O “DIREITO DE MULHERES À EDUCAÇÃO” SOB AS PERSPECTIVAS DA
HISTÓRIA DE MALALA YOUSAFSAI E DAS HISTÓRIAS DE ESTUDANTES DO
6º ANO DE UMA ESCOLA PÚBLICA DE VITÓRIA-ES
José Raimundo Rodrigues1
Romeu Barbosa Pacha2
Rosa Maria P. S. Jacobosque3
RESUMO
A história de Malala Yousafsai aponta para a questão do direito educacional feminino e descortinou uma realidade mundial não tão conhecida da negação de acesso à educação para meninas em várias partes do mundo. Paradoxalmente, embora no Brasil, o direito esteja legalmente assegurado, as práticas sociais e familiares têm permitido, ao longo dos anos, que meninas sejam, pouco a pouco, excluídas da escola para se submeterem a tarefas cotidianas de apoio à família. A partir da narração da história de Malala Yousafsai para estudantes de uma escola pública de Vitória, buscou-se perceber suas compreensões sobre o direito de meninas estudarem e, cotidianamente, experimentarem por palavras e atos certo desestímulo a assumir tal direito. Aliado a essa questão percebeu-se também as motivações de tais estudantes para continuarem seus estudos, compreendendo tal etapa da vida não apenas como uma obrigação, mas sim como um vislumbrar de possibilidades para a realização de si e acolhida do que foi conquistado como direito por meio da luta de muitas mulheres e homens do passado, a ponto de configurar-se como direito social.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à educação; Feminino; Malala Yousafsai.
INTRODUÇÃO
Defensora dos direitos humanos e do direito à educação de crianças em todo o
mundo, em especial o acesso das meninas às escolas do Vale do Swat, sua região
natal, “Malala a menina que queria ir para escola” é uma ativista que sofreu um
atentado em outubro de 2012 no seu país de origem, o Paquistão. O grupo
extremista de terroristas Talibã que impedia meninas de ir a escola foi o responsável
1 Prefeitura Municipal de Vitória, [email protected]. 2 MULTIVIX – Vitória, [email protected]. 3 MULTIVIX – Vitória, [email protected].
pelo atentado. É a ganhadora mais jovem do Prêmio Nobel da Paz, por promover a
paz e por sua incansável luta pelos direitos humanos e de igualdade para meninas
em frequentar as escolas no seu país, direito este que era concedido apenas aos
meninos do Paquistão (CARRANCA, 2015).
“Direitos humanos” significam os direitos e liberdades básicas de todos os seres
humanos. É nessa perspectiva, não só de seu conceito, mas por ser essencial à vida
humana, uma expressão que será vista durante todo caminho desse trabalho. O ser
humano tem buscado notoriedade em sua individualidade, o que tem mobilizado nas
últimas décadas diversas lutas a seu favor, por parte não só dos grandes
representantes da sociedade e chefes de Estados, mas pelos próprios homens e
mulheres que têm lutado para se proteger, garantir e se inserir no contexto social de
direitos, e assim o fazendo promover outras lutas (HADDAD; GRACIANO, 2006) .
Em primeiro plano trataremos dos direitos do ser humano e sua universalização a
partir das declarações dos direitos humanos. O segundo momento tem o propósito
de uma reflexão dentro dos direitos humanos, a respeito da educação e dos direitos
educacionais femininos, de meninas brasileiras e paquistanesas. Buscou-se numa
perspectiva crítica de pluralidade trazer à tona as questões de gênero, quanto aos
direitos adquiridos e de alguma forma cerceado, e/ou violados em circunstâncias
distintas ou não, na área educacional. Aprofundando nossa visão pedagógica,
procura-se mostrar as mudanças que acontecem todos os dias nos espaços
escolares, revelando com clareza a real e efetiva necessidade de amparo aos
direitos femininos, através da educação, e assim tão somente, meninas/mulheres
poderão enfrentar todo e qualquer desafio.
DESENVOLVIMENTO
1 Os direitos humanos como uma construção contínua
A história de Malala Yosafzai é atual, mas se entrelaça à história da Declaração dos
Direitos Humanos, tema de discussão internacional que percorreu longo caminho,
até os dias de hoje. Com a conscientização dos países após o horror da devastação
deixada pela Segunda Guerra Mundial (1945), criou-se em 24 de outubro do mesmo
ano a Organização das Nações Unidas – ONU, simbolizando a necessidade de
estabelecer e manter um mundo de paz. A ONU reitera os direitos básicos, ao
proclamar os direitos fundamentais do homem, promovendo a paz, a democracia e
fortalecendo os direitos humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos em
1948, na Assembleia Geral das Nações Unidas, foi um marco na história da
humanidade. Posteriormente, foi ratificada na Declaração Universal de Direitos
Humanos de Viena, em 1993. Serão essas declarações que servirão de base de
construção de direitos mundialmente para o ser humano (TRINDADE, 2002).
Quanto aos direitos humanos, declara-se serem os direitos fundamentais e naturais
básicos de todos os seres humanos, assim como de ser livre, ter liberdade de
pensamento, de expressão, e igualdade perante a lei. Estes, portanto devem ser
reconhecidos e protegidos, já que estão Proclamados na Declaração Universal
dos Direitos Humanos, que é respeitada mundialmente.
A democracia define-se nos países que a tem como regime, como o governo em que
o povo exerce a soberania, assim um estado democrático de direito respeita os
direitos humanos universalizados como essencial à dignidade humana (VIEIRA,
2005). Compreender pequenas ou grandes violações que em dado momento
comprometem o direito do homem, limita o exercício da cidadania plena, fere a
garantia dos direitos, seja em qualquer instancia. É, portanto de fundamental
importância garantir aos que foi delegado o poder de decisão os devidos direitos
adquiridos. “Os direitos humanos são coisas desejáveis, isto é, fins que merecem ser
perseguidos, e de apesar de sua desejabilidade, não foram realmente ainda todos
eles (por toda parte e igual medida) reconhecidos” (BOBBIO, 1992, p.16).
Embora não tenham sido reconhecidos com igualdade por toda parte, os direitos
humanos são fundamentais para o ser humano em sua plena existência e formação
científica, política, ética e moral, cultural e artística e, portanto, e, portanto, deveriam
todos os olhares se direcionar primeiro ao indivíduo, enquanto sujeito de direitos, e
não para a sociedade (BOBBIO, 1992). O fato de manter o indivíduo e suas
necessidades no centro permite construir seu pleno desenvolvimento, ou seja, a
sociedade não deve ser priorizada ao indivíduo, promovendo uma inversão no
reconhecimento aos direitos. Somente assim, o homem se torna cidadão de uma
democracia, quando tem seus direitos fundamentais reconhecidos, garantidos e
protegidos e não somente justificados.
2 O direito à educação e o direito educacional de meninas
Discutir o acesso e permanência das meninas na escola e as diferenças e
semelhanças encontradas, tanto no ambiente educacional brasileiro, quanto do
Paquistão, nas escolas do Vale do Swat, significa trazer essas questões para o
centro das discussões sobre o direito a educação e a relação histórica das mesmas
com o espaço escolar. Entende-se que a educação negada, de forma velada ou
explícita às meninas, compromete um meio indispensável à aquisição plena dos
conhecimentos científicos e culturais, éticos e estéticos necessários a sua formação
de cidadãs pertencentes a uma democracia, que segundo Bobbio (1992) é a
sociedade dos cidadãos, e estes, somente assim se tornarão, se houver
reconhecimento em seus direitos.
Cabe então facultar educação a meninas, de tal maneira, que possam exercer todos
os direitos que lhe são constituídos, com igualdade, respeitando outro valor
fundamental que é a dignidade, sem sofrer nenhum tipo de constrangimento,
exclusão ou negação. A educação então, se consagra como um direito fundamental
da vida do ser humano e marca o pensamento das sociedades democráticas a partir
do nascimento dos Direitos Educacionais na constituição das Declarações
Internacional. Cabe então ressaltar mais uma vez o direito educacional das meninas
dentro dos direitos humanos, sob a perspectiva da violação dos direitos adquiridos e
consagrados.
Apesar do afirmado pela no artigo 26 da Declaração dos Direitos Humanos de que
“toda pessoa tem direito à educação” ainda percebemos pontos em que na prática
isso não se concretiza. Diz a Declaração:
A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória.
No que tange aos direitos humanos, pensa-se o direito à educação formal,
escolarizada e de qualidade. O certo, é que a educação está no topo, à frente de
toda humanidade como forma orientadora do conhecimento, e que a mesma é parte
integrante da vida em qualquer cultura, de qualquer cidadão. A educação anda lado
a lado com a possibilidade de acesso a outros direitos, não podendo ser
negligenciada, nem violada, nem desrespeitada.
Um olhar sobre o direito à educação no contexto brasileiro faz-se necessário. A
Constituição Federal de 1988, no seu artigo 205, afirma que:
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Apesar de assegurada na Carta Magna do país, a educação, historicamente, foi
privilégio de alguns grupos sociais. Apenas nos últimos anos tem-se lutado
efetivamente para que o direito seja praticado.
Visto o que diz a lei máxima do Brasil, e esta amparada no pilar central que é a
Declaração Universal dos direitos humanos, e, portanto guiará nossas ações, torna-
se essencial que os direitos nela proferidos se cumpram, por inteiro e não somente
quando de interesses oriundos a vontade do povo. A educação, por sua vez, como
direito estabelecido para o desenvolvimento da cidadania e preparação para vida,
merece estar fundada no princípio a liberdade de mulheres e homens que através
dela se tornaram preparados para o exercício da cidadania. Assim, a cooperação de
todas as camadas sociais deve cumprir o papel de incentivo e promoção da
educação.
Da mesma forma espera-se que em Leis como LDB 9.394/96 que no artigo 4º
discorre sobre o dever do Estado com a educação pública. Este só será efetivado
mediante a garantia do estabelecido em seus parágrafos, que logo no primeiro cita o
ensino fundamental como obrigatório e gratuito para todos que a ele não tiverem
acesso. Importa que não sejam violadas com descumprimentos, que por vezes
aparecem com justificativas que não se sustentam. Partindo do principio que a lei
está fundada, portanto cumprir deve ser natural, mas ao que parece, o
descumprimento da lei é tão sabido que dispara a necessidade de outros
documentos para garantir a sua concretização (SCHILLING, 2005).
Podemos considerar, pois, como democracia aquela educação que, fundada no
princípio da liberdade e do respeito ao valor e à dignidade da pessoa humana,
favorece a expressão da personalidade a todos, sem distinção de raça, classes ou
crenças e comporta um sistema com garantias para a livre escolha, pelo cidadão,
entre ideais, crenças e opiniões, como entre carreiras e atividades técnicas e
profissionais. A educação entende-se como único instrumento transformador para
uma sociedade. Se não totalmente justa, que seja igualitária no cumprimento dos
direitos coletivos.
A essência da história de Malala Yousafzai e seu desejo de ter seus direitos
respeitados nos faz perceber o número elevado de meninas que não têm direitos
assistidos no Brasil, apesar dos mesmos estarem garantidos e consolidados por lei.
Aponta também para o fato de que não existem as condições necessárias para uma
educação com equidade e igualdade de direitos e de qualidade.
Muitas meninas deixam o espaço escolar em função de outros fatores alheios à sua
própria vontade, ou ainda, faltando-lhes conhecimento dos próprios direitos, dado a
pouca idade, uma vez que são menores, e, ainda não dispõe do conhecimento
pleno, e/ou tão pouco enxergam os direitos como relevantes para seu futuro.
Caberia, portanto a seus tutores, família, sociedade governamental e civil, os
responsáveis a assegurar, proteger e garantir a eficácia da concretização desses
direitos, impedindo que sejam violados ou negligenciados dentro e fora do espaço
escolar. A educação por ser um dos direitos fundamental e instrumento efetivo de
inclusão, deve ser um requisito necessário à liberdade, já que garante que todos
deverão se alfabetizar, e uma vez detentores da leitura e da escrita tornam-se
conhecedores de outros direitos (ZINET, 2016).
3 A cultura de Malala
Nesse sentido buscamos enfatizar a história de MalalaYosafzai e das meninas do
Paquistão no que se refere à dignidade humana, um dos direito fundamentais que
tem sido violado como prática comum. Cabe relatar o reflexo dos conflitos políticos
na vida das meninas do Paquistão, um país em que são obrigadas a aceitar a
violação dos seus direitos consagrados, em face de conflitos étnicos e religiosos
ditados por um grupo extremista, o Talibã. Sob essa expressão se considera o
membro do movimento nacionalista islâmico que governou o Afeganistão entre 1996
a 2001. Tal movimento impôs suas próprias leis, com proibições, incluindo a
educação laica, o que afeta especialmente as educandas, sobre o pretexto de que a
educação é contrária ao Islã, religião dos povos mulçumanos (SCHAEFER, 2014).
Isso se tornou possível também em função de uma democracia fraca e lideranças
corruptas, que não se comprometem com o estabelecido na Declaração dos Direitos
Humanos.
Nos últimos dez anos, os talibãs destruíram mais de 750 escolas na região em que
Malala vive e cerca de 420 eram exclusivas para meninas (MAJEED, 2013),
deixando-as sem o acesso à escolaridade mínima necessária para diminuir a
desigualdade social. O Paquistão é um país que tem mais de um milhão de garotas
em idade escolar fora da escola, com cerca de três milhões de meninas com seu
direito à educação violada. Elas representam 56% das crianças fora da escola,
privadas de seu direito (SADA, 2015).
Segundo dados da Organização das Nações para a Educação, a Ciências e a
Cultura (UNESCO) de 2012, no relatório de monitoramento global de Educação para
Todos de 2015, consta que: “Eliminar as disparidades de gênero na educação
primária e secundária até 2005 e alcançar a igualdade de gênero na educação até
2015, com foco na garantia do acesso pleno e equitativo de meninas a uma
educação básica de boa qualidade”.
O que não foi alcançado devido o reflexo do baixo acesso à educação. O Paquistão
apresenta 6,7 milhões de jovens mulheres, entre 15 a 24 anos de idades,
analfabetas ou em condição de pouca escolaridade e somente 42% da população
das mulheres sabendo ler e escrever (SADA, 2015). O que culmina com mais uma
violação que é a de liberdade, pois as mulheres do Vale do Swat, nordeste do
Paquistão já vivem sobre regras muito rígidas: não podem sair sozinhas sem a
companhia de um homem da família; só podem sair cobertas com a burca e/ou do
shaw, véu longo, da cabeça aos pés, uma veste obrigatória ao sair na rua; e, mesmo
dentro de casa, meninas e mulheres usam o dupatta, outro tipo de véu, apenas para
cobrir os cabelos. Os véus cobrem também nessas meninas e mulheres, a vergonha
da desigualdade enfrentada pela violação aos seus direitos em especial o fato de
serem excluídas da educação, que junto traz todo tipo de sofrimento.
4 Percurso metodológico
Para tal, os aspectos metodológicos do trabalho foram construídos como pesquisa
de campo, qualitativa, utilizando de ferramentas didáticas e técnicas de pesquisa
para coleta e análise de dados. O local escolhido para o desenvolvimento da
pesquisa foi uma escola da Rede Pública de Vitória. A EMEF - Escola Municipal de
Ensino Fundamental fica situada num bairro estruturado da periferia no município de
Vitória no Espírito Santo. Uma escola de fácil acesso, com infraestrutura precária,
mas que conta com um quadro de professores qualificados e profissionais
administrativos capacitados para atender aos alunos. Assim, a realização deste
estudo teve como objeto de pesquisa os alunos desta escola por se tratar de uma
escola de área periférica com alto índice de violência e pouco envolvimento da
comunidade nas atividades da escola.
A realização da pesquisa foi possível pela cooperação dos alunos em participar das
atividades propostas realizadas no período de 10 de maio a 18 de junho de 2016. O
universo pesquisado foi de 59 alunos entre meninas e meninos das séries finais do
ensino fundamental, porém, somente as meninas que somaram 26 alunas,
participaram das entrevistas semiestruturadas. Este foi o instrumento utilizado na
pesquisa, visando amplitude nas percepções das meninas quanto seu acesso e
permanência no espaço escolar.
5 Análise de dados
Inicialmente, foi feita a narrativa da história de Malala e, procurava-se perceber,
principalmente, o comportamento das meninas durante a exposição e também em
todos os espaços da escola. Acreditava-se, inicialmente, que diante da narrativa dos
desafios enfrentados por Malala por defender o acesso de meninas à educação, as
meninas da periferia de Vitória-ES refletiriam sobre o acesso e permanência delas
na escola. Logo nas primeiras observações ficaram claras as questões de
indisciplina e a falta de interesse, quando o assunto é educação. Ainda na
apresentação da história de Malala, enquanto meninos ouviam atentamente,
meninas se ocupavam de brincadeiras, cochichos e conversas paralelas, sendo
necessárias diversas intervenções, inclusive dos professores que acompanharam a
turma. Observou-se ainda que somente os meninos levantaram as mãos, não
contendo a curiosidade até término da apresentação, fazendo perguntas, enquanto
meninas continuavam dispersas (Diário de Campo, 2016).
O momento preciso da atenção das meninas se deu quando foi narrada a parte em
que meninas paquistanesas só podiam sair às ruas acompanhadas dos homens da
família. A partir desse ponto foi possível maior interação com as meninas. Nesse
sentido fica claro o valor da liberdade, e, percebe-se a indignação quanto à violação
dos direito das meninas paquistanesas. Outro ponto alto foi o atentado sofrido por
Malala. Ao verem as fotos, fez-se silêncio total e as caras desinteressadas cederam
lugar aos rostinhos de espanto, marcando o medo, talvez, evidenciando a violência
cotidiana (Diário de Campo, 2016).
Ao abrir para perguntas, dado o perfil dos sujeitos, alunas, entende-se a falta de
importância dada à história de Malala, a menina que queria ir a escola, que não teve
nenhuma chance. O interesse que aparece está ligado à questão da erotização. No
fundo do auditório uma mãozinha tímida, e esta era feminina, entre risos, pequenos
empurrões e frases como “não, é ela!” e “fala você”, surgem as perguntas: “É
verdade que elas não namoram?”; “Elas não beijam? Nem dão um selinho?”; “Elas
então não fazem sexo?”; “Porque elas não fogem dos pais para namorar?”; “O que
acontece se elas dão o ‘ninja’ nos homens que vão vigiar elas na rua?”; “Será que
ela (Malala) levou tiro por causa de outras coisas?”; “Que menina burra! Era melhor
ficar em casa do que ir para escola!”; “Como elas se divertem?” (Diário de Campo,
2016).
Com a finalidade de facilitar a identificação dos estudantes pela pesquisadora, foi
solicitado que confeccionassem crachás. Nas atividades concretas de confecção do
crachá que os representassem, os alunos receberam materiais diversos em que
podiam usar e abusar da criatividade, como jornais e revistas, algumas de moda. As
meninas disputaram ferrenhamente tais revistas de moda, pois algumas eram
internacionais, dispensando qualquer outro material. Cabe destacar que a turma é
composta em sua grande maioria por alunos de cor negra, ou ainda de pele clara,
mas cabelos crespos. Entretanto, o resultado foram crachás com fotos de artistas e
modelos, com estereótipo de mulheres loiras, altas e, consideradas pelos padrões
de beleza branco, “lindas”. Isso revela escolha das meninas, pois nas revistas havia
diversas fotos de modelos negras e outras fotos de personalidades ou anônimas
também negras. Além de que nos jornais apareciam pessoas com o biotipo similar
ao das alunas. Gonçalves e Martinez comentam acerta do padrão de beleza que “a
existência desse ideal de beleza, criado e socialmente compartilhado, é uma
pressão significativa para a população em geral e especificamente para o
adolescente que está em fase de integração da imagem corporal” (2014, p. 140).
Já os meninos, de forma semelhante, colavam fotos de grandes jogadores de
futebol, nacionais e internacionais, todos com seus nomes destacados. O contraste
entre a figura do crachá e a pessoa que o portava se evidenciava e havia sempre
sorrisos ao se olhar para o “cara-crachá”. Percebeu-se um nível de idealização e de
baixa autoestima. A idealização sugere certo desejo de fuga da realidade. A baixa
autoestima revela muito da condição de vida de alunos de periferia.
Foi sugerido aos estudantes escrever a sua história de vida. Apesar de resistências
iniciais, os alunos assumiram a proposta e produziram textos. Na leitura das histórias
da vida dos alunos, nos diálogos e apresentação, pode-se verificar, que em quase
todos, havia histórico de violência familiar: irmãos, pai, mãe, primos e namorados,
assassinados, ou se encontram presos, e todos recentes a esta pesquisa (Diário de
Campo, 2016). Outro fato que chama atenção são meninas que namoram pessoas
envolvidas com o tráfico, com ou sem o consentimento dos pais. Quase todas essas
meninas são filhas de pais separados. Pelo menos duas das meninas relataram
estar apaixonadas por homens maiores de idade, a quem chamam de namorados e
que se encontram presos. Nas narrativas apareceu também uma menção a tentativa
de suicídio e dois abortos, um espontâneo e outro induzido. Tal questão merece
destaque pela idade das alunas entre 10 e 14 anos. Novamente nessa atividade a
escola e a educação não aparecem, e quando são mencionadas é algo manifesto
com discrição ou como mera referência a outra temática.
Em outro momento da pesquisa foi solicitada a escrita de um outro texto, de caráter
projecional. Na atividade de escrita de texto sobre perspectivas para o futuro,
realizada a partir do tema “Se eu fosse...”, pode se verificar o desejo oposto ao
cotidiano apresentado nas histórias de vida. Todas as meninas mencionaram o
desejo de serem modelos, atrizes, MC’S, que se casariam com ídolos famosos,
seriam ricas, fariam compras fora do país, morariam em mansões luxuosas. Apenas
três alunas, colocaram como suas segundas opções para o futuro ser professora,
média e advogada. Os meninos, exceto por um que manifestou desejo de ser policial
e outro que afirmou desejar ser “marginal”, escreveram que gostarial de ser
jogadores de futebol. Uma das meninas, durante a partilha dos textos, mencionou
que gostaria de ser a “mulher dele” e apontou para o aluno que disse desejar ser
“marginal” (Diário de Campo, 2016).
Recorde-se que as crianças e os adolescentes de periferia experimentam a vida
com um ritmo bastante acelerado e a própria experiência da morte precoce de
familiares sugere que não se pode fazer grandes expectativas em relação ao tempo
futuro. Tudo é muito imediato, por isso também não se contempla a necessidade do
estudo para se atingir as carreiras almejadas. Parece existir um vácuo entre a
realidade de hoje e aquilo que desejam para o futuro e tal vácuo, em hipótese
alguma, seria preenchido pela educação. Novamente, se percebeu que a narrativa
de Malala não produzia neles o efeito esperado, demonstrando o quanto a realidade
concreta dá os contornos da pesquisa. “Digo: o real não está na saída nem na
chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1994, p.86).
Tanto meninas quanto meninos mencionaram que dariam grandes festas, que
durariam até três dias, regadas a muitas bebidas alcoólicas, mencionando uma série
de marcas e tipos de bebidas consideradas caras. Apesar de todo o glamour
sonhado, nas narrativas aparece o desejo de se ajudar a família e alguns vizinhos.
Surpreendentemente, menciona-se o desejo de ajudar a escola, construindo uma
“super quadra” e comprando comida de melhor qualidade, especificam o tipo e
mencionam marcas, para ser utilizada na merenda dos alunos. Houve ainda a
manifestação do desejo de explodir todas as escolas e decaptar os professores
(Diário de Campo, 2016).
Considerando a clara manifestação do apreço pelo mundo artístico manifestado
pelos estudantes, foi feita uma mudança no projeto inicial de pesquisa e foi ofertada
aos alunos uma palestra sobre arte por uma artista capixaba que é produtora de
eventos e atriz. Desejava-se novamente com tal palestra focar a questão da
educação e do seu valor, principalmente, para as meninas. A palestrante elencou
pontos como o estudo e disciplina, primordiais para se tornar um artista, e que leitura
e escrita são instrumentos necessários para decorar os textos, saber conviver com
as pessoas, mover-se no mundo, adentrar nos diversos universos, tantos reais
quanto imaginários.
Entretanto, o interesse toma outro caminho que não o da educação. Os estudantes
interessaram-se pela questão da mídia, fator financeiro, rapidez de riqueza e, mais
uma vez, a beleza ocupa o lugar principal. Todos os alunos interagem e participam
com muita desevoltura, fazendo perguntas. Percebeu-se que tal encontro entre os
estudantes e a artista capixaba significou para a turma uma mediação entre o
mundo real e o mundo de sonhos que os estudantes têm como perspectiva de
futuro. As surpresas não param, Malala que estava esquecida retoma lugar na
conversa, mas a lembrança foi apenas de que Malala ficou famosa por não ir a
escola. A interpretação equivocada, mereceu um bom tempo de explicação e deixou
claro mais uma vez a falta de interesse dos pesquisados em relação ao espaço
escolar (Diário de Campo, 2016).
Ao se propôr o improviso de uma cena, partindo dos elementos/objetos dispostos
pelo chão do auditório, os alunos mostraram a influência do seu cotidiano marcado
fortemente pelas questões de violência doméstica, alcoolismo, uso de drogas,
liberdade cerceada, desrespeito à mulher, representação da mulher como provedora
da família, contexto de separação de casais com eventual desprovidmento dos
filhos, e, novamente, o desejo pelo ideal de beleza. E, mais uma vez, os objetos em
cena associados ao mundo dos estudos e à educação foram utilizados para outras
coisas, sem nenhuma referência ao valor ou função da educação e estudo em suas
vidas. A vida é experimentada tendo a escola tão somente como espaço para
convivência e não para se gozar o direito à educação como porta de acesso aos
demais direitos.
Com base nas respostas das outras atividades, mediado pela pesquisadora, os
alunos puderam pontuar, por meio de dinâminca de grupo, o possível encontro entre
Malala e realidade deles aqui na periferia de Vitória-ES, fazendo um paralelo entre
diferenças e semelhanças com os tipos de educação, as possibilidades de acesso,
as liberdasdes asseguradas, o respeito para com crianças e adolescentes. A maioria
dos pesquisados ressaltou que não gosta da escola ou de estudar. Sentem-se
obrigados a ir para a escola. Por isso, qualquer motivo é suficiente para estar fora do
espaço escolar como, por exemplos, ficar com a avó ou acompanhá-la ao médico;
ficar com irmãos menores; afazeres domésticos; cansaço e sono. Os que
manifestaram gostar de ir para escola, afirmaram que o fazem apenas como lazer
(Diário de Campo, 2016).
Os alunos consideraram e reconheceram semelhanças entre o tráfico, e sua
organização na periferia, e o talibã. Perceberam que a liberdade é cerceada e
deixaram entrever desejo de novas possibilidades em relação à violência para
ambas as realidades. A submissão feminina, embora não a reconheçam de forma
verbalizada, pode ser também percebida e similar ao Vale do swat, onde meninas
estão refém de namorados, padastros ou pais que, de alguma forma, as mantém
sobre seu poder.
Ao longo de toda a pesquisa, ficou evidente a vulnerabilidade das meninas. Em
vários momentos eram abordadas de forma descortês, quase desrespeitosa pelos
meninos. Gestos e palavras dos meninos evidenciaram uma percepção do feminino
como objeto de satisfação de desejo, mas não como uma pessoa a ser respeitada. A
agressividade dos meninos para com as meninas acenava para a questão questão d
direito à liberdade, de poder transitar nos espaços quaisquer que sejam sem ser
incomodadas de forma constrangedora e sem serem vistas como possível objeto de
posse (Diário de Campo, 2016). As entrevistas semiestruturadas realizadas com as
alunas evidenciaram uma grande necessidade delas de serem ouvidas e poder
compartilhar as dificuldades que experimentam. Pode-se dizer que se evidenciava
um desejo de “colo”, de acolhida e proteção. Nesses diálogos, cuja confidencialidade
assegurava a liberdade de expressão, as alunas mais uma vez demonstraram não
acreditar que o estudo ou a educação serão instrumentos transformadores em suas
vidas.
As situações do Paquistão e do Brasil demonstram que, apesar do direito ser aqui
garantido, o que estão em jogo não é o poder de cuidar para assegurar ao outro
qualidade e dignidade de vida, mas o poder de domínio que nega ao outro os seus
direitos (BOBBIO, 1992). Destaca-se ainda, a violência verbal e gestual praticada
pelas meninas. O espaço de direito para prover o conhecimento acaba sendo
minimizado pela falta de interesse. Este talvez seja o maior desafio da educação e
um alerta aos direitos.
CONSIDERAÇOES FINAIS
O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise de como as
questões femininas e seu direito educacional têm sido tratados em documentos
estabelecidos com solenes declarações, e dentro do espaço escolar. A partir da
narrativa da história de Malala Yosafzai, que foi o fio condutor da conversa sobre os
direitos foi possível avaliar como a “menina que desejava ir para a escola” pode
influenciar ou não a vida escolar e social das meninas da periferia de Vitória-ES.
De um modo geral, as alunas demonstraram total falta de interesse pelo ambiente
escolar, não conferindo ao espaço o respeito devido, compreendendo-o apenas
como um local de frequência obrigatória. Entretanto, esta frequência nem sempre
acontece diariamente, como deveria. O direito à educação é negligenciado por
vários fatores.
Motivos não faltam, desde os mais sérios aos sem nenhuma relevância. As meninas
buscam meios, o tempo inteiro, para ficar fora das atividades escolares, inclusive,
agindo estrategicamente com grande cumplicidade entre elas para driblar
professores e outros profissionais da escola. Estimular essas alunas talvez seja o
mais díficil e dasafiador, uma vez, que os próprios professores não se sentem
estimulados a fazê-lo e se evidenciou pelas narrativas de história de vida que não há
apoio da família. Some-se a isso, como mais um ingrediente para caos social, o fato
de serem meninas que estão muito próximas do envolvimento com o tráfico de
drogas ou já envolvidas com ele. Enquanto Malala quer a escola, nossas alunas
não querem estudar. A compreensão de Malala sobre a educação não é
compartilhada pelas nossas alunas e há, para elas, outros interesses mais imediatos
que não passam pelo longo caminho da educação escolar.
Entende-se a importância e relevância dessa pesquisa para a reflexão sobre o
direito à educação por parte das meninas, considerando-o no conjunto maior dos
direitos humanos e da implementação de novas politicas públicas que possam
atingir a todos, em todas as dimensões. Embora haja muitos esforços nesse sentido,
a falta de garantia dos direitos evidencia-se de forma gritante e as crianças com
risco de vulnerabilidade são as mais atingidas, pois mesmo dentro do espaço
escolar continuam sem aprender. O sistema se retroalimenta... Continuam sem
aprender e, por isso, não acessam outros direitos... A quem isso interessa??? O fato
de o Estado oferecer base para educação, não garante os direitos aos cidadãos e
nem assegura o conhecimento pleno. Como tornar a escola e a educação atraentes
para aqueles a quem ela, a educação, já é um direito adquirido? De que basta ter o
direito se se permite que ele seja negado ou violado das mais diversas formas?
Nesse sentido, o processso de acesso e permanência, não somente de meninas nas
escolas da rede pública, passa por maiores estudos que viabilizem não só o
cumprimento das leis escolares, mas que observem o cotidiano desses alunos para
entender as reais razões de estarem fora da escola. Eles ainda têm sonhos, há
beleza em suas vidas, apesar de todos os contratempos experimentados. Os alunos
são omissos? Não arriscaria responder afirmativamente... Talvez estejam
desamparados, inclusive na compreensão do direito à educação. Omissos somos
todos nós enquanto não voltarmos o olhar para nossas crianças e adolescentes e
escutarmos, com um frio gélido e desafiador na barriga, com um nó cortante em
seco na garganta, as suas histórias de vida. O caminho revela-se longo e bastante
acidentado...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS4
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4 Apesar da norma acadêmica sugerir referenciar os autores e autoras pelo sobrenome e com os prenomes apenas assinalados pelas iniciais, optou-se por evidenciar os nomes das autoras que contribuíram para a execução deste trabalho.
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