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30 • Sexta-feira 16 Dezembro 2011 • Ípsilon

Quando, em Junho, a programação do teatro São Luiz foi apresentada, o seu director artístico, José Luís Ferrei-ra, falou de Miguel Loureiro (n. 1970) como um artista católico a proteger. A definição provocou gargalhadas na sala, como se fosse pouco católico ma-nifestar uma fé. Hoje, quando “A Vida de Maria” se apresentar no Jardim de Inverno do teatro municipal, em Lis-boa, mostrar-se-á que a relação que se pode ter com a religião não é, nem pode ou deve ser, escondida.

Na verdade, “A Vida de Maria” ma-terializa num palco os quinze poemas que o poeta Rainer Marie Rilke escre-veu em 1913 orientado pelas repre-sentações plásticas da vida da Virgem Maria onde ecoam referências aos textos bíblicos, aos evangelhos apó-crifos de Tiago e Pseudo-Mateus, à “Legenda aurea”, de Jacobus de Vo-garine. e são, aponta a especialista Maria Teresa Dias Furtado, que tra-duziu os poemas dos quais agora se partiu, um cruzamento do “humano com o divino e vice-versa, numa ele-vação de espírito que ultrapassa a mera contemplação estética”.

Diz o encenador que os poemas são “como um bilhete-postal onde há um brilho ou outro que oferece portas de ensimesmamento, como se pedisse um mergulho dentro das palavras, que nos levam a outras práticas pedi-das por essas palavras”.

Talvez seja pouco para vender um espectáculo, admite, rindo-se, mas nunca lhe interessou outra coisa que não fosse perceber como podem os textos “atingir as pessoas”. E é por is-so que este “exercício de leitura”, ex-pressão que utiliza para o descrever, é a melhor forma de compreender um autor que, tendo escrito sempre por impulso, “precisou de se programar para escrever” aquilo que se conven-cionou chamar de “um itinerário”.

Rilke, conta-nos, “escrevia por im-pulso” e ao criar um “itinerário mís-tico” - que para Loureiro ecoa a cons-trução a que o dramaturgo August Strindberg deu o nome de “drama das estações”, onde seguimos a vida de uma personagem -, prossegue “uma ladainha” dos momentos mais signi-ficativos da vida de Maria. “Ocorre uma progressão cronológica e emo-cional” que Loureiro quis trabalhar, atendendo “às linhas geométricas e à densidade do olhar” procuradas por Rilke que efectivavam “uma mimesis do gesto onde se reconhecem ima-gens-conceito que atravessam toda a história da arte”. O trabalho foi, por isso, o de, “esquivando-se a todas as imagens, tentar criar um olhar onde o espectador se pudesse projectar”. Um banco que parece um tronco de madeira, cadeiras, um piano e roupas brancas. É o que basta para que as imagens deixem transparecer “a po-esia intemporal” que se encontra nos poemas, de uma “uma cifração cer-rada” perante a qual Miguel Loureiro não tem a “veleidade” de querer, e de saber, traduzir. É o homem que se posiciona antes do artista, podería-mos dizer. “Há aqui conceitos intrín-secos sobre os quais me interessa pensar: o que é o ser humano, a trans-cendência, o outro que nos espera”.

Miguel no jardim da

oraçãoO Jardim de Inverno do teatro São Luiz, em Lisboa,

recebe Rainer Marie Rilke pela mão de Miguel Loureiro. Recital e não espectáculo – de hoje até dia 22 – é um momento de refl exão a partir de quinze paragens na

vida de Maria. Um momento para pararmos sem medo de pensarmos o mistério da fé. Tiago Bartolomeu Costa

O divino e o transitórioDesse outro, há quem diga ser “uma imanência de nós”. “Mas para mim é um ser outro ao qual chegamos através da oração”. Era também isso que Rilke defendia num texto sobre arte, reuni-do numa antologia das suas obras e cartas: “A arte apresenta-se-me como o empenho de um indivíduo que, su-perando a estreiteza e a obscuridade, procura encontrar um entendimento com todas as coisas, das mais ínfimas às maiores e, nesses diálogos, procura aproximar-se mais do suave sussurro da fonte última de tudo o que vive”.

O texto vem citado no prefácio que Maria Teresa Dias Furtado escreveu para os quinze poemas que Miguel Loureiro agora utiliza, e aos quais jun-tou quatro canções que o compositor Paul Hindemith compos em 1948 a partir dos poemas, e mais excertos de três textos em latim, “Magnificat”, “Anunciação” e “Sob tua protecção”. Escreveu a tradutora que nas “transi-ções constantes entre o espaço do mundo e o espaço interior”, são “co-locados lado a lado a grandeza sem par do divino e o louvor do que é ter-reno e transitório”. É esta passagem que interessa a Loureiro, que salienta que “muitas pessoas esquecem a di-mensão biológica de Maria e a figura literal, o seu corpo biológico”. E, por isso, atento às “ressonâncias metafó-ricas e alegóricas” da palavra, insiste, em aproximações a quadros que po-dem lembrar uma Pietà, ou a visita do anjo Gabriel, numa “transmissão do texto delicada, cuidadosa, que evi-te a escravidão da humildade das ac-trizes que o dizem”. Maria Teresa Dias Furtado fala de uma “poética do es-paço” onde “o tom pessoal que [Rilke] imprime a cada cena assume, em ca-da um dos poemas, uma vibração e uma originalidade únicas, alheias, portanto, a qualquer convencionalis-mo, ainda que se baseie em obras da tradição pictórica do ocidente e do oriente de antemão conhecidas”.

“O que emana do desafio de tornar os textos visíveis”, diz, “é o potenciar da sua faceta ligada ao mistério, ao si-lêncio e a conjugação entre esse mis-tério e esse silêncio”. Disse Rilke: “Os segredos das coisas fundem-se no seu íntimo com as próprias sensações mais profundas e falam alto dentro de si como se fossem os seus desejos pro-fundos”. É também isso que interessa a Loureiro: “se fosse levar ao extremo o trabalhar da densidade destes poe-mas, interessar-me-ia focar-me no vo-lume, na cor e nas grandes massas de silêncio que ficam entre os poemas”.

Miguel Loureiro prefere falar de “uma tentativa oral” em vez de um espectáculo, e de “um jardim de ora-ção” em vez de um recital. “Cada vez mais me interessa fazer um trabalho arqueológico”, em oposição a uma reinscrição contemporânea dos tex-tos. E será por isso que não criou um fraseado próprio, antes dispôs os cor-pos das duas actrizes (Inês Nogueira e Flávia Gusmão) e da cantora (Sónia Alcobaça) como corpos enunciadores. “Se pudesse teria só cabeças a dizer o texto”, confessa. Seria o mais próximo do mistério da fé, acredita.

“Há aqui conceitos sobre os quais me interessa pensar: o que é o ser humano, a transcendência, o outro que nos espera”

“A Vida de Maria”: os quinze poemas que o poeta Rainer Marie Rilke escreveu em 1913 orientado pelas representações plásticas da vida da Virgem Maria

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