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Universidade de Lisboa
Instituto de Cincias Sociais
Moambique em Cena: Nao, Gnero e Modernidadeno Teatro (Maputo 1992-2010)
Vera Azevedo
III Mestrado em Antropologia Social e Cultural
2010
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Universidade de Lisboa
Instituto de Cincias Sociais
Moambique em Cena: Nao, Gnero e Modernidadeno Teatro (Maputo 1992-2010)
Vera Azevedo
III Mestrado em Antropologia Social e Cultural
Tese Orientada pelo Prof. Doutor Joo de Pina-Cabral
2010
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MOAMBIQUE EM CENA:NAO, GNERO E MODERNIDADE NO TEATRO
i Vera Azevedo
NDICE
RESUMO.................................................................................................................................................ii
ABSTRACT ............................................................................................................................................ iii
AGRADECIMENTOS ............................................................................................................................ iv
ACRNIMOS .......................................................................................................................................... v
INTRODUO...................................................................................................................................... 1
Metodologia e Estrutura...................................................................................................................... 5CAPTULO I -BREVE HISTRIA DAS INSTITUIES TEATRAIS (1992-2010)........................ 8
Da Paz viragem do Milnio.............................................................................................................. 9
A ltima Dcada............................................................................................................................... 17
CAPTULO II -MOAMBIQUE EM CENA...................................................................................... 28
Mulher Asfalto(Estreia em 2008)Sobre a Possibilidade de um Eplogo....................................... 29
A Demisso do S Ministro(Estreia em 2008) - A Nao Moderna ou a Moderna Nao?............. 38
Vestir a Terra (Estreia em 1994)A (re) construo da Nao....................................................... 54
EPLOGO.............................................................................................................................................. 63
ANEXO I............................................................................................................................................... 66
ANEXO II............................................................................................................................................. 70
ANEXO III............................................................................................................................................ 72
ANEXO IV............................................................................................................................................ 74
ANEXO V............................................................................................................................................. 76
BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................... 80
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ii Vera Azevedo
RESUMO
Palavras-chave:Teatro, Nacionalismo, Gnero, Modernidade, Maputo, Autoctonia
O estudo realizado no mbito desta dissertao tem como ponto de partida os
discursos produzidos pelas companhias de teatro profissional em Maputo durante o perodo
compreendido entre 1992 e 2010. Neste sentido, a dissertao articula a problemtica da
construo da nao moambicana sob a gide do Homem Novodo perodo socialista ps-
independncia com os desafios colocados pela transio para um sistema poltico
multipartidrio, tendo ainda em conta os discursos narrativos estruturados pela prtica teatral
nesta primeira dcada do sc. XXI. Com o decorrer da investigao ainda assumiu-se que,
para alm das referncias encontradas sobre as questes do nacionalismo e da modernidade
em Moambique, existiu e continua a manifestar-se todo um trabalho desenvolvido pelas
companhias de teatro no sentido de problematizar e denunciar a discriminao de gnero.
Assim, em cena, problematiza-se a ambiguidade entre o ideal modernista e a vivncia
quotidiana das mulheres na cidade de Maputo, anuncia-se as contradies e os desafios da
nao face s exigncias desenvolvimentistas da era globalizada e ainda se tenta sustentar
que, aps a assinatura do Acordo de Paz, em 1992, e com as primeiras eleies multi-
partidrias, em 1994, o iderio de pertena autctone comum esteve na base da consolidao
da nao moambicana no sentido de sarar as contradies internas que estiveram na origem
do conflito interno que assolou o pas entre 1977 e 1992.
Esta dissertao contempla ainda uma breve histria das instituies teatrais em
Maputo, entre os anos 1992 e 2010, e apresenta um levantamento da dramaturgia produzida.
Para alm de traar os princpios gerais que regem o trabalho destas instituies profissionais,
a dissertao aponta tambm para uma nova abordagem da problemtica apresentada,
consequncia do trabalho de pesquisa efectuado em Abril junto dos jovens estudantes deteatro da UEM-ECA (Maputo) que comigo partilharam as suas expectativas quanto ao futuro.
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iii Vera Azevedo
ABSTRACT
Key-words:Theater, Nationalism, Gender, Modernity, Maputo, Autochthony
This dissertation takes as its point of departure narratives produced by professional
theater companies in Maputo during the period of 1992 to 2010. It articulates nation-building
in Mozambique during the socialist post-independence period under the aegis of the notion of
New Manwith the challenges posed by the transition to a multiparty political system. It also
takes into account the narrative discourses structured around theatrical practice during the first
decade of the twenty first century. In addition to the relation between nationalism and
modernity in Mozambique we also found work by theater companies addressing the
perplexities of gender discrimination. Theatre problematizes the ambiguities existing between
modernist ideals and actual daily life in Maputo, reflecting upon the contradictions and
challenges that the nation address when facing the need for development in our globalized era.
After the signing of the Peace Agreement in 1992, and the first multiparty elections in 1994,
the common ideal of autochthony constituted a basis for the consolidation of Mozambican
nationalism working towards healing the internal contradictions resulting from the civil war
that devastated the country between 1977 and 1992.
The thesis also includes a brief history of the theater institutions in Maputo between
the years 1992 and 2010, presenting a survey of production during that period. The aim of the
thesis is to open up new paths of interpretation based on research work conducted in April
among young drama students of ECA-UEM (Maputo), who shared with me their expectations
about their future.
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iv Vera Azevedo
AGRADECIMENTOS
Esta dissertao o culminar de cinco anos de trabalho muito intenso. Durante este perodo o
meu olhar sobre o mundo alterou-se significativamente. Tal deve-se, sem dvida, s pessoas
que comigo se cruzaram. Sinto, porm que o que realmente possibilitou a existncia deste
texto foram as ferramentas de anlise entretanto adquiridas.
Agradeo ao meu orientador, Professor Dr. Joo de Pina-Cabral, o apoio, interesse e
insistncia nos momentos em que mais hesitei quanto relevncia da temtica escolhida. Sem
o seu acreditar na proposta e as suas directrizes, creio que h muito teria sucumbido ao
cansao provocado por estes anos em que, paralelamente, desenvolvi a minha actividade
laboral.
No posso deixar de agradecer ao Gabinete de Estudos Ps-Graduados do ICS, na pessoa da
Dra. Maria Goretti Matias, pelo incentivo que me deu quando mais necessitei e pelo apoio
administrativo nunca negado.
Uma vez que a elaborao desta dissertao me levou a Maputo, Moambique, quero
agradecer a todos quantos, no terreno, se mostraram disponveis para comigo partilharem as
suas vises do mundo: a V.G., a Gilberto Mendes, a Rogrio Manjate, a Lucrcia Paco, a Jos
Pimentel Teixeira e aos alunos do 3 Ano do Curso de Teatro da ECA- UEM. A todos o meu
Muito Obrigada. Ainda um agradecimento muito especial aos queridos amigos Joana Fartaria,
Z Miguel e Giulia Cavallo, que to bem me orientaram na cidade.
Quero ainda agradecer aos meus cmplices nesta caminhada da ps-graduao, Bruno Silva e
Antnio Rodrigues e ao meu bom amigo V.Y. Mudimbe, que sempre se preocupou em saberse o meu projecto chegava a bom porto. Agradeo ainda aos meus queridos pais, dado que
sem o seu apoio, jovialidade e entusiasmo nunca teria conseguido gerir estes anos de tarefas
mltiplas.
Finalmente, agradeo e dedico esta dissertao ao meu filho Jlio. Se certo que passou a
primeira fase da adolescncia a ouvir falar de teoria social, com orgulho que hoje lhe
reconheo as qualidades da tolerncia e da perspiccia.
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v Vera Azevedo
ACRNIMOS
ACNUR Alto Comissariado das Naes Unidas para os Refugiados
ACERT Associao Cultural e Recreativa de Tondela
AEMO Associao dos Escritores Moambicanos
AIM Africa in Motion - Film Festival
ANC African National Congress
ASDI/SIDA Swedish International Development Cooperation Agency
BCM Banco Comercial de Moambique
CCFM Centro Cultural Franco-Moambicano
CELCIT Centro Latino-Americano de Criao e Investigao Teatral
CNPEEDC Comisso de Preparao Eleitoral Democrtica e Educao
Cvica da Populao de Moambique
ECA Escola de Comunicao e Artes
EN Estrada Nacional
FBLP Fundo Bibliogrfico de Lngua Portuguesa
FCAT Festival de Cinema Africano de Tarifa
FESTLIP Festival de Teatro da Lngua Portuguesa
FHI Family Health International
FITEI Festival Internacional de Teatro de Expresso Ibrica
FIBA Festival Internacional de Buenos Aires
FLCS Faculdade de Letras e Cincias Sociais
FMI Fundo de Moeda Internacional
FNUAP Fundo das Naes Unidas para a Populao
FRELIMO Frente de Libertao de Moambique
HIFA Harare International Festival of ArtsLINKFEST The Southern Africa Arts Festival and Market
MA Master Class
NAR Ncleo de Apoio aos Refugiados
OMM Organizao da Mulher Moambicana
ONG Organizao No Governamental
PIDE Polcia Internacional e de Defesa do Estado
RDA Repblica Democrtica da AlemanhaSAFRI Southern Africa Initiative of German Business
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vi Vera Azevedo
SADC Southern Africa Development Community
TDM Telecomunicaes de Moambique
TIM Televiso Independente de Moambique
UEM Universidade Eduardo Mondlane
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
UNISIDA United Nations Program on AIDS/SIDA
USAID United States Agency for International Development
WLSA Womem and Law in South Africa
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1 Vera Azevedo
INTRODUO
Na perspectiva de inferir como que as histrias contadas nos palcos dos teatros de
Maputo reflectem a viso que a sociedade maputense tem sobre si mesma e ainda no intuitode entender qual a relao da arte teatral com as ideias de nao e modernidade, entro no
Centro Cultural Universitrio da Universidade Eduardo Mondlane sito a meio da Avenida
Agostinho Neto, em Maputo, num dia solarengo de Abril de 2010. Dirijo-me aos seguranas e
anuncio o meu encontro com o Professor V. Est a dar uma aula, dizem-me. Sim, para
assistir a essa mesma aula, garanto. De imediato indicam-me a entrada para o auditrio.
Contorno a enorme pintura de inspirao neo-realista que, alusiva vida quotidiana do povo
moambicano, se impe nofoyer de entrada e espreito pela porta do corredor lateral esquerdo.Os alunos esto sentados beira de um pequeno palco. Olho rapidamente para o interior da
sala e apercebo-me que se trata de uma estrutura em tudo semelhante aos cineteatros
edificados durante o Estado Novo em Portugal e que, por c, ainda encontramos um pouco
por todo o lado. Espao arquitectnico particularmente vocacionado para o cinema, descubro
que antes de ser pertena da Universidade foi Cinema dos Continuadores no perodo ps-
independncia e Cinema Nacional na poca colonial. Est bem conservado, com a plateia
completamente renovada e apresenta-se de cara lavada, ou seja, com pintura recente.
O professor V. est do lado da plateia, em p, com os cotovelos apoiados na beira do
palco e no d sinais de notar a minha presena de to absorvido que est a conversar com os
alunos. Os que esto virados para a porta de onde espreito levantam os olhos quando me vem
entrar. V. volta a cabea e cumprimenta-me entusiasticamente. Este encontro tinha sido
combinado na vspera num jantar com amigos comuns. Diz-me para entrar na sala e me
acercar do palco. Apresenta-me aos alunos que me olham de alto a baixo. Sento-me na
segunda fila da plateia e aguardo que a conversa termine enquanto vou decifrando os
discursos proferidos pelos discentes. Fala-se da importncia dos clssicos para um jovem
aluno prestes a licenciar-se e da necessidade de conhecer profundamente toda essa
dramaturgia. Na origem desta conversa est uma semana de um workshop intensivo sobre
Shakespeare ministrado por uma ilustre especialista vinda propositadamente de Lisboa para o
efeito. Os alunos no parecem muito convencidos da importncia que os coordenadores do
curso depositaram no seminrio. O seu discurso em tom discordante, com uma argumentao
um pouco ambgua e mal fundamentada, desperta a minha ateno. Levanto-me da cadeira
para os conseguir ouvir melhor e decido de imediato que tenho de os entrevistar para entender
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2 Vera Azevedo
as razes da sua resistncia. Lembro-me de pensar que era fundamental questionar estes
jovens sobre o sentido da formao do actor num mercado de trabalho teatral to restrito
como o de Maputo.
O professor V. faz-me sinal para o seguir e sentamo-nos nas filas mais recuadas da
plateia enquanto os alunos se apropriam do pequeno palco. Iniciamos uma longa conversa
sobre a estruturao e objectivos do curso, o perfil dos alunos que o procuram e ainda quais os
projectos agendados para o futuro. Pelo meio explica-me que esta aula tem como finalidade o
apuramento do exerccio final dos alunos do 3 ano, ramo encenao, fruto de algumas
semanas de improvisaes colectivas que, finalmente, est a ganhar a forma de uma partitura.
A cena remete para um local pblico onde duas mulheres manifestam apreo pelos seus
maridos, at que uma delas acusa o marido da outra de ter muito papo1,inclusive com ela.
Essa situao gera uma discusso entre as duas personagens que aponta para uma
problemtica sociocultural onde questes como a infidelidade, o estatuto social e a construo
das relaes de gnero esto presentes. um dilogo onde os discursos, atitudes, normas e
prticas partilhadas inferem as mudanas e continuidades, ambiguidades e contradies da
vivncia quotidiana num contexto urbano com uma dinmica social em transformao. No
Maputo actual, onde se misturam diversos tipos de sistemas de parentesco e religies, onde o
rural e urbano andam passo a passo, este fragmento de improvisao dos jovens aspirantes a
actores fez-me questionar a relao entre o ideal de modernidade presente na edificao da
nao moambicana ps-independncia e a ambiguidade nos valores subjacentes s relaes
de gnero.
J sem a presena do professor, que entretanto necessitou de se ausentar para uma
reunio, fico sozinha com os alunos e passamos a uma situao de conversa informal onde me
pergunto quais as temticas que gostariam de ver abordadas, ou que pretendem abordar
enquanto futuros artistas, nos palcos moambicanos. Plenos de criatividade, dizem-me que em
futuros trabalhos profissionais lhes interessa imprimir um ponto de vista pessoal eexploratrio, j que as temticas clssicas so abordadas amide pelas estruturas teatrais
existentes. Da que procurem novos assuntos, como por exemplo o hermafroditismo, mas
tambm novos espaos de representao - foi referido um cemitrio - de forma a conseguir
contornar o problema da falta de espaos de exibio e afirmar a diferena em relao s
companhias teatrais institudas. No entanto, dizem-me que tambm se identificam com o
clssico tema da medicina tradicional, o qual funciona como diferenciador do teatro de
1Ter muito papo expresso utilizada para galantear ou, em calo, engatar
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origem europeia. Alegam que uma temtica to africana que mesmo que intentem abordar
to-somente as relaes entre pais e filhos, no h como fugir figura do curandeiro.
Reforam que este personagem com presena garantida nos palcos, mesmo que o tema seja
o trnsito em Maputo.
Tambm o passado e o futuro fazem parte das preocupaes deste jovens actores em
formao, dado que muitos deles nasceram num pas que s se constituiu como nao em
1975 e que atravessou um conflito interno at 1992. Apercebem-se da herana de um passado
que esteve na gnese da nao moambicana, mas vivem num presente marcado por
influncias mltiplas que lhes so descarregadas a um ritmo alucinante. O futuro parece
incerto, mas as mudanas por relao ao Maputo de seus pais so to marcantes que lhes
sustentam enormes expectativas. Tambm a nvel profissional esto apreensivos. Tm receio
de no conseguirem afirmar-se no meio artstico moambicano e sonham com a Europa. Por
um lado, parecem querer reproduzir os mesmos passos que permitiram a institucionalizao
das poucas companhias de teatro profissional em Maputo, por outro, parece que a cena teatral
institucionalizada lhes faz sentir que as ferramentas e competncias que esto a adquirir de
nada serviro para o futuro. Paralelamente, tambm sabem que o governo est a investir na
formao artstica desde o ensino bsico e que vo ser necessrios professores credenciados
pela academia para ministrarem essa disciplina. Esta a sua responsabilidade no presente:
afirmarem-se enquanto criadores, superarem as dificuldades e contriburem para a emergncia
de um mercado de trabalho teatral em Maputo. Quais sero ento as grandes mudanas em
relao ao panorama teatral vigente na altura do fim do conflito interno (a guerra civil
terminada em 1992)? E quais as continuidades que podemos encontrar se confrontarmos os
desafios que se colocavam aos criadores teatrais ento e aqueles que hoje se colocam a estes
jovens?
Ao falarmos em teatro moambicano2devemos ter em conta que a existncia de um
teatro segundo os moldes que hoje encontramos em Maputo no tem mais de quarenta anos,apesar de aparecerem referncias a um teatro moambicano de influncia europeia que datam
de 1898, quando Carlos da Silva produz a opereta tragicmica Os Amores de Krillu
(Banham 2004). Apenas na poca do Acto Colonial (1930), que o teatro em Moambique ,
tal como hoje se apresenta, com espao prprio e conveno italiana3, adquire forma. A
temtica representada reflectia ento o gosto da classe branca colonial. Somente no perodo
2O itlico serve para reforar a especificidade que os prprios criadores lhe conferem, demarcando assim o
perodo de um teatro de caractersticas europeias, logo colonial, daquele que surgiu aps a independncia.3Onde a relao palco/plateia se caracteriza pela existncia de uma zona que interdita o espectador de acederao espao de representao. Normalmente este situa-se num nvel mais elevado.
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das lutas anticoloniais, com a emergncia dos ideais nacionalistas, que se assiste ao
aparecimento de espectculos cuja temtica era a realidade local, ao mesmo tempo que se
anunciava o orgulho em ser africano. No incio dos 1970, Lindo Lhongo, um dos primeiros
autores teatrais moambicanos, a par com Orlando Mendes e Afonso Ribeiro, reflectiram
sobre a condio do negro aculturado que mantinha um p na cultura ocidental e outro nas
suas tradies ancestrais. Mesmo assim, s a partir dos anos 1980 que as manifestaes
artsticas tradicionais - dana, musica e mmica vo sendo incorporadas no reportrio
teatral. Uma das explicaes avanada por Lus Mitras (Banham 2004, 390) para esta incluso
tardia deve-se ao facto dos movimentos de libertao considerarem o tribalismo e suas
manifestaes artsticas um factor de diviso negativo a ser erradicado, uma vez que no
espelhavam a imagem por eles ambicionada de uma nova nao livre e um Homem Novo.
Por outro lado, o facto do estado colonial ter elevado as manifestaes artsticas tradicionais a
folclore extico, ao mesmo tempo que a PIDE (polcia poltica do regime salazarista)
mantinha uma vigilncia constante sobre esta arte com tanta visibilidade pblica e capacidade
de persuaso, pode ter inibido os escritores a desenvolverem uma dramaturgia que reflectisse
a condio do colonizado.
J com a independncia de Moambique, as estruturas teatrais alteraram-se. Assim,
vai-se divulgar um pouco por todo o territrio um teatro de carcter didctico, revolucionrio
e propagandstico, cujas preocupaes fundamentais era a promoo do novo iderio
nacionalista. um teatro que pretende enderear os interesses das camadas populares,
politicamente comprometido com os ideais da FRELIMO, que promove o esprito anti-
colonialista ao mesmo tempo que enaltece a vivncia quotidiana da populao moambicana.
Muitos jovens criadores dessa poca, empenhados no desenvolvimento deste recm-criado
teatro popular, beneficiaram de bolsas de especializao na ento RDA (Repblica
Democrtica Alem) e na Coreia do Norte, tendo vindo mais tarde a desempenhar funes de
destaque no panorama cultural moambicano. (Caetano 2004, 22). Paralelamente a estaprofuso de agentes culturais dinamizadores por todo o territrio, ao mesmo tempo que o pas
vivia a braos com uma guerra civil, os anos 1980 foram um perodo ureo para os criadores
teatrais estabelecidos na capital moambicana.
No contexto geopoltico internacional, com a queda do Muro de Berlim no contexto
geopoltico internacional, desenvolveram-se intercmbios culturais com governos e
instituies europeias e fomentaram-se os apoios com as ONGs. Foram assim criadas
condies para o aparecimento de vrias companhias teatrais que conjugam as infra-estruturas
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da herana colonial com o esprito comunitrio dos open spaces4. A cena teatral em Maputo
encheu-se de um novo fulgor e o nmero de actores multiplicou-se. uma poca de grande
qualidade e inovao artstica, mas durante a qual subsiste a inexistncia de uma dramaturgia
nacional. No se escrevem, nem publicam textos para teatro e os criadores recorrem
dramaturgia europeia, sul-americana (Brasil) e sul-africana, ou ainda a adaptaes da
literatura moambicana, nomeadamente de contos dos emblemticos Rui Nogar (1932-1993),
Jos Craveirinha (1922-2003) e Mia Couto (1955).
Decorridos 35 anos sobre a Independncia e 18 anos sobre a assinatura do Acordo de
Paz quais foram ento as mudanas e continuidades que ocorreram na prtica teatral? Como
que os contedos narrativos que incorporam discursos e concepes sobre nao,
modernidade e gnero foram estruturados pela prtica teatral? o que vamos tentar aferir ao
longo das prximas pginas.
Metodologia e Estrutura
Esta dissertao tem como pano de fundo o panorama teatral existente em Maputo
entre o ano de 1992 e Abril de 2010. Se, por um lado, se pretende determinar at que ponto os
discursos produzidos nos palcos moambicanos reflectem e, ao mesmo tempo, determinam a
sociedade moambicana, por outro lado, esta pesquisa tentar tambm avaliar como que osartistas de Maputo se posicionaram no mbito das transies polticas verificadas ao longo da
baliza temporal que estabelecemos e ainda quais foram as estratgias de sobrevivncia que
desenvolveram para a prossecuo da prtica teatral.
Para esse propsito, uma das primeiras etapas foi a recolha de notcias sobre as
companhias de teatro em peridicos da impressa nacional, regional e internacional, assim
como a consulta de material disponvel on-line sobre os espectculos. Fez-se ainda o
levantamento de notcias nos sites de estaes de rdio e televises moambicanas, blogs e
redes virtuais com o objectivo de entender qual o tipo de relao entre as companhias e a
sociedade moambicana, e quais as relaes que estas estabeleceram com o exterior, quer no
passado, quer no presente. Contemplou-se ainda o levantamento da dramaturgia que as
companhias profissionais de teatro em Maputo apresentaram ao longo destes anos,
mencionando, sempre que possvel, os autores da literatura moambicana que lhes serviram
de inspirao, quais as obras adaptadas, quantas peas originais se produziram e quais os
autores da dramaturgia mundial mais presentes nos espectculos apresentados. Durante a
4Espao de representao no convencional segundo o modelo ocidental. Normalmente em arena ou terreiro.
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minha visita a Maputo, entre 3 e 17 de Abril de 2010, elaborei um dirio de campo onde
registei os espectculos a que assisti, as conversas informais que tive o privilgio de desfrutar
com alguns actores e as minhas impresses relativamente ao pulsar da cidade. Tambm
registei em suporte udio fragmentos dos espectculos assistidos, assim como a entrevista
colectiva aos jovens actores do Curso de Teatro da ECA- UEM que comigo reflectiram sobre
as suas expectativas em relao ao futuro do teatro em Moambique. A fotografia foi o meio
privilegiado de registo visual. No CD que se encontra nas costas da capa consta um lbum de
fotografias relativas aos espectculos que assisti e a espaos de teatro que visitei. Tambm se
inclui o registo udio dos discursos das reclusas no mbito das comemoraes do Dia da
Mulher Moambicana na Priso de Ndlevela, assim como excertos udio do espectculo
Domesticamente Violento da Companhia de Teatro Gungu.
A dissertao est estruturada em dois captulos com subseces e um eplogo. No
primeiro captulo, procedeu-se ao levantamento sistemtico das companhias teatrais no
perodo de tempo compreendido entre 1992 e 2010 e tentou-se dar conta das convergncias
histricas que propiciaram a continuidade de umas, o desaparecimento de outras e ainda o
surgimento de terceiras. Tambm se tentou apurar quais foram os objectivos que estiveram na
origem da formao de cada uma delas, os princpios gerais que regem o seu trabalho, as
actividades multidisciplinares possuidoras de um perfil de aco socialmente comprometido
que integraram, ou ainda integram, e tambm o tipo de financiamento que possuem e ainda
que redes culturais as potenciam.
O segundo captulo desta dissertao dedicado anlise dramatrgica dos
espectculos onde, com o recurso teoria antropolgica, se pretendeu articular os dados
recolhidos de forma a enquadrar a perspectiva encontrada no processo histrico que, desde
1992, aps a assinatura do Acordo de Paz, delineou um novo rumo nos palcos moambicanos
e estimulou outra forma de reflectir sobre as questes de gnero, da nao e da modernidade.
Para este propsito escolheram-se trs espectculos das duas companhias teatrais de Maputoque mais actividade regular tm mantido nestes ltimos dezoito anos, os Mutumbela Gogo e a
Companhia de Teatro Gungu. Mulher Asfalto(2008), uma produo da actriz Lucrcia Paco
sob a chancela dos Mutumbela Gogo, foi o espectculo escolhido no sentido de problematizar
a discriminao de gnero em Moambique, ao mesmo tempo que se tenta mostrar a
ambiguidade existente entre o ideal modernista da nao e a vivncia do quotidiano. A
Demisso do S Ministro(2008) um espectculo que se mostrou ambivalente e transversal a
toda a temtica proposta, ao mesmo tempo que anuncia as contradies e os desafios da naomoambicana na era da globalizao. Por ltimo, Vestir a Terra (1994) um espectculo
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emblemtico da poca de transio do regime socialista de partido nico para um sistema
poltico multipartidrio, onde se refora e se apela pertena identitria para construir o
futuro da nao moambicana, numa problemtica no isenta de paradoxos.
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CAPTULO I
BREVE HISTRIA DAS INSTITUIES TEATRAIS (1992-2010)
A histria das instituies teatrais de Maputo remonta poca colonial, mas a
actividade teatral intensifica-se durante a Guerra de Libertao Nacional, consolida-se e
diversifica-se no perodo ps-independncia e sofre uma transformao completa a partir de
1992. Nessa poca, em Maputo, as companhias teatrais ou associaes culturais com
actividade teatral regular e de carcter profissional so: (i) os Mutumbela Gogo, formados em
1986, (ii) a Associao da Casa Velha, que remonta a 1982, (iii) a Associao Cultural
Tchova Xita Duma, que principia actividades em 1984 mas que j se encontrava em plena
desagregao em 1992, (iv) os MBeu, companhia satlite dos Mutumbela que emerge em
1989 como laboratrio de actores e, finalmente, (v) a Companhia de Teatro Gungu,
companhia profissional que se constituiu mesmo no ano de 1992 e que revolucionou a cena
teatral em Maputo.
Apesar de sair do mbito deste estudo porque se trata de uma instituio virada para a
prtica de outro gnero artstico, apraz-me ainda referir a importncia da prestigiada
Companhia Nacional de Canto e Dana, fundada em 1979 sob a bno da Direco
Nacional de Cultura. Esta companhia de dana, inicialmente constituda por jovens bailarinos
amadores de vrias regies do pas que se dedicavam dana e poesia, j integrava
cinquenta elementos em 1993, entre tcnicos, msicos e bailarinos profissionais. A sua
misso at aos dias de hoje sempre se pautou pela recolha, preservao, valorizao e difuso
do patrimnio cultural moambicano nos domnios da dana, msica, canto, teatro e
actividades associadas (Graa 1995).
Quando, em 1992, o Acordo de Paz foi assinado, Moambique era um dos pases mais
pobres do mundo e mais dependentes de ajuda exterior. O contexto geopoltico internacional
encontrava-se marcado pelo fim da Guerra Fria, pela ascenso global da doutrina neo-liberal e
a nvel local, pelo fim do apartheidna vizinha frica do Sul. Manifestamente estamos perante
um contexto de transio, caracterizado pelo fim de uma situao de guerra civil e incio de
um tempo de paz, onde a economia de mercado comeava a desenvolver-se e o governo de
partido nico substitudo por um regime de estilo constitucionalista democrtico. (Dinerman
2006, 24) Este panorama histrico possuir bvias consequncias na dinmica dos palcos dos
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teatros em Maputo, conforme se reconhecer no percurso histrico que vos proponho de
seguida.
Da Paz viragem do MilnioNo ano de 1992, a cena teatral de Maputo goza de nomes como Manuela Soeiro,
fundadora dos Mutumbela Gogo e cone da renaissance5 teatral moambicana. Sediada no
Teatro Avenida, esta companhia era co-dirigida pelo escritor e dramaturgo sueco Henning
Mankell e possua como prioridade as temticas que reflectissem a realidade moambicana.
Nesse ano, o espectculo Amor, Vem, uma adaptao da pea Lisistrata de Aristfanes,
homenageia a contribuio de todas as mulheres moambicanas para o termo ao conflito que
assolou o pas. No entanto, a paz que agora se fazia sentir arrasta consigo centenas demilhares de rfos para as ruas das capitais de provncia.
Esta constatao leva a companhia a realizar no ano seguinte a pea Meninos de
Ningum (1993). De autoria colectiva, o espectculo aborda a temtica das crianas de rua
condenadas mendicidade, cujos sonhos se resumem a estratgias de sobrevivncia. A
produo foi apresentada na XVI Edio do FITEI, no Porto, em 1993, juntamente com o
espectculoNTchuvada ento companhia satlite MBu.
Em 1994, j no mbito das primeiras eleies multipartidrias e com o objectivo derealizar um trabalho de educao cvica aps o processo de reconciliao, os Mutumbela
Gogo desenvolvem o projecto Mocambiquero-te que percorre todas as provncias do pas
com o espectculo Vestir a Terra, cuja temtica se centra nos refugiados moambicanos nos
pases vizinhos e no tipo de democracia existente no perodo que antecede as eleies
multipartidrias. Com a participao de actores como Lucrcia Paco, Rogrio Manjate,
Evaristo Abru ou Alberto Magassela, actualmente a residir no Porto, o espectculo
realizado em conjunto com os MBupara as representaes nas provncias de Maputo e
Gaza. Inicialmente escrito em portugus, depois traduzido para as lnguas Tsonga, Chitswa,
Ndau, Sena, Shona e Macuapara uma melhor incluso das populaes a quem se dirigia.
No seguimento deste posicionamento para o servio cvico, em 1997, a companhia
estreia o espectculo Que Dia, que tinha como objectivo inspirar as mulheres na sua
emancipao e promover o debate sobre os direitos e deveres da mulher na sociedade
moambicana. O guio escrito surge das improvisaes dos actores e da colagem de excertos
5
Por referncia Harlem Renaissance ou New Negro Movement, como era conhecido na altura em NewYork que, no incio de 1920 nos Estados Unidos originou um intenso movimento artstico/cultural onde secelebrava o orgulho em ser afro-americano.
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dos contos tradicionais moambicanos. A estreia teve lugar no Teatro Avenida e o
espectculo seguiu em digresso por toda a zona do grande Maputo, Beira, Gaza, Inhambane,
Tete, Nampula e Cabo Delgado, tendo sido vista por 14 000 pessoas, num total de 70
espectculos.
Segundo o relatrio 1997/2000 da ASDI (Agncia Sueca de Cooperao para o
Desenvolvimento), esta adeso massiva de pblico confere a ideia de fome cultural nas
provncias, j que a populao raras vezes tem acesso a este tipo de eventos. Por outro lado,
diz o mesmo relatrio, estes acontecimentos culturais nas provncias tambm reforam o
sentido de pertena identitria nao (Pehrsson 2001, 34). Tal como o espectculo Vestir a
Terra, tambm Que Dia foi traduzido para as lnguas mais representativas do pas, s que
desta vez em conjunto com os grupos locais de teatro amador. Posteriormente, a
representao ficou a cargo destes agentes culturais, que entretanto beneficiaram de
workshops de dramaturgia e representao. O grande impacto a nvel local deste espectculo
deveu-se justamente a esta estratgia de passagem de testemunho.
Tambm a companhia-satlite MBu, que entretanto conquistou maturidade e
autonomia em relao companhia principal, produziu uma verso juvenil do espectculo
Que Dia para que a reflexo sobre a importncia da mulher na sociedade moambicana
chegasse a todas as faixas etrias da populao.
Atentemos um pouco, ento, ao percurso particular desta companhia de jovens
criadores. Co-residentes no Teatro Avenida desde 1989 e inicialmente vocacionados para a
formao de actores que alimentassem as necessidades artsticas dos Mutumbela Gogo, a
partir de 1994 este colectivo acentua a sua tendncia para um teatro juvenil de cariz
comunitrio com preocupaes cvicas, ao mesmo tempo que privilegia os contactos com os
pequenos grupos amadores espalhados pelas provncias, de forma a capacit-los artstica e
tecnicamente para a produo de espectculos. Pela mo de Evaristo Abreu, actor que se
iniciou nos Mutumbela Gogo e na companhia Tchova Xita Duma, a temtica deste colectivocentra-se no enaltecimento dos costumes e valores tradicionais moambicanos e na stira aos
fenmenos da vida quotidiana, como a corrupo ou o trfico, numa tentativa de repescar as
referncias de um perodo pr-colonial.
Tambm a sua dramaturgia se baseia na adaptao de mitos, contos e histrias
tradicionais, nos poemas de Jos Craveirinha, ou nas canes de Mia Couto e, curiosidade, no
Romance da Lebre de Henri-Alexandre Junod, constante no Cantos e Contos dos Rongas
(1975 [1897]). Esta adaptao do texto de Junod deu origem ao espectculo emblemtico dacompanhia, oMwa NPfundla, em 1991. Tambm neste espectculo os dilogos misturavam
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o portugus com as lnguas Changana, Nyanja e Sena de forma a apelar a um leque mais
alargado da populao moambicana. O Danarino (1994), Haxixe (1995) Joaquim Chofer
(1995)e aChegada do Vizinho6foram espectculos que marcaram a histria da companhia
que, em 1999, enceta a aventura de organizar o I Festival DAgosto(Langa 2008). Nas duas
edies subsequentes, o Festival tem como um dos parceiros a companhia portuguesa Trigo
Limpo Teatro - ACERT, a qual coordenou a programao no que diz respeito escolha dos
espectculos europeus e do continente americano. Esta enorme iniciativa movimentou artistas
de todo o mundo nas reas do teatro, da msica, das artes plsticas e manifestou-se como um
caldeiro de intercmbio artstico sem precedentes na cidade de Maputo.
Na sua primeira edio, o Festival DAgosto deuprimazia temtica da luta contra o
HIV/SIDA, na segunda edio luta contra a corrupo e na terceira Edio falou-se da
educao para todos. A temtica desta ltima edio centrava-se na ideia de ajudar a
promover a educao e demonstrar que os artistas tambm so pessoas atentas s questes
relacionadas com a discriminao de gnero (F. Manjate 2003). Para alm de alertar para as
questes na sociedade moambicana que pediam urgente resoluo e promover o intercmbio
internacional, o Festival DAgosto - que teve a ltima edio em 2005 - dinamizou muitos
espaos culturais da cidade e conseguiu uma concertao de esforos por parte de todos os
fazedores de teatro7de Maputo. O Teatro Avenida, o Cinema Scala, a Casa Velha, a Catembe
Gallery, o Centro dos Estudos Brasileiros e o CCFM (Centro Cultural Franco Moambicano),
por exemplo, foram alguns dos locais que acolheram os diversos espectculos de teatro (F.
Manjate 2004). Mas tambm o Instituto Cames e a FLCS (Faculdade de Letras e Cincias
Sociais) da UEM (Universidade Eduardo Mondlane) contriburam para o evento com a
cedncia de espaos para realizao de conferncias sobre artes cnicas.
Justamente por contaminao a esta dinmica de colaborao e cedncia de espaos
que se impe falar brevemente sobre o ncleo teatral da Associao Cultural Tchova Xita
Duma8. Em 2002, aquando da II Edio do Festival DAgosto, tanto o ncleo teatral como aprpria associao estavam praticamente desactivados. Sem actividade significativa e num
estertor que se arrastava desde 1992, a Associao ainda mantinha o espao da sua sede que,
generosamente, cedeu para esta iniciativa.
6No consegui a data exacta de estreia7 Expresso utilizada em Maputo para designar todos aqueles que laboram nas artes cnicas. No consegui
apurar se remete para a famosa pea de Thomas Bernhard com o mesmo nome. No entanto, parece que sermais uma aluso ideologia marxista do trabalho.8Que em Changana significa Empurra que vai pegar uma aluso irnica aos carros velhos.
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A Associao Cultural Tchova Xita Dima foi fundada em 1984 pelo msico brasileiro
Martinho Lutero e um grupo constitudo por intelectuais, alunos universitrios e jornalistas
interessados na partilha artstica. A sua rea artstica preferencial era a msica e o teatro, na
vertente cnica e radiofnica. Tambm Manuela Soeiro, fundadora dos Mutumbela Gogo, fez
parte deste ncleo de teatro antes de formar a sua prpria companhia. A escolha do repertrio
dramatrgico recai sobretudo em autores estrangeiros como Chico Buarque dHolanda(1944),
Bertold Brecht(1898-1956), Athol Fugard (1932), Fernando Arrabal (1932) ou Jean-Paul
Sartre (1905-1980) e os espectculos eram apresentados no Teatro Avenida antes de este ser
cedido companhia Mutumbela Gogoa ttulo de alienao. Com Lus Savele na direco, o
ncleo de teatro parece retomar algum do flego perdido aquando da sada de Manuela Soeiro
e de alguns dos elementos fundadores. Lus Savele escreve dois textos de teatro originais9e
encena trs espectculos. No entanto, a partir de meados da dcada de 1990, j no quadro das
privatizaes, a associao comea a sucumbir devido aos elevados valores praticados no
aluguer de salas de espectculo - cerca de 400 a 500 mil meticais por sesso - e escassez de
apoios por parte do governo moambicano (Savele 2005, 7). A ttulo de curiosidade cabe
ainda referir que um dos primeiros espectculos de criao colectiva desta associao, o
Xiluva (1984), chegou a ser censurado pelo Secretrio-Geral da Cultura de ento, Lus
Bernardo Honwana, sob o pretexto do contedo textual no estar em conformidade com o
respeito devido ao pblico e a premissa educativa de audincias. Tratava-se de um texto que
abordava os abusos sexuais sofridos por muitas mulheres moambicanas, quer nas fbricas
onde trabalhavam, quer nas suas prprias casas.
No mbito do associativismo, tambm a Associao da Casa Velha,fundada em 1982
sob a presidncia de Francisco Keil do Amaral, tem uma importncia determinante na
existncia de uma actividade teatral regular em Maputo durante o perodo da guerra civil.
Financiada desde a sua fundao pelo Estado moambicano - em 1986 a associao perdeu
o subsdio governamental e foi levada a traar nova estratgia procurando apoios junto aempresas privadas, organizaes no-governamentais, embaixadas, o Instituto Cames e o
Centro Cultural Franco Moambicano. precisamente no mbito da parceria com Agncias
Internacionais de Desenvolvimento Estatal que a Casa Velha consegue inaugurar o Teatro
Mapiko a 5 de Abril de 1991, o primeiro equipamento a ser construdo de raiz aps a
independncia. Trata-se de um anfiteatro ao ar livre em estilo grego, construo de cimento e
situado no jardim da sede da associao. Possu uma capacidade de mais ou menos
9Tsendzeleni (s.d) e Quem o Padre Cesarri Bertulli(1989)
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quinhentos lugares (Savele 2005, 32), ostenta um belo painel esculpido pelo prestigiado
artista Malangatana e funciona como sede de acolhimento aos vrios grupos de teatro amador
e semi-profissional que no possuem espao prprio para apresentao dos seus espectculos.
Em 1992, a associao, ento presidida pelo jornalista Joo Machado da Graa,
apresentou o espectculo O Osso, adaptao e encenao do prprio a partir de um texto
africano10. Este espectculo, protagonizado pelo conhecido actor Mrio Mabjaia, foi um dos
maiores sucessos da companhia, tendo sido reposto em 1995, no mbito do Festival de Teatro
da frica Austral, que teve lugar na frica do Sul (Sate 1995). Nesse mesmo ano, alguns
actores da associao fundaram um ncleo teatral paralelo denominado Produes Ol, um
colectivo que est interessado em desenvolver uma abordagem crtica mais assertiva
sociedade moambicana e s polticas governativas de privatizao que entregaram cinemas a
igrejas particulares e no zelaram pelas crianas de rua e pelos soldados desmobilizados.
Tambm no ano de 1995 teve lugar o incio da colaborao da Casa Velha e das Produes
Ol com a Cena Lusfona, sediada em Portugal, na realizao da I Estao da Cena Lusfona,
um festival de teatro que teve a durao de um ms, de 15 de Novembro a 12 de Dezembro de
1995, e envolveu 14 companhias de teatro oriundas de Angola, Moambique, Portugal e So
Tom e Prncipe, Foram realizados 20 espectculos e 2 co-produes luso moambicanas, o
De volta da Guerra de Angelo Beolco (Machado 1995), da Casa Velha com o Teatro da
Rainha e o espectculo A Birra do Morto de Vicente Sanches, com a Escola da Noite,
companhia portuguesa sediada em Coimbra, e os Mutumbela Gogo.
Para alm de Joo Machado da Graa, estiveram envolvidos na realizao deste evento
Manuela Soeiro e Gilberto Mendes, da Companhia de Teatro Gungu,da qual falaremos de
seguida. At finais dos anos 1990, as relaes entre o teatro moambicano e a Cena Lusfona
foram intensificando-se no sentido de organizar programas interdisciplinares, institucionais e
de cooperao, com atelis de formao, co-produes, circulao de espectculos,
investigao, dramaturgias, debates, conferncias, exposies e edies. Em 1994, aAssociao Cultural Casa Velha abriu extenses associativas em Nampula, Niassa e
Linchinga, com o intuito de promover a formao de actores e bailarinos de dana tradicional,
assim como outras actividades culturais a desenvolver nas regies do norte de Moambique.
Como se poder depreender pelo acima exposto, a actividade teatral em Maputo na
dcada de 1990 est directamente relacionada com o chamado processo de transio de
Moambique para um regime poltico de estilo multi-partidrio com uma economia neo-
10 Algumas fontes apontam como sendo do senegals Birago Diop mas no consegui uma confirmaofidedigna.http://cvc.instituto-camoes.pt/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid=901&Itemid=69
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liberal. Este processo comea, de facto, a delinear-se alguns anos antes, aquando da entrada
do FMI em Moambique. Ora os desafios que esta transio colocou aos criadores teatrais,
muitos deles outrora vinculados ao projecto socialista de construo da nao, fez com que a
maior parte procurasse apoio em instituies internacionais de cooperao e desenvolvimento
para assim conseguirem algum tipo de financiamento e prosseguirem uma actividade regular.
Muitos dos projectos que surgiram nesta altura, portanto, tinham como objectivo a
disseminao de mensagens de combate e preveno de doenas, como o HIV/SIDA, a
malria ou ainda as questes de sade pblica. Se, por um lado, estas so causas que os
artistas abraam com agrado, dado que o teatro um meio privilegiado para veicular este tipo
de mensagens, por outro lado, este modelo de funcionamento no possui a regularidade
desejvel. As companhias que entretanto se deslocam pelo pas neste tipo de programas,
sentem que perdem impacto e visibilidade quando regressam capital. Num pas totalmente
centralizado no Sul, essa pode ser a morte do artista.
No foi esse, porm, o caso da Companhia de Teatro Gungu, constituda em 1992, por
Gilberto Mendes. Os Gungu11 so hoje uma grande empresa que emprega mais de 130
pessoas, entre actores, administrativos e tcnicos. A companhia possui duas salas de
espectculos, o Cineteatro Madjedje e o Estdio 222, produziu 57 peas de teatro, 3 sries de
televiso, 5 Galas Personalidade e os seus actores participam em quase todas as longas-
metragens de cinema produzidas ou co-produzidas em Moambique. No entanto, os primeiros
anos da companhia no foram fceis. Quando Gilberto Mendes decidiu deixar os Mutumbela
Gogo, aps uma digresso europeia Expo Sevilha e ao FITEI - Porto, a sua principal
preocupao foi arranjar um espao onde pudesse trabalhar com os cinco actores que com ele
estavam dispostos a empreenderem esta nova aventura que viria a marcar a diferena na cena
teatral de Maputo. As duas salas referidas, cedidas pelo Instituto Nacional de Cinema,
apresentavam condies de degradao extremas, mas isso no fez desistir este jovem cuja
ambio era criar uma companhia profissional que no dependesse de subsdiosgovernamentais, que mantivesse uma actividade anual ininterrupta e um carcter
verdadeiramente profissional e profissionalizante.
Se para angariar parceiros dispostos a investir era preciso ter um produto acabado para
oferecer, a 2 Setembro de 1992, dois meses aps Gilberto Mendes ter deixado a companhia
que o viu afirmar-se como actor, os Gungu apresentaram o seu primeiro espectculo, Tempo
Zero. O espectculo era uma crtica social s polticas governamentais existentes no perodo
11Como normalmente so apelidados no meio teatral e junto ao pblico
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histrico compreendido entre o fim do perodo colonial e o final do conflito interno e uma
exposio das mgoas causadas ao povo moambicano. No ano seguinte e antevendo as
eleies multipartidrias, a companhia estreou Corao dLagoa, cuja temtica, inspirada no
livro de contos Dizanga dia Muenhudo escritor angolano Boaventura Cardoso, reflecte a
reconstruo identitria do africanoaps o fim da colonizao portuguesa, vinculando assim
o tempo presente ao momento histrico da independncia.
Sempre na perspectiva de perceber qual a fatia da realidade que o pblico deseja ver
espelhada no palco, a companhia prosseguiu a sua actividade com os espectculos O Oitavo
Dia (1994) e Oh S Ministro (1995). O primeiro utiliza a stira s instituies polticas de
Moambique e o segundo desafia o tabu de retratar publicamente um ministro em funes. J
com Deputado Precisa-se (1996) a companhia atreveu-se a criticar uma discusso
parlamentar acerca da instaurao de feriados religiosos para muulmanos, realizando uma
sesso especial para os membros do Parlamento. O espectculo caricaturava as solicitaes de
feriado por parte das delegaes das vrias religies e propunha o fecho das actividades em
Moambique durante o ms de Junho, concentrando assim os feriados de todos os credos
religiosos (Chiurre 2010). O curioso que aps a polmica lanada por esta representao, a
proposta de lei acabou por ser chumbada de forma a evitar a proliferao de feriados no pas.
Ainda em 1996, a companhia apresenta o espectculo Samora,e em 1997, A Cadeira
do Poder. Com salas sempre cheias aos fins-de-semana, a sua actividade foi-se tornando cada
vez mais regular, permitindo que a companhia passasse a produzir mais do que um
espectculo por ano. J em 1998, estreia Oia Ministro, espectculo inspirado no livro O
Ministro(1989), do escritor angolano Agostinho Andr Mendes de Carvalho, que apelava
conscincia dos polticos moambicanos face realidade vivida no pas. Destaque-se que esta
obra de Mendes de Carvalho uma das mais ambguas do escritor, pois possui um pendor
poltico que reflecte uma postura de inequvoca auto-crtica sobre assuntos considerados
politicamente incorrectos porque retratam uma conscincia colectiva da sociedade polticaangolana, com os seus incidentes de percurso (Fortunato 2009). Em 1999, a companhia
estreia Larga a Minha Cabea, Malandro e em 2000 faz um espectculo alusivo s
famigeradas cheias desse ano com ttulo E Tudo a gua Levou. Construdo a partir de
pequenos episdios que retratam o sofrimento daqueles que foram afectados por este
cataclismo natural, o espectculo tambm reflectia sobre a condio humana, abordando
temas como a corrupo e a tendncia das sociedades para esquecerem os valores da
identidade e os direitos mais bsicos da humanidade. Pelo meio, fazia ainda uma crticacerrada s ajudas externas, s implicaes que advm dessa solidariedade e ao poder do
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dinheiro em Moambique e no mundo. O seu director, Gilberto Mendes, refere que uma das
misses da companhia precisamente ser porta-voz da populao moambicana de forma a
alertar o poder governativo para os problemas que esto na ordem do dia (Braga 2000). Da
que os seus espectculos sejam to frequentados e aplaudidos pela populao em geral, mas
tambm pelos altos quadros dirigentes que, desta forma, se deslocam ao Teatro Madjedje para
assistir crtica das polticas governativas que eles prprios promovem e implementam.
Moralmente apoiada desde o primeiro momento pelo ento Presidente da Repblica
Joaquim Chissano, podemos afirmar que a Companhia de Teatro Gungu cumpre eficazmente
a sua estratgia de crescimento. Com salas esgotadas todos os fins-de-semana desde o incio
da sua formao, os Gungu no possuem qualquer tipo de financiamento a no ser o apoio
que resulta das parcerias que a companhia estabelece com empresas privadas ao abrigo do
Decreto-lei n 4/94, o qual instituiu a lei do mecenato com vista ao desenvolvimento da arte e
da cultura (Savele 2005) e das receitas provenientes das suas actividades que se tm
multiplicado a um ritmo impressionante.
Logo aps a sua formao e mediante o elevado nmero de actores que os
procuravam, Gilberto Mendes decidiu formar a companhia-satlite Gungulinho 1, de carcter
semi-profissional, com o intuito de servir como viveiro de actores companhia-me. O
sucesso foi estrondoso. Hoje, muitos dos actores que se formaram nesta companhia so os
actores principais dos Gungu. Nos anos subsequentes surgiram ainda o Gungulinho 2, de
carcter amador, o Gungulito, de vertente juvenil e composto por actores at aos 18 anos e
tambm o Gungulinhozinho, dedicado infncia. Os Gungulinho 1 e 2 apresentam os seus
espectculos no Teatro Madjedje, recentemente renomeado Teatro Gilberto Mendes,e os dois
ltimos no Estdio 222. Paralelamente a estes projectos, que funcionam autonomamente,
ainda existe o Gungudanse e Gungumusic, dois projectos que lanam bailarinos e msicos na
cena artstica moambicana e internacional. Em 2000, ainda fundada a Gungu Produes,
uma produtora dedicada a seriados televisivos e ao cinema. Todas as produes desta etiquetatm conhecido um enorme sucesso junto do pblico moambicano.
Diz Gilberto Mendes que mais do que trabalhar grandes autores da dramaturgia
internacional prefere teatralizar as histrias de Moambique (Braga 2000) ou os factos
verdadeiros que marcam, e assim espelham, a sociedade moambicana. Trata-se de uma
opo que muito dignifica o trabalho desta companhia, mas que no colmata a falta de
existncia de uma dramaturgia nacional, uma vez que os seus espectculos so construdos a
partir de um mote que se vai desenrolando em improvisao at adquirem uma partitura final.Se este formato, que tem dados bons resultados, apropriado pelos Gungu para abordar uma
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qualquer temtica que gere conflito na sociedade em determinado momento histrico, por
outro lado, no cristaliza uma dramaturgia nacional.
A verdade, porm, que urde consequncias pelo incmodo que provoca. Quando em
2002, os Gungu levaram cena o espectculo O Julgamento, este foi censurado pelo
Ministrio de Cultura logo aps a estreia, pois evidenciava o jogo de bastidores, corrupo e
crime organizado que envolveu o BCM (Banco Comercial de Crdito) no desvio de 14
milhes de dlares e levou ao assassinato do jornalista Carlos Cardoso. Face ausncia de
consenso entre Gilberto Mendes e os argumentos que o ministro do pelouro da cultura
apresentava para censurar o espectculo (Chiurre 2010), o director dos Gungu decidiu
prosseguir a carreira do espectculo, arriscando possveis represlias. Tal no aconteceu.
Desde ento e at aos dias de hoje, a companhia produziu mais de 30 espectculos e tem um
enorme sucesso na cena teatral de Maputo, conforme pude comprovar aquando da estreia do
Domesticamente Violento, no dia 3 de Abril de 2010, em Maputo.
Uma vez que a temtica que a companhia privilegia sobretudo urbana, as
deslocaes ao interior do pas existem, mas no so to frequentes como acontece com
companhias que colaboram com organizaes no-governamentais. Em contrapartida, os
Gungu so forte presena no estrangeiro e j se apresentaram por diversas vezes no FITA
(Festival Internacional de Teatro de Almada), no FITEIPorto, no Festival Sur des les, nas
Canrias, no LINKFEST Zimbabu. Este ano representaram Moambique na III Edio do
FESTLIP, no Rio de Janeiro, com o espectculo A Demisso do Sr. Ministro, espectculo
produzido em 2008 e analisado no segundo captulo desta dissertao. A companhia tambm
foi representante da frica Austral no CELSIT e fez parte do Comit Nacional Moambicano
que, em 1997, organizou o Festival de Internacional de Teatro da SADC, em Maputo.
A ltima Dcada
A viragem do sculo no foi de igual feio para todas as companhias de teatro em
Maputo. Conforme anteriormente referido desde o ano de 2002 que a Associao Cultural
Tchova Xita Dima no funciona, nem sequer como centro social, actividade a que se dedicou
desde o desaparecimento do ncleo teatral. (Caetano 2004, 43). Tambm a companhia de
teatro MBu, depois de organizar a II Edio do Festival dAgosto (2002) onde apresentou o
espectculo Mudungazi,baseado no ltimo discurso de Gungunhana que foi posteriormente
apresentado no HIFA12, viu comprometida a regularidade da sua actividade teatral. Como
12Harare Internacional Festival of Arts (2002)
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estratgia de sobrevivncia reforou as colaboraes com a cooperao sua e instituies
estatais que efectuam trabalho de sensibilizao junto das populaes nas provncias
moambicanas. Desta forma, entre 2000 e 2003, os MBu participaram num projecto teatral
de cooperao entre Moambique e a Finlndia intitulado Theatre Now, onde realizaram
uma verso do famoso Ubu Roi (1896) de Alfred Jarry. Depois de organizarem mais trs
edies do Festival DAgosto - o ltimo teve lugar em 2005 - a associao, agora com o nome
de Macarte - MBu, Associao de Cultura, Arte e Teatro, produziu ainda em 2006 o
espectculoA Casa de Bernarda Alba(1936) de Federico Garcia Lorca, com encenao de
Evaristo Abreu. Mais uma vez a escolha dramatrgica teve por finalidade denunciar a
condio de subjugao a que muitas mulheres moambicanas esto sujeitas.
Em 2009, esta companhia representou Moambique na II Edio do FESTLIP, no Rio
de Janeiro, com o espectculo O Homem Ideal (2007), texto e direco de Evaristo Abreu.
Sem espao prprio e a viver da boa vontade alheia quando pretende produzir e realizar um
espectculo, a associao conta com dez elementos, desenvolve projectos para a cooperao,
possui oficinas de teatro, produz eventos e mantm intercmbio com instituies congneres.
Entre 2006 e 2007, em parceria com a ONG Viso Mundial, a companhia formou 78 actores
em treze distritos da provncia da Zambzia. (Langa 2008).O seu principal mentor, Evaristo
Abreu, encontra-se neste momento a concluir o MA (Grau de Mestrado) em Drama, na
Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo. Regressar a Maputo e a novos projectos
culturais em Dezembro de 2010.
Entretanto, vamos espreitar o que foram os ltimos dez anos da Associao Cultural
da Casa Velha. Se at finais dos anos 90, a associao reafirmou as parcerias com a Cena
Lusfona de Portugal, a partir de 1999 contou tambm com o apoio da cooperao espanhola
para a realizao do espectculo A Sapateira Prodigiosa (1930) de Federico Garcia Lorca,
com encenao do criador portugus Fernando Mora Ramos. Este espectculo estreou-se em
Fevereiro de 1999 no Teatro Mapiko - em Maputo e teve uma carreira de sucesso de doismeses, apresentando-se posteriormente na II Estao da Cena Lusfona, em Coimbra. J no
ano 2000, em co-produo com a CulturArte - Cultura e Arte em Movimento, uma
associao que se dedica formao e divulgao artstica, sobretudo na rea da dana,
apresentou no CCFM (Centro Cultural Franco-moambicano) o espectculo pera do
Tambor, baseado no poema Eu Quero Ser Tambor (1964) do poeta moambicano Jos
Craveirinha, numa encenao de Panaba Gabriel, director da CulturArte.
Nos primeiros anos do sc. XXI intensificaram-se as parcerias com ONGs narealizao de espectculos televisivos comemorativos do Dia da Mulher Moambicana ou do
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Dia da Independncia Nacional (Caetano 2004, 40) de forma a conseguir capitalizar recursos
para manuteno do espao e pagamento de salrios a uma estrutura administrativa
constituda por um assistente e por uma secretria. Outra estratgia de sobrevivncia foi a
abertura de uma escola vocacionada para actividades extra-curriculares nas reas de dana e
do desenho artstico, que funcionava mediante o pagamento de uma mensalidade. Em 2001,
sob a direco de Lus Soeiro, a Casa Velha produziu ainda a conhecida A Farsa do
Panelada(s.d.) do autor brasileiro Jos Mapurunga, com encenao de Machado da Graa e
um elenco de doze actores. O espectculo, que parodia as novas democracias e as burguesias
emergentes, surge como grito de alerta numa altura em que a associao comea a perder
capacidade de produo devido falta de recursos para exercer uma actividade teatral de
carcter regular.
Mais do que realizar produes prprias com um elenco de actores fixo, nos ltimos
seis anos, a associao desenvolveu mais um apoio efectivo aos vrios grupos amadores da
cidade e a alguns semi-profissionais de todas as regies de Moambique que se deslocam a
Maputo de forma a apresentarem os seus espectculos. Por seu lado, mantm tambm um
grupo amador com actividade regular e promove programas de sensibilizao junto das
escolas em parceria com o Conselho Nacional de Combate ao HIV/SIDA. O ptio/jardim da
sua sede - uma antiga casa colonial com inestimvel herana arquitectnica e cultural, mas
completamente degradada - hoje frequentado por inmeros estudantes do ensino secundrio
que a se renem nos seus tempos livres para estudar (existe uma pequena biblioteca)
conviver ou ainda exercer actividades extra-curriculares. No entanto, a degradao do Teatro
Mapiko, situado no jardim, um problema que se agrava de ano para ano. Em 2007, com o
apoio da empresa de telecomunicaes Vodacom, a associao conseguiu fazer algumas
pequenas reabilitaes no anfiteatro mas eram necessrias obras mais profundas para devolver
toda a dignidade ao edifcio-sede. (Notcias 2007). A degradao das instalaes, a falta de
patrocnios e apoios, o facto de as receitas no cobrirem os custos das actividades quepromovem, pode levar a que, num futuro muito prximo, um dos poucos espaos para
apresentao pblica de espectculos fique desertificado e sem utilidade pblica.
Nesta perspectiva pouco optimista quanto ao futuro, resta ainda acrescentar que nem a
companhia profissional Mutumbela Gogo esteve isenta de recorrer a estratgias de
sobrevivncia para conseguir a prossecuo de uma actividade teatral regular. Desde 1991 que
os Mutumbela detm a concesso de uma padaria localizada no edifcio do Teatro Avenida.
Esta padaria tambm possui uma pequena esplanada na rua e as receitas revertem para asdespesas inerentes actividade. Para alm das receitas realizadas com a venda de alimentos e
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bilheteira, a companhia sobrevive ainda graas a parcerias que estabelece com instituies e
empresas do sector privado, as quais compram espectculos. Fundamental tambm o apoio
das agncias de cooperao internacional suecas e, mais recentemente, norueguesas e
espanholas, e ainda a colaborao com companhias de teatro da frica do Sul, da ustria e de
Portugal. Muitas vezes com salrios em atraso, os actores sobrevivem graas participao
em projectos fora do mbito da actividade da companhia, quer seja no cinema ou na televiso,
assim como dos lucros de pequenos negcios pessoais. (Savele 2005). Acrescente-se tambm
que nenhum agente cultural em Maputo, mesmo pertencente aos bem-sucedidos Gungu, vive
unicamente do salrio da companhia de teatro onde desenvolve actividade regular.
Dentro da lgica de parcerias com agncias de cooperao internacional, os
Mutumbela Gogo realizaram trabalhos relacionados com a educao cvica e a sade e ainda
espectculos de sensibilizao pblica como aconteceu comA Sombra(s.d.), sobre as minas e
defesa das populaes e S a Vida Oferece Flores (s.d.), sobre o HIV/SIDA. Tambm
exibiram os espectculos Milagre de Sumbi, em 1995, no mbito da I Estao da Cena
Lusfona, em Maputo e, em 1996, No se paga, no se paga de Dario Fo. Em 1998
apresentaramIrmos de Sanguede Willy Russel, uma co-produo com o Backa Theatre de
Gotemburgo. Com autoria e direco de Henning Mankell, produziram ainda Histria de um
Homem Honesto(1997)Nas Teias de Maputo (1998/99) eHistria de um Co (1999). Neste
sentido, podemos dizer que a companhia entrou no milnio com uma dinmica considervel,
j que existiu um enorme investimento por parte das empresas e ONGs em programas de
expresso artstica. A partir de 2000 e anos subsequentes, os Mutumbela Gogo continuam a
manter grande actividade e apostam forte nas parcerias internacionais.
Na sequela das famigeradas cheias do ano 2000, a companhia reps, em Novembro
desse ano, o espectculoXicalamidadi, a partir do texto de Mia Couto Arvore da Vida(s.d.),
j apresentado pelas actrizes Lucrcia Paco e Graa Silva no mbito do Frum Mulher, em
Abril do mesmo ano. Segundo Manuela Soeiro, esta reposio teve como finalidade angariarfundos que, via Cruz Vermelha de Moambique, reverteram a favor das vtimas das cheias
que assolaram o pas. (Notcias de Moambique 2000). Tambm nesse ano, o espectculo A
Corda, a Latae o Batuque, monlogo da actriz Lucrcia Paco com participao do msico
Simo Nhacule, foi apresentado na Expo Hannover 2000 no mbito do Dia de Moambique
nesta exposio mundial. Este espectculo surge no seguimento da participao da actriz e do
msico no projecto Vrldsteaterprojekt13, um frum de partilha artstica organizado pelo
13Projecto de Teatro do Mundo
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Teatro Popular de Gvleborg em 1999, na Sucia, que reuniu dramaturgos, encenadores,
produtores, actores e msicos de vrias nacionalidades.
Durante a ltima dcada a Companhia de Teatro Mutumbela Gogo tem levado cena
adaptaes da dramaturgia internacional, como O Despertar do Guarda-nocturno (1724) do
dinamarqus Ludvig Holberg e O Silncio de Henning Mankell, em 2001, este ltimo em
memria do jornalista Carlos Cardoso. Em 2003, o espectculo Sexo, Sim Obrigada, uma
adaptao do texto com o mesmo nome de Franca Rame e Dario Fo, foi apresentado na III
Edio do Festival D Agosto. J em 2004, a companhia produziu Zeca e a Bela Maria a
partir do grandeWoyseck (1987)de G. Buchner. No ano de 2005, em co-produo com o
Teatro Rampe de Stuttgart e a Schauspielhaus de Viena, apresentou Os Ladres (1781) de
Schiller, um projecto teatral com encenao de Stephen Bruce Meier, adaptao de Mia Couto
e financiado pela Daimler Chrysler AG da frica Austral, numa iniciativa do SAFRI (German
Business) e do Banco Merkur. Este espectculo foi ainda apresentado nas cidades de Suttgart,
Zurique e Viena com os apoios da delegao regional da Daimler Chrysler na frica do Sul,
do Paul Zsolnay Verlag da Fundao Cultural Bayer, da South African Airways, da Fundao
do Landesbank Baden-Wuerttemberg e do pelouro da cultura da cidade de Stuttgart (Stuecke
2005).
Apesar da multiplicidade de apoios que necessrio angariar para conseguir produzir
um espectculo, a Companhia de Teatro Mutumbela Gogo conseguiu manter uma
programao regular nesta ltima dcada. No Ano Internacional de Ibsen, em 2006, o
espectculo As Filhas de Nora, novamente uma adaptao de Henning Mankell a partir do
texto Casa de Bonecas (1879) do conhecido autor nrdico, estreia em Maputo com
financiamento da Embaixada da Noruega. Tal como a maioria das adaptaes e originais que
Mankell encenou enquanto director da companhia, a temtica deste espectculo incide sobre o
lugar das mulheres na sociedade moambicana. So questes transversais sociedade
moambicana que dialogam com a lgica globalizante de emancipao feminina porcontraponto situao real das mulheres ainda em Moambique. Este espectculo fez
digresso internacional e apresentou-se no Teatro Nacional de Oslo, na I Edio do FESLIP
Rio de Janeiro, em 2008, e ainda no Festival do MindelactCabo Verde, em 2009.
A partir do ano de 2005, os Mutumbela Gogo iniciam outra etapa na sua existncia. O
director Hennning Mankell progressivamente substitudo por Manuela Soeiro na direco
administrativa da companhia, por forma a conceder mais tempo escrita. Continua, no
entanto, a assegurar algumas encenaes. Desta forma, Manuela Soeiro, fundadora, mastambm cengrafa e produtora desta companhia de teatro, inicia o que doravante designarei
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de estratgia no femininojuntamente com as duas das actrizes residentes mais carismticas,
Graa Silva e Lucrcia Paco. Depois de ter realizado uma residncia artstica em Madagscar
e nas Ilhas Reunio, a actriz Lucrcia Paco assim nomeada directora artstica da companhia.
No ano de 2006, no quadro de um intercmbio internacional que visava celebrar a
abolio da escravatura, esta confirmada actriz de Maputo promoveu workshops de expresso
artstica junto das mulheres na cidade de Pemba e administrou uma oficina teatral em Maputo
em parceria com actores das Ilhas Reunio, Comores, Mayotte e Repblica do Congo. Desta
parceria resultou o espectculoMapiko,adaptao deRequiem de Amor Para Uma Viva, de
Alain-Kamal Martial, j protagonizado pela prpria Lucrcia Paco no ano anterior, em
Madagscar. Trata-se de um espectculo que aborda as questes da vida e da morte a partir da
histria de um presidente muito rico que, em testamento, deixa a sua fortuna a quem primeiro
apanhar o seu corpo (Notcias 2006). Ainda em 2006, a actriz, agora directora artstica da
companhia, d os primeiros passos na encenao com uma bem sucedida adaptao do
romance Niketche (2002), de Paulina Chiziane, seguindo-se a adaptao do romance de Mia
Couto, O ltimo Voo do Flamingo (2000), em 2007.
Na senda das encenaes no feminino, tambm nesse ano, a veterana actriz Graa
Silva inicia-se na encenao com o espectculo A Filha do Polgamode Nasur Attoumane,
autor natural do Mayotte. Por se tratar de uma temtica sensvel em todas as regies de
Moambique e porque ainda se encontra bastante presente na sociedade urbana de Maputo, a
poligamia recorrente tema de debate porque a sua prtica reduz a mulher a uma quase
insignificncia existencial, ao mesmo tempo que ameaa o ideal de modernidade que o pas
chamou a si desde a independncia (Notcias 2007). Estas foram as principais razes que
levaram Graa Silva a escolher este texto to fortemente vinculado a uma mensagem. Se bem
que a poligamia no est consignada na Constituio de Moambique e oficialmente
proibida, a sua prtica mantm-se, ainda que dissimulada sob a forma de relao extra-
conjugal. Mesmo nas zonas urbanas, comum os homens das elites de Maputo usufrurem doque se denomina de Casa 2, a amante oficial com casa paga, de quem se espera que tenha
um comportamento social idntico ao da esposa legtima e com a qual os homens se
comportam como se de uma esposa oficial se tratasse, providenciando assim o seu bem-estar.
Prosseguindo a linha temtica no feminino, a companhia apresentou uma sensual
verso do famoso Um Elctrico Chamado Desejo (1947) de Tennessee Williams, em 2008
(Forjaz 2009), seguindo-se a estreia do tambm famoso Menina Jlia (1888) de August
Strindberg, j em 2009. Ambos os espectculos contaram com a direco de HenningMankell, que entretanto voltou a revisitar a arte da encenao na capital moambicana. Ainda
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no ano de 2008, a actriz Lucrcia Paco traduz, adapta, encena e interpreta Mulher Asfalto
(2007), um original de Alain-Kamal Martial. Este espectculo, com primeira leitura pblica a
cargo da actriz no Festival de Avignon de 2007, reveste-se de um carcter especial pois
apresentou-se como um projecto pessoal que, apesar de chancelado pela companhia
Mutumbela Gogo, prescindiu da conveno teatral. Aps a estreia, no passeio em frente ao
Teatro Avenida, o espectculo prosseguiu uma fulgurante carreira internacional durante o ano
de 2009, apresentando-se na VI Edio do FCAT (Festival de Cinema Africano de Tarifa), no
programa AntdotoSeminrio Internacional de Aces Culturais em Zonas de Conflitoque
decorreu em So Paulo. Foi cabea de cartaz no FIBA (Festival Internacional de Buenos
Aires)erepresentou frica no Festival Internacional de Teatro del Mercosur,na provncia de
Crdoba, Argentina.
De volta a Maputo, a actriz tem utilizado o espectculo como ferramenta de
sensibilizao, denncia e transformao social junto de vrias associaes que combatem a
violncia de gnero. No ltimo ano integrou o projecto Palco Aberto, financiado pela
Embaixada de Espanha, o qual permitiu que o espectculo se apresentasse na Cadeia Central
de Maputo e em vrias ruas da cidade, nomeadamente numa sesso dedicada s prostitutas da
Rua Bagamoyo (Madureira 2010). No passado dia 7 de Abril de 2010, Dia da Mulher
Moambicana, o espectculo regressou priso, desta vez na Cadeia Feminina de Ndlavela,
nos arredores de Maputo. Como oportunamente abordarei no segundo captulo desta
dissertao, tive o privilgio de estar presente nesta apresentao to singular e intensa.
Paralelamente a todas estas actividades a actriz Lucrcia Paco integra ainda projectos
na Sucia com a encenadora Eva Bergaman e, recentemente, em Estugarda com Edith Colbert
do Theatre Tribune. Em Fevereiro de 2010, a companhia Mutumbela Gogo apresenta o
espectculo H Tigres no Congo, adaptao e encenao de Graa Silva a partir do texto
original de Bengt Ahlfors, cuja temtica questiona os medos humanos, ao mesmo tempo que
conta uma histria sobre o HIV/SIDA (Redaco 2010). Este espectculo deriva da constantenecessidade de consciencializar as pessoas relativamente ao combate e preveno ao
HIV/SIDA e contou com o apoio do FNUAP (Fundo das Naes Unidas para a Populao) e
do UNISIDA (Programa das Naes Unidas para o HIV/SIDA).
Finalmente, em Maio de 2010, no mbito do programa Aldeia Cultural, a actriz
Lucrcia Paco encena Virgem (2008), com um elenco de jovens actores. O texto do
dramaturgo Alain-Kamal Martial coloca o enfoque na violao de menores no seio da famlia
e nos casamentos prematuros arranjados pelos progenitores no intento da troca de bens(Mapengo 2010). um espectculo que, para alm de denunciar o problema do incesto,
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tambm questiona a prtica do lobolo14, cuja persistncia na sociedade moambicana,
segundo os actores coloca em causa o respeito pelos direitos humanos, uma vez que legitima
o poder masculino sobre as mulheres. Se, para Lucrcia Paco, o teatro um lugar privilegiado
de procura interior e de questionamento, tambm um espao que favorece a transformao
de conscincias no sentido da construo de um Moambique que estes actores desejam como
moderno e equitativo para homens e mulheres. Esse o caminho que a actriz acredita ser
imprescindvel trilhar, mesmo sozinha, com seu olhar atento e inquieto e a sua fora anmica
mpar. Sem medos e plena de desejos de liberdade15.
Uma outra figura do teatro em Maputo que se destaca pelos seus projectos individuais
o polivalente Rogrio Manjate, com quem tive o prazer de conversar. Actor, encenador,
escritor, jornalista, realizador de cinema e docente na Escola de Comunicao e Artes da
Universidade Eduardo Modlane, Rogrio Manjate licenciado em Agronomia, foi actor dos
Mutumbela Gogo entre 1992 e 2005 e participou em quase todos os espectculos
anteriormente referenciados. Durante a sua permanncia nos Mutumbela Gogo dirigiu uma
oficina de representao com actores dos diversos grupos amadores do Maputo e da Matola
que deu origem Oficina de Teatro Galagalazul. Em 2004, este colectivo levou cena os
espectculosA Rebelio, uma co-produo com o CCFM a partir de um conto de William
Tucci, e uma adaptao de Romeu e Julietade William Shakespeare. Aps a sua sada dos
Mutumbela Gogo, Rogrio Manjate dirigiu o espectculo Dois Perdidos Numa Noite Suja
(1966), de Plnio Marcos, tambm em co-produo com o CCFM e em Maio de 2006 estreou
Na Solido dos Campos de Algodo (1985) de Bernard-Marie Kolts igualmente em co-
produo com o CCFM (Medeiros 2010). Como escritor publicou Amor Silvestre (2001),
livro de contos vencedor da I Edio do Concurso Literrio do TDM, 16 ao qual se seguiu
Casa em Flor(2002), colectnea de poemas para crianas que venceu o Prmio de Literatura
para Crianas do FBLP.17 Mais tarde, Rogrio escreve ainda Choveria Areia (2005) e
Mbila + Dinka(2007). Em Agosto passado lanou o livro infantil O Coelho que Fugiu daHistriana Editora tica, no mbito da XXI Bienal de So Paulo.
Como cineasta, dirigiu My Husband Denial (2007), uma curta-metragem de vinte
minutos sobre a temtica da negao do HIV/SIDA, realizada a partir das performances
14Cerimnia de casamento de carcter transaccional. Para mais sobre o assunto ver o artigo de Brigitte Bagnol(2008)15
Relativo a notas do dirio de campo no dia 19 de Maro de 2010, em conversa informal com a actriz, em
Lisboa. cf. Anexo VI16Concurso com a chancela da empresa Telecomunicaes de Moambique (TDM)17Fundo Bibliogrfico da Lngua Portuguesa
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participativas que o Teatro do Oprimido de Moambique realizou junto das populaes. Este
trabalho foi produzido pelo FHI18(Sade Familiar Internacional) e financiado pela USAID19
(Agncia dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional). Em 2008 escreve,
realiza e produz com o apoio da UNESCO a curta-metragemI Love You (R. Manjate 2008)a
qual vence o AIM2008 (Festival de Cinema Africa in Motion) em Edimburgo, na categoria
de curtas. (Adibe 2008). O filme, cujo argumento narra a problemtica do sexo seguro, volta a
vencer o prmio de melhor curta-metragem no FCAT (Festival de Cinema Africano de
Tarifa), em 2009 (RFI 2010).
Membro da AEMO (Associao dos Escritores Moambicanos) e colaborador em
diversos jornais e revistas, Rogrio Manjate tem conseguido ainda conciliar a carreira de actor
com a coordenao do recm-criado Curso de Teatro da ECA na Universidade Eduardo
Mondlane. Foi sobre esta sua faceta que mais conversmos, apesar de o ter procurado no
sentido de perceber como que os textos escolhidos pelos Mutumbela Gogo eram
emblemticos da procura de uma moambicanidade.20Depois de trocarmos ideias sobre as
criaes colectivas apresentadas pelas companhias profissionais no incio dos anos 1990 e de
me garantir que o espectculo NTchuva (1991) era fabuloso para analisar as questes da
modernidade em contexto urbano, cheguei concluso que seria muito difcil conseguir ter
acesso aos guies, principalmente porque as companhias no possuem um esplio organizado
e muitos dos textos perdem-se em caixotes na casa dos actores. Enquanto coordenador do
curso de teatro, Rogrio Manjate salienta que uma das suas principais preocupaes
justamente reunir todo esse esplio de forma a preservar uma memria, at porque, agora, o
teatro existe em contexto acadmico. Por outro lado, tambm ele mostra preocupao quanto
ausncia de uma dramaturgia moambicana e da urgente necessidade de fomentar o seu
aparecimento.
Inquiri sobre quais seriam, na sua opinio, as estratgias mais adequadas para
impulsionar a escrita teatral, uma vez que estamos face a um mercado de trabalho escasso e nasituao em que todos os criadores acusam o Estado moambicano de pouco apoio s artes
(Notcias 2007; TIM 2010). Rogrio diz-me que se no existem as condies ideais, h que
habilitar os artistas com as ferramentas certas para que estes dinamizem o meio teatral e
faam com que as coisas aconteam. nesse sentido que a formao especfica to
importante, pois permite aos futuros agentes teatrais construrem alternativas ao que est
18Family Health International
19
United States Agency for International Development20Algo que diz respeito a Moambique; especificidade do ser moambicano; uma maneira de ser e de estar queimprime uma pertena identitria moambicana
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institudo. E essas alternativas tambm passam pela construo de um discurso que se
desvincule da mensageme se posicione na esfera do artstico.
Majate reitera que o teatro moambicano ainda perpetua e privilegia a mensagem e
defende que hoje, na era da globalizao, os artistas moambicanos tm de se reposicionar at
porque a arte teatral alimenta-se de tudo o que quisermos. Para ele, de igual importncia se
reveste o esforo de perspectivar o teatro como uma arte que implica rigor e disciplina, de
forma a abandonar a ideia apriorstica que o teatro moambicano vive do improviso. Para este
fazedor de teatro,Sabes, eu no segui o teatro, mas o teatro seguiu-me e apanhou-me.21
Ao longo desta sinopse concentrada de dezoito anos de actividade teatral profissional
em Maputo pudemos inferir que, apesar das circunstncias histricas se terem alterado,
algumas das companhias mostram-se completamente fiis aos pressupostos que estiveram na
origem da sua formao. Assim, os Mutumbela Gogo continuam na senda de um projecto
artstico vinculado transmisso de uma mensagem e insistem em salientar uma certa
moambicanidadenos trabalhos que apresentam. Apesar de mostrar uma grande versatilidade
no que respeita a encontrar estratgias de sobrevivncia - se antes se trabalhava no sentido de
mobilizar as pessoas para exercerem o direito ao voto, hoje alerta-se para a no disseminao
do HIV/SIDA - a companhia continua a privilegiar uma concepo artstica que recorre s
tcnicas de representao europeias, juntando depois alguns elementos tipicamente
moambicanos, como o som da timbila. Esta tendncia compreensvel se tivermos em conta
que a companhia maioritariamente financiada por projectos de organizaes estrangeiras em
territrio moambicano.
J noutra perspectiva, esta breve contextualizao histrica tambm permitiu apurar
que aps as primeiras eleies multipartidrias de 1994, a Companhia de Teatro Gungu
conseguiu consolidar-se, expandir a sua actividade e afirmar-se enquanto empresa privada.
Sem apoios estatais, nem vnculos que de alguma forma condicionem o seu projecto artstico,
os Gungu abrem o pano vermelhoa um repertrio que fala sobre a nao e o quotidiano dasociedade moambicana. Apesar da componente satrica lhe conferir a necessidade de uma
actualizao constante, podemos dizer que esta companhia se mantm fiel aos seus
pressupostos fundacionais, ou seja, colocar a nu todas as idiossincrasias da governao de
Moambique atravs da stira social.
Finalmente, este captulo permitiu dar conta da emergncia de alguns projectos
individuais que, a partir de meados da primeira dcada do sc. XXI, canalizaram as suas
21Notas do dirio de campo no dia 10 de Abril de 2010
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energias no sentido de encontrar um lugar prprio. Estes projectos mostram uma forte
inclinao para se tornarem casos de sucesso no futuro, j que utilizam grande criatividade
nas estratgias de sobrevivncia e procuram desvincular-se dos projectos teatrais mais
institucionalizados.
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CAPTULO II
MOAMBIQUE EM CENA
()nations are to a very large extent
invented by their poets and novelists.
(Huxley 1959)
Este captulo tem como base a anlise de trs espectculos apresentados na cidade
de Maputo por duas das companhias teatrais que mais actividade regular tm mantido ao
longo destes ltimos dezoito anos em Moambique, os Mutumbela Gogo e os Gungu. Assim,
no intuito de compreender a dinmica da sociedade moambicana em Maputo, as ligaes dos
agentes culturais com o poder poltico e com a sociedade em geral e ainda a recepo do
pblico face aos seus projectos, os espectculos escolhidos pretendem tambm determinar um
paralelo com os discursos proferidos sobre nao, a modernidade e as questes de gnero, ao
longo da baliza temporal estabelecida, no sentido de aferir de que maneira que as produes
teatrais em Moambique s