulsória: finalização e lutas..........................................................81
3.1- Esperança: tratamentos e cura..................................................................................81
3.2 – Retorno á sociedade: preconceitos e lutas..............................................................91
Considerações Finais...................................................................................................106
Referencias...................................................................................................................110
Anexo............................................................................................................................115
Lista de Fotografias:
Fotografia 1 - Doentes de hanseníase e seus acampamentos à beira da estrada.............34
Fotografia 2 - Planta do Sanatório Padre Bento feita no ano de 1952.............................50
Fotografia 3 - Planta do Pavilhão Central do Sanatório Padre Bento.............................50
Fotografia 4 - Planta de uma das Alas do Pavilhão Masculino do Sanatório Padre
Bento................................................................................................................................51
Fotografia 5 - Casas de propriedade da Caixa Beneficente no Sanatório Padre Bento..52
Fotografia 6 - Tipo de residência para grupos de leprosos, reunidos de acordo com sua
condição social e forma clínica da doença, no Sanatório Padre Bento...........................52
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Fotografia 7 - Artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa Beneficente
(1943)...............................................................................................................................55
Fotografia 8 - Lista de fugas ocorridas de janeiro a junho de 1938, encontrada no Livro
de Registros do Sanatório do Padre Bento......................................................................59
Fotografia 9 - Capa do primeiro exemplar da Revista Padre Bento, dezembro de
1932.................................................................................................................................62
Fotografia 10 - Capa do segundo exemplar da Revista Padre Bento, fevereiro de
1933.................................................................................................................................63
Fotografia 11 - Artigo publicado na Revista Padre Bento, em 1933. Caixa
Beneficente.......................................................................................................................65
Fotografia 12 - Anúncio publicado na Revista Padre Bento, em 1932...........................68
Fotografia 13 - Foto atual da Pérgula, monumento tombado, no Hospital do Padre
Bento................................................................................................................................71
Fotografia 14 - Artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa
Beneficente (1937)..........................................................................................................74
Fotografia 15 – Fotocópia do artigo: “Surram e Torturam as Crianças no Educandário
Sta. Terezinha.” Jornal A Última Hora. São Paulo, 2 de agosto de 1957. Caderno 1,
p.7.)..................................................................................................................................78
Fotografia 16 – fotocópia do artigo: Homenagem a D. Margarida Galvão: 40 Anos de
Esforço em Prol dos Filhos dos Hansenianos. Jornal O Diário de S. Paulo. São Paulo, 27
de setembro de 1957........................................................................................................79
Fotografia 17 – Cena do filme “Onde a esperança mora”, de 1948................................82
Fotografia 18 – Cena do filme “Onde a esperança mora”, de 1948................................82
Fotografia 19 – Cena do filme “Onde a esperança mora”, de 1948................................83
Fotografia 20 - Artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa
Beneficente (julho de 1944)............................................................................................86
10
Fotografia 21 – Número de curas, Revista Tópicos, ano de 1952...................................89
Fotografia 22 – Número de curas, Revista Tópicos, ano de 1955...................................90
Fotografia 23 – Reprodução de fragmento da notícia: “ Em SP, filhos de hansenianos
lutam por indenização”. Jornal Estadão. São Paulo, 21 de março de 2011...................101
Lista de Figuras:
Figura 1 – Distribuição da lepra na Província de São Paulo em 1851............................35
Figura 2 – Distribuição da lepra no estado de São Paulo em 1923.................................36
Lista de Quadros:
Quadro 1 - Organograma do Departmento Nacional de Saúde Pública em 1928...........24
Quadro 2 – Plano de construções de leprosários em 1935..............................................30
Quadro 3 – Distribuição da lepra na Província de São Paulo em 1887...........................35
Quadro 4 – Distribuição da lepra no estado de São Paulo em 1923................................36
Quadro 5 – Gráfico da proporcão de internados e de novos doentes de 1924 a 1937.....43
Quadro 6 – Leprosários construídos apenas com verbas federais...................................45
Quadro 7 - Leprosários construídos com parcerias entre governos estaduais e a
União...............................................................................................................................46
Quadro 8 – Números de casos de hanseníase identificados no estados brasileiros no ano
de 2013..........................................................................................................................103
11
Apresentação:
Nesse trabalho, analisarei a internação compulsória dos hansenianos no Estado
de São Paulo e, mais especificamente, o Leprosário do Padre Bento, considerado
modelo, localizado na cidade de Guarulhos.
O trabalho abrange o período do decreto da internação, em 1930, analisando
suas motivações; passando pelo seu final legal, em 1962; e estendendo-se a 1986,
quando, na prática as internações pararam de ocorrer; não deixando de analisar como a
liberação dos internados e seu retorno a sociedade ocorreram e as implicações do
período de isolamento.
O leitor pode estranhar a utilização da palavra lepra em alguns momentos, sendo
substituída por hanseníase em outros. Isso ocorre porque até os anos de 1970 o termo
hanseníase não era difundido, sendo adotado posteriormente para amenizar o peso do
estigma carregado pelos doentes e pela palavra lepra ou leproso.
A escolha do tema, primeiramente, ocorreu por questões pessoais. Sendo
morador de Guarulhos e usuário do atual Hospital Padre Bento, antigo leprosário, essa
temática, ligada à história da cidade, sempre me despertou interesse. Ainda na
graduação em História, que realizei numa faculdade em Guarulhos, fui bastante
estimulado pelos professores a trabalhar com a história local, abraçando desde então
esse tema.
Dei-me conta da necessidade de se resgatar uma parte da história dos excluídos
da História1, as experiências deixadas de lado pela historiografia tradicional, como as de
prisioneiros, mulheres, operários.
Recentes preocupações da historiografia com a descoberta de
"outras histórias" vêm favorecendo os estudos que contemplam
diferentes abordagens do passado. Por outro lado, esses trabalhos
têm contribuído de modo significativo para a renovação temática
e metodológica, ao redefinir e ampliar noções tradicionais e ao
permitir o questionamento das polarizações em categorias
abstratas e universais, abrindo possibilidades para a recuperação
de experiências passadas até então pouco valorizadas.
1 PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
12
Nas últimas décadas, a produção historiográfica vem passando
por um conjunto de transformações, poderíamos dizer que por
razões internas e externas os estudos históricos se reformularam
intensamente a partir da crise dos paradigmas tradicionais da
escrita da história, que requeria uma completa revisão dos
instrumentos de pesquisa.
Essa crise de identidade da história levou à procura de "outras
histórias", ampliando desse modo o saber histórico e
possibilitando a descoberta de outras abordagens.
A Nova História, ao propiciar um avanço considerável na
historiografia - tanto pela ampliação das áreas de investigação
como pela utilização da metodologia e marcos conceituais
renovados, dinamizando as relações sociais e modificando os
paradigmas históricos - influenciou a abertura de perspectivas
para outros estudos, como os do cotidiano.
Contudo, foi influência marcante a descoberta do político no
âmbito do cotidiano, o que levou a um questionamento sobre as
transformações da sociedade, o funcionamento da família, o
papel da disciplina e das mulheres, o significado dos fatos, gestos
e sentimentos.2
Explorar esses novos objetos, com uma gama diferente de fontes, torna-se
possível na historiografia contemporânea graças à ampliação das esferas do político e ao
relativismo pós-moderno, que destroem a tradicional distinção entre o que é central e o
que é periférico na História, levando os pesquisadores da área a ampliarem seus objetos
de estudo, focando a análise, e não mais o “fato”.3
Isso se dá com a ruptura do tradicional positivismo dos grandes feitos políticos
e militares. Ou até mesmo de um marxismo engessado e esquemático, de uma História
sem carne, que não enxerga o materialismo histórico como método de análise, o
transformando numa fórmula que se aplica a qualquer realidade, limitando-o muitas
vezes a um determinismo econômico, uma distorção propalada por Althusser, entre
outros.
Junto com a ampliação dos temas e objetos de estudos para o historiador, abre-se
um leque de novas fontes a serem adotadas e analisadas como documentos históricos. O
estudo contempla essa nova gama de fontes, utilizando documentos institucionais do
Leprosário do Padre Bento, como lista de fugas de internos, despachos e compras
realizadas. Também uma revista de circulação interna no Leprosário, subsidiada pela
Caixa Beneficente, na qual há não só publicações de um editorial, como também um
2 MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de Emoções: Corpos, subjetividades e
sensibilidades. São Paulo: Editora EDUSC, 2005. 3 Ibid.
13
espaço para os internos se manifestarem, um documento de grande riqueza e variedade,
com reportagens, artigos, espaço para comunicados da administração, divulgação de
atividades e de resultados dos jogos realizados dentro do Leprosário etc.
A revista, listas de fugas e demais documentos ligados especificamente ao
Sanatório do Padre Bento foram encontrados em pesquisa no próprio acervo do atual
Hospital do Padre Bento, após longa conversa com seu cuidador, Sr. Domingos, antigo
funcionário que acabou se tornando uma fonte também, com riquíssima entrevista
concedida.
Os documentos relativos à institucionalização foram conseguidos no Arquivo
Público do Estado de São Paulo, em visita virtual, e nos anais do poder Legislativo,
também disponíveis para consulta na internet.
Além disso, foi de grande valia a análise de um livro de memórias de um ex-
interno, Sr. Arnaldo Rúbio, intitulado “Eu denuncio o Estado”.
Essa documentação ajuda a compreender parte do cotidiano dos internos, bem
como evidencia seus anseios e a repercussão de uma possível cura. A revista
mencionada permite questionar o conturbado momento do mundo fora do leprosário
reverberou lá dentro. É possível encontrar menções ao nazismo, aos horrores da guerra e
à vitória do “Tio Sam” em poemas e artigos produzidos pelos internos e publicados,
mas também as atividades realizadas na busca de um cotidiano próximo à vida fora do
leprosário, algo difícil de ser atingido, considerando-se a condição de doentes que se
encontravam e os dolorosos tratamentos experimentais a que eram submetidos.
Além da documentação escrita, o estudo conta também com o subsídio da
História Oral, da memória e suas reminiscências. Foram realizadas duas entrevistas,
uma com um ex-interno e outra, com um funcionário, ambos do Sanatório do Padre
Bento.
Metodologicamente, a História Oral trabalha com a memória dos indivíduos,
sabendo que essa é pessoal, submetida a influências do meio e outras subjetividades,
tornando a análise dos depoimentos uma tarefa difícil, porém rica.
A essencialidade do individuo é salientada pelo fato de a
História Oral dizer respeito a versões do passado, ou seja, à
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memória. Ainda que essa seja sempre moldada de diversas
formas pelo meio social, em última análise, o ato e a arte de
lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A
memória pode existir em elaborações socialmente estruturadas,
mas apenas os seres humanos são capazes de guardar
lembranças. Se considerarmos a memória um processo, e não
um depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança
da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas
quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é
um processo individual, que ocorre em um meio social
dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e
compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser
semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese
alguma as lembranças de duas pessoas são – assim como as
impressões digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes –
exatamente iguais.4
A história oral também é definida como: [...] um método de
pesquisa (histórica, antropológica, sociológica, etc.) que
privilegia a realização de entrevistas com pessoas que
participaram de, ou testemunharam acontecimentos,
conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do
objeto de estudo.5
Os autores supracitados fornecem informações de grande valia tanto no que
tange à essência e importância da oralidade na construção da História como no que diz
respeito às ferramentas e métodos na hora fundamental de conseguir os depoimentos.
Conforme sugerem tais apontamentos, um roteiro previamente organizado
auxilia a conduzir as entrevistas, incluindo esclarecimento ao entrevistado quanto aos
objetivos do estudo. É considerada na coleta de dados a relatividade de cada memória,
buscando-se perceber e salientar as variadas percepções encontradas nos depoimentos
das diferentes figuras que fizeram parte desse contexto.
Cabe ao historiador, interpelar todas essas fontes com rigor metodológico, na
tentativa de resgatar essa História, outrora relegada pela historiografia tradicional.
4 PORTELLI, Alessandro. Tentando Aprender um Pouquinho. Algumas reflexões sobre a Ética
na História Oral. Projeto História. São Paulo, nº. 15. Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 1997, p.16. 5 ALBERTI,Verena. Manual de História Oral. 3ª ed. São Paulo: Editora FGV, 2004, p.18.
15
Sr. Arnaldo Rúbio é um ex-interno que passou sua adolescência internado, dos 6
aos 18 anos. Internado em 1939, sua entrevista pouco foi utilizada, pois em sua maior
parte ele reproduz a versão que já cristalizou sobre esse passado, presente em seu livro
de memórias, também utilizado aqui como fonte.
Sr. Domingos ainda é funcionário do Hospital Padre Bento, trabalhou no
Departamento de Profilaxia da Lepra nos anos 1960 e, posteriormente foi trabalhar
diretamente no Padre Bento. Nesse período, de transição, a internação compulsória já
havia acabado, porém ele ainda teve contato com vários pacientes e suas histórias.
Nas entrevistas, fica claro que ambos enxergam de maneiras diferentes a
internação compulsória. O ex-interno relata a tristeza do isolamento e a arbitrariedade
das internações. Por outro lado, o funcionário retrata a magnitude do Leprosário do
Padre Bento, o cuidado com os pacientes, a estrutura, a grande área de lazer, o pavilhão
de menores e sua ótima escola, oficinas de ofícios, a convivência e até mesmo a
formação de novos casais. Essa magnitude do Leprosário do Padre Bento também se
evidencia em fontes fotográficas, mas, para os entrevistados, não supria a ausência da
família e da liberdade.
Entretanto, toda essa estrutura não era comum nos demais leprosários do Estado
de São Paulo, indicando um caráter mais elitizado do Leprosário Padre Bento, talvez
pela proximidade de Guarulhos em relação à capital e sua maior visibilidade, ou até
mesmo pela própria grandeza da cidade, que já abrigava várias indústrias e olarias.
Não encontrei na historiografia trabalhos que abordem especificamente o
Leprosário do Padre Bento. Entretanto, desde os anos 1970 é notória uma tendência
historiográfica brasileira e internacional de um foco no indivíduo, o que levou a
compreensão do corpo e da doença como fenômenos historicizáveis.
As discussões sobre a lepra até então eram realizadas por médicos que
publicavam obras com viés historiográfico, ainda assim, são coletâneas de grande valia
para esse trabalho. Nesse sentido, destaco História da lepra no Brasil, escrita pelo
médico Heraclides César de Souza-Araujo, que foi chefe de três importantes órgãos do
Instituto Oswaldo Cruz, e também a obra Tratado de leprologia. História da lepra no
Brasil e sua distribuição geográfica, de Flavio Maurano, importante leprologista e
diretor do leprosário paulista de Cocais.
16
Numa historiografia mais contemporânea, algumas teses de mestrado e
doutorado vêm trazendo à baila a questão da internação compulsória dos hansenianos, o
chamado “modelo paulista”, suas implicações sociais e motivações políticas. Vale
destacar os excelentes trabalhos de Vivian da Silva Cunha, O isolamento compulsório
em questão: políticas de combate à lepra no Brasil (1920-1941). Dissertação
(Mestrado em História das Ciências e da Saúde), de 2005, e ainda a tese de Vicente
Saul Moreira dos Santos, Entidades Filantrópicas & Políticas Públicas no Combate à
Lepra: Ministério Gustavo Capanema (1934-1945). Dissertação (Mestrado em História
das Ciências e da Saúde), ambas realizadas na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de
Janeiro, inspiradas fortemente pela tese de doutorado de Yara Nogueira Monteiro, pela
Universidade de São Paulo em 1995, intitulada Da maldição divina à exclusão social:
um estudo da hanseníase em São Paulo, referência para ao assunto.
Em seu trabalho, Vivian da Silva Cunha discute as políticas federais de combate
à lepra desde a década de 1920, com a criação da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das
Doenças Venéreas, os regulamentos sanitários até o início dos anos 1940, passando
pelas reformas promovidas pelo ministro Capanema, no período getulista.
A tese de Vicente Saul Moreira também caminha até o final da gestão
Vargas/Capanema, com todas as reformas promovidas por eles, além da
institucionalização do combate à lepra e as reformas paulistas. Entretanto, parte de um
ponto anterior, abordando a questão desde a Primeira República, quando o trabalho
junto aos leprosos ainda era realizado por instituições filantrópicas, normalmente de
cunho religioso, discutindo essa importante transição entre filantropia e Estado.
Além da historiografia relacionada à hanseníase, também há neste trabalho a
influência de obras sobre assuntos correlatos, que tratam de preconceito, exclusão e
controle social através do corpo, da doença e do discurso médico que vêm sendo
produzidas a partir de 1968 até os dias atuais, tratando de temáticas como a loucura, o
alcoolismo, a AIDS, a tuberculose... Vale destacar as duas obras do francês Michel
Foucault, A microfísica do poder e Vigiar e punir, onde é abordada a institucionalização
do discurso médico como fonte de poder, utilizando a internação como forma de
controle social. E ainda o trabalho da Professora Doutora Maria Izilda Santos de Matos,
Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade, que aborda as questões relacionadas
ao alcoolismo e saúde pública, e a dissertação de mestrado concluída em 2004, na PUC-
17
SP, da Professora Tânia Soares, “Da Panacéa para Hygéa": Representações,
diagnósticos e ações sobre a infância, mulheres e famílias pobres no discurso médico-
higienista (São Paulo, 1920-30), além da dissertação de mestrado da Professora Mirtes
de Moraes, Imagens e Ações: Representações e Práticas Médicas na luta contra a
tuberculose, São Paulo (1899-1930), também defendida na PUC-SP, no ano 2000.
Portanto, esta pesquisa se soma a essa vertente historiográfica, trazendo a
especificidade do antigo Leprosário do Padre Bento a esse cenário, e contribuindo pelo
ineditismo desse tema, já que os antigos leprosários não foram trabalhados em sua
individualidade.
Trata-se de um tema atual, pois, embora o período de
internação compulsória tenha acabado legalmente após 29 anos de opressão (1933 a
1962), ainda hoje os hansenianos brigam na Justiça por direitos e ressarcimentos do
Estado, e sofrem preconceito da sociedade, tanto por estigmas religiosos arcaicos como,
e principalmente, pela desinformação. Além disso, é a única experiência de internação
compulsória por motivos tidos como médicos no Brasil, assunto que volta à tona com a
discussão sobre usuários de crack, ideia em efervescente debate atualmente,
principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Este trabalho se dividirá em três capítulos. O primeiro capítulo se intitula
“Hanseníase, Internação Compulsória e “Modelo Paulista” e nele será apresentado um
breve histórico da hanseníase, bem como os estigmas que a acompanharam
historicamente. Em seguida, questionar-se-á as especificidades do “modelo paulista”,
independente das políticas federais e que aplicava de maneira ferrenha a internação
compulsória aos doentes. Finalizando, ver-se-á a influência paulista nas ações nacionais
de controle da lepra, nos tempos de Vargas e Capanema.
O segundo capítulo, “Leprosário do Padre Bento: Padrão, Caixa Beneficente e
Pérgola”, se divide em três partes. A primeira apresenta uma discussão sobre as
peculiaridades do Sanatório Padre Bento, tido como um modelo de internação
manicomial para hansenianos, o convívio entre os internos e as relações estabelecidas, a
sociabilização bem como as angústias. No segundo item, o foco recai sobre a atuação da
Caixa Beneficente do Padre Bento, um órgão privado, fundado com intuito de zelar
pelos internos. A análise é feita sobre sua atuação e suas relações com o Estado. Para
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finalizar, a Pérgola, um monumento belo que centralizava o namoro dentro do
leprosário, encerra o capítulo discutindo o destino dos frutos desse namoro; os filhos
dos hansenianos internados.
Para finalizar a dissertação, discutirei o final da internação compulsória, a
descoberta da cura e sua repercussão entre os doentes, a dificuldade de acesso aos
medicamentos, a retomada da esperança... Se contrapondo a isso está a falta de um
projeto por parte do poder público para reinserir essas pessoas que passaram anos
isolados do restante da sociedade, muitos perdendo tudo que tinham. Trarei à tona a
indignação desses ex-internos agora libertos, que partirão em busca de compensações na
Justiça.
Que os leitores desfrutem e aproveitem a leitura, mergulhem nesse universo que
é um leprosário, tirando dessa pequena contribuição para um assunto pouco explorado,
elementos para pensar a sociedade atual.
19
1 – Hanseníase, Internação Compulsória e “Modelo Paulista”
No presente capítulo, será apresentado um breve histórico da hanseníase, bem
como os estigmas que a acompanharam historicamente. Em seguida, questionar-se-á as
especificidades do “modelo paulista”, independente das políticas federais e que aplicava
de maneira ferrenha a internação compulsória aos doentes. Finalizando, ver-se-á a
influência paulista nas ações nacionais de controle da lepra nos tempos de Vargas e
Capanema.
1.1 - Hanseníase: Doença e Profilaxia
A hanseníase é definida como uma doença infectocontagiosa crônica e de longa
duração, sendo transmitida de pessoa a pessoa, por meio de contato íntimo e prolongado
com doentes que possuem as formas contagiantes (Virchoviana ou Dimorfa) e que não
fazem tratamento. As condições de vida ligadas aos fatores socioeconômicos, tais como
estado nutricional, situação de higiene e condição de moradia, também estão
relacionadas aos fatores de transmissão da doença.6
Sabe-se que, aproximadamente, 10% da população mundial é suscetível ao
bacilo causador da lepra, ou seja, pouco mais de 90% da população, mesmo que exposta
a esse bacilo, não será infectada ou não manifestará os sintomas. Contudo, não havia
esse conhecimento na primeira metade do século XX, tampouco sabia-se sobre as
formas de contágio. A hereditariedade foi descartada, mas as teorias iam desde as
miasmáticas (contágio pelo ar) até picadas de mosquito. Entretanto, poderia haver uma
percepção do não avanço avassalador da doença. Considerando o fato de que a lepra
esteve presente no Brasil desde a chegada dos portugueses e, em São Paulo, desde o
século XVIII, compreender os fatores que levaram à institucionalização da internação
compulsória dos hansenianos como medida profilática nos anos 1930 e sua aplicação
ferrenha do modelo manicomial em São Paulo, esse desafio complexo, envolve questões
socioeconômicas e urbanas muito além dos motivos médicos.
A hanseníase esteve vinculada às questões econômicas, sendo associada à
pobreza, entretanto, não é uma doença exclusiva das camadas menos abastadas,
6 QUEIROZ, Marcos de Souza & PUNTEL, Maria Angélica. A endemia hansênica: uma
perspectiva multidisciplinar. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997.
20
atingindo todas as classes. Contudo, a posição social podia implicar em tratamentos
diferenciados, como será discutido ao longo dessa pesquisa.
O estigma da pobreza não é o único que, historicamente, recai sobre a
hanseníase, há um forte preconceito religioso dentro do cristianismo, sobretudo do
catolicismo. No Antigo Testamento, nos capítulos 13 e 14 do Livro de Levítico,
encontram-se uma série de caracterizações e de recomendações sobre a lepra, inclusive
a denominação “impura”, atribuindo essa pecha a pessoa identificada como portadora da
doença.
O Senhor disse a Moisés e a Araão: quando um homem tiver
um tumor, uma inflamação ou uma mancha branca na pele de
seu corpo, e esta se tornar em sua pele uma chaga de lepra, ele
será levado a Araão, o sacerdote, ou a um de seus filhos
sacerdotes. O sacerdote examinará o mal que houver na pele do
corpo: se o cabelo se tornou branco naquele lugar, e a chaga
parecer mais funda que a pele, será uma chaga de lepra. O
sacerdote verificará o fato e declarará impuro o homem.7
Todo homem atingido pela lepra terá suas vestes rasgadas e a
cabeça descoberta. Cobrirá a barba e clamará: Impuro! Impuro!
Enquanto durar seu mal, ele será impuro. É impuro; habitará só,
e a sua habitação será fora do acampamento.8
Pode-se encontrar em outras histórias bíblicas a doença como forma de
redenção, como na parábola de Jó, que, ao morrer coberto pelas chagas da lepra, vai
direto para os braços de Abraão, encontrando a salvação.
Esse estigma religioso gestado na antiguidade não foi totalmente superado;
muitos cristãos consideram a bíblia algo sagrado e atemporal, interpretando literalmente
suas designações. Segundo o ex-interno Arnaldo Rúbio, mesmo nos anos de 1930,
algumas pessoas ainda acreditavam que a hanseníase era uma manifestação da ira de
Deus. Alguns dos doentes internados tinham seus pertences queimados por vizinhos que
acreditavam na necessidade de purificação através do fogo.
7 Bíblia Sagrada, Levítico, Cap. 13, versículos 1 a 3.
8 Ibid., Cap. 13, versículos 45 a 46.
21
Seja encarada como castigo ou como purificação, o fato é que durante toda a
Idade Média o isolamento foi a maneira escolhida no trato com esses doentes, não
apenas pelas representações religiosas da lepra, mas também pelo caráter sanitário.9
Pode-se atribuir a internação compulsória dos hansenianos realizada no Brasil a
partir dos anos de 1930, sobretudo em São Paulo, uma espécie de permanência
histórica, a reprodução do modelo medieval europeu, já que a lepra praticamente
desapareceu da Europa do final da Idade Média, havendo alguns resquícios em certos
países. Entretanto, outros fatores imperam nesses casos específicos, brasileiro e paulista.
Atribui-se a chegada da lepra ao Brasil aos colonizadores portugueses, sendo
Portugal uma das regiões onde a lepra sobreviveu à Idade Média, já que não se
encontram registros da doença nos povos indígenas.
Contudo, em São Paulo, os primeiros registros da doença são encontrados
apenas no século XVIII. Os dois primeiros casos registrados na cidade, um deles de
uma cigana que fora despejada, datam do ano de 1768.10
Esses casos eram isolados. Atribui-se o grande aumento de hansenianos em São
Paulo ao crescimento demográfico e urbano decorrente da expansão cafeeira do século
XIX - XX.
A expansão cafeeira pelo Estado de São Paulo gerou uma ampla
demanda de braços para a lavoura que coincidiu com a crise do
escravismo, gerando tensões em torno da questão do trabalho. A
elite paulista considerava a imigração subsidiada o meio ideal
para o fornecimento de trabalhadores nas fazendas,
gradativamente, esta proposta foi institucionalizada em uma
política subsidiada pelo Estado e caracterizada pela imigração
em massa, contínua e familiar.11
9 F, BENIÀC. O medo da Lepra. In: LE GOFF, Jaques. As doenças tem história. Lisboa:
Terramar, 1985. Apud: Postigo, Vânia Regina Miranda. Espaços Vigiados: Um estudo do
isolamento compulsório dos portadores de hanseníase no Asilo-colônia Santo Ângelo (1890-
1960). Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São Paulo, 2008. 10
MAURANO, Flavio. História da lepra em São Paulo. Volume I. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1939, p. 13. 11
MATOS, Maria Izilda Santos de; GONÇALVES, Leandro Pereira. “Meu primeiro manifesto
político foi um romance”: reflexões sobre a obra O Estrangeiro de Plínio Salgado. Brasiliana:
Journal for Brazilian Studies, vol. 3, nº 1, 2014, p. 478.
22
Dentro da perspectiva de crescimento das cidades, um grande fluxo de pessoas,
de corpos, os indivíduos passaram a ser pensados enquanto desejáveis e indesejáveis.
Os proponentes idealizavam um imigrante laborioso,
inteligente, vigoroso, que aspirava à fortuna, representasse o
progresso e reabilitasse o ato de trabalhar, imprimindo uma
característica civilizadora ao trabalho, além de "caiar" o país.
No correr do processo, se para alguns imigrantes foi possível
atribuir adjetivos como: ‘laboriosos’, ‘ordeiros’ e ‘dedicados’;
em outros casos as características que melhor os qualificaram
eram: ‘lutadores’, ‘contestadores’, ‘inconformados com as
injustiças sociais’. Assim, geraram-se outras inquietações e
questões: quais eram os imigrantes desejados e em contraponto
definiam-se os “indesejáveis”.12
Nessa lógica, os ideais eugenistas passaram a ter grande força, o Estado passou a
pensar medidas médico-higienistas, dentre outras maneiras de controle social, no
isolamento como forma profilática da doença. Entretanto, nenhuma medida institucional
foi tomada nesse sentido até os anos 1920.
O Brasil, ao entrar no século XX, já se encontrava sob o regime
republicano, iniciado em 1889, e seguindo as orientações da
Constituição Federal de 1891. Constituindo-se de unidades
federativas, com autonomia política em seus territórios, os
Estados poderiam estabelecer medidas independentemente da
ação ou autorização federal. A autonomia dos Estados, própria
do sistema federativo, impedia que uma determinada política
estabelecida pela União fosse realizada imediatamente em todo
o território nacional. Essa situação descentralizada e
descontinuada só poderia ser modificada caso o poder estatal
firmasse acordos com a União, onde estivesse clara a submissão
daquele Estado às ações e orientações da União. Uma
intervenção federal sem que houvesse acordos firmados feriria
os termos da constituição vigente durante todo o período da
República Velha.
Todas as medidas determinadas pela legislação federal, como o
regulamento sanitário promovido por Oswaldo Cruz em 1904,
por exemplo, tinham como campo de ação específica a Capital
Federal. Para os demais estados, esse regulamento servia de
instrução ou ponto de partida para que cada um deles tratasse
das questões sanitárias como lhe fosse conveniente, de forma
independente ou com o auxílio da União.13
12
Ibid., p. 478. 13 CUNHA, Vivian da Silva. O isolamento compulsório em questão: políticas de combate à
lepra no Brasil (1920-1941). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) –
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2005, p. 36.
23
A autonomia dos estados permitia que São Paulo se recusasse a assinar os
acordos da União e desenvolvesse políticas próprias. No que tange a saúde e a profilaxia
da lepra, foi o único estado a não assinar tais tratados.
Esse panorama começa a ser alterado quando, em janeiro de 1920, foi criado o
Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), diretamente subordinado ao
Ministério da Justiça e Negócios Interiores.14
A criação do DNSP gerou uma ação coordenada nacionalmente nas questões de
saúde e nas medidas profiláticas, assim como uma maior intervenção federal nos
estados, dentro da lógica dos Estados-nações fortalecida pela Primeira Guerra Mundial.
Apesar disso, a lepra não era considerada um grande problema nacional até os anos
1920, estando num patamar abaixo das ditas endemias rurais. Entretanto, nos anos 1920
ganhou destaque e um órgão próprio para seu combate, a Inspetoria de Profilaxia da
Lepra e das Doenças Venéreas (IPLDV), sugerida pelo médico Carlos Chagas15
. O
regulamento da instituição sofreu críticas de periódicos médicos da época, tendo sua
última versão em 1923.16
Apenas a lepra, as doenças venéreas e a tuberculose17
gozavam de um órgão
específico para seu combate, enquanto as demais moléstias eram tratadas de maneira
mais geral, pelo DNSP. O Serviço especial de combate à tuberculose estava
subordinado à Diretoria de Serviços Sanitários do Distrito Federal, o que restringia sua
atuação à Capital Federal, enquanto a profilaxia da lepra e das doenças venéreas seria
orientada em todo o país. Os estados e municípios que desejassem realizar esses
serviços deveriam entrar em contato com o governo federal e se submeter a sua
supervisão.18
14
Ibid., p. 37. 15
Médico sanitarista e bacteriologista brasileiro, na época era diretor do Instituto Oswaldo Cruz
e viria a ser o primeiro a dirigir também o Departamento Nacional de Saúde Pública. 16
Ibid., 39. 17
Para aprofundar as medidas específicas de combate à tuberculose ver: MORAES, Mirtes de.
Imagens e Ações: Representações e Práticas Médicas na luta contra a tuberculose, São Paulo
(1899-1930). Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2000. 18
BRASIL, Coleção de Leis, 1920, vol. 1, p. 1. Decreto nº. 3.987, de 02 de janeiro de 1920, art.
5.
25
Pelo organograma do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), no ano
de 1928, pode-se observar que, de fato, a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das
Doenças Venéreas esteve direta e unicamente subordinada ao DNSP. Todavia, os
estados da federação ainda optavam por solicitar uma intervenção e se submeter a tal
órgão. Nota-se que, até então, apenas Espirito Santo e Rio Grande do Sul haviam optado
por isso.
Não se encontrava em São Paulo uma ação tão contundente de tal instituição no
sentido de perseguição e captura dos doentes, algo que ocorreu a partir de 1930, com o
Departamento de Profilaxia da Lepra, órgão estadual. Ver-se-á a seguir, através de
depoimentos, o quanto esse Departamento era temido.
Quais fatores podem ter levado a lepra a esse status de doença cuja profilaxia era
primordial no país e a gozar de uma instituição própria para seu combate? Destaca-se
dentre esses fatos a criação e atuação da Comissão de Profilaxia da Lepra, entre os anos
de 1915 e 1919.
Dentre os acontecimentos que influenciaram a criação da
Inspetoria de Profilaxiada Lepra e das Doenças Venéreas
podemos destacar a atuação da Comissão de Profilaxiada Lepra
que esteve reunida entre os anos de 1915 a 1919. Seguindo a
proposta do leprologista e então diretor do Hospital dos
Lázaros, Belmiro Valverde, e com orientação de Juliano
Moreira, à época diretor da Assistência Médico-Legal aos
Alienados do Distrito Federal, a Associação Médico-Cirúrgica
do Rio de Janeiro promoveu a organização de uma comissão,
composta por vários médicos, de forma a estabelecer as
medidas que deveriam ser implementadas com relação à
profilaxia da lepra, àquela altura definida como um grande mal
do país.19
Tal comissão contava com médicos de várias instituições renomadas do Rio
Janeiro e, durante seus anos de atuação, abordou uma série de temas relacionados à
lepra, fatores científicos e sociais. Para essa pesquisa, vale destacar os apontamentos
trazidos a respeito da lepra, isolamento e domicílio.
O primeiro foi apresentado pelos médicos Juliano Moreira e
Fernando Terra, ambos da Sociedade Brasileira de Medicina,
indicando a opinião desta importante instituição sobre tema tão
discutido: o isolamento dos doentes. Segundo os autores, as
19 Cf. MACIEL, Laurinda Rosa. A hanseníase e a saúde pública: a comissão de profilaxia da
lepra (1915- 1919). ANPUH Nacional – 2001 – GT História das Doenças. In CUNHA, Op. Cit.,
p. 39.
26
dificuldades em se cultivar o bacilo e determinar o modo de
transmissão, tema discutido por outros trabalhos nesta
conferência, impediam uma medida profilática mais específica e
eficiente. A única certeza seria a de que o organismo humano
hospedava e cultivava o bacilo da lepra e que, portanto, cabia ao
leproso a responsabilidade pela disseminação do mal. Assim, a
única medida a se aconselhar, segundo esses autores, seria o
afastamento dos doentes do convívio social, ou seja, o
isolamento.20
A culpabilização do doente pode ser encarada como uma justificativa para
medidas extremas, seja pelo estigma religioso, o da pobreza ou qualquer outro. O único
vetor da doença conhecido era o próprio doente, e responsabilizá-lo por portar e
disseminar esse mal legitima medidas autoritárias.
Apoiando-se no programa efetuado na Noruega,
incansavelmente citado pelos defensores do isolamento
profilático e compulsório dos leprosos, os autores indicavam
que seria necessário isolar de forma distinta os doentes de
classes sociais diferentes: aos abastados deveriam destinar o
isolamento no próprio domicílio, pois estes teriam condições de
manter seus tratamentos; aos demais doentes, que dependeriam
da assistência do Estado ou de iniciativas particulares, o
isolamento deveria ser feito em colônias agrícolas, para esse fim
construídas e onde pudessem trabalhar, diminuindo, assim, os
gastos com o seu sustento.
O segundo trabalho, exposto na comissão por Eduardo Rabello
e Oscar da Silva Araújo, tratava do tema ‘lepra e domicílio’. Os
autores defendiam que os leprosos em domicílio poderiam
contaminar seus familiares, domésticos e outras pessoas de suas
relações. O ideal era que o isolamento fosse realizado como
uma medida profilática, já que a lepra, sendo uma doença
contagiosa, não poderia permitir que o doente vivesse em
domicílio nas condições normais de uma pessoa sã. Indicavam,
ainda, que o isolamento domiciliar no Brasil só poderia ser
realizado em condições excepcionais, quando fosse possível
realizar conjuntamente uma vigilância sanitária completa e
efetiva desses doentes. Portanto, para os autores, o ideal seria
que os doentes vivessem nas colônias agrícolas, tendo lá a
réplica de sua vida social anterior e ainda impedindo a
propagação do mal entre seus parentes, amigos, vizinhos etc.21
Tais proposições foram adotadas pelo governo federal e pelos estados nos anos
1930, mas em proporções diferentes. Quase todos estados do Brasil contavam com, pelo
menos, um leprosário ou, como eram chamados, asilo-colônia. Entretanto, a maior parte
20
CUNHA, Op. Cit., pp. 40-41. 21
Ibid., pp. 40-41.
27
dos estados privilegiava a internação domiciliar, a exceção de São Paulo, que
privilegiou o modelo manicomial.
As considerações finais dos encontros da Comissão foram ouvidas pelo poder
público e davam conta da necessidade de se criar um órgão para o Estado assumir as
responsabilidades pelo problema da lepra. Tal órgão seria a Inspetoria de Profilaxia da
Lepra, que reuniria médicos leprologistas para adotar as medidas profiláticas
necessárias e manter um fórum de discussão permanente.22
Dentre as recomendações práticas, a comissão defendeu o
isolamento obrigatório dos doentes, sem distinção de classe ou
indivíduo. Para aqueles que pudessem trabalhar, seriam
fundadas as primeiras colônias, em local apropriado, onde
receberiam a assistência do Estado. Para os doentes inválidos,
seriam construídos asilos. O isolamento em domicílio só
poderia ser permitido em casos excepcionais, quando o doente
dispusesse de meios para o seu sustento e obrigando-se à
submissão restrita ao tratamento profilático, sob vigilância
assídua e rigorosa. Esses conselhos demonstram as opiniões dos
médicos (...), principalmente as de Eduardo Rabello e Oscar da
Silva Araújo, que, mais tarde, participarão da cúpula decisória
sobre as ações de profilaxia da lepra no país e tentarão pôr em
prática essas recomendações a respeito da profilaxia da lepra,
não obstante os empecilhos financeiros para a construção das
colônias para os doentes.23
Tais apontamentos tiveram forte influência sobre os modelos adotados no Brasil,
principalmente pelo estado de São Paulo, que sofreu grande influência da Comissão de
Profilaxia da Lepra e que já tinha grandes preocupações com a saúde, com medidas
profiláticas e com estatutos que regulamentassem esses serviços por conta do enorme
crescimento ocorrido a partir do ciclo cafeeiro e os problemas decorrentes dessa grande
concentração de pessoas num ambiente urbano.
Eram os chamados “medos urbanos”, fatores como o acúmulo de pessoas em
ambientes mal saneados, o surgimento de cemitérios nas cidades, a violência e outros
que levaram a uma espécie de sentimento coletivo de medo e apreensão.24
Assim, os
22
As conclusões da Comissão de Profilaxia da Lepra foram expostas por Emílio Gomes em sua
comunicação à Academia Nacional de Medicina e encontram-se transcritas na obra de SOUZA
ARAUJO, Heráclides César de. História da Lepra no Brasil. Período Republicano (1890-1952).
Volume III, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1956, p. 159. 23
CUNHA, Op. Cit., p. 39. 24
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001.
28
trabalhos profiláticos e as tentativas de amenizar tal sentimento tornaram-se de grande
importância para os governos de cidades como São Paulo.
1.2 – Estratégias de Controle: “Modelo Paulista”
No Primeiro Congresso Médico Paulista, ocorrido em 1916, as preocupações
acerca da profilaxia da lepra tiveram destaque, sendo apontado como modelo ideal para
chegar a erradicação da doença a exclusão social do doente, seu isolamento. Isso porque
não se sabia exatamente como era transmitida a lepra, sendo o próprio doente o único
vetor conhecido.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a criação da Inspetoria de
Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas veio como resposta
a esse movimento médico que pedia “a atenção dos governos
federal e estaduais a fim de que sejam tomadas medidas de
profilaxia contra essa moléstia”. O mesmo decreto que criou o
Departamento Nacional de Saúde Pública criou, também, a
Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas.25
Essa medida data do ano de 1920. Até então nada havia sido feito em nível
federal para o combate a lepra. Contudo, os estados da federação já vinham aplicando
políticas de maneira autônoma, havendo um grande destaque para São Paulo.
No VIII Congresso Médico Brasileiro, ocorrido no Rio de
Janeiro, em 1918, os trabalhos sobre lepra pautavam a situação
em vários Estados, citando as formas empreendidas pelos
respectivos governos para o seu combate. Podemos encontrar
inquéritos, censos, históricos sobre a presença da doença no
Estado, a profilaxia adotada e defendida etc. A atuação do
Estado de São Paulo, conforme trabalho apresentado por Emílio
Ribas, já demonstrava o quanto o governo estadual se
distanciava do governo federal, proporcionando à sua população
um cuidado específico para os doentes de lepra.26
Este foi o embrião do que ficaria conhecido como o “modelo paulista”, um
projeto profilático para a lepra que foi empreendido com veemência no estado de São
Paulo, principalmente a partir dos anos 1930.
O Estado de São Paulo promoveu medidas de controle da lepra
de forma independente daquelas realizadas pelo governo
federal. O chamado “modelo paulista” determinou a exclusão
25
SOUZA ARAUJO, Op. Cit., p. 208. 26 RIBAS, Emílio. “Freqüência da lepra em São Paulo – Profilaxia da lepra – Contagem dos
atacados de lepra”, apud SOUZA ARAUJO, H. C. de, Op. cit., pp. 233-241. Apud. CUNHA,
Op. Cit., p. 43
29
de todos os doentes de Hansen, independente da forma clínica
ou estágio da doença, distinguindo-se fortemente dos métodos
adotados por médicos e autoridades de outros estados. Em São
Paulo, os pacientes de formas não-contagiosas da doença
poderiam ser vigorosamente internados logo após o diagnóstico.
Para pôr em prática tais medidas era importante a construção de
colônias para leprosos, cujo projeto e estrutura terminaram por
influenciar a edificação de instituições similares em outros
países. As colônias de São Paulo foram visitadas por
pesquisadores estrangeiros e citadas em literatura especializada,
transformando-as em referência obrigatória para os
leprologistas brasileiros e latino-americanos, notadamente até a
década de 1950.27
Quase todos os estados brasileiros possuíam pelo menos um leprosário, que só
eram utilizados para os casos mais graves e no estágio contagioso da doença. Já São
Paulo internava compulsoriamente as pessoas ao menor sinal da doença. Enquanto os
demais estados privilegiavam a internação domiciliar, São Paulo privilegiou o modelo
manicomial dos asilos-colônias.
O Estado paulista desenvolveu uma política centralizada de combate à lepra,
uma necessidade frente a seu crescimento.
A partir do ultimo quarto do século XIX, o desenvolvimento
econômico da província de São Paulo, motivado principalmente
pela expansão cafeeira, contribuiu para o crescimento urbano e
populacional, impulsionado pela chegada de imigrantes para a
cafeicultura, a ampliação das atividades fabris e terciárias, e o
fortalecimento de uma “burguesia cafeeira”, que investiu na
produção agrícola e em outros setores da economia como as
fábricas e as ferrovias. Os problemas com a estrutura urbana e a
saúde pública agravaram-se no mesmo período. As epidemias
tornaram-se grave problema tanto na capital do estado e no
porto de Santos como em prósperos núcleos urbanos do interior,
onde a assistência médica se restringia a hospitais religiosos e
consultórios privados. Para enfrentar a crise sanitária na virada
do século XIX para o XX, o governo estadual colocou em
prática medidas que serviriam de modelo a decisões adotadas
posteriormente pelo governo federal.28
27
MONTEIRO, Yara Nogueira. Da maldição divina à exclusão social: um estudo da
hanseníase em São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São
Paulo, 1995, pp. 217-230. 28
SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Entidades Filantrópicas & Políticas Públicas no
Combate à Lepra: Ministério Gustavo Capanema (1934-1945). Dissertação (Mestrado em
História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2006.p. 44.
30
O Brasil ainda não possuía, em nível federal, uma centralização dos serviços de
saúde, principalmente para o tratamento da lepra. Isso ocorreu primeiro em São Paulo,
por conta do grande crescimento gerado pelo café, o surgimento de uma burguesia
cafeeira capaz de investir e diversificar investimentos, o que eleva o Estado a outro
status e sua capital a um grande processo de urbanização, com aumento demográfico
ligado a um intenso processo imigrantista, trazendo consigo os problemas decorrentes
da concentração populacional.
(x) Incluída desde o início a despesa de manutenção.
(xx) Despesas totais de instalação no 1.º Ano. Do segundo em diante metade das despesas de manutenção. (xxx) Os cálculos de manutenção foram feitos tomando a si o Governo Federal metade das despesas e
partindo, de uma maneira geral da base de 1 conto ‘per
capita’, custo médio verificado nos leprosários que já estão funcionando. Essa despesa entretanto, terá de variar de um Estado a outro só podendo ser
definitivamente fixada após o 1.º ano de funcionamento dos novos leprosários.”
Fonte: BARRETO, João de. Arquivos de Higiene, 1935:5 (1) pp. 119-130.
No documento, nota-se que São Paulo, juntamente com Minas Gerais, estado
vizinho também com condições econômicas e influência política consideráveis, eram os
dois estados com maior demanda por leitos. Eram 6.000 para os paulistas e pouco mais
31
do que isso para os mineiros, ambos também tinham o maior número de leprosários;
cinco cada.
O primeiro leprosário construído em terras paulistas foi o Asilo-colônia de Santo
Ângelo, em Mogi das Cruzes, inaugurado em 1928. Em seguida, o Asilo-colônia de
Pitapitingui, criado na cidade de Itu, em 1931, mesmo ano de inauguração do Sanatório
Padre Bento, em Guarulhos. No ano seguinte, 1932, na cidade de Casa Branca, foi
inaugurado o Asilo-colônia Cocais, e finalizando a rede de leprosários paulistas, em
1933 começa a funcionar o Asilo-colônia Aimorés, em Bauru.
Todos os leprosários possuíam amplos pavilhões, sendo o Pirapitingui o de
maior capacidade, aproximadamente 5.000 leitos29
. O objetivo das escolhas dos lugares
para as construções desses leprosários pode se evidenciar pelo fato de nenhum deles
estar na capital do Estado. Pelo contrário, todos ficavam em regiões bastante afastadas,
denotando o intento de promover uma limpeza social na cidade de São Paulo,
utilizando-se da medicina higienista para tal fim.
Quanto pior o estágio da doença, quanto mais aparentes os sinais físicos, que não
eram agradáveis a quem vê, mais distante era internado esse doente. Mais próximo a
capital paulista e de mais fácil acesso, o Sanatório Padre Bento recebia os doentes em
estágio inicial. Já o Santo Ângelo foi apelidado de “ferro velho” pelos seus próprios
internos, por conta da situação física já bastante deteriorada desses doentes.30
O órgão responsável pela captura, transporte e internação dos doentes, além da
fiscalização dos leprosários, em nível estadual, era o Departamento de Profilaxia da
Lepra (DPL), dirigido com mãos de ferro pelo Dr. Salles Gomes31
.
Ao assumir o comando da profilaxia da lepra no estado, a partir
de 1935, Francisco Salles Gomes Júnior assumiu, como
medidas primordiais, o isolamento dos leprosos em grande
escala, a anexação de todos os asilos ao Departamento de
Profilaxia da Lepra (...)
Alguns jornais denunciavam as atrocidades que ocorriam no
interior do Santo Ângelo e dos demais asilos da rede paulista,
atribuindo ao Dr. Salles Gomes a responsabilidade por tais
29
RÚBIO, Arnaldo. Eu Denuncio o Estado. 1ª ed. São Paulo: s.e., 2007, p. 78 30
Ibid.. p. 75. 31 Dr. Francisco Salles Gomes Júnior era médico leprologista e dirigia o DPL (Departamento de
Profilaxia da Lepra). Era conhecido por sua intransigência quanto a necessidade e os benefícios
da internação compulsória mesmo no estágio não contagioso da doença.
32
acontecimentos. O médico chegou a ficar conhecido como o
“carrasco dos leprosos”.32
O depoimento de um ex-interno ao Jornal de São Paulo, que traz alguns
elementos elucidativos a respeito da caracterização feita do DPL pelos doentes.
Há sete anos fui segregado, brutalmente, pelos “dedicados”
agentes do Serviço da Lepra de São Paulo. Foram dois os
choques que recebi: primeiro saber-me doente, o segundo, ver-
me tratado com tanta desumanidade. Estive no Asilo Santo
Ângelo e de lá me mandaram para o Sanatório Padre Bento,
isso como verdadeira mercadoria humana. Nesse tempo, eu
estranhei, pois ainda não sabia existir um mal maior do que o
“ter lepra”. Soube logo após o que era ser leproso debaixo dos
“regulamentos” do D.P. da Lepra em São Paulo! Conheci,
então, a real situação minha e de meus companheiros de
infortúnio: éramos leprosos no corpo, administrados por
verdadeiros leprosos no caráter! (...) Ao jogarem-me nesses
leprosários que eles denominam “colônias” ou então
“Sanatórios”, eu era um moço de presença absolutamente
normal, sem qualquer característica que seja da moléstia
(convém frisar que fui pego por denúncia do médico, o qual fui
consultar de motu próprio).33
Nota-se, além da truculência com que os doentes eram tratados e da maneira
ferrenha com que o “modelo paulista” foi implementado, uma hierarquia entre os
leprosários. O paciente que cedeu seu depoimento ao Jornal de São Paulo diz ter
passado pelo Santo Ângelo e depois ter sido transferido para o Padre Bento. Também
afirma ser o único sem nenhum sinal físico da doença. Tais fatos estão interligados; o
Padre Bento era o sanatório mais próximo da capital e também o de mais fácil acesso.
Não à toa, foi transformado em modelo pelo DPL, uma vez que recebia pacientes em
estágio mais inicial da doença e com maior poder aquisitivo, um cartão de visitas do
programa de combate à lepra paulista, reforçando a tese de limpeza social para a capital.
As especificidades desse sanatório modelo serão aprofundadas no próximo capítulo.
A implementação do isolamento compulsório em São Paulo
cerceou-se de várias aproximações profiláticas em que, em
muitas vezes, viram-se refletidos os interesses da comunidade
científica nacional e internacional e os métodos adotados em
outros países endêmicos, A política preventiva que culminou no
32
POSTIGO, Vânia Regina Miranda. Espaços Vigiados: Um estudo do isolamento compulsório
dos portadores de hanseníase no Asilo-colônia Santo Ângelo (1890-1960). Dissertação de
Mestrado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São Paulo, 2008, p. 146. 33
Fonte: Depoimento não assinado enviado ao Jornal de São Paulo – 25 de abril de 1945
(Acervo do Instituto de Saúde).
33
modelo paulista foi estruturada gradualmente. Enquanto o
isolamento era seletivo em alguns estados brasileiros, em São
Paulo ele foi compulsório para todas as pessoas diagnosticadas
com lepra. Isso porque São Paulo era um estado
economicamente independente e tinha poder e verba para
implementar tal política. (...) O “modelo campanhista” do
Brasil, que desde a década de 1910 indicava que as doenças
deveriam ser combatidas através de campanhas tão rigorosas
quanto às estratégias militares, influenciou também no “modelo
paulista” que empreendeu vigorosas buscas aos leprosos.34
Além da capacidade financeira e autonomia perante o governo federal, São
Paulo necessitava dar uma resposta à sociedade civil ao avanço da doença, que
aumentou consideravelmente junto com o crescimento populacional e a imigração
gerada pela expansão cafeeira. Esses doentes circulavam em grande número pelo
interior e pela capital, maltrapilhos, pedindo esmolas, muitos até possuíam um sino,
para avisar sua chegada, para que as mães pudessem recolher suas crianças. Nas
décadas de 1930 e 1940 ampliou-se a expansão urbana e industrial da cidade de São
Paulo, bem como os ideais de modernidade e a necessidade de higienização e
embelezamento.
34
CUNHA, Op. Cit., pp. 53-54.
34
Doentes de hanseníase e seus acampamentos à beira da estrada
Cenas como as da imagem eram comuns nas primeiras décadas do século XX.
Os doentes, em sua maioria pobres, eram obrigados a abandonar o pouco que tinham e
se refugiar nesses acampamentos, vivendo um exílio como andarilhos, passando a ser
vistos como perigo e incomodo.
A análise dos quadros e figuras a seguir permite mensurar o avanço da doença,
principalmente na capital. A doença tornou-se algo visível, um dos fatores que
estimularam o decreto da internação compulsória manicomial nos anos de 1930.
35
35
Vê-se na figura e no quadro, respectivamente dos anos de 1851 e 1887, que o
número de doentes foi relativamente pequeno e que a região de incidência era a oeste,
ou seja, as áreas produtoras de café, com maior densidade populacional. O número
mudou consideravelmente nas primeiras décadas do século XX.
35
Deve-se relativizar a coleta de dados, os métodos utilizados e a importância dada à lepra pelo
poder público nesse período, bem como levar em consideração a menor densidade demográfica.
36
36
O avanço da doença na capital paulista era considerado alarmante, e quase nada
se sabia das formas de contágio. A aparância dos doentes, suas chagas e a situação de
mendicância em que boa parte deles se encontrava contrastava com a cidade que
crescia, se modernizava e criava no imaginário o slogan de “locomotiva do Brasil”.
Dentro da lógica higienista, elimina-se o único fator contagiante conhecido e promove-
36
Deve-se relativizar a coleta de dados, os métodos utilizados e a importância dada à lepra pelo
poder público nesse período.
37
se limpeza social e embelezamento da capital (um símbolo), numa única medida: A
internação compulsória manicomial dos hansenianos, assim nascia o “modelo paulista”,
esses foram os fatores que definiram esse modelo, o compulsoriedade da internação, ou
seja, internar pessoas independentemente de sua vontade e não abrir a possibilidade de
uma internação domiciliar, adotando o modelo manicomial, com seus asilos-colônias e
sanatórios para todos os doentes, independentemente do estagio ou da forma da doença.
Essa era uma tendência higienista.
Diante do caos gerador de medo e insegurança, era urgente a
emergência da ordem, do equilíbrio. A harmonia desejada era a
de uma sociedade que caminhasse para o progresso, isso é, que
desenvolvesse o modo de produção capitalista sem sofrer os
percalços da luta de classes. Todo comportamento considerado
diferente deveria ser visto como resistência ao sistema, como
uma anomalia impeditiva do funcionamento do corpo social, e
seus agentes deveriam ser enquadrados nas prisões, nos
hopícios e nos institutos disciplinares.37
Para promover tal modelo de internação, apresentaram um projeto
propagandeado como o que havia de mais moderno e humano, com leprosários que
possuiam grande área e estrutura.
As construções foram planejadas permitindo a separação dos
pacientes por sexo, idade e condições de saúde, incluindo uma
zona de diversões, outra para a administração, além de cadeia,
igreja, portaria, estábulos, cemitério, biblioteca, creches, posto
policial, farmácia etc. Deveria ter também sistema de
eletricidade, de águas e de esgotos. Era projetado para se tornar
auto-suficiente, contendo terra para cultivo agrícola e animais
de pasto.38
No caso do Sanatório Padre Bento, os pacientes também eram separados por
classe social. Poderiam haver variações nessa estrutura, mas, em linhas gerais, os
leprosários estavam dentro desse modelo, e todos foram construídos com verba
estadual.
Algumas funções eram executadas pelos próprios internos e remuneradas pelas
caixas beneficentes. Uma das estratégias para dividir, dominar e vigiar os internos era
destacar entre os próprios um delegado e seus assistentes, que exerciam certa forma de
37 ROMERO, Marisa. As normas médicas em São Paulo, 1889-1930. Projeto História. São
Paulo, nº 13, 1996, p, 167-173. 38
CUNHA, Op. Cit., p. 53.
38
poder sobre os demais, e se sentiam parceiros da direção do leprosário por gozarem de
algumas beneces.39
Aproximadamente 15 mil pessoas foram vítimas da internação compulsória nos
5 leprosários paulistas construídos com verba estadual e frutos do chamado “modelo
paulista”, movido pelo desconhecimento da doença, preconceito e pelos ideais
eugênicos de modernidade paulista.
1.3 –Brasil de Vargas: Políticas, Práticas e Influências
São Paulo foi o único estado a não assinar os acordos federais e a desenvolver
políticas próprias, vide o Decreto estadual Lei nº 5965, de 30 de junho de 1933, que em
seu 9º artigo destacava a responsabilidade da Inspetoria de Profilaxia da Lepra em
providenciar no menor tempo possível a internação dos doentes de lepra no Estado,
compulsoriamente. Assim, como agiu autonomamente ao longo de todo período de
internação compulsória, também o fez no seu fim. A portaria nº 968 do Ministério da
Saúde, de 7 de maio de 1958, revogou a internação compulsória em todo o país,
entretanto, São Paulo só o fez quatro anos depois, em 1962.
O caso paulista foi bastante peculiar, pois houve influência das políticas
empreendidas no estado sobre as políticas que seriam implementadas em nível federal,
principalmente na “Era Vargas”.
O Estado de São Paulo foi pioneiro nas ações para o combate a lepra e a
centralização de seu serviço de saúde, isso por conta de suas condições materiais, como
visto.
A solução encontrada pelo poder público foi uma reforma
sanitária que centralizou os serviços de saúde e tornou mais
rigoroso o controle da imigração, viabilizando ações
permanentes no campo da saúde. Em 1892 foi criado o Serviço
Sanitário do Estado de São Paulo para elaborar e implementar
os programas de combate às diversas epidemias. Dois anos
depois, produzia-se em São Paulo o primeiro código sanitário
brasileiro, e, em 1896, a administração estadual passou a
intervir nos municípios em momentos de epidemia. As
engrenagens principais do sistema de saúde eram então os
institutos Bacteriológico, Vacinogênico, Butantan, o
Farmacêutico e o de Análises Clínicas. De 1896 a 1917, o cargo
de diretor do Serviço Sanitário Estadual foi ocupado por Emílio
39
RÚBIO, Op. Cit., 2007.
39
Ribas, e em sua gestão houve gradual centralização das ações
de saúde nas mãos do governo paulista.40
Como já citado anteriormente, o controle das epidemias também passava por um
controle do fluxo de pessoas e da imigração, uma busca pelo “imigrante desejável”,
pelas pessoas que se enquadravam às normas sociais influenciadas pelo pensamento
eugenista.
Em dezembro de 1916, a Sociedade de Medicina e Cirurgia de
São Paulo e outras instituições locais de pesquisa e ensino
organizaram o I Primeiro Congresso Médico Paulista, enquanto
na Capital Federal transcorriam os debates suscitados pela
Comissão de Profilaxia da Lepra. Na conferência que Emilio
Ribas proferiu no congresso paulista, ele abordou a repercussão
do debate entre contagionistas e anticontagionistasno que se
refere à herança versus o contágio da lepra. Ribas admitia que a
medicina e a ciência não tinham chegado ainda a
conhecimentos seguros que permitissem a eliminação do mal, e
por isso mesmo recomendava o isolamento dos doentes. Por se
tratar de doença que requeria segregação por muitos anos, a
melhor opção seriam leprosários operando como pequenas
cidades, com boas instalações e localização geográfica
adequada, de modo a evitar a idéia de degredo do doente.41
Apesar dos indicativos que os congressos em São Paulo já traziam, a internação
compulsória dos hansenianos só pôde ser aplicada nos anos 1930, período que coincidiu
com a ascenção de Getúlio Vargas ao poder federal. Nesse momento, as ações de
controle da lepra não tiveram grande influência na política paulista, pelo contrário,
foram bastante influenciadas pela última.
Em 1924, foi criado o Serviço Oficial de Profilaxia da Lepra
em São Paulo. No ano seguinte, foi apresentada ao legislativo, a
Reforma do Serviço Sanitário, também conhecida como
Reforma Paula Souza. Entre as medidas propostas transformou
o Serviço de Profilaxia da Lepra em a Inspetoria de Profilaxia
da Lepra, efetivamente criado em julho de 1925. Este órgão
subordinado ao Serviço Sanitário, que por sua vez, era
vinculado à Secretária do Interior, sistematizou as políticas de
combate no território paulista.
Havia divergências entre as autoridades médicas locais em
relação à política isolacionista dos doentes. Somente quando
Aguiar Pupo - professor de Clínica Dermatológica e
Sifiligráfica na Faculdade de Medicina de São Paulo, e defensor
do isolamento compulsório - assumiu a direção da Inspetoria de
Profilaxia da Lepra, no governo estadual de Julio Prestes (1926-
40
SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Op. Cit., p. 44. 41
Ibid, p. 45.
40
1930), foi possível priorizar o isolamento compulsório dos
doentes, mas as antigas instituições hospitalares não
comportavam tal política. Em 1928, foi inaugurada a Colônia
Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes. Ela passou a representar o
modelo para as demais colônias de São Paulo, as quais, “por sua
vez, influenciariam as instituições congêneres no Brasil”.42
A Reforma Sanitária ficou conhecida como “Reforma Paula Souza” por conta de
seu idealizador, o médico-sanitarista Geraldo Horácio de Paula Souza. Formado nos
E.U.A., de onde trouxe suas influências, Paula Souza cria os Centros de Saúde, órgãos
eminentemente educativos e profiláticos cuja atuação se dava principalmente junto às
mulheres e crianças pobres.43
Geraldo Horácio de Paula Souza em sintonia com seu tempo,
propôs uma estratégia de saúde pela educação. Em 1922, o
referido médico assume o cargo de diretor do Serviço Sanitário
recomendado ao secretário dos Negócios do Interior pela
Fundação Rockefeller, assumindo também a direção do
Instituto de Higiene, criado com ajuda desta fundação.
Recém chegado dos Estados Unidos onde concluiu o curso de
Higiene e Saúde Pública da Johns Hopkins University, obtendo
o grau de doutor, trouxe consigo novas idéias e concepções
para tratar da saúde pública paulista. Consciente das questões e
carências urbanas, Paula Souza à frente do Serviço Sanitário,iria
atuar diretamente sobre esse meio.44
Tais medidas de centralização das ações adotadas em São Paulo iam ao encontro
das ideias de Vargas para o Brasil. Até então, o papel federal no combate à lepra era o
de controlar o fluxo migratório, impedindo a entrada de novos doentes, o restante ficava
a cargo dos municípios e dos estados.
No início da gestão de Vargas, as ações nacionais ainda estavam centralizadas
pelas instituições filantrópicas, representadas pela Sociedade de Assistência aos
Lázaros, que nos início dos anos 1930 já possuía unidades em São Paulo capital (a
sede); Bauru; Rio de Janeiro (Distrito Federal); São Simão; Parnaíba (Piauí); Juiz de
Fora; Belo Horizonte; Natal (Rio Grande do Norte); Bahia e São Carlos. O governo
paulista era contrário a isso e se manifestava através do IPL (Inspetoria de Profilaxia da
Lepra), representado na figura de seu diretor, Salles Gomes, pedindo para que as
doações fossem feitas diretamente para as caixas beneficentes dos leprosários, o que
42
Ibid. pp. 47 e 48. 43
SILVA, Tânia Soares da, “Carências” : Crianças, mulheres, famílias - As representações na
medicina higienista (São Paulo, 1920-1930). ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE
HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. p. 04. 44
Ibid. p. 03.
41
evitaria desvios e desoneraria o Estado. O governo paulista acreditava que deveria
centralizar as ações de combate à lepra.45
O Governo Vargas iniciou maiores intervenções nesse sentido, principalmente a
partir de 1934, quando Capanema assumiu o Ministério da Educação e Saúde Pública
(MESP). Um primeiro indicativo foi financiar a construção de leprosários em alguns
estados, exceto São Paulo, que o fazia com recursos próprios, mas, num primeiro
momento, as administrações ainda ficaram a cargo dos estados. Capanema começou a
traçar um plano de combate à lepra baseado no tripé leprosário, preventório e
dispensário, uma apropriação das políticas paulistas.
O leprosário seria responsável por isolar e cuidar do doente, o preventório
serviria para abrigar os filhos sãos dos leprosos internados, e o dispensário, por sua
vez, fiscalizaria os parentes e outras pessoas que entrassem em contato com os doentes
internados.
Apesar da aproximação do modelo paulista e das políticas de Capanema, as duas
ainda corriam em separado. O modelo paulista ainda era muito mais ferrenho e
mantinha suas especificidades, principalmente na rigidez com que praticava a
internação compulsória.
Os primeiros anos do governo Vargas foram marcados por forte
instabilidade política, devida, em grande parte, à diversidade de
forças engajadas no processo que culminou com a Revolução de
1930. Os interesses divergentes das elites regionais que
defendiam o federalismo, e dos tenentes, partidários da
centralização, refletiam-se na arena política, tanto na disputa
por cargos na administração pública como na definição dos
rumos do governo. Na concepção das elites regionais,
hegemônicas, cabia ao Estado dinamizar a administração
pública para atingir o crescimento econômico. Isso requeria “a constituição de um aparato governamental que atuasse em todo
o território nacional, conjugando a ação governamental nas
esferas federal, estadual e municipal em um projeto unificado”.
A criação do MESP foi um subproduto da centralização do
poder, da “ampliação da autonomia e da capacidade de
intervenção do Estado brasileiro”, consubstanciada na reforma
administrativa implementada durante o Governo Provisório.46
O Ministério da Educação e da Saúde Pública seria um instrumento de
intervenção federal nos estados, norteador das políticas e ferramenta de combate à lepra. 45
SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Op. Cit., 2006. 46
Ibid., pp. 87 e 88.
42
Até esse período, São Paulo não tinha uma secretaria específica para a saúde, cria, em
1931, a Secretaria do Estado de Educação e da Saúde Pública. No mesmo ano, o diretor
Salles Gomes cria as diversas inspetorias submetidas a essa secretaria, entre elas, a
Inspetoria de Profilaxia da Lepra, que dirigiu com mãos de ferro, extinguindo as
inspetorias municipais e seguindo a tendência de centralização, herdada dos anos de
1920.47
De 1930 até 1934, o MESP passou por um período de adaptação, com trocas
constantes de funcionários e de nomenclaturas nas ações. Isso muda quando Capanema
se fixa no Ministério, de 1934 a 1945. Logo que assume, faz uma reforma, mas mantém
a extinção das Inspetorias de Profilaxia de Lepra e o DNSP, que herdou de seu
antecessor, Washington Pires.
São Paulo, mais uma vez, busca manter-se independente, pondo em prática suas
próprias ações, e Salles Gomes, em 1935, transforma a Inspetoria de Profilaxia da Lepra
em Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL), sob seu comando.
Segundo o relatório de 1935, do Departamento de Profilaxia da
Lepra em São Paulo, seus médicos eram unânimes em
considerar o isolamento dos doentes como a medida profilática
de maior alcance. O isolamento nosocomial requeria número
suficiente de leitos, e o domiciliar, poderia ocorrer somente em
condições muito especiais. Havia então apenas 55 enfermos
nesta condição, enfermos que precisavam ser visitados
regularmente pelos médicos do serviço. A organização
estabelecida no Estado de São Paulo, após 1930, passou a ser
considerada pela literatura médica sobre lepra como uma das
mais eficientes, por organizar o combate à doença
independentemente da União, sem sujeitar-se às políticas
federais.
A União começava, porém, a mudar, aproximando-se do
modelo instituído em São Paulo. Em 1935, Ernani Agrícola –
um dos principais personagens das políticas de combate à lepra
ao longo da Era Vargas, ocupava a direção dos Serviços
Sanitários Federais nos Estados. Posteriormente ocuparia outros
cargos na burocracia do Ministério da Educação e Saúde – e
Joaquim Motta, assistente da Secção Técnica Geral de São
Paulo, apresentaram projeto que visava a construção de novos
leprosários e a melhoria dos já existentes.48
No ministério de Capanema, os serviços de combate à lepra avançaram dentro
do citado trinômio constituído pelos leprosários, preventórios (ou educandários) e
47
Ibid. 48
Ibid., pp. 93-94.
43
dispensários, em parceria com as Associações de Defesa dos Lázaros e Defesa contra a
Lepra, que eram filantrópicas e laicas e ajudavam nas construções e administrações
desse tripé. Ainda assim, São Paulo continuava alegando e propagandeando a
supremacia de seu programa, e atribuindo a isso a independência e autonomia com
relação ao governo federal.
No gráfico a seguir, vê-se o crescimento no aparecimento de novos casos da
doença em São Paulo e o grande número de internações realizadas pelo Estado.
49
Nota-se que em 1937, poucos anos depois de São Paulo iniciar sua proposta e 3
anos depois de Capanema empreender um modelo parecido em nível nacional, o
“projeto paulista” demonstrava sucesso nos dados apresentados, com um número de
internações bem maior do que o de surgimentos de novos casos. Se a proporção
seguisse, rapidamente todos os doentes estariam internados.
O governo paulista atribuía tal sucesso aos investimentos especiais que fazia no
projeto e a presença de grandes especialistas, médicos-sanitaristas e leprologistas
atuando no estado.
49 Deve-se relativizar esses dados, levando-se em consideração que os leprosários e a internação
compulsória só são institucionalizados em 1930-31, e que a atenção sobre a lepra bem como a
densidade demográfica aumentam nesse período.
44
Tendo São Paulo como exemplo, no ano de 1940, o governo federal fez um
grande investimento em todo o território nacional, principalmente nas regiões Norte e
Nordeste. O plano de distribuição da verba de 10.000 contos para o combate à lepra, em
1940 (Processo 23.228-40), foi encaminhado pelo ministro Capanema ao presidente
Vargas, no dia 24 de junho. Logo em seguida, o presidente autorizou integralmente a
distribuição das verbas propostas.50
Tais investimentos eram utilizados na construção de
leprosários e preventórios por todo território nacional.
São Paulo possuía então a maior rede de leprosários do país, que, ainda assim,
operavam em superlotação. As verbas federais eram utilizadas na manutenção dessa
rede e do preventório de Jacareí.
Documento ministerial do mesmo ano dividia a campanha
contra a lepra no período entre 1931 e 1940 em duas etapas – de
1931 a 1935, e de 1936 a 1940. Na primeira fase, a ação do
governo federal não obedecera a nenhum plano, sendo os
auxílios concedidos para construção e reforma de leprosários. A
segunda etapa seguira o plano elaborado em 1935, com a
ampliação do número de instituições do aparelho anti-leproso –
leprosários, dispensários e preventórios.51
Era notória a desorganização federal em uma fase inicial para o combate à lepra.
As mudanças nos rumos das políticas nacionais para esse fim - a partir da consolidação
de Gustavo Capanema a frente do MESP, bem como a grande influência do “modelo
paulista”, colocado como vanguarda nos congressos internacionais de leprologistas, nas
proposições de Capanema e Vargas - passaram a encarar a lepra como um problema de
saúde nacional num segundo momento.
A tabela apresenta os leprosários construídos apenas com verbas federais:
50
SANTOS, Vicente Saul Moreira dos, Op. Cit., p. 111. 51
Ibid.
45
(Tabela encontrada em: SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Entidades Filantrópicas &
Políticas Públicas no Combate à Lepra: Ministério Gustavo Capanema (1934-1945). Dissertação
(Mestrado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de
Janeiro, 2006. p. 118.)
Em 1945 ainda havia dois leprosários em construção, com as obras paralisadas
porque os governadores dos Territórios tinham desviado as verbas para outras
aplicações, um em Cruzeiro do Sul e outro em Rio Branco.52
Já leprosários construídos com parcerias entre governos estaduais e a União
eram:
52
SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Ibid., p.119.
46
(Tabela encontrada em: SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Op. Cit., 2006. P. 119.)
Nota-se que, a partir do Ministério de Capanema, o governo Vargas passou a
investir na criação de órgãos e construção de estruturas para o combate à lepra, tal
projeto foi uma apropriação do “modelo paulista”, o Ministério de Capanema acabou
em 1945, junto com o governo de Getúlio Vargas.
Nestes anos de 1930-45, o “modelo paulista” se tornou matriz, em nível
nacional, com certa centralização das ações e maiores investimentos. Apesar disso, São
Paulo continuou com suas ações de maneira autônoma. O próximo capítulo discutirá os
meandros dessas ações ao investigar-se o Sanatório Padre Bento, considerado padrão
dentro do “modelo paulista”.
47
2 – Leprosário do Padre Bento: Padrão, Caixa Beneficente e Pérgola
Este capítulo apresenta inicialmente uma discussão sobre as peculiaridades do
Sanatório Padre Bento, tido como um modelo de internação manicomial para
hansenianos, o convívio entre os internos e as relações estabelecidas, a sociabilização
bem como as angústias. Também focaliza a atuação da Caixa Beneficente do Padre
Bento, um órgão privado, fundado com intuito de zelar pelos internos. Para finalizar,
focaliza a Pérgola, um monumento belo, que centralizava o namoro dentro do
leprosário, encerra este capítulo discutindo o destino dos frutos desse namoro; os filhos
dos hansenianos internados.
2.1 – Leprosário Padre Bento: Padrão, Gestão e Práticas
A visita que fiz, há dias, ao “Leprosário do Padre Bento”, deu-
me ensejo a admirar a eficiência dos serviços brasileiros de
combate á lepra, e posso dizer essas palavras em plena
consciência porque me refiro a um assunto de que estou
informada e de que conheço a evolução no plano internacional.
Um leprosário servido por enfermeiras-laicas, italianas, que
prestaram juramento, há três anos, para esse longo e admirável
ato de devoção. Heroínas que acordaram, na minha memória, a
recordação de outras heroínas, também visitadas por mim, há
oito anos, num leprosário português, o “Hospital Rovisco Pais”,
e são as irmãs de São Vicente de Paula. (...)53
O fragmento acima abre um artigo da colunista do jornal “O Estado de São
Paulo” Maria Archer, intitulado “Heroínas”, e ressalta a eficiência e o avanço da
política brasileira para o tratamento dos leprosos. A autora afirma isso pautada por uma
visita que realizara no Sanatório do Padre Bento, em Guarulhos, e faz comparação com
leprosários que conhecia na Europa.
Entretanto, como já analisado, o Padre Bento não foi fruto de uma política
nacional, mas sim do chamado “modelo paulista”54
, que podia ser considerado uma
53
ARCHER, Maria. Heroinas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 21 de janeiro de 1956.
Suplemento feminino, p. 03. 54 O modelo paulista privilegia a internação manicomial em detrimento da domiciliar. São Paulo
era o único estado a não assinar os protocolos federais. Nesse período, apesar das intervenções
federais, os estados da federação gozavam de maior autonomia.
48
exceção, “o cartão de visitas” do Departamento de Profilaxia da Lepra55
. Tendo até sido
escolhido como cenário do filme “Onde a Esperança Mora”, produzido pela Carrari
Filmes, em 1948, um curta-metragem, de aproximadamente 13 minutos.56
O filme traz uma sequência de imagens com uma narração que tenta dar um tom
de documentário científico. No início, retrata como seria a vida dos leprosos nos anos
1920, mendigando à beira das estradas ou passando em casas. O leproso é representado
por um homem de pele mais escura e mal vestido, um pobre miserável, excluído
socialmente. Em seguida, aparecem imagens da cidade de São Paulo nos anos 1930, tida
como um símbolo do progresso, com seus edifícios, pontes, indústrias e escritórios. É
nesse contexto que um homem branco, jovem e bem vestido descobre que está com
hanseníase e é internado no Sanatório Padre Bento. Lá é bem tratado pelos médicos,
bem alojado, desfruta das áreas esportivas e de lazer, flerta, dança, vai ao cinema,
biblioteca, etc., sempre na companhia de pessoas do mesmo perfil, sem chagas visíveis,
com “boa aparência”, jovens e brancos. Passado um ano, já curado, é liberado para
voltar ao convívio social.
Nota-se no filme um caráter propagandista, a escolha do Sanatório do Padre
Bento como cenário se deu por ser o mais avançado estruturalmente dentre os
leprosários paulistas. Foi realizado em 1948 porque naquela época já havia a
possibilidade de cura - as sulfonas (medicamento que levou a cura) foram introduzidas
no Padre Bento em 1944, pelo então diretor, Dr. Lauro de Souza Lima57
. Não teria tanta
aceitação um filme que não terminasse com a cura, que mostrasse apenas a exclusão, o
que ocorreu na maior parte da existência dos leprosários. O curta até chegou a mostrar
rapidamente os tratamentos torturantes, feitos com centenas de injeções de óleo de
chaulmoogra58
nas manchas, o que posteriormente se soube, de nada adiantava. Mas
55 O departamento de Profilaxia da Lepra (DPL) respondia pela identificação dos casos de
hanseníase e pela internação compulsória. 56
O filme encontra-se disponível no acervo iconográfico do Instituto Lauro de Souza Lima, e
foi reproduzido digitalmente no site: https://www.youtube.com/watch?v=duBJRjI6Dzw. 57
Dr. Lauro, médico leprologista, foi diretor do Departamento de Profilaxia da Lepra do Estado
de São Paulo, Consultor Científico da ONU, representante brasileiro nos congressos
internacionais de Leprologia, membro da Conferência Pan-Americana de Leprologia do Rio de
Janeiro, e diretor do Sanatório Padre Bento durante 20 anos, onde foi o pioneiro na introdução
do tratamento sulfônico no Brasil. 58
As plantas conhecidas pela designação de chaulmoogras pertencem à família das
Flacourtiáceas, e seus óleos contêm os ácidos hidnocárpico e chaulmúgrico, que são
considerados os responsáveis pela ação terapêutica nos casos de lepra. Porém, na maioria dos
caos, seu uso apenas apresentava uma melhora temporária dos sintomas.
49
isso só serviu como ponto inicial para demonstrar os avanços feitos e ressaltar ainda
mais a excelência que haviam atingido à época.
Fundado em 1931, o Sanatório do Padre Bento seguiu um caminho oposto ao
proposto por Foucault59
como forma de controle social. Para o autor, os manicômios
surgiram para substituir os leprosários como mecanismo de controle e higiene social.
Entretanto, no caso do Padre Bento ocorreu o contrário: a transformação de um
manicômio em leprosário.
O Sanatório São Paulo foi inaugurado como uma instituição para tratamento de
doentes mentais. Logo em seguida, em 5 de junho do mesmo ano, foi adquirido pelo
Estado e transformado no Sanatório do Padre Bento (SPB), para internação compulsória
e tratamento de leprosos, contando naquela data com 83 pacientes.
Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem
de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas
justamente o contrário: que o capitalismo, desenvolvendo-se em
fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um
primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção,
força de trabalho. O controle da sociedade pelos indivíduos não
se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas
começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático,
no corporal que, antes de tudo investiu a sociedade capitalista.
O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma
estratégia bio-política.60
O sanatório era apresentado como o que havia de mais moderno e até mesmo
humano no combate à lepra, mas de fato o Padre Bento e, consequentemente, Guarulhos
serviram como uma espécie de apêndice da cidade de São Paulo, um local onde as elites
e o governo paulista acomodavam aquilo que não era mais bem-vindo dentro do ideal de
modernidade trazido com os edifícios e fábricas dos anos 1920 e 1930.
O Sanatório do Padre Bento contava com uma vila de moradias, um prédio que
abrigava a caixa beneficente, cinema, teatro, biblioteca, cassino, salão de baile,
barbearia, campo de futebol, chácara para a criação de gado, laboratórios, sala para
palestras e escola profissional, constituindo um complexo com aproximadamente 340
mil metros quadrados.
59
FOUCAULT, Michel. Op. Cit.. 60
Ibid., p. 80.
50
Planta do Sanatório Padre Bento feita no ano de 1952. (Arquivo Histórico de Guarulhos)
Destaca-se na parte superior da imagem da planta do sanatório o campo de
futebol, com medidas oficiais, o que traz uma dimensão do tamanho do Padre Bento. Na
parte direita, a entrada e os pavilhões, que eram divididos por sexo.
Os pavilhões possuíam quartos coletivos, hall, sala de estar e saguão, como é
possível ver nas imagens seguintes:
Planta do Pavilhão Central do Sanatório Padre Bento. (Arquivo Histórico de Guarulhos)
51
Planta de uma das Alas do Pavilhão Masculino do Sanatório Padre Bento (Arquivo Histórico de
Guarulhos)
Essa infraestrutura não era comum nos demais leprosários do Estado de São
Paulo. Aliás, o Padre Bento pode ser tido como uma exceção em vários sentidos.
Lá não se encontravam pacientes em um estágio tão avançado da doença, com o
corpo deteriorado em demasia. Também era o único leprosário onde havia um pavilhão
só para menores e uma área de lazer tão grande, com belos monumentos arquitetônicos.
Além disso, a questão de classe estava presente. Nos depoimentos do ex-interno, Sr.
Arnaldo, e do ex-funcionário do Departamento de Profilaxia da Lepra, Sr. Domingos61
,
chama a atenção o apontamento de que lá havia filhos de engenheiros, empresários e até
mesmo o dono de um entreposto de café.
61
Sr. Domingos é funcionário do atual Hospital Padre Bento. Entretanto, trabalhou no antigo
Departamento de Profilaxia da Lepra, indo nos anos 1960 para o Padre Bento, já no período de
extinção da internação compulsória. Ainda assim, teve contato com diversos pacientes
remanescentes do leprosário, conhecendo muitas histórias e pesquisando o assunto.
52
Sanatório Padre Bento, São Paulo. Casas de propriedade da Caixa Beneficente, destinada a
alugar aos leprosos mais ricos. In: ARAUJO, H. C. Souza. História da Lepra no Brasil. Álbuns
das Organizações Antileprosas – Período Republicano (1889 – 1946). Rio de Janeiro. Imprensa
Nacional, 1946.
Sanatório Padre Bento, São Paulo. Tipo de residência para grupos de leprosos, reunidos de
acordo com sua condição social e forma clínica da doença. In: ARAUJO, H. C. Souza. História
da Lepra no Brasil. Álbuns das Organizações Antileprosas – Período Republicano (1889 –
1946). Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1946.
Os títulos das imagens acima evidenciam o caráter elitista de alguns pacientes do
Padre Bento, bem como uma divisão do espaço físico através do critério de classe.
A primeira é intitulada “Sanatório Padre Bento, São Paulo. Casas de
propriedade da Caixa Beneficente, destinada a alugar aos leprosos mais ricos”,
demonstrando que mesmo dentro dessa instituição, que era pública, havia espaço para
usufruir de sua posição social e de seu poder de compra.
53
A segunda imagem chama-se “Sanatório Padre Bento, São Paulo. Tipo de
residência para grupos de leprosos, reunidos de acordo com sua condição social e
forma clínica da doença”, novamente denota que a divisão física e o tratamento dos
pacientes não tinham como critério apenas a análise clínica, mas também a condição
social. Não está claro se os títulos das imagens foram dados pelo próprio autor62
- um
leprologista que organizou uma coleção sobre a hanseníase no país intitulada “A
História da Lepra no Brasil”63
, contendo uma série de imagens das instituições
antileprosas - ou se pela direção do leprosário que também as veiculava, tendo assim o
leprologista fotógrafo apenas reproduzido. Em qualquer das hipóteses, a questão
classista no sanatório está posta, e não de forma velada.
Isso, possivelmente, porque os asilos-colônias de hansenianos foram
organizados distantes dos centros urbanos, com exceção do Sanatório Padre Bento, o
mais próximo da capital, onde eram mantidos pacientes sem sinais visíveis da doença,
em geral pessoas de maior prestígio ou poder aquisitivo. Na década de 1930 esta região
quase não era habitada, mas tinha proximidade com a Avenida Guarulhos, caminho para
Penha, e como ramal do trem da Cantareira, que desde 1915 ligava Guarulhos à Zona
Norte de São Paulo (Estação Gopoúva, a mais próxima do Padre Bento), fazia do
sanatório um lugar de fácil acesso, relativamente próximo à capital.64
Outra singularidade do Sanatório Padre Bento era o pavilhão de menores, único
nos leprosários paulistas, recebendo pacientes de várias regiões. O local ainda dispunha
de uma escola técnica, onde se aprendiam ofícios como a marcenaria, por exemplo, e
era a “menina dos olhos” do diretor do Padre Bento, Dr. Lauro de Souza Lima, segundo
62
Heráclito Cesar Souza Araújo, que nasceu no estado do Paraná, em 1886. Formou-se na
Escola de Farmácia de Ouro Preto, em Minas Gerais, e foi inscrito imediatamente na Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro, terminando lá o curso em 1915. Enquanto ainda era estudante,
ele também concluiu o Curso de Aplicação oferecido pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC), em
1913. Araújo recebeu seu doutorado da IOC, com sua tese intitulada Estudo Sobre o granuloma
venéreo. Sua formação foi concluída com os cursos em Saúde Pública na Universidade Johns
Hopikins, nos EUA, em 1926, e em Dermatologia, na Faculdade de Dermatologia de Londres,
entre 1930 e 1931. Após a formatura, permaneceu afiliado com o Instituto Oswaldo Cruz e
começou a concentrar-se na área da hansenologia. Durante os anos 1920, serviu como chefe do
Serviço Sanitário Rural do Pará, abrindo um leprosário. Mais tarde, ele escreveu uma
monografia sobre o leprosário paraense. Como pesquisador da IOC, publicou cerca de 210
trabalhos científicos e dirigiu o Laboratório de Leprologia, de 1927 a 1956. 63 ARAUJO, H. C. Souza. História da Lepra no Brasil. Álbuns das Organizações Antileprosas.
Rio de Janeiro. Imprensa Nacional. 64
RÚBIO, Op. Cit.
54
depoimento do Sr. Domingos65
. As peculiaridades também foram citadas em algumas
publicações da revista da Caixa Beneficente. Em um artigo da publicação de 5 de maio
de 1943, foi ressaltado o trabalho realizado no pavilhão de menores, a vivacidade dos
jovens ao aprender, ao praticar esportes, teatro, dança etc.
65
Ibdem 13.
55
Fotocópia de artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa Beneficente (1943).
É um vasto e belo edifício de andar térreo e superior, formado
por duas alas unidas ao centro por um amplo refeitório. Um
espaçoso porão dispõe ainda de várias acomodações para sala
de aula e outras utilidades. Edificação em bonito estilo
arquitetônico, assenta no alto de graciosa colina, de onde se
descortinam lindos panoramas em cuja beleza e plenitude a
56
nossa vista alcança paisagens da capital do Estado e seus
subúrbios. Contornam o Pavilhão de Menores lindos jardins, o
seu Parque de Diversões, a sua piscina e um grande número de
brinquedo que fazem a alacridade louçã de cerca de 300
crianças, almas em flor tão cedo arrebatadas ao aconchego de
seus lares e ao carinho de seus pais.66
Inaugurado em 1936, o Pavilhão de Menores abrigava cerca de 300 crianças e
adolescentes, entre 5 e 17 anos de idade. Meninos e meninas eram separados em alas
diferentes. O pavilhão contava ainda com escola, área de lazer e era separado do
restante do complexo por uma área arborizada.
No Pavilhão de Menores, pois, as crianças internadas, em
conforto, em desvelo, em carinho, enfim, em tratamento afetivo
e lhano, bem como em instrução e educação, um verdadeiro
complemento do lar paterno. Ao lado do tratamento prescrito
pela ciência médica. E ao influxo da bondade sem par do ilustre
Dr. Lauro, que as anima e reconforta, e do seu digno e operoso
diretor, professores e funcionários, os seus dias decorrem num
ambiente de calma e serenidade, de bem estar e de conforto, em
busca da saúde que as há de reconduzir um dia ao seu lar
venturoso, à sua família, à sociedade e à Pátria, que nelas
confiam e esperam.67
Ainda hoje, é possível encontrar móveis no atual Hospital Padre Bento que
foram feitos por jovens aprendizes de marcenaria. Ressaltando que não foi encontrado
nenhum registro de violência contra esses menores durante a pesquisa. Todos os
serviços do pavilhão foram bastante elogiados, exceto por algumas reclamações da
cozinha.68
Mesmo gozando do convívio de outras crianças, era dura a separação dos
menores dos pais e da família. O Sr. Arnaldo Rúbio, que ficou internado dos 6 aos 18
anos, relata com muita emoção o fato de seu pai, também hanseniano, ter sido internado
em outro leprosário, em Bauru, interior de São Paulo, o que fez com que a família o
acompanhasse, deixando Arnaldo sozinho no Padre Bento, o único dos cinco leprosários
do estado a ter um pavilhão para menores hansenianos.
No começo, minha mãe ainda vinha me visitar. Mas estava
muito difícil ter que viajar para Bauru para ver meu pai com os
66 Fragmento do artigo “Pavilhão de Menores”, publicado na Revista Padre Bento, em maio de
1943. 67 Ibid. 68
RÚBIO, Op. Cit.
57
outros filhos e eles acabaram mudando para lá. Fiquei sozinho
aqui, era uma criança, tinha só 6 anos...69
Nem mesmo o campo de futebol, descrito com grande empolgação, foi capaz de
apagar a memória de sofrimento. Possuía medidas oficiais, pintado em branco e preto,
cores do Sport Clube Corinthians Paulista, segundo relatos, time de futebol do coração
do diretor Dr. Lauro de Souza Lima, muito querido pelos internos, sempre elogiado por
seu lado humano e tido nos relatos dos pacientes como um dos poucos que não
demonstrava medo ou nojo dos doentes.
Em discurso feito a alunos de Medicina que visitaram o Padre Bento, Dr. Lauro
demonstrou sua lógica humanista ao ressaltar o fato de que não é pela lepra ser uma
doença ainda incurável que o leprosário deveria se tornar apenas um depósito de
pessoas, que seu objetivo era o de amenizar o sofrimento dos pacientes, seja o físico ou
as angústias causadas pelo estigma da doença. Dr. Lauro também foi o primeiro a
introduzir e testar as sulfonas no Brasil, novamente sendo o Padre Bento o pioneiro
desse tratamento que possibilitou a cura. Residia no sanatório, de onde, segundo
contam, só saía para acompanhar os jogos de seu time de coração.70
Foi justamente durante a gestão do Dr. Lauro que o leprosário passou por
grandes obras de ampliação e melhoria. O salão de baile tinha câmara para orquestra e
recebia festas de gala, onde os internos dançavam e flertavam. O cassino era luxuoso,
considerado o melhor dentre os existentes em leprosários. O cinema era espaçoso,
entretanto, dividido em duas áreas, uma para homens e outra para mulheres. Ainda
havia quadras poliesportivas, quadra de tênis.
Os internos conseguiam algum dinheiro trabalhando nas obras e benfeitorias
financiadas pela Caixa Beneficente, que arrecadava doações da elite paulista. Aliás, toda
essa estrutura suntuosa só se tornou possível através das doações recolhidas pela Caixa
Beneficente do Padre Bento em parceria com a gestão do Dr. Lauro. Foi possível
encontrar tabelas de campeonatos e resultados de jogos realizados entre os internos na
revista de circulação interna produzida pela Caixa Beneficente.
69 Sr. Arnaldo Rúbio, ex-interno, em entrevista concedida ao autor em agosto de 2009. 70
Giannini, Sérgio Diogo. Santos Médicos – Médicos Santos. 1ª ed. São Paulo: Editora Panda,
2004. págs. 160 – 163.
58
Esse veículo interno, aliás, foi fonte para o desenvolvimento desta pesquisa.
Além dos resultados dos campeonatos internos, divulgação dos eventos, também era um
espaço para publicação de boletins médicos sobre os avanços no combate à doença e
ainda contava com espaço para publicação de poemas, contos, artigos, produzidos pelos
hansenianos.
Nas publicações produzidas pelos internos, nota-se um grau elevado de
conhecimento, poemas sobre a Segunda Guerra Mundial, a expectativa de uma cura e a
saudade da liberdade. Entretanto, é passível de desconfiança a falta de críticas diretas e
incisivas ao Leprosário do Padre Bento e à política de internação compulsória,
indicando uma possível censura prévia.
Tal publicação era interna e trimestral, pode-se perceber no citado artigo sobre o
Pavilhão de Menores um ar panfletário, de propaganda. Isso pode nos remeter à ideia de
que a revista também era utilizada como forma de construção de um imaginário, de uma
visão positiva da instituição junto aos internos, com objetivo de evitar rebeliões,
revoltas e novas fugas. A dominação não se dá apenas pela imposição, mas também
pelo convencimento.
Os valores não são “pensados”, nem “chamados”; são vividos,
surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e as
relações materiais em que surgem as nossas ideias. São as
normas, regras, expectativas, etc. necessárias e aprendidas (e
“aprendidas” no sentimento) no “habitus” de viver; e
aprendidas, em primeiro lugar, na família, no trabalho e na
comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não
poderia ser mantida e toda produção cessaria.71
A estrutura do Sanatório do Padre Bento visava amenizar o desespero de um
isolamento. Entretanto, a falta da família e da liberdade foram sempre citadas pelos ex-
internos, uma experiência sofrida, cuja revista é quase didática ao sublimar esse lado da
internação e ressaltar as possibilidades de convivência oferecidas pelo suntuoso
sanatório.
Também fica nítida a insatisfação por parte dos hansenianos com a internação
compulsória pelo alto número de fugas ocorridas no local.
71
THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao
pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 194.
59
Lista de fugas ocorridas de janeiro a junho de 1938, encontrada no Livro de Registros do
Sanatório do Padre Bento.
60
A lista conta com mais de 100 nomes de internos que conseguiram fugir entre
janeiro e junho de 1938. Trata-se de um rol predominantemente masculino, com uma
dezena de mulheres. Isso pode ser reflexo da sociedade sexista da época, onde uma
egressa teria maior dificuldade em se virar sozinha e seria recriminada pela família, ou
até mesmo um indicativo de que as mulheres não se sentissem livres em lugar algum, e
se conformavam com o convívio e o relativo ambiente de conforto e sociabilidade que a
estrutura do leprosário permitia.
Na tentativa de encontrar possíveis fugitivos, identifica-se que boa parte deles
buscou asilo no Rio de Janeiro, onde poderiam circular com menos riscos de serem
apreendidos novamente, o que reforça a ideia discutida no primeiro capítulo, de uma
perseguição aos doentes muito mais ferrenha no Estado de São Paulo.
A revolta dos internos, que já vinha dando sinais nas fugas e em algumas
manifestações, atingiu um ponto alto e se materializou em 1945, quando, segundo relato
do Sr. Arnaldo Rúbio encontrado em seu livro de memórias, todos os asilos-colônias
fervilham sobre liderança da deputada Conceição da Costa Neves72
.
No Padre Bento, foi roubado o busto do diretor do Departamento de Profilaxia
da Lepra, Dr. Salles Gomes, presente em uma das praças do complexo. Durante a
madrugada, alguns internos retiraram a escultura do local e a esconderam debaixo de
um dormitório. Informado de uma possível rebelião no Padre Bento, Salles Gomes
acionou a polícia e se dirigiu para o sanatório. A polícia chegou primeiro que o diretor,
72
Nascida em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 17 de outubro de 1908, filha de Manoel da Costa
Neves e Maria do Espírito Santo Neves, Conceição fez seus primeiros estudos nos Colégios
Santa Catarina e Stela Maris. Com apenas 21 anos de idade, usando o nome artístico de Regina
Maura, estreou no palco, na comédia Dinheiro anda por aí (Das Gildauf der Strasse), levada à
cena em 6 de junho de 1930, pela Companhia Procópio Ferreira, no Teatro Trianon, no Rio de
Janeiro. Com a trupe, percorreu o país encenando nos teatros brasileiros diversas peças cômicas,
sua especialidade. Em 1934, foi eleita rainha das atrizes, tendo recebido o título das mãos de
Lourival Fontes, secretário da prefeitura do Distrito Federal. Ainda na década de 19330, passou
a viver com Procópio Ferreira, fixando residência em São Paulo. Em 1938, casou-se com o
médico Matheus Galdi Santamaria, de quem se separou legalmente em 1955. Durante
a Segunda Guerra Mundial, entre 1943 e 1945, foi diretora da filial de São Paulo da Cruz
Vermelha. Pela escola dessa entidade também foi samaritana e monitora. Fundou a Associação
Paulista de Assistência ao Doente da Lepra, da qual foi sempre sua presidente. Seu trabalho em
defesa das vítimas da lepra a tornou conhecida através da imprensa e, em 19 de janeiro 1947,
iniciou sua carreira política tendo sido a única mulher eleita à Constituinte Paulista, com 12.119
votos, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do qual foi uma das fundadoras. Foi a terceira
parlamentar mais votada entre 75 deputados.
61
com a ordem de desarmar os internos e prender aqueles que possuíssem armas. Ao
perceber que não havia armas e que os revoltosos eram pacientes mutilados e acamados,
a polícia se retirou, mas não sem antes entoar o hino nacional acompanhada por alguns
internos em suas janelas. Sendo este um exemplo dos efeitos do sentimento nacionalista
estimulado pelo Governo Vargas nos anos que antecederam 1945, e como isso
reverberava nas pessoas e nas instituições.
O apoio da deputada Conceição da Costa Neves as manifestações ocorreu em
1945, depois da saída de Vargas, seu correligionário do PTB no governo federal.
Entre 1944 e 1970, foi considerada a “mãe dos leprosos”, defendendo os
interesses dos internos, se reunindo com fugitivos dos leprosários, organizando motins...
Seu interesse pelos doentes é atribuído ao fato de ter sido casada com um médico. Esta,
tecia críticas duras ao modelo de internação compulsória, às superlotações dos
leprosários, à falta de medicamentos e direitos aos hansenianos.
Tal bandeira a daria certa notoriedade da mídia. Conceição então resolveu
candidatar-se, em 1944, ao cargo de deputada estadual. Reuniu-se com os internos no
cinema do Padre Bento para expor sua intenção de continuar a luta por melhores
condições para os leprosos. Para isso, precisaria contar com o apoio dos familiares dos
internos, já que os doentes não tinham direito a voto.73
D. Conceição da Costa Neves foi eleita e se manteve na função por 16 anos. Sua
principal conquista foi a lei federal número 1.430, de 14 de outubro de 1951, que dava o
direito a voto aos hansenianos internados, o que trouxe a eles uma maior participação na
democracia representativa e aumentou, por consequência, o seu número de votantes
para as eleições seguintes. Isso também conferiu aos hansenianos um maior poder de
barganha junto às outras esferas do poder público, nas palavras do ex-funcionário do
Departamento de Profilaxia da Lepra, Sr. Domingos: “O que interessa pra político é
voto.”
D. Conceição também foi ativa no combate aos supostos desvios das doações
realizadas à Caixa Beneficente que deveriam ser revertidas em benfeitorias aos internos.
Cabe, então, discutir o caráter, finalidade e atuação prática de tal instituição.
73
RÚBIO, Op. Cit., p. 146.
62
2.2 – Caixa Beneficente: Ações e Fraudes
A Caixa Beneficente, fundada em 1931, era grande, realizou muitas obras no
Padre Bento. A área esportiva foi totalmente construída pela Caixa Beneficente,
inclusive o campo de futebol com medidas oficiais.
O dinheiro vinha de donativos e da venda da Revista Padre Bento, organizada e
vendida pela própria Caixa Beneficente de dezembro de 1932 a 1944, havendo um
intervalo de de 1933 a novembro de 1936, talvez por problemas de direção.
Fotocópia da capa do primeiro exemplar da Revista Padre Bento, dezembro de 1932.
63
Fotocópia da capa do segundo exemplar da Revista Padre Bento, fevereiro de 1933.
As imagens acima são das duas primeiras capas da revista Padre Bento, de
dezembro de 1932 e de fevereiro de 1933. No geral, a revista costumava sair
trimestralmente, apesar de, nesse caso específico, ter havido um intervalo menor.
Percebe-se que as imagens das capas foram feitas de ângulos diferentes de um
mesmo local, a vista de entrada do Sanatório, o pavilhão central, o maior e o que possui
o nome da instituição em destaque. Isso foi uma tônica na revista: a exaltação da
opulência estrutural do Padre Bento.
Na segunda imagem, pode-se ver os preços das assinaturas, no canto direito
superior da capa, o que não há na primeira, que talvez tenha sido um piloto para testar a
64
sua aceitação. Nesse momento havia três diferentes tipos de assinatura anual: a comum
custava 10$000 (dez mil réis), podendo ser adquirida por qualquer pessoa; a
cooperadora, para aqueles mais compadecidos e com maior possibilidade de ajudar na
causa, ao dobro do preço da primeira, 20$000 (vinte mil réis); e, por último, o preço
especial para internados de 5$000 (cinco mil réis). Apesar da liberdade cerceada e de
serem o mote da revista, os internos também tinham que arcar com um custo, mesmo
que menor, para poder adquirir a revista. Além das assinaturas anuais, a revista também
era comercializada de maneira avulsa, por 1$000 (mil réis) cada número, o que
demonstra que a intenção dos assinantes era a de contribuir, já que, dada a periodicidade
da revista, que variava de 2 a 3 meses, sairia mais barato adquirir os números
individualmente do que fazer uma assinatura anual.
A Revista Padre Bento era uma vitrine das atividades realizadas dentro do
sanatório. Havia na publicação notícias dos eventos, das visitas recebidas, das festas,
dos jogos realizados, das melhorias estruturais, além de textos com os avanços nas
pesquisas médicas e dos agradecimentos aos que contribuíam com a Caixa Beneficente,
fazendo dela uma grande propaganda interna e externa. Internamente, no sanatório,
servia como convencimento dos pacientes de que estavam sendo tratados dentro com
que havia de mais moderno e humano, além de exaltar a estrutura e o convívio, passava
a sensação de normalidade, tentando assim evitar rebeliões ou fugas. Externamente,
servia para que os doadores acompanhassem o bom uso feito de suas doações,
acalentando sua consciência e estimulando novas doações.
Nesse sentido, trazia, inclusive, publicações para se autopromover, além de
exaltar os médicos sanitaristas, a direção do sanatório e o próprio Estado de São Paulo.
65
Fotocópia do artigo publicado na Revista Padre Bento, em 1933. Caixa Beneficente.
Quem vae a Guarulhos pela ampla estrada de rodagem ou pelo
Tramway da Cantareira, ao chegar à próspera Villa de
Gopouva, situado no alto de uma colina de clima salubérrimo, a
poucos kilometros da Capital – divisa logo à direita – entre a
bella paisagem que se lhe descortina – um lindo predio, de
66
propriedade do Governo do Estado, ladeados de jardins e
dividido em tres pavilhões, ostentando na fachada do Pavilhão
central os seguintes dizeres: SANATORIO PADRE BENTO,
em memoria do grande Apostolo da Caridade que foi o Padre
Bento José Dias Pacheco.
Ahi, vivem rodeados de carinho e de todo o conforto, mais de
uma centena de Hanseanos.74
Nesse artigo, intitulado Caixa Beneficente, foi exaltada novamente a estrutura do
Padre Bento, falando-se em carinho e conforto. Também foi manifestada admiração à
figura do diretor do Departamento de Profilaxia da Lepra, Dr. Salles Gomes75
, figura
que, segundo relatos, era bastante autoritária. Além disso, o texto ressalta a grandeza e o
pioneirismo do Estado de São Paulo, evocando a memória construída da figura do
bandeirante.
São Paulo de gloriosas tradições, terra do Bandeirante invicto,
terra do trabalho e do progresso, não podia ficar indifferente ao
importante problema da lepra em nosso Estado.76
Tal construção identitária era bastante característica desse período e está sempre
presente nos discursos políticos e, principalmente, nos de caráter eugenista, num
processo de invenção da paulistaneidade.
Nestes campos de luta, reconstruiu-se o papel dos paulistas na
formação histórica brasileira e local, através da “invenção” do
mito do bandeirante, compondo uma narrativa histórica que
valorizava o português mestiçado com o indígena com seu
papel central na condução do processo colonizador, que
partindo do Planalto de Piratininga, desbravou os sertões. Os
bandeirantes foram romantizados como destemidos
desbravadores que alargaram e consolidaram o território
nacional, deixando de lado o aventureiro apresador de
indígenas. A simbologia serviu para construir a trajetória
paulista como o único e decidido percurso rumo ao progresso,
encobrindo conflitos, diferenças e legitimando a hegemonia
paulista no governo nacional. Este mito se tornou a marca do
espírito paulista (iniciativa, valentia, arrojo, tenacidade) e seus
74 Fragmento do artigo “Caixa Beneficente”, publicado na Revista Padre Bento, em 1933. 75
Dr. Francisco Salles Gomes Júnior era médico leprologista e dirigia o DPL (Departamento de
Profilaxia da Lepra). Ficou conhecido por sua intransigência quanto à necessidade e os
benefícios da internação compulsória mesmo no estágio não contagioso da doença. 76 Fragmento do artigo “Caixa Beneficente”, Idem.
67
herdeiros (os paulistas de 400 anos) mantinham geneticamente
este espírito heroico.77
Já no final do documento, os autores do artigo (Caixa Beneficente), teciam
grandes elogios ao diretor do Sanatório Padre Bento, Dr. Lauro de Souza Lima, que era
bastante querido pelos internos e fundador da Caixa Beneficente, cuja parte do estatuto
que destacava sua missão era citada no artigo: “Zelar pelo interesse moral, material e
espiritual de todos, prover-lhes suas necessidades, fomentar esportes e promover
diversão”. O que tornava a Caixa Beneficente bastante útil ao Estado era o fato dela
conseguir doações para investir na estrutura e bem-estar dos pacientes, deixando o
ambiente melhor, isso sem onerar os cofres públicos e isentando o governo da
responsabilidade das obras.
A Caixa Beneficente – cuja directoria é constituída
exclusivamente de Internados, com Estatutos próprios, sob a
immediatadirecção do Exmo. Dr. Do Sanatório – tem como
Patrono o Exmo. Snr. Dr. Salles Gomes Junior e como
Patronesse a Exma. Snra. D. Alice de Toledo Tibiriçá78
...
Também fazia parte do estatuto a obrigatoriedade de todos os membros da
diretoria da Caixa Beneficente serem internos. Entretanto, como aponta o documento
anterior, estava sobre direção imediata do também diretor do sanatório, Dr. Lauro, e
tinha como patrono o Dr. Salles Gomes, do Departamento de Profilaxia, não havendo
assim a autonomia dos internados dentro desse órgão.
77
MATOS, Maria Izilda Santos de; Gonçalves, Leandro Pereira. “Meu primeiro manifesto
político foi um romance”: reflexões sobre a obra O Estrangeiro de Plínio Salgado.: Journal for
BrazilianStudies, vol. 3, nº 1, 2014. Págs. 486 e 487. 78
Dona Alice Toledo Tibiriçá, após a infância em Ouro Preto, Minas Gerais, mudou-se para o
Rio de Janeiro com a família em 1898. Dois anos depois, órfã de mãe, foi morar com as tias
em São Paulo. Casou-se em 1912 com João Tibiriçá Neto. Acompanhou o marido durante a
construção de uma estrada de ferro no Maranhão, onde se comoveu com a situação dos doentes
de hanseníase, conhecida então como lepra. De volta ao Rio, em 1915, militou pelos direitos dos
doentes, lutando pela mudança do nome da doença, denunciando os preconceitos e arrecadando
fundos para ajudar suas famílias. Fundou a Sociedade de Assistência às Crianças Lázaras, mais
tarde Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra (SALDCL), além de
instituições similares em todo o país. Em 1929, as diversas instituições se reuniram na
Federação das Sociedades, da qual Alice Tibiriçá foi a primeira presidenta. Criticou as medidas
adotadas na época, como o isolamento dos doentes e a separação de pais e filhos. Escreveu,
em 1934, o livro Como eu vejo o problema da lepra. Fundou também a Federação das
Associações de Combate à Tuberculose, em 1944, e militou pelos direitos dos doentes mentais.
68
A relação entre a Caixa Beneficente e o Estado aparecia na revista, onde
encontravam-se às coberturas das visitas de vários políticos ao Sanatório Padre Bento,
indicando uma grande influência da Caixa Beneficente.
O Estado, representado pelo Departamento de Profilaxia da Lepra, fazia
concessões para aumentar arrecadação da Caixa Beneficente e até mesmo doações
diretas.
Anúncio publicado na Revista Padre Bento, em 1932.
De acordo com a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e a Direção
do Sanatório, a Caixa Beneficente creou uma secção a
pagamento dentro deste Sanatório, para as pessoas que
desejarem internar-se como pensionistas, pagando uma
mensalidade bastante modica, a título de donativo à mesma
Caixa. Esta seção já ocupa uma considerável parte do Pavilhão
Central.
No trecho acima, retirado da Revista Padre Bento, do ano de 1932, vê-se o
anúncio de um plano para pensionistas que desejassem pagar uma mensalidade à Caixa
Beneficente, podendo, assim, usufruir de uma moradia diferenciada. Como o próprio
anúncio destacava, essas moradias já ocupavam parte do pavilhão central, ou seja,
enquanto alguns internos reclamavam da superlotação dos alojamentos, outros podiam
69
viver de maneira mais confortável, desde que pagassem por isso. Como já colocado
anteriormente, a questão de classe estava presente no leprosário, o que era bastante
problemático tratando-se de uma instituição pública.
Além dessas concessões de espaço dentro do sanatório, também havia doações
em dinheiro, feitas diretamente a Caixa Beneficente. No decreto lei nº 14.009, de 30 de
maio de 1944, que dispunha sobre concessão de auxílios, o interventor federal no
Estado de São Paulo e o conselho administrativo do Estado autorizaram o pagamento de
Cr$ 120.000 (cento e vinte mil cruzeiros) à Caixa Beneficente do Sanatório Padre
Bento.79
O que permite um questionamento é o fato do Padre Bento ser administrado pelo
Estado de São Paulo, e, assim sendo, fazer uma doação à Caixa Beneficente, uma
instituição privada, ao invés de um investimento direto. Quanto a isso, levantam-se
algumas hipóteses: continuar obtendo o apoio da Caixa Beneficente no controle dos
internos, se livrar dos percalços e encargos trabalhistas de tocar as obras, ou até mesmo,
como desconfiava D. Conceição da Costa Neves, facilitar algum desvio.
Além da doação do Estado de São Paulo, também foi possível encontrar
contribuições das prefeituras das cidades de São Paulo e de Guarulhos à Caixa
Beneficente.
Na Lei Municipal nº 233, de maio de 1953, e na Lei Municipal nº 940, de 27 de
dezembro de 1963, a Prefeitura de Guarulhos doou, respectivamente, 5 mil e 300 mil
cruzeiros. Já a Prefeitura de São Paulo ajudava as caixas beneficentes dos leprosários de
maneira geral, sendo que nenhuma delas estava dentro da cidade, como se pode ver no
Decreto Lei nº 3742, de 28 de janeiro de 1949, que dispõe sobre a concessão de
auxílios. Nele, o prefeito Asdrubal Euritysses da Cunha autorizou a doação de Cr$
98.000,00 (noventa e oito mil cruzeiros) a cada uma das caixas beneficentes, sendo
escolhidas a do Sanatório Padre Bento, em Guarulhos, a do Asilo Colônia Cocais, na
cidade de Casa Branca, e a do Asilo Colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes. Esse
fato reforçou a tese de que os 5 leprosários do Estado de São Paulo serviam a um
projeto político de higiene social para a capital paulista.
79 Apenas para trazer uma noção do tamanho da doação, o salário mínimo no ano de 1944 era de
Cr$ 380,00 (trezentos e oitenta cruzeiros).
70
A Caixa Beneficente funcionou no Padre Bento até os dias atuais, hoje sob a
direção de um ex-interno, Sr. Ivan Uchoa, que chegou ao leprosário quando já se
conhecia o tratamento e a cura. A instituição ainda presta assistência a antigos pacientes
e atividades recreativas com idosos.
O fato de ainda existir com o mesmo princípio, o de não ser uma instituição com
fins lucrativos, e os mesmos estatutos dificulta a investigação sobre possíveis desvios. O
acesso aos arquivos da instituição não foi concedido, com o argumento de haver muitos
nomes em documentos e que não seria ético deixar que terceiros os vissem.
Nada se pôde comprovar sobre possíveis irregularidades da Caixa Beneficente
nesta pesquisa e, é dado que esta foi fundamental para a ampliação das instalações do
Sanatório Padre Bento e no desenvolvimento de atividades esportivas e de lazer para os
hansenianos.
Apesar da Caixa Beneficente não ser a única instituição privada a cumprir
funções do Estado, ela contribuiu para melhorar o convívio dentro do Sanatório, devido
a estrutura criada.
71
2.3 – Pérgola: Encontros e Desencontros
(Foto atual da Pérgula, monumento tombado, no Hospital do Padre Bento. Autor: Ivan
Canoletto Rodrigues.)
O monumento acima, nomeado Pérgola, era uma das partes do antigo Sanatório
Padre Bento, atual Hospital Padre Bento, e atualmente se encontra da maneira como foi
concebido no antigo sanatório, exceto pelos problemas de conservação, o grande
desgaste a que foi submetido ao longo dos anos e os vidros em sua cúpula, que estão
quebrados. Nota-se que até mesmo a inscrição SPB, abreviação de Sanatório Padre
Bento, ainda está presente.
72
Trata-se de um monumento que aguça a curiosidade dos observadores mais
atentos que adentram o hospital ou então passam em frente da entrada, na Avenida
Emílio Ribas, pois é algo semelhante a um corredor que liga nada a lugar nenhum.
O leprosário constituía-se numa verdadeira cidade, um espaço de múltiplos
sujeitos e experiências, que passou a ser o palco da vida desses milhares de internos
que, excluídos do convívio habitual, passaram ali a interagir, a festejar, a namorar, a
escrever, a lamentar, a sentir saudade, esperança...
Dentre esses múltiplos sujeitos, havia variedade geracional, idosos, adultos,
crianças e muitos jovens que, como qualquer pessoa dessa idade, buscam namorar e se
casar. Segundo depoimentos e documentação analisados, muitos casais se constituíram
dentro do leprosário.
Sobre a Pérgola, existem contradições: Uma versão para a função da Pérgola é a
do Senhor Arnaldo Rúbio, ex-interno que viveu dos 6 aos 18 anos no Leprosário do
Padre Bento, e que escreveu um livro-denúncia80
sobre o tema. Segundo ele, a Pérgola
era utilizada nos dias de visita para delimitar o espaço a ser ocupado pelo doente e o
espaço do visitante, uma espécie de parlatório, onde os doentes ficariam numa
extremidade e os visitantes na outra, separados por uma distância de mais de vinte
metros, já que não poderia haver contato físico entre eles. É tocante a descrição que ele
traz em seu depoimento, o desejo do abraço não concretizado.
Era muito ruim ver a minha mãe e não poder abraçar, tocar...
Dava um aperto no coração, me sentia uma aberração (choro).81
A outra versão para a função da pérgola, presente no depoimento do Sr.
Domingos, um ex-funcionário, é a de que tal monumento servia como forma de
centralizar o namoro dos jovens, já que a área do leprosário era muito grande e seria
impossível fiscalizá-los. Por sua beleza arquitetônica, clima agradável, a Pérgola
acabava atraindo os casais para lá. Esses casais contraíam matrimônio, recebiam uma
casa separada e acabavam gerando frutos, crianças que nasciam saudáveis dentro do
leprosário e que, por esse motivo, eram imediatamente retiradas de seus pais e
mandadas para uma instituição privada que se encarregavam do trato delas, o Asilo de
Santa Therezinha, em Carapicuíba.
80 RÚBIO, Op. Cit. 81
Sr. Arnaldo Rúbio, ex-interno, em conversa no lançamento de seu livro.
73
Pode-se atribuir essas diferentes versões ao fato de que, para um ex-interno, a
separação da família no momento da visita é mais marcante e traumatizante. Todavia, o
caráter da internação compulsória e do Leprosário do Padre Bento, o controle social, se
evidencia nas duas versões.
Em meados de 1937, já eram 226 crianças retiradas dos pais em leprosários
estaduais e enviadas ao Santa Terezinha, além de 190 encaminhadas ao Preventório de
Jacareí. Esse dado pode observado no próximo documento, que também apresenta o alto
número de internos nesse período, o pequeno número de doentes ainda presentes na
capital, demonstrando o sucesso do projeto de higienização social na cidade de São
Paulo para fins de modernização e industrialização da capital.
O número de crianças que nasciam no leprosário era considerável, já que os
internos tinham permissão para se casar. Mesmo a união entre os enfermos não foi
proibida oficialmente, entretanto, a diretoria do leprosário procurava dificultá-la,
impondo regras aos cônjuges, era necessário que o estado clínico do casal fosse bom e
que ambos tivessem um comportamento exemplar. Entretanto, essas regras podiam
variar de diretor para diretor. O casamento, nesse contexto, constituía uma concessão,
não um direito do doente.82
82
MONTEIRO, Yara Nogueira. Da maldição divina à exclusão social: um estudo da
hanseníase em São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São
Paulo, 1995. P. 240. Apud. Dos Santos, Cláudia Cristina. Crianças Indesejadas – Estigma e
exclusão dos filhos sadios de Portadores de Hanseníase internados no Preventório Santa
Terezinha 1930-1967. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São
Paulo, 2009. P. 101.
75
A publicação acima é um exceto de uma mensagem enviada pelo governador J.J.
Cardoso de Melo Neto83
para a Assembleia Legislativa de São Paulo, em 9 de julho de
1937, data em que o estado comemorava os cinco anos da “Revolução
Constitucionalista”. Novamente o “modelo paulista” de internação compulsória era
apontado como o que havia de mais moderno no combate à lepra.
Estão elles (os doentes) assim discriminados: 1.263 residentes
no interior do Estado; 282 residentes na Capital; 83 residentes
em ouros Estados, e 1 procedente do Estrangeiro.
No mesmo anno (1936) foram feitas 1890 internações,
perfazendo agora, o total de 5.770 doentes internados.84
Nesse trecho, publicado na revista da Caixa Beneficente do Padre Bento, são
apresentados números que trazem a dimensão de famílias atingidas. Na respectiva data,
já eram 5.770 os internados. O texto ainda aponta que o número de internações vinha
caindo, mas ainda aconteciam quase sete anos após o início do projeto, e assim seria até
o início dos anos 1960.
Destaca-se no documento o número de crianças que já estavam sobre o poder do
Estado, como no Preventório de Jacareí, que era público e diretamente administrado
pelo Departamento de Profilaxia da Lepra, ou em instituições particulares que agiam em
parceria com o Estado, como era o caso do Asilo de Santa Terezinha, apontado
anteriormente.
Essas crianças provinham de duas situações distintas: poderiam ser filhas de
hansenianos que as conceberam e criaram fora do leprosário por um tempo, antes do
período de internação compulsória, mas, assim que a captura promovida pelo
Departamento de Profilaxia da Lepra se iniciou, foram internados e tiveram seus filhos
encaminhados a uma dessas instituições; ou, na segunda possibilidade, crianças
concebidas dentro do próprio leprosário pelos casais formados nesse convívio, os
83
José Joaquim Cardoso de Melo Neto foi nomeado pelo general Hastinfilo de Moura prefeito
do município de São Paulo e permaneceu no cargo interinamente de 24 de outubro a 5 de
dezembro de 1930. Foi governador do Estado de São Paulo eleito pela Assembleia Legislativa,
de 5 de janeiro a 10 de novembro de 1937 e interventor federal no Estado de São Paulo, de 11
de novembro de 1937 a 25 de abril de 1938. Foi também o fundador e presidente do Banco
Mercantil de São Paulo e diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo entre
1941 e 1942. 84 Fragmento do artigo “Departamento de Prophylaxia”, publicado na Revista Padre Bento, em
1937.
76
namorados da Pérgola. Assim que nasciam e eram diagnosticadas como sãs, as crianças
já eram destinadas a algum desses abrigos.
Através de depoimentos colhidos e de um documento encontrado no Sanatório
Padre Bento, pode-se perceber que, a maior parte dos filhos dos hansenianos que se
encontravam internados nesta instituição foi encaminhada para o Santa Terezinha. No
documento, o diretor do Padre Bento cobrava informações da direção do Santa
Terezinha sobre as crianças enviadas para lá, se dizendo pressionado pelos pais
internados, contudo, não foi possível encontrar uma resposta a tal solicitação.
O Santa Terezinha foi o primeiro estabelecimento edificado no Brasil com a
finalidade de abrigar os filhos dos portadores de hanseníase. Inaugurado no ano de
1927, no município de Carapicuíba, seu projeto foi executado por um grupo de senhoras
pertencente à Liga Católica paulista85
. A idealizadora e presidente da obra foi Margarida
Galvão, uma dama da sociedade paulista que recebeu apoio fundamental da Cúria
Metropolitana de São Paulo, através do Bispo Dom Duarte Leopoldo.86
Dona Margarida Galvão seguiu o que pode ser considerado uma prática
tradicional de mulheres da sociedade, que tinham na filantropia uma forma de expressão
na esfera pública da vida.
As mulheres das camadas mais abastadas eram educadas dentro
de forte tradição cultural cristã, que defendia o dever das
camadas privilegiadas de oferecer auxílio material e conforto
espiritual aos desvalidos. (...) Essas mulheres, certamente,
atendiam aos apelos da doutrina cristã e às demandas da
sociedade seguindo o exemplo de suas predecessoras. Sem
escapar das marcas de representação que as colocava como as
tradicionalmente responsáveis por educar, cuidar, confortar e
acolher...87
A ligação entre os portadores do mal de Lázaro (hansenianos) e a caridade
esteve presente desde o período medieval, mas com uma lógica de isolamento diferente:
segregando, porém mantendo a proximidade.
85
A Liga Católica paulista era uma associação formada principalmente por mulheres da elite
paulistana, com formação católica, voltadas à filantropia como forma de atuação na esfera
pública. 86
SANTOS, Cláudia Cristina dos. Op. Cit., p. 87. 87 SOUZA, Christiane Maria Cruz de. Médicos e mulheres em ação: O controle do câncer na
Bahia (primeira metade do século XX) In Filantropos da nação: sociedade, saúde e assistência
no Brasil e em Portugal. 1º Edição, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
77
Na Europa, no período medieval, as ações de caridade eram
praticadas principalmente por hospitais da misericórdia e outras
instituições mantidas por ordens religiosas. As leprosarias
deveriam ficar próximas das cidades, por ser mais fácil o
controle e a assistência.88
A caridade das senhoras da elite paulista, herdeiras da filantropia e do legado de
manterem-se próximas dos desvalidos, pode ser encarada como fruto de sua devoção
religiosa, mas também como uma forma de “alívio de consciência”, a caridade é sempre
importante na construção de uma boa imagem.
Originalmente, o Preventório Santa Terezinha seria construído em terreno doado
na região da Lapa, zona oeste da cidade de São Paulo. Esse projeto, entretanto, foi
vetado pelo então diretor do Departamento Sanitário do Estado de São Paulo, Dr.
Geraldo de Paula Souza89
, que alegou ser perigoso manter crianças em um
estabelecimento dessa natureza próximo à sociedade. Importante ressaltar que o terreno
ficava incrustado numa região habitada pela elite paulistana, o que pode ter influenciado
a decisão do diretor sanitário.90
Verifica-se, então, que os filhos de hansenianos, apesar de saudáveis, também
sofriam com o estigma da doença dos pais. Eram tratados pelo Estado seguindo a
mesma lógica de segregação espacial, afastando-os da cidade e dos centros
populacionais, ou seja, na construção dos preventórios era utilizado o mesmo critério
que na dos leprosários, o de tirar das vistas das pessoas tidas como “normais” tudo
aquilo que as incomodava, através de um projeto eugênico para a cidade de São Paulo.
Ao terceirizar, de certa maneira, a responsabilidade dos cuidados dispensados
aos filhos dos hansenianos, o Estado também se eximia de culpa ou acusação, o que
tornava mais conveniente auxiliar com doações e parcerias do que ter uma
administração pública direta como havia no Preventório Jacareí.
88
SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Entidades Filantrópicas & Políticas Públicas no
Combate à Lepra: Ministério Gustavo Capanema (1934-1945). Dissertação (Mestrado em
História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2006. P. 52. 89
Médico sanitarista, estudou nos E.U.A. com financiamento da Fundação Rockfeller. Nos anos
1920, época em que se instalou o Serviço Sanitário de SãoPaulo (1922 a 1927), Paula Souza
conseguiu oficializá-lo, sendo, posteriormente, nomeado diretor e permanecendo à frente dessa
instituição por cinco anos. Com atribuições mais amplas, organizou serviços especializados de
alimentação, de fiscalização do exercício damedicina e da inspetoria da lepra. 90
SANTOS, Cláudia Cristina dos. Op. Cit. p. 89.
78
Os problemas e acusações começaram a aparecer no final dos anos 1950.
Egressos do educandário passaram a denunciar, através de jornais, maus-tratos sofridos
dentro do Educandário Santa Terezinha. Tais denúncias foram corroboradas pelo
depoimento de um ex-vigilante do educandário, como pode-se ver no recorte do jornal
“A Última Hora”, de 1957.
(Siqueira, Hélio. “Surram e Torturam as Crianças no Educandário Sta. Terezinha.” Jornal A
Última Hora. São Paulo, 2 de agosto de 1957. Caderno 1, p.7.)
Fomos procurados, ontem, por dois ex-internos do Educandário
Santa Teresinha, em Carapicuíba, os quais solicitaram fosse
feito por intermédio de nossas colunas, um apelo às autoridades
competentes, no sentido de inspecionarem as graves
irregularidades que por eles são apontadas nesta reportagem.91
As acusações levaram o Juizado de Menores de São Paulo a promover, em 1957,
uma sindicância no Educandário Santa Terezinha coordenada pelo juiz de menores de
São Paulo, Aldo de Assis Dias. Em entrevista ao jornal A Ultima Hora, o magistrado
declarou serem procedentes todas as acusações referentes às torturas físicas impostas
aos internos. Além disso, acrescentou que alguns vigilantes responsáveis por cuidar das
crianças assumiam uma postura imoral perante os internos, o que sugere que, além de
91 SIQUEIRA, Hélio. “Surram e Torturam as Crianças no Educandário Sta. Terezinha.” Jornal
A Última Hora. São Paulo, 2 de agosto de 1957. Caderno 1, p.7.)
79
agressões físicas e psicológicas, as crianças eram submetidas a possíveis abusos
sexuais.92
Apesar das apurações concluírem a veracidade das denúncias, a comissão de
investigação deu um parecer que incriminava alguns funcionários antigos do
educandário, mas inocentava a presidenta Margarida Galvão, alegando que ela não tinha
conhecimento dos abusos cometidos na instituição que dirigia. Em contrapartida,
segundo as acusações dos egressos, “o mais terrível carrasco das crianças de Santa
Terezinha era o homem de confiança de Margarida Galvão”.93
(Homenagem a d.Margarida Galvão: 40 Anos de Esforço em Prol dos Filhos dos Hansenianos.
Jornal O Diário de S. Paulo. São Paulo, 27 de setembro de 1957. Arquivo Santa Terezinha-
Carapicuíba-SP)
Homenagem a d. Margarida Galvão: 40 Anos de Esforços em
Prol dos Filhos dos Hansenianos.
“Tem esta cerimonia a austera gravidade de um julgamento e,
do mesmo passo, a entusiástica alegria de uma consagração”,
92 SIQUEIRA, Hélio. “Juiz de Menores: Procedente As Denúncias Sobre o Asilo S. Terezinha
de Carapicuíba”. Jornal A Ultima Hora. Apud. Santos, Cláudia Cristina dos. Op. Cit., p. 197. 93
SANTOS, Cláudia Cristina dos. Ibid. p. 197 e 198.
80
disse o desembargador Theodomiro Dias em seu discurso –
Palavras da homenageada – Oração do sr. Altino Arantes e
mensagem do governador do Estado.94
As acusações recaíram sobre alguns funcionários que, sim, deveriam ser
punidos, pois foi comprovada sua culpa, mas pararam por aí. Não tocaram na dirigente
da instituição, uma senhora da sociedade paulista, frequentadora dos círculos da elite,
uma representação da “bondade e caridade” com os mais necessitados.
Era muito difícil tais agressões não terem sido percebidas pela presidenta
Margarida Galvão, mesmo o educandário sendo bastante grande, os depoimentos davam
conta de que tais violências eram frequentes, além de provocar o choro e outros ruídos
bastante audíveis, também deixavam sinais físicos que dificilmente passariam
despercebidos por alguém que frequentava a instituição cotidianamente e era
responsável pela mesma.95
Nota-se que a segregação a que os hansenianos eram submetidos também se
estendia à família, que, na prática, foi desestruturada pela internação compulsória. O
romance que começava na Pérgola, que trazia alguma sensação de normalidade dentro
do isolamento, gerava a dor do afastamento dos filhos. Mesmo após o fim da internação
compulsória, havia dificuldade dos pais em reaver a guarda de seus filhos. Aliás, a falta
de um projeto foi a tônica da mudança legal que encerrava o encarceramento obrigatório
desses doentes, como será discutido a seguir.
94 Homenagem a d. Margarida Galvão: 40 Anos de Esforço em Prol dos Filhos dos Hansenianos. Jornal O
Diário de S. Paulo. São Paulo, 27 de setembro de 1957. 95 SANTOS, Cláudia Cristina dos. Op. Cit., 2009.
81
3- Internação Compulsória: Finalização e Lutas
Este capítulo discute questões relacionadas à lepra e a descoberta da cura, a
chegada ao Brasil e seus impactos sobre a política de internação compulsória. Também
abordada as dificuldades de reinserção social de pacientes e familiares após a saída do
isolamento e a luta empreendida por essas famílias em busca de compensações e
ressarcimentos por parte do Estado.
3.1- Esperança: Tratamentos e Cura
Os pacientes internados viviam a angústia da espera, entendiam que jamais
sairiam dali sem a descoberta de uma cura para a lepra, e tal descoberta parecia nunca
chegar.
O tratamento mais usual até meados dos anos de 1940 era realizado com óleo de
chaulmoogra, mas, as chances de cura eram ínfimas, as centenas de injeções de tal óleo
aplicadas em cada paciente trazia apenas uma melhora momentânea nos sintomas.96
No Brasil, óleo de chaulmoogra passou a ser utilizado nos anos de 1920, ainda
importando a planta da Índia, para depois ser plantado aqui mesmo e utilizado em larga
escala nos leprosários.
No Brasil, o Instituto Oswaldo Cruz importou dessa empresa
localizada no sul da Índia – e que possuía importante posição
nesse comércio, fornecendo sementes e óleo de chaulmoogra
para vários países – uma quantidade de óleo de
Hydnocarpuswightiana, em 1927. Essa compra visava abastecer
o recém-criado Laboratório de Leprologia do Instituto Oswaldo
Cruz, comandado pelo dr. Souza Araújo, no sentido que ele
pudesse fabricar os ésteres etílicos com os quais trataria os
doentes que iam a Manguinhos em busca de exames e
terapêuticas gratuitos (Araújo, 1957). Ao mesmo tempo,
diversas espécies de chaulmoogras indianas passaram a ser
aclimatadas em outros países, inclusive o Brasil. Várias
sementes plantadas no Brasil foram doadas pelos Estados
Unidos. 97
96
Chaulmoogras são plantas que pertencem à determinada família, tais plantas eram utilizadas
há séculos na índia e alguns outros locais da Ásia para o tratamento de doenças de pele,
inclusive a lepra. Seu uso no ocidente passou a ocorrer em meados do século XIX, após uma
série de testes e adequações a medicina ocidental, realizados pela Inglaterra. 97
(Araújo, fev. 1937). Citado por SANTOS, Fernando Sergio Dumas dos; SOUZA, Letícia
Pumar Alves de; SIANI, Antonio Carlos. O óleo de chaulmoogra como conhecimento
82
Um tratamento bastante sacrificante para os doentes, já que o óleo era aplicado
através de injeções subcutâneas e intramusculares.
(Cena do filme “Onde a Esperança Mora”, um curta produzido pela Carrari Filmes, em 1948).
(Cena do filme “Onde a Esperança Mora”, um curta produzido pela Carrari Filmes, em 1948).
científico: a construção de uma terapêutica antileprótica. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p 29-47, jan.-mar. 2008. p. 34.
83
(Cena do filme “Onde a Esperança Mora”, um curta produzido pela Carrari Filmes, em 1948).
As imagens anteriores foram retiradas do filme “Onde a Esperança Mora”, um
curta produzido pela Carrari Filmes, em 1948, tendo como cenário principal o Sanatório
Padre Bento, como citado. Em tais cenas ocorre uma aplicação do óleo de chaulmoogra,
um doloroso procedimento. Enquanto a cena ocorre, o narrador destaca:
(...)Foi nessa época que tiveram início os primeiros
tratamentos por chaulmoogra, todos os irados se
submetiam cheios de esperança ao doloroso tratamento,
em cada centímetro de pele, mais de duzentas picadas de
uma pequena agulha que ia inoculando gota a gota o que
se considerava um óleo milagroso. Sacrifício inútil! As
manchas voltavam com maior intensidade, e a medicina
nada dizia, pesquisadores debruçavam-se em seus
microscópios e as experiências continuavam...98
Os pacientes internados nos leprosários se tornaram espécies de cobaias, o
tratamento com chaulmoogra que era sofrível e tinha baixíssimo índice de sucesso, foi
utilizado durante anos. Além disso, outras formas de tratamento “experimentais” foram
aplicadas em internos dos leprosários, algumas até beiravam o bizarro, como prender
percevejos vivos numa caixinha colada junto ao peito do paciente, próximo ao coração,
98 Fala do narrador no curta-metragem produzido pela Carrari Filmes sobre o problema da
endemia de hanseníase em São Paulo na década de 1940. Filme mostra imagens do Asilo-
Colônia Santo Ângelo, de Mogi das Cruzes, e, principalmente, do Sanatório Padre Bento, de
Guarulhos. O filme integra o acervo iconográfico do Instituto Lauro de Souza Lima.
84
no intento de que esses animais sugassem e purificassem o sangue, como foi relatado
pelo ex-interno Arnaldo Rúbio. 99
Esse cenário desolador se estendeu por anos, quando muitos pacientes já haviam
passado boa parte de suas vidas confinados e estavam desesperançados de um dia sair,
quiçá saírem curados. Quando, em 1946, o tratamento com sulfonas foi introduzido no
Brasil, revolucionando os métodos e renovando esperanças.
Após a segunda metade deste século, com a criação da
Campanha Nacional do Controle da Hanseníase, ocorreu uma
mudança fundamental na abordagem deste problema a partir do
surgimento da sulfona, um antibiótico que não produz muitos
efeitos colaterais, ao mesmo tempo em que permite a cura da
doença, embora o tratamento seja quase sempre prolongado.
Com a nova tecnologia, a erradicação da endemia passou a ser
vista como um empreendimento que combinava a perspectiva
da saúde pública com a clínica. O dermatologista sanitário,
funcionário público em tempo integral, surgiu nesta época, com
esta postura. Criou-se com isso, no Brasil,uma forte Escola de
Lepra, que realizou pesquisas pioneiras nesta área médica.100
Os primeiros estudos com as sulfonas que obtiveram resultados satisfatórios
foram realizados nos Estados Unidos, ainda no início dos anos 1940. Apenas alguns
anos depois, o Dr. Lauro de Souza Lima101
introduziu as sulfonas no Brasil, iniciando os
testes no Sanatório Padre Bento, instituição a qual dirigia e, mais uma vez, a referência
dentro do “modelo paulista”.
A descoberta da eficiência das sulfonas no combate ao M.
leprae seria um ponto de guinada na história da hanseníase. Em
1946, a 2ª Conferência Pan-Americana de Lepra, no Rio de
Janeiro, apresentou resultados positivos das sulfonas pela
primeira vez, marcando uma nova etapa no combate à doença a
partir dos estudos do médico norte-americano Guy Faget (1891-
1947). Cientistas de São Paulo ligados ao DPL, como Lauro de
99
Sr. Arnaldo Rúbio é um ex-interno que passou sua adolescência internado, dos 6 aos 18 anos,
sendo internado em 1939. 100
QUEIROZ, Marcos de Souza; PUNTEL, Maria Angélica. A endemia hansênica: uma
perspectiva multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1997. p. 36. 101
Dr. Lauro de Souza Lima, cientísta, hansenologo de renome internacional,foi Diretor do
Departamento de Profilaxia da Lepra do Estado de São Paulo, Consultor Científico da ONU,
Representante Brasileiro nos Congressos Internacionais de Leprologia no Cairo (Egito) e
Havana (Cuba), Membro da Conferência Pan-Americana de Leprologia do Rio de Janeiro,
Diretor do Instituto de Terapêutica Científica, Membro da Associação Paulista de Leprologia,
Diretor do Sanatório Padre Bento durante 20 anos, iniciador do tratamento sulfônico no Brasil
85
Souza Lima (1903-1973), estariam entre os pioneiros que se
dedicaram às pesquisas sobre a droga nos leprosários.102
Antes mesmo da chegada do medicamento ao Brasil, o Dr. Lauro já se mostrava
atento aos estudos com a sulfona, conhecida pela marca Promin.
102
GORGULHO, Guilherme. O equívoco da internação compulsória dos hansenianos. Boletim
da FCM UNICAMP, Vol. 10, N. 3. p. 16-17, mai. 2015. p. 16.
87
No artigo publicado na Revista Boletim Padre Bento, em julho de 1944, o Dr.
Lauro de Souza Lima elogiou a iniciativa da redação em traduzir e publicar um estudo
do médico americano Dr. Guy Faget sobre o Promin, um antibiótico sulfônico. O artigo
foi publicado no mesmo número da revista que tal comentário do Dr. Lauro, o que
denota uma consulta prévia ou até mesmo uma sugestão do mesmo para que isso
ocorrese.
Muito Judiciosa foi a iniciativa da Redação do “Boletim Padre
Bento” , de traduzir e publicar, como o faz neste número,
pondo-o ao alcance dos interessados, o artigo do Dr. Faget e
colaboradores, sobre o PROMIN.103
As notícias sobre os resultados dos testes já se espalhava entre doentes e
médicos, gerando otimismo, euforia naqueles que por tantos anos buscavam alguma
esperança de cura.
Como era de esperar-se, as primeiras notícias sobre esse
medicamento deram origem às mais variadas versões sobre sua
eficácia. Foram-lhe atribuídas virtudes miraculosas, tanto pelos
resultados surpreendentes, como pelo escasso tempo necessário
à sua obtenção. Entretanto, sempre que nessa especialidade
deparamos com um novo medicamento, manda-nos o bom
senso e a prudencia que lancemos um olhar ao passado e
recordemos a longa lista de “curas” maravilhosas, tão
alviçareiramente anunciadas, mas terminando em dolorosas
decepções.104
Dr. Lauro, conhecido por sua dedicação ao trabalho, mas também, pela maneira
humanitaria que exercia a medicina, desenvolvendo com seus pacientes uma relação
fraternal, demonstrou uma preocupação com o excesso de otimismo, e uma possível
decepção, caso o Promin falhasse. Fez questão de alertar os internos quanto a isso em
seu artigo, e publicá-lo na mesma edição da revista que publicara os estudos do médico
americano.
Fez ressalvas e ponderações sobre os resultados apresentados na pesquisa,
alertou sobre possíveis riscos no tratamento, porém, terminou seu artigo de maneira
esperançosa, demonstrando crença na possibilidade de cura.
Deve notar-se ainda, que sua administração não é isenta de
riscos, exigindo cuidados especiais e constantes, e que os
103 Fragmento do artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa Beneficente
(julho de 1944), assinado pelo Dr. Lauro de Souza Lima. 104
Ibid.
88
resultados favoráveis podem ter sido consequência de sua ação
sobre infecções secundárias, ou uma coincidencia com as
remissões espontâneas tão frequentes na evolução do mal de
Hansen.
Contudo, a verificação dos resultados relatados por Faget se
impõe, para que nos pronunciemos em definitivo. Oxalá sejam
plenamente confirmados, e uma nova aurora desponte no
horizonte sombrio de milhares de sofredores.”105
As expectativas do Dr. Lauro de Souza Lima se confirmaram, junto com os
resultados apresentados por Faget. Com isso, Dr. Lauro foi o pioneiro na introdução do
tratamento sulfônico no Brasil, trazendo-o para São Paulo e para o Sanatório Padre
Bento, em 1946, logo após retornar de um congresso na França.
Os resultados no Brasil foram satisfatórios e o número de curas cresceu
consideravelmente. Em 1952, apenas 6 anos após a introdução das sulfonas no Brasil,
mais especificamente em São Paulo, a Revista Tópicos estampava, de maneira
comemorativa, o número de 7.923 curas, junto com fotos dos leprosários paulistas,
corroborando com a ideia de São Paulo como modelo a ser seguido pelo Brasil.
105
Fragmento do artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa Beneficente
(julho de 1944), assinado pelo Dr. Lauro de Souza Lima.
89
Extinta Revista Tópicos (1952)
Durante a pesquisa não foram encontrados exemplares completos da Revista
Tópicos, não sendo possível caracterizar sua linha editorial, entretanto, a maneira como
ressaltou o número de curas, associando-as aos leprosários paulistas, pode indicar uma
tendência a propaganda estatal.
Em 1952, Getúlio Vargas havia retornado a Presidência da República, podendo
observar que o projeto que instaurou durante seu primeiro governo (1930-45), mesmo
sendo imposta autoritariamente a internação compulsória dos hansenianos, obteve êxito.
Divulgar os números de cura associando-os a política de internação manicomial era
benéfico tanto para o Governo Federal quanto para o do Estado de São Paulo.
Neste período, a Agência Nacional, um órgão ligado ao Ministério da Justiça e
dos Negócios Interiores, estava em pleno funcionamento, tendo por finalidade informar
ao público sobre assuntos de interesse da nação, ligados a sua vida econômica,
90
industrial, agrícola, social, cultural e artística. A Divisão de Informações, uma das
subdivisões da Agência Nacional, produzia e divulgava notícias, propagandas políticas
e informes.106
Extinta Revista Tópicos (1955)
Em 1955, já eram 10.566 curas em São Paulo e a Revista Tópicos chamava uma
campanha para que as pessoas ajudem na reinserção dos egressos dos leprosários a
sociedade, algo bastante difícil de ocorrer devido ao preconceito, as permanências
ligadas ao estigma da doença. Vargas não ocupava mais a presidência (tendo se
suicidado em 1954), mas a Agência Nacional cumpria as mesmas funções.
Apesar da descoberta da cura e a propaganda realizada sobre ela, a campanha de
reinserção social da Revista Tópicos, permite uma associação direta e simples com o fim
imediato da internação compulsória, contudo, não foi assim que tudo ocorreu. Após
tantos anos isolados, os pacientes não conseguiram se readaptar com facilidade a
sociedade, além do preconceito com a doença, muitos deles carregavam as lesões,
marcas, cicatrizes da doença, pedaços do corpo que haviam se deteriorado. Os motivos
da internação não eram apenas médicos, era uma questão higienista e até mesmo
eugenista, havia um próposito de “limpeza” social, de uma cidade ideal, livre dos
106 CASTRO, Clarissa Costa Mainardi Miguel de. O governo democrático de Vargas através
dos cinejornais. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2013. p. 56.
91
“medos urbanos”, sendo assim, a descoberta da cura não foi motivo suficiente para
decretar o fim da internação compulsória.
O sistema hospitalar já não era de confinamento, de reclusão
absoluta. Era um sistema misto, de colônia, com um hospital no
centro e moradias ao redor. Uma vez entrando nesta colônia, o
doente não conseguia mais sair. Mesmo que curado
parasitológica e clinicamente, culturalmente ele não conseguia
mais se reinserir na sociedade e continuava doente para
sempre.107
Este cenário contraditório entre a descoberta da cura e a manutenção do sistema
de internação compulsória dos hansenianos em São Paulo, só começou a se alterar nos
anos de 1960, com um marco fundamental em 1962, a aprovação do Decreto Federal nº
968, que determinava o fim do isolamento compulsório dos hansenianos no Brasil.
3.2 – Retorno á sociedade: preconceitos e lutas
(...)A partir da década de 1960, foram realizadas várias
reuniões e vários congressos no país, com o objetivo central de
combater a política isolacionista presente em São Paulo e, em
vários estados Brasileiros, apresentando alternativas ao
tratamento da doença. Assim, em 1962, por meio do Decreto
Federal n° 968, foi estabelecido o fim do isolamento
compulsório no Brasil e, como a maior parte dos estados não
possuía verbas suficientes em seus orçamentos para a
manutenção para os serviços de prevenção à hanseníase,
dependendo financeiramente da União, foi mais fácil abolir tal
prática nesses lugares.108
O Brasil passava por um momento político peculiar, em 1961, João Goulart
assumiu a presidência da república, após renúncia do presidente Jânio Quadros. Para
aprovar a lei que poria fim a internação compulsória, o presidente teve que buscar por
alianças, contudo, um fator preponderante foi a crise econômica, que dificultava a
manutenção dos leprosários, devido a política de internação compulsória, pôr fim a esta
política reduziria gastos do Estado. Em seu primeiro artigo, a Lei Federal nº 968 trazia:
Parágrafo único. No combate à endemia a leprótica será, sempre
que possível, evitada a aplicação de medidas que impliquem na
107
QUEIROZ, Marcos de Souza; PUNTEL, Maria Angélica. A endemia hansênica: uma
perspectiva multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1997. p. 36. 108 POSTIGO, Vânia Regina Miranda. Espaços Vigiados: Um estudo do isolamento
compulsório dos portadores de hanseníase no Asilo-colônia Santo Ângelo (1890-1960).
Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São Paulo, 2008.p. 180.
92
quebra da unidade familiar, no desajustamento ocupacional e na
criação de outros problemas sociais.109
O isolamento compulsório passou a ser evitado, o que não significou a liberação
imediata de todos os internados e nem a exclusão por completo da possibilidade de uma
nova internação em casos específicos, quando pessoas não possuíssem condições de
seguirem um tratamento domiciliar. Isto estava posto no artigo 8º:
Art. 8º Será assegurado aos enfermos de lepra, portadores de
formas clínicas contagiantes, o direito de movimentação, que
poderá, entretanto, sofrer limitações nas eventualidades:
a) de não possuir o enfermo as condições econômicas que
garantam sua subsistência na forma requerida pelo seu estado
de saúde.
b) de não possuir o enfermo domicílio que satisfaça os
requisitos mínimos de proteção aos demais conviventes.
c) de o enfermo, embora satisfazendo os itens anteriores não
acatar as determinações relativas ao seu tratamento regular e as
recomendações que visem a eliminar os riscos da
disseminação.110
Ou seja, os enfermos sem condições econômicas ainda estariam sujeitos a um
possível cerceamento de sua liberdade, ainda obrigados a se tratarem, não tendo plenos
direitos sobre seus corpos. A procura e captura dos hansenianos também permaneceu,
como estava disposto no artigo 4º desta mesma lei:
Art. 4º A procura sistemática dos doentes de lepra será
realizada, principalmente, mediante:
a) Vigilância sanitária dos contatos e suspeitos;
b) Verificação de denúncias e notificações;
c) Exames em coletividades;
d) Investigação de focos.
§ 4º A prática de notificações será incentivada por meios
adequados, junto à classe médica, sendo conservado em sigilo o
nome do notificante.
§ 5º Todos os casos de denúncias ou notificações serão
obrigatoriamente examinados e investigados.111
Lei que também explicitava uma das lógicas vigentes no Brasil e,
principalmente, no Estado de São Paulo: a lógica do corpo como instrumento de
109
Decreto do Conselho de Ministros Nº 968, de 7 de maio de 1962. Diário Oficial da União -
Seção 1 - 9/5/1962, Página 5113 (Publicação Original). 110 Ibid. 111 Ibid.
93
trabalho indispensável para o sistema de um país que almejava o crescimento
econômico.
Art. 7º O Estado prestará a devida assistência social aos doentes
de lepra e aos seus dependentes.
§ 1º Aos doentes internados ou não, quando necessário, será
promovida a sua recuperação ocupacional, sua readaptação e
sua reintegração social.
§ 2º Os doentes de lepra serão divididos em quatro categorias
do ponto de vista de seus estigmas:
a) os incapacitados seriamente para tomar parte ativa na vida.
b) os que sofrendo deformidades, possam produzir trabalhos de
valor econômico sob condições especiais.
c) os que são forçados a abandonar sua antiga ocupação e
necessitam habilitar-se para novo emprego.
d) os que apenas precisam de auxílio para encontrar trabalhos,
não constituindo estorvo os estigmas da doença.112
Os portadores e os que haviam sofrido com o mal de Hansen passaram a ser
classificados a partir da sua capacidade de reinserção social, tendo como base para isso
a retomada do trabalho e suas funções produtivas.
Apesar dos Estados ainda gozarem de certa autonomia, sem invertimentos
federais, cortados a partir da nova perspectiva trazida pela Lei Federal nº 968, a
manutenção do projeto isolacionista se inviabilizou, desta forma, esse decreto pôs fim a
internação compulsória de novos casos de doentes no Brasil. A exceção, novamente, foi
o Estado de São Paulo.
Contudo, São Paulo se constituía um caso a parte em termos de
políticas públicas de saúde. O Departamento de Profilaxia da
Lepra possuía verba própria, podendo perfeitamente arcar com
os custos da política por ele adotada, além disso, deve ser
levado em conta o fato de que a própria sociedade paulista
contribuía financeiramente para a manutenção dos asilos por
meio de entidades beneficentes.113
O “modelo paulista” de internação compulsória sempre se desenvolveu de
maneira autônoma, sendo apropriado pelo Governo Federal durante a gestão de Vargas.
Estava ligado ao imaginário paulista de pioneirismo e ao projeto de modernização e
industrialização, fatores confluentes com as ações de política médica do período.
Apenas em 1967, que em São Paulo se começou a tomar algumas medidas gradativas no
112 Ibid. 113 POSTIGO, Vânia Regina Miranda. Espaços Vigiados: Um estudo do isolamento
compulsório dos portadores de hanseníase no Asilo-colônia Santo Ângelo (1890-1960).
Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São Paulo, 2008.p. 180.
94
sentido de alterar as políticas de internação compulsória. Tal fato foi fruto de discussões
médicas e da mudança no comando do DPL, também pode ser observado que neste
momento, o então governador Abreu Sodré, nomeado pelo governo militar, visava um
maior alinhamento entre o estado e a federação.
Somente a partir de 1967, com a nomeação do leprólogo
Abrahão Rotberg, como diretor do Departamento de Profilaxia
da Lepra, teve ínício uma progressiva queda no internamento
dos doentes e a adoção de uma nova política para o tratamento
da doença. Os doentes passaram a ser tratados em centros ou
postos de saúde com novos medicamentos, que tornavam a cura
mais rápida. Embora livres do isolamento compulsório, os
doentes de hanseníase não eram integrados à sociedade de
imediato, pois havia grande resistência em aceitá-los.114
Ao iniciar seu trabalho como diretor do Departamento de Profilaxia da Lepra Dr.
Abrahão Rotberg115
, foi gradativamente reduzindo as internações e privilegiando o
tratamento ambulatorial, contudo, isso não era o suficiente para acabar de vez com o
isolamento e com os leprosários. Os internos tinham passado muitos anos excluídos do
convívio social, o que dificultaria sua reinserção, a sociedade ainda tinha permanências
históricas dos estígmas ligados a lepra, ainda entendia-se o corpo como algo sacralizado
e as chagas da lepra como uma manifestação das impurezas da alma, o que só agravava
o quadro de emcaminhamento do fim dos leprosários.
Rotberg tomou algumas medidas para viabilizar a transição entre isolamento e
liberdade, uma de suas medidas foi substituir a palavra “lepra” por “hanseníase” ou
“mal de Hansen”. A intenção da mudança de nomenclatura visava a desmistificação da
doença, desassociando-a do nome tão estigmatizado que a denominava há tantos
séculos.
Mesmo com trabalhos como o do Dr. Abrahão Rotberg, a falta de um projeto
mais amplo e estruturado fez com que as tentativas de reinserção dos doentes
fracassassem. Muitos dos doentes não tinham mais contato com suas famílias, que
poderiam ter sido internadas em alguma outra instituição ou simplesmente se mudado
para não sofrer com o preconceito dos vizinhos. Outros não possuiam mais nada, já que
muitas vezes tiveram suas casas queimadas quando foram internados, algumas pessoas
114
Ibid., p. 180. 115 Médico e pesquisador brasileiro dedicado a hansenologia, foi Professor Titular de
Dermatologia da Escola Paulista de Medicina/UNIFESP (1958-1973) e da Faculdade de
Medicina de Taubaté (1970-1973).
95
acreditavam que isso era necessário para purificação do ambiente, como pode-se
observar no depoimento de um ex-interno:
Nivaldo Mercúrio tinha 7 anos quando uma ambulância preta
com a sigla DPL, de Departamento de Profilaxia da Lepra,
parou em frente à sua casa, em um sítio em Itápolis, interior de
São Paulo. Dois médicos desceram e pediram para examinar
toda a família. “Descobriram que minha mãe tinha hanseníase, a
antiga lepra, e dias depois voltaram para levá-la”, ele relembra,
aos 88 anos, enquanto caminha pelas ruas do antigo hospital-
colônia Aimorés, hoje parte do Instituto Lauro de Souza Lima,
em Bauru, um dos principais centros de atendimento a pessoas
com hanseníase no estado de São Paulo. “Depois os médicos
pediram para que eu, meu pai e meus irmãos fôssemos para a
rua e puseram fogo em nossa casa.” Em 1933, a internação
compulsória e a queima da casa das pessoas com hanseníase
eram as formas adotadas para evitar que outras pessoas se
contaminassem com a doença, vista com forte repulsa desde os
tempos medievais.
Dez anos depois, Nivaldo recebeu o mesmo diagnóstico da mãe
e foi levado para Aimorés, onde vive desde então, exceto por
alguns meses em que tentou trabalhar em Itápolis. Sua mãe foi
levada para outro hospital e ele nunca mais a viu. Estima-se que
cerca de 40 mil pessoas tenham sido separadas de suas famílias
por causa das estratégias de isolamento adotadas como forma de
tratar a hanseníase.116
As próprias autoridades médicas não acreditavam que um dia esses doentes
pudessem sair e retomar suas vidas, portanto, queimar suas casas não era um problema,
em casos como do Sr. Nivaldo, as medidas tomadas contra os hansenianos atingiram
toda sua família.
Os egressos não conseguiam se reinserir a sociedade, pois ainda carregavam os
estigmas. Apesar da Lei Federal nº 968 classificar os hansenianos por sua capacidade de
exercer atividades produtivas, analisando o caso do Sr. Nivaldo, vê-se que não era tão
simples entrar o mercado de trabalho.
Foi o que aconteceu com Nivaldo Mercúrio. Em 1968, curado,
ele deixou o hospital-colônia, voltou para Itápolis e arrumou um
emprego. Semanas depois, porém, outros empregados exigiram
do dono da empresa que ele fosse demitido porque vinha de um
leprosário. Ele exibia os sinais de seu passado: suas mãos
haviam atrofiado e falava com dificuldade, em consequência do
tratamento com óleo de chaulmoogra, usado antes da sulfona.
“Fui demitido e, meses depois, voltei para cá”, ele conta. O
116
ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. Violência, Medo e Preconceito. Revista Pesquisa
FAPESP, São Paulo, nº 236, p. 78-83, outubro de 2015. p. 78 e 81.
96
antigo hospital-colônia de Aimorés abriga hoje 74 pessoas que,
como ele, um dia tiveram hanseníase.117
Mesmo depois de adquirirem sua liberdade, muitos ex-internos retornavam para
viver nos asilos-colônias por não conseguirem voltar ao convívio social, não terem
condições de manter-se economicamente. No Asilo-colônia de Aimorés, ainda hoje,
vivem 74 residentes, o mesmo acontece no Santo Ângelo; a Secretaria de Saúde de São
Paulo reconheceu a dívida que tinha com esses sobreviventes e aceitou que
continuassem a residir nos antigos asilos-colônias.
O antigo Asilo-Colônia Santo Ângelo abriga, atualmente,
moradores sobreviventes do tempo de internação compulsória.
A Secretaria de Saúde de São Paulo reconheceu que tem uma
dívida com os pacientes internados compulsoriamente,
permitindo que os mesmos permanecessem nas moradias.
Alguns internos que necessitam de maiores cuidados ficam nas
enfermarias e nos pavilhões coletivos.118
Novamente a exceção foi o Sanatório Padre Bento, por possuir pacientes com
melhores condições econômicas, com menos sinais físicos da doença, os egressos dessa
instituição acabavam não retornando para lá. Ainda foram mantidos leitos para uso
exclusivo dos hansenianos, uma conquista da Caixa Beneficente, mas aos poucos foram
diminuindo por falta de demanda específica pelos hansenianos, assim, o Sanatório do
Padre Bento tornou-se um hospital público de Guarulhos, que se mantém como
referência em dermatologia.
A percepção dos prejuízos gerados pelos anos de isolamento, as perdas materiais
e afetivas que se monstraram irreversíveis mesmo após a liberdade, levaram os
hansenianos a uma luta por ressarcimentos que dura anos, obtendo algum êxito apenas
no ano de 2007. Os sobreviventes da internação compulsória tiveram sua liberdade
cerceada e muitos comparavam seu martírio ao exílio, passaram por sofrimentos físicos,
psicológicos e morais, contrariamente a sua vontade, sendo isso imposto pelo Estado.
As conquistas que tanto tardaram só foram possíveis através da luta, um esforço
militante pela causa, bem como algum nível de organização. Em 6 de junho de 1981, foi
fundado o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase
(MORHAN), que se identifica como um movimento social, recusando o status de ONG,
117
ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. Op. Cit., p. 83. 118
POSTIGO, Vânia Regina Miranda. Op. Cit., p. 182.
97
pois sobrevive do trabalho de seus voluntários. Em seu site, define sua missão como:
“Possibilitar que a hanseníase seja compreendida na sociedade como uma doença
normal, com tratamento e cura, eliminando assim o preconceito e estigma em torno da
doença.” E sua visão como: “Continuar a ser uma referência para informações sobre
hanseníase e apoio a pessoa atingida pela hanseníase e tornar o Brasil uma referência no
tratamento e respeito aos direitos humanos das pessoas atingidas pela hanseníase.”119
A luta dos hansenianos, com grande participação do MORHAN, culminou na
aprovação da Lei Federal Nº 11.520, de 18 de setembro de 2007, que em seu primeiro
artigo dispunha:
CONGRESSO NACIONAL
LEI Nº 11.520, DE 18 DE SETEMBRO DE 2007
Dispõe sobre a concessão de pensão especial às pessoas
atingidas pela hanseníase que foram submetidas a isolamento e
internação compulsórios.
Faço saber que o Presidente da República adotou a Medida
Provisória nº 373, de 2007, que o Congresso Nacional aprovou,
e eu, Renan Calheiros, Presidente da Mesa do Congresso
Nacional, para os efeitos do disposto no art. 62 da Constituição
Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 32,
combinado com o art. 12 da Resolução nº 1, de 2002-CN,
promulgo a seguinte Lei:
Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a conceder pensão
especial, mensal, vitalícia e intransferível, às pessoas atingidas
pela hanseníase e que foram submetidas a isolamento e
internação compulsórios em hospitais-colônia, até 31 de
dezembro de 1986, que a requererem, a título de indenização
especial, correspondente a R$750,00 (setecentos e cinqüenta
reais).
§ 1º A pensão especial de que trata o caput deste artigo é
personalíssima, não sendo transmissível a dependentes e
herdeiros, e será devida a partir da entrada em vigor da Medida
Provisória nº 373, de 24 de maio de 2007.
§ 2º O valor da pensão especial será reajustado anualmente,
conforme os índices concedidos aos benefícios de valor
superior ao piso do Regime Geral de Previdência Social.
§ 3º O requerimento referido do caput deste artigo será
endereçado ao Secretário Especial dos Direitos Humanos da
Presidência da República, nos termos do regulamento.
§ 4º Caberão ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS o
processamento, a manutenção e o pagamento da pensão,
observado o disposto no art. 6º desta Lei.120
119
Site do MORHAN: http://www.morhan.org.br/institucional. Consultado em 18/01/2015. 120 Lei Nº 11.520, de 18 de setembro de 2007. Diário Oficial da União - Seção 1 - 19/9/2007,
Página 1 (Publicação Original).
98
Esta lei dava o benefício de uma pensão vitalícia às pessoas atingidas pela
hanseníase e internadas nos asilos-colônias até 31 de dezembro de 1986, esta data não
foi escolhida aleatoriamente, de fato, as internações compulsórias ocorreram e foram
mantidas, mesmo que em menor escala, como uma transição, até tal ano, quando foi
“recomendada” a transformação de alguns leprosários em hospitais gerais. Esta pensão
teve o valor determinado em R$ 750,00, reajustado anualmente, de acordo com os
índices concedidos a benefícios pela Previdência Social. A pensão não foi retroativa aos
anos de internação, sendo paga apenas a partir a aprovação da lei, e nesse mesmo valor,
independente do tempo de internação de cada indivíduo e a instituição na qual ficou
confinado.
Esta conquista não pôs fim à luta por ressarcimentos referentes às internações
compulsórias, isso porque essa lei indenizou apenas os internados em asilos-colônias,
ou seja, os hansenianos, sendo a pensão intransferível a familiares. O número de
hansenianos sobreviventes em 2007 já não era alto, cerca de 6,2 mil, de acordo com a
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, e com uma expectativa de vida não muito
elevada. Indenizar também os familiares geraria custos muito mais elevados, podendo
os números chegarem a 30 mil pessoas.
A lei não beneficia as famílias dos ex-internos, que na maioria dos casos,
sofreram igualmente. Os filhos internados em preventórios, as esposas que passaram por
dificuldade de sustento sem o aporte dos maridos internados, sem contar que todos
sofriam com o preconceito da sociedade, que se estendia a eles.
Via de regra, a internação de um dos pais acarretava a chamada
"explosão familiar", pois assim que a notícia se espalhava, era
comum que ocorressem perdas de emprego ou que as crianças
fossem expulsas da escola. Mesmo quando apenas um dos
genitores era internado, os filhos acabavam por ser enviados
para um Preventório. Nem sempre esse processo era imediato,
porém o que ocorria era que, no caso da mãe ser internada, o pai
nem sempre conseguia cuidar das crianças, no caso da
internação do pai, a mãe acabava por não ter condições de
sustentar a prole e, como dificilmente havia ajuda de familiares,
a situação acabava por se tornar insustentável. Desta forma,
tanto num caso como no outro, o único espaço para essas
crianças acabava por ser o da "exclusão". Eram crianças
marcadas que, praticamente, não dispunham de outro local para
ir a não ser o Preventório.121
121
MONTEIRO, Yara Nogueira. Violência e profilaxia: os preventórios paulistas para filhos de
portadores de hanseníase. Saúde e Sociedade. v.7, n. 1, p. 3-26. 1998. p.14.
99
A desestruturação da família gerada pela internação de um único membro que
fosse, fazia com que os filhos, quase que invariavelmente, também fossem internados
em algum Preventório. Em São Paulo havia dois preventórios, o Santa Terezinha e o
Preventório de Jacareí, este último era público. Os dois funcionavam de maneira muito
parecida e também dentro da mesma lógica dos asilos-colônias em que os pais
hansenianos estavam internados.
Como já foi visto, em São Paulo existiam apenas dois locais de
internação, o Asilo de Santa Terezinha e o Preventório de
Jacareí, ambos com trajetórias semelhantes e muitos pontos em
comum. Contudo, é através da análise do funcionamento do
segundo que tem-se uma imagem mais nítida do procedimento
adotado pelos hansenólogos paulistas com relação ao menor,
isto devido ao fato do Preventório de Jacareí estar subordinado
ao Departamento de Profilaxia da Lepra, o D.PL. o que o
tornava permeável à política exercida por aquele órgão. Desta
forma, vê-se refletir no Preventório o mesmo mecanismo
imposto aos asilos-colônia, ou seja, um grande cuidado com a
tarefa profilática em detrimento de uma visão mais humanista
com relação aos internos, ainda que estes fossem crianças e
saudáveis.122
Os internos dos preventórios passaram pelas mesmas dificuldades geradas pelo
isolamento de seus pais e, como consequência, também sofreram no momento de tentar
se reintegrar a sociedade, tanto pelo estigma que carregavam como pelo tempo que se
mantiveram afastados do mundo.
Sair da instituição nem sempre se constituía numa tarefa
simples para o interno, até mesmo para os que atingissem a
maioridade, em especial porque uma boa parte deles não tinha
para onde ir. (...) o tipo de estrutura montada favorecia o
distanciamento familiar e a falta de uma formação profissional
limitava as chances de que o egresso pudesse prover sua própria
manutenção. Essa situação ainda era agravada pelo tipo de vida
a que haviam sido submetidos, em que o distanciamento do
mundo fazia com que eles não soubessem como viver fora dos
muros da instituição.123
Os problemas descritos eram muito similares aos dos hansenianos, a dificuldade
em arrumar emprego e se sustentar, a falta de suporte de uma família (o modelo de
internação promovia um distanciamento), a dificuldade em lidar com a reinserção após
tantos anos longe do convívio, além do próprio estigma da doença, que constituía a
identidade dos hansenianos e de seus familiares, mesmo após a cura.
122
Ibid. p. 14. 123
Ibid. p. 21.
100
Os Preventórios existiram por todo o território nacional, podendo haver algumas
diferenças entre si, alguns buscavam pessoas dispostas a adotar os filhos sadios de
hansenianos, caso isso ocorresse, não precisariam permanecer no preventório até a
maioridade.
Estima-se que 25 mil crianças tenham se tornado órfãs de pais
vivos internados em hospitais-colônia, principalmente nas
regiões Norte e Nordeste. As crianças que nasciam nos
leprosários ou não tinham com quem ficar eram levadas para os
preventórios, como eram chamados os orfanatos para filhos de
pessoas com hanseníase, às vezes em outras cidades. “Os
médicos diziam às mulheres que seus filhos tinham morrido no
parto, quando haviam sido dados para adoção”, relata Lavínia.
Em 1943, os 22 preventórios do país abrigavam cerca de 2.500
crianças, que depois eram entregues para parentes ou
desconhecidos dispostos a criá-las. Não era fácil encontrar
quem as adotasse, porque se temia que as crianças estivessem
contaminadas e pudessem transmitir a doença.124
Contudo, mesmo os filhos de hansenianos que conseguiam um lar adotivo não
estavam livres de mazelas e sofrimento.
Depois de examinar cerca de 10 mil fichas preenchidas por
filhos de pessoas isoladas em leprosários do país, a equipe do
MORHAN verificou que muitas crianças adotadas eram
forçadas a trabalhar, sofriam maus-tratos e eram discriminadas
por serem filhos de pessoas com hanseníase. Por meio desses
documentos, os pesquisadores também identificaram rotas de
saída de crianças para adoção. “Muitas crianças do norte de
Minas Gerais foram enviadas para a Itália e, do sul do Pará, por
meio do Suriname, para a Holanda”, diz Custódio. Em julho, a
equipe do MORHAN localizou na Holanda dois irmãos, filhos
de brasileiros que tiveram hanseníase e ainda estão vivos.125
Filhos de pais vivos sendo adotados por outras pessoas, sem garantias de que
fosse um lar adequado, além do tráfico dessas crianças para o exterior, crimes que foram
facilitados por entidades governamentais. Tendo em vista que os danos gerados aos
familiares são tão similares aos dos hansenianos, passou-se a encampar uma luta
política para que os ressarcimentos sejam estendidos a eles também, luta essa que se
estende até os dias atuais.
124 ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. Violência, Medo e Preconceito. Revista Pesquisa
FAPESP, São Paulo, nº 236, p. 78-83, outubro de 2015. p. 81. 125
Ibid.
101
(Em SP, filhos de hansenianos lutam por indenização. Jornal Estadão. São Paulo, 21 de março
de 2011. Disponível no ste: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,em-sp-filhos-de-
hansenianos-lutam-por-indenizacao,695170. Consultado em 18/01/2015.)
A notícia veiculada pelo jornal Estado de São Paulo, em 2011, trata de uma
reunião de cerca de 500 pessoas, em Itu, ao lado de um antigo asilo-colônia, para
discutir as indenizaões aos filhos de hansenianos que sofreram com o isolamento e com
a alienação parental. Inúmeras são as notícias como essa, dando conta de reuniões, bem
como manifestações, cobrando esta dívida histórica. Isso vem ocorrendo em vários
estados do país, encabeçado pelo MORHAN. Os governos estaduais dizem que essa
discussão deve ser feita em nível federal, já que a lei que instituiu o isolamento
compulsório veio dessa instância de poder, mas, o Governo Federal nunca acenou com
um projeto que contemplasse essas vítimas da exclusão.
Além da busca por compensações financeiras, os filhos e parentes dos
hansenianos encontram-se em outra missão: a de reencontrar e unir suas famílias
separadas no passado. Para isso, hoje podem contar com a ajuda da tecnologia e do
acesso a informação nessa busca.
102
“A maioria dos que nos procuram são filhos de pessoas com
hanseníase querendo encontrar os irmãos, já que os pais muitas
vezes estão mortos”, diz Artur Custódio, presidente do
MORHAN, fundado em 1981 por ex-internos de hospitais-
colônia, que hoje atende pessoas à procura de seus familiares. O
trabalho integrado de médicos, historiadores, antropólogos e
sociólogos permitiu às equipes de Porto Alegre e do Rio
reaproximar 800 pessoas, por meio de visitas a antigos
hospitais-colônia e consultas a arquivos para atestar o
parentesco. “Quando as informações encontradas nos
documentos não são suficientes, aplicamos o teste de DNA”,
explica a bióloga Flávia Costa Biondi, da equipe da UFRGS.
Pais e filhos que se reencontram, porém, raramente voltam a
viver juntos. “Em geral os filhos não conseguem reconhecê-los
como pais ou mães. O isolamento os fez completos
desconhecidos”, diz Lavínia. Algumas histórias são dramáticas,
como a de um homem que queria saber do pai internado havia
décadas em um leprosário do Acre. Meses depois a equipe do
MORHAN o localizou, mas ele tinha morrido fazia poucas
semanas.126
O MORHAN, em parceria com médicos, historiadores, sociólogos, antropólogos
vem, desde 2011, tentando reaproximar famílias separadas pela internação compulsória,
este trabalho é realizado por equipes no Rio de Janeiro e Porto Alegre. Até agora, já
foram 800 pessoas reaproximadas, num árduo trabalho, que em casos de documentação
incompleta, envolve até mesmo exames de DNA. Contudo, está longe de contemplar as
mais de 40 mil famílias atingidas pela internação compulsória no Brasil, além do
problema apontado pela médica Lavínia Schuler-Faccini: a dificuldade dessas pessoas
se reconhecerem como pais e filhos, que após tantos anos separados, se tornaram
estranhos. Muitos desses ex-internos dos leprosários também já vieram a falecer,
fazendo com que a maioria de reencontros promovidos pelo MORHAN seja entre
irmãos, e não entre filhos com pais ou mães que tenham sido internados.
O fato do Estado ter concedido pensão aos hansenianos, pode ser encarado como
um reconhecimento do autoritarismo da internação compulsória, legitimando a demanda
dos filhos de hansenianos, que também foram internados compulsoriamente mesmo
estando sãos, ou foram privados do convívio de seus pais e de uma vida de
oportunidades. O único motivo notório, são os gastos que isso traria ao Estado, devido o
grande números de pessoas a serem ressarcidas.
126
ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. Op. Cit., p. 81.
103
Este reconhecimento de culpa por parte do Estado era inevitável, tendo em vista
que, medicamente, a internação compulsória dos hansenianos, inspirada no “modelo
paulista”, falhou, já que a doença ainda não foi erradicada do Brasil.
Número de casos de hanseníase identificados em cada Estado brasileiro no ano de 2013.
Elaborado a partir dos dados do SINAN, atualizados em 30/01/2014. Disponível em: Portal
Saúde – <http://www.Saude.gov.br>. – Vigilância. SINAN (Sistema de Informação de Agravos
de Notificação).
Os dados apresentados são de novos casos de hanseníase surgidos no ano de
2013, sendo um número próximo aos 30 mil, estando a maior parte dos casos
localizados nas regiões Norte e Nordeste, isto se deve as condições de vida precárias,
gerado pelo alto índice de pobreza. Estudos médicos apontam para o fato de que a maior
transmissão de hanseníase está ligada a falta de higiene, a má alimentação, dentre outros
fatores que enfraquecem o sistema imunológico das pessoas.
Os números de 2014 não são muito diferentes, segundo o Ministério da Saúde,
foram 31.064 novos casos em todo território nacional, colocando o Brasil na segunda
104
colocação entre os países com maior número de casos no mundo, atrás apenas da
Índia.127
Os hansenianos e suas famílias foram vítimas do desconhecimento médico e do
preconceito, já que nos anos de 1930 pouco se sabia a respeito das formas de contágio
da lepra, conhecia-se a causa, o bacilo Mycobacterium Leprae (já identificado em 1873,
pelo médico norueguês Gerhard Hansen), mas como as pessoas eram contaminadas era
ainda desconhecido. Foram também submetidos à lógica eugenista (seleção de pessoas
desejáveis e exclusão das indesejáveis, para fim de construir gerações futuras
etnicamente, geneticamente, socialmente “melhores”), assim como os leprosários, eram
afastados das cidades. A internação compulsória dos hansenianos pode ser considerada
como uma estratégia de higiene social, da mesma forma, o fato de filhos sadios de
hansenianos também serem retirados de circulação sendo internados em preventórios.
Em seu livro de memórias128
, o ex-interno Sr. Arnaldo Rúbio129
, descreve a
condição de cobaia a que os pacientes de hanseníase eram submetidos, tanto na busca
pela cura da lepra quanto para outros procedimentos, principalmente testes de cirurgias
plásticas e de enxertos de nervos e músculos. Segundo ele, estes experimentos se
intensificaram nos anos de 1950, a possibilidade de testar práticas cirúrgicas em cobaias
humanas rendeu avanços na área, sendo que até 1991 as cirurgias em hansenianos eram
realizadas sem consentimento formal dos pacientes ou familiares. Sr. Arnaldo destaca
que a sociedade se beneficiou dos resultados obtidos nesses testes em hansenianos, mas,
não nega que alguns hansenianos também foram beneficiados pelos experimentos,
conseguindo um nariz mais harmônico ou algo assim, apesar das possibilidades de erros
a que a condição de cobaia está exposta.
Pelos melhores anos de vida perdidos no confinamento, pela imposição da
separação dos familiares, pela condição de “cobaia médica”, pelas dificuldades de
reinserção social, pelo fracasso do projeto médico em erradicar a doença, Sr. Arnaldo e
127
Para ter-se uma noção em nível comparativo, a Europa já tinha praticamente eliminado a
hanseníase no século XIX, hoje alguns poucos doentes são encontrados num único leprosário
em Portugal. Nos Estados Unidos, o número de pessoas atingidas por essa moléstia também é
baixíssimo, e na América Latina, Uruguai e Argentina já eliminaram a doença e Chile nunca
registrou um caso. A diminuição da pobreza, as condições de higiene, de saneamento básico e o
nível de desenvolvimento da educação são fatores que acabam servindo de profilaxia da
hanseníase. 128
RÚBIO, Op. Cit. 129
Internado em 1939, no Sanatório Padre Bento, onde viveu dos 12 aos 18 anos.
105
outros ex-internos ativistas consideram injusta a pensão vitalícia oferecida, que não leva
em consideração os anos de sofrimento, e julgam ainda pior, o fato das famílias não
conseguirem nenhum ressarcimento.
O caso dos hansenianos, ainda reverbera nos dias atuais, permitindo observar a
dívida histórica, frente a uma política de internação compulsória instituída nos anos de
1930, a permanência histórica dos estigmas sobre os doentes de lepra que, no seu
conjunto, ainda leva a sua exclusão social.
Percebe-se que a pessoa realmente continuava isolada, apesar
de estar entre a sociedade extra-muros. Estava fadada ao
confinamento domiciliar, diferindo da instituição apenas em seu
aspecto físico, acentuando-se a solidão de sentir-se um doente
dentro da área limpa/saudável, onde não seria aceita se os
sadios soubessem do seu passado, da sua origem, da sua
identidade.130
Para os hansenianos, foram muitos anos de exclusão, seguidos de vários outros
anos de indiferença por parte do poder público e da sociedade, devido ao preconceito.
130
BARCELOS, Artur Henrique Franco; BORGES, Viviane Trindade. Segregar para curar? A
experiência do Hospital Colônia Itapuã. Bol. da Saúde, v. 14, n. 1, 1999-2000. p.151.
106
Considerações Finais
A presente pesquisa tratou da internação compulsória dos hansenianos no Estado
de São Paulo, no início do século XX, e seu reflexo no cenário nacional, tendo como
referência o Sanatório Padre Bento, fundado em 1931, na cidade de Guarulhos, e tido
como modelo.
A hanseníase é uma doença contagiosa, causada por um bacilo que deixa chagas
na pele do doente, podendo chegar a fazer com que a pessoa atingida perca partes do
corpo. Hoje, sabe-se que menos de 10% da população mundial é suscetível a esse
bacilo. A contaminação se dá em contato direto com secreções do doente, mas também
está relacionada a um baixo sistema imunológico, por conta de má nutrição, falta de
saneamento básico, más condições de higiene, fatores esses ligados à pobreza, mas é
uma doença tratável, atualmente utilizam-se três antibióticos, a chamada
poliquimioterapia (PQT), e partir da primeira dose, o doente já não transmite mais a
moléstia.
No início do século XX ainda se desconhecia as formas de contágio da doença,
sendo o próprio doente o único vetor identificado. Foram propostos dois modelos para
lidar com os hansenianos; um de internação compulsória e isolamento, e o outro, de
tratamento domiciliar; o primeiro prevaleceu, foi adotado no Estado de São Paulo.
Iniciou-se então, em 1930, em São Paulo, a construção e arrendamento de cinco
leprosários, ou asilos-colônia, todos em cidades afastadas da capital. A exceção foi o
Sanatório Padre Bento, em Guarulhos, e mais especificamente nos bairros da
Tranquilidade e Gopoúva.
Essa política de internação compulsória em asilos-colônias ficou conhecida
como “modelo paulista”, sendo relacionado ao que havia de mais moderno e humano no
tratamento da hanseníase na época, já que os leprosários possuíam uma estrutura
opulenta, o que, segundo as autoridades, possibilitaria uma vida próxima da
normalidade.
O Sanatório do Padre Bento contava com uma vila de moradias, um prédio que
abrigava a Caixa Beneficente, cinema, teatro, biblioteca, cassino, salão de baile,
barbearia, campo de futebol, chácara para a criação de gado, laboratórios, sala para
107
palestras e escola profissional, constituindo um complexo de aproximadamente 340 mil
metros quadrados. Também era o único a possuir uma ala para menores hansenianos,
recebendo internos de diversas regiões.
Essa estrutura e sua proximidade com a capital fez com que o Sanatório Padre
Bento recebesse um perfil de hanseniano diferente dos demais leprosários, sendo um
público mais elitizado e em estágio inicial da doença (sem sinais físicos visivelmente
chocantes).
Contudo, os pacientes tiveram sua liberdade cerceada, eram separados de suas
famílias e submetidos a tratamentos experimentais que, muitas vezes, poderiam ser
cruéis. Esse sofrimento se estendia à família dos hansenianos internados. Se um pai
fosse internado, dificilmente a mãe, nessa época, conseguiria prover o sustento da
família. Caso fosse a mãe a internada, o pai não daria conta de trabalhar e cuidar dos
filhos. Em sendo os dois, os filhos sadios seriam enviados a uma instituição específica:
os preventórios.
Além das crianças que tinham os pais internados, as que nasciam dentro do
leprosário, fruto de relacionamentos entre os internos, também eram retiradas de seus
pais e enviadas a um preventório, onde eram submetidas à mesma lógica de controle e
exclusão de seus pais.
O órgão responsável pela captura, diagnóstico e internação dos doentes e de seus
filhos era o Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL), uma instituição paulista,
autônoma em relação ao governo federal. Durante os anos de 1930 a 1945, o DPL
esteve sob direção do Dr. Francisco Salles Gomes, conhecido por ser implacável e tido
como um “carrasco” pelos hansenianos, que eram arrancados de suas casas à força,
jogados no carro e internados, muitas vezes, tinham suas residências incendiadas, pois
acreditava-se que isso evitaria possíveis contágios.
Nesse mesmo período, Getúlio Vargas apropriou-se do modelo paulista,
promoveu uma centralização nacional nas políticas de combate à lepra e incentivou a
construção de leprosários por todo o território nacional. São Paulo continuou com sua
política independente, não assinando os acordos federais e sendo o estado com maior
rigor na promoção das internações dos leprosos.
108
Esse panorama de internação compulsória, desmantelamento da família e
experiências inúteis em busca de uma cura, só começa a se alterar nos anos de 1940,
quando estudos realizados nos E.U.A. indicam que o tratamento com sulfonas em
hansenianos poderiam levar à cura. Tal tratamento chega ao Brasil em 1946, através do
Dr. Lauro de Souza Lima, então diretor do Sanatório Padre Bento, que se tornou a
pioneiro nos testes com a sulfona, o que possibilitou a chegada da cura tão esperada
pelos doentes.
A partir da cura, começaram a serem promovidas algumas altas hospitalares,
mas a internação compulsória enquanto política foi mantida, e os poucos pacientes
liberados seriam vigiados também, numa espécie de isolamento domiciliar.
O fim da internação compulsória só foi instituído legalmente no ano de 1962,
com a Lei Federal nº 968. Em São Paulo, à época, iniciou-se uma transição, mas ainda
houve internações no estado até o ano de 1986.
O retorno à sociedade a partir das altas também deu-se de maneira bastante
complicada, notando-se a ausência de um projeto de reinserção social para essas pessoas
que por tantos anos estiveram isoladas em leprosários e preventórios.
O estigma da doença ainda era latente e, juntamente a falta de formação
profissional, fizeram com que essas pessoas não conseguissem empregos para manter-se
fora do confinamento. Além disso, muitas já tinham perdido contato com seus
familiares e não tinham para onde ir.
Por conta destas dificuldades, muitos pacientes permaneceram vivendo nas
instituições mesmo após sua liberação, situação que ainda acontece com alguns dos
sobreviventes.
Tendo em vista as dificuldades enfrentadas no retorno à sociedade, os anos
perdidos no isolamento, as condições a que foram submetidos e o desmantelamento de
suas famílias, os hansenianos sobreviventes se organizaram em um movimento social, o
MORHAN, e passaram a travar uma luta em busca de compensações e ressarcimentos
junto ao Estado.
Em 2007, conseguiram uma pensão vitalícia, no valor de R$ 750,00, quantia
reajustada anualmente pelos índices de outros benefícios concedidos pelo INSS. Porém,
109
a pensão não é retroativa e não se estende aos familiares, nem mesmo aos filhos que
também foram confinados nos preventórios enfrentando adversidades similares às de
seus pais.
A luta dos hansenianos internados e de seus familiares permanece, seja por
ressarcimentos financeiros, seja para reencontrar parentes com os quais perderam o
contato durante a internação, já que as instituições não promoviam a permanência
desses laços e relações, privilegiando, muitas vezes, adoções ilegais.
Essa pesquisa tem o intento de ser uma contribuição social, além de acadêmica.
Trazer alguma notoriedade a essa causa, ainda tão atual, uma dívida histórica impossível
de ser paga em sua totalidade, já que muitos morreram ainda relegados. Além da
contribuição direta à causa dos hansenianos e de seus familiares, também pode-se
considerar este trabalho uma base de reflexão para pensar as políticas de internações
compulsórias para pessoas consideradas loucas e para usuários de drogas, com destaque
para os dependentes de crack. Que esta pesquisa possa ser entendida como uma singela
contribuição nas lutas antimanicomiais.
110
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Jornal Estado de São Paulo
Jornal A Última Hora
Jornal O Diário de São Paulo
Revista Boletim Padre Bento
Revista Tópicos
116
Entrevista
Entrevista com Sr. Domingos, funcionário do atual Hospital Padre Bento.
Trabalhou no antigo Departamento de Profilaxia da Lepra, indo no final dos anos 1960
para o Padre Bento, já no período de extinção da internação compulsória. Ainda assim,
teve contato com diversos pacientes remanescentes do leprosário, conhecendo muitas
histórias e pesquisando o assunto.
Como o Senhor veio para o Padre Bento?
(Sr. Domingos) Eu entrei no serviço público, no Departamento de Profilaxia da Lepra,
que administrava todos os sanatórios de lepra. Trabalhava no departamento de compras.
Em 1970, o Estado fez a coisa mais bacana. Todos esses sanatórios não tinham vida
própria no que tange a administração, RH, finanças, compras...Era tudo centralizado no
Departamento, esse decreto de 69, 69 ou 70, estabeleceu que cada ex-sanatório, porque
já não era mais sanatório, passasse a ter vida própria, com seu RH, finanças, enfim,
tinham setores. Foi uma mudança enorme! Saiu no Diário Oficial. Eu me inscrevi e
consegui a vaga aqui. Tomei o cuidado de verificar se não havia nenhum funcionário
que já trabalhava aqui e queria continuar, pra não ficar com a vaga de ninguém, mas não
tinha.
Então o Senhor teve contato com ex-internos? Alguns ainda viviam aqui?
(Sr. Domingos) Sim. Mas aconteceu que em 69, quando os caras chegaram e falaram: -
Escuta, podem ir embora, não precisa ficar mais aqui. Aqui a maioria deles foram
embora, por ter uma condição social um pouco mais alta. Aqui tinha engenheiros, até
um dono de um entreposto de café... Nos outros Sanatórios, afastados, quando falaram
isso eles disseram: - Quando eu era jovem, tinha uma pinta insensível, vocês me
puseram aqui, agora eu vou ficar. Os que não morreram estão até hoje. Agora nesse
Sanatório (Padre Bento) não. E outra coisa, eles tinham uma força política imensa, com
o apoio da Caixa Beneficente, eram bem organizados e sabiam usar a política. Eles
conseguiram reservar alas para o atendimento deles, mas essas alas foram diminuindo
porque não tinha necessidade, eles brigaram, até que um dia se reuniram e o diretor
disse que seria porta aberta, pra comunidade toda, mas eles teriam prioridade.
117
Eles tinham o apoio de uma deputada, a D. Conceição da Costa Neves. O Sr. sabe a
importância dela aqui?
(Sr. Domingos) Exatamente. Os hansenianos também votavam, e você sabe que político
quer voto, né? Então eles traziam aqui deputados, vereadores, porque eles sabiam que
quem decidia as coisas era o governador, com o apoio da Assembleia.
E a Pérgola, o Sr. conhece a sua história?
(Sr. Domingos) A Pérgola é interessante, ela liga nada a lugar nenhum. Aí um dia eu
perguntei para um senhor, que veio pra cá jovem, esse do entreposto de café, e ele me
disse que existem duas versões. A primeira é a de que os doentes ficavam la dentro e os
visitantes fora, mas isso aí não bate. A outra, que me convenceu mais, é porque aqui
tinham crianças hansenianas, moços hansenianos, moças hansenianas, e eles
namoravam. Agora imagina isso aqui, com 20 alqueires, pro diretor fiscalizar isso, olha
a responsabilidade do diretor. Então eles concentraram o namoro nessa Pérgola. Então
isso me convenceu mais.
Então não funcionou como parlatório?
(Sr. Domingos) Não. Quando quiseram fazer um parlatório aqui, eles destruíram.
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