O ATEÍSMO DE MARX E DOS PROFETAS:
como negação de fetichismos e afirmação da alteridade, possibilitadoras de
Revoluções (ou novidade política).
Hugo Allan Matos1
RESUMO
O marxismo, de novo, está em voga. Muito se fala de Marx e dos marxistas.
Seja para criticá-los, repetí-los, deturpá-los ou para laçar novas teorias baseadas
em alguns de seus conceitos. Vejo como de extrema importância este resgate,
mas caímos, mais uma vez, em riscos de banalizações e deturpações do discurso
de Marx. Percebo (neste discurso) muitas possibilidades que ainda não foram
exploradas, que podem contribuir muito para a superação desta crise estrutural da
modernidade que nos assola. Pretendo com este artigo, auxiliar na prevenção de
preconceitos a respeito do que é o ateísmo de Marx, mostrando a proposta de
Enrique Dussel de ir um passo a frente nesta importante postura ideológica, que é
de fundamental importância para a possibilidade de superação não só desta crise
estrutural do capitalismo, mas de qualquer sistema político futuro.
PALAVRAS CHAVE: Ateísmo, Fetiche, Negação da negação, Absoluto alterativo,
afirmação da alteridade, revolução.
1 Mestrando em Educação, Pós-graduado em Filosofia e História contemporânea, graduado em Filosofia pela
Universidade Metodista de São Paulo. Membro dos grupos de estudos: Filosofia no Brasil e na América
Latina: teoria, história e ensino(USP); Núcleo de Estudos de Filosofia Latino Americana (NEFILAM-UMESP),
dentre outros. Endereço eletrônico para contato: [email protected].
INTRODUÇÃO
Com a crise estrutural do capitalismo, parece que a pergunta que não cala
é: Qual a alternativa? As respostas, contudo, estão longe de chegarem a um
consenso, se é que chegarão.
Muitos acham que agora é a vez do Comunismo. Na justificativa de que
este nunca fora implantado completamente, por erros decorrentes de sua
execução, acabou por chegar apenas ao socialismo (como fase de intermédio da
passagem do capitalismo ao comunismo) em algumas tentativas, mas todas
fracassaram ainda na implantação do socialismo.
Outros acham que a teoria capitalista deve aglutinar algumas teses e
críticas marxistas em seu cerne a fim de promover um capitalismo mais
humanitário, ou menos contraditório – como se fosse possível -... Dentre estas
existem várias outras teses, inclusive a que não tem jeito e estamos caminhando
para a extinção da espécie humana, pelo menos como a conhecemos. Daqui
surge os discursos e práticas sobre o pós-humano. Este retorno à obra de Marx é
evidente.
Junto a esta releitura de Marx, reerguem-se mitos e tentativas de polemizar
e até desqualificar seu discurso por vias morais, para a manutenção do status quo.
Uma das principais destas tentativas, sobretudo por parte das religiões
tradicionais, que, apesar desse esforço em desqualificar discursos importantes
para a mudança social, contraditoriamente ainda têm muita gente de boa vontade,
é a acusação de que Marx é ateu e que basear-se nele para agir na sociedade é
inconcebível. De outro lado, muitos dos próprios marxistas, incapazes de serem
sensíveis à necessidades do ser humano, como veremos, afirmam um ateísmo
radical.
Marx é ateu. Isso é inegável. Entretanto, seu ateísmo como tentarei
mostrar, é um ateísmo consciente, metodológico assim como o era nos profetas
de Israel. Mostrarei como Enrique Dussel vê este ateísmo e propõe uma postura,
consequente desta, como um caminho que auxilia na possibilitação de novos
sistemas político-econômicos.
Este pequeno artigo é basedo na obra As Metáforas Teológicas de Marx2,
especificamente no capítulo seis desta obra, que leva o título: O ateísmo dos
profetas de Israel e de Marx3, que foi uma conferência que Dussel apresentou em
Córdoba, Argentina, em 1972, republicada pelo autor em 1993.
Primeiro apontarei como os profetas de Israel eram ateus e como este
ateísmo combatia aos ídolos e fetiches da época, afirmando um deus alterativo,
que lhes permitisse sempre estar em posição exterior a todos os sistemas, para
desta exterioridade criticá-los, clamando à justiça.
Depois, mostrarei que Dussel lê o ateísmo de Marx chegando muito perto
de afirmar o absoluto alterativo. Mas por limitações históricas, não o faz,
possibilitando o fetiche, pois somos – todos os seres humanos – seres simbólicos
e necessitamos de transcendência, como diria Emmanuel Lévinas4.
Por último, farei uma breve consideração final, na qual, tentarei apontar que
se a história é dialética, qualquer possibilidade de fetichização impede este
movimento e assim, é de extrema importância que haja algo ou alguém exterior ao
sistema vigente para que além de não possibilitar esta fetichização, possibilite a
antítese do sistema vigente, a fim de possibilitar as revoluções.
O ATEÍSMO DE MARX E DOS PROFETAS5
Na teologia e na religião é sabido que os profetas de Israel lutaram contra
a idolatria. Mas, raramente isso é visto como ateísmo. Eles lutaram negando
alguns deuses. Não recordam também que muitos cristãos primitvos foram 2 Dussel, 1993.
3 Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/dussel/marx3/cap6.pdf Acessado pela última vez em:
21/04/2010.
4 LEVINAS, 1980.p.21: desejo do invisível.
5 Aqui, achei necessária uma tradução integral, pois é onde está fundamentada a hipótese do ateísmo
enquanto negação da negação de alteridade, que é base do que pretendo mostrar. Sendo assim, o 1. O
Ateísmo de Marx e dos profetas e seu subtítulo: Os profetas contra o ídolo, contra o fetiche, são traducões
integrais do citado texto de Dussel, 1993.
acusados e mortos por ateísmo, por não adorarem aos deuses romanos e ao
imperador como deus. A negação de culto ao imperador era considerada além de
ateísmo, porque o império era sagrado, subversão e traição às tradições pátrias.
Assim, afirmar o ateísmo não deve escandalizar ou gerar polêmicas. A
pergunta, contudo, deve ser: qual deus nega seu ateísmo? Porque o nega? É
possível a tentativa de negar qualquer divindade, mas ao fazê-lo, já está
afirmando-se que existe o que nega. Marx, nos manuscritos de 1844, escreve: “O
ateismo, como negação da carência de essencialidade, não tem sentido, pois é
uma negação de Deus e afirma, mediante esta negação, a existência do homem”.
Marx faz isso, seguindo a Fuerbach(1967): “A tarefa do tempo novo é a
conversão e resolução da teologia em antropologia”. Converter a teologia em
antropologia é também um ateísmo, mas persiste a pergunta: qual ateísmo? Pois,
se é a negação de determinada ideologia, através da antropologia é o início da
afirmação de um deus alterativo que só por justiça pode ser adorado. O deus
negado por Marx e Fuerbach, era o deus afirmado por Hegel e pelo capitalismo
industrial e colonialista europeu: o deus fetiche.
1. Os profetas contra o ídolo, contra o fetiche
Para os profetas de Israel as nações (goîn) caíram num tríplice pecado: a
idolatria, o homicídio e a bestialidade. A pior era a idolatria que causava as outras
duas. Existiam alguns conceitos fundamentais que serviam às escolas de profetas
(nabiin) a fim de que interpelassem violentamente ao povo de Israel e vizinhos.
O primeiro destes conceitos era o de carne (no hebreu basar e no grego
sarx), que hoje podemos traduzir como totalidade. O conceito que se opõe ao de
carne é o de espírito (em hebreu ruaj, em grego, pneuma) que muitas vezes é
expressado como palavra (dabar em hebreu e lógos, em grego). Hoje podemos
expressar a palavra, neste sentido, como alteridade.
As escolas de profetas, sabiamente utilizavam-se destes conceitos em sua
pregação. O Deus único de Israel, por exemplo, sempre foi considerado como
anterior ao cosmos, seu criador, exterior a ele. Deus criador, é a alteridade com
relação ao mundo, pois interpela, provoca, chama desde esta exterioridade, para
constituir o ser, provocando movimento histórico às totalidades, que pelo pecado
imobilizam o progresso dialético histórico. Assim, o único pecado, frustração da
totalidade é totalizar-se de tal forma que se divinize, passar a não ouvir à
exterioridade, único momento que poderia continuar o processo. Neste sentido, os
primeiros quatro mitos do livro bíblico do Genesis, são relatos simbólicos dos
processos de totalização da carne divinizada, que impedem o progresso
qualitativo da história.
Um irmão mata ao outro no mito de Caim e Abel. Este fraticídio é a
totalização de Caim, sua instituição enquanto único filho. Desta forma, o único
pecado é matar ao outro. Ao desaparecer a alteridade do outro, a totalidade do eu,
diviniza-se, passa a ser a única, totalizando-se como totalidade absoluta. O
mesmo ocorre no mito de Adão, quando a serpente lhe tenta: serão como deuses.
A serpente simboliza a anterioridade, a possibilidade de totalizar-se, negando ao
outro para tornar-se divino. Portanto, o amor à totalidade (carne) como totalizada,
como divina, é a negação da alteridade (do outro, do espírito, da palavra) e
portanto, divinização, idolatria. Para os profetas, o passo entre o pecado e a
idolatria é imediato. O que mata ao outro adora a si mesmo (ou a algo que projeta
dele mesmo, como “o ídolo fabricado por suas mãos” que os profetas criticam)
como divino. Neste caso o idólatra, cuja fetichização começou pela injustiça do
fraticídio ou a morte do outro, é considerado ateu do Deus criador, alterativo.
Portanto, de um deus específico e não de qualquer ou de todos os deuses. Paulo
de Tarso indica como os gentis estavam sem esperança e ateus (átheoi) neste
mundo6.
6 Livro bíblico: (Ef 2,12)
O ateísmo do Deus criador e alterativo pode ser esquematizado desta
maneira:
Esquema 6.17 A idolatria, ateísmo do Deus criador (modificado aqui por finalidade
pedagógica)
Momento 1: Existe um Deus criador interpelante e clamador da justiça,
(momento 2:) É a negação da alteridade, e portanto do Deus criador, o ateísmo do
Deus criador, é também negação da alteridade e vise-verso. (momento 3:)
Praticando-se o ateísmo ao Deus criador, negando-se a alteridade, afirma-se a
totalidade vigente como divina, ou seja, ao mesmo tempo em que se nega a
alteridade, ou ao Deus criador, afirma-se a totalidade vigente como divina.
(Momento 4:) Legitima-se a realidade vigente como divina, é o fetichismo, que
permite o panteísmo.
A lógica da alteridade, que era apropriada pelas escolas proféticas com
perfeita habilidade, indicava em seu discurso um primeiro momento; todos os
outros eram consequências imediatas que os profetas pregavam a seu povo de
Israel.
A negação da alteridade, em geral, mas concreta e primeiramente como
injustiça ao próximo (ao rosto do irmão; rosto em hebreu se diz pné, que foi
traduzido para o grego como prósopos e em catellano como persona), ao que me
interpela em seu rosto alterativo, já é um ateísmo do deus alterativo porque, por
uma lógica infalível, aquele que nega seu irmão, afirma-se como único, como
senhor, como dominador. Na linguagem profética: peca. O pecado é totalização da
totalidade e por isso, negação da alteridade. Negar a alteridade é negar ao Deus
alterativo, ou seja, é afirmar a totalidade (a carne) como divina. O pecado da
injustiça ao homem é pecado de idolatria a Deus. É o mesmo pecado em suas
duas vertentes. Por isso, os profetas são os acusadores incorruptíveis do pecado
como totalização da ordem vigente injusta, que é o mesmo que dizer, contra a
divinização da ordem política no poder.
7 DUSSEl,1993, p.240.
Na origem da mornarquia de Israel se vê claramente o enfretamento entre o
profetismo e o poder político a ser constituído. Samuel não quer ungir um rei para
o povo hebreu. O profeta (Samuel) diz:
Este será o direito do rei que reinará sobre vós: Ele convocará os
vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e de
sua cavalaria e os fará correr à frente do seu carro; e os nomeará
chefes de mil e chefes de cinquenta, e os fará lavrar a terra dele e
ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças
de seus carros.
Ele tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e
padeiras. Tomará os vossos campos, as vossas vinhas, os vossos
melhores olivais, e os dará a seus servos. Das vossas sementes e
das vossas vinhas ele cobrará o dízimo, que destinará aos seus
eunucos e aos seus servos. Os melhores dentre vossos servos e
servas, e de vossos adolescentes, bem como vossos jumentos,
ele os tomará para seu serviço. Exigirá o dízimo dos vossos
rebanhos, e vós mesmos vos tornareis seus servos. Então
naquele dia, clamareis contra o rei que vós mesmos tiverdes
escolhidos, mas Iahweh não vos responderá, naquele dia! (I Sam
8, 11-18).
A posterior dialética entre profeta e rei (alteridade e totalidade) mostra como
o profeta é alguém que está exterior à sociedade8, por isso, pode sempre criticar o
sistema vigente. A contradição entre Samuel (profeta) e Saú (rei), continuará
depois com Natan (profeta) e David (rei), Ajías e Jeroboam, Elias e Acab, Miqueas
e Josafat, etc. A dialética dominador e dominado (o senhor-escravo no sentido
hegeliano, não tem relação nenhuma com isso) se introjeta na totalidade (carne)
como pecado. E é justamente como alteridade que o profeta enfrenta à totalidade
idolatrizada para mostrar a injustiça da dominação e da representação como o
reverso do ateísmo do Deus criador ou da afirmação fetichista do sistema.
8 c.f. Aqui Dussel refere-se à exterioridade escatológica que veremos mais a frente.
A totalidade, o sistema, o rei (seja de Israel, de Judá, do Egito como fizeram
com Moisés, ou de todos os povos e ordens constituídas) são criticadas pelos
profetas de um único pecado bipolar: idolatria e injustiça, ou seja, nagação da
alteridade e afirmação da totalidade como única. Teológica e político-
economicamente falando:
Quando Acab (o rei) viu a Elias (o profeta), disse: Estás aí, flagelo
de Israel! Elias respondeu: Não sou eu o flagelo de Israel, mas és
tu e tua família, porque abandonastes os mandamentos de
Iahweh e seguistes os baais. (1 res 18,17-18).
Como pode perceber, a totalidade não aceita a crítica alterativa do profeta.
A crítica, sempre presente em todos os profetas, não se deixa esperar:
Ai dos que promulgam leis injustas, os que escrevem para
decretar opressão, para desapossarem os fracos do seu direito e
privar da justiça os pobres, para despojar as viúvas e saquear aos
órfãos (Is 10, 1-2).
Uma vez que o sistema se divinizou, é possível que em nome do direito
divino se oprima aos fracos9. É por isso que a lógica da alteridade, o método das
escolas proféticas, fica bem expressado no seguinte discurso: “Não terás outros
deuses, não matarás... (Dt 5, 7-19). Pouco ou nada, na verdade, pensamos sobre
esta dialética negativa metafísica. O que se diviniza instituindo deuses
intrasistemáticos, nega ao Deus alterativo; ao negar a alteridade, nega ao outro,
ao irmão, à mulher, à criança, ao idoso: propõe então seu poder dominador como
o único, se diviniza. A divinização da totalidade é fruto e o fundamento ideológico
da injustiça antropológica, política, econômica. Não divinizar a totalidade, não
matar, não roubar, não são propostas negativas, mas negação de negação: não
9 Nota minha: Lembrando que fracos nunca numa condição natural de oposição aos fortes. Mas a própria condição fora causada por violência social, fraco como condição social, portanto.
ao não Deus alterativo; não à não vida; não à não possibilidade do outro. Não
matar é não à não vida do outro, ou seja, respeito ou amor ao outro na justiça.
Assim, o profeta se encontra na situação de que deve negar a negação do
totalizado, dominador, injusto, idólatra, fetichista. Não à negação do Deus
alterativo é não ao ídolo; não à negação de justiça é não à ordem Político-
econômica imperante. O profeta torna-se ateu do ídolo e político subversivo da
ordem vigente injusta. Assim, inverte-se a questão anterior:
Esquema 6.210: O criacionismo, ateísmo da idolatria (modificado)
Momento 1: De um fetichismo, divino, panteísta, passa-se para um (momento 2:)Momento
negativo: negação da negação que é também (momento3:) Momento afirmativo: afirmação
da alteridade (justiça e criacionismo) e que tem seu fundamento último num (momento 4:)
que é um Deus criador, interpelante como justiça.
O processo de totalização se indica quando se afirma: “Fabricamos um
Deus que nos leva adiante (...) e fabricou uma imagem de bezerro de ouro...” (Ex
32,14).
A práxis atéia do profeta ao ídolo está expressa na fórmula: “Moisés... cheio
de raiva... tomou o bezerro que haviam fabricado, o queimou e o triturou até
reduzí-lo a pó... (Ex32, 19-20)
O ídolo, o sistema ou a totalidade (a carne totalizada) é como o amante. O
que lhe aceita e o adora, é uma prostituta já que se vende ao melhor concorrente:
“Vai, toma para ti uma mulher que se entrega à prostituição e filhos da
prostituição, porque a terra se prostituiu constantemente, afastando-se de
Iahweh”. (Os 1,2)
É a prostituição política do sistema:
Efraim era um burro orgulhoso. Perceba como subiu à Assíria
levando presentes às suas amantes. Ainda que ofereça presentes
10
DUSSEL,1993, p.243.
às nações (goím), eu as reunirei contra eles. Em pouco tempo,
gemirão frente aos impostos que irão ter que pagar ao rei dos
princípes (Os 8,9-10).
A idolatria torna-se injustiça: o opressor divinizado domina ao fraco; se este
aceita a divindade do forte é como uma prostituta, porque aceita a causa de sua
dominação, e vende-se. O profeta clama:
Não há (nesta terra) nem fidelidade, nem amor, nem afirmação de
Deus (alterativo). Só há juramento em falso e mentiras,
assassinos e roubos, adultério e violência, sangue e mais
sangue... (Os 4,1-2)
A seguir, Oséias dá a razão das ditas injustiças:
Por isso meu povo consulta a pedaços de madeiras e creem que
um pau lhe dará resposta, está possuído de um espírito de
prostituição e abandona seu Deus para prostituir-se (Os 4,12).11
O ateísmo da idolatria é o primeiro momento, o momento negativo do
movimento dialético dos profetas. O segundo momento, o afirmativo, é a
proclamação de um Deus que se revela pelo pobre, pela viuva e pelo órfão, por
que sendo exterior ao sistema ou totalidade é acolhido e servido pelos que têm
ouvidos atentos e coração pronto para a justiça, para o Outro. O que se totaliza é
ateu do Deus alterativo, adorador fetichista do deus produto do homem: idólatra.
11 Neste sentido, João, o evangelista, conhece explicitamente a lógica da alteridade e à bipolaridade dialética
de uma mesma exigência: Quem odeia a seu irmão está em trevas. Anda em trevas sem saber onde vai, pois
as trevas lhe cegaram (1Jo 2,11). Como o pobre é a epifania (n.t. revelação) de Deus, o que nega ao pobre,
ao irmão, nega à epifania do Deus criador judeu-cristão. O que odeia ao irmão odeia a Deus, ou ainda,
diviniza-se a sí mesmo: é um idólatra. Ser ateu desta idolatria é o primeiro momento, o momento negativo da
profecia.
2. Marx contra o fetiche moderno, o capital12
Marx repete o primeiro momento da dialética profética, o momento negativo,
que nega a divindade do ídolo. Mas, não chega ao momento afirmativo, ou
positivo de afirmar ao Deus alterativo.
Este momento seria essencialmente necessário. Por quê? Porque foi esta
não afirmação que possibilitou teoricamente que a burocracia russa afirmasse a si
mesma como realização sagrada indiscutível de uma ordem socialista que não
permitia críticas. Permitiu ainda, conforme nos aponta Dussel13, que na América
Latina, parte do marxismo fosse feito um movimento de elites intelectuais que não
puderam alcançar com eficácia ao povo, justamente por causa de seu simbolismo
mítico e religioso.
Fica evidente que quando negamos determinado(s) deus(s), é necessário
que afirmemos outro em seu lugar, pois somos seres simbólicos, temos
necessidade do mito ou da religiosidade. Se não afirmamos nenhum deus, corre-
se o risco de qualquer objeto ser idolatrado.
Assim, Dussel argumenta que Marx é ateu de um sistema divinizado,
idólatra, de uma religião que europeizada e totalizada, nega ao Deus alterativo,
portanto. Pensa a religião como cristandade, seja ela a católica, luterana ou
calvinista. Religião esta que foi organizada a partir do cogito europeu spinoziano e
do estado individualista burguês prussiano de Hegel. Mas, este ateísmo é limitado
em sua negação desta religião, sem dar-se conta de que é a negação da negação
de um Deus alterativo, o que lhe permitiria ter um ponto de apoio exterior para
crítica em todas as ordens futuras possíveis. Portanto, da negação da idolatria ao
dinheiro, por exemplo, pode surgir a idolatria à burocracia, ao poder, à violência, à
cultura, etc...
12 Aqui não mais traduzirei, mas comentarei, ainda que quase parafraseando um recorte de Dussel,1993. 13 Fazendo referência à Hugo Assmmann, que escreveu isso no livro: O cristianismo, sua mais valia ideológica
e o custo social da revolução socialista, em Teologia da práxis de Libertação, Salamanca. 1973, 171-203.
Brevemente vou mostrar trechos do jovem Marx e do definitivo Marx, nos
quais Dussel baseia a fundamentação de sua hipótese:
O Fundamento da crítica religiosa é: o homem faz a religião14. A
religião, considerada em seu contexto econômico-político é, em
última instância, o ópio do povo15, neste sentido, sua existência é
um problema16, pois é a sacralização do sistema. Desta idólatra
divinização, se concretiza a idolatria do dinheiro. Por um lado, o
trabalho produz seu produto, que é estranho (fremdes Wesen),
como algo independente (unabhängige) ao produtor17. Quando
este produto, independente de seu produtor, é possuído por outra
pessoa que não ele, se cumpre a alienação do ser de seu
produtor. A propriedade privada é a institucionalização disso, e é
por isso, que é o mau original. É assim que se imolam homens
pelo dinheiro, enquanto possuem a propriedade de comprar
tudo[...] é a divindade visível [...] É a prostituta universal [...] é a
força divina do dinheiro18.
Como apontei anteriormente, Dussel diz que Marx além de negar a
divinização idolátrica do sistema capitalista, vai além, afirmando a condição
antropológica do homem, conforme podemos notar nesta outra citação que
(Dussel, 1993.p.667) faz dele:
O ateísmo, enquanto negação desta carência de essencialidade
carece totalmente de sentido, pois o ateísmo é uma negação de
deus e afirma, mediante esta negação, a existência do homem.
14 Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie, en Karl Marx frühe Schriften, I, 488. Citado por Dussel, 1993. 15 Ibid. 16 Zur Judenfrage, en Ibid., p.457: Das dasein der Religion das Dasein eines Mangels ist citado por
Dussel,1993. 17 Ökonomisch-philosophische Manuskripte I; ed. Cit., I, 561. Citado por Dussel,1993. 18 Ibid. III; pp. 631-634. O gosto de Marx de usar termos teológicos aplicados ao dinheiro, não é ocasional.
O que Dussel nos mostrou até aqui, sobre este ateísmo de Marx, é que
assim como os profetas, Marx nega ao deus idolátrico. Mas, afirma apenas o
homem enquanto socialista, mas neste caso, é possível a própria divinização do
socialismo, sem possibilidades de chegar ao comunismo.
Pode parecer a alguns que Marx é extremamente abstrato, ou que Dussel
não o entendeu. No final deste tópico, Dussel mostra a importância de Marx e
quão perto ele chegou desta afirmação de um Deus alterativo. O quão concreto e
porque não dizer sensível e compassivo, dentro de seus limites históricos, foi
Marx:
Deste pecado original que surge a pobreza da grande maioria,
que hoje, apesar do muito que trabalham, não têm nada mais que
vender a não ser seus corpos.
Poderíamos citar muito mais sobre este instigante Marx, até a pouco
desconhecido por mim, primeiro por ter pouca facilidade para ler e entender O
Capital, depois porque alguns comentadores que tenho lido, me pareceram mais
difíceis de serem entendidos que o próprio Marx. Mas, por causa desta
sensibilidade que, apesar de sua contextualização e limites históricos, vai muito
além do que a maioria de meus contemporâneos que tratam de mesmos assuntos.
Continuando, e para terminarmos de mostrar esta fundamentação que
Dussel faz sobre o ateísmo de Marx, como ateísmo de um deus ou deuses
específicos – que sempre estavam a serviço do sistema e da ordem estabelecida -
caminhemos para o fim desta parte de nosso trabalho, com mais uma citação:
O descobrimento das minas de ouro e prata da América, a
cruzada de extermínio, escravidão e sepultamento destas minas
das populações nativas, o começo da conquista e o saque das
índias ocidentais, a conversão do continente africano em celeiro
de escravos negros: são todos fatos que mostram o amanhecer
da era de produção capitalista[...]19
19 Ibid.,694.
Concluímos, portanto, que Marx pode ser comparado com os profetas na
negação da negação do homem. Mas, no próximo momento da dialética, ele
afirma o homem, enquanto antropológico, apenas. Enquanto os profetas,
afirmavam o homem, em sua alteridade e o alterativo absoluto (Deus), enquanto o
Deus que clama à justiça, à subversão do sistema instituído.
Me permita, cara leitora, caro leitor, que vejamos um pouco mais sobre qual
é a importância desta afirmação, ainda hoje, sobretudo à partir do Brasil, e da
América Latina.
3. A importância da afirmação do absoluto alterativo como possibilitador da
exterioridade sistêmica, da alteridade antropológica e de qualquer revolução
possível.
O Marxismo, ao pregar o ateísmo (radical) na América Latina, permitiu que
os povos latinos que aderiram a essa postura, assumissem outros deuses,
impostos pela modernidade20. Primeiro e essencial ao sistema capitalista é a
fetichização do “eu”. Expûs um pouco deste processo de fetichização do eu
promovido pela modernidade, em meu trabalho de conclusão do curso de
graduação em Filosofia, desta forma:
O inicio da formulação teórica da fetichização da totalidade do eu,
se dá com Descartes, ao tornar o eu fundamento de toda a
experiência deste enquanto extensão dele mesmo. O discurso do
método é justamente a teorização disso, um eu que fundamenta
tudo a partir de seu discurso. Spinoza, só continua o trabalho,
afirmando que o eu é uma substância e que só pode existir uma
substância, converte o eu em deus. Depois Hegel termina a
imprensa fazendo desta subjetividade do eu, o sentido de tudo
adquirido por sua lógica. Seja na filosofia da natureza ou na
20Cf. ASSMANN, 1989.
filosofia do espírito. Assim, esta subjetividade, torna-se divina,
pois ela é tudo, é o ponto de apoio de todo juízo possível21.
Agora, o que mais me importa é o que fundamenta minha atitude de pensar
a realidade? O fundamento é pensar a partir da realidade, ou seja, pensar a partir
dos problemas que se impõem a mim, diariamente. O que isso tem a ver com a
fetichização do eu?
Sigamos:
Penso ser interessante refletirmos como esta fetichização do eu, feita pela
filosofia moderna, resulta em posturas políticas, também muito vigentes ainda
hoje:
O eurocentro, a partir da filosofia, nega a metafísica, transforma o
eu em centro ontológico do universo. Transforma a Europa em
centro geográfico do universo. Sendo o eu (ser-racional), centro
do universo e o centro do universo é a Europa, segue que a
Europa é o eu (ser-racional) do universo e todo o resto que não
seja o mesmo que é este centro, que não esteja neste centro, que
não pense como ele é objeto e portanto está a seu serviço. Esta é
a dialética dominadora européia, na qual, a tese, antítese e
síntese são todas elaboradas pelo mesmo. Não há espaço para
outro ser, ou seja, apesar do fato de que a Europa justifica-se
enquanto dominadora legítima por causa desta forma de pensar,
nós, os dominados não temos possibilidade de fazer a antítese,
de argumentar, de reagir, pois afinal, não somos. Afirmações
como que os índios são apenas bestas, são bárbaros, são outra
coisa que não nós, e portanto, devem ser submetido a nos servir,
a meu ver, ainda hoje, demonstra como pensava um europeu no
contexto da invasão européia à América e muitos pensam ainda
hoje22.
21
MATOS, 2008. 22
Ibid, pgs. 27-28.
O Mito da Europa como Centro do Mundo, o Eurocêntro23, permitiu e
permite a justificação de toda violência cometida por eles, muitas vezes em nome
da paz mundial, ou da democracia, como estamos percebendo recentemente na
aniquilação que os EUA e a Europa estão promovendo no Oriente Médio e que
bem sabemos que o que está por trás são motivos político-econômicos.
O que quero deixar claro aqui, é que mesmo este mito, foi construído e
ainda tenta ser sustentado, porque está a serviço do deus que está no centro do
mundo hoje. E sem dificuldade alguma, bem sabemos que é o sistema econômico,
que abarca em si e intensifica estes valores modernos da fetichização do “Eu”,
fetichização da modernidade e sobretudo, do dinheiro, como nos mostrou Marx.
Assim, chegando ao ápice de minha argumentação, aponto o ateísmo
destes deuses modernos: dinheiro24, eu e modernidade, como solução para
superação desta crise estrutural da modernidade25. Entretanto, não podemos cair
na mesma limitação histórica que Marx, de ficar apenas no primeiro momento
deste ateísmo, que é parecido ao ateísmo da escola profética de Israel que trouxe
a ser conhecido na primeira parte deste artigo.
Além de negarmos este panteísmo moderno, devemos passar para o
próximo momento deste ateísmo dialético26. Que é a afirmação de um absoluto
alterativo.
Porque deve ser absoluto? Não poderia ser apenas a afirmação do ser
humano, como quiseram Fuerbach e Marx, ou de uma ética da alteridade, mas em
nível antropológico27, negando todo o absoluto? Ora, se assim for, não impedirá o
panteísmo fetichista, pois como vimos, nós temos a necessidade da
absolutização, ou seja, de algo que esteja exterior a nós. Schopenhauer, de
alguma forma, também trabalhou essa necessidade.
Assim, para negarmos a possibilidade de fetichismos, é necessário que se
afirme um absoluto. E como deve ser este, o primeiro motor de Aristóteles? Pode
23 Que hoje, inclui EUA, por exemplo. 24 Que parece ser o maior de todos os deuses modernos. 25 Ou do capitalismo, se preferir. 26 Da verdadeira dialética que para Dussel é a analética, ou Ana-dialética. 27 Para melhor perceber este problema e seus desdobramentos, indico a leitura de LEVINAS, 2000.
ser entendido assim, desde que ele seja o criador de tudo. Pois se afirmarmos
apenas um absoluto, que deu origem a tudo, todo o mundo criado, dentro do
espaço e tempo, se quisermos uma linguagem kantiana, é contingente e não pode
nunca absolutizar-se.
Fica impossível o panteísmo fetichista se qualificamos tudo o que está no
espaço e tempo, como contingente. O Próprio Kant fez a afirmação de um
absoluto: coisa em si (noumenon). Mas, é necessário também, cuidarmos para
que este próprio absoluto não seja instrumento de dominação.
Ele será dominação se for um absoluto universal, que possa servir para ser
imposto. É por isso que deve ser alterativo. Ou seja, ele mesmo seja infinito e o é,
por ter criado tudo o que existe, em toda sua diversidade e distinção. Sendo
alterativo, clama que toda alteridade dos seres vivos seja respeitada.
Quais as implicações políticas e portanto, históricas disso? Parece estar
claro que este absoluto alterativo criador de tudo, sempre estará exterior a
qualquer sistema político. E bem sabemos que todos os sistemas políticos tendem
a fetichizar-se, eternizar-se. Contudo, quando da afirmação do único absoluto,
nenhum sistema poderá fetichizar-se, assim, as vítimas do sistema vigente, não
devem submeter-se a este, por sabê-lo como contingente. Para terminar, vamos
ver como eu traduzi o que Dussel nos diz a respeito:
Mas para poder mobilizar o sistema é necessário ainda
interpretar aos instrumentos, os usos, as instituições, as
coisas, como possíveis e contingentes. É por isso que os
revolucionários armados de Israel, os Macabeus, que
lutavam contra o Império helenista no século II a.C., e os
cristãos oprimidos pela dominação imperial romana, na
palavra crítica de Tertuliano no segundo século d.C.,
propuseram a metafísica da criação como a condição teórica
da revolução. Sendo que tudo foi criado para o uso do
homem; nenhum sistema, instituição (menos ainda a
herança e a propriedade privada), uso de instrumento e
ainda nem a constituição real da coisa, é eterna, definitiva,
invariável. Os oprimidos em processo de libertação
formularam assim a metafísica da criação como a
arqueologia da revolução social, da libertação. Proudhon
chegou à conclusão de que o absoluto outro era a hipótese
necessária de todas as revoluções da história humana28.
Portanto, a afirmação do Absoluto Alterativo, criador de tudo o que existe,
por ser absoluto, exterior a todo sistema político possível, é a necessidade
primeira de qualquer revolução, de qualquer antítese. E como ficam as religiões ou
as ideias sobre este absoluto? Isso é problema da Teologia e não me atreverei
aqui a dizer nada sobre. Entretanto, filosóficamente, ao afirmarmos um absoluto
alterativo, afirmamos a alteridade como valor absoluto. O que queríamos
argumentar, até como possibilitar esta reflexão em português, era isso. Agora, ela
tem diversas implicações, que ficarão para outras oportunidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUSSEL, Enrique D. Las Metáforas teológicas de Marx. Edit.Verbo Divino, Navarra.
1993.
LEVINAS, EMMANUEL. Totalidade e Infinito. Edições 70, Lisboa. 1980.
ASSMANN, Hugo / HINKELAMMERT, Franz J. A Idolatria do Mercado. Ensaio
sobre Economia e Teologia. Vozes, São Paulo.1989.
MATOS, Hugo A. Uma Introdução à Filosofia da Libertação de Enrique Dussel. Trabalho
de Conclusão de Curso apresentado para a finalização do curso de graduação em Filosofia
na Universidade Metodista de São Paulo, 2008.
28
MATOS, 2008.
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