UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO JOO DEL-REI
DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA
GRADUAO EM COMUNICAO SOCIAL/JORNALISMO
Andr Henrique Mariz Salmern
NINJAS FORA DO EIXO:
REDES, TERRITRIO E CRISE MIDITICA
So Joo del-Rei
dezembro de 2014
Andr Henrique Mariz Salmern
NINJAS FORA DO EIXO:
REDES, TERRITRIO E CRISE MIDITICA
Monografia apresentada ao curso de Comunicao Social/Jornalismo da Universidade Federal de So Joo del-Rei como requisito parcial para obteno do ttulo de bacharel em Comunicao Social/Jornalismo. Orientador: Dr. Ivan Vasconcelos Figueiredo.
So Joo del-Rei
Universidade Federal de So Joo del-Rei
Graduao em Comunicao Social/Jornalismo
2014
AGRADECIMENTOS
Quatro anos se passaram desde que ingressei no curso de Jornalismo da
UFSJ e abrem-se pela frente, agora, todos os anos que ainda viro. A
delicadeza do momento impede, talvez, que me lembre de todas as pessoas
que merecem meu profundo agradecimento pela ajuda prestada. Mesmo
assim, no me privo de citar aqui alguns nomes essenciais, sem deixar de lado
a importncia de todos (as). Agradeo aos meus pais, Marcus e Maria Estela,
por absolutamente tudo que fizeram por mim e meu irmo, Gustavo. Aos
professores (as), que nunca se deixaram limitar pelas quatro paredes da sala
de aula. Em especial, Ivan Vasconcelos e Chico Brinatti, tanto pelos
ensinamentos quanto pelos sermes, pela preocupao, ajuda e,
principalmente, por acreditarem em mim mesmo quando eu no acreditava.
Agradeo, de corao, tambm aos amigos e amigas, em especial: Adriano
Galvo (Fub), talo Sena (Tittalo), Matheus Arajo (Manga) e todos outros
que fizeram parte da nossa repblica; Fernanda Morais, que nunca se cansou
de (tentar) me colocar juzo; Igor Damasceno, por ter me ajudado escolher
cursar jornalismo e viver literatura; Fabiano Porto, Pedro Carozzi, Joo Eurico
Heyden, Lo Rigotto, Vincius Fernandes e Paulo da Mata, sempre presentes
nos momentos bons e ruins; Helthon Andrade, Lvia Tostes, Marlon de Paula,
Endiara Cruz, Gustavo Pavan, e todas as pessoas que integraram o Coletivo
Sem Eira Nem Beira, por tudo que passamos e fizemos. Deixo tambm um
agradecimento a todos (as) da Ascom-UFSJ, pela dedicao e carinho com a
qual me trataram durante o perodo de estgio, permitindo que me
aperfeioasse cada vez mais; a Marcius Barcelos (Magoo), responsvel pelo
Laboratrio de Fotografia, por sempre prestar auxlio nas empreitadas
fotogrficas/audiovisuais. Finalmente, claro, agradeo a Universidade Federal
de So Joo del-Rei e ao curso de Comunicao Social (Habilitao em
Jornalismo), pelo compromisso com a educao superior gratuita e de
qualidade.
RESUMO
A sociedade contempornea vive em meio a dois campos midiatizados. De um
lado, o jornalismo possui um territrio institucional prprio, em constante
(trans)formao, marcado, principalmente, pela presena das mdias
tradicionais. Por outro, o grande avano das tecnologias de informao e
comunicao contriburam, tambm, para a formao de outro territrio ditado
pelas dinmicas em rede na internet. Este trabalho se dedica ao estudo do
choque entre esses campos, atravs de um caso representativo: a ascenso e
queda do Fora do Eixo e seu brao comunicacional Mdia Ninja perante a
esfera pblica em 2013. Nesse cenrio, a pesquisa investiga, em um plano
geral, as estratgias de gerenciamento de crise dos grupos pelo vis da
Situational Crisis Communication Theory formulada por Coombs (2007).
Especificamente, analisa-se como a crise foi reverberada na mdia, por meio
dos eth projetados pela Folha de S. Paulo sobre o grupo, comparando tais
designaes com as respostas destes. O corpus formado por quatro notcias
publicadas no jornal Folha de S. Paulo durante o auge da crise, de 8 a 15 de
agosto de 2013, alm das rplicas e tticas dos coletivos transmitidas no
Facebook nesse perodo. Para esta funo, nos faremos valer da noo de
ethos por meio de Charaudeau (2008; 2010). O estudo revela que a crise
miditica enfrentada pelos coletivos foi, em parte, resultado de uma tentativa
malsucedida desses grupos de adentrar e provocar mudanas no territrio do
jornalismo tradicional. No embate, a mdia esvaziou a discusso relativa s
prticas colaborativas ao mesmo tempo em que neutralizou as crticas feitas ao
seu funcionamento. Dessa forma, mapeamos as estratgias adotadas pelo
Fora do Eixo e Mdia Ninja para tentarem proteger suas imagens
organizacionais, indicando os caminhos mais adequados para lidar com essas
situaes ao contrastarmos teoria e prtica.
Palavras-chave: Territrio. Jornalismo. Crise miditica. Fora do Eixo. Mdia
Ninja.
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................... 1
CAPTULO 1 JORNALISMO: DISCURSO E TERRITRIO E REDES
COLABORATIVAS ............................................................................................. 4
1.1 Discurso jornalstico e a mquina miditica.................................................. 7
1.2 Territrio do jornalismo ............................................................................... 10
1.2.1 O jornalismo e o discurso neoliberal ....................................................... 12
1.3 Redes colaborativas ................................................................................... 16
1.3.1 Jornalismo colaborativo ........................................................................... 19
CAPTULO 2 CRISE MIDITICA .................................................................. 21
2.1 As origens da crise miditica da Mdia Ninja .............................................. 23
2.2 Modelo de gesto de crise de Coombs ...................................................... 26
CAPTULO 3 ANLISE ................................................................................. 33
3.1 Anlise da crise miditica do Fora do Eixo e Mdia Ninja ........................... 35
3.2 Anlise das estratgias de gesto de crise do Fora do Eixo/Mdia Ninja ... 46
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................. 55
REFERNCIAS ................................................................................................ 59
1
INTRODUO
O territrio institucional do jornalismo um campo em constante
(trans)formao e expanso. Na medida em que avanam as tecnologias de
comunicao em rede, tambm so engendradas mudanas nesse territrio,
que, pouco a pouco, passam a ser incorporadas por seus integrantes. No
entanto, as mudanas no ocorrem sem embate e/ou contestao: as
organizaes/sujeitos que buscam quebrar de forma mais radical com o fazer
jornalstico tradicional so marginalizados dentro desse mesmo territrio.
Para adentrarmos nesse nicho, investigamos, em uma perspectiva
macroestrutural, as estratgias de gerenciamento de crise do Fora do Eixo e da
Mdia Ninja, diante de uma situao de crise desencadeada pela invaso
indevida do territrio institucional do jornalismo, originada em denncias
miditicas ocorridas em 2013. Especificamente, buscaremos tambm:
I. Debater, em uma perspectiva terica, como as novas tecnologias
e o modelo colaborativo alteraram a lgica de produo da notcia, levando a
outras configuraes do territrio do jornalismo, tomando como objetos esses
grupos.
II. Analisar a crise miditica do coletivo por meio dos eth projetados
pela Folha de S. Paulo sobre o Fora do Eixo e Mdia Ninja, comparando tais
imagens com as respostas do grupo.
III. Discutir os jogos discursivos de excluso e intolerncia praticados
pela mdia neoliberal brasileira, representada aqui pela Folha de S. Paulo,
frente ao modelo de gesto colaborativa e as novas prticas do fazer saber
jornalstico empreendidas pela rede de coletivos culturais Fora do Eixo e sua
ao Mdia Ninja.
IV. Debater as prticas e a adequao das etapas de gerenciamento
de crise realizadas pelo Fora do Eixo conforme quadro terico de Coombs
(2007).
De modo a perceber com mais clareza os processos de resistncia e
negociao no territrio institucional do jornalismo, acessaremos a retrica e a
Teoria Semiolingustica de Charaudeau (2010; 2008; 2006) para apontar os
mecanismos pela qual as crticas e propostas desses grupos so neutralizadas
2
por ataques retricos. Ao mesmo tempo, buscaremos mostrar como, a partir
disso, se originam crises de imagem que, quando no gerenciadas de maneira
apropriada, terminam por tolher a reputao organizacional.
A escolha pelo caso especfico do Fora do Eixo e da Mdia Ninja
representativa de um universo mais global: do modo como, no geral, iniciativas
dessa espcie so retratadas nos grandes veculos de comunicao. Outro
ponto especfico diz respeito magnitude que essa situao adquiriu e os
efeitos nefastos que a falta de aes adequadas de gerenciamento de crise
podem gerar como veremos mais adiante.
O principal problema do nicho aqui estudado a carncia de anlises
voltadas especificamente para iniciativas que podem ser consideradas de
vanguarda, as quais se propem ir alm dos limites de determinado territrio
institucional no caso, o do jornalismo. Isso reforado pelo fato que
fenmenos dessa natureza possuem, como nesse caso, especificidades que
merecem ser destacadas de forma mais clara. Buscaremos oferecer esse
suporte terico, atravs do presente estudo, partindo da anlise
macroestrutural do processo de escrutnio mencionado no pargrafo anterior.
No captulo inicial, sero desenvolvidas as principais fundamentaes
tericas que guiam o presente estudo. De incio, traamos alguns
apontamentos a respeito do funcionamento dos meios de comunicao em
larga escala. Em seguida, avanamos para o conceito e a formao do
territrio institucionalizado do jornalismo. Com isso em mente, oferecemos
algumas reflexes a respeito do atual estgio de desenvolvimento da
sociedade, no que diz respeito aos meios de comunicao em rede.
No captulo 2, entraremos no mbito do gerenciamento de crise,
propriamente dito. Levando em considerao o contexto apresentado no
primeiro captulo, apontamos para alguns fatores que possibilitaram o
surgimento da Mdia Ninja e sua relao com o Fora do Eixo. Logo depois, nos
voltamos para a cadeia de eventos que culminou na crise experimentada pelo
coletivo. Para finalizar esta etapa, apresentamos a teoria de Coombs (2007)
para gerenciamento de crises, que mais adiante nos ajudar a compreender a
macroestrutura de ao usada pelo grupo para se defender.
Enfim, o terceiro captulo tomar como base tudo que foi apresentado
para avanar numa anlise mais aprofundada do objeto. Inicialmente,
3
trataremos dos percursos metodolgicos e alguns procedimentos pontuais de
anlise. Logo depois, algumas pginas sero dedicadas ao estudo ethtico da
crise, atravs da anlise de quatro matrias veiculadas pelo jornal Folha de S.
Paulo, durante o perodo em questo. Por fim, seguimos com a aplicao da
teoria de Coombs (2007) ao caso especfico do Fora do Eixo. O objetivo
identificar quais estratgias foram tomadas e questionar sua efetividade, tendo
em vista recomendaes do autor e a maneira como se desdobraram os
eventos.
4
CAPTULO 1 JORNALISMO: DISCURSO E TERRITRIO E REDES COLABORATIVAS
A internet mudou tudo. Em tempo, fez frente a um modelo de
comunicao que tende cada vez mais a centralizao tanto dos meios quanto
das mensagens; possibilitou ainda que os sujeitos, antes meros receptores, se
estabelecessem em posio de potencial igualdade enunciativa com veculos
de comunicao em larga escala. Em outras palavras, o terreno que antes era
ocupado de forma quase exclusiva pela mdia, aos poucos, vem se
horizontalizando. Muito disso se deve as qualidades inerentes da internet: no-
hierarquizao de seus usurios, neutralidade1 das informaes e facilidade de
acesso a plataformas de publicao/difuso de contedo. Ao levarmos em
conta que a informao a matria-prima do jornalismo, natural que esta
tenha sido uma das reas que mais se modificou com o avano das novas
tecnologias de informao e comunicao (TICs).
As mdias tradicionais, essencialmente limitadas ao meio fsico, agora
precisam disputar ateno com a espacialidade abstrata, quase infinita e
atemporal da Rede. Nesse novo contexto, passam tambm a dividir
importncia e influncia com canais muito menores ou mesmo individuais. De
modo mais evidente, a internet altera significativamente os limites entre
jornalista e pblico, visto que os primeiros no so mais as nicas vozes
capazes de mostrar ao mundo um determinado recorte do real. Nesse sentido,
demandas informacionais altamente especficas, que por isso mesmo no
podem ser atendidas pelos mass media, podem ser exploradas pelos prprios
(as) interessados (as), se utilizando das facilidades da web. Surge da a
possibilidade de um novo jornalismo: descentralizado, orientado por nichos e
construdo com a participao direta de quem o consome.
Em suma, um modelo colaborativo de fazer jornalismo. Vale lembrar, a
instituio jornalstica surge com a premissa de fornecer um resumo-geral dos
1 A neutralidade da rede diz respeito ao princpio de que provedores devem tratar de maneira igual todas as informaes disponveis na rede. Tal imperativo impede, por exemplo, que o valor cobrado para acessar sites mais populares menor ou maior do que aquele cobrado para acessar endereos menos populares. Ou seja, do ponto de vista do provedor, toda informao deve ser considerada neutra.
5
fatos considerados mais importantes para a sociedade, uma vez que os
sujeitos no so capazes de se fazerem presentes nas diversas esferas que a
compe. Para tanto, fazia-se necessria a criao de organizaes voltadas
especificamente para a realizao dessa tarefa.
Contudo, o cenrio contemporneo bem diferente. Ferramentas como
computadores, cmeras, gravadores e smartphones que integram diversas
delas se tornaram banais. O mesmo vale para os meios de publicao. Com
isso, a atividade de mover informaes para dentro da esfera pblica tornou-se
acessvel a um grande nmero de pessoas o que, por sua vez, tem
sutilmente colocado em debate o contrato de comunicao firmado entra a
instncia miditica e sociedade. Se a primeira existe para informar a segunda,
o que acontece quando as pessoas se tornam capazes de informarem si
mesmas? Os papis, em parte, se invertem. O conjunto de informaes que
so produzidas individualmente na web proporcionalmente muito maior do
que o conjunto daquelas produzidas apenas pelas organizaes noticiosas.
Porm, cabe aqui uma importante ressalva: quantidade, obviamente,
no significa qualidade. Os verdadeiros desdobramentos desse novo
ecossistema informativo s se faro sentir ao longo do tempo. Por isso, ainda
cedo para apontar rumos e a proposta deste trabalho no realizar um
exerccio de previso. fato que, na atualidade, a mdia tradicional segue
sendo a principal responsvel por informar grande parte da populao. Alm
disso, quem influencia muito daquilo que se produz dentro do ecossistema
informativo da web. Todavia, certos lampejos de um jornalismo praticado de
forma orgnica, entre indivduos (as) que se conectam em rede, mostram um
pouco do que pode vir a ser o futuro da rea.
Um caso interessante o descrito por Mallini (2011), a respeito da
narrativa colaborativa que se construiu em torno de uma srie de protestos
realizados em Vitria (ES) em 2013. As principais reivindicaes dos
manifestantes diziam respeito ao transporte pblico. Como parte do ato,
bloquearam uma das principais vias da cidade, dificultando o trnsito. O evento
ganhou notoriedade a partir do uso desproporcional e violento de fora pela
polcia local. Apesar dos reflexos em diversas partes da capital, ao longo do
dia, a mdia tradicional s esteve presente durante a manh. Contudo, reunidas
sob uma mesma tag - #ProtestoEmVitoria, centenas de fotos, vdeos e textos
6
retrataram, com vasta pluralidade de pontos de vista, os acontecimentos
daquele dia.
Porm, o exemplo mais emblemtico talvez tenha surgido com os
protestos de junho de 2013. Estes tm incio com uma manifestao do
Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento do preo das tarifas de
transporte pblico em So Paulo (SP) em 3 de junho de 2013. Trs dias
depois, uma nova manifestao foi convocada e, assim, sucessivamente. No
dia 13 de junho, o confronto entre manifestantes e polcia teve seu pice. Aps
um duro processo de represso, 200 participantes do ato foram presos; sete
reprteres foram feridos por balas de borracha. Ao passar dos dias, o
movimento se espalha como fogo na palha, por diversas partes do pas, at se
tornar pauta prioritria em praticamente todos os veculos de comunicao do
pas. Paralelamente, em sites como o Twitter e o Facebook, atravs da
publicao individual de contedo, construa-se uma narrativa coletiva dos
fatos.
Esses fenmenos, cada vez mais comuns, reforam a tese de que o
jornalismo est se modificando. Essas alteraes podem ser indicadas ao
tomarmos como base o trabalho de Castells (1999), que argumenta que o
avano das redes digitais modificou tambm a maneira como a prpria
sociedade se organiza. O autor elenca uma srie de fatores que apontam como
o foco organizacional da sociedade tem se deslocado dos arranjos fechados,
rgidos, hierrquicos e exclusivos para os modelos mais abertos, flexveis,
horizontais e inclusivos de funcionamento. Para ele, essas formas de
organizao em rede, embora mais proveitosas, no eram aplicveis a projetos
complexos por causa das dificuldades de se gerenciar a fora de trabalho.
Entretanto, com o avano da internet, esse problema facilmente superado.
Para ilustrar, destacamos o trabalho feito pelo site Duo Lingo. Trata-se
uma plataforma gratuita para o ensino de idiomas. Entre os diversos exerccios
de aprendizado, usurios precisam traduzir pequenas frases ou textos, de
modo a avanarem para os mdulos mais avanados. primeira vista, pode
no parecer nada demais, mas a parte fascinante a seguinte: esses textos,
que ajudam a compor as atividades curriculares, so retirados de sites reais
como a Wikipdia. Em seguida, as diversas verses enviadas so comparadas
para se ter mais certeza de que o contedo est correto e, ento, essas
7
tradues so disponibilizadas ao pblico. Dessa forma, o projeto coordena um
vasto nmero de pessoas que, atravs de contribuies pequenas e pontuais,
ajudam a traduzir a internet para as diversas lnguas do mundo de ingls para
portugus e vice-versa, por exemplo.
Esse modelo apenas um pequeno exemplo de como as novas
tecnologias permitem que empreendimentos complexos sejam completados de
forma horizontal e colaborativa. Shirky (2008) oferece mais detalhes sobre as
novas possibilidades organizacionais que surgem com o avano das redes;
alm de seus efeitos mais tangveis na atualidade. Um dos pontos principais
apontados pelo autor, no que diz respeito a esse trabalho, o seguinte: a
Internet fez com que a colaborao se tornasse acessvel a todas as pessoas,
sem que necessariamente integrem um corpo profissional ou uma
instituio/organizao especfica. Isso inclui, obviamente, o jornalismo e a
produo noticiosa. No entanto, como essas mudanas so recebidas pela
mquina miditica? Antes de adentrarmos essa questo, fazem-se necessrios
alguns apontamentos tericos.
1.1 Discurso jornalstico e a mquina miditica
Tomando como base a perspectiva charaudeana, compreende-se o
jornalismo como discurso que tem seu alicerce na esfera sociohistrica e
cultural. Dessa forma, sua percepo ocorre atravs de representaes sociais,
saberes parcialmente estveis criados pela mente humana para ordenar e
direcionar os fenmenos do mundo sob a forma de textos. A maneira como
esses so consumidos pelas diversas esferas da sociedade regida, segundo
Charaudeau (2010), pelo imaginrio sociodiscursivo: universo simblico que
resgatado durante os atos enunciativos - produo, do consumo, distribuio,
etc. Nessa esfera onde nascem, crescem e morrem os discursos, afetando,
assim, a maneira como o mundo significado.
Uma das particularidades do discurso jornalstico que nele se
estabelecem jogos especficos de expectativa entre emissores e receptores.
Um destes diz respeito a percepo generalizada de que o trabalho jornalstico
a transposio da verdade para dentro da notcia, sem que sejam aplicados
8
filtros. Charaudeau (2010) nos lembra, entretanto, que a natureza da notcia se
d na filtragem e interpretao prvia de um fato. Ao ser transformado em
material jornalstico, o acontecimento se desliga da alta complexidade do real,
impossvel de ser reproduzida em sua totalidade, e passa a existir dentro do
espao pblico. Nesse ambiente, condicionado a partir das informaes
disponveis dentro desse espao e tem sua interpretao baseada no
imaginrio sociodiscursivo vigente.
A noo de espao pblico apresentada aqui em conformidade com
Charaudeau (2008, p. 118), que a descreve a partir da noo de um discurso
circulante, caracterizado como soma emprica de enunciados com visada
definicional sobre o que so os seres, as aes, os acontecimentos, suas
caractersticas, seus comportamentos e os julgamentos a eles ligados.
Tal espao tem atribudo, a si mesmo, trs funes distintas, a saber: (I)
instituio do poder/contrapoder; (II) regulao do cotidiano social; (III)
dramatizao. De maneira resumida, a primeira diz respeito aos discursos que
se impem a partir de uma posio de autoridade, que se coloca acima da
sociedade como um todo, guiando suas aes e se cristalizando no discurso
poltico. A segunda se manifesta na forma de discursos que circulam
corriqueiramente pela sociedade, atuando no sentido de determinar os padres
comportamentais atravs das quais os grupos constroem suas visibilidades.
Por fim, as funes de dramatizao relatam os problemas da vida dos
homens (CHARAUDEAU, 2008, p. 119), tratando-se aqui das obras ficcionais,
mticas, entre outras que registram o destino humano. Essas funes, que se
entrecruzam de maneira contnua, objetivam um espao pblico que no
permanente, homogneo ou universal, uma vez que resultam, pois, da
conjuno das prticas sociais e das representaes, afirma Charaudeau
(2008, p. 120).
Por outro lado, a mquina miditica desempenha um importante papel
nos processos de abastecimento desse espao, selecionando quais discursos
iro circular. Particularmente, nos interessam os papis de poder/contrapoder,
manifestos na construo de um discurso poltico-miditico. Por sua vez, este
entendido como aquele visa persuadir o outro a atribuir poder a uma
determinada instncia enunciante, na forma de votos, mobilizao, ativismo,
militncia, dentre outras. De modo paralelo, tambm aquele que atribui
9
legitimidade aos discursos de contrapoder, entendidos como aqueles que
questionam o funcionamento da ordem estabelecida.
Com base nos estudos de Dahlet (2014), Chomsky (1999), Bourdieu e
Wacquan (2001) e Miotello (2001) sobre a formao de um discurso global que
atua no sentido de naturalizar o funcionamento da ordem estabelecida,
expressa na forma de um iderio mais ou menos neoliberal, percebe-se, ento,
uma preferncia generalizada pelos discursos de poder aqueles que visam
manter o status quo em detrimento dos de contrapoder. Porm, essa
preferncia no se manifesta, simplesmente, no sentido de no veicular ou
ignorar esses discursos. Muitas vezes, se cristalizam em processos que visam
situar essas instncias enunciadoras, no mbito da esfera pblica, de modo
que sua percepo pela sociedade como um todo seja negativa, neutralizando,
dessa forma, a validade de seus argumentos.
Devido ao poder que tem de influenciar a esfera pblica, esse sistema
se torna capaz de legitimar tambm a si mesmo e seus interesses particulares
sejam eles quais forem. Dessa forma, no que diz respeito a chegada de
novos fatores que alteram seu funcionamento ou de grupos que buscam
colocar em cheque sua atuao, no so raras as vezes em que atua
simultaneamente como juiz e ru, ao mesmo tempo em que exclui seus
acusadores do debate. O resultado a perpetuao de seu funcionamento,
garantindo que as presses por mudana sejam implantadas, bem ou mal, no
ritmo e intensidade que deseja. No caso da crise miditica do Fora do
Eixo/Mdia Ninja, como discutiremos nos captulos seguintes, trata-se de uma
disputa de poder pelo domnio do discurso e do territrio jornalsticos.
No se pretende contribuir, atravs desse apontamento, para o
entendimento maniquesta ou simplstico acerca da atuao das organizaes
miditicas. Faz-lo seria ignorar a complexidade de foras presentes dentro da
sociedade, reduzir seus (as) profissionais a simples peas numa engrenagem
com anseios prprios.
Contudo, tais apontamentos especficos sobre o modo como a mdia, em
geral, lida com os discursos de contrapoder, sero essenciais para o
entendimento questes que sero trabalhadas mais adiante tanto no mbito
especfico do gerenciamento de crises quanto nas questes relativas ao modo
como essas tecnologias foram incorporadas ao fazer jornalstico.
10
1.2 Territrio do jornalismo
Adentramos agora uma breve discusso acerca do entendimento do
jornalismo enquanto rea dotada de um territrio institucional prprio. Essa
ideia parte da noo de que o territrio no necessariamente uma barreira
geogrfica. Para Berger e Luckmann (apud BELOCHIO, 2009), o conceito pode
ser compreendido como a delimitao objetiva de um universo simblico, que
unifica e d significado a uma determinada poro da vida humana.
Dentro dos limites do presente trabalho, buscamos chamar ateno para
a presena de uma srie de prticas, profissionais ou no, que ajudam os (as)
integrantes desse territrio a se reconhecerem a si mesmos enquanto tal. A
partir da, podemos compreender, como afirma Belochio (2005), esse conceito
de maneira anloga ao que Bourdieu (1997) define o de campo social:
[...] um espao social estruturado, um campo de foras - h dominados e dominantes, h relaes constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espao - que tambm um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de foras (BOURDIEU, 1997, p. 15).
No interior desse espao, encontra-se o capital simblico, a partir da
qual os atores sociais definem normas, assumem papis e funes e
organizam as suas relaes, estruturas e atividades, define Belochio (2009)
com base em Klein, Kuschick Berger e Miranda. Dessa forma, as dinmicas
que se estruturam dentro dos campos atuam no sentido de organizar
socialmente seu funcionamento. Contudo, no que diz respeito ao jornalismo,
como se formam e a que funo essas dinmicas servem?
Belochio (2009) nos lembra que o territrio, nesse caso, formou-se
historicamente baseado em mtodos de produo e transmisso de
informaes que evoluram conforme o desenvolvimento tecnolgico. Sousa
(2014) refora esta ideia ao apresentar alguns postulados que guiam sua
anlise com relao histria do jornalismo no ocidente. Destacamos para um
em especial, que trata da maneira como as mudanas macroestruturais da
sociedade impactam na prpria natureza produtiva do fenmeno em questo:
11
A gnese do jornalismo situa-se na Antiguidade Clssica, havendo uma retomada na Idade Moderna, graas ao Renascimento, ao desenvolvimento do esprito iluminista da Ilustrao e satisfao das necessrias condies tcnicas (tipografia de Gutenberg, fbricas de papel...) e scio-econmicas (alfabetizao, capital, iniciativa privada e empreendedorismo...) (SOUSA, 2014, p. 3).
Nesse mesmo sentido, a relao entre a tecnologia e seus efeitos no
fazer miditico foi abordada por Briggs e Burke (apud Belochio, 2004). Para os
autores, cada etapa da evoluo tecnolgica traz consigo questionamentos
acerca das relaes entre a propriedade da mdia e seu contedo, entre o
contedo e a estrutura e entre a estrutura e tecnologia, principalmente a
tecnologia nova (BRIGGS; BURKE apud BELOCHIO, 2004, p. 267).
Compreende-se, a partir da, que as mudanas que afetam o territrio
institucionalizado do jornalismo no so recebidas de maneira passiva por
parte de seus atores. Ao contrrio, tal processo marcado justamente pela
discusso acerca da funo que essas inovaes iro exercer dentro da nova
rotina profissional. Um caso particularmente ilustrativo se deu com a chegada
do telefone nas redaes jornalsticas e as facilidades trazidas por ele.
O que antes s era possvel na forma presencial, num espao estabelecido, adquiriu novas perspectivas. A partir disso, foram modificadas a mentalidade e a organizao dos indivduos em diversos ambientes. As geraes que nasceram familiarizadas com essa tecnologia podem achar muito difcil viver sem seus benefcios (BELOCHIO, 2009, p. 24).
Ao longo da histria, a prtica jornalstica foi se organizando e
modificando a partir da delimitao das novas fronteiras de seu territrio e de
seu campo, os quais se alteram conforme o estabelecimento de novas
dinmica na sociedade. Esses processos de evoluo dentro do contexto de
determinado territrio so apresentados, no que diz respeito aos marcos
tericos utilizados por Belochio (2009), tomam trs formas distintas:
desterritorializao, re-territorializao e des-re-territorializao.
Os processos de des-territorializao ocorrem quando a chegada de
novas foras dentro de determinado territrio acarreta mudanas em seu
funcionamento. Como coloca Belochio (2009, p. 25), corresponde a renovao
de processos, hbitos e prticas dentro de contextos estabelecidos [...]
capazes de alterar a atuao, funo e objetivos de determinados campos.
Essa etapa marcada por um intenso processo de debate acerca do papel a
12
ser desempenhado pelas novas prticas e valores ou mesmo sua legitimidade,
em processos marcado tanto por dinmicas de resistncia quanto de defesa.
Em seguida, tem incio o processo de re-territorializao pelo qual essas
novas formas de atuao so institucionalizadas e os limites do territrio so
novamente estabelecidos. Esses dois movimentos, quando ocorridos em
sucesso do origem dinmica de des-re-territorializao, que se d dentro
de uma perspectiva sociohistrica ao longo do tempo, ora com maior e ora com
menor intensidade.
Por meio dessa perspectiva terica, em consonncia com o que afirma
Belochio (2009), entende-se aqui que a chegada das novas tecnologias de
informao e comunicao desencadeou a acentuao desse movimento de
des-re-territorializao em dcadas recentes e na atualidade. Os efeitos desse
processo j podem ser sentidos na forma de uma maior aproximao entre
profissionais da rea e amadores; no crescimento da influncia e credibilidade
de blogs especializados em determinados temas; entre uma infinidade de
outros fatores que seguem surgindo e sendo incorporados sob a gide da des-
re-territorializao.
1.2.1 O jornalismo e o discurso neoliberal
Para se compreender melhor o processo de des-re-territorializao do
jornalismo, cabe pontuar o funcionamento de tal dinmica, a qual est inserida
no campo discursivo do sistema neoliberal.
O neoliberalismo diz respeito a um conjunto de prticas, ideias e
convices econmicas que tem como base o pensamento liberal clssico.
Dessa forma, representa uma releitura contempornea, em grande parte, do
que foi teorizado por Adam Smith (1988) durante o sculo XIII. De forma
resumida, o filsofo argumenta que a busca de cada sujeito pela satisfao de
suas necessidades, atravs da troca do excedente produtivo, leva ao
enriquecimento de uma nao como um todo.
Com isso, a presena de um Estado que regulasse as trocas, atravs da
imposio de impostos, tarifas, taxas e afins, vista como um empecilho para o
desenvolvimento econmico. Deriva da uma srie de implicaes, tais como o
13
princpio da oferta e demanda; a especializao do trabalho visando o aumento
da produtividade; a livre-concorrncia; dentre outros.
Contudo, importante ressaltar que a doutrina neoliberal deixa de lado
certos pontos da teoria clssica. Estudos mais atuais mostram que Adam
Smith, ao contrrio do que prega a cartilha neoliberal, no enxergava a
desigualdade de renda como ocorrncia natural do enriquecimento de um pas.
Conforme esclarece Boucoyannis (2013), se levado a cabo conforme descrito
em A Riqueza das Naes, o modelo liberal implicaria no aumento dos salrios
e em lucros menores para as empresas; no fortalecimento da fora de trabalho;
na no-formao de monoplios e de alta concentrao de capital. Tal fato se
daria atravs da ao dos governos, de modo a mitigar os efeitos negativos do
livre comrcio, contribuindo assim para uma sociedade mais justa e igualitria.
No entanto, o que se v a criao de polticas que se baseiam no
iderio liberal clssico, mas com ressalvas que garantem os privilgios de
determinados grupos. Em seu tempo, o filsofo j compreendia que as polticas
que guiavam a interveno do estado na economia deveriam ser analisadas
levando em conta onde se estabelecia e de que forma era exercido o poder.
Sobre essa questo, Chomsky (1999) nos lembra de que o prprio Adam Smith
apontou que os principais arquitetos da poltica na Inglaterra eram
mercadores e manufatores que usavam o poder do Estado para servir aos
seus prprios interesses, no importa o quo graves fossem os efeitos nos
outros, incluindo o povo da Inglaterra (CHOMSKY, 1999, www.)2.
Esse movimento de aparelhamento do Estado pelas foras produtivas
privadas, de modo a intervir de maneira favorvel aos prprios interesses,
compreendido por Chomsky como uma caracterstica importante do
neoliberalismo. O autor caracteriza os mecanismos usados pelos Estados
Unidos para promover e, no raramente, impor fora a adoo de
polticas neoliberais ao redor do mundo. Entretanto, o pas sistematicamente
rejeita medidas de livre mercado que possam ter impacto negativo na
economia americana, ironicamente graas presso das grandes empresas
que pressionam pela abertura de mercados no exterior.
2 No original: pointed out that the principal architects of policy in England were merchants and manufacturers who used state power to serve their own interests, however grievous the effect on others, including the people of England. (CHOMSKY, 1999, www.).
14
Outro ponto importante que deve ser destacado com relao ao
funcionamento do modelo neoliberal sua pretenso a globalidade. Os
Estados Unidos, que emergem da II Guerra Mundial como potncia absoluta,
buscam, atravs de uma srie de polticas internas e externas, tomarem para si
o papel de porta-vez da democracia. A questo que, na maior parte dos
casos, conforme mostra Chomsky (1999), essa ideia de democracia se resumia
a adoo de polticas de abertura de mercado. Essas, por sua vez, em sua
maioria, beneficiavam muito mais os EUA do que a populao local.3
Indiferente a esse fato, o pas segue operando no sentido de implantar seu
iderio neoliberal nos quatro cantos do mundo. Porm, para que esse modelo,
com todas as suas contradies e injustias gritantes, consiga se manter
vivel, necessrio que os sujeitos, ao menos dentro das naes
democrticas, consintam com seu funcionamento.
Fica, ento, a pergunta: por que via se d esse processo?
Eminentemente pela via discursiva, que organiza, significa e naturaliza o
discurso neoliberal nas diversas partes do mundo. Afinal, como afirma Dahlet
(2014, p. 126), mesmo o mais cnico dos sistemas necessita de procedimentos
retricos e de justificaes ticas para viabilizar seus empreendimentos.
Nesse sentido, ele aponta para dois processos-chave que fundamentam de
modo cada vez mais profundo do mundo enquanto mundo naturalizado em
sistema neoliberal (DAHLET, 2014, p. 125): a eufemizao e a redistribuio
semntica.
O primeiro diz respeito s palavras usadas para descrever o
funcionamento do sistema neoliberal. Eufemismos so figuras de linguagem
que funcionam como uma forma de suavizar o peso de determinadas palavras
ou ideias. Um exemplo comum quando dizemos que algum faleceu ou
partiu e no que a pessoa morreu. No caso do discurso neoliberal, essa
ferramenta lingustica utilizada no sentido de maquiar as relaes de poder e
dominao inerentes ao sistema em questo. a partir da que surgem termos
como modernizao para se referir a privatizao; enxugamento da
3Os exemplos so abundantes. Um dos citados por Chomsky (1999) diz respeito ao envolvimento dos Estados Unidos no golpe que derrubou o primeiro governo democrtico da Guatemala, em 1954. A razo, segundo um oficial, citado pelo autor, foi a ameaa estabilidade (threat to stability, no original) de Honduras e El Salvador devido s reformas polticas feitas pelo governo guatemalteco reforma agrria, programas sociais etc.
15
mquina pblica para se referir a diminuio de benefcios sociais; reviso do
fator previdencirio para se referir ao aumento no tempo de contribuio
necessrio para a aposentadoria e colaborador ao invs de empregado, para
citar alguns exemplos.
Com relao aos mecanismos de redistribuio semntica, so
compreendidos por Dahlet como:
uma alterao de sentido historicamente atestado, resultante de uma explorao/repetio incessante das palavras em questo [...] e resultando na possibilidade de empregar essa palavra para caracterizar novos objetos e fenmenos, a priori sem relao com ela, mas permitindo assim transferir-lhe por contaminao o dinamismo transformador do sentido histrico (DAHLET, 2014, p. 132-133).
Um dos casos mais interessantes citados pelo autor seja, talvez, o da
palavra social. Antes, aponta, servia para descrever tudo que podia ser feito
para levar o povo ao poder e constituir um governo de polticas pblicas
destinadas a satisfazer igualmente as necessidades de todos (DAHLET, 2014,
p. 131). Entretanto, no panorama atual, usado para designar medidas ou
polticas que visam a reproduo do prprio sistema neoliberal, analisa o
referido autor.
O mesmo acontece com o termo ideologia que, segundo Dahlet (2014,
p. 133), num primeiro momento diz respeito a cincia das ideias nas suas
relaes com os signos (p. 133). Num momento seguinte, passou a descrever
conjuntos de ideias e doutrinas de todo tipo [...], caractersticas de uma
determinada poca: ideologia crist, conservadora, reacionria, liberal,
revolucionria, marxista, socialista. No entanto, na prtica, virou um termo de
conotao negativa usado, principalmente, para caracterizar as ideologias de
esquerda ou, como explica Dahlet (2014, p. 134), para caracterizar tudo que
contribui, mais ou menos violentamente, para reduzir a renda dos mais ricos e
a liberdade do povo. Quando no utilizada nesse sentido, a palavra parece
ser usada como oposio a valores como realismo, pragmatismo ou eficcia
ou seja, se opondo a valores-chave que o discurso neoliberal tomou para si.
Esse fenmeno ganha fora, como argumentam Bourdieu e Wacquan
(2001), ao circular por todas as partes do mundo atravs de instituies de alto
prestgio, que, em teoria, possuem senso crtico e neutralidade intelectual em
relao aos rumos da poltica global.
16
Alm de universidades e escolas de negcio, os grandes veculos de
mdia desempenham tambm um papel essencial nesse processo, uma vez
que funcionam segundo a lgica de mercado, naturalmente auxiliam na
reproduo do sistema neoliberal. s vezes, de forma sutil, eufemizando
termos e jogando com as palavras, como apontou Dahlet (2014); em outras, de
forma francamente golpista, como ocorreu na Venezuela, em 2002.4
O fato que o Jornalismo, uma vez tratado enquanto atividade
empresarial vivendo, em grande parte, dos lucros obtidos com publicidade
entra em uma espiral produtiva do prprio sistema neoliberal, em que se perde
muito daquilo a que se prope: servir como mecanismo de circulao de
informaes relevantes por todas as partes da sociedade.
1.3 Redes colaborativas
Atualmente, muito se fala sobre processos, trabalhos ou plataformas
ditas colaborativas, o que, algumas vezes, pode passar a impresso de que
essa ideia algo recente. Entretanto, h sculos as pessoas vm colaborando
entre si para o desenvolvimento das civilizaes humanas. O que muda, na
contemporaneidade, a possibilidade de mudar a maneira como os recursos e
atividades so ordenadas de forma a atingir determinado objetivo.
Como lembra Castells (2005, p. 17-18), antes da ascenso das redes, o
mundo foi marcado por organizaes grandes e verticais, como os estados, as
igrejas, os exrcitos e as empresas que conseguiam dominar vastos polos de
recursos com um objetivo definido por uma autoridade central. O motivo para
isso era a grande dificuldade de reunir e gerenciar grandes contingentes de
pessoas e recursos em rede, restringindo o uso desse arranjo principalmente
ao mundo privado grupos de amigos, familiares.
No entanto, essas dificuldades vo sendo deixadas para trs com a
possibilidade de conexo direta e instantnea, tomando corpo em das
principais caractersticas da sociedade em rede, conforme descrita por Castells
4Na ocasio, os principais veculos de comunicao da Venezuela participaram ativamente da tentativa de golpe contra o ento presidente, Hugo Chvez. Uma fonte interessante sobre a participao da mdia no processo Lemoine (2002), para o jornal Le Monde Diplomatique. Disponvel em: . Acesso em: 1 dez. 2014.
17
(2005): um aumento exponencial na capacidade humana de se organizar em
redes. Nas palavras do autor:
[...] em termos simples, uma estrutura social baseada em redes operadas por tecnologias de comunicao e informao fundamentadas na microelectrnica e em redes digitais de computadores que geram, processam e distribuem informao a partir de conhecimento acumulado nos ns dessas redes (CASTELLS, 2005, p. 20).
especialmente interessante atentar, no trecho acima, para a questo
dos ns que acumulam o conhecimento que distribudo. Ns so pontos
individuais dentro de uma rede que, por sua vez, esto conectados, direta ou
indiretamente, a todos os outros ns que compe essa rede. Como isso se d
em um ambiente virtual, que no limitado pelas fronteiras geogrficas, um
dos efeitos decorrentes dessa estrutura que ela permite que diversas
pessoas possam colaborar num mesmo projeto, dentro da rede, sem que
necessariamente estejam presentes.
Ao levarmos em conta esse aspecto para o caso especfico do
jornalismo, cuja matria-prima a informao, nos deparamos com um
mecanismo que tem grande potencial de auxiliar no seu funcionamento e na
contribuio para a democracia. Essas caractersticas se tornam ainda mais
interessantes quando se considera a proliferao, nos ltimos anos, das
plataformas de publicao/difuso de contedo e as novas formas de
socializao que derivam diretamente da interao com esses contedos. No
espectro mais popular, tomam forma em sites como Facebook, Twitter, Tumblr;
mas h tambm outros, como o Reddit, 4Chan, CraigsList, 9GAG.
A possibilidade de colaborar em temas altamente especficos possibilita
ainda o surgimento de sites como a UltramanWiki: dedicada exclusivamente
franquia japonesa Ultra Series, famosa no Brasil pela srie Ultraman, exibida
durante os anos 60 e 80.
O exemplo propositalmente extremo, pois visa dar conta do seguinte
panorama: como, na era pr-internet, seria possvel empreender um esforo
para reunir tais informaes, alm de torn-las pblicas, atravs apenas de
trabalho voluntrio? Provavelmente no. A quantidade de pessoas que se
interessam por esse tema no grande e o projeto envolveria gastos que, no
geral, no tornariam essa empreitada financeiramente vivel. Entretanto, ao
18
reunir fs de diversas partes do mundo que podem facilmente inserir, checar e
conferir informaes em um mesmo local, a ideia torna-se vivel. Em outras
palavras, tornou-se possvel graas a organizao em rede e s
particularidades da internet.
No tocante ao modo pela qual se organiza o trabalho, Shirky (2008) nos
oferece algumas reflexes importantes, em especial, no que diz respeito ao
funcionamento miditico. O autor nos lembra que, em essncia, as
organizaes surgem para atender uma determinada demanda da sociedade.
Na medida em que crescem, a tarefa de administr-la torna-se cada vez mais
complexa, surgindo da sistemas hierrquicos, processos, valores, setores - um
corpo burocrtico que visa racionalizar seu funcionamento, j que os recursos
so limitados e necessrio manter a sustentabilidade do sistema. Dessa
forma, cada sujeito tem papis bem definidos: no caso do jornal, por exemplo,
um reprter coleta e redige informaes; um editor decide o que ou no
publicado; diagramadores montam os textos na pgina e assim por adiante,
seguindo uma lgica da linha de produo.
Durante boa parte dos sculos XIX e XX, no haviam muitas sadas para
esse modelo. O custo dos meios de produo relativos aos veculos de
imprensa tambm contribua em muito para esse cenrio. Contudo, como
vimos, isso muda conforme a internet comea a dar seus primeiros passos.
Paralelamente, instrumentos de captao do real gravadores, filmadoras,
mquinas fotogrficas vo se tornando mais acessveis a uma parcela
crescente da populao, com a transio dos modelos analgicos para os
digitais aumentando drasticamente a capacidade de armazenamento.
Dessa forma, chegamos ao panorama contemporneo. Na era pr-
Internet, para fazer circular informaes relevantes atravs da sociedade, era
necessrio criar uma organizao que pudesse arcar com os custos dessa
tarefa altamente onerosa. Contudo, atualmente, o mesmo trabalho pode ser
feito por um grupo muito menor e com oramento proporcionalmente nfimo,
sem que necessariamente seja necessrio criar uma organizao ou contar
com profissionais. Ao invs disso, o trabalho se divide ao longo de uma
extensa rede de colaboradores (as), que se organizam de maneira autnoma e
orgnica atravs de uma plataforma especfica. Outra vantagem que ao abrir
a participao para qualquer pessoa, passam a ser includas tambm as
19
contribuies pontuais, uma vez que no necessria vinculao formal a uma
organizao. Em grande parte, pelo atual funcionamento colaborativo da
internet, com milhes de pessoas produzindo e fazendo circular contedos por
toda a sua extenso.
1.3.1 Jornalismo colaborativo
No que diz respeito ao jornalismo colaborativo, Madureira (2009) aponta
que o fenmeno surge nos Estados Unidos e na sia no fim dos anos 1990,
ganhando maturidade ao longo dos anos 2000. O autor exemplifica algumas
iniciativas que foram pioneiras nesse tipo de atividade, como o IndyMedia,
criado por ativistas e organizaes independentes para cobrir o Frum da
Organizao Mundial do Comrcio (OMC). Esta terminou por dar origem a
diversas outras aes parecidas ao redor do mundo. No Brasil, se cristalizou na
forma do Centro de Mdia Independente (CMI), uma das primeiras desse tipo
no pas. O stio (http://www.midiaindependente.org) foi fundado em 2001 por
ativistas que participaram da organizao (em So Paulo) do protesto contra a
reunio do Fundo Monetrio Internacional (FMI), [] atravs da troca de
informaes por uma lista de discusso (RIGITANO, 2003). Atualmente,
existem outros coletivos5 que operam em diversas outras cidades, com
endereos online prprios, mas vinculados ao portal principal que rene uma
quantidade considervel de textos.
Outra iniciativa de destaque no cenrio jornalstico atual o portal
Outras Palavras
(www.outraspalavras.net), onde esto reunidos tanto textos
produzidos pela prpria equipe, que mantm o site atravs de doaes, quanto
de diversos outros autores e autoras independentes. A linha editorial preza por
artigos que discutem o que o site descreve como ps-capitalismo - como tal,
todo contedo oferecido gratuitamente. O espao se faz valer, assim, das
contribuies de diversos (as) colaboradores (as) para agregar valores e
5 Existem pontos em Braslia, Curitiba, Goinia, Fortaleza, etc. Para uma lista completa, ver: .
20
credibilidade tanto aos indivduos quanto a organizao como um todo, alm da
rede de pessoas que se interessa pelo jornalismo alternativo6.
Caso semelhante o do Estdio Fluxo, fundado por Bruno Torturra, um
dos principais articuladores da Mdia Ninja e importante ativista do jornalismo
independente brasileiro. A base fsica do projeto mantida atravs de doaes
voluntrias, visto que todo contedo gratuito; a moblia utilizada foi oferecida
por pessoas que se interessaram pelo projeto atravs da web; usurios so
convidados a participarem de live streams, debates e no envio de informaes
atravs da internet.
Esses fatores apontam e ao mesmo tempo contribuem para a formao
de um universo informativo que independente do territrio tradicional da
mdia. De modo correlato ao processo de des-re-territorializao do jornalismo,
nota-se tambm o surgimento de uma rede de informaes que a prpria
Internet, na forma de um simulacro de estrutura miditica7 que marcada por
dinmicas, valores e linguagem prprios. Entre estes, destacam-se a
neutralidade das informaes; organicidade; colaboratividade em rede;
altssimo ndice de entropia; funcionamento mimtico; entre outros. Funcionam,
neste sentido, tanto para o bem quanto para o mal: se por um lado inclui as
pessoas no abastecimento da esfera pblica, por outro lado oferece espao
para circulao de rumores e factides; se por um lado oferece uma variedade
vertiginosa de contedo, perde por outro na qualidade do mesmo; assim
sucessivamente.
6Compreendido aqui, dentro da perspectiva terica apresentada com base em Charaudeau (2008), como aquela que prioriza a circulao dos discursos de contrapoder 7 Compreendido aqui como conjunto de mecanismos que promovem a circulao de informaes sobre a sociedade como um todo, do nvel macro ao nvel micro.
21
CAPTULO 2 CRISE MIDITICA
A crise do Fora do Eixo e da Mdia Ninja se deu, em parte, como
resultado de uma disputa de poder dizer dentro do territrio institucionalizado
do jornalismo. Ao propor uma desterritorizaliao radical, atravs do uso das
redes, ao mesmo tempo em que atacava de forma muito contundente a
atuao das mdias tradicionais, desencadearam uma reao dessa ltima.
Esta se deu na forma da crise que, como veremos mais adiante, foi ainda mal
administrada e resultou em uma imensa perda de reputao por parte de
ambas as iniciativas. Por sua vez, isso resultou na anulao de sua capacidade
de atuao poltica do coletivo.
Com isso em mente, precisamos analisar de maneira mais aprofundada
o contexto em que se deu sua criao, levando em conta tambm suas
particularidades. Em meio aos avanos recentes na comunicao digital, a
sociedade vem, pouco a pouco, repensando seus modos de organizao.
Atualmente, tornam-se cada vez mais comuns organizaes abertas,
estruturadas em rede, principalmente, no setor criativo. A facilidade de
transmitir informaes para qualquer parte do mundo, em tempo real, tem sido
o motor principal dessas profundas transformaes no modo como
trabalhamos, nos relacionamos e consumimos.
Na era pr-Internet, para fazer circular informaes relevantes pela
sociedade, era necessrio criar uma organizao que pudesse arcar com os
custos dessa tarefa altamente onerosa. Atualmente, com a drstica queda nos
valores para se veicular informaes via web, o mesmo trabalho pode ser feito
por um grupo muito menor, sem que necessariamente seja necessrio criar
uma organizao formal ou contar com profissionais.
Esse o caso do Fora do Eixo, uma rede que rene cerca de 200
coletivos culturais, sediados de norte a sul do Brasil. A iniciativa, que comeou
reunindo coletivos de Cuiab, Londrina, Uberlndia e Rio Branco, tinha o
objetivo inicial de fortalecer a cena musical independente no pas em
especial, a que se localizava fora do eixo Rio de Janeiro So Paulo, da a
origem do nome. Entretanto, conforme foi crescendo, passou a abarcar uma
22
vasta variedade de linguagens, projetos e pautas, a exemplo da fotografia, do
audiovisual, da poltica, da economia criativa, entre outros.
Todas as aes do grupo so planejadas e executadas de forma
descentralizada, via web, atravs de listas de e-mail, chats, fruns, IRC, Skype,
Google Hangouts etc. Na base, esto os coletivos locais, no geral, abertos a
qualquer um que queira participar; esses so auxiliados por coletivos maiores,
que, em alguns casos, j possuem sede prpria, onde os integrantes vivem e
trabalham com dedicao exclusiva.
Os recursos financeiros so arrecadados de vrias formas: atravs de
leis de incentivo a cultura, prestao de servios (design grfico, fotografia,
vdeo, redes sociais), realizao de eventos, doaes e diversos outros meios.
Entretanto, muito do que feito s possvel graas aos milhares de
voluntrios que, muitas vezes, oferecem sua fora de trabalho pela experincia
comunitria proporcionada pela vivncia dentro da rede. O dinheiro que essas
pessoas abrem mo de receber passa a ser revertido para a prpria
organizao, que mantm casas coletivas, compra equipamentos, investe em
formao, realiza eventos.
A Mdia Ninja surgiu dentro desse contexto, sendo um brao jornalstico
do Fora do Eixo. Idealizada, principalmente, por Bruno Torturra, o nome uma
sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ao. A proposta, lanada
durante o encontro nacional da rede em 2012, era no sentido de consolidar a
figura do jornalista ninja, capaz de desempenhar mltiplas funes ao mesmo
tempo, mesmo sob condies adversas. Este seria responsvel tambm por
mostrar o que a mdia tradicional no mostra ou releva, seja por
constrangimento poltico, seja por presso financeira ou editorial. A produo
desse material ficaria a cargo de pessoas comuns, de modo que pudessem
retratar elas mesmas as suas realidades locais; esse contedo seria, ento,
reverberado em rede.
Esse projeto editorial no , de modo algum, indito na histria. H
vrias dcadas que veculos impressos, rdios e televises legalmente
estabelecidos ou no buscam fazer um contraponto ao discurso miditico
neoliberal. Entretanto, a grande dificuldade estava situada na capacidade de
manter a sustentabilidade de tais veculos sem abrir mo dos princpios
editoriais ou ideolgicos.
23
Na atualidade, os meios de produo e difuso jornalstica, como vimos,
se tornaram acessveis a um grande nmero de pessoas. O mesmo vale para a
capacidade de oferecer colaboraes individuais, sem a necessidade de se
vincular a uma organizao ou corpo profissional. Esses fatores so o que
possibilitam que projetos jornalsticos mais cvicos e democrticos, como a
Mdia Ninja, disputem territrio discursivo com grandes veculos tradicionais.
Contudo, as mudanas em um determinado campo social dificilmente
so aceitas de maneira passiva. Ao contrrio, quase sempre so articulados
movimentos contrrios a esse processo, com o objetivo de preservar a
essncia do campo. O fato verdadeiramente especial quando diz respeito s
prticas neoliberais, uma vez que, conforme aponta Dahlet (2014),
perceptvel a formao de um globo discurso que visa naturalizar as
desigualdades inerentes a esse modelo.
No mbito especfico da batalha entre as formas mais novas e mais
tradicionais de atuao da mdia, geralmente, um dos lados detm o monoplio
da comunicao em larga escala enquanto o outro costuma atuar em uma rea
bem mais limitada da arena pblica como veremos a seguir.
2.1 As origens da crise miditica da Mdia Ninja
A Mdia Ninja ganhou imensa notoriedade por sua cobertura durante os
protestos de junho de 2013, em muito graas ao trabalho realizado da forma
que foi descrita nos pargrafos anteriores: sempre muito prxima da ao,
buscando dar voz a quem no se sentia representado pelas mdias tradicionais.
Grande parte do interesse se dava pelo fato de que os ninjas faziam
transmisses ao vivo das manifestaes, utilizando apenas um celular com
conexo a internet e um notebook, do qual era usada a bateria para manter o
celular carregado. Entretanto, essa no era a nica frente de atuao. Redes
sociais como Facebook, Twitter, Flickr e YouTube eram abastecidas
diariamente com contedo produzido por colaboradores independentes e
pessoas que j faziam parte do Fora do Eixo.
O pice da notoriedade se deu quando o Jornal Nacional, um dos mais
importantes do pas, usou imagens do grupo independente em uma matria
24
que tratava justamente dos protestos. Na ocasio, um rapaz havia sido
acusado de atirar coquetis molotov8 em um grupo de policiais, conforme
reportagem do portal G1(2014). Contudo, em um vdeo produzido pela Mdia
Ninja, durante o a transmisso dos protestos, mostrava que o acusado era
inocente.
Passado o turbilho inicial das manifestaes, Bruno Torturra (principal
idealizador da Mdia Ninja) e Pablo Capil (fundador do Fora do Eixo) foram
convidados ao programa Roda Viva (2014) da TV Cultura. Os dois foram,
ento, sabatinados por representantes de diversos veculos tradicionais de
mdia: Suzana Singer, ombudsman da Folha de So Paulo; Alberto Dines, do
Observatrio da Imprensa; Eugnio Bucci, professor da Escola de
Comunicao e Artes da USP, alm de colunista do Estado de So Paulo; Caio
Tlio Costa, da ESPN Brasil; Wilson Moherdaui, da revista Informtica Hoje e o
prprio apresentador, o jornalista Mrio Srgio Conti.
De incio, Mrio Srgio Conti faz quatro perguntas: o que a Mdia
Ninja?, o que faz?, como se mantm? e se consideram isso jornalismo.
Torturra responde as duas primeiras, em seguida, confirma que o que fazem ,
de fato, jornalismo e diz considerar curioso que exista alguma dvida sobre
isso. Ao longo do programa, foram indagados sobre uma srie de questes,
que vo desde a relao com partidos como o PT, qual seria o plano de
negcios do projeto, de onde viria o dinheiro, se realmente seria independente.
Todavia, ao fim do Roda Viva, o saldo era relativamente positivo. A batalha que
colocaria em jogo a reputao da Mdia Ninja e, em especial, o Fora do Eixo,
s teria incio nos prximos dias.
Alguns dias depois, a cineasta Beatriz Seigner publicou um depoimento
em que relatava uma srie de experincias negativas com relao ao grupo. A
participao de Pablo Capil e Bruno Torturra no Roda Viva foi um dos fatores
que motivou a cineasta Beatriz Seigner a publicar, via Facebook, um longo
depoimento onde tecia profundas crticas ao movimento. No texto quase no
h meno a Mdia Ninja, apenas ao Fora do Eixo, que, at ento, abarcava o
projeto e o abastecia com recursos tanto tecnolgicos quanto humanos.
8Artefato explosivo que consiste, basicamente, de uma garrafa de vidro contendo algum lquido inflamvel. A boca da garrafa vedada com uma rolha e um pano, que usado como pavio. Ao atirar a garrafa com o pano em chamas, esta se quebra ao cair no cho e espalha ocombustvel, que entra em combusto.
25
Ela relata suas experincias com base no contato que manteve durante
cerca de um ano. Segundo Beatriz, no s Pablo Capil nutria um profundo
desprezo pela classe artstica, como era tambm um lder autoritrio, que
centralizava em si todo o movimento. Alega tambm que este seria contra o
pagamento de cach aos artistas e que a Rede, como um todo, busca se
apropriar de eventos de outros grupos para se promoverem, alm de (super)
inflacionarem os prprios feitos tendo em vista a obteno de patrocnios e
afins.
O depoimento inspirou outro, escrito e publicado pela jornalista Las
Bellini. Um dia depois, a ex-integrante que viveu cerca de trs meses na
principal sede da organizao a Casa Fora do Eixo So Paulo, em So Paulo
(SP) reforou o depoimento de Beatriz e denunciou outras prticas
preocupantes. Em sua pgina pessoal do Facebook, ela detalha uma srie de
prticas autoritrias e abusos psicolgicos sofridos por ela dentro da Casa Fora
do Eixo So Paulo, principal sede do Coletivo. Compara o funcionamento do
Fora do Eixo a uma seita:
Com cara de culturalmente popular, musicalmente descolada, pessoalmente encantadora, internamente... cheia de gente incrvel que est cega como eu j estive e com um nmero contvel nas mos de quem so os controladores e administradores da rede querendo consumir uma s coisa em voc: a sua mente (BELLINI, 2013)
De acordo com seu texto, Las era proibida de sair da casa e havia
presso para que no conversasse com quem era de fora da Rede; sobre a
suposta horizontalidade, diz que havia na verdade uma estrutura altamente
engessada e que a cpula, liderada por Capil, era quem na verdade tomava
todas as decises.
Diria mais, ali se vive uma ditadura monrquica com toda a sujeira de autoritarismo de milhes de outras caras bonitas que possa haver num governo que se considera como tal. Monrquica porque o Pablo [Capil] um rei l dentro []. E dito ditatorial porque a nica coisa que consigo associar com o medo que existe nas pessoas em questionar o poder da cpula a ditadura (BELLINI, 2013).
Figuram ainda as seguintes afirmaes: crticas internas eram abafadas
e a pessoa que as fez, rechaada; comenta sobre jornadas de trabalho que iam
das 8h s 4h da manh, durante a preparao de um congresso interno ou
26
seja, uma mdia de 19h por dia; haveria forte orientao sexista: mulheres
eram direcionadas para certas reas e homens para outras, no geral as
mulheres eram responsveis pelo servio domstico. Isso porque fala ainda de
prticas como a que chama de catar e cooptar: em reunio interna, um
membro (a) era indicado (a) para seduzir determinada pessoa que era
considerada interessante para o Fora do Eixo.
Las questiona tambm a legitimidade fiscal, apontado para o possvel
uso de notas frias. Quando deixou a Casa, a rede devia a ela
aproximadamente R$5 mil. Ao desconsiderar uma srie de questes, decidiu
fechar a dvida em R$3 mil, dos quais recebeu apenas R$500. Isso porque
para sair da rede tem que ter algum recurso financeiro para comear a vida do
zero e muitos, que eu sei, ainda enfrentam longas sesses de terapia
(BELLINI, 2013).
Alm desses dois depoimentos, diversos outros comearam a surgir e
circular tanto pelas redes sociais quanto nos principais jornais do pas, em um
processo de retroalimentao: quanto mais as crticas ganhavam espao na
mdia, mais depoimentos surgiam na web. Estado de S. Paulo, Veja, O Globo,
O Tempo e diversos colunistas, blogueiros, msicos, se manifestaram sobre o
tema em geral, em textos com enquadramento negativo da organizao.
2.2 Modelo de gesto de crise de Coombs
Antes de analisarmos uma crise, somos confrontados com a seguinte
problemtica: como podemos defini-la, de modo a diferenciar as crises de uma
simples turbulncia pontual? A literatura especializada nos oferece uma srie
de contribuies.
A Universidade de Louisville (apud FORNI, 2013), por exemplo, a
compreende como perturbao ou desordem nas atividades da organizao
que resulte em grande cobertura de notcias. Forni (2013) tambm apresenta a
concepo usada pelo Institute for Crisis Management: uma ruptura
significante dos negcios que estimula uma extensa cobertura dos meios de
comunicao.
J Rosa (2003), em suas anlises, parte da seguinte definio:
27
Um conjunto de eventos que pode atingir o patrimnio mais importante de qualquer entidade ou personalidade que mantenha laos estreitos com o pblico: a credibilidade, a confiabilidade, a reputao (ROSA, 2003, p. 23).
Forni (2013, p. 8) atenta que as definies so variadas, mas possuem
zonas de convergncia: a crise exibe duas caractersticas bem definidas: a
ameaa e o fator do tempo. No entanto, em nosso entendimento, a atuao
dos sistemas de comunicao em larga escala tambm um fator essencial na
identificao de uma crise. Isso porque partimos do pressuposto de que, para
que ocorram danos significativos na reputao de determinada organizao,
ela precisa ser colocada em uma posio de destaque na esfera pblica.
Com isso em mente, decidiu-se aqui adotar o conceito utilizado por
Coombs (2007), dentro do contexto mais amplo do modelo terico formulado
pelo autor, justamente pelo foco que dado aos aspectos comunicacionais.
Segundo ele, as crises so:
um evento sbito ou inesperado que ameaa romper as operaes de uma organizao e que representa uma ameaa tanto financeira quanto reputacional. Crises podem causar dano aos stakeholders de maneira fsica, emocional e/ou financeira (COOMBS, 2007, p. 163). 9
Para Forni (2013), existem 16 tipos possveis de crise: direitos do
consumidor, tica empresarial, meio ambiente, relaes trabalhistas ou de
pessoal, catstrofes naturais, segurana pblica, poder pblico, danos
patrimoniais, controle financeiro, contencioso jurdico, imagem, tecnologia,
servio pblico, crises regulatrias, crises de gesto e crises polticas.
Do ponto de vista dos efeitos causados pelas crises, o autor (2003) as
classifica em duas categorias distintas. A primeira a devastadora, que
acontece a partir de eventos como denncias, assaltos, reclamaes graves e
afins. So, assim, eventos que tem naturalmente um alto potencial para
reverberao na mdia. A segunda categoria da crise supostamente
insignificante: demisses em massa, vazamentos de produtos e contaminao
ambiental etc. Em suma, eventos que, a primeira vista, no possuem
9 No original: a sudden and unexpected event that threatens to disrupt an organizations operations and poses both a financial and a reputational threat. Crises can harm stakeholders physically, emotionally and/or financially (COOMBS, 2007, p. 163).
28
notoriedade o bastante para serem amplificados pela atuao da mquina
miditica.
Em nossa viso, a classificao de Forni (2003), apesar de til, possui
uma srie de limitaes, pois , em sua totalidade, baseada em estudos de
caso. O problema disso que, sem uma base terica mais slida, a
fundamentao das anlises fica restrita apenas ao que j aconteceu; da
mesma forma, sua aplicao restrita aos casos especficos da qual trata. No
entanto, essa lacuna metodolgica preenchida na presente pesquisa por
Coombs (2007).
O autor parte da noo de que so poucos os trabalhos que lidam com o
modo como os stakeholders pessoas que, de alguma forma, afetam ou so
afetadas pela organizao reagem s estratgias escolhidas para proteger a
reputao de uma organizao durante uma crise.
Nesse sentido, apresenta, ento, o modelo de Situational Crisis
Communication Theory (SCCT) ou Teoria da Comunicao de Crise
Situacional, em traduo livre. Segundo o autor, esse modelo capaz de
oferecer um quadro de anlise que ajuda a maximizar a proteo reputacional
nas aes de comunicao tomadas aps a crise. Ele ressalta que o mtodo
SCCT se baseia no em estudos de caso, mas no mtodo experimental.
Coombs (2007) avana tambm na noo de capital reputacional,
usando a metfora de uma conta de banco: a reputao acumulada nessa
conta ao longo da existncia da organizao e, em uma situao de crise, o
que est em jogo o quanto desse capital ser perdido. Por isso, a importncia
de manter esse saldo sempre o mais positivo possvel ou, nas palavras de
Coombs, uma reputao favorvel - j que em uma situao de crise, esse
capital entrar em jogo para aliviar os efeitos negativos da situao.
Porm, antes de tratar das tcnicas oferecidas pelo modelo SCCT para
proteger a reputao de uma organizao, Coombs refora que, antes de tudo,
devem ser tomadas atitudes para proteger a integridade dos stakeholders. Por
exemplo, informar ao pblico que determinado produto no deve ser
consumido ou como proceder diante da situao de crise. Em seguida, prestar
auxlio psicolgico para mitigar o estresse causado, informando o que
aconteceu e o quais providncias esto sendo tomadas. Por fim, recomenda
29
tambm que sejam feitas demonstraes de apreo pelos stakeholders, mas
no necessariamente admitindo a culpa pelo ocorrido.
A origem da teoria de Coombs est na attribution theory, a qual parte do
pressuposto de que, especialmente diante de eventos negativos e inesperados,
as pessoas buscam as causas desse evento. Em seguida, atribui
responsabilidade por tal fato a algum ou alguma coisa, ao mesmo tempo em
que passa por uma reao emocional estas podem ser a raiva ou a simpatia
- e tanto a responsabilidade atribuda quanto a reao emocional podem servir
como estopins para a ao.
Dessa forma, a resposta ser considerada negativa quando uma pessoa
julgada com responsvel e a raiva invocada; ser positiva quando uma
pessoa no for julgada responsvel e a simpatia invocada. Baseia-se,
portanto, nos eventos que desencadearam a crise e a maneira como so
percebidos/interpretados pelo pblico em geral: poderiam ter sido evitados ou
no? Caso a organizao seja considerada culpada, ter sua reputao
afetada.
Com isso, o SCCT concentra suas foras na anlise da situao de
crise, de modo que quem fica responsvel por gerenci-la possa escolher a
melhor estratgia possvel. Presta ateno especial tambm na relao do
gestor com a ameaa reputacional em questo. Essa ameaa representaria a
quantidade de dano que pode ser causado na reputao da empresa, caso
nenhuma ao seja tomada. Essas ameaas so determinadas com base em
trs fatores: (I) a responsabilidade inicial pela crise; (II) o histrico da crise; (III)
a reputao relacional prvia. Cabe aqui uma breve elucidao a respeito de
cada um desses pontos.
A responsabilidade inicial pela crise, de forma resumida, diz respeito ao
quanto a reao dos stakeholders no sentido de atribuir responsabilidade
pela crise a aes organizacionais. Contudo, para compreender o modo como
esse processo est ocorrendo, necessrio entender a maneira como a crise
est sendo enquadrada. Esse enquadramento funciona em dois mbitos
distintos: o da comunicao, que diz respeito ao modo como a informao
apresentada no contexto de uma mensagem e o do pensamento, que trata da
maneira como essa informao ser processada a nvel individual (COOMBS
apud DRUCKMAN, 2001).
30
O autor nos lembra, contudo, que a maneira como a informao
apresentada ajuda a determinar o modo como ela ser processada, uma vez
que possvel ressaltar certos aspectos e maquiar outros. Esse fato tem
impacto direto na maneira como os stakeholders iro atribuir responsabilidade
organizao. Portanto, caber ao responsvel trabalhar o enquadramento ou
perceber este enquadramento em sua anlise dos discursos miditicos.
No que diz respeito a esse ponto, o mtodo SCCT aponta trs nveis
distintos de atribuio de responsabilidade. No primeiro deles, o grau de
atribuio de responsabilidade muito baixo, como nos casos em que a crise
resulta de desastres naturais, rumores e afins no caso, o enquadramento
de vtima. No segundo, o enquadramento o do acidente, onde existe um
mnimo de atribuio de responsabilidade. Incluem-se aqui eventos
considerados no-intencionais ou que no poderiam ter sido controlados pela
organizao, como acidentes e erros tcnicos. Por fim, no terceiro caso onde
se encontram os eventos compreendidos, pelos stakeholders como
intencionais, onde as atribuies de responsabilidade so muito fortes. Essas
ocorrem em casos de erro humano, desvios morais e afins.
O histrico de crise diz respeito a crises anteriores que sejam
semelhantes quela com a qual se est lidando no presente. Esse ponto
importante, pois, segundo a attribution theory, situaes de crise que se
repetem passam a impresso de que existe um problema organizacional
recorrente. Finalmente, por reputao relacional prvia, compreende-se o
modo como a relao da organizao com seus (as) stakeholders, em outras
situaes e ao longo de sua histria, percebida. Esse histrico pode ser
favorvel (quando tratou bem esse grupo) ou desfavorvel (quando tratou mal).
Um quadro desfavorvel indicaria que a organizao no se importa com o
bem-estar desse grupo, no apenas em situaes de crise, mas em um
contexto mais geral.
A partir disso, Coombs aponta que dois passos so importantes ao
avaliar a ameaa reputacional. O primeiro determinar o grau de
responsabilidade inicial que foi atribudo pelos stakeholders. A ameaa ser to
maior quanto for o grau de responsabilidade atribudo. Em seguida, o gestor
dever analisar o histrico de crises e a reputao relacional prvia, j que
esses so fatores que intensificam ou suavizam a situao. Por exemplo, se
31
a terceira vez que a mesma crise acontece, a perda de capital reputacional
certamente ser maior do que se fosse a primeira vez. Essas relaes so
apontadas pelo autor no diagrama abaixo (FIG. 1).
FIGURA 1: Passos para se analisar a ameaa reputacional Fonte: Coombs (1993).
Na figura, as seguintes relaes so estabelecidas: (I) A diz respeito ao
impacto que a responsabilidade atribuda pela crise tem na reputao
organizacional; (II) B1 e B2 esto relacionados ao impacto do histrico na
responsabilidade atribuda e reputao organizacional, respectivamente; (III)
B3 e B4, ao impacto da reputao relacional prvia na responsabilidade
atribuda pela crise e reputao organizacional; (IV) C est atrelado ao
impacto da atribuio de responsabilidade pela crise na emoo dos
stakeholders, podendo gerar afetos negativos; (V) D retrata a relao entre
reputao organizacional e inteno de comportamento; (VI) E relaciona o
impacto das emoes dos stakeholders com as intenes de comportamento.
As estratgias usadas para conter as crises so representadas pelas
flechas: (I) F1, que diz respeito s usadas para atuar no mbito da
responsabilidade atribuda pela crise; (II) F2 corresponde s utilizadas para
32
atuar no mbito da reputao organizacional; (III) s empregadas para conter
efeitos negativos no mbito das emoes.
Desse modo, essas estratgias de gesto de crises podem ser de trs
ordens distintas: negao; diminuio e/ou reconstruo. Cada uma delas
possui certas particularidades que buscaremos abordar aqui.
As primeiras funcionam conforme sugere o prprio nome: no sentido de
negar que existe uma crise ou que os eventos que a desencadearam no
possuem relao com a organizao. Ao cortar esses vnculos, procura-se
neutralizar tambm as perdas reputacionais. Coombs (2007) recomenda que
estas sejam usadas em casos que a atribuio de responsabilidade seja muito
baixa.
Em seguida, tm-se as estratgias de diminuio, que visam,
principalmente, mostrar que a crise no to ruim quanto parece ou que a
organizao no tinha controle sobre os eventos. Ao contrrio da primeira, no
busca negar uma conexo com os fatos negativos, mas enfraquecer essa
ligao. Aqui, a recomendao de uso vale para casos onde a atribuio de
responsabilidade j seja mais forte, como o caso das situaes acidentais e
afins.
As estratgias de reconstruo funcionam como uma maneira de,
literalmente, (re)significar a reputao. Esto includas aqui aes de
ressarcimento econmico, auxlio direto s vtimas, pedidos de desculpa
pblicos, enfim. recomendada nos casos em que o nvel de atribuio de
responsabilidade muito alto: quando a organizao, de forma consciente,
colocou pessoas em risco ou agiu de forma conivente com a situao que
desencadeou a crise, por exemplo.
necessrio ressaltar que, do ponto de vista da proteo reputacional,
levar em conta o papel desempenhado pelas mdias. Independentemente da
estratgia escolhida, deve-se pensar em como fazer com que as aes
tomadas a partir da cheguem at a grande mdia. Isso porque, conforme
afirma Coombs (2007), ela uma das grandes responsveis por determinar a
maneira como as pessoas enxergam a situao.
33
CAPTULO 3 ANLISE
Para discutir as estratgias de defesa e gerenciamento de crise do Fora
do Eixo diante de sua crise miditica em 2013, a presente pesquisa realiza um
movimento analtico do nvel textual para o contextual, percorrendo as
denncias na mdia e as defesas praticadas pelo coletivo.
Em um primeiro momento, caracterizamos qual o tipo de crise. Para
tanto, investigamos os eth projetados pelo jornal paulista Folha de S. Paulo de
8 a 15 de agosto de 2013, quando publicou uma srie de denncias sobre o
coletivo cultural. Essa incurso permite perceber o cenrio miditico que o
grupo se depara, a fim de sustentar melhor as anlises de suas tticas de
resposta.
Posteriormente, o estudo realiza uma macroanlise da gesto de crise
empreendida pelo Fora do Eixo, comparando-se a observao emprica das
estratgias realizadas no Facebook com as recomendaes da literatura
especializada de Coombs (2007). Para tanto, o corpus dessa segunda fase
compe-se dos contedos veiculados na fanpage do coletivo no mesmo
perodo de ataques da Folha de S. Paulo.
O ethos um conceito que tem sua origem na retrica aristotlica, sendo
tambm um de seus pilares, ao lado do logos (reino dos argumentos racionais)
e pathos (emoes projetadas). Ele corresponde capacidade que um orador
tem de se fazer crer digno de f, atravs da imagem passada ao auditrio.
Dessa forma, determina tambm a maneira como determinado argumento ser
recebido.
Conforme Charaudeau (2008; 2010), a construo do ethos se d como
resultado de uma srie de interaes que, nesse arcabouo terico, se
sustentam no imaginrio sociodiscursivo: um universo simblico acessado
pelas partes comunicantes, interferindo tanto no modo como as mensagens
so concebidas quanto como so decodificadas.
A imagem que o orador projeta de si e do outro no dizer tem base,
portanto, nesse imaginrio, o qual por sua vez - construdo por saberes.
Tais saberes podem ter como base tanto nos conhecimentos da ordem do
saber, que partem do mundo para a pessoa, quanto saberes da ordem da
34
crena, os quais surgem da percepo das pessoas a respeito do mundo. O
primeiro caso se manifesta, por exemplo, na forma da cincia: vem a partir da
identificao de fatores a priori, sujeitos ao rigor metodolgico; ao passo que no
segundo, tem-se a religio: originria de percepes a posteriori, que no esto
sujeitos a metodologia e atuam no mbito da f. Esses conhecimentos se
fazem presentes a todo o momento na dimenso discursiva da vida, que
engloba a totalidade das interaes sociais entre pessoas. Por isso, tem
grande influncia no modo como um percebe o outro.
Outro ponto importante para o propsito desse trabalho o de esfera
pblica. Para caracteriz-la, nos alinhamos aqui com o pensamento de
Charaudeau (2010, p. 118), que a descreve a partir da ideia de discurso
circulante. Isso diz respeito, soma emprica de enunciados com visada
definicional sobre o que so os seres, as aes, os acontecimentos, suas
caractersticas, seus comportamentos e os julgamentos a eles ligados.. Dito de
outro modo, o conjunto total de discursos que organizam a sociedade em um
determinado perodo e dentro de determinada parcela do mundo social.
No que diz respeito a construo desse espao, a mdia assume um
importante papel, na medida em que o abastece com informaes de maneira
quase ininterrupta. Esses elementos colocados l pela mdia ajudam a moldar
a maneira como a sociedade percebe determinado tema, mas , ao mesmo
tempo, largamente influenciada pelos sistemas de pensamento dessa mesma
sociedade.
Se, por um lado, essa atuao da mdia , muitas vezes, louvvel, em
outros momentos deixa a desejar. Ainda que os discursos que circulam pela
mdia sejam muitos e diversos, o prprio poder que a mquina miditica
adquire contribui para que, no raras vezes, ela se lance em campanhas que
visam naturalizar o status quo independente da reflexo crtica a respeito
desse funcionamento dado. Uma das principais maneiras pela qual esse
processo se d precisamente atravs da desqualificao do ethos. Em
tempo, se a mdia capaz de influenciar com as devidas ressalvas o que
estar presente na esfera pblica, capaz tambm de organizar esses
discursos de modo a se perpetuar no poder.
Assim, a maneira como determinada organizao, pessoa, instituio ou
tema retratada ir ter impacto direto na maneira como os argumentos
35
apresentados, sejam contra ou a favor determinado tema, sero recebidos pela
sociedade como um todo atuando, portanto, no mbito da retrica. Dessa
forma, mesmo que um argumento tenha sustentao lgica (logos) o que, em
essncia, deveria bastar para que fosse aceito , ser possvel neutraliz-lo
pelo ataque a quem o apresenta.
3.1 Anlise da crise miditica do Fora do Eixo e Mdia Ninja
Diante dos 16 tipos de crise elencados por Forni (2013), a crise do Fora
do Eixo e da Mdia Ninja se encaixa primariamente na categoria crise de
imagem, uma vez que resulta de uma quebra do ethos organizacional. A
natureza desse processo pode ser atribuda a duas outras categorias
principais, as quais, justamente, sustentam os depoimentos-chave da crise:
relaes trabalhistas ou de pessoal e tica empresarial - ambas fortemente
presentes nos textos publicados por Bellini (2013) e Seigner (2013).
Com relao ao grau de intensidade, se encaixa no que Forni (2013)
considera como sendo supostamente insignificante. primeira vista, uma
postagem publicado em um perfil pessoal no Facebook no se apresenta como
uma grande ameaa. Entretanto, como tudo que tornado pblico na web,
esse contedo est sujeito s dinmicas e fenmenos naturais da estrutura em
rede.
No presente caso, um movimento de viralizao10 fez com que os textos
se espalhassem como fogo na palha pelas redes sociais. Quando a grande
mdia amplificou esse contedo, estabeleceu-se uma crise de proporo
devastadora, segundo a tipologia de Forni (2013), uma vez que esto
presentes denncias de desmandos ticos; explorao indevida; abuso
psicolgico; uso indevido de recurso pblico; entre outras.
A nosso ver, a transio de situao supostamente insignificante para
se tornar uma crise devastadora est atrelada a dois principais fatores. O
primeiro deles a falta de aes de gerenciamento de crise j nas etapas
iniciais do processo. A ausncia de um posicionamento rpido em relao aos
10 Quando determinado contedo ganha, de maneira rpida, alta notoriedade dentro da rede e se replica por ela com alta velocidade.
36
ocorridos cobrou seu preo: quando de fato foram deflagradas aes de
resposta, a situao j havia atingido nveis crticos. O segundo fator que o
grupo adotou uma postura, de certo modo ingnua, perante a estrutura dos
jogos de poder exercidos pela grande mdia, em especial no que diz respeito s
iniciativas que questionam a legitimidade de sua atuao como foi o caso da
Mdia Ninja.
Mediante um entendimento mais aprofundado do funcionamento das
crises miditicas e das particularidades discursivas da mquina miditica,
argumenta-se aqui que, a partir do momento em que foi lanada a primeira
postagem no caso, a de Seigner (2013) em 7 de agosto de 2013 era
possvel antecipar os desdobramentos negativos da situao. Ao participar do
programa Roda Viva, em 5 de agosto, o grupo se colocou em posio de
destaque temporrio no espao pblico; ao mesmo tempo, fazendo uso dessa
visibilidade, teceu crticas que se projetavam partir de um ethos que foi
colocado em xeque, alguns dias depois, no prprio depoimento de Seigner.
Nesse cenrio, diversos fatores latentes que foram ignorados, a exemplo
dos critrios de noticiabilidade ali presentes; a postura conservadora de grande
parte da imprensa, no que diz respeito aos discursos alternativos a ordem
estabelecida; alm da prpria questo dialtica, ou seja, a resposta da mdia
com relao s crticas direcionadas a ela.
No propomos que, mediante uma atuao mais presente no momento
em que se deu o incio do proces
Top Related