O ENSINO DE FILOSOFIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA
POEacuteTICA
Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira
Rio de Janeiro
Outubro de 2017
O ENSINO DE FILOSOFIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA POEacuteTICA
Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal
de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca
CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre
Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto
Rio de Janeiro
Outubro de 2017
DEDICATOacuteRIA
Agrave memoacuteria parte viva da tradiccedilatildeo de Maria da Guia
Motta de Oliveira Aladino Alexandrino da
Purificaccedilatildeo Antonio Borges de Oliveira e Ana Maria
Borges de Oliveira avoacutes maternos e paternos
respectivamente
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a todos por terem vindo agradeccedilo agravequeles que natildeo puderam mas
gostariam de ter vindo e agradeccedilo por isto aqui minha Dissertaccedilatildeo Agradecer por uma
obra sua parece estranho e ao mesmo tempo natildeo digo isso soacute por educaccedilatildeo claro
tambeacutem por educaccedilatildeo por gentileza em reconhecer o delicado gesto do deslocamento e
da disponibilidade de tempo que me concedem Mas principalmente pelo fato de
enxergar neste trabalho vaacuterias vozes vaacuterias matildeos e uma assinatura apenas que natildeo daacute
conta da magnitude das contribuiccedilotildees em sua na confecccedilatildeo
Para quem eacute daacute aacuterea quase como um bordatildeo eacute comum ouvirmos agradecer eacute
pensar (HEIDEGGER 1977b paacuteg 330) Por que isso Qual a semelhanccedila entre os dois
verbos No caso o autor tinha sido homenageado com o tiacutetulo de cidadatildeo honoraacuteria de
sua cidade natal Aqui vocecircs me homenageiam assistindo agrave Defesa que haacute de conceder-
me o tiacutetulo de Mestre reafirmando o lugar no qual jaacute me encontro e moro haacute tempos
O que faccedilo natildeo eacute senatildeo reconhecer a minha e a nossa parte algo que natildeo acontece
automaticamente que natildeo cai na leviandade das palavras apressadas na correria que mal
tem tempo para os amigos e o pensamento O que faccedilo eacute pensar com e para vocecircs o
movimento de gratidatildeo doaccedilatildeo e gratuidade de parar e atentar e ousar dizer sem exigir
uma troca mas recebendo os frutos do empenho como quem aceita das matildeos familiares
um presente inesperado
Entre agradecer e pensar em portuguecircs carece o gracejo da semelhanccedila musical
do alematildeo Sim o alematildeo tem sua graccedila tambeacutem As palavras danken e denken significam
respectivamente agradecer e pensar mas por outro lado falta nelas o desafio o esforccedilo
de ligar esses dois sentidos aparentemente distantes Agradecemos o bom dia o aceno de
matildeo aquele ou este obseacutequio ao mesmo tempo em que somos capazes de esquecer o
porquecirc disso tudo E por vezes calamos e estamos profundamente gratos
Dizemos que pensamos nisso ou naquilo pensamos quando achamos que vamos
sair mais agrave tarde sem contar com a chuva Pensamos quando lembramos da tarefa de casa
tal estante a pregar tal moacutevel a mudar de lugar Pensamos quando calculamos as contas
que faltam pagar e quando raciocinamos que uma escola distante do lar pode ser a melhor
opccedilatildeo para nossos filhos Pensamos e somos capazes de nos esquecer no processo
acabamos pensando sempre para fora a resolver a supor mas nunca ou raras vezes a ser
e saber o que somos e o que nos motiva a continuar a pensar Isso porque
corriqueiramente pensamos sem agradecer e agradecemos sem pensar Quero natildeo faltar
com essa moeda a vocecircs com essa dupla face que se desdobra e se encara Moeda
amassada e dobrada sem valor no mercado mas muito importante para o mercado para
os homens para a cultura pensamento e agradecimento
Como eu havia dito esta tambeacutem eacute minha cidade meu lugar de conforto meu lar
e minhas ideias Vocecircs satildeo desde antes da escrita uma disposiccedilatildeo para pensar e um
pensamento disposto a agradecer o que muda depois da escrita Nada e tudo Hoje se
encerra um ciclo poreacutem ciacuterculo que eacute ciacuterculo nunca acaba Ele gira ele roda enquanto o
centro permanece e possibilita a circulaccedilatildeo assim como a circulaccedilatildeo daacute sentido ao centro
irradiador
O Misteacuterio mora
Girando na roda o homem danccedila e ignora
Mas o Misteacuterio mora no meio e memora (FROST 1942 paacuteg 71 ndash traduccedilatildeo
de Andreacute Borges e Thayrine Kleinsorgen)1
Ainda assim alguns talvez natildeo conheccedilam do que trata o mutiratildeo que conduziu ateacute
a Dissertaccedilatildeo Eis o percurso tradiccedilatildeo filosofia e linguagem Disso meu trabalho fala a
respeito A parte de vocecircs Bem vocecircs satildeo a tradiccedilatildeo que quer se perpetuar e o ensino
que se esforccedila para que isso aconteccedila Satildeo a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo e sua mensagem dando
possibilidade para a criaccedilatildeo de novas coisas novas operaccedilotildees novas dissertaccedilotildees
Enquanto processava essas informaccedilotildees fiz um percurso ateacute meus 20 anos para o
iniacutecio da faculdade de Letras continuei ateacute os 18 ainda na faculdade de Filosofia e natildeo
parei esbarrando em Platatildeo e em sua filosofia que convenhamos eacute ainda a nossa
filosofia Eacute e natildeo eacute De Platatildeo a Heraacuteclito dei a volta para chegar agrave poesia ao dizer poeacutetico
a uma poeacutetica que natildeo eacute papo de quem nunca trabalhou de verdade mas de quem trabalha
com a verdade em sua multiplicidade e concretude
Vocecircs estavam juntos sem o saber ou sabendo Foi uma conversa aqui uma ajuda
com uma traduccedilatildeo ali muitas negativas e ausecircncias Cada pedaccedilo de texto eacute um bordado
a vaacuterias matildeos um diaacutelogo cujas vozes eu ouvia e caacute estou a dividir com vocecircs minha
esquizofrenia salutar A sauacutede convulsionante desses uacuteltimos tempos deixa uma
1 The Secret sits We dance round in a ring and suppose But the Secret sits in the middle and knows
significante marca a ferro na histoacuteria da minha vida de modo que natildeo seria possiacutevel nem
que eu quisesse nem que eu fosse desonesto comigo mesmo prosseguir sem que se
tornasse notaacutevel a boiada agrave qual faccedilo parte
Pensa quem agradece logo porque agradeccedilo penso A travessia que fiz e faccedilo eacute
nossa e minha Ela eacute sempre de dois dois extremos duas margens Atravessar por outro
lado eacute algo solitariamente proacuteprio Ningueacutem pode atravessar por mim Podem sim me
ensinar podem me carregar mas quem atravessa sou eu Eu atravesso e sou atravessado
pela travessia que satildeo duas que somos noacutes e em alguma medida nenhum de noacutes A
terceira margem de um extremo eacute o local ao qual natildeo temos acesso mas fazemos parte
sem saber sem querer sem buscar Acham mesmo que eu esperava fazer o que fiz
Acham mesmo que algueacutem faz exatamente o que planejou O ponto de chegada nunca eacute
aquele da partida
A terceira margem embora natildeo exista como um local fiacutesico eacute de uma
espacialidade presente esse lugar que estamos quase chegando poreacutem nunca aportamos
de fato Sabe quando terminamos algo mas na verdade sabemos que daria para fazer
mais alguma coisinha mais uma pincelada de tinta mais uma frase soacute um minutinho a
mais Isso eacute porque sempre haacute o que fazer sempre haacute aonde chegar Esta Dissertaccedilatildeo natildeo
eacute um comeccedilo natildeo eacute certamente um fim ela eacute um encaminhamento uma possibilidade
ela estaacute sendo feita ainda e jaacute foi concluiacuteda tempos atraacutes em certo sentido
Ela existe para mim e independente de mim um convite a vocecircs e inegavelmente
um convite a mim Se eu agora a relesse toda faria outra Dissertaccedilatildeo completamente
diferente Natildeo por discordacircncia mas porque depois dela depois de vocecircs depois de tudo
que nos atravessa jamais daria para repetir e concordar em absoluto com o que estaacute aqui
Mesmo assim talvez ateacute pelo carinho que tenha pelos presentes foi um enorme prazer
escrever
Prazer e dor Nunca foi tatildeo difiacutecil olhar no espelho Como quem envelhece dez
anos em dez meses como uma necessidade boa mas um fardo obrigatoacuterio escrever eacute ter
de lidar com todos nossos monstros e heroacuteis Algo do medo das primeiras vezes sabe-
se laacute o que pode acontecer Aquela primeira vez que andamos sem nossos pais na rua
quando a responsabilidade precisa ser assumida ainda que seja para comprar algumas
balas Em cada decisatildeo uma monstruosidade estaacute agrave espreita e temos medo
Nas histoacuterias em quadrinhos em geral aparecem os heroacuteis que salvam o dia Na
histoacuteria contada nestas paacuteginas dissertativas heroacutei e monstro salvam-se um ao outro
Afinal haacute alguma proximidade entre eles Ambos desafiam os limites estabelecidos por
isso tecircm de lidar com a criaccedilatildeo esse mundo desbravado e com a tradiccedilatildeo aquilo a ser
testado ao extremo Monstro e heroacutei satildeo aspectos diferentes da mesma dobradura de
paacutegina O que seria do Superman sem o Lex Lutor para que aquele pudesse ser super O
que seria do inimigo sem o guerreiro para fazer frente Teriacuteamos que aceitaacute-lo passivos
passividade terminal doenccedila Natildeo o caminho proposto traz agrave tona toda a tensatildeo que
qualquer boa conversa deve ter duas vozes que se completam em uma
Nesse sentido heroacutei eacute soacute um desdobramento nosso Assim como o monstro
Aquilo que talvez ainda natildeo sejamos mais almejamos e repudiamos Aquela presenccedila
que nos incomoda e nos mostra tudo o que somos e podemos ser Cada um de vocecircs que
compotildee minha escrita forccedilou-me agrave beira do que sou tanto que esgarcei e estou tranquilo
Fiz o que pude agrave luz de tatildeo heroica e monstruosa visatildeo
Com o intuito de dar um exemplo vivo do que falo trago uma anedota Numa
mesa de restaurante certa vez falava e ouvia com um amigo Ele relatava sua histoacuteria e as
personagens principais nela Ora tinham vilotildees e mocinhos ora as mesmas figuras
desempenhavam papeis diferentes hoje elas permaneceram fazendo dele o que ele ainda
eacute Pude assistir a tudo e refletir quais seriam meus protagonistas O tempo trouxe alguns
rostos agrave memoacuteria outros ficaram esquecidos Suas influecircncias nem sempre seratildeo
lembradas por mim mas nem por isso elas deixaratildeo de estar presentes Natildeo paro de
aprender com meus mestres sem nome e aos que tenho como nomear tento deixar
subentendido para natildeo deixaacute-los vaidosos e envergonhados Silenciosamente contorno a
gigantesca daacutediva a enorme diacutevida cuidando para natildeo tropeccedilar nas palavras gratuitas e
nos elogios vazios Busco a homenagem precisa meliacuteflua e perspicaz sem a
obrigatoriedade de deixar claros os rastros da minha monumental gratidatildeo Ao misteacuterio
fique relegada toda a verdade De modo sorrateiro deixo duas pegadas para cada passo
reverberando feito corajosa lira os sons delicados de gatos no jardim entre assumpta
figueira e oliveiras ao largo da almeida do barco do desbravador
Tive sorte e por isso agradeccedilo Fui afortunado por compartilhar meus
pensamentos Aquele menino que viu o Peleacute jamais jogaraacute bola do mesmo jeito
Lembram-se quando ainda estavam inseguros ou quando acreditavam jaacute saber fazer algo
e viram um grande mestre reinventar a roda Seja vendo sua avoacute cozinhar sua matildee trocar
a frauda de seu receacutem-nascido ou soacute um amigo mais velho a dividir suas histoacuterias
heroicamente o diaacutelogo se estabelece e vocecirc acaba de ser atravessado por ele Soacute resta
reaprender a viver depois disso Obrigado
Dedico este texto em profundo agradecimento aos seguintes nomes presentes na
minha Defesa
Adriano Furtado Hugo Afonso Correia de Almeida
Alice Bentzen Assumpccedilatildeo Isabella Daemon
Amanda Falconi Jessica Natarelli
Ana Cristina Gelape Julia Hortecircncia Carvalho Nascimento
Antonio Jardim Maria Lucia de Oliveira da Purificaccedilatildeo Marinho Pereira
Baacuterbara Martins Pedro Trajano Cardoso
Caio Cruz Priscila Loureiro
Denilson Marinho Pereira Rafael Barbosa
Diogo Santos Rodrigo Marques de Carvalho
Eduardo Gatto Thayrine Kleinsorgen de Almeida Cruz
Felipe Forain Marques Viniacutecius de Figueiredo Barbosa
Giovanna Giffoni
E agraves presenccedilas ausentes que contribuiacuteram para este trabalho
Allan Charles Marcus Caetano
Andreacute Viniacutecius Lira Costa Marcus Erbas
Andreacuteia Pedroso Mariana Borges de Oliveira
Carla Rodriguez Mariana Rodrigues
Daniel Forain Nicole de Oliveira
Edna Oliacutempia Patriacutecia Trajano Cardoso
Edson de Almeida Ramos Rafael Lemos
Felipe Copque Rodrigo Wentzel
Fernanda Fonseca Silvia Herkenhoff Carijoacute
Fernando Sampaio Taynaacute Rosa
Flaacutevio Chame Thiago Pereira
Gabriel Torres Vanise Dutra
Gabriela Borges de Oliveira Walter Kohan
Guiomar Borges Yasmin Motta
Ivana Machado Demais profissionais que me auxiliaram
Liacutevia Egger Demais professores que me formaram
Luiacutes Antocircnio Borges de Oliveira Demais amigos que me constituiacuteram
Manuel Antocircnio de Castro Demais familiares que me possibilitaram
EPIacuteGRAFE
Aacutervore genealoacutegica
A mais frondosa aacutervore da cidade
Eacute a aacutervore que jaz no cemiteacuterio
Seu viccedilo traz de longe uma saudade
Que a bruma envolve toda em misteacuterio
A seiva lembra sangue escurecido
Sangue que me sangra jaacute esquecido
Do pai do pai do pai (um fruto antigo)
Que crava suas raiacutezes laacute em Vigo
Comer a carne doce recolhida nesse horto
Eacute devorar um violado corpo (morto morto morto)
Que restou de um ancestral
Thayrine Kleinsorgen
RESUMO
O ensino de filosofia a partir de uma perspectiva poeacutetica
Questionamento acerca da concepccedilatildeo de filosofia que resgate sua afinidade
originaacuteria com a poesia a fim de que se compunha um ensino galgado na criaccedilatildeo ao inveacutes
da reproduccedilatildeo Por ser uma disciplina estigmatizada de obscura de inuacutetil e de pouco
importante numa compreensatildeo praacutetica e objetiva natildeo eacute de se espantar que isso influencie
diretamente seu ensino logo conveacutem se perguntar sobre nossa ideia de tradiccedilatildeo e
consequentemente da possibilidade ou natildeo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo pelo ensino
Naturalmente que a proacutepria tradiccedilatildeo da filosofia natildeo poderia ser deixada de lado Aleacutem
do mais eacute possiacutevel constatar que parte do caraacuteter segregante com a qual a filosofia eacute
relacionada tem um fundamento em sua histoacuteria com a separaccedilatildeo do poeta e da cidade e
da realidade sensiacutevel e inteligiacutevel Portanto recriar a ponte partida entre pensamento e
poesia significa tanto ousar uma nova postura diante da realidade quanto retomar sentidos
adormecidos na linguagem cotidiana Por fim fica patente que determinadas amarras
estatildeo presas demais para abrirmos matildeo mas outras nem tanto e ambas fazem parte do
que nos constitui Ou seja aceitar nossos limites enquanto o que nos fundamenta e daacute
sentido e natildeo apenas um cerceamento mas uma resposta que tanto define algo quanto
recoloca a questatildeo fundadora numa perspectiva singular torna-se postura essencial para
uma poeacutetico-filosofia
Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem
ABSTRACT
The teaching of philosophy from a poetic perspective
Questioning about the conception of philosophy that rescues its original affinity
with poetry in order to teach based in creation rather than reproduction Because it is a
discipline that is stigmatized as obscure useless and unimportant in a practical and
objective understanding itrsquos not surprising that this directly influences its teaching so
one has to ask about our idea of tradition and consequently the possibility of
transmission of tradition through teaching Of course the very tradition of philosophy
could not be left aside Moreover it can be seen that part of the segregating character
which philosophy is related has a foundation in its history with the separation of the poet
and the city and the sensible and intelligible reality Therefore re-creating the bridge
between thought and poetry means both to dare a new attitude towards reality and to
return to the dormant senses in everyday language Finally it becomes clear that certain
moorings are too fastened to give up but others not so much and both are part of what
constitutes us That is to accept our limits as what gives us meaning and not only a
restriction but an answer that both defines something and replaces the founding question
in a singular perspective becomes an essential posture for a poetic-philosophy
Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
Figura 1 ndash As quatro influecircncias 75
Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna 77
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 15 1 Pensando a Educaccedilatildeo 20 11 O ensino decide por dizer 20 111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc 22
112 Um saber que rasga 26 113 Natildeo ensinar e a ciecircncia 33 114 O jogo do poeta e da infacircncia 38 12 A tradiccedilatildeo 40 121 Quando o poeacutetico repousa esquecido 42
122 A ideia e o ser 43
123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo 46
124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo 49 125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo 52 126 Os mutirotildees do homem 55 2 Pensando a Filosofia 57
21 A filosofia como resposta 57 22 Filosofia inteligecircncia e entendimento 60
221 Ciecircncia e intelecto 72 23 Crenccedila e conjectura 73 24 Filosofia e opiniatildeo 80
25 Diaacutelogo e filosofia 85 3 Pensando a Linguagem 96
31 Linguagem e limite 101
32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem 106
33 O limite da resposta 110 34 A resposta do limite 115 35 Dois lados da mesma moeda 118 351 A resposta que natildeo soluciona 118
352 Temor sagrado 121 353 O que responde o sagrado 125 Consideraccedilotildees Finais 131 Referecircncias 137 Apecircndice 150
15
Introduccedilatildeo
Pensar uma educaccedilatildeo para aleacutem do controle eacute um desafio Os perigos satildeo os mais
diversos pois somos criados na mesma tradiccedilatildeo que agora pretendemos criticar
Diferente de outros temas ndash mais abstratos ou distantes historicamente ndash este apresenta
claro como o sol nossa relaccedilatildeo intriacutenseca com ele Somos filhos netos e pais de um
modelo educacional que compreende como fundamental a transmissatildeo de um
conhecimento das antigas para as novas geraccedilotildees
E qual natildeo seria o papel da educaccedilatildeo senatildeo este o de transmitir saberes valores
o de fornecer proteccedilatildeo e preparaccedilatildeo para uma realidade cada vez mais exigente e
competitiva A responsabilidade que a sociedade coloca e cobra da escola e
consequentemente dos professores se justifica por essas mesmas razotildees Por que entatildeo
natildeo seria um desserviccedilo questionar esse esquema que legitima os fundamentos da proacutepria
noccedilatildeo contemporacircnea de vida conjunta
Somos crias desse sistema e por isso aprendemos sempre a perguntar pela
funcionalidade das coisas o para quecirc serve isso ou aquilo evidentemente com a
educaccedilatildeo natildeo seria diferente Eacute nesse sentido principalmente que se torna desafiante
pensar a educaccedilatildeo movimento de des-afiar desfiar desafianccedilar de natildeo manter a
fidelidade com o desafiado (HOUAISS 2009a Desafiar) ou seja fazer o corte
delimitador entre o que somos e o natildeo ser Em outras palavras o desafio de pensar a
educaccedilatildeo caminha pelos limites que entrecortam os porquecircs de ensinar e aprender o que
ocasiona esses porquecircs e como podemos corresponder a eles
Eis que aceitando o convite do desafio da educaccedilatildeo deparamo-nos com o
seguinte impasse eacute possiacutevel abrir matildeo do controle Falar dos limites natildeo eacute a princiacutepio
o mesmo que falar da posse controladora Seacuteculos de metafiacutesica tecircm-nos confundido
quanto a isso e facilmente assumimos que controlar algo eacute limitaacute-lo como se nossa
vontade fosse decisiva para validar ou natildeo a sua existecircncia
Controla-se para dar sentidos O que estaacute dentro da cerca eacute nosso o que estaacute fora
eacute natildeo nosso outra coisa que estaacute sempre a rivalizar com as cercanias do que existe meu
mundo nosso mundo o mundo ocidental A esta forma de controle especiacutefica do
Ocidente chama-se ciecircncia ldquoa teoria do realrdquo (HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Um modo
16
peculiar de dizer o que algo eacute conferindo-lhe existecircncia cientiacutefica a partir da descriccedilatildeo
de suas partes de nuacutemeros que a representem matematicamente de utilidade na maacutequina
mantenedora da seduccedilatildeo da crenccedila pelo controle etc
Assim os limites da φύσις do real tornam-se os limites no real na φύσις como
cessaccedilatildeo do fluxo de acontecimentos em prol da seguranccedila da estatiacutestica 99 precisa
margem beirando o inalcanccedilaacutevel 0 Questionando junto com Fernando Pessoa (2006 paacuteg
62) o que eacute o zero na realidade Assim a ciecircncia eacute a seguranccedila de um pensamento uacutetil
capaz de servir a propoacutesitos dos mais diversos que depois seraacute colocado agrave disposiccedilatildeo
para por precauccedilatildeo posterior usufruto
Natildeo se admira que a educaccedilatildeo de algo possa ser transmitida pois acredita-se na
confecccedilatildeo de uma mensagem que atravessa de preferecircncia incoacutelume de um remetente a
um destinataacuterio Quer dizer que natildeo haacute mensagens Que nada pode ser ensinado e
aprendido Seria relativizar demais a discussatildeo e caminhar atraacutes do proacuteprio rabo para no
fim alcanccedilar quando muito o comeccedilo improfiacutecuo Natildeo aqui se refere agrave crenccedila na
mensagem
Certa tolice certa inocecircncia que nos acompanha eacute a de que podemos fazer
qualquer coisa conforme a planejamos Ter esperanccedilas e fazer planos para a realizaccedilatildeo do
sonho aparece neste trabalho tatildeo proacutepria aos entes quanto suas falhas incessantes e ainda
assim ldquoentre fazer e natildeo fazerrdquo
O artista inconfessaacutevel
Fazer o que seja eacute inuacutetil
Natildeo fazer nada eacute inuacutetil
Mas entre fazer e natildeo fazer
mais vale o inuacutetil do fazer
Mas natildeo fazer para esquecer
que eacute inuacutetil nunca o esquecer
Mas fazer o inuacutetil sabendo
que ele eacute inuacutetil e bem sabendo
que eacute inuacutetil e que seu sentido
natildeo seraacute sequer pressentido
fazer porque ele eacute mais difiacutecil
do que natildeo fazer e dificil-
mente se poderaacute dizer
com mais desdeacutem ou entatildeo dizer
mais direto ao leitor Ningueacutem
que o feito o foi para ningueacutem (MELO NETO 1975 paacuteg 30)
17
Natildeo haacute controle com o que se aprende Planejamos com cuidado uma aula
confiamos que nossos caacutelculos daratildeo certo mas em verdade natildeo importam quais os
dispositivos de controle utilizados todos estaratildeo sujeitos aos limites impostos pela
corrente de acontecimentos incertezas e impossibilidades a que chamamos real Natildeo agrave
toa a compreensatildeo mais tradicional de ensino estaacute calcada na ideia da transmissatildeo de um
conteuacutedo Nesse sentido questionar a extensatildeo de um controle eacute sim um risco ao
sustentaacuteculo da crenccedila na mensagem Isso passa por uma criacutetica da tradiccedilatildeo jaacute que ficaria
difiacutecil sem ela pois esta eacute nossa histoacuteria nosso modo de ver as coisas
Abrir matildeo do controle natildeo eacute abrir matildeo dos limites Que a questatildeo se torne pois
como agir diante do que se aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente
ele natildeo eacute Os limites satildeo tatildeo impostos pela tradiccedilatildeo quanto pelo saber atual Diga-se de
passagem tradiccedilatildeo e atualidade natildeo satildeo completamente distintas uma da outra
Numa outra concepccedilatildeo esquecida no uso mais habitual haacute a palavra poeacutetica que
brinca com os controles e alarga os limites Laacute jazem outros tempos outras liacutenguas que
aqui nos achegam como convites de pensamento Uma tradiccedilatildeo que eacute traditio uma
traditio que eacute traiccedilatildeo Perpetremos a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo enquanto mutiratildeo de todos pois
ontoloacutegica e etimologicamente todas as palavras se imiscuem e se dizem de modos
singulares
Ideias estranhas numa trajetoacuteria de conhecimento linear Entretanto quando nos
defrontamos com um saber que sabe porque vecirc e soacute vecirc porque sabe o que antes causava
estranheza pode suscitar sentido Compreensatildeo que natildeo se fia no controle mas que
delimita e por isso constitui uma existecircncia pela experiecircncia com algo
Um limite que marca sem controlar uma ideia que natildeo se restringe agrave sua
inteligibilidade mas que se apresenta como verdade que demarca uma manifestaccedilatildeo no
real Sem certo ou errado a priori apenas eacute Apenas natildeo como o que se esvai na
banalidade do sem importacircncia mas denso e simples como a dor de topar numa pedra
como se ela inanimada pudesse gritar caacute eu estou acolaacute tu
Ao aceitar o desafio que a educaccedilatildeo exige arrisca-se no estrangeiro do caminho
aquilo que natildeo conhecemos Postura essa conveniente se quisermos enveredar por
assuntos pouco visitados por exemplo a filosofia em tempos de crise do pensamento Isso
significa tratar de uma temaacutetica fora dos paradigmas sem os quais nos acostumamos a
fim de natildeo soacute educar de modo diverso mas concretamente diverso
18
A filosofia jaacute possuiu uma conduta puacuteblica e sua praacutetica era indicada para entre
outras coisas uma vida feliz e um Estado profiacutecuo Atualmente contudo atende a
indiviacuteduos e suas curiosidades ou assombra a escrita destinada agrave gaveta de algum
acadecircmico Em meio agrave tecnocracia ela natildeo tem mais vias praacuteticas de atuaccedilatildeo ou pelo
menos essa eacute a compreensatildeo corrente Isso porque eacute difiacutecil precisar sua funccedilatildeo e
consequentemente duro eacute o ensino que natildeo se fia no para quecirc ensinar
Vale se for para a prova mas apenas para a prova Vale se for soacute por saber desses
somentes simploacuterios e ociosos de sentido Vale pelas vias da utilidade que sem ela nada
presta Afinal qual o ofiacutecio do filoacutesofo ou do poeta O que um pensador faz constroacutei ou
salva A imaterialidade da obra da filosofia eacute mal vista no mundo materialista Ainda por
cima desde seus tempos de gloacuteria ela escolheu por amizade determinados saberes pondo
de lado sua origem poeacutetico-mitoloacutegica como deixou expresso Platatildeo (1987 paacuteg 473) em
sua rixa com Homero o poeta por excelecircncia
Destrinchando a carne disciplinando o conhecimento o saber filosoacutefico platocircnico
hierarquizou a apreensatildeo que eacute feita da realidade e com isso criou uma das bases para o
controle da verdade que mais tarde chamaremos de ciecircncia Etapa por etapa o homem
poderia evoluir a comeccedilar pelo lodo (sic) das sombras no interior da caverna onde soacute haacute
conjecturas e nenhuma verossimilhanccedila como se a verdade precisasse de espelhos e natildeo
fosse ela mesma presenccedila concreta Em seguida de imagens turvas fizeram-se formas
mais niacutetidas quiccedilaacute cores e principalmente crenccedila Eis a verdade persuasiva ou
verossimilhanccedila na qual o criacutevel era o foco natildeo verdadeiro
Tudo achismo conforme a velha filosofia Achar algo eacute natildeo saber natildeo ter
credibilidade soacute ser opiniatildeo o que pertence aos muitos mas natildeo a mim ndash o filoacutesofo
Depois que aqueles homens cavernosos se desprenderam dos grilhotildees da parede sombria
o redor deixa de ser encarado como a verdade mas apenas como uma representaccedilatildeo da
verdade Mal comparando antes as coisas eram sentidas manifestadas e pressentidas
agora elas seriam compreendidas intelectualmente de modo que natildeo se faz necessaacuterio
vivenciar cada manifestaccedilatildeo singular para se ter uma ideia do que se queria representar
Esse eacute o espectro inteligiacutevel do real
Todavia sejamos francos aiacute tambeacutem haacute uma hierarquia Entre as opiniotildees e a
verdade haacute o conhecimento de afinidade teacutecnica As abstraccedilotildees a um fim espelham-se no
ideal modelar para aplicaacute-lo nas mais diversas ocasiotildees Em outras palavras a finalidade
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demonstra ainda certo apego ao sensiacutevel a um caso especiacutefico qualquer que deseja ser
solucionado Por isso que parte da tradiccedilatildeo reconhece nesse momento o geacutermen do
pensamento cientiacutefico
Ateacute que chegamos de fato agrave casa do filoacutesofo O topo da cadeia para o pensamento
de Platatildeo Quem deveria gerir os demais na cidade aquele mais distante do mundo das
manifestaccedilotildees Somos soacute representaccedilotildees da ideia natildeo manifestaacutevel O filoacutesofo traduziria
o ser representado e por isso deveria conduziria os homens
Sem perceber a filosofia se sabota Ao pronunciar-se aleacutem da arte inuacutetil a mesma
natildeo reconhece seu lado pouco praacutetico que demanda tempo tentativas e erros Com a
sedimentaccedilatildeo do domiacutenio da funcionalidade seu aprendizado torna-se estranho por natildeo
ser objetivo Por conseguinte ela eacute alijada do conviacutevio mundano juntamente com a
poesia que pela filosofia foi rejeitada Ambas estatildeo no canto da histoacuteria agrave margem da
ordem do dia Separadas elas foram banidas da πόλις e dificilmente juntas voltaratildeo agraves
graccedilas dela Tanto faz natildeo eacute o propoacutesito em vez disso busca-se reconhecer o vigor
originaacuterio tanto na filosofia quanto na poesia de dizer e nomear verdades
Em meio ao turbilhatildeo dos acontecimentos o silecircncio Um lugar onde a questatildeo
possa ser respondida sem a pressa de dar uma soluccedilatildeo mas com cuidado e esmero Sem
medo do erro mas tambeacutem com medo pois ele faz parte Natildeo haacute vida sem morte sagrado
sem temor nem sangue sem corte A tentativa de um ensino poeacutetico de filosofia natildeo eacute um
rabisco aleatoacuterio mas a alternativa possiacutevel de reconciliaccedilatildeo do que jaacute foi e em certa
medida estaacute inseparaacutevel
Nietzsche (1994 paacuteg 56) disse em uma ocasiatildeo muito proacutepria que soacute confiava no
que fosse escrito com sangue Jaacute se escreveu sulcando a pele de animais as cicatrizes
datam na carne um trauma do tempo e as tatuagens demarcam sentidos na ferida Todas
essas experiecircncias deixaram marcas imprimiram uma resposta num corpo de modo bem
concreto Assim se pretende uma filosofia poeacutetica uma tradiccedilatildeo poeacutetica e uma linguagem
poeacutetica que seja capaz de romper o limite instituiacutedo e assim engendrar novas limitaccedilotildees
abertura de possibilidades impingidas em ferro e fogo em controle e desafio em tradiccedilatildeo
e ensino em diaacutelogo paradoxal de limite e fundamento
20
1 Pensando a Educaccedilatildeo
11 O ensino decide por dizer
O ensino significa aqui estar na marca do pensamento Neste sentido este trabalho
natildeo trata de dizer como ou o que deve ser ensinado Ensinar natildeo se refere necessariamente
a o que aprender mas simplesmente a aprender A cada ensinamento algo eacute aprendido se
se faz o caminho do pensamento Enquanto o ensino convida a aprender ao convite se
corresponde como se pode ou seja a correspondecircncia ao ensino estaacute no acircmbito do que
natildeo temos controle
Natildeo haacute controle com o que se aprende Por mais elaborados que sejam os
esquemas e as metodologias nunca eacute garantido que determinado ensinamento seraacute
aprendido O ensino ndash enquanto crenccedila na apreensatildeo de um conteuacutedo isto eacute uma
concepccedilatildeo na qual se espera que algo seja compreendido logo aprendido e apreendido
pelo aluno ndash chama-se transmissatildeo do conhecimento
Para haver transmissatildeo eacute vital que algo possa ser transmitido como uma carta
inviolada entregue pelo carteiro diretamente do remetente ao destinataacuterio ou seja eacute
necessaacuterio que uma mensagem possa transitar preferencialmente incoacutelume de uma
pessoa para outra de uma geraccedilatildeo para outra Nesta perspectiva qualquer deslize a essa
mensagem qualquer sentido que fuja dos sentidos-modelo da mensagem que natildeo se
adeque agrave verdadeira mensagem estaacute incorreto e por isso seraacute evitado e ateacute mesmo
execrado pelos portadores da verdade enquanto transmissatildeo Assim tem sido ao longo da
histoacuteria para uma compreensatildeo mais tradicional da educaccedilatildeo com sutis mas sentidas
exceccedilotildees ateacute os dias atuais uma mensagem modelar e sua reproduccedilatildeo ditando o
significado de ensino
Somos seres que por milecircnios foram programados para concentrar-se em
determinadas possibilidades e obedecer a determinados princiacutepios Assim
fomos programados numa histoacuteria milenar a crer no progresso e a ter feacute no
poder da dominaccedilatildeo fomos programados para seguir modelos e obedecer a
paradigmas para cumprir ditados e aceitar tabus Numa palavra fomos
programados natildeo apenas para ter mas sobretudo para ser consciecircncia O
conteuacutedo que povoa nossa consciecircncia satildeo representaccedilotildees do que eacute do que
21
foi e do que seraacute Satildeo representaccedilotildees do que pode ser do que vem a ser do que
deve ser Satildeo representaccedilotildees de crenccedilas e valores de anguacutestias e ansiedade de
dor e prazer de frustraccedilotildees e satisfaccedilotildees Satildeo representaccedilotildees de tudo Mas por
outro lado sempre em qualquer tempo em qualquer lugar ou condiccedilotildees os
homens natildeo satildeo apenas consciecircncia e representaccedilotildees (LEAtildeO 2003 paacuteg 18)
Quando abrimos matildeo da transmissatildeo abrimos matildeo do controle Contudo o
convite natildeo deixa de ser um juiacutezo Por exemplo quando chamamos algueacutem para uma
festa fazemos um convite Convidar natildeo eacute impor a presenccedila da pessoa mas demonstrar
sua importacircncia Tambeacutem acreditamos se convidamos com sinceridade que sua presenccedila
ali seraacute bem acolhida ainda que natildeo passe de uma suposiccedilatildeo podendo sua estadia naquele
evento festivo se revelar indesejada por uma ou ambas as partes envolvidas
A quem se predispotildee a ensinar conveacutem propor o convite Um juiacutezo cuidadoso
sobre o que como e a quem convidar mas que natildeo diz respeito a se e como o convite
seraacute aceito Julgar como quem toma uma decisatildeo como quem se avizinha da senda entre
dizer e natildeo dizer Uma decisatildeo natildeo pelo todo posto que natildeo se controla tudo mas acerca
de algo por aquele limite que marca e se arrisca na fronteira do dizer e do ensinar O
ensino decide por dizer O que ele diz
Eacute comum responder que praticamente tudo pode ser ensinado Ensina-se literatura
e filosofia como tambeacutem matemaacutetica fiacutesica e geografia O convite do ensino que
tambeacutem eacute uma decisatildeo remete a um conhecimento especiacutefico mas natildeo se restringe a ele
Ao decidir-se por ensinar algo leva-se em conta como proceder com esse ensinamento
ou seja sua metodologia traccedilam-se metas satildeo feitos planejamentos e promete-se aos
pais e agrave sociedade que aquele especiacutefico conteuacutedo seraacute transmitido
Todavia mesmo assim o ensino lida com imprevistos com o imprevisiacutevel
portanto a aprendizagem constantemente estaacute em tensatildeo entre o que achamos que eacute
possiacutevel transmitir e o que deixamos escapar agrave transmissatildeo seja por deslize seja por total
incapacidade de exercer qualquer saber ou conhecimento a respeito A pretensatildeo deste
trabalho eacute justamente lidar natildeo com a transmissatildeo mas com o ensino que estaacute sempre
condicionado ao natildeo ensinado ao natildeo ensinaacutevel ao natildeo dito em todo dizer
Ensinar diz e natildeo diz algo ensina e natildeo ensina alguma coisa demarcando um
saber em quem aprende O ensino aproxima um saber do aprendiz Ensinar en-sina in-
signum A palavra ensino eacute um substantivo formado por regressatildeo do verbo ensinar do
latim vulgar insigno ldquopocircr uma marca distinguir assinalarrdquo (HOUAISS 2009a) Por sua
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vez esse verbo latino proveacutem de sua forma erudita insignio ldquo1 Marcar com um traccedilo
caracteriacutestico meios de identidade 2 Marcar com aspas (em citaccedilotildees) 3 Adornar com
marcas honoriacuteficas 4 (transf) Tornar digno de nota ou notaacutevel marcar distinguirrdquo
(GLARE 1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)2
Literalmente ensino eacute se dispor agrave marca tanto demarcando uma caracteriacutestica em
algo ou algueacutem quanto a partir da marcaccedilatildeo fazer emergir essa distinccedilatildeo e diferenccedila
De modo menos literal marcar natildeo se refere a separar dos demais privando o que seja ndash
por estar marcado ndash de uma unidade agregadora refere-se contudo a identificar o que
ali se diz de modo singular em confluecircncia com outros dizeres
111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc
Assim faz-se um convite a pensar o ensino que distingue sem segregar Ensinar
sem se ater ao controle do conheciacutevel mas se esgueirando na fronteira neste rasgo
delimitador que daacute sentido ao sem sentido aos cem sentidos que a tudo iguala sem
distinccedilatildeo Distinguir sem segregar ocupa-se em natildeo esvaziar os modos proacuteprios de ser
em natildeo tornar cada ente distinto em peccedilas reproduziacuteveis para a sociedade Distinguir eacute
constituir a dignidade singular na dinacircmica do todo
A fim de esclarecer melhor a respeito da marca que jaz em todo ensino
debrucemo-nos um pouco mais sobre a palavra latina de modo a refazer as experiecircncias
de sentido que ela suscita Insignio eacute formada por regressatildeo da palavra insignitus ldquo1
Marcado com traccedilos caracteriacutesticos 2 Claramente definido ou caracterizado 3 Digno
de nota []rdquo (GLARE 1968 paacuteg 925 ndash traduccedilatildeo livre)3 cujo sentido ainda eacute bem
semelhante ao anteriormente descrito Esta palavra tem sua formaccedilatildeo atraveacutes da
composiccedilatildeo insigne + -itussup2
A palavra insigne eacute o neutro do adjetivo insignis que se junta a -itussup2 sufixo
formador de adjetivo que ldquoindica posse ou vestimentardquo (GLARE 1968 paacuteg 976 ndash
2 1 To mark with a characteristic feature means of identity 2 To mark with weals etc (in quots) 3 To
adorn with marks of honour 4 (transf) To make noteworthy or remarkable mark distinguish 3 1 Marked with distinctive features 2 Clearly defined or characterized 3 Noteworthy []
23
traduccedilatildeo livre)4 Em insignis nota-se jaacute em suas primeiras entradas algo ainda natildeo
explorado quer dizer a distinccedilatildeo que traz agrave presenccedila por meio da visatildeo ldquo1 Claramente
visiacutevel ou reconheciacutevel 2 Facilmente apreensiacutevel 3 Notaacutevel em aparecircnciardquo (GLARE
1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)5
Na visatildeo da marca algo se faz facilmente presente distinccedilatildeo perceptiacutevel aos olhos
que passam No domiacutenio dos sentidos a visatildeo vige e a partir desta vigecircncia os contornos
que delimitam o que eacute digno de nota aparecem e definem o que eacute pela marca Na tradiccedilatildeo
do pensamento ocidental aparecendo em Platatildeo como um de seus conceitos
fundamentais a visatildeo exerce um papel crucial ldquoPlatatildeo chama esse perfil em que o
vigente mostra o que ele eacute de εἶδοςrdquo (HEIDEGGER 2002 paacuteg 45)
Εἶδος aparece diversas vezes na obra platocircnica e deu origem agrave palavra ideia em
portuguecircs que se tornou muito corriqueira hoje Em seu uso ordinaacuterio ter uma ideia se
assemelha ao aparecimento de uma imagem na mente do indiviacuteduo mas que remete a
uma representaccedilatildeo fora dela Todavia natildeo eacute esse o interesse aqui mas pretendemos sim
fazer o caminho de pensamento que a ideia (seja grega genericamente seja em Platatildeo)
nos convoca a percorrer No dicionaacuterio de grego εἶδος refere-se a ldquoaquilo que eacute visto
forma formatordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἶδος ndash traduccedilatildeo livre)6 do verbo εἴδω
ldquoseerdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἴδω)7 e οἶδα ldquoknowrdquo (LIDDELL SCOTT 1889
Οἶδα)8 respectivamente ver e saber
Essa eacute uma relaccedilatildeo peculiar uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc Agrave
primeira vista esse relacionamento entre ver e saber natildeo eacute muito claro basta pensarmos
que ver natildeo costuma ser o suficiente para justificar um saber Eacute preciso estudo foacutermulas
e um cabedal de teorias Ver tenderia a ser algo mais relacionado aos sentidos ao sensiacutevel
enquanto que saber estaria vinculado ao intelecto ao inteligiacutevel Seraacute possiacutevel
compreender esse mostrar que natildeo eacute incoacutelume que rasga seus contornos no real ao se
4 Denote possession or wearing 5 1 Clearly visible or recognizable 2 Easily apprehensible 3 Remarkable in appearance 6 That which is seen form shape Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999040057entry=ei)=dosgt Acesso em
27 set 2016 7 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3D233
0877ampredirect=truegt Acesso em 27 set 2016 8 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Doi)3
Ddagt Acesso em 27 set 2016
24
fazer apreensiacutevel facilmente apreensiacutevel Como um disciacutepulo que aprende vendo seu
mestre εἶδος monta um cenaacuterio cujo saber se constitui como tal no acircmbito da visatildeo A
experiecircncia de ver proporciona a princiacutepio um saber imediato sem intermeacutedios do que
natildeo estaacute ali na exigecircncia do olhar em referecircncia apenas agrave visatildeo e disposta a apreender
seu ensinamento concreto
Nenhum sentido iacutentimo nenhum aleacutem atraacutes para fora da proacutepria coisa Ser
uma coisa esta coisa eacute natildeo ser susceptiacutevel de outra interpretaccedilatildeo aleacutem desta
que ela necessariamente jaacute eacute para poder ser isso que eacute Assim neste sentido
toda coisa tudo eacute precisa ser singela franciscana superfiacutecie Sim os gregos
foram superficiais muito superficiais ndash por profundeza lsquoaus Tiefersquo (FOGEL
2007 paacuteg 48 ndash grifos no original)
O ver traz agrave tona outra forma de saber deste que natildeo se faz apenas na leitura e
dissertaccedilatildeo de um tema Precisaria ver para crer como Tomeacute sem a feacute do conceito mas
calcado no vigor da presenccedila que eacute a marca que a visatildeo deixa no ser Este saber ldquopraacuteticordquo
em que se aprende enquanto se faz e portanto viu-se algueacutem fazendo (seja outrem seja
a si proacuteprio como autocriacutetica) para entatildeo fazer estaacute limitado pelo seu campo de visatildeo
Aqui soacute se aprende o que o limite do ver permite aprender no entanto enquanto algo
estiver sendo visto isto eacute enquanto algo se apresentar agrave apreensatildeo limitada e permanecer
apresentando-se e sendo apreendido limitadamente os limites estaratildeo imersos em uma
multiplicidade de limitaccedilotildees
Crianccedila desconhecida e suja brincando agrave minha porta
Natildeo te pergunto se me trazes um recado dos siacutembolos
Acho-te graccedila por nunca te ter visto antes
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra crianccedila
Nem aqui vinhas
Brinca na poeira brinca
Aprecio a tua presenccedila soacute com os olhos
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhececirc-la
Porque conhecer eacute como nunca ter visto pela primeira vez
E nunca ter visto pela primeira vez eacute soacute ter ouvido contar
O modo como esta crianccedila estaacute suja eacute diferente do modo como as outras estatildeo
sujas
Brinca pegando numa pedra que te cabe na matildeo
Sabes que te cabe na matildeo
Qual eacute a filosofia que chega a uma certeza maior
Nenhuma e nenhuma pode vir brincar nunca agrave minha porta (PESSOA 2006
paacutegs 42-43)
25
No poema ldquoapreciar a tua presenccedila soacute com os olhosrdquo se aproxima de ldquover uma
cousa sempre pela primeira vezrdquo assim como de ldquosabes que te cabe na matildeordquo Este ver
imediato traz o saber para as coisas para as experiecircncias concretas nas quais a marca que
distingue se torna a proacutepria distinccedilatildeo Conhecer por sua vez diz respeito agrave representaccedilatildeo
do saber pela visatildeo do conceito que pode ser transportado repetido natildeo necessitando da
presenccedila de expectadores A ldquocrianccedila desconhecidardquo natildeo conhece soacute sabe jaacute que
conhecer seria ldquoter ouvido contarrdquo Saber que a pedra cabe na matildeo natildeo eacute conhecer que a
pedra cabe na matildeo pois este pressupotildee um inventaacuterio de caracteriacutesticas opiniotildees de
geoacutelogos livros e mais livros sobre a pedra enquanto que aquele precisa pegar a pedra
nas matildeos ndash e isso eacute simples mas denso pleno sem se esgotar
O siacutembolo por definiccedilatildeo natildeo eacute a proacutepria coisa mas evocaccedilatildeo substituiccedilatildeo ou
representaccedilatildeo da coisa ausente Representar aqui significa estar no lugar de
ou passar por Sim substituir o ausente E a palavra da poesia a palavra
poeacutetica ie instauradora ou realizadora que por isso eacute a palavra essencial
esta estaacute subdizendo o poema natildeo eacute siacutembolo natildeo eacute representaccedilatildeo ou evocaccedilatildeo
da coisa ausente masa proacutepria coisa isto eacute a proacutepria presenccedila Portanto
palavra poeacutetica natildeo eacute recado mensagem aviso de nada O poeta natildeo eacute moleque
de recado Natildeo eacute instrumento mediaccedilatildeo ou intermediaccedilatildeo de nada A palavra
poeacutetica eacute a proacutepria coisa em sua plena plenificada presenccedila (FOGEL 2007
paacuteg 43 ndash grifos no original)
O ver que sabe natildeo eacute o ver com que lidamos com os olhos hodiernos Sempre com
pressa requisitamos ldquoter ouvido falarrdquo das coisas para confiar nelas para natildeo ter que
pensar a respeito isto eacute natildeo ldquoter visto pela primeira vezrdquo e essa confianccedila e esse
conhecimento datildeo a garantia da existecircncia A legitimidade do conhecimento se justifica
muito pela sua reprodutibilidade sua constacircncia e sua previsibilidade Gilvan Fogel
(2007) chama atenccedilatildeo ao que a palavra poeacutetica apresenta como outra possiblidade de
manifestaccedilatildeo como um apresentar concreto que soacute sabe por ter sido atravessado pela
experiecircncia proporcionada por este concreto sua visatildeo
No εἶδος que se mostra em cada insignis enquanto manifestaccedilatildeo poeacutetica encontra-
se a palavra essencial Eacute pois compreensiacutevel que seacuteculos de metafiacutesica tenham tratado
essecircncia como origem algo a ser buscado alcanccedilado por alguns iniciados ou eleitos
portanto distante exatamente da fala cotidiana O comentaacuterio supracitado do professor
Fogel diz de uma essecircncia sua compreensatildeo da brincadeira da crianccedila do poema como
sendo ldquoinstauradora e restauradorardquo Essa crianccedila do poema tanto quanto qualquer
26
crianccedila assim como qualquer coisa conquanto seja poeacutetica sempre seraacute instauradora e
restauradora agrave medida que natildeo ldquosubstituir o ausenterdquo mas se ativer agrave presenccedila Desse
modo natildeo eacute exclusividade dos poetas a essecircncia nem o cuidado para que ela natildeo seja
esquecida entre ruiacutedos de abstraccedilotildees e representaccedilotildees natildeo podendo ldquovir brincar nunca agrave
minha portardquo
112 Um saber que rasga
Para saber eacute preciso ver logo para ver eacute preciso saber este eacute o convite que εἶδος
faz ao ensino O que eacute saber neste contexto que natildeo se restringe ao conhecimento
Somente a palavra poeacutetica sabe como quem vecirc ou outros dizeres estatildeo inseridos nesta
dinacircmica Talvez a continuaccedilatildeo da etimologia da palavra ensino possa nos dar uma noccedilatildeo
acerca disso Insignis eacute formado por in-sup1 + signum + -issup1 no qual in-sup1 eacute um prefixo que
transfere seus sentidos de preposiccedilatildeo ao verbo agregando novas significaccedilotildees verbais ou
intensificando-as (GLARE 1968 paacuteg 858) Dentre esses sentidos destacam-se ldquolsquoem a
sobre superposiccedilatildeo aproximaccedilatildeo transformaccedilatildeorsquo de uma raiz i-e [indo-europeia] en
lsquono interior emrsquordquo (HOUAISS 2009b)
Ao nuacutecleo da raiz junta-se o sufixo formador de adjetivo -issup1 (GLARE 1968 paacuteg
970) e o nuacutecleo da palavra eacute signum Dele se originam quase todos os sentidos que foram
incorporados agraves demais formaccedilotildees chegando ateacute o portuguecircs com a palavra signo O
signum latino relaciona-se com a gama de significados da visatildeo ldquouma marca escrita a
impressatildeo de um siacutembolo ou um pouco de cera onde porta essa impressatildeo sinal visiacutevel
de uma presenccedila passadardquo do ensino ldquoalguma coisa percebida pela mente ou pelos
sentidos cuja inferecircncia pode ser desenhadardquo de uma marca ldquoemblema siacutembolo
estandarte uma escultura estaacutetua ou imagemrdquo e ateacute a ideia de movimento ldquogesto ou
movimento usado para designar um sentido manobra militarrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1759-
1760 ndash traduccedilatildeo livre) aparece dentro das possibilidades de compreensatildeo de signum
Qual deles diz respeito ao saber que vecirc principalmente ao saber da ldquopalavra
essencialrdquo (FOGEL 2007 paacuteg 43) da palavra poeacutetica mdash Todos se for considerada a
concretude dos sentidos Isto significa que a marca de cera eacute soacute a marca de cera sua
27
simplicidade natildeo eacute conhecida nem vulgar (PESSOA 2006 paacuteg 61) mas guarda dos
homens curiosos o enigma da carta Eacute compreensiacutevel contudo que um mero selo natildeo
seja fruto de enriquecedoras discussotildees filosoacuteficas Dizemos mero aqui referindo-nos ao
simples que eacute grande porque convida agrave experiecircncia singular ainda que banal com aquela
coisa ldquoO simples resguarda o enigma do que permanece e eacute granderdquo (HEIDEGGER
1983 paacuteg 39 ndash traduccedilatildeo livre)9
Outros sentidos entretanto natildeo satildeo tatildeo simples e imediatos o que natildeo deixa de
ser a perda de sua simplicidade Ao menos corriqueiramente concepccedilotildees como a de
emblema siacutembolo estandarte etc remetem a estacircncias fora do instante isto eacute
representam pela abstraccedilatildeo algo que deveria mas natildeo estaacute aqui A isto tanto o poeta
quanto o filoacutesofo supracitados combatem caso contraacuterio seria abrir matildeo da concretude
de cada momento em prol de um conceito estanque e pronto para ser aplicado
transmitido reproduzido e descartado Dicotomicamente falando assumindo o risco que
isso significa podemos aferir que o saber exige que a experiecircncia com a coisa seja feita
concretamente levando-se em conta as singularidades em questatildeo e as limitaccedilotildees que o
agora impotildee O conhecer por sua vez significa uma experiecircncia abstrata permitindo
categorias que facilitariam o trato por preacute-conceito criando-se assim o haacutebito o jaacute visto
e conhecido do fazer
Natildeo dicotomicamente falando tanto o conhecimento quanto o saber fazem parte
da experiecircncia com as coisas satildeo tatildeo intriacutensecos como necessaacuterios ldquoo desaparecimento
de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos
apoiaacutevamos de ordinaacuterio sem querer perceber que originariamente elas constituiacuteam
respostas a questotildeesrdquo (ARENDT 1972 paacuteg 223) cuja comunhatildeo define a existecircncia
humana seu modo de ser Se para cada passo fosse preciso uma reflexatildeo ningueacutem mais
andaria A tensatildeo se desfaz quando se perde no haacutebito a disposiccedilatildeo de questionar tudo se
transformando em conhecido ou conheciacutevel ou seja esquecendo-se de que o passo sim eacute
uma questatildeo a ser pensada que sob o chatildeo supostamente seguro jaz o que natildeo tem chatildeo
o abismo que andar eacute em si um risco agrave queda
O poeacutetico pois faz emergir o concreto da linguagem nas palavras Assim o
concreto manifesta torna presente o saber no que se vecirc Isto que manifesta o saber das
9 Das Einfache verwahrt das Raumltsel des Bleibenden und des Groszligen
28
coisas sem conhececirc-las encontramos sob o nome de aleacutetheia O concreto desse saber natildeo
eacute restrito ao poema escrito nem somente o poeta tem acesso a aleacutetheia agrave manifestaccedilatildeo
Na relaccedilatildeo com a verdade que se apresenta concretamente compreende-se que aleacutetheia eacute
sempre a mesma soacute que de modos diferenciados e eacute justamente isso que possibilita a
singularidade dos caminhos
Em Os trabalhos e os dias portanto Aleacutetheia eacute dupla eacute em primeiro lugar a
Aleacutetheia das Musas que o poeta profere em nome delas e que se manifesta no
discurso maacutegico-religioso articulado agrave memoacuteria poeacutetica em segundo lugar eacute
a Aleacutetheia que o labrador de Ascra possui lsquoVerdadersquo que dessa vez se define
explicitamente pelo lsquonatildeo esquecimentorsquo dos preceitos do poeta Entre as duas
natildeo haacute diferenccedila fundamental eacute a mesma Aleacutetheia vista sob dois aspectos ora
em sua relaccedilatildeo com o poeta ora em sua relaccedilatildeo com o lavrador que o ouve
Enquanto o primeiro a possui apenas em virtude do privileacutegio da funccedilatildeo
poeacutetica o segundo soacute pode ganhaacute-la agrave custa de um esforccedilo de memoacuteria O
camponecircs de Ascra soacute conhece a Aleacutetheia na ansiedade de uma memoacuteria
obsedada pelo esquecimento que pode repentinamente ensombrecer-lhe a
mente e privaacute-lo da lsquorevelaccedilatildeorsquo dos Trabalhos e os Dias (DETIENNE 2013
paacutegs 27-28)
Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi sinocircnimo de certeza isto
eacute mera oposiccedilatildeo entre certo e errado e tentativa de adequaccedilatildeo do errado ao certo Neste
sentido conveacutem observar que uma concepccedilatildeo de ldquoposserdquo da aleacutetheia natildeo se refere a ter a
propriedade de um conhecimento Nem o poeta nem o camponecircs poderiam possuir a
verdade pois ela natildeo era um conhecer ldquopossuiacutevelrdquo Somente quando o saber torna-se
capaz de ser possuiacutedo que ele se torna um conhecimento e um conhecimento inteligiacutevel
Isto porque o saber da verdade era dos deuses do real os poetas apenas se dispunham a
ouvi-lo e por conseguinte a cantaacute-lo como lhes era possiacutevel
O camponecircs por sua vez se detinha nas proximidades do trabalho do poeta ndash e a
isto talvez possamos chamar de posse ndash e dele ldquopode ganhaacute-la [aleacutetheia] agrave custa de um
esforccedilo de memoacuteriardquo (DETIENNE 2013 paacuteg 28) Da mesma forma ganhar aleacutetheia
confunde o leitor quanto a seu caraacuteter de natildeo posse Detienne assim como todos noacutes
estamos muito impregnados pela liacutengua da ciecircncia logo mesmo ao se referir ao que natildeo
eacute cientiacutefico fazemos ao modo da teacutecnica moderna Daiacute a importacircncia de ir aos
fundamentos da liacutengua que natildeo se trata de sua origem cronoloacutegica mas da aproximaccedilatildeo
agraves cercanias da linguagem ao que se diz inaudito no dito
Por este vieacutes alongando um pouco mais a etimologia de ensino chegamos a seco
+ -num a fim de que percebamos o tipo de saber que originou o ensino traduccedilatildeo de uma
29
experiecircncia concreta com a linguagem O Dicionaacuterio Oxford apresenta um significado
etimoloacutegico incerto da palavra signum (GLARE 1968 paacuteg 1759) formado com o sufixo
-num neutro de -nus ndash um formador de palavras adjetivas de numerais distributivos e
que tambeacutem funciona como alargamento do sentido (eg fortuna tribunus) (GLARE
1968 paacuteg 1207) ndash juntamente com o radical seco
1 Cortar com uma faca ou similar cortar 2 Cortar em pedaccedilos fatiar picar
recortar 3 Cortar uma porccedilatildeo de destacar (uma parte) por meio de corte
remover por corte 4 Fazer uma incisatildeo em cortar entalhar etc 5 Passar
atraveacutes de (aacutegua ar uma multidatildeo etc) em movimento raacutepido ou violento
fender um caminho atraveacutes de tambeacutem sulcar (a terra) em lavoura mineraccedilatildeo
etc 6 Formar ou abrir (uma trilha ou sim) por meio de corte (GLARE 1968
paacuteg 1717 ndash traduccedilatildeo livre)10
A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforccedilo com a consulta a Pokorny
(2007) Em ambos os casos a relaccedilatildeo entre seco e signum natildeo eacute segura enquanto origem
e originado mas parece haver concoacuterdia na proximidade de sentido entre ambos no que
se refere agrave marca agrave ldquoimpressatildeordquo que causa Correspondendo a uma interpretaccedilatildeo da
etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito se atendo a um aceno de pensamento
posso supor que a marca do signum eacute um corte seco que porta um saber agrave medida que
rasga criando assim um limite visiacutevel e concretamente experienciado Lidar com um
saber que rasga eacute fazer uma experiecircncia com o concreto da palavra causando sensaccedilotildees
sim mas tambeacutem e principalmente fazendo uma experiecircncia na e atraveacutes das fronteiras
da liacutengua Laacute onde nos aventuramos entre o que eacute e o natildeo ser onde o instante instaura
brevemente a verdade fugidia o concreto se diz somente enquanto experiecircncia deste
mesmo saber
sēk-2 ndash Significado em inglecircs tocut traduccedilatildeo para o alematildeo schneiden Latim
secō -āre lsquocortar podarrsquo segmen segmentum lsquoquebra secccedilatildeorsquo [] Latim
sīgnum neutro lsquomarca siacutembolo sinal indicaccedilatildeorsquo se originalmente lsquomarca
entalhadarsquo () [] Alto alematildeo antigo sega saga Europeu antigo sagu sage
(POKORNY 2007 paacuteg 2660 ndash traduccedilatildeo livre)11
10 1 To sever with a knife or similar cut 2 To cut in pieces slice chop cut up 3 To cut a portion from
to detach (a portion) by cutting cut off 4 To make an incision in cut gash etc 5 To pass through (water
air a crowd etc) in rapid or violent motion cleave a path through also to cut into (the earth) in
ploughing mining etc 6 To form or open up (a track or sim) by cutting 11 sēk-2 ndash English meaning to cut deutsche Uumlbersetzung ldquoschneidenrdquo Lat secō -āre ldquocut clip
abschneidenrdquo segmen segmentum ldquobreak sectionrdquo [hellip] Lat sīgnum n ldquomark token sign indicationrdquo
if originally ldquoeingeschnittene Markerdquo () [] OHG sega saga OE sagu sage
30
Este eacute pois o sentido de um saber que se encrusta na carne Nietzsche (1994 paacuteg
56) jaacute dizia que ldquode tudo o que se escreve aprecio somente o que algueacutem escreve com o
proacuteprio sangue [] Aquele que escreve em sangue e maacuteximas natildeo quer ser lido mas
aprendido de corrdquo Filosoficamente falando apreciar neste sentido natildeo se restringe agrave
opiniatildeo pessoal somente mas diz tambeacutem de uma entrega no que se faz
Ao afirmar uma oposiccedilatildeo entre ler e aprender de cor haacute um reconhecimento da
experiecircncia de um saber vivido na medida em que um conceitua e descreve e outro que
demarca um modo sanguinolento de ser Este sangrar traz ao ato a memoacuteria da verdade
seja como valor moral de vontade e de ldquoquererrdquo seja por simplesmente se dar de outra
forma natildeo dimensionaacutevel no falar sobre algo mas sim em dizer com algo Quem condiz
diz junto ou seja convoca agrave participaccedilatildeo sem ser arbitraacuterio convida a manifestar-se no
que se manifesta agrave medida da manifestaccedilatildeo que eacute o corte entre as possibilidades de cada
um e o impossiacutevel aquilo sobre o qual natildeo exercemos posse nem poder de possuir mas
que por isso nos delimita e constitui ldquoVai-se ao limiar sempre que se vai aos limites
[grifo no original]rdquo (NIETZSCHE 1967 ndash traduccedilatildeo livre)12
Heidegger (2003) tambeacutem a seu modo pensou este saber que corta No seu ensaio
A linguagem o pensador alematildeo interpreta o poema Uma tarde de inverno13
Na janela a neve cai
Prolongado soa o sino da tarde
Para muitos a mesa estaacute posta
E a casa bem servida
Alguns viandantes da erracircncia
Chegam ateacute a porta por veredas escuras
Da seiva bruta da terra
Surge dourada a aacutervore dos dons
O viandante chega quieto
A dor petrificou a soleira
Aiacute brilha em pura claridade
Patildeo e vinho sobre a mesa (TRAKL 2016 ndash traduccedilatildeo de Marcia Saacute de
Cavalcante Schuback)14
12 Man geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden geht 13 Ein Winterabend 14 Wenn der Schnee ans Fenster faumlllt Lang die Abendglocke laumlutet Vielen ist der Tisch bereitet Und
das Haus ist wohlbestellt Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden Golden
bluumlht der Baum der Gnaden Aus der Erde kuumlhlem Saft Wanderer tritt still herein Schmerz versteinerte
die Schwelle
Da erglaumlnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein
31
Pela obra literaacuteria eacute construiacuteda uma compreensatildeo filosoacutefica da dor natildeo restrita agrave
certa negatividade O verso central para tal pensamento eacute o seguinte ldquoSchmerz
versteinerte die Schwellerdquo ldquoA dor petrificou a soleirardquo A traduccedilatildeo para o portuguecircs leva
em conta a sonoridade e o jogo imageacutetico proacuteprios da liacutengua de destino sem faltar com
cuidado ao original O esforccedilo poeacutetico eacute visiacutevel contudo traduzir eacute tanto caminho como
descaminho de sentido parte do que caracteriza o poema em alematildeo se desdobra
singularmente em portuguecircs
O verso fala de dor Schmerz em correspondecircncia com a soleira Schwelle Como
o que doacutei Heidegger (2003 paacuteg 21) entende por ldquoA dor eacute a junta articuladora no
dilaceramento que corta e reuacutene Dor eacute a articulaccedilatildeo do rasgo do dilaceramento Dor eacute
soleira Ela daacute suporte ao entre ao meio dos dois que nela se separam A dor articula e
traccedila o rasgo da di-ferenccedila A dor eacute a proacutepria di-ferenccedilardquo Na mesma instacircncia ontoloacutegica
estatildeo a dor e a soleira a dor e a di-ferenccedila o que isso significa
Em alematildeo Schwelle tambeacutem diz do limite o limiar entre duas coisas como a
soleira eacute a fronteira que separa o dentro do fora da casa Enquanto separa instaura tanto
a casa quanto a rua como a natildeo casa ainda a casa que viraacute Sem soleira rua e casa natildeo
teriam suas singularidades mantidas suas di-ferenccedilas ldquoo termo lsquoa di-ferenccedilarsquo natildeo diz
uma categoria geneacuterica para vaacuterias espeacutecies de distinccedilotildees A di-ferenccedila aqui nomeada eacute
soacute uma Eacute uacutenicardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 19) Diferir natildeo eacute deixar misturar
categorizar mas fazer aparecerem os limites que definem e constituem eacute emergir a
unidade que se encontra no ldquoentrerdquo de uma e outra coisa
Dor e limite se fundem Ambos datildeo fundamento um ao outro no entre que os
diferencia O poema no original traz um jogo sonoro em que essa relaccedilatildeo correlata se
mostra novamente Tanto as palavras Schmertz e Schwelle comeccedilam com o mesmo som
sch- [ʃ] fricativo ou seja com quase nenhuma interrupccedilatildeo de ar seguidas de m- [m] e
w- [v] que embora diferentes ainda resguardam essa mesma caracteriacutestica de som
continuado Sonoramente dor e limite fluem abertamente Um introduzindo outro
terminando ndash origem e plenitude do verso pela dor e pela soleira respectivamente
Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta tem pois sua
quietude Afinal ldquoa dor petrificourdquo o limite a soleira para diante da dor Eacute marcada uma
pausa que natildeo faz do limite igual ao comeccedilo O instante que demarca o quieto da fluidez
32
constitui e distingue as diferenccedilas e identidades entre origem e fim enquanto plenitude
Em alematildeo o verbo versteinern tambeacutem comeccedila com o tipo de som fricativo v- [f] para
coincidir com o som anterior sch- [ʃ] todavia seguido pela oclusiva -t- [t] ou seja onde
haacute uma obstruccedilatildeo parcial da saiacuteda de ar
A construccedilatildeo sonora do verso eacute marcada por uma pausa entre dois sons contiacutenuos
Ali onde dor e limite se encontram haacute tanto multiplicidade de um quanto unidade de
vaacuterios ndash pausa e continuaccedilatildeo Versteinern proveacutem do substantivo Stein pedra uma pedra
que se interpotildee entre dois acontecimentos de mundo lembra-nos de ldquono meio do caminho
tinha uma pedrardquo (ANDRADE 2013 paacuteg 30) O verso tatildeo conhecido de Drummond
retoma em Georg Trakl a tensatildeo no embate causador de dor e de limite fundador Trazer
agrave quietude da pedra eacute dar sentido ontoloacutegico tanto ao limite quanto agrave dor
A linguagem fala Sua fala chama a diferenccedila a di-ferenccedila que des-apropria
mundo e coisa para a simplicidade de sua intimidade
A linguagem fala
O homem fala agrave medida que corresponde agrave linguagem Corresponder eacute escutar
Ele escuta agrave medida que pertence ao chamado da quietude (HEIDEGGER
2003 paacuteg 26)
Pelo ensino pois transita-se na marca Via de acesso que traduz uma experiecircncia
de des-conhecer se as reacutedeas da imposiccedilatildeo cedem lugar agrave fronteira do pensar Ali as
distacircncias se estreitam proximidades natildeo se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre
afinal ldquomestre natildeo eacute quem sempre ensina mas quem de repente aprenderdquo (ROSA 2006
paacuteg 213) Ensinar eacute estar na marca do pensamento em outras palavras eacute aprender a estar
no pensamento da marca a saber atento a que o limite demarcante seja assim como natildeo
seja O ensinamento sem aprendizagem eacute pobre de sentido restringe-se agrave mera
informaccedilatildeo de conteuacutedos pragmaacuteticos Radicalmente ensinar significa tambeacutem natildeo
ensinar agrave medida que daacute espaccedilo para que o outro (que tambeacutem sou eu) aprenda
Formar eacute deixar o outro aprender integrando no que ele eacute os limites do que
ele natildeo eacute [] Soacute quem realmente sabe aprender e somente na medida em que
o sabe pode realmente ensinar [] Ensinar exige e impotildee a ascese de
aprender a ascese de constantemente assumir tanto a ignoracircncia quanto o saber
do que jaacute se sabe Natildeo apenas aquele que jaacute sabe tudo natildeo pode nem aprender
nem ensinar Tambeacutem natildeo pode quem natildeo assumir o saber de sua ignoracircncia
quem natildeo reconhecer que sabe alguma coisa (LEAtildeO 1977 paacuteg 49)
33
113 Natildeo ensinar e a ciecircncia
Nesta dimensatildeo natildeo ensinar eacute uma prerrogativa O que natildeo quer dizer faltar com
as suas responsabilidades enquanto professor enquanto pais ou enquanto sociedade Natildeo
ensinar estaacute comumente relacionado com negligecircncia Isso tem pouco a ver com o
pensamento do ensino e mais com o que se espera de determinadas funccedilotildees e papeacuteis
sociais Natildeo ensinar se refere diversamente ao compromisso com seu desconhecimento
impossibilidade de que algo seja dito ndash pois natildeo se sabe ndash e tendo cuidado com o
conhecimento jaacute que mesmo no dito haacute o natildeo dito o natildeo controle do que seraacute
compreendido
Entretanto parece que nos atuais tempos esta eacute uma decisatildeo estranha de se tomar
Jaacute causa estranhamento natildeo ensinar sem optar por isso Ou seja natildeo detendo todas as
variaacuteveis e circunstacircncias falhamos ao passar um determinado conteuacutedo seja este teacutecnico
cultural ou moral Diferente eacute pois ldquoescolherrdquo natildeo ensinar Aceitar que faz parte do
processo o equiacutevoco a falta e o improviso Reconhecer a ponta solta o diacutegito errado o
ponto fora da curva e natildeo fazer nada a respeito
Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista na qual o ensino
serve aos propoacutesitos da aprendizagem Sistemas preacute-programados demandam o
cumprimento de tarefas Logo eacute conveniente a transmissatildeo do que fazer para o
desempenho esperado Natildeo soacute isso mais do que fazer adveacutem o como fazer cuja resposta
procura constantemente por um melhor desempenho produzir mais a menor custo ou
mais por menos tempo o que costuma coincidir
Este aspecto performaacutetico que se dedica a se superar ininterruptamente natildeo pode
permitir o natildeo ser Como num teatrinho de marionetes tudo estaacute sob controle ou acredita-
se que esteja Da filosofia agrave mesa de bar das salas de aula aos hospiacutecios nossa sociedade
se vecirc como peccedilas de um quebra-cabeccedila que pode ser solucionado Quem monta as peccedilas
eacute o homem quem diz que as peccedilas satildeo montaacuteveis eacute a ciecircncia pois ela eacute ldquoa teoria do realrdquo
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Aqui para pensar a palavra teoria referimo-nos tanto ao
sentido de ldquoconjunto de regras ou leis mais ou menos sistematizadas aplicadas a uma
aacuterea especiacuteficardquo (HOUAISS 2009a Teoria) quanto agrave etimologia a qual significaria accedilatildeo
34
de ver observar testemunhar ldquoenviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oraacuteculos
ou jogos ou coletivamente os proacuteprios θεωροί embaixada missatildeordquo (LIDDELL
SCOTT 1940 Θεωρία ndash traduccedilatildeo livre)15
Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por ldquoverrdquo ou ldquopocircr-se a observarrdquo
Ainda assim diferentes nomeares sugerem diversos modos de o proacuteprio compreender o
real ldquoo pensamento doacutecil agrave voz do ser procura encontrar-lhe a palavra atraveacutes da qual a
verdade do ser chegue agrave linguagemrdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) Neste sentido
observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo semacircntico de ver olhar entretanto
esse mesmo eacutetimo pode ser lido com acentuaccedilotildees diferentes θεά feminino de θεός
ldquodeusa divindaderdquo e ὤρα ldquocuidadordquo (LIDDELL SCOTT 1940 ndash traduccedilatildeo livre)16
Temos pois um convite Fomos convidados a ver tambeacutem em teoria a palavra θεωρία
como um cuidado sagrado o divino em todo cuidar ou ainda ldquoora foi como deusa que
ἀλήθεια apareceu ao pensador originaacuterio Parmecircnides [] Em sentido antigo isto eacute
originaacuterio mas de forma alguma antiquado a teoria eacute a visatildeo protetora da verdaderdquo
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 46 ndash grifos no original)17
O real para muitos povos antigos eram os proacuteprios deuses se manifestando Esta
era ldquosuardquo verdade ldquoseurdquo mundo Um possessivo que natildeo traduz da posse como estamos
habituados Natildeo havia a verdade de cada um embora todos fizessem uma experiecircncia
com a verdade singularmente Isto porque para os antigos a verdade era muacuteltipla e
diversa Diferentemente de nossa concepccedilatildeo atual de verdade regida pela ciecircncia pedras
15 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games or collectively the θεωροί themselves
embassy mission Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqewri
2Fagt Acesso em 13 out 2016 16 Cf Θέα Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqe2
Fa2gt Acesso em 14 set 2016
Cf Θεά Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqea2
F1gt Acesso em 14 set 2016
Cf Ὁράω Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(ra
2Fwgt Acesso em 14 set 2016
Cf Ὤρα Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dw)2
Fragt Acesso em 14 set 2016 17 Cf Ἀλήθεια Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)lh
2Fqeia Acesso em 14 set 2016
35
animais pessoas proacuteximas e inimigos eram a verdade pois a proacutepria presenccedila desses
seres constituiacutea sua veracidade ldquoprovardquo cabal da doaccedilatildeo de existecircncia de um deus A
verdade eacute sempre verdade dos deuses seja quem for que a proferir
Os indo-iranianos tecircm uma palavra comumente traduzida por Verdade Rta
Mas Rta eacute tambeacutem a prece lituacutergica o poder que garante o retorno das auroras
a ordem estabelecida pelo culto aos deuses o direito enfim um conjunto de
valores que estilhaccedilam nossa imagem da verdade (DETIENNE 2013 paacutegs
1-2)
Isso significa que a compreensatildeo de oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso natildeo era
possiacutevel visto que o que se manifesta seja bom ou ruim tem um sentido de ser que
remete ao sagrado Sendo atribuiacuteda ao artiacutefice divino a verdade jamais poderia ser
possuiacuteda no sentido de controlada apenas se convive em sua cercania natildeo havendo
possibilidade de cercaacute-la cerceando-a ao uso a bel-prazer Desse modo as diferenccedilas satildeo
apenas outras manifestaccedilotildees da mesma verdade sagrada Seu e sua satildeo possessivos que
natildeo indicam posse mas apropriaccedilatildeo eacute o ser no mundo em sua limitaccedilatildeo fundadora
Sua lsquoVerdadersquo eacute uma lsquoVerdadersquo assertoacuterica ningueacutem a contesta ningueacutem a
demonstra [] Aleacutetheia natildeo eacute a concordacircncia entre a proposiccedilatildeo e seu objeto
tampouco a concordacircncia de um juiacutezo com os outros juiacutezos natildeo se opotildee agrave
lsquomentirarsquo natildeo haacute lsquoverdadeirorsquo em face do lsquofalsorsquo A uacutenica oposiccedilatildeo
significativa eacute entre Aleacutetheia e Leacutethe
[]
Natildeo haacute de um lado Aleacutetheia (+) e do outro Leacutethe (-) mas entre esses dois polos
se desenvolve uma zona intermediaacuteria em que Aleacutetheia desliza para Leacutethe e
vice-versa A lsquonegatividadersquo portanto natildeo estaacute isolada apartada do Ser ela
orla a lsquoVerdadersquo eacute a sua sombra inseparaacutevel As duas potecircncias antiteacuteticas natildeo
satildeo pois contraditoacuterias mas tendem uma agrave outra o positivo tende ao negativo
que de certo modo o lsquonegarsquo mas sem o qual natildeo se sustenta (DETIENNE
2013 paacuteg 29 paacutegs 77-78 ndash grifos no original)
Para noacutes da modernidade real eacute o mundo que vemos ou podemos ver e controlar
cujo descobrimento torna-se sinocircnimo de confirmaccedilatildeo de uma teoria A compreensatildeo do
mundo se daacute agrave medida que o vemos e nossa visatildeo eacute guiada pela ciecircncia no sentido de
que damos existecircncia agrave realidade ao dispor cada peccedila em seu lugar A isto chamamos
conhecer categorizar o real agrave mercecirc do que podemos apreender dele Em contrapartida
o que natildeo podemos conceituar natildeo tem valor de existecircncia simplesmente natildeo eacute ldquorealrdquo eacute
ldquofictiacuteciordquo eacute ldquoimaginaccedilatildeordquo quer dizer natildeo eacute verdade mas mentira Ao aderir agrave concepccedilatildeo
36
de opostos subentende-se a ideia de norma padratildeo ndash haacute o que eacute e o que natildeo eacute distinccedilatildeo
claramente determinaacutevel quando coincidente correta quando divergente corrigiacutevel
A ontologia perde sentido em detrimento do que eacute claro evidente praacutetico
objetivo uacutetil enfim do que eacute capaz de levar a algum lugar ainda que esse
lugar possa natildeo ser exatamente o lugar mais desejaacutevel Natildeo importa O
importante eacute que seja algum lugar A questatildeo ontoloacutegica passa ao longo do
desenvolvimento da Cultura Ocidental a ser considerada perda de tempo
(JARDIM 1995 paacutegs 15-16)
Exige-se que se encaixe Como reconhecer o natildeo ensinar se natildeo se pode classificar
o que natildeo eacute Natildeo tem clareza falta utilidade no natildeo ser Qual a validade de natildeo ensinar
para um meacutedico um advogado Como natildeo ensinar a uma crianccedila tatildeo em tenra idade e
desprotegida ldquoPerdem-se no vazio consideraccedilotildees sobre o modo como se poderia levar
a agir sobre a vida cotidiana e puacuteblica de modo efetivo e uacutetil o pensamento ainda e apenas
metafiacutesicordquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 58) A pergunta aqui versa a respeito de uma
vontade mesmo que seja vontade de cuidar ainda assim eacute um desejo pelo ente antiteacutetico
ao ser circunstacircncia de realizaccedilatildeo do ser que foi que eacute ou que seraacute como se instacircncias
discerniacuteveis fossem
Busca-se uma postura de soluccedilatildeo de problemas resoluccedilatildeo de conflitos sem se dar
conta de que a tensatildeo eacute a proacutepria condiccedilatildeo de existecircncia no embate entre o nada e o ser
ldquoUm dos lugares fundamentais em que reina a indigecircncia da linguagem eacute a anguacutestia no
sentido do espanto no qual o abismo do nada dispotildee o homem O nada enquanto o outro
do ente eacute o veacuteu do ser No ser jaacute todo o destino do ente chegou originariamente agrave sua
plenituderdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) A questatildeo eacute como agir diante do que se
aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente ele natildeo eacute Chegar agrave
plenitude na origem se contradiz com a ideia da construccedilatildeo de um conhecimento que se
inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acuacutemulo de informaccedilotildees Isto porque natildeo nos
referimos agrave origem como comeccedilo muito menos agrave plenitude como fim aqui diz-se
respeito ao movimento Ir a algum lugar eacute sempre chegar de um lugar de modo que essa
concepccedilatildeo de saber eacute estar dentro da dinacircmica de partida e chegada de ser e estar do
nada e do ente de origem e de plenitude
Ora afirmamos que o natildeo ensinar imerso na senda do pensar nada diz respeito
ao descuido com o outro mas nesse embate entre ensinar um conteuacutedo e deixar o ensino
seguir seu curso de aprendizagem e vazio quanto mais se aceita como vital uma funccedilatildeo
maior seratildeo as garras do controle Seja por teorias sempre novas seja por soluccedilotildees agrave
37
disposiccedilatildeo o importante eacute sanar quaisquer duacutevidas ter sempre algo a dizer e muito muito
a ensinar ldquoA carga ndash inevitavelmente ndash normativa do saber pedagoacutegico acaba muitas
vezes por bloquear a experiecircncia da infacircncia [grifo no original]rdquo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg
9 ndash traduccedilatildeo livre)18
Quem deteacutem o dizer dita as regras Diferentemente de impor a vontade por forccedila
fiacutesica controla-se o dizer que eacute o saber vigente dominante e aceito A palavra que sabe
que eacute cientiacutefica diz o que eacute exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocaacute-los
literal mas radicalmente ldquojaacute natildeo se trata de pocircr a morte em accedilatildeo no campo da soberania
mas de distribuir os vivos em um domiacutenio de valor e utilidaderdquo (FOUCAULT 1988 paacuteg
157)
Ocorre uma inversatildeo radical a ciecircncia diz o que eacute A ciecircncia deixa de ser uma
dentre tantas possibilidades passando a ser a deliberaccedilatildeo fundamental da existecircncia ldquoo
homem ndash um ente entre outros ndash faz lsquociecircnciarsquo Neste lsquofazerrsquo ocorre nada menos que a
irrupccedilatildeo de um ente chamado homem na totalidade do ente mas de tal maneira que na
e atraveacutes desta irrupccedilatildeo se descobre o ente naquilo que eacute em seu modo de serrdquo
(HEIDEGGER 1979c paacuteg 36) Os filhos desse mundo seratildeo crias cientiacuteficas homens
que veem no mundo somente um espelho de si Daiacute o predomiacutenio do indiviacuteduo da
vontade pois se tudo eacute um reflexo de noacutes mesmos basta esticar a matildeo e apanhar O que
natildeo nos serve natildeo eacute natildeo nos vemos logo desprezamos Ciumento eacute o deus-ciecircncia que
natildeo permite adoraccedilotildees alheias
A ciecircncia eacute a seguranccedila do pensamento isto eacute o que haacute de inofensivo sem ser
inocente Seguro pelas contas estaacute o proacuteprio pensar que se fia na loacutegica infaliacutevel ou na
estatiacutestica mais aceita por todos Quando o real eacute domado ele se torna conhecido a este
papel se presta a ciecircncia ldquoo pensamento calculador submete-se a si mesmo agrave ordem de
tudo dominar a partir da loacutegica de seu procedimentordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 50)
Nessas categorias se constitui a interpretaccedilatildeo do ser sem se perceber que satildeo as mesmas
categorias partes da possibilidade de categorizar A essa multiplicaccedilatildeo de chances
apreensotildees e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o caacutelculo e o encerra em seu
destino sua derradeira conta o incalculaacutevel em todo calcular
18 La carga ndash iquestinevitablemente ndash normativa del saber pedagoacutegico acaba muchas veces por bloquear la
experiencia de la infancia
38
114 O jogo do poeta e da infacircncia
Ainda que natildeo fuja ao controle ousamos ao ensino de Dispor-se a ensinar algo
natildeo eacute demeacuterito natildeo contradiz o caminho aqui percorrido natildeo deve ser evitado ao
contraacuterio constitui fundamentalmente o ato de ensinar Um ensino que se integra ao natildeo
ensino do mesmo ensinar Deste modo perguntar para que ensinar natildeo perde sua validade
apenas agora congrega na pergunta pela utilidade sua inutilidade
Natildeo seria conveniente tutelar o ensino a fim de guiar aos cuidados de
profissionais respeitados a educaccedilatildeo de nossos filhos Como vimos brevemente por mais
que quiseacutessemos nossa vontade estaacute aqueacutem das possibilidades de realizaccedilatildeo Por este
vieacutes podemos traccedilar duas concepccedilotildees de ensino uma que se sabe limitada e neste limite
funda seu ensinamento outra que pretende limitar pelo controle que se diz sabedora dos
caminhos e se torna tutora do que e como proceder Uma ousa a outra se assegura uma
cuida no risco a outra entende que cuidar eacute evitar arriscar-se
Supotildee-se estar vendo dois caminhantes diante de uma correnteza selvagem
que arrasta consigo pedregulhos diversos o primeiro atravessa-o com leveza
nos peacutes utilizando as pedras para impulsionar-se cada vez mais adiante
mesmo que estas afundem assim que ele as deixa O outro permanece agrave
margem desamparado ele precisa primeiro construir os fundamentos que iratildeo
suportar o sem passo pesado e prudente (NIETZSCHE 2013 paacuteg 41)
A criacutetica ao ensino acompanha uma criacutetica no ensino Radicalmente eacute questionar
as instituiccedilotildees seus conteuacutedos e o modo como compreendemos seus papeacuteis na sociedade
isso ao menos em alguma instacircncia do contraacuterio estariacuteamos renegando o caraacuteter dialoacutegico
do pensamento e do ensino aqui propostos
Noacutes todos viemos de uma concepccedilatildeo de ldquoescola paternalista destinada a educar
os governados os que iriam obedecer e fazer em oposiccedilatildeo aos que iriam mandar e
pensarrdquo (TEIXEIRA 1947 paacuteg 27) que nada mais eacute do que a escola do sistema de
controle da ciecircncia pela teacutecnica Nesse paternalismo escolar natildeo soacute o ensino eacute controlado
mas tambeacutem a instituiccedilatildeo e suas partes componentes inclusive seu puacuteblico-alvo ndash os
alunos Na compreensatildeo funcional estes satildeo partes do todo que ainda natildeo se sabem todo
39
logo eacute preciso adestrar a compor o sistema Construccedilatildeo essa interminaacutevel sempre a
necessitar de mais instrutores pois novos satildeo os mecanismos
Nossa sociedade do conhecimento ou da aprendizagem como se a denomina
com seu slogan do aprender a aprender e do aprender ao longo de toda vida eacute
neste sentido um tipo de processo que em sua alunizaccedilatildeo do aprendiz o
converte tambeacutem em um aprendiz eterno mas de outra iacutendole um aprendiz
nunca de todo emancipado um aprendiz que natildeo solta da matildeo de seus
educadores (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 14 ndash traduccedilatildeo livre)19
Eacute um cuidado com a peccedila talvez um cuidado com o ente destituiacutedo de essecircncia
em que a diferenccedila eacute combatida e entendida por desigualdade e identidade por igualdade
cujas melhores hipoacuteteses criacuteticas recaem sobre as relaccedilotildees de poder ndash nas quais ldquoo
contraacuterio da igualdade natildeo eacute a diferenccedila mas a desigualdade que eacute socialmente
construiacuteda sobretudo numa sociedade tatildeo marcada pela exploraccedilatildeo classistardquo
(BENEVIDES 1998 paacuteg 156 ndash grifos no original) ndash mas carecem de questionamentos
sobre os mesmos valores que compotildeem e fundam suas criacuteticas
A partir disso podemos concluir que [] a criacutetica do ponto de vista do trabalho
natildeo nos permite pensar o proacuteprio modo de produzir [] O socialismo seria
uma lsquoforma social de distribuiccedilatildeorsquo adequada agrave produccedilatildeo industrial o modo de
produccedilatildeo natildeo eacute criticado radicalmente pelo contraacuterio ele eacute o ponto referencial
para a construccedilatildeo da criacutetica (SILVA 2016 paacuteg 37)
Trocando em miuacutedos para se dizer o que o aluno deve ou natildeo receber como
educaccedilatildeo se se deve ensinar ou natildeo filosofia ou literatura eacute preciso se perguntar o que
satildeo filosofia e literatura Arriscar pensar (natildeo necessariamente determinar) o ser dos entes
para aiacute viver no risco desta decisatildeo ao ensinar
Um dos criacuteticos literaacuterios brasileiros mais tradicionais e influentes interpreta que
decidir pela literatura eacute aceitar que ldquonas nossas sociedades a literatura tem sido um
instrumento poderoso de instruccedilatildeo e educaccedilatildeo [] A literatura confirma e nega propotildee
e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemasrdquo (CANDIDO 1989 paacuteg 113) Decerto esta eacute uma posiccedilatildeo que merece
diversas ressalvas principalmente por se referir ao ato literaacuterio como um instrumento
19 Nuestra sociedad del conocimiento o del aprendizaje como se la denomina con su eslogan del aprender
a aprender y del aprender a lo largo de toda la vida es en este sentido una suerte de proceso que en su
alumnizacioacuten del aprendiz lo convierte tambieacuten en un aprendiz eterno pero de otra iacutendole un aprendiz
nunca del todo emancipado un aprendiz que no se acaba soltar de la mano de sus educadores
40
remetendo-o assim agrave loacutegica tecnicista de pocircr tudo a serviccedilo da ciecircncia Contudo
chamamos atenccedilatildeo agrave importacircncia ldquopoderosardquo que a literatura adquire jaacute na tradiccedilatildeo
Neste sentido lidar com literatura e ensino trata mais de estabelecer um diaacutelogo
entre ambos do que simplesmente de apanhar livros nas seccedilotildees luacutedicas da biblioteca e
levar para que os alunos os leiam Pode-se fazer isso mas natildeo eacute necessaacuterio como aqui
vemos O convite ao poeacutetico cabe a todas as idades e se em tenra idade estamos carentes
de conhecimento o saber enquanto marca de pensamento ndash experiecircncia concreta de
vislumbramento de dor de temor de alegria ou seja de realidade ndash se dispotildee a quem
quer que entre em contato com o poeacutetico que faccedila o caminho de pensar e ser o poeacutetico
O saber natildeo eacute apreendido mas sim experienciado e para isso natildeo haacute preacute-requisito de
idade ldquoo termo infantil denomina normalmente uma faixa etaacuteria [] Pode o fenocircmeno
literaacuterio submeter-se a e ser apreendido por um tal criteacuterio ou classificaccedilatildeo Eacute
problemaacuteticordquo (CASTRO 1994 paacuteg 132)
Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a
realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da
lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de
pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de literatura como
um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das
experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que
natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas
Amor oacutedio guerra paz permanecer e partir Haacute muito tempo que andam juntos
com a filosofia e a literatura Esta eacute a proposta de um ensino na marca do pensamento
que diz porque sabe e cala porque diz Ao decidir pelo convite do ensinar reconhecemos
ldquoum vir a ser e perecer um construir e destruir sem qualquer acreacutescimo moral numa
inocecircncia eternamente idecircntica neste mundo existe apenas no jogo do artista e da crianccedilardquo
(NIETZSCHE 2013 paacuteg 68) Estar na marca do pensamento eacute portanto jogar o jogo
do poeta e da infacircncia
12 A tradiccedilatildeo
41
Este jogo de ensino seja ele de literatura e de filosofia seja de qualquer outra
disciplina eacute marcado por uma tradiccedilatildeo Quando nos perguntamos o que como e a quem
ensinar estamos levando em conta querendo ou natildeo um percurso histoacuterico de
compreensatildeo do mundo em que vivemos De certa maneira a tradiccedilatildeo foi um caminho
na marca do pensamento que se estabeleceu canonicamente de modo que essa tomada de
atitude torna-se familiar e conhecida num determinado grupo
Simultaneamente ao criticar o ensino critica-se a tradiccedilatildeo do ensinar Em linhas
gerais tanto o ensino quanto a tradiccedilatildeo se confundem em significado Como mostra o
sentido aceito amplamente pela sociedade encontra-se na palavra tradiccedilatildeo os significados
de ldquoato ou efeito de transmitir ou entregar transferecircncia heranccedila cultural conjunto de
valores costume haacutebito conjunto de doutrinas essenciais reconhecidos e aceitos por sua
ortodoxia e autoridaderdquo (HOUAISS 2009a)
Contudo assim como o ensino tambeacutem a tradiccedilatildeo pode ser pensada diversa e
criticamente Aqui se dispotildee a pensar a tradiccedilatildeo da tradiccedilatildeo isto eacute a tradiccedilatildeo do que se
costuma compreender como o que seja tradiccedilatildeo No seu ensaio A crise na educaccedilatildeo
Hannah Arendt (1972 paacuteg 243) jaacute chamava atenccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e
educaccedilatildeo ao dizer ldquoa crise da autoridade na educaccedilatildeo guarda a mais estreita conexatildeo com
a crise da tradiccedilatildeo ou seja com a crise de nossa atitude face ao acircmbito do passadordquo Um
relacionamento que evoca tambeacutem a autoridade de que a tradiccedilatildeo dispunha e que
determina os modos de ser da educaccedilatildeo consequentemente do ensino
Neste sentido qual a relaccedilatildeo entre ensino tradiccedilatildeo e autoridade Seria a tradiccedilatildeo
o ensino da autoridade Concebendo tradiccedilatildeo como conjunto de valores heranccedila cultural
e transferecircncia pode-se supor daiacute uma autoridade dos conteuacutedos Se foi feito assim
faccedilamos assim Mais uma vez lidamos com a transmissatildeo de uma concepccedilatildeo de maneiras
de ver o real teorias e metodologias Uma tradiccedilatildeo tecnicista que transmite a autoridade
cientiacutefica pelo ensino determinando o que o real eacute a partir do que se acredita que ele deve
ser controlaacutevel e controlado Por esse vieacutes de tradiccedilatildeo a criaccedilatildeo cede espaccedilo agrave
reproduccedilatildeo e a ousadia ao zelo
Pertence agrave proacutepria natureza da condiccedilatildeo humana o fato de que cada geraccedilatildeo se
transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geraccedilatildeo
para um mundo novo soacute pode significar o desejo de arrancar das matildeos dos
receacutem-chegados sua proacutepria oportunidade face ao novo (ARENDT 1972 paacuteg
226)
42
121 Quando o poeacutetico repousa esquecido
Esta eacute a tradiccedilatildeo do homem ocidental o mesmo que vive a ilusatildeo de poder
compreender tudo a seu redor Um homem que busca suas origens Isto significa estar
num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos e por fim sua forma de
ser Este eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita alfabeacutetica a filosofia e a
induacutestria Vale ressaltar que haacute um embate na Academia sobre se a invenccedilatildeo da escrita
alfabeacutetica eacute ou natildeo eacute obra grega A ideia neste trabalho natildeo eacute se perder ldquona busca do
primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica
fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo
(HAVELOCK 1996a paacuteg 15) pois nenhuma dessas revoluccedilotildees chegaram sem cobrar
um preccedilo Cada invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se
Como a tradiccedilatildeo tradicional lida com a inventividade Ao longo dos seacuteculos
houve criaccedilotildees das mais variadas nunca se deixou de inventar e criar a despeito da
autoridade da tradiccedilatildeo Por outro lado talvez certo desconforto com o que se apresenta
seja mesmo necessaacuterio a fim de que haja um impulso pela criaccedilatildeo Inclusive eacute de se
suspeitar a coincidecircncia de que justo no seacuteculo no qual mais se inventaram coisas maior
foi a repulsa pela tradiccedilatildeo A pergunta agora se refaz como se daacute essa inventividade que
despreza o jaacute inventado a ponto de estar sempre agrave busca por uma novidade
O problema da educaccedilatildeo no mundo moderno estaacute no fato de por sua natureza
natildeo poder esta abrir matildeo nem da autoridade nem da tradiccedilatildeo e ser obrigada
apesar disso a caminhar em um mundo que natildeo eacute estruturado nem pela
autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradiccedilatildeo (ARENDT 1972 paacuteg
245-246)
Este eacute o homem que vive a ilusatildeo A criaccedilatildeo que renega a tradiccedilatildeo desprezando-
a se ilude por natildeo reconhecer que toda invenccedilatildeo jaacute faz parte da tradiccedilatildeo somente por ter
sido inventada A novidade soacute existe conceitualmente ou no instante imensuraacutevel pois a
partir do derradeiro momento da criaccedilatildeo o a fazer se torna feito particiacutepio passado
43
Estando a coisa posta somente a disposiccedilatildeo criativa perante a tradiccedilatildeo pode dar
movimento e sentidos ao ateacute entatildeo adormecido
Poreacutem o imaginaacuterio da ficccedilatildeo da literatura natildeo pode ser confundido com a
simples ilusatildeo promotora da coisificaccedilatildeo e da alienaccedilatildeo do homem pela
manipulaccedilatildeo de estereoacutetipos ideoloacutegicos O ilusoacuterio natildeo promove o descortinar
do sentido do ser do homem humanizando-o libertando-o Pelo contraacuterio o
seu modelo eacute uniforme e repetido jamais dando lugar agrave diferenccedila ao que ainda
natildeo se sabe ao desafio do perguntar (CASTRO 1994 paacuteg 135 ndash grifo no
original)
Este eacute o homem que vem perdendo seu contato mais imediato e concreto com as
coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que nada mais eacute do que o desdobramento
do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo Um homem teacutecnico um homem no qual o
poeacutetico repousa esquecido Sobre este periacuteodo da nossa histoacuteria impotildee-se uma tradiccedilatildeo
nos moldes da ciecircncia e da teacutecnica moderna que almeja sempre suplantar qualquer outra
tradiccedilatildeo que natildeo lhe diga respeito
O pensar poeacutetico eacute o pensar se manifestando realizaccedilatildeo concreta [] Sua
concretude adveacutem precisamente da ausecircncia de certeza e da vigecircncia de uma
dinacircmica O pensar eacute apresentado como o pensar que pensa realizando
diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulaccedilatildeo
de abstraccedilotildees como informaccedilotildees coligidas para se apresentarem no mais das
vezes como simulacro de alguma realizaccedilatildeo externa a esse mesmo pensar
(JARDIM 2005 paacuteg 33)
122 A ideia e o ser
Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que
as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as
coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos
compreendecirc-las A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana
das coisas mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa
a ser nossa possibilidade de vecirc-las Jaacute dizia Pessoa
O Universo natildeo eacute uma ideia minha
A minha ideia do Universo eacute que eacute uma ideia minha
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A noite natildeo anoitece pelos meus olhos
A minha ideia da noite eacute que anoitece por meus olhos
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso (PESSOA 2006 paacuteg 51)
Nos versos do poeta na voz de seu heterocircnimo Alberto Caeiro ressoa como um
estrondo a dicotomia entre concreto e abstrato entre lidar com uma tradiccedilatildeo de
pensamento que se insere na emergecircncia das circunstacircncias na qual tudo tem um limite
no deslimite das possibilidades e compreender a instacircncia das coisas como algo
mensuraacutevel apreensiacutevel pelas ideias e conceitos em sua totalidade Isto eacute a crenccedila de que
a realidade pode ser conhecida genericamente apresentada num modelo que representa
todo o resto Desta forma jaacute tendo conhecido o molde basta adequaacute-la reproduzi-la Sem
que haja a necessidade de pensamento e criaccedilatildeo surge o costume de fazer
O calo eacute o haacutebito ndash o haacutebito cultural ndash e porque haacutebito automaacutetico mecacircnico
imediato esquema estiacutemulo-resposta embotador e gerador de apatia
indiferenccedila lassidatildeo Vecirc-se entatildeo como habitualmente se vecirc ou como todo
mundo vecirc Assim se sente assim se pensa Impera a atitude que uni-formiza
uni-dimensionaliza homo-geneiza e que eacute a vigecircncia do raso do plano da
planiacutecie ou seja a apatia ou a indiferenccedila do tudo igual do mediacuteocre
(FOGEL 2007 paacuteg 40 ndash grifos no original)
Natildeo soacute isso esta tradiccedilatildeo que se engendra no haacutebito tende a natildeo dar importacircncia
ao que natildeo tem utilidade isto eacute natildeo pode se adequar aos moldes da funcionalidade A
pergunta que se faz diante do desconhecido deixa de ser ldquoo que eacute istordquo para virar ldquopara
que serve istordquo Quando a resposta eacute positiva a realidade passa a vigorar pela sua funccedilatildeo
quando negativa eacute descartada ou deixada agrave mercecirc da indiferenccedila e do desdeacutem A respeito
do poema ldquoUma flor agrave margem do rio para ele era uma flor amarela e natildeo era mais nadardquo
(WORDSWORTH apud PESSOA 2006 paacuteg 61)20 diz Caeiro
Toda coisa que vemos devemos vecirc-la sempre pela primeira vez porque
realmente eacute a primeira vez que a vemos E entatildeo cada flor amarela eacute uma nova
flor amarela ainda que seja o que se chama a mesma de ontem A gente natildeo eacute
jaacute o mesmo nem a flor a mesma O proacuteprio amarelo natildeo pode ser jaacute o mesmo
Eacute pena a gente natildeo ter exatamente os olhos para saber isso por que entatildeo
eacuteramos todos felizes (PESSOA 2006 paacuteg 61)
20 A primrose by the riverrsquos brim A yellow primrose was to him And it was nothing more
45
Neste sentido compreende-se a tradiccedilatildeo como um conceito isto eacute ldquocomo a coisa
sempre jaacute vista sempre jaacute sabidardquo (FOGEL 2007 paacuteg 41 ndash grifos no original)
Compreende-se enquanto o que se prende junto a si A ilusatildeo de poder compreender tudo
se faz principalmente por se tratar desse caraacuteter conceitual e abstrato com que nos
relacionamos com as coisas Entatildeo quando o poeta chama atenccedilatildeo agrave diferenccedila entre
alguma coisa e a minha ideia sobre alguma coisa eacute como se ele convidasse a experienciar
a realidade para os limites que ela a cada vez nos impotildee ao inveacutes de impormos nossa
limitaccedilatildeo conceitual a ela
Diferente de ser dois homem e realidade o poema apresenta que ldquoo fulgor das
estrelas existe como se tivesse pesordquo (PESSOA 2006 paacuteg 51) ou seja sentimos a
realidade como a um semelhante o fulgor natildeo eacute substantivo abstrato mas o arremate que
nos causa maravilhamento espanto terror todas as sensaccedilotildees que por sua vez geram
reaccedilotildees prova de que natildeo estamos apaacuteticos perante o que eacute Tal estado de ser se
corresponde a uma multiplicidade de disposiccedilotildees natildeo se esgotando na funcionalidade
que o fulgor das estrelas poderia ter
A ideia de algo natildeo versa a respeito das singularidades e sim sobre o que seus
nuacutemeros e estatiacutesticas indicam Pode de fato o sabor de uma banana ou maccedilatilde ceder lugar
ao conjunto das frutas quantitativamente sem gosto Ateacute a morte natildeo eacute mais uma
manifestaccedilatildeo do real tanto quanto respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser
superado basta termos mais conhecimentos a respeito
mdash Se concebo o quecirc Uma coisa ter limites Pudera O que natildeo tem limites
natildeo existe Existir eacute haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser
limitada O que eacute que custa conceber que uma coisa eacute uma coisa e natildeo estaacute
sempre a ser uma outra coisa que estaacute mais adiante []
mdash Olhe Caeiro Considere os nuacutemeros Onde eacute que acabam os nuacutemeros
Tomemos qualquer nuacutemero ndash 34 por exemplo Para aleacutem dele temos 35 36
37 38 e assim sem poder parar Natildeo haacute nuacutemero grande que natildeo haja um
nuacutemero maior
mdash Mas isso satildeo soacute nuacutemeros ndash protestou o meu mestre Caeiro E depois
acrescentou olhando-me com uma formidaacutevel infacircncia
mdash O que eacute o 34 na Realidade (PESSOA 2006 paacuteg 62)
Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como
tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de
novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma
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forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia
murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos
Tudo com o que se tem contato passa a ser o sem misteacuterio o sabido e o
compreendido ou a compreender Tudo pode ser acessado inclusive o proacuteprio homem O
homem pelo homem passa a ser um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser
diagnosticada e curada o humano torna-se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma
infinidade de predicativos que validam o sujeito homem Nossa ideia de homem passa a
ser o homem
123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo
Nossa ideia de tradiccedilatildeo natildeo eacute a tradiccedilatildeo Melhor dizendo atualmente vigora uma
concepccedilatildeo de tradiccedilatildeo que natildeo permaneceu a mesma no tempo o que significa que o
modo como o homem foi apreendido pela histoacuteria mudou Na proacutepria liacutengua encontramos
traccedilos de outra tradiccedilatildeo em sua etimologia formas diversas de ser no mundo Conveacutem
entretanto uma ressalva a busca aos sentidos anteriores quiccedilaacute originaacuterios nem sempre
tem a ver com um empenho gramatical ldquoEtimologia natildeo diz em primeiro lugar ciecircncia
linguiacutestica que investiga a identidade entre os radicais das palavras [] Em sentido
proacuteprio (aqui literal) etimologia diz logos do eacutetimo linguagem do proacuteprio comeccedilordquo
(SCHUBACK 1996 paacuteg 62) Em vez disso trata-se de estar atento ao aceno de
significaccedilotildees e de experiecircncias que as palavras portam cujo uso comunicativo da liacutengua
ignora ou desconhece
Etimologia tambeacutem eacute um dizer mas um dizer originaacuterio que emerge de uma
consentaneidade O radical eacutetymos significa legiacutetimo autecircntico verdadeiro
Etimologia natildeo eacute um dizer qualquer Eacute o dizer que remonta para o proacuteprio
processo de dizer que proveacutem da verdade do proacuteprio dizer e por isso se faz
legiacutetimo pelo vigor de sua proacutepria vigecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 104)
Tendo isso dito observa-se que a palavra tradiccedilatildeo se origina de traditio ndash
conforme se encontra em Houaiss (2009a Tradiccedilatildeo) Dicionaacuterio Michaelis (2015
47
Tradiccedilatildeo)21 e Aulete e Valente (2016 Tradiccedilatildeo)22 ndash por via erudita conforme Ferreira
(2004 Tradiccedilatildeo) Por sua vez temos os seguintes sentidos etimoloacutegicos ldquoaccedilatildeo de dar
entrega transmissatildeo tradiccedilatildeo ensinordquo (HOUAISS 2009a) que aparentemente se
mantiveram com relativa estabilidade no uso contemporacircneo da liacutengua em se tratando do
significado mais abstrato da palavra sob o conceito de ir passando um conhecimento
adiante perpetuando um saber
Ao procurar num dicionaacuterio de latim confirma-se o significado de entrega
transmissatildeo e ensino natildeo se restringindo todavia ao abstrato do termo Considera-se
tambeacutem o transporte fiacutesico de objetos e de pessoas ldquo1 A entrega (de mercadorias bens
etc) rendiccedilatildeo (de pessoas territoacuterio etc) [] 2 A transmissatildeo de conhecimento ensino
b a entrega do conhecimento um item de conhecimento tradicional crenccedila etc)rdquo
(GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)23 Perdemos no habitual da liacutengua a tradiccedilatildeo
para o concreto Uma pessoa pode ser entregue agrave poliacutecia um terreno pode ser entregue ao
seu proprietaacuterio mas dificilmente chamariacuteamos isso de tradiccedilatildeo Logo a primeira entrada
do dicionaacuterio latino ficou esquecida Aqui seraacute tarefa do pensamento perscrutar o terreno
do esquecimento para fazer a experiecircncia de mundo calada na palavra
Prosseguindo traditio eacute constituiacuteda a partir da substantivaccedilatildeo do verbo trado com
o sufixo -tio (GLARE 1968 paacuteg 1956) equivalente ao nosso -ccedilatildeo Um verbo rico por
sinal com dez entradas no Oxford Dictionary A maioria satildeo nuances do sentido-base de
entregar por exemplo ldquo1 Entregar ou passar adiante (para uma pessoa) b dar (para uma
pessoa para segurar) transferir (para uma posiccedilatildeo) c entregar (ao funcionamento das
forccedilas naturais etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)24 Alguns sentidos jaacute
mais distantes referem-se a trado como ldquo7 Introduzir (uma pessoa a outra ndash traduccedilatildeo
livre)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956)25
21 Disponiacutevel em
lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=tradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16
set 2016 22 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16 set 2016 23 1 The handing over delivery (of goods possessions etc) surrender (of persons territory etc) [] 2
The transmission of knowledge teaching b the handing down of knowledge a item of traditional
knowledge belief etc) 24 1 To hand or pass over (to a person) b to hand over give (to a person to hold) to transfer (to a
position) c to deliver hand over (to the operation of natural forces etc) 25 7 To introduce (a person to another)
48
Introduzir natildeo deixa de guardar certa semelhanccedila com entregar pois tambeacutem diz
de levar algueacutem ou algo de uma posiccedilatildeo a outra Todo esse translado natildeo eacute agrave toa uma vez
que a palavra trado jaacute remete a isso em sua formaccedilatildeo por meio do prefixo trans- com o
verbo do (GLARE 1968 paacuteg 1956) em que trans- nos diz de ldquo1 Do outro lado ou por
cima atraveacutes para o outro lado de [] Formas frequentemente tra- antes de consoantes
surdasrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1961 ndash traduccedilatildeo livre)26 A saber temos ainda no portuguecircs
falado o uso do trans- seja nesta forma como em transbordar e transportar seja na forma
tra- em tradiccedilatildeo traduzir ou ateacute numa outra variaacutevel como em trespassar (LIMA 1972
paacuteg 178) Isto significa que natildeo eacute nenhum espanto ter ainda que vagamente a noccedilatildeo de
passagem passar aleacutem de ao pensar ao pronunciar a palavra tradiccedilatildeo tra-diccedilatildeo
A outra parte dessa uacuteltima composiccedilatildeo eacute do o verbo dar em latim Este eacute um verbo
complexo Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos O
primeiro deles que aparece no latim eacute ldquo1 Conferir gratuitamente dar posse de fazer uma
doaccedilatildeo de dar b dar oferecer (aos deuses os mortos etc) c conceder (a posse legal a
utilizaccedilatildeo etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 566 ndash traduccedilatildeo livre)27
De fato na entrega algo eacute dado algo eacute oferecido garante-se que por um
deslocamento algo atravessa ateacute outra circunstacircncia Em todo trado haacute um do toda
entrega daacute Um dar que reforccedila a travessia do dado no seu prefixo Entregar como o que
ldquotransdaacuterdquo resguardando a importacircncia que a passagem tem para a entrega Levando isso
em conta o modo verbal que foca seu aspecto no movimento eacute o geruacutendio Tem-se pois
entregar trado enquanto um dar oferecendo Um dar que eacute dando E assim eacute feita a
entrega a tradiccedilatildeo como o ato que daacute e permanece neste movimento de doaccedilatildeo
Quem oferece introduz uma oferta Uma daacutediva que natildeo se materializa
simplesmente no seu destino como se seu objetivo fosse somente a finalidade mas que
faz uma trajetoacuteria da entrega ao recebimento E quanto agrave sua origem quanto agrave sua meta
Entrega enquanto tradiccedilatildeo atravessa e por isso eacute atravessada Isto eacute tradiccedilatildeo eacute um
atravessamento da entrega sempre se originando ldquoTudo o que acontece eacute sempre um
comeccedilordquo (RILKE 1976 paacuteg 52)
26 1 Across or over also through to the other side of [hellip] Forms freq tra- before voiced consonants 27 1 To confer gratuitously give possession of make a gift of give b to give offer (to the gods the dead
etc) c to grant (legal possession use etc)
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A partir do momento em que se chega ao alvo cessa a entrega para a tradiccedilatildeo
Por isso que tradiccedilatildeo enquanto tra-diccedilatildeo precisa estar em constante recebimento e oferta
Precisa passar adiante e desta forma estar em insistente diaacutelogo com a histoacuteria e sua
dinacircmica A mera reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo em outras palavras a tradiccedilatildeo da reproduccedilatildeo
natildeo reverbera na tensatildeo do ontem do hoje e do sempre Eacute dar sem a travessia sem os
percalccedilos do caminho Entre o que permanece no fluxo das mudanccedilas haacute uma tradiccedilatildeo
entre o que muda na constacircncia haacute uma tradiccedilatildeo e assim sua obra continua a fazer sentido
por mais diversas que sejam as eacutepocas as pessoas as circunstacircncias Num paralelo com
a obra de arte a tradiccedilatildeo exerce sua dinacircmica de maravilhamento e repulsa concessatildeo do
tracircnsito das experiecircncias de mundo
A unicidade da obra de arte eacute idecircntica agrave sua inserccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo
Sem duacutevida essa tradiccedilatildeo eacute algo de vivo de extraordinariamente variaacutevel
Uma antiga estaacutetua de Vecircnus por exemplo estava inscrita numa certa tradiccedilatildeo
entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradiccedilatildeo na
Idade Meacutedia quando os doutores da Igreja viam nela um iacutedolo malfazejo O
que era comum as duas tradiccedilotildees contudo era a unicidade da obra []
(BENJAMIN 1987 paacuteg 171)
124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo
A tradiccedilatildeo pois eacute um processo natildeo um produto Ou pelo menos assim seria para
os entendidos das etimologias conhecedores das liacutenguas claacutessicas estudiosos e
especialistas A quem eacute vedado o conhecimento distante estaacute a luz do saber Equivoca-
se quem se debruccedila sobre dicionaacuterios mais do que se dedica ao pensamento O caminho
aqui oferece questotildees natildeo soluccedilotildees
O que eacute a palavra sem a relaccedilatildeo com o que nomeia e o que nela vem agrave palavra
Deve-se sair correndo de toda etimologia vazia e acidental ela se torna
jogatina se o que se estaacute a nomear na palavra jaacute natildeo tiver sido anteriormente
pensado por caminhos longos e vagarosos e natildeo continuar a ser sempre de
novo pensado comprovado e sempre de novo provado em sua essecircncia de
palavra (HEIDEGGER 1998 paacuteg 207)
Por isso conveacutem enveredar-se tanto no mais recocircndito significado a fim de
auscultar seu sentido praticamente mudo na fala mais corriqueira bem como no
50
aparentemente mais banal significado arcaico Desse modo reconhecemos que em toda
fala cotidiana haacute um canto antigo e inaudito Assim continuamos com a etimologia agora
pela via popular de traditio
Em Aulete e Valente (2016 Traiccedilatildeo)28 e Ferreira (2004 Traiccedilatildeo) encontra-se
outra via de acesso que natildeo a erudita ao portuguecircs brasileiro da palavra traditio a palavra
traiccedilatildeo Resumidamente tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo possuem exatamente a mesma origem latina
em traditio Ora traiccedilatildeo nos eacute apresentada pelos meios de comunicaccedilatildeo mais usados e
acessiacuteveis como uma ruptura da expectativa e da confianccedila sendo normalmente encarada
como uma maldade por nossa moral vigente ldquoQuebra de fidelidade prometida e
empenhada aleivosia deslealdade perfiacutediardquo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015
Traiccedilatildeo)29 Qual eacute a daacutediva entatildeo Onde estaacute a traditio na traiccedilatildeo
Bom e ruim satildeo paradigmas morais Quando se diz da traiccedilatildeo de outrem leva-se
em conta sua conduta perante o que se espera enquanto membro de uma sociedade Pela
traiccedilatildeo se fixou a negatividade do que eacute dado A tradiccedilatildeo maacute a tradiccedilatildeo perversa a daacutediva
rejeitada socialmente uma traiccedilatildeo Ora essa postura determiniacutestica natildeo considera o trans-
que tambeacutem haacute na traiccedilatildeo O absoluto que jaz aparentemente em toda traiccedilatildeo se revela
tatildeo variaacutevel assim como a relaccedilatildeo de infidelidade da esposa com o marido natildeo tem a
mesma perfiacutedia moral que a quebra da confianccedila pelo espiatildeo em defesa da paacutetria Esta
talvez nem maldade fosse mas digna de medalha por seus pares
Originalmente ndash assim eles decretam ndash as accedilotildees natildeo egoiacutestas foram louvadas e
consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas aqueles aos quais eram
uacuteteis mais tarde foi esquecida essa origem do louvor e as accedilotildees natildeo egoiacutestas
pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas foram
tambeacutem sentidas como boas ndash como se em si fossem algo bom (NIETZSCHE
1998 paacuteg 18)
Na dinacircmica do movimento o bom e o ruim se imiscuem Entatildeo trair pode ser
uma coisa boa justificaacutevel em algumas ocasiotildees assim como a tradiccedilatildeo Eacute importante
aqui natildeo confundirmos o caminho com o caminhar O caminho natildeo faz escolhas o
caminhar sim A traiccedilatildeo oferece daacute e entrega algo o modo como lidamos com essa oferta
eacute outra perspectiva Um caso social pessoal cultural Traiccedilatildeo natildeo eacute soacute mateacuteria de
tabloides pelo contraacuterio ela reconhece a tradiccedilatildeo e neste reconhecimento nega-a
28 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtraiC3A7C3A3ogt Acesso em 18 set 2016 29 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscaid=4bjp3gt Acesso em 18 set 2016
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oferecendo outra possibilidade de concepccedilatildeo do real cuja moral da tradiccedilatildeo ndash aquela
tradicional e comprometida com o produto a ser entregue natildeo com o processo ndash reprova
Em consonacircncia com a dinacircmica da travessia a traiccedilatildeo engendra o outro valor da tradiccedilatildeo
sua proacutepria instacircncia de desvio agrave qual a entrega enquanto doaccedilatildeo de possibilidades se
dispotildee
Contudo eacute compreensiacutevel a descrenccedila de que traiccedilatildeo seja algo que natildeo um
comportamento execraacutevel Afinal desde haacute muito a proximidade com uma semacircntica da
malignidade se adequa agrave palavra Os primeiros dicionaacuterios do portuguecircs jaacute apresentam
esse sentido e isto nos indica ao menos nos ciacuterculos intelectuais qual eacute a interpretaccedilatildeo
do termo que se arrasta na histoacuteria da liacutengua permeando nossa concepccedilatildeo de mundo
ldquoTraiccedilaotilde ndash perfiacutedia falta de fidelidade ao Principe ao amigo que se fiava de nogravesrdquo
(BLUTEAU 1728 paacuteg 237) ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia entrega da feacute quebra da fidelidade
prometidardquo (SILVA 1789 paacuteg 794) e ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia falta de fidelidaderdquo (PINTO
1832 paacuteg 1057)
A relaccedilatildeo entre perfiacutedia e traiccedilatildeo natildeo comeccedila neste momento nem se restringe ao
portuguecircs mostrando que outras liacutenguas detiveram semelhante compreensatildeo de mundo
ldquoO Italiano chama ao Traductor Traidor Traduttore Traditore mas o Traductor fiel natildeo
he Traidorrdquo (BLUTEAU 1728 paacuteg 234) Uma proximidade que se justificaria na
formaccedilatildeo na qual traduccedilatildeo deriva de trans- + -duco- + -tio Ambos os verbos trado e
traduco satildeo introduzidos pelo prefixo-ponte aceno para a travessia na sua forma tra-
Entre duco e do entre trazer e dar haacute sim muitos sentidos parecidos que se distanciam
com sutileza e se aproximam com cautela Na proposiccedilatildeo anterior o tradutor fiel traria o
sentido do verso enquanto que o traidor daacute sentido ao verso fugindo agrave fidelidade da
mensagem
Ora quantos ruiacutedos existem entre o que se diz e o que se quer dizer Quem haacute de
mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido Imersa em
narrativa a mensagem assume o rosto das variadas interpretaccedilotildees e ainda assim a
mensagem eacute apenas a interpretaccedilatildeo do real enquanto palavra obra gesto e natildeo o real
propriamente A unicidade da obra a que Benjamin (1987 paacuteg 171) se referia eacute o que
permite uma entrega a cada vez autecircntica de respostas sem esgotar a questatildeo que a arte
suscita Nessa dimensatildeo todo tradutor eacute em certa medida traidor ainda sem o querer
pois necessariamente ele falharaacute em entregar a mensagem na iacutentegra concomitantemente
52
o tradutor eacute um ldquotraditorrdquo algueacutem que porta uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo e a passa
adiante em sua possibilidade de autenticidade
125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo
A traiccedilatildeo natildeo deixa de ser uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ou melhor
da falta agrave tradiccedilatildeo seja na figura de um rei enganado seja na de um amante infiel A
histoacuteria da liacutengua apenas serve para confirmar a desconfianccedila que a traiccedilatildeo engendra
Todavia o uacuteltimo seacuteculo tem revisto sua proacutepria compreensatildeo de relato histoacuterico o que
vem influenciando as mais diversas aacutereas inclusive a lexicografia
Os dicionaristas agora levam em conta natildeo apenas a norma culta escrita para
reconhecer uma entrada no dicionaacuterio ndash como nas primeiras publicaccedilotildees em liacutengua
vernacular ndash mas o uso corrente oral palavras chulas e ateacute palavras de uso apenas em
determinadas comunidades Essas populaccedilotildees algumas delas isoladas do conviacutevio com o
restante da civilizaccedilatildeo tiveram um desenvolvimento proacuteprio da liacutengua condizente com
sua experiecircncia de mundo
Nesse sentido algumas palavras para noacutes ndash que estamos acostumados com o
linguajar citadino que fomos atravessados por anos de teorias e praacuteticas cientiacuteficas jaacute
cristalizadas ndash podem soar estranhas pela maneira como usam aquelas comunidades
embora ambas tenham uma origem comum Isto eacute cada tradiccedilatildeo faz seu caminho e
resguarda interpretaccedilotildees singulares em diaacutelogos mais ou menos audiacuteveis no uso
corriqueiro das fontes propulsoras do nomear
No dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que
pela fala perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircncia Contudo na maior
parte das vezes e com frequecircncia o dito nos vem ao encontro como uma fala
que passou
Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz fariacuteamos bem em
encontrar um dito que se diz genuinamente e natildeo um dito qualquer escolhido
de qualquer modo Dizer genuinamente eacute dizer de tal maneira que a plenitude
do dizer proacutepria ao dito eacute por sua vez inaugural (HEIDEGGER 2003 paacuteg
12)
53
Nos grandes dicionaacuterios de portuguecircs brasileiro uma das entradas de traiccedilatildeo
destoa do sentido de perfiacutedia mais usual ao mesmo tempo em que se aproxima de uma
entrega e uma oferta ldquo4 Regionalismo Minas Gerais Mato Grosso Mato Grosso do Sul
Variedade de mutiratildeo em que o fazendeiro que tenciona auxiliar o vizinho chega agrave casa
deste de madrugada em companhia de trabalhadores e desperta-o ao som de cantosrdquo
(HOUAISS 2009a Traiccedilatildeo) ldquo5 MG MT MS Mutiratildeo em que os ajudantes chegam agrave
casa de quem vai ser ajudado de madrugada e acordam-no com cantosrdquo (AULETE
VALENTE 2016 Traiccedilatildeo) ldquo5 Bras MT Espeacutecie de mutiratildeo (q v) com a
particularidade de o fazendeiro que pretende auxiliar o vizinho chegar agrave casa deste alta
noite de surpresa em companhia dos trabalhadores acordando-o em geral ao som de
cantos [Cf nesta acepccedil suta (3) e estalada (5)]rdquo (FERREIRA 2004 Traiccedilatildeo)
6 REG (MG MS MT) ETNOL Ver suta acepccedilatildeo 3 3 REG (GO) ETNOL
Mutiratildeo prestado por amigos e vizinhos de um fazendeiro que chegam de
surpresa para realizar um serviccedilo urgente e quando concluiacutedo voltam para a
sede da fazenda para um jantar especial seguido de reza cantoria e danccedila
traiccedilatildeo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015 Suta)30
Como a traiccedilatildeo virou auxiacutelio Como de perfiacutedia a palavra traiccedilatildeo ganhou uma
conotaccedilatildeo praticamente oposta digna inclusive de comemoraccedilotildees A tal pergunta natildeo se
pode responder com certeza neste trabalho Em geral os regionalismos satildeo marcas
culturais como estruturas linguiacutesticas que se referem a determinadas comunidades e satildeo
leituras de mundo feitas por ou a respeito delas Apresentam uma singularidade no uso
seja na manutenccedilatildeo de sentidos seja na construccedilatildeo de novas relaccedilotildees entre palavra e
realidade de tal modo que um sentido antigo poderia tomar um caminho aparentemente
contraditoacuterio ao canocircnico e ainda assim dialogar com este no que haacute de originaacuterio em
ambos Em entrevista ao Diaacuterio de Lisboa Joatildeo Cabral de Melo Neto nos oferece sua
interpretaccedilatildeo do que seja o regionalismo e o regional
O regionalismo natildeo eacute uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de
problemas que estatildeo mais proacuteximos da pessoa que fala a dor do homem a
alegria suas lutas e as suas belezas etc [] Quando me bato pelo regionalismo
eacute para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os
30 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=sutagt Acesso em 20 set
2016
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homens O homem soacute eacute amplamente homem quando eacute regional (ATHAYDE
1998 paacuteg 85)
Tem-se pois a ajuda oferecida Uma comunidade na qual um de seus membros
receberia auxiacutelio de bom grado apresenta-se e se dispotildee ao trabalho conjunto Importante
notar que a vinda auxiliadora natildeo recai exclusivamente na realizaccedilatildeo do labor mas se
enfeita de muacutesica e danccedila um rito trabalhiacutestico Ela natildeo eacute imediata natildeo eacute objetiva em sua
funccedilatildeo mas se permite demorar no empenho de ajudar num tempo em que ajuda natildeo eacute
puro desempenho da tarefa Por sua vez o ajudado tambeacutem oferece algo comidas
agradecimentos e seu trabalho se junta aos demais na comunhatildeo criada para aquela
circunstacircncia especiacutefica
Neste caso a festa eacute tatildeo necessaacuteria quanto o trabalho Tanto que o serviccedilo natildeo visa
agrave remuneraccedilatildeo natildeo se busca a troca simboacutelica A voluntariedade estaacute na garantia de
persistecircncia desse tipo de relaccedilatildeo de comunidade que se ajuda pois cada um eacute tanto um
uacutenico quanto a unidade que caracteriza o comum Eu o ajudo no que me ajudo Na entrega
da ajuda que eacute uma traiccedilatildeo em particular eu perpetuo a tradiccedilatildeo daquela comunidade
Esta eacute a traiccedilatildeo que oferece ajuda mediante confraternizaccedilatildeo e agrave revelia de salaacuterio
Uma daacutediva que natildeo se fia unicamente no desfecho para o ato e que atravessa toda a accedilatildeo
desde sua requisiccedilatildeo de auxiacutelio ateacute sua promessa ambas veladas no desvelar daquela
comunidade A isto chamamos de outro nome quando nos reunimos para ajudar em
amizade e em prol de um uacutenico em unidade com os demais mutiratildeo
Para compreender a relaccedilatildeo regionalista com a palavra traiccedilatildeo conveacutem ouvir nela
o que aparece como sinocircnimo dicionarizado agrave palavra mutiratildeo Aqui sinocircnimo seraacute
tratado como um termo que indica a aproximaccedilatildeo entre as experiecircncias de mundo que as
palavras sugerem Logo prestar atenccedilatildeo ao que mutiratildeo se refere eacute atentar-se agravequilo que
a traiccedilatildeo pode vir a dizer a noacutes e diz agrave sua maneira aos que vivem naquelas comunidades
regionais
A palavra mutiratildeo se origina de potyrotilde pitibotilde popitibotilde e picorotilde (DICIONAacuteRIO
TUPI-GUARANI 2016 Mutiratildeo)31 Na liacutengua tupi ldquop t k quando precedidos por vogai
nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng [] b em siacutelaba aacutetona muda-se em m quando
precedido por vogal nasal ou nasalizadardquo (RODRIGUES 1953 paacuteg 123) Isso ocasiona
31 Disponiacutevel em lthttpwwwdicionariotupiguaranicombrdicionariomutiraogt Acesso em 21 set
2016
55
a variaccedilatildeo motyrotilde que significa no idioma indiacutegena ldquo(v intr) ndash trabalhar em conjuntordquo
(NAVARRO 2013 paacuteg 405) Diferentemente de um grego ou latim o tupi eacute uma liacutengua
que nos chegou exclusivamente pela via oral assim uma mesma palavra pode ter vaacuterias
origens devido agraves incertezas que a envolvem Isso de nenhuma maneira precisa ser
encarado como um demeacuterito mas como desafio de lidar com o variado e o mesmo
simultaneamente
Um caminho de interpretaccedilatildeo possiacutevel para isto a que os indiacutegenas chamavam de
popitibotilde ou popytybotilde proveacutem da palavra popy que literalmente quer dizer ldquoponta cabo
extremidade (de qualquer coisa)rdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 394) haja vista sua
constituiccedilatildeo poacute ldquomatildeordquo (NAVARRO 2013 paacuteg 390) + py ldquopeacute patardquo (NAVARRO
2013 paacuteg 413) Vaacuterias satildeo as palavras geradas com esse radical por exemplo popyatatilde
e popyrsquoi ldquolsquoser forte de braccedilosrsquo [e] lsquodestreza de matildeosrsquordquo(NAVARRO 2013 paacuteg 394)
respectivamente Nesse sentido popytybotilde significa ldquo(etim ndash ajudar a matildeo) (v tr) ndash
ajudarrdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 395) Ajudar com as matildeos uma indicaccedilatildeo ao esforccedilo
no empenho do auxiacutelio como nos esforccedilamos em trabalhos manuais Auxiliar natildeo como
quem apoia ou aconselha mas como quem carrega o fardo alheio com as proacuteprias matildeos
fazendo-o seu por instantes
126 Os mutirotildees do homem
Embora a palavra seja de origem tupi outras tribos como os šerersquonte tinham
experiecircncias semelhantes agravequela referente a potyrotilde ldquoSe a capina foi demasiada para uma
famiacutelia o marido saiu para caccedilar preparou uma torta de carne a partir da caccedila e a serviu
para os companheiros que vieram assisti-lordquo (NIMUENDAJUacute 1942 paacuteg 33 ndash traduccedilatildeo
livre)32 Tambeacutem assim o portuguecircs compara em sinocircnimo emergecircncia do que se afina
nas diversas singularidades o mutiratildeo agrave traiccedilatildeo
Traiccedilatildeo que eacute tradiccedilatildeo ou seja mutiratildeo que eacute tradiccedilatildeo um atravessamento no
tempo de um trabalho conjunto em comunidade Neste desdobramento social daacute-se um
32 If the weeding was too much for one family the husband went hunting had a meat-pie made from the
kill and served it to fellow-members who came to assist him
56
trabalho pelas mesmas matildeos que recebem a festa que eacute o natildeo trabalho que eacute o desvio do
caminho da ajuda Desvio e via de trabalho fazem parte do mutiratildeo assim como fazem
da tradiccedilatildeo sua traiccedilatildeo sua outra via de acesso ao que eacute entregue
Aprender que a tradiccedilatildeo porta o descaminho da mensagem eacute aceitar a festa sem a
qual natildeo haacute mutiratildeo sem o mutiratildeo a obra natildeo anda Sem a traiccedilatildeo a histoacuteria se repete
sem invenccedilatildeo tradicionalmente se repete Justamente eacute pela educaccedilatildeo que nos deparamos
com o empenho de pensar o desempenho da traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo agrave medida que se educa
como quem traduz cuidando para que se deixe emergir na traduccedilatildeo o vigor da tradiccedilatildeo
isto eacute o que manteacutem a tradiccedilatildeo viva doadora de sentidos sejam eles arcaicos sejam
contemporacircneos instigadora de sentidos tanto conservadores quanto iconoclastas
Mas na mesa aquele menino Guirigoacute na senvergonhice inocente de sua pouca
geraccedilatildeo tinha adormecido completo antecipadamente e eu consenti que as
mulheres carregassem o coitadinho diabinho pesado como um de maioridade
e levassem para dormir sei laacute onde por entre colchatildeo e lenccedilol A vida inventa
A gente principia as coisas no natildeo saber por que e desde aiacute perde o poder de
continuaccedilatildeo ― porque a vida eacute mutiratildeo de todos por todos remexida e
temperada (ROSA 2016 paacuteg 316)
57
2 Pensando a Filosofia
21 A filosofia como resposta
Seria pois a resposta para nossos problemas a filosofia Ao optar pelo estudo
dessa disciplina leva-se a crer que haacute certo indiacutecio da apoteose filosoacutefica como desenlace
Pretensotildees agrave parte questiona-se entre outras coisas se e como a filosofia se relaciona
com a tradiccedilatildeo e haja vista a relaccedilatildeo de ensino e tradiccedilatildeo como ela se relaciona com o
ensino
Para isso conveacutem uma seacuterie de outras perguntas Poreacutem um dilema eacute estabelecido
na hora de responder a elas eacute possiacutevel de fato dar uma resposta O que eacute isto aonde chega
meu questionamento A relaccedilatildeo de filosofia com o responder natildeo eacute a mais oacutebvia Isso
porque compreendecirc-la no acircmbito do perguntar tornou-se lugar-comum do filosofar cujas
respostas passam por fugidias para natildeo dizer pouco confiaacuteveis Essa falta de confianccedila
em suas soluccedilotildees aparece como uma de suas caracteriacutesticas fundamentais possibilitando
um questionamento incessante sem um compromisso expliacutecito de resoluccedilatildeo e nem de
compreensatildeo ldquoo fazer-se compreensiacutevel eacute o suiciacutedio da filosofiardquo (HEIDEGGER 1989
paacuteg 435 ndash traduccedilatildeo livre) 33
Natildeo que essa forma de conhecimento seja totalmente avessa a propor caminhos
afinal ldquoa exclusividade da criaccedilatildeo de conceitos assegura agrave filosofia uma funccedilatildeo []rdquo
(DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17) Natildeo encerrando na assertiva anterior a
problemaacutetica a dupla de intelectuais franceses ainda desmistifica diversas crenccedilas a
respeito da filosofia e ratifica seu papel uacutetil neste caso o de conceituar Dar nome ao
inominado enveredando pelo inominaacutevel
[] a grandeza da filosofia estaria justamente em natildeo servir para nada eacute um
coquetismo que natildeo tem graccedila nem mesmo para os jovens Em todo caso natildeo
tivemos jamais um problema concernente agrave morte da metafiacutesica ou agrave superaccedilatildeo
da filosofia satildeo disparates inuacuteteis e penosos Fala-se hoje da falecircncia dos
sistemas quando eacute apenas o conceito de sistema que mudou Se haacute lugar e
tempo para a criaccedilatildeo dos conceitos a essa operaccedilatildeo de criaccedilatildeo sempre se
33 Das Sichverstaumlndlichmachen ist der Selbstmord der Philosophie
58
chamaraacute filosofia ou natildeo se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um
outro nome (DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17)
Apregoa-se na citaccedilatildeo acima a serventia da filosofia Sua causa seria algo claro
e em contrapartida qualquer aporia seja em suas teorias (como o fim da metafiacutesica) seja
dela consigo proacutepria seu porquecirc de existir eacute faceirice de criadores de intrigas
desnecessaacuterias Em outras palavras nesse trecho um conceito eacute uma resposta As nuances
do que isso significa para Deleuze se desdobram e ldquo[] natildeo deixam margem para duacutevida
a filosofia natildeo eacute uma simples arte de inventar de produzir os conceitos ela eacute uma
disciplina rigorosa que tem como funccedilatildeo primordial a criaccedilatildeo de novos conceitosrdquo
(SCHOPKE 2004 paacuteg 131)
Este rigor aproxima a filosofia da ciecircncia (mas tambeacutem da arte) pois pressupotildee
uma teacutecnica e grande labor Os limites entre as faculdades se desfazem em alguns casos
acentuando ainda mais o compromisso com uma resposta a seus anseios ldquoa filosofia eacute
pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos conhecimentos racionais a partir dos
conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico dessa ciecircnciardquo (KANT 1992 paacuteg 41)
A funcionalidade justifica com facilidade o conhecimento Precisamos saber fazer
contas para o troco da padaria e para as construccedilotildees da engenharia precisamos do idioma
para a compreensatildeo escrita da sociedade precisamos disso para aquilo basicamente
tem-se uma foacutermula Basta substituir isso para se chegar agravequilo e vice-versa Entretanto
haacute um certo vazio quando a filosofia eacute a primeira variaacutevel da equaccedilatildeo pois ateacute para o
mais elementar (por exemplo no acircmbito escolar as notas e provas) nem para isso ela
serve
Para todo professor de Filosofia acostumado agrave lida no Ensino Meacutedio satildeo
bastante conhecidas as perguntas do tipo lsquopara que serve a Filosofiarsquo lsquoeacute
mesmo necessaacuteria esta disciplina ou ela eacute apenas para mostrar que este coleacutegio
tem mais disciplinas do que os outrosrsquo ou ainda lsquose Filosofia natildeo cai no
vestibular por que temos de estudaacute-larsquo Questotildees surgidas na maior parte das
vezes logo nos primeiros contatos do aluno com essa lsquonova realidadersquo
(BRASIL 2000 paacuteg 44)
O empenho nos estudos se confunde com a dificuldade de aceitaccedilatildeo da
importacircncia da filosofia Natildeo eacute agrave toa que seus praticantes os filoacutesofos satildeo ditos seres
questionadores repletos de duacutevidas natildeo de soluccedilotildees Inclusive a distacircncia da praacutetica
59
torna-a por vezes inalcanccedilaacutevel agravequeles que natildeo foram iniciados nos conceitos dessa
mateacuteria e por isso inapropriada ao contexto de Ensino Fundamental e Meacutedio
Entretanto natildeo foi assim que comeccedilamos este texto e natildeo se pretende dar
prosseguimento creditando a nefelibatas eruditos o papel do filoacutesofo muito menos tratar
a filosofia em meio a balbuacutecies sem sentido Existe tanto um apreensiacutevel por meio do
conceito quanto o embate entre o que ainda natildeo foi pensado e o impensaacutevel Somente no
percurso desses questionamentos pode-se ter mais clareza quanto a seu significado
Falemos mais concretamente A direccedilatildeo de um Estado pode bem dizer
precisamos agora a fim de realizar um plano quinquenal de fiacutesicos que
recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras naccedilotildees ou
necessitamos de meacutedicos que elaborem cientificamente um medicamento
efetivo contra a gripe [] Mas lsquoPrecisamos no momento de filoacutesofos quersquo
ndash sim o quecirc Agora soacute haacute uma possibilidade lsquo que desenvolvam
fundamentem e defendam a seguinte ideologiarsquo ndash soacute se pode falar assim com
a destruiccedilatildeo simultacircnea da filosofia (PIEPER 2014 paacuteg 19)
Propotildee-se aqui encarar a filosofia como a resposta que seja Para tanto a fim de
reconhececirc-la em suas idiossincrasias seraacute preciso aceitar que de fato parece um
contrassenso senatildeo maacute feacute da Histoacuteria colocar a filosofia no domiacutenio tanto das respostas
e da austera dedicaccedilatildeo quanto no do questionamento e do insoluacutevel Apenas apoacutes
debruccedilarmo-nos em seus sentidos do mais cotidiano ao canocircnico podemos ousar
responder ao que ela presta contas e quais relaccedilotildees esperar com tradiccedilatildeo e ensino ldquoIsso
eacute assim por ser o reconhecimento uma resposta Ele responde ao inacessiacutevel agrave medida que
o resguarda O pensamento compreende como resposta a uma relaccedilatildeo com um outro que
se mostra como velamento recusa como um adyton34rdquo (TRAWNY 2013 paacuteg 22)
34 ldquoSantuaacuterio secreto a que soacute tinham acesso os sacerdotes nos templos antigos da Greacuteciardquo (HOUAISS
Aacutedito 2009a) proveniente do grego ldquonatildeo deve ser adentradordquo (LIDDELL SCOTT Ἄδυτος 1940)
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)2F
dutosgt Acesso em 11 mai 2017
60
22 Filosofia inteligecircncia e entendimento
Ao longo de sua histoacuteria a filosofia tem assumido diversas acepccedilotildees o que eacute
determinante para compreender seu propoacutesito se eacute que haacute um Isso natildeo apenas em
variaccedilatildeo diacrocircnica de significados mas tambeacutem sincrocircnica ou seja nos registros atuais
da liacutengua Desde o uso diaacuterio da palavra ateacute os mais formais e teacutecnicos significados
encontramos conceituaccedilotildees ateacute contraditoacuterias do que seja filosofia
Naturalmente isso natildeo eacute um problema As contradiccedilotildees satildeo bem-vindas mas sem
que se caia na esparrela de aceitaacute-las esquecendo-se de fazer a devida criacutetica soacute porque a
princiacutepio tudo eacute vaacutelido Nem por outro lado fazer do filoacutesofo um inquisidor cuja missatildeo
eacute hierarquizar categorizando os diversos saberes Aleacutem disso histoacuteria discurso canocircnico
e opiniatildeo cotidiana natildeo satildeo coisas tatildeo diversas entre si e no mais das vezes se imiscuem
cada uma revelando um sentido que nos auxilia a pensar a questatildeo
Apesar disso no mais das vezes em sua trajetoacuteria a filosofia apregoa a si o ofiacutecio
de distanciar-se da opiniatildeo ou δόξα Quer dizer ao se questionar pelo significado
filosoacutefico a δόξα aparece como uma resposta equivocada Ora isso revela esse iacutempeto
que afasta os natildeo iniciados criando um estigma segregador na disciplina Na suposiccedilatildeo
de natildeo validar tudo na mesma medida promove-se a separaccedilatildeo em joio e trigo valorando
positiva ou negativamente as partes ldquoo meacutetodo da dialeacutectica eacute o uacutenico que procede por
meio da destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a caminho do autecircntico princiacutepio a fim de tornar seguro
seus resultados e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espeacutecie de lodo
baacuterbaro em que estaacute atoladardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 347)
A referecircncia agraves almas castigadas que jaziam no Hades atoladas no lodo (PLATAtildeO
2000 paacuteg 47) natildeo eacute leviana Por esse vieacutes da Repuacuteblica embora nela sejam considerados
outros modos de saber o meacutetodo dialeacutetico (que eacute o da filosofia) prepondera A filosofia
platocircnica se confunde com a proacutepria dialeacutetica sob a ressalva de que a ldquopalavra lsquodialeacuteticarsquo
natildeo designa nada com precisatildeo natildeo passa de uma miscelacircnea Ela abarca e potildee em
confusatildeo uma vasta gama de problemas de necessidades especulativas e de temas e
pensamentos heterogecircneosrdquo (RUYER 1961 paacuteg 1 ndash traduccedilatildeo de Thayrine
61
Kleinsorgen)35 haja vista todos os seus diaacutelogos nos quais Soacutecrates se apresenta sempre
perante os interlocutores a lidar com as diversas concepccedilotildees e com o princiacutepio agregador
delas
Para ele [Platatildeo] a Dialeacutetica eacute a teacutecnica da pesquisa associada que se efetua
atraveacutes da colaboraccedilatildeo de duas ou mais pessoas com o processo socraacutetico do
perguntar e responder A filosofia era de fato para Platatildeo natildeo uma tarefa
individual e privada mas obra de homens que lsquovivem juntamentersquo e lsquodiscutem
com benevolecircnciarsquo eacute a atividade proacutepria de lsquouma comunidade da educaccedilatildeo
livrersquo (Leis VII 344b) (ABBAGNANO 1970 paacuteg 252)
Desse modo a hierarquia de Platatildeo dos tipos de conhecimento justifica tanto o
iacutempeto filosoacutefico pela coerecircncia loacutegico-semacircntica quanto a repulsa histoacuterica dessa
disciplina pela opiniatildeo ou senso comum Isso ocorre seja pelo fato de ldquoabarcar num soacute
golpe de vista todas as ideias esparsas de um lado e do outro e fundi-las numa soacute ideia
geralrdquo (PLATAtildeO 2002 paacutegs 106-107) seja por ldquoseparar novamente a ideia geral nos
seus elementos nas suas articulaccedilotildees naturais sem todavia mutilar qualquer dos
elementos primitivos como faz um mau accedilougueirordquo (PLATAtildeO 2002 paacuteg 107)
definindo assim os modos de proceder com a dialeacutetica
lsquoSua interpretaccedilatildeo eacute deveras suficientersquo eu disse lsquoe agora respondendo a36
estas quatro partes assume-se estas quatro influecircncias ocorrendo na alma a
intelecto ou razatildeo para a mais alta a entendimento para a segunda atribui-se
a crenccedila para a terceira e para a uacuteltima o pensamento pictoacuterico ou a conjectura
e arranjaacute-las numa proporccedilatildeo considerando que elas participam no
esclarecimento e precisatildeo na mesma medida em que seus objetivos tomam
parte da verdade e da realidade (PLATAtildeO 1969a 511d-511e ndash traduccedilatildeo
livre)37
ἱκανώτατα ἦν δ᾽ ἐγώ ἀπεδέξω καί μοι ἐπὶ τοῖς τέτταρσι τμήμασι τέτταρα ταῦτα
παθήματα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενα λαβέ νόησιν μὲν ἐπὶ τῷ ἀνωτάτω διάνοιαν δὲ
ἐπὶ τῷ δευτέρῳ τῷ τρίτῳ δὲ πίστιν ἀπόδος καὶ τῷ τελευταίῳ εἰκασίαν καὶ τάξον
35 Le mot laquodialectiqueraquo ne deacutesigne rien de preacutecis nest quun fourre-tout Il couvre et met confusion toute
une vaste reacutegion de problegraveme de besoins speacuteculatifs de thegravemes de penseacutee heacuteteacuteroclites Disponiacutevel em
lthttpwwwjstororgstable40900578gt Acesso em 19 jul 2017 36 A preposiccedilatildeo ἐπί possibilita diversas traduccedilotildees conforme ldquofor [por ou para]rdquo e ldquocomrdquo vide o diaacutelogo
Goacutergias ldquofour branches of it for four kinds of affairsrdquo (PLATAtildeO 1967 463b) e ldquoquatro partes com quatro
campos diferentes de atividaderdquo (PLATAtildeO 2017b) 37 ldquoYour interpretation is quite sufficientrdquo I said ldquoand now answering to these four sections assume these
four affections occurring in the soul intellection or reason for the highest understanding for the second
assign belief to the third and to the last picture-thinking or conjecture and arrange them in a proportion
considering that they participate in clearness and precision in the same degree as their objects partake of
truth and realityrdquo Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017
62
αὐτὰ ἀνὰ λόγον ὥσπερ ἐφ᾽ οἷς ἐστιν ἀληθείας μετέχει οὕτω ταῦτα σαφηνείας
ἡγησάμενος μετέχειν (PLATAtildeO 1903 511δ-511ε)38
Aqui se apresenta um exemplo do caraacuteter categorizante da filosofia O auge da
influecircncia na alma (ψυχῇ) eacute o intelecto (νόησιν) Essa palavra grega eacute a forma declinada
de νόησις que ldquoeacute usada em seu sentido estrito de νοῦς natildeo apenas a faculdade de νοῦς
[] O exerciacutecio de νοῦς eacute corretamente falado como πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον
[influecircncias ocorrendo na alma] mas a faculdade em si mesma dificilmente poderia ser
assim descritardquo (ADAM 1902 ndash traduccedilatildeo livre)39
Essa eacute a inteligecircncia (LIDDELL SCOTT 1940 Νόησις)40 que faz oposiccedilatildeo agrave
percepccedilatildeo pelos sentidos agrave sensaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Αἴσθησις PLATAtildeO
1987 paacuteg 313)41 Somente o que fosse validado pelo intelecto seria de interesse da
filosofia o que eacute aprendido apenas pela experiecircncia com a proacutepria coisa teria consistecircncia
lodosa e seria menos confiaacutevel A razatildeo inspira seguranccedila pois pode ser comprovada e
medida (Cf ratio vide HOUAISS 2009a Razatildeo) As sensaccedilotildees podem ser
primeiramente sentidas depois descritas narradas cantadas e vividas mas dificilmente
satildeo precisas na convicccedilatildeo do caacutelculo ldquoAprende entatildeo o que quero dizer com o outro
segmento do inteligiacutevel daquele que o raciociacutenio atinge pelo poder da dialeacutectica [] sem
se servir em nada de qualquer dado sensiacutevel mas passando das ideias umas agraves outras e
terminando em ideiasrdquo (PLATAtildeO 1987 paacutegs 312-313)42
38 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017 39 Νόησιν is used in its strict sense of νοῦς in actual exercise not merely the faculty of νοῦς cf 508 E note
The exercise of νοῦς is correctly spoken of as a πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον but the faculty itself could
hardly be thus described Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A
section3D511Dgt Acesso em 20 mai 2017 40 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dno2
Fhsisgt Acesso em 17 mai 2017 41 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dai)2
Fsqhsisgt Acesso em 21 mai 2017 42 τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι
δυνάμει [hellip] αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος ἀλλ᾽ εἴδεσιν αὐτοῖς δι᾽ αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ
εἰς εἴδη Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A
section3D511bgt Acesso em 04 jul 2017
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Uma ressalva contudo faz-se necessaacuteria a respeito das traduccedilotildees de νοῦς por
razatildeo Nas duas citaccedilotildees acima utiliza-se essa palavra e seus derivados no entanto a fim
de corresponder com o original grego conveacutem uma observaccedilatildeo acerca de certo
anacronismo do termo Isso porque estritamente falando o conceito de razatildeo como noacutes
o conhecemos hoje ainda natildeo tinha sido inventado
Claro que a rigor nenhuma palavra grega melhor dizendo nenhuma palavra no
tempo tem um sentido atual se ela mesma natildeo for atualizada Aleacutem disso natildeo eacute nada
incongruente a traduccedilatildeo de νοῦς por razatildeo Logo de que vale essa observaccedilatildeo
Exatamente pelo dito para tornar atual a palavra Significa fazer seu passado soar de
modo presente atento natildeo agrave fala pronunciada mas ao que nunca cessa de dizer a questatildeo
ldquoAuscultando natildeo a mim mas o Logos eacute saacutebio concordar que tudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO
1991 paacuteg 71)43
Inclusive esse pensador tambeacutem faraacute uso dessa palavra em seu fragmento 40 que
na traduccedilatildeo de Carneiro Leatildeo aparece como ldquomuito saber natildeo ensina sabedoria [νόον]
pois teria ensinado a Hesiacuteodo e Pitaacutegoras a Xenoacutefanes e Hecateurdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 69)44 Assim temos outro vieacutes de interpretaccedilatildeo mas que natildeo para por aiacute pois ao
longo da histoacuteria conforme as compreensotildees de realidade mudam tambeacutem a palavra diz
a quem a ouve coisas distintas ldquoSinto poreacutem nos meus membros outra lei que luta
contra a lei do meu espiacuterito [νοός] e me prende agrave lei do pecado que estaacute nos meus
membrosrdquo (BIacuteBLIA Romanos 7 23)45 Desse modo ratifica-se o caraacuteter profiacutecuo que a
palavra adquire geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo ao mesmo tempo em que endossa a confusatildeo de
qual sentido adotar neste ou naquele contexto
Contudo nem sempre haacute um compromisso com a palavra ou seja a
responsabilidade assumida para a traduccedilatildeo com a tradiccedilatildeo e sua respectiva traiccedilatildeo
Ocasiona-se entatildeo sua transformaccedilatildeo em invoacutelucro vocabular a serviccedilo da propagaccedilatildeo
de ideias Ueacute mas natildeo eacute disso que tratam os vocaacutebulos transposiccedilatildeo da realidade concreta
para o conceito abstrato E ainda que Bakhtin (2003 paacuteg 324) diga que ldquoa liacutengua a
43 ldquoοὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναιrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg
70) 44 ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκειmiddot Ἡδίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ
Ἑκαταῖονrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 68) 45 βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά
με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-
alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle557000179999gt Acesso em 3 jul 2017
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palavra satildeo quase tudo na vida humanardquo isso passa longe do entendimento de que tudo eacute
qualquer coisa como se natildeo importasse o que usaacutessemos e todo dizer fosse igualmente
vaacutelido
Nesse sentido a sinoniacutemia entre intelecto e razatildeo conforme sugere a traduccedilatildeo de
Paul Shorey torna-se senatildeo equivocada ao menos digna de suspeita A razatildeo recebe uma
conceituaccedilatildeo bem especiacutefica no caminho do Ocidente demarcando por exemplo um vieacutes
sobre o sentido fundamental de interpretaccedilatildeo bem diferente do proposto pelas Escrituras
e pelo pensador brasileiro Daiacute a conveniecircncia em nos atentarmos a natildeo fazer das palavras
veiacuteculos de nossa vontade sob o risco de natildeo aceitarmos o convite do outro e soacute
estancarmos disciplinadamente estancarmos num monoacutelogo
Com a disciplina afirma-se um acircmbito de questotildees possiacuteveis que estabelece
direccedilotildees e caminhos dotados de certa validade O campo de objeto ocupado
pela disciplina fica confinado agrave disciplina As coisas de que trata a disciplina
soacute podem vir agrave palavra enquanto e agrave medida que a disciplina e seu aparato
metodoloacutegico permitem A disciplina e sua validade permanecem a instacircncia
paradigmaacutetica da possibilidade e do modo em que uma coisa se torna objeto
de uma ciecircncia ndash e um objeto apropriado para pesquisa As disciplinas em vigor
satildeo como uma peneira soacute admitindo aspectos bem determinados das coisas
Natildeo eacute tanto a coisa o seu fundamento e sua lsquoverdadersquo que decidem o que
pertence lsquoagrave coisarsquo mas sim a disciplina que confina a coisa enquanto objeto da
disciplina (HEIDEGGER 1998 paacuteg 240)
O perigo estaacute aiacute fazer do rigor de nossos desejos o real esquecendo-se do que eacute
ndash somos e natildeo somos Fazer do real apenas o eu ignora parte essencial de sua constituiccedilatildeo
aquele pedacinho sobre o qual natildeo nos cabe versar pois a noacutes estaacute velado Platatildeo trata
tanto de uma realidade apreensiacutevel quanto de uma incompreensiacutevel Sua questatildeo
todavia se processa a partir dos modos em que isso ocorre Parca eacute a compreensatildeo do
real sua conjectura alta o intelecto Ao nomeaacute-lo por razatildeo natildeo soacute utilizamos uma
palavra fortemente carregada de conceitos como determinamos que a excelecircncia do
conhecer daacute-se pela razatildeo e natildeo pela sabedoria ou pelo espiacuterito
A tarefa que se impocircs foi portanto conceber a ratio determinante do animal
homem na direccedilatildeo que pouco a pouco se revela no pensamento moderno A
essecircncia da razatildeo e isto significa da subjetividade natildeo eacute o mero pensamento
ou entendimento A essecircncia da razatildeo eacute a vontade Pois eacute na vontade
apreendida como o que se quer a si mesmo que se completa o colocar-se-
diante-de-si-mesmo do homem a subjetividade (HEIDEGGER 1998 paacuteg
235)
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Semelhantemente ocorre com a traduccedilatildeo de λόγος por raciociacutenio Que bandeira
quer se defender em qual interpretaccedilatildeo do original claacutessico ela se fia Por que natildeo fazer
como o pensador Carneiro Leatildeo no fragmento 50 de Heraacuteclito (1991 paacuteg 71) e
simplesmente natildeo traduzir deixando a criteacuterio do leitor o estudo do grego antigo Outra
possibilidade eacute a total adequaccedilatildeo do termo ao sentido de essecircncia como acontece em ldquoNo
princiacutepio era o Verbo []rdquo (BIacuteBLIA Joatildeo 1 1) A histoacuteria dessa interpretaccedilatildeo de λόγος
marca o caminho que o Ocidente percorreu ateacute seu destino enquanto raciociacutenio passando
pela Vulgata ldquoIn principio erat Verbum []rdquo (BIacuteBLIA Ioannes 1 1)46 que por sua vez
adveacutem de ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος []rdquo (BIacuteBLIA Ιωαννην 1 1)47
Quaisquer desses posicionamentos escondem (e revelam) o sentido fundamental
da questatildeo do ser em cada dizer e nomear fundando pelo limite dito uma presenccedila no
real Enquanto a apropriaccedilatildeo de λόγος por Verbo ou Palavra como em Lutero ldquoIm Anfang
war das Wortrdquo (BIacuteBLIA Johannes 1 1)48 reapresenta sua concepccedilatildeo essencialista nos
paracircmetros da metafiacutesica do periacuteodo claacutessico ateacute os dias de hoje a manutenccedilatildeo do verbete
grego elitiza e convida o leitor a retornar ao movimento primordial da palavra
atualizando-a reversamente ou seja vai-se agraves origens em busca do que vigora
Conhecemos a definiccedilatildeo grega na formulaccedilatildeo posterior de homo est animal
rationale o homem eacute o animal racional Do λόγος a ratio da ratio a razatildeo O
elemento caracteriacutestico da capacidade racional eacute o pensamento Como animal
racional o homem eacute o animal pensante [] Podemos dizer que a definiccedilatildeo
referida eacute a determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem Nela o homem
que se encontra sob o domiacutenio da metafiacutesica exprime a sua essecircncia
(HEIDEGGER 1998 paacuteg 234)
Um detalhe Heidegger se refere agrave expressatildeo grega ἄνθρωπος ζῷον λόγος ἔχον
remetendo-se a Aristoacuteteles Contudo natildeo haacute em sua obra essa citaccedilatildeo ipsis litteris O mais
provaacutevel eacute que ela seja uma corruptela de ldquoοὐθὲν γάρ ὡς φαμέν μάτην ἡ φύσις ποιεῖ
λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴωνrdquo (ARISTOacuteTELES 1957 1253a)49 algo como
ldquoPois a natureza [φύσις] como noacutes declaramos natildeo faz nada sem propoacutesito e soacute o homem
46 Disponiacutevel em lt httpswwwbibliaonlinecombrtnvjo1gt Acesso em 07 jul 2017 47 Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle53gt
Acesso em 07 jul 2017 48 Disponiacutevel em lthttpswwwbibliaonlinecombrluther-1545jo1gt Acesso em 07 jul 2017 49 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100573Abook3D13A
section3D1253agt Acesso em 08 jul 2017
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dos animais possui [ἔχει] discurso [λόγον]rdquo (ARISTOacuteTELES 1944 1253a)50 conforme
sugere Andrew Glynn (2015)51
Sutileza que faz toda a diferenccedila pois nesse trecho podemos aferir que a φύσις
enquanto real eacute quem possibilita o homem centrando a questatildeo natildeo na subjetividade
mas deslocando-a agrave apropriaccedilatildeo da essecircncia Apropriar-se porque embora o homem
ldquotenhardquo o λόγος ele deve mantecirc-lo seguraacute-lo nas proacuteprias matildeos ateacute habitaacute-lo vesti-lo
engravidar-se dele todos esses satildeo os sentidos do verbo grego (LIDDELL SCOTT 1940
Ἔχω)52 e natildeo abarcam a compreensatildeo de possuir apenas como quem controla a posse
material de um objeto possuir eacute ser possuiacutedo pela posse
Assim o que temos satildeo termos da Antiguidade que datildeo certa origem cronoloacutegica
a conceituaccedilotildees atuais e exatamente por isso natildeo devem ser igualados em significacircncia
Para natildeo estagnar em uma problemaacutetica historiograacutefica mais proveitoso para este
percurso que pretendemos aqui eacute decerto aceitar o desafio de pensar a oposiccedilatildeo
estabelecida em Platatildeo Ele tenta fundamentar a distinccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel a tal
ponto que chega a ser excludente um pelo outro Enquanto o intelecto trabalha com a
destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a fim de encontrar a verdade embasada justificada logicamente
a sensaccedilatildeo redundantemente apenas sente um bastar da proacutepria vivecircncia Eacute a partir desse
viver experienciado que estaacute a verdade dos sentidos
A Razatildeo eacute a forccedila que liberta dos preconceitos e do mito das opiniotildees
enraizadas mas falsas das aparecircncias e consente estabelecer um criteacuterio
universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos Do outro
lado como guia propriamente humano a Razatildeo eacute a forccedila a qual consente que
o homem se liberte dos apetites que tem em comum com os animais
submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida Esta eacute a duacuteplice
funccedilatildeo que foi atribuiacuteda agrave Razatildeo desde os primoacuterdios da filosofia ocidental
(ABBAGNANO 1970 paacuteg 792 ndash grifos no original)
50 For nature as we declare does nothing without purpose and man alone of the animals possesses speech
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Aristot+Pol+11253aampfromdoc=Perseus3Atext3A1
999010058gt Acesso em 08 jul 2017 51 Disponiacutevel em lthttpskalountoswordpresscom20150427what-is-the-human-part-one-rational-
animal-or-zoon-logon-echongt Acesso em 08 jul 2017 52 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)2F
xw1gt Acesso em 08 jul 2017
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Uma oposiccedilatildeo radical mas que natildeo ocorre bruscamente Haacute etapas intermediaacuterias
entre os extremos que constituem essa segregaccedilatildeo essencial para Platatildeo Discute-se sobre
διάνοιαν forma declinada de διάνοια cujo sentido perpassa διά-νοια o que estaacute entre
(διά) a inteligecircncia (νοῦν) e a opiniatildeo (δόξης) ldquopois considere entendimento como algo
intermediaacuterio entre opiniatildeo e razatildeordquo (PLATAtildeO 1969a 511d ndash traduccedilatildeo livre)53 Logo
διάνοια aqui significa entendimento compreensatildeo mas fundamentalmente quer dizer o
lugar que natildeo eacute jaacute opiniatildeo mas que tambeacutem natildeo alcanccedilou a inteligecircncia Ainda natildeo ao
menos Estaacute em contato com o intelecto vislumbra-o sem tecirc-lo compreende-o agrave medida
que a δόξα enquanto local de predominacircncia das sensaccedilotildees eacute rejeitada
Esse eacute o conhecimento que ocorre ldquona geometria e nas ciecircncias afins [ἀδελφαῖς
τέχναις]rdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 312) Ao declarar indiretamente que somente ao filoacutesofo
como aquele que estaacute em relaccedilatildeo de profunda intimidade com o νοῦς cabe pensar os
princiacutepios e aos ldquocientistasrdquo eacute forccedilado ldquoinvestigar a partir de hipoacuteteses sem poder
caminhar para o princiacutepio mas para a conclusatildeordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311) ele faz
uma distinccedilatildeo importante O filoacutesofo marca uma ruptura que caracteriza sua forma de
pensar e que vai de encontro a outros importantes pensadores por aproximar a ciecircncia da
filosofia embora discernindo ambas entre si
Temos assim como base a aritmeacutetica que lsquofacilita a passagem da proacutepria alma
da mutabilidade agrave verdade e agrave essecircnciarsquo (Livro VII 525c) a seguir o espaccedilo a
duas dimensotildees ou geometria plana em terceiro lugar o espaccedilo a trecircs
dimensotildees por meio da estereometria a astronomia estuda os corpos soacutelidos
em movimento e a harmonia o som que eles entatildeo produzem Trata-se
portanto de um ensino essencialmente formativo Todas estas ciecircncias tecircm por
missatildeo preparar o espiacuterito para atingir o plano mais elevado a dialeacutectica cujo
fim eacute o conhecimento do Bem (Livro VII 333b-e) (PEREIRA 1987 paacuteg
XXXI)
Conveacutem reforccedilar que tanto teacutecnica quanto ciecircncia adequam-se ao contexto
somente se considerarmos que uma mesma terminologia pode tratar de assuntos distintos
Isso porque ao nos referirmos agrave ciecircncia noacutes homens modernos temos o haacutebito de
imaginar doutores de jalecos brancos e sentenccedilas de verdade inquestionaacutevel
Costumamos ao falar de teacutecnica pensar o modo de fazer algo agrave medida que detemos os
53 [hellip] because you regard understanding as something intermediate between opinion and reason
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 16 de mai 2017
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meios a partir dos quais algo se faz Em outros termos para noacutes ter uma teacutecnica eacute
sinocircnimo de ter o controle cognosciacutevel sobre a produccedilatildeo de alguma coisa
Quanto maior for o controle aparentemente mais controle eacute desejado dando-se a
impressatildeo de evoluccedilatildeo e desenvolvimento Teacutecnica e tecnologia hoje se imiscuem e uma
ciecircncia de ponta indica tecnologia mais avanccedilada mesmo que problemas elementares
estejam esperando soluccedilatildeo Nesse meio tempo a teacutecnica mais simples torna-se obsoleta
a despeito de sua eficaacutecia em prol das novas tecnologias Se antes a teacutecnica nunca
houvera prometido a soluccedilatildeo do problema apenas delegando a si o papel de ferramenta
facilitadora a teacutecnica moderna promete mundos e fundos a cura dos mais terriacuteveis males
aquele uacuteltimo gadget e update para manter a roda dos desejos sempre a girar
Em contrapartida uma regiatildeo se desenvolve na exploraccedilatildeo de fornecer carvatildeo
e mineacuterios O subsolo passa a se desencobrir como reservatoacuterio de carvatildeo o
chatildeo como jazidas de mineacuterio Era diferente o campo que o camponecircs outrora
lavrava quando lavrar ainda significava cuidar e tratar O trabalho camponecircs
natildeo provoca e desafia o solo agriacutecola
Em contraste explora-se uma aacuterea da terra a fornecer carvatildeo e mineacuterios A
terra se des-encobre neste caso depoacutesito de carvatildeo e o solo jazida de minerais
Era outro o lavradio que o lavrador dispunha outrora quando dis-por ainda
significava lavrar isto eacute cultivar e proteger A lavra do lavrador natildeo desafiava
o lavradio Na semeadura apenas confiava a semente agraves forccedilas do crescimento
encobrindo-a para seu desenvolvimento Hoje em dia uma outra posiccedilatildeo
tambeacutem absorveu a lavra do campo a saber a posiccedilatildeo que dis-potildee da natureza
E dela dis-potildee no sentido de uma exploraccedilatildeo A agricultura tornou-se induacutestria
motorizada de alimentaccedilatildeo Dis-potildee-se o ar a fornecer azoto o solo a fornecer
mineacuterio como por exemplo uracircnio o uracircnio a fornecer energia atocircmica esta
pode entatildeo ser desintegrada para a destruiccedilatildeo da guerra ou para fins paciacuteficos
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 19 ndash grifos no original)
Natildeo podemos ignorar que ainda natildeo se trata da teacutecnica como a conhecemos hoje
e consequentemente da ciecircncia moderna senatildeo por uma questatildeo cronoloacutegica por
ontologicamente a concepccedilatildeo generalizante do homem e sua loacutegica natildeo estarem em pleno
vigor Cabe lembrar que tanto o mito quanto a sua transmissatildeo eram tidos como naturais
entre todos e quiccedilaacute seja esse o grande embate de Soacutecrates ndash a maiecircutica nunca foi para
convencer Agatatildeo ou Trasiacutemaco para um fim qualquer mas a toda πoacuteλις pelo fim digno
do periacuteodo de influecircncia homeacuterica
Podemos supor que como P Shorey (1968 p 248) e F M Cornford
(PLATAtildeO 1969b p 321) que Platatildeo se viu na necessidade de se defender
contra a celeuma levantada pelas afirmaccedilotildees sobre o tema [a condenaccedilatildeo da
poesia] feitas naqueles mesmos livros [II e III] Mas a importacircncia da poesia
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na vida grega justifica a expansatildeo dada a este ataque Embora desde os finais
do seacutec VI aC a escrita estivesse divulgada e desde o seacutec V houvesse um
comeacutercio de livros apreciaacutevel (PEREIRA 1998 p 18-19) a verdade eacute que era
a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos quer pelos actores
dramaacuteticos) o principal meio de educaccedilatildeo e veiacuteculo de conhecimentos Esta
transmissatildeo intersubjetiva do saber eacute um aspecto caracteriacutestico e fundamental
da cultura grega bem visiacutevel aliaacutes nos proacuteprios diaacutelogos de Platatildeo E natildeo
esquecemos que mesmo para extensas narrativas em prosa como eram as
Histoacuterias de Heroacutedoto natildeo estava excluiacuteda a praacutetica da recitaccedilatildeo perante um
grande auditoacuterio (PEREIRA 1987 paacuteg XXXV)
Em outras palavras para Platatildeo os fins imediatos dados pela aparecircncia e
sensaccedilotildees natildeo seriam concernentes agrave filosofia estivessem eles envolvidos com pequenos
problemas do cotidiano ou com grandes obras de poliacutetica e de construccedilatildeo civil mas
apenas os princiacutepios geradores de todos os problemas Enquanto as demais disciplinas
respondem agrave pergunta por si (o que eacute a poliacutetica O que eacute construccedilatildeo civil) por suas accedilotildees
e finalidades praacuteticas (p ex a poliacutetica faz construccedilatildeo civil serve para) a filosofia
transforma a proacutepria pergunta existencial como seu caraacuteter fundamental almejando natildeo
necessariamente a um fim outro senatildeo o de se perguntar pelo ser em tudo ldquoo que eacuterdquo
Esse tipo de entendimento sobre a filosofia influencia o Ocidente ateacute eacutepocas mais
recentes Por exemplo em Kant (1992 paacuteg 41) podemos notar certa afinidade com o
exposto haja vista nomear filosofia como ciecircncia (Wissenschaft)
A filosofia eacute pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos
conhecimentos racionais a partir dos conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico
dessa ciecircncia De acordo com o conceito mundano ela eacute a ciecircncia das
finalidades uacuteltimas da razatildeo humana Esse conceito altivo confere dignidade agrave
filosofia isto eacute um valor absoluto E realmente tambeacutem eacute o uacutenico
conhecimento que soacute tem valor intriacutenseco e aquilo que vem primeiro conferir
valor a todos os demais conhecimentos (KANT 1992 paacuteg 41)
Eacute possiacutevel encarar sua referecircncia agraves finalidades uacuteltimas (letzten Zwecken) no
conceito mundano como que reafirmando em alguma medida o percurso platocircnico no
Ocidente Isso porque embora as ideias de fim e princiacutepio aparentem ser diametralmente
opostas nos dois casos domina a dinacircmica metafiacutesica e essencialista por tratarem de
conceitos absolutos ldquo[] ao passo que na outra parte a que conduz ao princiacutepio
absolutordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311)
Por outro lado pensadores como Heidegger se propuseram a aproximar mais a
filosofia agrave arte e em contrapartida a fazer uma criacutetica ferrenha agrave ciecircncia Dessa forma eacute
rompida a tradiccedilatildeo que limitava e congregava toda uma compreensatildeo de realidade acerca
70
da ciecircncia e da filosofia Satildeo outros meacutetodos buscam-se outras influecircncias e geram-se
confusotildees plenamente aceitaacuteveis ao se dispor a tais leituras ldquoConhecemos eacute claro muita
coisa sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e poesia Natildeo sabemos poreacutem do diaacutelogo dos poetas
e dos pensadores que lsquomoram proacuteximos nas montanhas mais separadasrsquo [nahe wohnen
auf getrennsten Bergen]rdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51)
Enquanto a διάνοια platocircnica faz a ponte cognosciacutevel entre inteligecircncia e opiniatildeo
para Heidegger haacute certa distacircncia instransponiacutevel entre filosofia e poesia contudo isso
as define como iacutentimas ao abismo esse limite cerceador e constituidor de constantes
questionamentos e desafios Para tanto o pensador traz o poema em sua tensatildeo com o
pensar ldquodepois de um verso do hino Patmos de Houmllderlin ele [Heidegger] descreve a
relaccedilatildeo entre pensamento e poesia que lsquoperto vivem nas mais separadas montanhasrsquo com
a imagem do cimo do tempordquo (KIMMERLE 1995 paacutegs 77-78 ndash traduccedilatildeo livre)
Conveacutem pois conferir um trecho maior sua primeira estrofe a fim de discutir com mais
propriedade a imagem-questatildeo colocada
Patmos54
Estaacute proacuteximo
E difiacutecil de agarrar o deus
Onde contudo haacute perigo cresce
O que salva tambeacutem
Agraves escuras vivem
As aacuteguias e destemidas partem
As filhas dos Alpes sobre o abismo
Em singelas feitas pontes
Por isso juntas laacute estatildeo em torno
Do cimo do tempo e as mais amadas
Perto vivem esmorecendo nas
Mais separadas montanhas
Entatildeo daacute pura aacutegua
Oacute asas daacute-nos os mais apurados sentidos
Para atravessar e regressar (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre)55
54 Pequena ilha grega no Egeu Meridional Local onde o apoacutestolo Joatildeo foi exilado e teria recebido a
revelaccedilatildeo para escrever o Evangelho (SMITH PatrsquoMos 1901) Disponiacutevel em
lthttpwwwstudylightorgdictionariessbdppatmoshtmlgt Acesso em 27 mai 2017 55 Nah ist Und schwer zu fassen der Gott Wo aber Gefahr ist waumlchst Das Rettende auch Im Finstern
wohnen Die Adler und furchtlos gehn Die Soumlhne der Alpen uumlber den Abgrund weg Auf leichtgebaueten
Bruumlcken Drum da gehaumluft sind rings Die Gipfel der Zeit und die Liebsten Nah wohnen ermattend auf
Getrenntesten Bergen So gib unschuldig Wasser O Fittiche gib uns treuesten Sinns Hinuumlberzugehn
und wiederzukehren Disponiacutevel em lthttpgutenbergspiegeldebuchfriedrich-h-262132gt Acesso em
27 mai 2017
71
Νοῦς eacute a superaccedilatildeo de διάνοια e portanto superior a δόξα e a αἴσθησις ndash que se
relaciona com a arte (daiacute a palavra esteacutetica) Para Platatildeo a poesia as sensaccedilotildees e suas
representaccedilotildees estatildeo intimamente ligadas ao que haacute de mais abjeto satildeo uma espeacutecie ldquode
veneno intelectual e inimiga da verdaderdquo (HAVELOCK 1996b paacuteg 20) Tudo que elas
representam deve ser evitado para que suas maacutes influecircncias natildeo desvirtuem os homens
De acordo com o caminho do que haacute de mais nobre e belo aos olhos da filosofia conforme
Livro X ldquoDe modo que natildeo devemos deixar-nos arrebatar por honrarias riquezas nem
poder algum nem mesmo pela poesia descurando a justiccedila e as outras virtudesrdquo
(PLATAtildeO 1987 paacuteg 474)
A ceacutelebre expulsatildeo dos poetas nada mais eacute do que a sequecircncia loacutegica Natildeo nos
surpreende quando Platatildeo (1987 paacuteg 473) fala que ldquoaqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao
lembrarmos de novo a poesia por justificadamente excluirmos da cidade uma arte dessa
espeacutecierdquo se nos ativermos ao empenho de sistematizaccedilatildeo e adequaccedilatildeo que fundamenta
essa verdade Esta soacute tem validade pelo intelecto e natildeo soacute pode mas deve ignorar as
sensaccedilotildees A revoluccedilatildeo circunscrita aqui diz respeito a uma concepccedilatildeo de ser e estar no
mundo anterior retroacutegrada que precisa ceder espaccedilo abrir matildeo de sua presenccedila para se
reconhecer aparecircncia imaginaccedilatildeo perdendo seu estatuto de seriedade Assim no
decorrer de milecircnios acaba por tornar-se entretenimento isto eacute tudo o que natildeo for por
essa nova loacutegica simplesmente natildeo eacute
Fica imediatamente evidente que um tiacutetulo como a Repuacuteblica natildeo pode nos
preparar para o surgimento nesta obra de um ataque tatildeo frontal agrave essecircncia da
literatura grega Se a discussatildeo segue um plano e se a investida vinda de onde
vem constitui uma parte essencial daquele plano entatildeo o objetivo do tratado
como um todo natildeo pode ser contido dentro dos limites a que denominamos
teoria poliacutetica (HAVELOCK 1996b paacuteg 20)
Para Heidegger poesia e filosofia estatildeo no ldquocimo do tempordquo Natildeo se trata aqui de
trocar arte por ciecircncia mas de reconhecer o vigor da palavra poeacutetica destratada pela
histoacuteria Seu desterro platocircnico natildeo faz jus ao voo da aacuteguia empreendido para ter com sua
irmatilde de pensamento O abismo marca o intransponiacutevel a ponte e a travessia o diaacutelogo e
o regresso e o perigo definem a identidade desta relaccedilatildeo de proximidade e distacircncia na
qual convivem filosofia e poesia
72
221 Ciecircncia e intelecto
Todavia cabe antes uma ressalva pois haacute uma incongruecircncia entre passagens da
Repuacuteblica Vejamos ldquocomo anteriormente chamar agrave primeira divisatildeo ciecircncia agrave segunda
entendimento agrave terceira crenccedila e agrave quarta conjectura ou pensamento pictoacuterico ndash e agraves duas
uacuteltimas ambas opiniatildeo e agraves duas primeiras intelectordquo (PLATAtildeO 1969a 533e-534a ndash
traduccedilatildeo livre)56 conforme o original ldquoἀρκέσει οὖν [] τὴν μὲν πρώτην μοῖραν ἐπιστήμην
καλεῖν δευτέραν δὲ διάνοιαν τρίτην δὲ πίστιν καὶ εἰκασίαν τετάρτην καὶ συναμφότερα μὲν
ταῦτα δόξαν νόησιν δὲ περὶ οὐσίανrdquo (PLATAtildeO 1903 533ε-534α)57 Em 511d Platatildeo
descreve o cume do conhecimento como sendo νοῦς e em 533e ἐπιστήμην sendo esta
subdivisatildeo de νοῦς
Mais importante do que exigir clareza absoluta dos textos antigos eacute empreender o
caminho de pensamento que por vezes seraacute duacutebio Ἐπιστήμην eacute a forma declinada de
ἐπιστήμη que significa entre outros sentidos conhecimento conhecimento cientiacutefico e
faz oposiccedilatildeo agrave δόξα (LIDDELL SCOTT 1940 Ἐπιστήμη)58 Por sua vez δόξαν eacute a forma
declinada de δόξα significando opiniatildeo sim mas tambeacutem expectativa julgamento
noccedilatildeo reputaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Δόξα)59
Haacute pois dois campos semacircnticos aproximados um sujeito agrave especulaccedilatildeo
possibilidade de certeza ou ateacute achismo outro sujeito agrave comprovaccedilatildeo teoacuterica
argumentaccedilatildeo loacutegica e fundamentaccedilatildeo da certeza Desse modo leva-se a crer que Platatildeo
deveria estar se referindo a νοῦς e διάνοια como ambas sendo ἐπιστήμη ndash e natildeo o contraacuterio
ndash que por conseguinte se opunha agraves outras duas δόξα
56 as before to call the first division science the second understanding the third belief and the fourth
conjecture or picture-thoughtmdashand the last two collectively opinion and the first two intellection
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D73A
section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 57 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D73A
section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 58 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)pisth
2Fmhgt Acesso em 28 mai 2017 59 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddo2
Fca5Egt Acesso em 28 mai 2017
73
Outro aspecto problemaacutetico eacute igualar ἐπιστήμη agrave ciecircncia pois vimos que Platatildeo
distingue ciecircncia de intelecto Decerto em diversos contextos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel
entretanto especificamente nesse causa confusotildees Talvez uma possibilidade fosse
simplesmente considerar a palavra por ldquoconhecimentordquo em oposiccedilatildeo agrave ldquoopiniatildeordquo
Entendemos contudo tratar-se de uma ambiguidade jaacute estabelecida na tradiccedilatildeo
filosoacutefica e por respeito agrave fonte do texto em inglecircs optou-se por manter ldquociecircnciardquo
Eacute muito frequente a traduccedilatildeo dessa [ἐπιστήμη] palavra por lsquociecircnciarsquo remetendo-
se assim de modo impliacutecito mas tambeacutem impreciso e apressadamente
aproximado agrave ciecircncia moderna Em seu germe mais interior que soacute vem agrave tona
no encaminhamento da histoacuteria moderna essa ciecircncia eacute de essecircncia teacutecnica
[] O fundamento e o acircmbito essencial da teacutecnica moderna eacute essa vontade [de
ser senhor da totalidade do mundo no modo do ordenamento] que em toda
intenccedilatildeo e apreensatildeo em tudo o que se quer e alcanccedila sempre quer somente a
si mesma e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-
querer-a-si (HEIDEGGER 1998 paacutegs 204-205)
23 Crenccedila e conjectura
Entramos agora no domiacutenio da δόξα Se para falarmos de ἐπιστήμη e νοῦς tivemos
de ter cautela tambeacutem este acircmbito eacute traiccediloeiro Sobre o que tratamos quando nos
referimos a δόξα Vejamos um exemplo o hino Patmos comeccedila com os seguintes versos
ldquoEstaacute proacuteximo E difiacutecil de agarrar o deusrdquo (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre) A
referecircncia agrave divindade eacute clara proacutepria inclusive do Romantismo e essencial ao poema
Ela diz algo a respeito de uma postura diversa que privilegia o que antes voluntariamente
se velava na histoacuteria do Ocidente
Eacute como se o poeta cuja influecircncia claacutessica eacute notoacuteria resolvesse aludir agrave musa que
laacute se encontrava e se desencontrava A aproximaccedilatildeo do sagrado ratifica o contexto das
sensaccedilotildees do que precisa ser experienciado agrave medida que se torna menos preciso e
calculaacutevel Em contraste com o filoacutesofo que exclui a πoacuteλις do verso e jaacute que os poemas
coparticipam do domiacutenio do sensiacutevel retira o homem das sensaccedilotildees e seus crenccedilas
Houmllderlin refaz a ponte singela que aproxima em sua dificuldade essas duas aacuteguias as
quais Heidegger propositalmente identifica por poesia e filosofia
74
Este eacute o domiacutenio ao qual relega Platatildeo a δόξα o de ser contraponto de νοῦς Se
este se apresentava como superior aquele eacute o inferior das sensaccedilotildees que tocam a ψυχῇ
mas que por isso estaacute em meio ao comum e ao geral ao normalmente aceito e
imediatamente sentido Assim como o anterior superior tambeacutem eacute subdividido
Como terceiro estaacutegio de influecircncia na alma temos em Platatildeo a πίστιν forma
declinada de πίστις A traduccedilatildeo portuguesa comentada da Repuacuteblica de 1987 assim como
a ediccedilatildeo brasileira de 2000 opta por ldquofeacuterdquo Para evitar o sincretismo a escolha pela
palavra ldquocrenccedilardquo parece ser mais aconselhaacutevel indo ao encontro da ediccedilatildeo em liacutengua
inglesa Outras definiccedilotildees tais quais ldquoconfianccedila persuasatildeo honestidade garantia e ateacute
creacuteditordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Πίστις)60 versam em torno da palavra
Dessa forma por que considerar crenccedila como de menor importacircncia para a
filosofia Essa eacute uma duacutevida honesta mas talvez a pergunta inicial possa ser reformulada
para saber sobre o quecirc do crer quer dizer o que se acredita aqui que difere do credo da
etapa anterior Ora a δόξα eacute o acircmbito da αἴσθησις logo se fia nos sentidos Confia-se
no que se vecirc no que pode ser tocado de modo que seria preciso fazer a experiecircncia com
as coisas mais do que sobre as coisas Contudo para Platatildeo apenas fazer uma experiecircncia
praacutetica com as coisas natildeo eacute garantia de acesso a elas pois somente pelo intelecto se
achegaria aonde natildeo se pode ver como se natildeo ver as coisas mas a ideia das coisas fosse
realmente vecirc-las
Se noacutes limitarmos estritamente DC [segmento da Figura 1 referente a ζῷα etc]
a ὁρατά πίστις precisa ser entendida como um estado da mente que acredita
apenas nas coisas palpaacuteveis (ἐναργῆ) e visiacuteveis (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ
φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510 A)61 lsquoverrsquo como noacutes ainda dizemos
lsquopara crerrsquo Mas Platatildeo jaacute falou de AC [segmento da Figura 1 referente a
εἰκόνες e ζῷα etc] como δοξαστόν62 (nota 510 A) logo que πίστις natildeo deve
ser confinada aos objetos da visatildeo (ADAM 1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)63
60 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpi2F
stisgt Acesso em 29 mai 2017 61 [] a que nos abrange a noacutes seres vivos e a todas as plantas e toda a espeacutecie de artefactos (PLATAtildeO
1987 paacuteg 311) 62 [hellip] Acaso consentirias em aceitar que o visiacutevel se divide no que eacute verdadeiro e no que natildeo o eacute e que tal
como a opiniatildeo [δοξαστόν] estaacute para o saber assim estaacute a imagem para o modelo (PLATAtildeO 1987 paacuteg
311) 63 If we strictly limit DC to ὁρατά πίστις must be understood as the state of mind which believes only in
visible palpable (ἐναργῆ) things (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510
A) lsquoseeingrsquo as we still say lsquois believingrsquo But Plato has already spoken of AC as δοξαστόν (510 A note)
so that πίστις should not be confined to the objects of sight
75
Figura 1 ndash As quatro influecircncias
Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929
Em mateacuteria de conhecimento πίστις estaacute na parte inferior por principalmente natildeo
aceitar o convencimento pelo conceito mormente julga pelo sensiacutevel a realidade Dessa
forma as respostas que algueacutem pode procurar e oferecer natildeo seriam apenas loacutegicas mas
tambeacutem emotivas e situacionais Aqui faz-se uma distinccedilatildeo importante pois abre um
precedente agrave compreensatildeo das coisas natildeo pelo que elas satildeo mas por suas categorias
Platatildeo refere-se a πίστις como uma imagem que convence mas natildeo vence
independentemente de como e o que for retratado nela Simplesmente por ser retrataacutevel
ela jaacute abre matildeo de certa inteligibilidade e por isso estaacute fadada agrave imperfeiccedilatildeo das
experiecircncias concretas
Quer isto dizer que o que a coisa eacute o seu Was-sein ou o seu ser eacute dado natildeo na
sua pura e simples aparecircncia sensiacutevel e sempre particular mas no seu lsquoaspectorsquo
(εἶδος) tal que soacute uma visatildeo supra-sensiacutevel do ente o pode captar ndash e que soacute eacute
ele proacuteprio acessiacutevel como poderia mostrar uma nova anaacutelise senatildeo por meio
das lsquocateroriasrsquo (κατηγορiacuteα) que decidem das possibilidades de ser desse ente
(ZARADER 1998 paacuteg 210)
Jaacute Aristoacuteteles (2005 paacuteg 95-96) desenvolve diversa e detalhadamente esse tema
ao classificar a retoacuterica como ldquoa capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso
com o fim de persuadir [πιθανόν] Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra
arte pois cada uma das outras apenas eacute instrutiva e persuasiva [πειστική64] nas aacutereas de
sua competecircnciardquo Aludindo ao caraacuteter fronteiriccedilo do convencimento ele divide sua obra
em trecircs livros que discorrem sobre λόγος πάθος e ἔθος da persuasatildeo percepccedilatildeo triacuteplice a
64 Forma tardia e declinada de πιστικός (LIDDELL SCOTT 1940 Πιστικός) Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpistiko
2Fs2gt Acesso em 30 mai 2017
76
partir da qual ele compreende o tema Em outras palavras eis o entendimento de que a
crenccedila eacute um convencer por argumentaccedilatildeo loacutegica assim como pelas emoccedilotildees e pelo
contexto em que ocorre
Se Platatildeo colocou πίστις num acircmbito eminentemente opinativo por conseguinte
oposto ao epistemoloacutegico Aristoacuteteles tambeacutem concorda que a retoacuterica natildeo eacute uma ciecircncia
e como tal tem qualidades proacuteprias Embora ambas possuam uma teacutecnica a retoacuterica
apenas se aproxima do verdadeiro trabalhando com probabilidades e possibilidades
provaacuteveis Enquanto isso para os dois filoacutesofos a ciecircncia se constitui por verdades
universais ldquoEacute igualmente insensato aceitar conclusotildees meramente provaacuteveis de um
matemaacutetico e demandar demonstraccedilatildeo precisa de um oradorrdquo (ARISTOacuteTELES 1934 ndash
traduccedilatildeo livre)65 conforme o original ldquoΠαραπλήσιον γὰρ φαίνεται μαθηματικοῦ τε
πιθανολογοῦντος ἀποδέχεσθαι καὶ ῥητορικὸν ἀποδείξεις ἀπαιτεῖνrdquo (ARISTOacuteTELES
1894)66
Agora se crenccedila pressupotildee um convencimento por mais que ele natildeo fosse
dialeticamente adequado haacute aiacute um jogo tensional no qual existe uma possibilidade de
questionamento Quem pode ser convencido deve possuir os subsiacutedios para o
convencimento precisa haver alguma duacutevida a ser respondida ou certezas passiacuteveis de
contra-argumentaccedilotildees O que eacute totalmente dado como certo pronto estaacute sem necessidade
de acabamento
Imagina homens numa morada subterracircnea [Figura 2] [] desde a infacircncia []
de pernas e pescoccedilo acorrentados [segmento 119886119887 ] [] a luz chega-lhes de uma
fogueira acesa numa colina [] entre o fogo e os prisioneiros passa uma
estrada ascendente [segmento 119890119891 ] Imagina que ao longo dessa estrada estaacute
construiacutedo um pequeno muro [segmento 119892ℎ ] []
[] Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam
objetos de toda espeacutecie []
[] Dessa forma tais homens [os acorrentados] natildeo atribuiratildeo realidade senatildeo
agraves sombras dos objetos fabricados (PLATAtildeO 2000 paacutegs 225-226)
65 It is equally unreasonable to accept merely probable conclusions from a mathematician and to demand
strict demonstration from an orator Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100543Abekker20page
3D1094b3Abekker20line3D20gt Acesso em 01 jun 2017 66 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker20page
3D1094b3Abekker20line3D25gt Acesso em 01 jun 2017
77
Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna
Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929
Quando natildeo haacute questotildees soacute respostas quando natildeo haacute um conceito a ser
reproduzido e nem sua reproduccedilatildeo apenas um vestiacutegio de algo que dificilmente pode ser
caracterizado pela ousadia da resposta nem pela inquietude da pergunta laacute dominam as
sombras Natildeo pode haver convencimento onde soacute haacute convicccedilatildeo ldquoE se o arrancarem agrave
forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem
antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de
tais violecircncias mdash Com toda a certezardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226)
Eis que por fim analisaremos a palavra εἰκασίαν forma declinada de εἰκασία
como pensamento pictoacuterico imaginaccedilatildeo conjectura representaccedilatildeo suposiccedilatildeo etc
(LIDDELL SCOTT 1940 Εἰκασία)67 Esse eacute o estaacutegio mais distante do conhecimento
Domiacutenio da praacutetica e das sensaccedilotildees a aprendizagem se daria pela via empiacuterica e natildeo
67 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dei)kasi
2Fagt Acesso em 20 mai 2017
78
atraveacutes de formulaccedilotildees inteligiacuteveis Sabe-se o que se fez ou o que se viu do contraacuterio natildeo
existe Haacute somente o puro e simples saber ou o achar que se sabe pelo menos
Achismos agrave parte haacute de se convir que nunca se natildeo sabe de nada Esse
desmerecimento das aparecircncias e das opiniotildees parte de um Platatildeo de fora da caverna sem
possibilidade de retorno a ela Decerto que na Repuacuteblica ele volta mas natildeo como antes
ldquoSe um homem nessas condiccedilotildees descesse de novo para o seu antigo posto natildeo teria os
olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Solrdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg
318) E como natildeo teria Do contato com a ideia platocircnica ateacute o contato com as demais
pessoas ldquoacorrentadasrdquo passaram-se dois milecircnios e o filoacutesofo ainda natildeo reestabeleceu
plenamente sua visatildeo
A filosofia sofre desse estigma que ela mesma criou o de ser inacessiacutevel aos
muitos Na alegoria da caverna Platatildeo supotildee tanto os acorrentados como ldquoos curados da
sua ignoracircnciardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226) Relata seus percursos de saiacuteda e retorno
mas nada diz desse primeiro despertar Eacute possiacutevel ensinar teacutecnicas de memorizaccedilatildeo de
argumentaccedilatildeo de convencimento mas como ensinar a pensar Eacute possiacutevel ensinar
teacutecnicas de como fazer poesia muacutesica mas como algueacutem vira poeta muacutesico ou no nosso
caso filoacutesofo
Na instacircncia de nossas experiecircncias cotidianas e da tradiccedilatildeo acabamos por
reproduzir muitas aprendizagens e compreender muitos ensinamentos
Independentemente do juiacutezo em torno deles o saber acontece Buscar o saber se for esse
mesmo o caminho empreendido natildeo passa ldquoda parte que nos cabe deste latifuacutendiordquo
Aquele que busca o saber pode aprender ou natildeo aquele que natildeo busca pode aprender ou
natildeo Como proceder Qual caminho seguir Assim deve-se descer agrave caverna natildeo se deve
descer ou natildeo se deve nem mesmo sair dela ldquoEntatildeo aonde noacutes vamos mdash Sempre para
casardquo (NOVALIS 1982 ndash traduccedilatildeo livre)68
Por vezes aquele conhecimento mais insignificante pode ser explorado pelo
intelecto Quiccedilaacute aquele conhecimento mais insignificante natildeo deve ser explorado pelo
intelecto mas simplesmente deve-se aceitaacute-lo do mesmo modo como eacute preciso aceitar
muitas verdades sem as quais natildeo seria possiacutevel viver se cada chatildeo fosse uma questatildeo
natildeo dariacuteamos um passo sequer Nem por isso tal postura precisa ser tratada por
68 raquoWo gehn wir denn hinlaquo raquoImmer nach Hauselaquo Disponiacutevel em
lthttpgutenbergspiegeldebuchheinrich-von-ofterdingen-523524gt Acesso em 03 mai 2017
79
ignoracircncia nem a inacessibilidade de muitos deve ser igualada ao ofiacutecio de poucos
Alguns satildeo filoacutesofos assim como alguns satildeo camponeses e embora agraves vezes
circunstacircncias avessas agrave vontade forcem que muitos se tornem camponeses
provavelmente soacute alguns tambeacutem teriam a vocaccedilatildeo para o campo
Para Platatildeo tende-se a crer que a vocaccedilatildeo para a filosofia eacute natildeo saber Afinal ele
relaciona os quatro estaacutegios de afetaccedilatildeo da alma em proporccedilatildeo isto eacute em analogia ou
melhor em ἀνὰ λογόν forma declinada de ἀνὰλόγος (ora escrita junta ora separada no
texto original) aquilo que estaacute em relaccedilatildeo de correspondecircncia com o λόγος (LIDDELL
SCOTT 1940 Ἀνὰλόγος)69 Daiacute εἰκασία ser o domiacutenio absoluto das certezas ldquoA traduccedilatildeo
lsquoconjecturarsquo leva a equiacutevocos pois conjectura implica duacutevida consciente ou hesitaccedilatildeo e
duacutevida eacute estranha para εἰκασία no sentido de Platatildeo Contudo ele pode ter pretendido
sugerir que tal estado mental natildeo fosse em realidade melhor do que conjecturardquo (ADAM
1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)70 Tudo eacute puro aceitamento
Do ponto de vista meramente de ὁρατά o a ser visto o visiacutevel (LIDDELL
SCOTT 1940 Ὁρατός)71 o estaacutegio inicial se daacute nas sombras Entretanto o caminho de
apreensatildeo do conhecimento por Platatildeo tambeacutem eacute um percurso de questionamento Na
alegoria da caverna εἰκασία trata de apreender o mundo ao redor a partir somente do que
vemos dele Jaacute em πίστις abre-se matildeo de algumas certezas num contexto natildeo mais tatildeo
uniformizado pela penumbra A interpretaccedilatildeo cristatilde vai traduzi-la por fides temos pois
a feacute e seus misteacuterios enquanto desdobramento do mundo Seja por crenccedila ou por mera
suspeita amorfa dos conceitos a realidade natildeo se apresenta cheia de certezas como antes
No estaacutegio superior encontra-se διάνοια o vigorar das questotildees ἀδελφαῖς τέχναις
afins agrave teacutecnica Aqui a realidade natildeo eacute apenas as coisas os seres vivos e suas
representaccedilotildees mas o modo como essas manifestaccedilotildees ocorrem Em outras palavras os
procedimentos pelos quais a realidade estaacute subjugada fazem inclusive com que ela possa
69 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)nalo
gi2Fagt Acesso em 03 jun 2017 70 The translation lsquoconjecturersquo is misleading for conjecture implies conscious doubt or hesitation and
doubt is foreign to εἰκασία in Platos sense Plato may however have intended to suggest that such a state
of mind is in reality no better than conjecture Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A
section3D511Egt Acesso em 04 jun 2017 71 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(rato
2Fsgt Acesso em 04 jun 2017
80
ser manipulada e controlada por definiccedilotildees universais embora sem transcender das
finalidades imediatas
Cabe ressaltar que em εἰκασία e πίστις as manifestaccedilotildees satildeo tidas por
apresentaccedilotildees ou seja elas se mostram assim como satildeo e satildeo assim como se mostram
compreendidas por meio da experimentaccedilatildeo concreta com as coisas e sem a exigecircncia do
intermeacutedio conceitual por isso a compreensatildeo sensiacutevel da realidade Jaacute em διάνοια e νοῦς
haacute certa convicccedilatildeo de que as manifestaccedilotildees satildeo representaccedilotildees do plano universal e ideal
logo imperfeitas e passiacuteveis de questionamentos daiacute sua inteligibilidade e seu caraacuteter
superior para a filosofia platocircnica
Por fim νοῦς eacute o saber mais elevado e com mais questionamentos
Paradoxalmente a maior compreensatildeo de si e do que haacute ao redor eacute o estaacutegio de maior
duacutevida a ponto de Soacutecrates o mais saacutebio para a pitonisa e personagem principal dessa
filosofia chegar ao cuacutemulo de soacute saber uma coisa ndash que nada sabe Esse eacute o saber
fundamental que envolto em sombras os homens natildeo podem sequer imaginar ateacute
derradeiramente se verem retornando agrave caverna com a compreensatildeo de que a luz eacute soacute
mais um aspecto menos sombrio das trevas como se ser fosse soacute uma passagem para natildeo
ser
Entatildeo pus-me a considerar de mim para mim que eu sou mais saacutebio do que
esse homem pois que ao contraacuterio nenhum de noacutes dois sabe nada de belo e
de bom mas aquele homem acredita saber alguma cousa sem sabecirc-la
enquanto eu como natildeo sei nada tambeacutem estou certo de natildeo saber (PLATAtildeO
1949 paacuteg 17)
24 Filosofia e opiniatildeo
Seja ou natildeo seja a filosofia a resposta para nossos problemas ela certamente se
apresenta como uma das possibilidades para um ensino contraacuterio agrave proposta
tradicionalmente imposta Mas ateacute ela mesma tem sua histoacuteria e maneiras proacuteprias de ser
Seu modus operandi responde agrave medida que se distancia em caraacuteter voluntaacuterio de um
saber praacutetico simples sem as lisuras da Academia nem a pretensatildeo de semelhante esmero
racional Poreacutem haacute outras formas de cuidar do pensamento que natildeo pelo intelecto
81
A intenccedilatildeo natildeo eacute trocar seis por meia duacutezia desqualificando o empenho seacuterio de
sistematizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo mas a partir do momento em que se questiona o preacute-
estabelecido conveacutem ao menos sugerir uma alternativa E tanto o rompimento quanto o
outro caminho natildeo satildeo aleatoacuterios Se a tradiccedilatildeo natildeo consegue conceber bem que
determinadas camadas sociais estejam aptas ao pensamento eacute praticamente peremptoacuterio
rever essa forma de compreender a realidade por exemplo no caso do ensino de filosofia
a partir de uma perspectiva poeacutetica
Entatildeo eacute possiacutevel certo questionamento advindo de eg crianccedilas mas natildeo apenas
de pobres de miseraacuteveis de pessoas de baixa escolaridade de culturas tidas como
exoacuteticas etc Todavia jaacute sendo a filosofia excludente por toda sua histoacuteria ela proacutepria
convida a um repensar sua atividade a fim de que possamos contemplar o natildeo
arbitrariamente velado Natildeo por puro moralismo haja vista certa desconfianccedila salutar sim
pelos caminhos muito pisados em nossos tempos midiaacuteticos de controle de massa
Duas estradas divergiam num bosque em setembro
E lamentando natildeo poder seguir em ambas as vias
E sendo o uacutenico viajante durante muito tempo me lembro
olhei para uma tatildeo longe quanto eu conseguia
ateacute onde ela dobrava na descida e sumia
Entatildeo peguei a outra parecia boa e vasta
e fosse talvez a mais atraente
pois estava coberta de grama precisando ser gasta
embora aqueles que passaram na frente
tivessem gasto ambas quase igualmente
E ambas que aquela manhatilde igualmente fez
cobertas por folhas pegada alguma a manchar
Oh deixei a primeira para outra vez
Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar
duvidei se iria algum dia voltar
Devo estar contando isso com a alma cortada
Em algum lugar haacute uma distacircncia de tempo imensa
divergiam em um bosque duas estradas
e eu escolhi a menos viajada
e esta escolha fez toda a diferenccedila (FROST 1916 paacuteg 9 ndash traduccedilatildeo de Ceacutesar
Ramos)72
72 Two roads diverged in a yellow wood And sorry I could not travel both And be one traveler long I
stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth Then took the other
as just as fair And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear Though
as for that the passing there Had worn them really about the same And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black Oh I kept the first for another day Yet knowing how way leads on
to way I doubted if I should ever come back I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and
82
Nem decerto por acreditar que todos podem fazer tudo eacute que todos podem ser
filoacutesofos Natildeo natildeo podem assim como todos natildeo podem ser jogadores de futebol o que
natildeo se trata de uma problemaacutetica de meacuterito Naturalmente que o esforccedilo e as condiccedilotildees
favoraacuteveis do sistema vatildeo influenciar para se alcanccedilar tal e tal objetivo Contudo haacute de
se levar em conta tambeacutem a aptidatildeo caracteriacutestica pouco precisaacutevel supostamente inata
das pessoas para determinadas atividades Aleacutem disso tudo o simples fato de que para
cada escolha pressupotildee-se necessariamente a exclusatildeo de tantas outras jaacute eacute forte indiacutecio
de que nem todos chegam a fazer filosofia
Por outro lado natildeo eacute disso que se propotildee a falar neste trabalho A filosofia do
mesmo modo que muitos outros ofiacutecios pode (quiccedilaacute deve) ser um empenho de poucos
mas enquanto possibilidade fundamental de recolhimento dos questionamentos natildeo
conveacutem que ela (quiccedilaacute todos os outros ofiacutecios) seja reconhecida por um caraacuteter excludente
de muitos como se somente os ldquoescolhidosrdquo pudessem assim pensar O penhor de alguns
natildeo deve ser confundido com a segregaccedilatildeo dos demais
Claro que tal exclusatildeo natildeo se processa tatildeo agraves claras No mais das vezes ela vem
com a sutileza fria da navalha ao destituir de valor uma colocaccedilatildeo legiacutetima poreacutem oriunda
de uma fonte pouco estimada ou impressotildees e suposiccedilotildees sem um embasamento teoacuterico
canocircnico Ateacute puacuteblicos inteiros podem ser ignorados por natildeo gozarem de prestiacutegio
intelectual como no caso das crianccedilas que quando fazem um comentaacuterio ldquofilosoacuteficordquo
coloca-se aspas nele ou em sequecircncia faz-se uma interjeiccedilatildeo qualquer de espanto e
admiraccedilatildeo adorno comum sobre atitudes inesperadas
Um reconhecimento que resvala pelo preacute-conceito de se crer que desse mato natildeo
sairia coelho mas espantosamente aqui estaacute ele o leporiacutedeo Noacutes julgamos agrave revelia e
surpreendemo-nos quando o juiacutezo natildeo daacute conta do real Estes ldquoohrdquo e ldquoahrdquo natildeo possuem
a mesma atenccedilatildeo demandada aos comentadores oficiais mas sim alternam entre o bibelocirc
e o gracejo respondendo natildeo ao pensamento doado pelos sentidos mas pela alegoria
hierarquizante e excludente criada pelo intelecto
ages hence Two roads diverged in a wood and Imdash I took the one less traveled by And that has made
all the difference Traduccedilatildeo disponiacutevel em lthttpmunhoblogspotcombr201105robert-frost-poeta-
americano-in-roadhtmlgt Acesso em 10 jun 2017
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Desde sua raiz etimoloacutegica a infacircncia parece evocar um estado de minoria ou
de incapacidade de dependecircncia ou de fraqueza de imperfeiccedilatildeo ou mesmo de
selvageria imagens todas as quais transferidas para nossos discursos
educacionais que em sua maioria compartilham a ideia de que a crianccedila natildeo eacute
nada mais do que um presente sem presenccedila [grifo no original] um estado
preparatoacuterio e provisoacuterio um tempo sem direito proacuteprio pois toda educaccedilatildeo eacute
uma instruccedilatildeo das crianccedilas natildeo para elas mesmas (pelo que satildeo) mas assim
pelo que seratildeo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 11 ndash traduccedilatildeo livre)73
Se ldquoa filosofia como ateacute aqui a entendi e vivi eacute a vida voluntaacuteria no meio do gelo
e nas altas montanhas ndash a procura de tudo o que eacute estranho e problemaacutetico na existecircnciardquo
(NIETZSCHE 2008 paacuteg 8) isso natildeo quer dizer colocar-se numa torre de marfim numa
transcendecircncia mundana em prol das questotildees Indica contudo um caminhar singular a
despeito da seguranccedila e do conforto coletivos sem a princiacutepio opor-se a eles Ademais o
comportamento voluntarioso (freiwillige) pressupotildee uma adesatildeo agraves questotildees ditas
filosoacuteficas a partir da liberdade pela vontade que eacute entendida aqui como a possibilidade
de escolha entre ser ou natildeo filoacutesofo Eacute certo que podemos exercer nossos desejos nisso
ou naquilo mas concernidos em nossas proacuteprias limitaccedilotildees caso contraacuterio retornariacuteamos
agrave esparrela do querer eacute poder Portanto quanto a isso faz-se uma ressalva
As questotildees natildeo satildeo posses Natildeo estatildeo agrave mercecirc de algum grupo para que possam
ser desenvolvidas em conceitos ldquoComo a palavra querer tambeacutem as palavras questatildeo
questionar e questionamento vecircm do latim quaerere Quaerere significa empenhar-se
na busca e na procura do que natildeo se tem por jaacute se ter e para se vir a terrdquo (LEAtildeO 1977
paacuteg 44) Elas natildeo servem para dar voz a minorias nem exaltar a maioria O que se faz
com as questotildees natildeo satildeo as questotildees satildeo seus encaminhamentos suas respostas suas
soluccedilotildees sua limitaccedilatildeo entre as demais questotildees Elas mesmas satildeo apenas possibilidades
de pensamento agraves quais a filosofia atenta e corresponde agrave sua maneira questionar
enquanto a harmonia e sintoma articuladores com aquilo que o pensamento tem a pensar
(HEIDEGGER 2003 paacuteg 135)
Nessa dimensatildeo natildeo tendo as questotildees dono tambeacutem natildeo teratildeo seus tratadores
seus cuidadores seus pensadores Melhor dizendo se cabe agrave filosofia a lida com as
73 Desde su misma raiacutez etimoloacutegica la infancia parece evocar un estado de minoriacutea o de incapacidad de
dependencia o de debilidad de imperfeccioacuten o incluso de salvajismo imaacutegenes todas ellas que se han
trasladado a nuestros discursos pedagoacutegicos los cuales en su mayoriacutea comparten la idea de que el nintildeo
no es maacutes que un presente sin presencia un estado preparatorio y provisional un tiempo sin derecho
propio pues toda educacioacuten es una instruccioacuten de los nintildeos no por ellos mismos (por lo que son) sino por
lo que seraacuten
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questotildees elas natildeo se restringem exclusivamente ao apreendido pelo intelecto Natildeo sendo
posse do saber tradicional conveacutem averiguar o trespassar delas pelos sentidos pela
opiniatildeo pelo simples conviver com elas Desse modo a resposta pela filosofia natildeo se
apresenta jaacute dada em algum grande mestre mas tambeacutem exige o escrutiacutenio nas mais
variadas manifestaccedilotildees inclusive laacute onde normalmente eacute vedado o interesse conceitual
no uso corrente sem prestiacutegio sem muito raciociacutenio puro empirismo e achismo Encarar
a questatildeo eacute lidar com sua multiplicidade
O que eacute filosofia Veja-se por exemplo seu sentido querendo dizer ldquomodo de
pensarrdquo ldquoNada afeta sua filosofia de boecircmio inveteradordquo (FERREIRA 2004 Filosofia)
Neste contexto o termo se aproxima a ldquoprinciacutepiordquo fio condutor de determinada maneira
de agir pensar e ser mesmo num registro mais popular Daiacute vem a notoacuteria expressatildeo
ldquofilosofia de vida visatildeo ou enfoque filosoacutefico sobre a natureza o propoacutesito da existecircncia
ou o modo como se deve viverrdquo (HOUAISS 2009a Filosofia)
Parece claro que os casos supracitados se referem a uma resposta objetiva com
preceitos e meacutetodos de accedilatildeo como etiquetas sociais posiccedilotildees poliacuteticas e posturas eacuteticas
Por esse aspecto o ensino de filosofia pode ser justificado sem muita dificuldade pois
estariacuteamos no domiacutenio da transmissatildeo de valores ou quando muito num
pseudoquestionamento que oculta uma certeza
Eis como o uso corriqueiro enxerga a filosofia uma integridade dogmaacutetica
Naturalmente que quaisquer manejos de palavras estatildeo sujeitos a seriedades e a
leviandades Decerto natildeo eacute muito usado pelos filoacutesofos profissionais acostumados com
historiografias e reflexotildees abstratas entrementes estaacute na boca do povo instruiacutedo no
portuguecircs falado Uma filosofia de vida enquanto insistecircncia de uma crenccedila inclusive
remete agrave proacutepria histoacuteria da disciplina quando Soacutecrates resoluto aceita sua pena
Embora os homens natildeo o percebam eacute possiacutevel que todos os que se dedicam
verdadeiramente agrave Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem
mortos Sendo isso um fato seria absurdo natildeo fazendo outra coisa o filoacutesofo
toda a vida ao chegar esse momento insurgir-se contra o que ele mesmo pedira
com tal empenho e em poacutes do que sempre se afanara (PLATAtildeO 2017a)
Essa profissatildeo de feacute que Soacutecrates realiza particulariza o filoacutesofo como um ser para
a morte Ao mesmo tempo identifica-o por seu aspecto fundamentalmente gregaacuterio cuja
dedicaccedilatildeo profissional se estabelece mediante uma questatildeo comum a todos os homens o
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finamento Portanto ainda que o termo filosofia em filosofia de vida natildeo seja o sentido
canocircnico ele reflete parte importante dessa loacutegica nem sempre clara mas profundamente
coerente de convivecircncia com as questotildees e seu pensamento
A filosofia que se distancia do uso exiacutemio do raciociacutenio mas se manteacutem atenta ao
questionar natildeo trai seu princiacutepio do contraacuterio habita-o novamente retificando e
ratificando seu aspecto mais genuiacuteno sua busca questionadora e fundadora Ela passa por
uma compreensatildeo legiacutetima e concreta de uma entrega agraves questotildees comparaacutevel por
exemplo a um padeiro ciente de sua dignidade e inclinado dia apoacutes dia a zelar pelo seu
patildeo natildeo importando quatildeo cedo precise acordar Para ele suas ideias sua teacutecnica e sua
realidade coordenam e consagram valor a suas accedilotildees que por sua vez se apresentam como
oferta a quem se dispor agrave padaria ainda que por ser a mais proacutexima
Quando no fundo da noite de inverno uma tormenta de neve brame
debatendo-se em torno do abrigo escurece e cobre tudo eacute a hora propiacutecia da
filosofia O questionamento tem entatildeo de deixar-se fazer simples e essencial
A elaboraccedilatildeo de cada pensamento natildeo pode ser senatildeo aacuterdua e severa O esforccedilo
de formar as palavras se identifica com a resistecircncia que os abetos oferecem
de peacute agrave tormenta
O trabalho da filosofia natildeo corre por fora no campo extra-vagante Conserva
uma relaccedilatildeo de intimidade com o trabalho dos camponeses (HEIDEGGER
1977a paacuteg 324)
25 Diaacutelogo e filosofia
No entanto das partes anteriores faz-se presente um dos maiores argumentos
contra uma resposta filosoacutefica de que a filosofia natildeo responde a coisa alguma Isso
porque demos exemplos como sendo descrita pelo sistema racional e loacutegico mas tambeacutem
a identificamos com o labor quieto e simples do camponecircs Qual a ponte entre um e outro
Haacute uma relaccedilatildeo ou trata-se apenas de diversidade de opiniotildees
Quanto a isso fala a voz da tradiccedilatildeo tradicional e seu aspecto transmissor e
controlador nem por isso menos honesta Esperar uma resposta definitiva pode ser
frustrante mas fugir agrave responsabilidade de propor um caminhar natildeo deve ser encarado
apenas como prudecircncia A falta da ousadia de pensamento e o receio constante de natildeo
tomar decisotildees eacute uma fronteira entre o cuidado e a cobardia De modo semelhante a Heitor
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encarando seu destino funesto assim a resposta se ousa a responder fadada ao equiacutevoco
pela incapacidade de apreensatildeo totalizante do real
Haacute muito tempo decerto Zeus grande e seu filho frecheiro
determinaram que as coisas assim se passassem pois eles
sempre beneacutevolos soiacuteam salvar-me ora o Fado me alcanccedila
Que pelo menos obscuro natildeo venha a morrer inativo
hei de fazer algo digno que chegue ao porvir exaltado (HOMERO 2015 paacuteg
457)74
Diante da inexoraacutevel imprecisatildeo da resposta soacute nos resta a dignidade de responder
agrave questatildeo como pudermos Desse modo foram expostas na pretensatildeo de diaacutelogo diversas
acepccedilotildees do que seja filosofia ainda que algumas delas natildeo estivessem em sintonia com
este percurso de pensamento O cerne problemaacutetico estaacute em a partir do diverso que se
apresenta confluir tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo enquanto identidade e diferenccedila a fim de chegar a
uma resposta que corresponda agrave ldquodinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircnciardquo (LEAtildeO
2010 paacuteg 212) ou seja que decirc conta da anguacutestia da pergunta que eacute simultaneamente
tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo
Afinal soacute se pergunta porque natildeo se sabe algo ndash a criaccedilatildeo por vir ndash mas se natildeo
soubeacutessemos nada natildeo haveria como perguntar ndash o respaldo da tradiccedilatildeo De maneira
semelhante eacute orquestrado o jogo das respostas nunca eacute posto algo completamente novo
nem se reproduz algo exatamente igual ldquoTodavia antes mesmo de explorar a resposta
que aiacute eacute dada importa medir o caraacutecter especiacutefico da questatildeo Tornar-se-aacute entatildeo patente
que esta clivagem questatildeo-resposta eacute ela mesma provisoacuteria e que uma justa medida da
questatildeo encerra jaacute em si o essencial da respostardquo (ZARADER 1998 paacuteg 237) Sejam os
posicionamentos mais ou menos afins com seu modo de pensar almeja-se aqui ao diaacutelogo
entre as partes
Dialogar natildeo eacute aceitar tudo o que vem do outro nem soacute aceitar o que mais se
aproxima teoricamente de noacutes mas eacute lidar com a tensatildeo entre o estranho e o conhecido
a fim de propriamente responder Dar propriedade agrave resposta como o que adentra um
percurso singular em confronto com a tradiccedilatildeo sem ao mesmo tempo abrir matildeo dela
Eis o motivo de pensar a filosofia como resposta um caminho que compara logo traz agrave
identidade sem igualar Fazem parte de toda comparaccedilatildeo na verdade quaisquer dois
74 Livro XXII linhas 301-304
87
elementos que satildeo aproximados e colocados um agrave disposiccedilatildeo do outro identificam-se
aproximadamente colocados frente a frente satildeo tidos por semelhantes mesmo que ainda
diferentes
Esse detalhe demarca uma forma de guiar o pensamento e se distingue
radicalmente da definiccedilatildeo na qual a filosofia eacute uma resposta acabada soluccedilatildeo encontraacutevel
categoria reprodutiacutevel Tampouco devia se furtar a responder aos anseios das pessoas e
da sociedade como se fosse algo fora de sua alccedilada Ela natildeo estaacute agrave mercecirc da resposta
nem aqueacutem nem aleacutem Se a filosofia se propotildee a algo eacute a este diaacutelogo entre permanecircncia
e mudanccedila
Natildeo se pode estabelecer todo relacionamento numa posiccedilatildeo a natildeo ser
aceitando a multiplicidade de posiccedilotildees Na multiplicidade vocecirc se coloca
assume uma posiccedilatildeo Sempre haacute o outro o diferente tanto o outro do outro
quanto o outro de si mesmo em cada posiccedilatildeo O outro eacute a diferenccedila do proacuteprio
movimento de constituir uma diferenccedila uma posiccedilatildeo Toda posiccedilatildeo se manteacutem
num processo de diferenciaccedilatildeo e jaacute eacute em si mesmo um outro e traz consigo a
dinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 212)
Ao longo do tempo a filosofia vem dando respostas atraacutes de respostas num
movimento incessante embora com seus contratempos Nem por isso os posicionamentos
devem ser encarados hierarquicamente anulando o anterior em prol do vindouro A
filosofia natildeo evolui Muito menos o estudo dos textos claacutessicos precisa acontecer para
que sejam decorados transformando a tradiccedilatildeo numa coisa estanque e sem vida
literalmente fruto apenas de um passado morto feito por falecidos filoacutesofos A filosofia
natildeo eacute mero relato de conceitos e categorias
Uma das dificuldades em lidar com ela encarando-a por ciecircncia eacute a natildeo
progressatildeo dos diferentes posicionamentos Hegel eacute um Kant superado Aristoacuteteles um
Platatildeo melhorado Embora os questionamentos possam ser desdobrados o empenho de
cada um desses grandes autores assim como o geacutermen inquiridor dos incipientes
discentes tem caracteriacutesticas proacuteprias e propriedade filosoacutefica quando se atecircm agrave questatildeo
que eacute sempre geradora de novas questotildees Daiacute seu caraacuteter dialogal Natildeo eacute possiacutevel sem a
diferenccedila natildeo eacute possiacutevel sem a identidade e isso natildeo quer dizer igualdade
O pequeno pensador natildeo se equivaleria agrave tradiccedilatildeo Honestamente falando ele natildeo
tem a mesma importacircncia histoacuterica nem sequer deve ter a mesma densidade no
questionar Todavia na singularidade do seu questionamento haacute ali agrave espreita o natildeo
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pensado A experiecircncia que o caminhar do caminho proporciona revela uma existecircncia
sensiacutevel compreensiacutevel agrave medida que se experiencia e eacute dificilmente transmissiacutevel pois
arduamente conceituaacutevel
Afinal ningueacutem nunca comeu fruta alguma Fruta natildeo tem gosto nem cor nem
forma Sabemos da fruta apenas conceitualmente do relato do que seja uma fruta seu
sabor seu cheiro Come-se entretanto lsquoestarsquo banana lsquoestarsquo maccedilatilde lsquoestarsquo manga e como
tal elas jamais poderatildeo ser comidas novamente Esta sim eacute saboreada e infelizmente (ou
natildeo) soacute por quem caacute come ldquonatildeo se pode entrar duas vezes no mesmo riordquo (HERAacuteCLITO
1991 paacuteg 83)75 Pode-se contudo convidar a realizar quem queira a experiecircncia ediacutevel
com outra banana Em diaacutelogo gustativo nota-se que bananas jaacute foram comidas mas
nunca lsquoestarsquo senatildeo aqui nem estaria e por isso sabe-se e natildeo se sabe seu sabor Ela eacute
uacutenica no bananal propriamente proacutexima e diferente ldquono mesmo rio entramos e natildeo
entramos somos e natildeo somosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)76
O diaacutelogo tem que partir do proacuteprio do contraacuterio ele estaria fadado ao vozerio
reprodutivo sem qualquer compromisso consigo e com o outro (que eacute um consigo) Ele
natildeo tem que dizer tudo nem poderia natildeo dizer nada natildeo diz necessariamente o que deve
ser dito (deve ser para quem) nem se omite a dizer o requisitado Ambas as atitudes satildeo
partes da vontade dos interlocutores O diaacutelogo do proacuteprio apenas diz ou seja sua accedilatildeo eacute
medida pela sua possibilidade de accedilatildeo nada aleacutem nada aqueacutem
O sucesso dessa realizaccedilatildeo dessa perfeiccedilatildeo por sua vez soacute eacute possiacutevel com a
instauraccedilatildeo de um fator que assegure a sua consecuccedilatildeo a sua realizaccedilatildeo Se
por um lado esse fator pode ser entendido a partir da realizaccedilatildeo da citaccedilatildeo
acima [navegar eacute preciso viver natildeo eacute preciso]77 como a manutenccedilatildeo do
mesmo se impotildee que pensemos o que vem a ser esse mesmo O mesmo natildeo eacute
a mera realizaccedilatildeo e sim a condiccedilatildeo de possibilidade para que essa realizaccedilatildeo
se realize (JARDIM 2005 paacuteg 45)
Este proacuteprio dita a correspondecircncia com tradiccedilatildeo e ensino As condiccedilotildees de sua
manifestaccedilatildeo as quais perpassam pelas demandas situacionais pela histoacuteria pelos gostos
pessoais etc fazem parte do grande pacote que eacute a resposta E haacute ainda a vigiar o
75 ldquoποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82) 76 ldquoποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμενrdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 70) 77 Πλεῖν ἀνάγκη ζῆν οὐκ ἀνάγκη
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inominaacutevel onde a matildeo humana nunca alcanccedila Como a resposta lida com esse vazio
Como dizer e agir perante o que natildeo se tem como responder O pensador diz que ldquonatildeo eacute
para falar [λέγειν] e agir dormindordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 79)78 e em um outro
fragmento ele se refere agrave morte como sendo ldquotudo que vemos acordados sono o que
vemos adormecidosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 63)79 Talvez isso indique que estamos
fadados ao funesto ao que natildeo diz respeito agrave nossa vontade se queremos de fato viver
Por outro lado temos a vivecircncia adormecida Dormitando dirigimo-nos agrave vida
segura ou agrave impressatildeo de seguranccedila e dormimos a fim de que nada aconteccedila como se
debaixo das cobertas o monstro natildeo viesse nos pegar Nesse sentido o falar e o agir do
sono ignorando os ensinamentos do pensador satildeo o compromisso com a penumbra do
estado de sonolecircncia com o que chega sem nos afetar sem fazermos a experiecircncia
apenas um sonho nebuloso e fugaz
Trabalhando pois sobre o oacutebvio (mas nem por isso desprezaacutevel) natildeo eacute possiacutevel
dialogar dormindo e λέγειν infinitivo do verbo de mesma raiz de λόγος natildeo nos deixa
escapar desse sentido dialoacutegico Na resposta da filosofia para a tradiccedilatildeo se funda ao
menos a atenccedilatildeo do desperto Um responder que dialoga com o proacuteprio de cada um e
com aquilo comum a todos noacutes isto eacute a morte
Como se daacute o diaacutelogo na morte Esse eacute o tipo de colocaccedilatildeo que faz do filoacutesofo
algueacutem de pouco acesso Para uma pergunta absurda justifica-se com o espanto afinal
ningueacutem fala nada depois de morto como poderia entatildeo haver diaacutelogo Em se tratando
de Heraacuteclito talvez seja apenas uma idiossincrasia de pensador seu estilo de lidar com
as questotildees conforme se compreendia em De finibus bonorum et malorum Livro II
Capiacutetulo V paraacutegrafo 15 ldquoQuod duobus modis sine reprensione fit si aut de industria
facias ut Heraclitus lsquocognomento qui σκοτεινός perhibeturrsquo quia lsquode natura nimis
obscure memoravitrsquordquo (CIacuteCERO 1914 paacuteg 94)80 a saber ldquoO qual pode ser feito em dois
casos sem repreensatildeo se se procede intencionalmente como em Heraacuteclito que
78 ldquoκαὶ ὃτι οὐ δεῖ lsquoὥσπερ καθεύδοντας ποιεῖν καὶ λέγεινrsquordquo (HERAacuteCLITO apud ANTONINUS 1916 paacuteg
92) Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreaminernetdli20151834032015183403Marcus-Aurelius-
Antoninuspagen121mode2upgt Acesso em 06 ago 2017 79 ldquoθάνατός ἐστιν ὁκόσα ἐγερθέντες ὁρέομεν ὁκόσα δὲ εὕδοντες ὕπνοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 62) 80 Conforme nota da ediccedilatildeo de 1914 desta obra a citaccedilatildeo eacute provavelmente de Luciacutelio
90
lsquocognominado Obscuro haviarsquo pois lsquoniacutemio obscura memorava sua filosofiarsquordquo (CIacuteCERO
1960 paacuteg 87 ndash traduccedilatildeo livre)81
Ainda que a questatildeo da morte seja tratada por diversos setores de nossa sociedade
desde o acadecircmico e cientiacutefico ateacute o religioso se estabelece no mais das vezes um
diaacutelogo com mas fundamentalmente sobre a morte afinal ldquono decorrer dos uacuteltimos
seacuteculos pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciecircncia coletiva
sua onipresenccedila e sua forccedila de evocaccedilatildeordquo (BENJAMIN 1987 paacuteg 207) Heraacuteclito (1991
paacuteg 63) em seu fragmento 21 revestindo-se da alcunha da obscuridade propotildee um
diaacutelogo na morte ou a partir da morte Eacute estabelecido um desatino como se fosse possiacutevel
falar com a morte ou atraveacutes dela sem perecer Por outro lado eacute sugerido que realmente
se vive para e na morte Como isso eacute possiacutevel
Falar dormindo natildeo seria pois mais factiacutevel A psicanaacutelise por exemplo efetua
toda uma estrutura de conhecimento sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos Muitas religiotildees
tomam o sono por transe estado de consciecircncia alterada e ponte para as verdades ocultas
agrave vigiacutelia Uma vida guiada pelo sono se adequaria melhor agrave compreensatildeo geral do que
uma pela morte Imaginar um diaacutelogo com o sono eacute bem mais criacutevel do que o paradoxo
posto pelo pensador preacute-socraacutetico soacute reforccedilando o paradigma obscuro tanto dele quanto
da filosofia em geral
Era bem verdade que numerosos versos dos livros sagrados sobretudo dos
upanixades do Sama-Veda referiam-se a esse quecirc derradeiro mais iacutentimo Que
versos maravilhosos lsquoTua alma eacute o mundo inteirorsquo ndash rezava um deles e estava
escrito que o homem durante o sono o sono profundo entrava no proacuteprio
acircmago e habitava o Aacutetman82 Sabedoria milagrosa residia nesses poemas []
Mas onde se achariam os bracircmanes onde os sacerdotes os saacutebios ou os ascetas
que lograssem natildeo somente conhecer senatildeo tambeacutem viver essa profunda
sabedoria Onde estaria o homem perito que fosse capaz de realizar aquele
passe de maacutegica que transportasse a familiaridade com o Aacutetman desde o sono
para o estado de vigiacutelia para a vida de todos os momentos e a demonstrasse
por atos e palavras (HESSE 2003 paacuteg 12)
Entre os diferentes modos da fala o que estaacute em jogo aqui eacute como se portar diante
de λέγειν Apresenta-se enquanto colocaccedilatildeo primordial a ausculta da unidade de λόγου
81 ldquoDas kann in zwei Faumlllen geschehen ohne Anstoszlig zu erregen wenn man entweder absichtlich so
verfaumlhrt wie Heraklit der den Beinamen bdquoder Dunkleldquo erhielt weil er uumlber die Gesetzmaumlssigkeit der Natur
gar zu dunkel berichteterdquo 82 Do sacircnscrito atma essecircncia sopro alma Na filosofia hindu significa o proacuteprio ou a alma Sua origem
remete ao proto-indoeuropeu etmen sopro conforme The Online Etymology Dictionary Disponiacutevel em
lthttpwwwetymonlinecomindexphpterm=atmangt Acesso em 02 ago 2017
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conforme Hipoacutelito em Refutaccedilatildeo de todas as heresias IX 9 1 ao citar Heraacuteclito (apud
KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 193) ldquoDando ouvidos natildeo a mim mas ao
Logos eacute avisado concordar em que todas as coisas satildeo umardquo Ainda que se estiveacutessemos
mortos ou dormindo tudo natildeo passaria de uma manifestaccedilatildeo do λόγος daiacute o pensador
natildeo estar visando a princiacutepio sua clareza imediata mas a concordacircncia nesse domiacutenio
ontoloacutegico no qual tudo eacute um ldquoO mesmo eacute vivo e morto vivendo-morrendo a vigiacutelia e o
sono tanto novo como velho pois estes se alterando satildeo aqueles e aqueles se modificando
satildeo estesrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 83)83
Nesse sentido tanto o que vemos acordados quanto o que vemos adormecidos
ldquodariardquo no mesmo tudo seria um ndash apenas natildeo damos conta disso Natildeo prestamos atenccedilatildeo
agrave unidade e nos debatemos entre este ou aquele caminho entre ser algo ou parecer ser
algo entre o inteligiacutevel ou o sensiacutevel entre morrer ou dormir Segue um trecho do
soliloacutequio do personagem Hamlet Ato II Cena I insigne caso do dilema de morrer e
dormir
Ser ou natildeo ser Eis a questatildeo Que eacute mais
nobre para a alma suportar os dardos
e arremessos do fado sempre adverso
ou armar-se contra um mar de desventuras
e dar-lhes fim tentando resistir-lhes
Morrer dormir mais nada Imaginar
que um sono potildee remate aos sofrimentos
do coraccedilatildeo e aos golpes infinitos
que constituem a natural heranccedila
da carne eacute soluccedilatildeo para almejar-se
Morrer dormir dormir Talvez sonhar (SHAKESPEARE 2011 paacuteg 70)
Natildeo obstante o filoacutesofo se esmera por um sentido e desaconselha o outro o limite
posto eacute fundamental Diz de sua filosofia apresentando como mais conveniente para o
entendimento dela seguir pela morte do que pelo sono Limitando respondendo aderindo
a uma posiccedilatildeo esse pensamento define sem encerrar ou seja sem fechar por resolvida a
questatildeo do uno pois entre um ou outro haacute um e outro Morrer e dormir estatildeo em tensatildeo
perpeacutetua mesmo na adesatildeo de uma por outra ldquoO homem toca a luz na noite quando com
83 ldquoταὐτὸ ζῶν καὶ τεθνηκὸς καὶ ἐγρηγορὸς καὶ καθεῦδον καὶ νέον καὶ γηραιόνmiddot τάδε γὰρ μεταπεσόντα ἐκεῖνά
ἐστι κἀκεῖνα πάλιν μεταπεσόντα ταῦταrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82)
92
visatildeo extinta estaacute morto para si mas vivendo toca o morto quando com visatildeo extinta
dorme na vigiacutelia toca o adormecidordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 65)84
Heraacuteclito em sua filosofia abraccedilou o paradoxo da linguagem no qual ele concebe
como possiacutevel a morte em sintonia com a vida e de modo semelhante o sono com a
vigiacutelia ldquoDe todas as coisas a guerra eacute pai de todas as coisas eacute senhor a uns mostrou
desses a outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 73)85 Πόλεμος a guerra a polecircmica sentidos todos que abarcam a tensatildeo inerente
e paradoxal que natildeo resume tudo nem cessa tudo pelo contraacuterio manteacutem acesa a disputa
em tudo Natildeo eacute uma questatildeo de escolha permanecer a dormir ou despertar para a vida
que tambeacutem natildeo aparece com negaccedilatildeo da morte Trata-se concomitantemente de viver
morrendo e de adentrar demoradamente a morte enquanto se vive A morte natildeo eacute uma
maldiccedilatildeo como se pretende pintar mas traccedilo distintivo dos mortais
Morte aqui eacute plenitude de realizaccedilatildeo do homem sua grande saiacuteda de si ndash ex-
istecircncia assim como uma saiacuteda em si dentro do proacuteprio que o define A busca natildeo eacute
incansaacutevel ao contraacuterio ela se plenifica quando cansamos pois eacute nosso destino tanto
correr atraacutes quanto deixar ir A humanidade vive partindo de laacute para caacute a decidir e a
inventar de mal a pior e desta para melhor tal atitude leva-a a criar e a ansiar pela criaccedilatildeo
mas como ela natildeo bastaraacute leva-o tambeacutem a se insatisfazer pelo criado e em sequecircncia
a produzir mais Daiacute a exaustatildeo buscamos por algo que nunca se basta Uma hora cansa
Uma hora para Partir em uacuteltima instacircncia eacute morrer
Heraacuteclito relega morte e sono agrave experiecircncia do ver Em grego o substantivo nesse
caso diz objetivamente do aspecto ou aparecircncia de uma coisa ou pessoa seus contornos
da apariccedilatildeo de algo e subjetivamente do ato de ver dignidade posiccedilatildeo (LIDDELL
SCOTT 1940 Ὄψις) Esse modo de encarar a visatildeo natildeo foca exclusivamente no que o
homem vecirc ou pode ser visto por ele mas chama atenccedilatildeo ao que se dispotildee agrave vista
manifesta-se aos olhos dos mortais e dos imortais Faz-se presenccedila mas nem por isso
torna-se presente a todos
Com a extinccedilatildeo da visatildeo morte e sono se aproximam como se ao cerrar os olhos
das muacuteltiplas atenccedilotildees fosse mais propiacutecio a ausculta do λόγος Depois de um dia
84 ldquoἄνθρωπος ἐν εὐφρόνῃ φάος ἅπτεται ἑωυτῷ ἀποσβεσθεὶς ὄψεις ζῶν δὲ ἅπτεται τεθνεῶτος εὕδων
ἐγρηγορὼς ἅπτεται εὕδοντοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 64) 85 ldquoπόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς
μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρουςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 72)
93
exaustivo o sono ateacute que seria muito bem-vindo Em contrapartida pela experienciaccedilatildeo
do visiacutevel o homem heracliacutetico precisa decidir Satildeo as escolhas impostas pelo proacuteprio
viver e para isso natildeo deve estar dormindo mas ir ao encontro do λόγος na morte esse
embate vivo e contiacutenuo Deve-se como quem tem uma obrigaccedilatildeo natildeo com a moral
vigente mas com o que impele agrave plenitude de sua constituiccedilatildeo Οὐ δεῖ natildeo eacute para natildeo se
deve conforme fragmento 73 falar e agir a dormir Οὐ eacute adveacuterbio de negaccedilatildeo e δεῖ
(LIDDELL SCOTT 1940)86 verbo que joga com os sentidos de precisar necessitar
querer sobremaneira etc Nossa obrigaccedilatildeo eacute com a escuta do Um natildeo de um pensador de
uma sumidade ou de um conjunto delas no tempo embora natildeo seja possiacutevel se
desvencilhar totalmente disso
Morte e vida morte e sono satildeo o conflito vigorando ldquoo contraacuterio em tensatildeo eacute
convergente da divergecircncia dos contraacuterios a mais bela harmoniardquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 61)87 Claro que no livre caminho das escolhas qualquer posiccedilatildeo passa por
imposiccedilatildeo e a fala de um cala a voz do outro Tomar uma escolha dentro da loacutegica do
certo e do errado visa a cessaccedilatildeo do combate Trata-se caacute da harmonia natildeo da anulaccedilatildeo
da diferenccedila Por mais responsaacuteveis que desejemos ser com os homens apenas podemos
convidaacute-los ensinar propondo encaminhamentos caso contraacuterio seria impor nossa
vontade dizer como se faz prescrever e doutrinar
O perigo de qualquer ajuda estaacute em acreditar que um sujeito deteacutem a resposta
definitiva e simultaneamente que outrem eacute incapaz de alcanccedilaacute-la Quando estender a
matildeo Mesmo se houvesse um empenho para tornar o que eacute pequeno e simples aos nossos
olhos em grandioso natildeo eacute possiacutevel ignorar a singularidade da pequenez pois cada
responder tem seu quinhatildeo de equiacutevoco e para cada soluccedilatildeo uma pretensatildeo de verdade
Perante os conflitos a oposiccedilatildeo ou a treacutegua busca a cessaccedilatildeo do embate num campo de
batalha um quer derrotar o outro ateacute que natildeo haja batalha ou entatildeo fazem-se as pazes
volta-se ao lar pois a batalha findou Haacute a situaccedilatildeo conflitante e sua resoluccedilatildeo haacute a causa
e a consequecircncia mas ldquonatildeo compreendem como concorda o que de si difere harmonia
de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)88 isto
86 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei3
Dgt Acesso em 26 set 2017 87 ldquoτὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίηνrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 60) 88 ldquoοὐ ξυνιᾶσιν ὅκως διαφερόμενον ἑωυτῷ συμφέρεταιmiddot παλίντονος ἁρμονίη ὅκωσπερ τόξου καὶ λύρηςrdquo
(HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 70)
94
eacute natildeo se opor natildeo se igualar mas manter a tensatildeo Aqui tomar uma decisatildeo dever fazer
isso ou aquilo eacute soacute mais um modo de caminhar no caminho
Apenas por ser dual que pode haver a presunccedilatildeo da unidade do real Embora o um
seja o princiacutepio gerador que conflagra a aproximaccedilatildeo das distacircncias conforme fragmento
50 isso soacute eacute possiacutevel porque aparentemente nem tudo eacute proacuteximo Do um como princiacutepio
ao dois como unidade natildeo eacute soacute um belo tiacutetulo mas faz referecircncia direta agrave discussatildeo
ontoloacutegica em torno do λόγος heracliacutetico Por haver tensatildeo haacute a possibilidade de
complemento mantendo assim uma oposiccedilatildeo que de fato se opotildee ou seja natildeo anseia
pelo teacutermino de sua posiccedilatildeo oposta Nessa realidade ambivalente a decisatildeo proferida
sussurra a incapacidade de perda da singularidade dos contraacuterios no um Por isso seja
qual for o caminho morrer ou dormir este natildeo se soma com o aquele na unidade aquele
natildeo se sintetiza com este morrer eacute dormir e natildeo eacute dormir na unidade do ciacuterculo
Simultaneamente dizer que ldquotudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71) eacute o modo mais
simples no qual pulsa o vigor originaacuterio do pensamento de dizer que tudo natildeo eacute um
[] uma paisagem que se apresenta sempre atraveacutes de dois binocircmios um o
mais secreto e escondido que faz brotar dentro de si mesmo um outro que se
revela que se faz visiacutevel Eacute como se esses pensadores [Heraacuteclito e Parmecircnides]
dissessem que toda coisa tudo aquilo que eacute natildeo estaacute nunca sozinha no sentido
de algo encerrado em si mesmo mas sempre o eacute junto a uma outra coisa em
sintonia com a alteridade com a qual a um soacute tempo se relaciona e se opotildee
constituindo com ela uma unidade (MICHELAZZO 1999 paacuteg 85)
Tudo eacute tatildeo singular quanto dual e plural e por isso ἓν πάντα εἶναι eacute paradoxal
necessariamente Nem poderia ser diferente afinal supondo que tudo fosse um apenas
com o rigor matemaacutetico de 1 ne 2 e o universo cessasse de possibilidades e de tudo restasse
somente um lsquouacutenica cadeirarsquo Ou lsquouacutenica canetarsquo ateacute mesmo lsquouacutenico homemrsquo Ningueacutem
haveria de sentar-se naquela ou nenhum poema seria escrito com esta Qualquer
possibilidade de vida seria sem sentido Da mesma forma se tudo natildeo fosse um se natildeo
houvesse essa relaccedilatildeo entre minus entre as coisas entre as pessoas entre os instantes do tempo
minus qualquer transitoriedade cessaria natildeo haveria enigmas nem caminhos para a cadeira
ser sentada a caneta virar poema e o homem morrer
Morte natildeo eacute e eacute vida vigiacutelia natildeo eacute e eacute sono assim como o uno eacute e natildeo eacute uno O
que eacute o uno No momento em que nos atemos ao momento o mesmo natildeo eacute mais o mesmo
e outro momento eacute apenas para jaacute natildeo ser outro momento Por que natildeo medir a unidade
95
se ao fim ela permaneceraacute unidade Como medir o que natildeo pode ser medido mdash
Medindo por mais impreciso que possa ser Se se faraacute crenccedila na verdade dessa mediccedilatildeo
satildeo outros quinhentos
96
3 Pensando a Linguagem
O homem fala O λόγος tambeacutem fala Tudo fala Em meio ao vozerio dos seres
nem sempre eacute possiacutevel ouvir a proacutepria voz Mesmo sem sua audiccedilatildeo o carro anda o barco
zarpa e a vida segue surda Sem o cuidado promovido pelo ouvido o diaacutelogo dos seres
cessa e batem-se cabeccedilas na multiplicidade amorfa que natildeo se sabe unidade
Natildeo agrave toa almejou-se sair da caverna como uma compreensatildeo de resgate de uma
ausculta no caso das ideias em meio agrave rede de sombras A filosofia ao longo de sua
histoacuteria tem se preocupado em diversos momentos com o que constitui e daacute sentido aos
seres Pergunta-se pela essecircncia a tradiccedilatildeo responde com a aacutegua em Tales com o fogo
em Heraacuteclito mas tambeacutem com εἶδος com Deus com ratio etc
De tudo que a filosofia fez ou faz ainda hoje laacute estaacute ora encoberta ora mais direta
a pergunta pelo que eacute Na introduccedilatildeo de ldquoWas ist Metaphysikrdquo de 1949 Heidegger
(1955 paacuteg 35) vai nos colocar diante da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoDas Seiende das in der
Weise der Existenz ist ist der Mensch Der Mensch allein existiertrdquo Em versatildeo brasileira
de Os pensadores Ernildo Stein traduziu a sentenccedila como ldquoo ente que eacute ao modo da
existecircncia eacute o homem Somente o homem existerdquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 59) Aqui
nos dispomos a ela como uma duacutevida eacute possiacutevel que somente o homem exista Quase
sem dificuldades pode-se protestar pelo absurdo ensejado na asserccedilatildeo heideggeriana
Afinal a seu lado haacute um bicho este ser estaacute no mundo tambeacutem Ele respira come
e interage com os demais seres Ele natildeo existe Para negar que natildeo soacute o homem existe
precisariacuteamos perguntar o que eacute existecircncia e em seguida de que modo o homem eacute e os
demais seres natildeo satildeo Naturalmente soacute o homem existir natildeo nega que o homem eacute nem
que os demais seres satildeo O que estamos tentando fazer eacute responder agrave escuta do ser do
homem na medida em que o ser do homem eacute como o ser do homem pode ser ndash e somente
ele pode ser
Natildeo se pressupotildee que soacute o homem possa ser Tudo eacute Entretanto a pergunta pelo
ser ganha contornos diferentes se atentarmos ao modo como se eacute ou seja como tornar-se
a si mesmo como apropriar-se do que eacute proacuteprio No livre caminho das escolhas qualquer
posiccedilatildeo poderia passar por imposiccedilatildeo e calar a voz do outro por isso a importacircncia de se
atentar aos modos de ser
97
Opta-se por isso ou aquilo daacute-se respostas a esmo sem o devido cuidado Tais
consideraccedilotildees a respeito das escolhas passa pela vontade (sou algo porque quero) e em
sequecircncia pela exclusatildeo (vocecirc natildeo eacute algo porque eu natildeo quero) O homem fala sob
pressatildeo Ele precisa responder agraves exigecircncias do cotidiano e prover de soluccedilotildees a lousa
Por esse vieacutes suas escolhas pressionadas acabam por gerar opressatildeo tanto de si quanto
dos demais Quem estaacute oprimido necessita exprimir-se e ao ser natildeo seria diferente
O ser precisaria ser exprimido precisaria se exteriorizar isto eacute existir Por sua
vez o ser seria uma interioridade opressora da existecircncia Nesse sentido ser e existir
fariam praticamente oposiccedilatildeo De um lado o ser exigindo sua expressatildeo a ponto de forccedilar
uma existecircncia e do outro o natildeo ser cuja inexistecircncia estaria agrave mercecirc do que eacute
Da oposiccedilatildeo busca-se a cessaccedilatildeo dos conflitos numa sociedade que esqueceu o
paradoxo de ser e natildeo ser Haacute a situaccedilatildeo conflitante e o depois haacute a causa e o depois Daiacute
encarar a pergunta pela essecircncia por algo de resoluto ou a fala do homem sem a tensatildeo
dos contraacuterios externando sua voz agraves demais falas Natildeo A pergunta pela fala natildeo cala
natildeo precisa calar
Tendo em vista o dito soacute o homem eacute ao modo da existecircncia natildeo conclui que os
demais seres natildeo satildeo nem que natildeo existem somente que natildeo existem como o homem
existe Em outras palavras os demais seres natildeo ldquoexistemrdquo porque o homem existe E de
fato os demais seres natildeo existem na sentenccedila heideggeriana mas ainda assim se
atentarmos para o natildeo dito no dito devemos dizer natildeo ao fato de o homem existir na
causalidade referencial dos demais seres natildeo existirem
Assim a existecircncia natildeo nega algo aos outros seres mas afirma uma singularidade
no homem Nesse caso a afirmaccedilatildeo eacute escuta agrave fala do ser Agrave medida da fala do λόγος o
homem escuta Ser e λόγος natildeo se confundem em significado pelo contraacuterio se
complementam em sentidos no paradoxo da linguagem um servindo de morada ao outro
(HEIDEGGER 1947 paacuteg 5) Agrave medida dessa escuta o homem decide e responde ldquono
dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala
perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 12)
O passarinho eacute o homem escuta o canto do passarinho A aacutervore eacute o homem vecirc
se ela caiu ou natildeo se fez barulho ou natildeo ou seja a escuta proacutepria agrave fala do ser nomeia agrave
medida que pode nomear na correspondecircncia das limitaccedilotildees da escuta Cantar e cair satildeo
somente disposiccedilotildees da fala do homem para compreender o ser do paacutessaro e da aacutervore
98
Retoacuterica 1
Cantam os paacutessaros cantam
Sem saber o que cantam
Toda sua compreensatildeo eacute sua garganta (PAZ 1989 p 19 ndash traduccedilatildeo livre)89
Chamar de existecircncia o modo proacuteprio de o homem escutar a fala do ser natildeo nega
que os demais seres tenham um modo proacuteprio de escuta e fala nem esgota o ser do homem
na existecircncia O entendimento da fala humana natildeo se consuma no grito ela interpreta diz
o oacutebvio repete a diferenccedila e cala Jaacute o paacutessaro a planta e as pedras satildeo exclusivamente
Exclusivo natildeo porque natildeo possam corresponder ao ser mas porque o homem que
corresponde ao ser do homem natildeo pode deixar de ouvir-se Em outras palavras a
existecircncia eacute a correspondecircncia agrave fala do ser agrave medida do homem Nesse sentido tudo que
eacute para o homem existe tambeacutem para o homem quer dizer soacute pode ser interpretado
compreendido assimilado dissecado estudado e experienciado agrave medida humana e agrave
escuta da fala do ser ao homem Daiacute a margem sempre errada no encontro das existecircncias
Equivocadas estatildeo sempre a se ouvir Existir natildeo eacute ser Existir eacute uma possibilidade Ser eacute
o possiacutevel
De maneira semelhante quando a filosofia se pergunta por como ser filosofia ela
natildeo anula suas variadas respostas assim como a de outras faculdades do pensamento
sobre ela mas diz do modo proacuteprio de dizer atenta ao que eacute ldquopensar desde a linguagem
significa alcanccedilar de tal modo a fala da linguagem que essa fala aconteccedila como o que
concede e garante uma morada para a essecircncia para o modo de ser dos mortaisrdquo
(HEIDEGGER 2003 paacuteg 10) A fala do homem eacute uma concessatildeo da fala do λόγος
Quanto mais atento formos agrave escuta da fala do λόγος mais habitaremos nela
O λόγος estaacute presente nas falas mas natildeo se consome nelas se encontra nas
decisotildees nossas de cada dia mas natildeo se esgota ali O esgotamento faz parte pois a escuta
atenta demanda certo tardamento demora na morada da linguagem tardanccedila que nem
sempre dispomos Normalmente cremos nas falas imediatas porque precisamos de
respostas imediatas por exemplo o dinheiro para a mensalidade do plano de sauacutede Tanta
correria que natildeo haacute tempo nem para perceber a questatildeo que permanece inconclusa e
89 Retoacuterica 1 Cantan los paacutejaros cantan sin saber lo que cantan todo su entendimiento es su garganta
99
doadora de sentidos por exemplo o que eacute cuidar por que o cuidado se desdobra na
instituiccedilatildeo meacutedica e por aiacute vai
A esse papel delongado na fala dos homens em ressonacircncia agrave do λόγος prestam-
se personagens especiacuteficas ldquoA linguagem eacute a casa do ser Nessa habitaccedilatildeo mora o
homem Poetas e pensadores satildeo seus vigiasrdquo (HEIDEGGER 1947 paacuteg 5 ndash traduccedilatildeo
livre)90 Significa dizer que haacute uma disposiccedilatildeo de tempo proacutepria que se distancia da hora
funcional para parar e para criar uma temporalidade memoraacutevel para movimentar
sentidos de uma coisa qualquer um cuidado com as coisas para operar a partir delas
interpretando experienciando tornando-as de fato obra
Uma unidade que natildeo eacute lsquocoisarsquo mas lsquoobrarsquo ndash quer dizer antes de tudo combate
Porque o mundo aspira sempre a dominar a terra a terra aspira sempre a reter
o mundo Deixar o mundo ser mundo e a terra ser terra eacute portanto mantecirc-los
no seu afrontamento vivo afrontamento que eacute o uacutenico a permitir-lhes ser cada
um para si e ser um para o outro Instigadora do combate do mundo e da terra
a obra eacute o espaccedilo de realizaccedilatildeo da unidade (ZARADER 1998 paacuteg 252)
Nesse sentido pode parecer ateacute que poetas e pensadores podem se ausentar por
completo da ordem das coisas e das exigecircncias mundanas Natildeo natildeo podem como
tambeacutem natildeo pode o motorista fugir agrave conduccedilatildeo do veiacuteculo e a sentinela ao posto sem
colocar em risco sua obra Portanto tambeacutem os poetas e pensadores natildeo podem se
ausentar do cuidado ao λόγος Natildeo por escolherem ser poetas e pensadores e por isso
precisarem cuidar do λόγος mas sim porque a escuta do λόγος vige neles que haacute poesia e
pensamento Por a questatildeo urgir primordialmente que a possibilidade de responder
acontece
A correspondecircncia agrave fala do λόγος eacute proacutepria de cada um assim como sua ausculta
Defronte de semelhantes contratempos as pessoas reagem diferentemente conforme
Metafiacutesica Livro IV Capiacutetulo 2 Seccedilatildeo 1003a Linha 33 ldquoτὸ δὲ ὂν λέγεται μὲν πολλαχῶςrdquo
(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 130) a saber ldquoo ser se diz em muacuteltiplos significadosrdquo
(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 131) Se o dito eacute pois diverso tambeacutem seraacute nossa
interpretaccedilatildeo Eacute o caso da lesma que pode ser apreendida pelo livro de biologia ou
enojada pela dissecaccedilatildeo da crianccedila curiosa E pode ser cantada de verso em prosa segue
90 Die Sprache ist das Haus des Seins In ihrer Behausung wohnt der Mensch Die Denkenden und
Dichtenden sind die Waumlchter dieser Behausung
100
de vento em popa os desdobramentos do λόγος do uno divisiacutevel cujas partes se mostram
distintamente a noacutes
De cajado
rutilante
eremita
do profundo
vai a lesma
cada instante
recriando
nosso mundo (LEGRENDE 2011 paacuteg 57)
No modo moderno de lidar com o embate do uno surge a decisatildeo da vontade
Decide-se pela vida decide-se pelo sono e por vezes pela morte Esquecida a dualidade
opta-se por um ou por outro Nada fora do comum jaacute que nem sempre estamos cientes agrave
ausculta do λόγος Conscientes ou natildeo haacute o uno e perpetramos sua rede de manifestaccedilotildees
sem o saber sem passar pela nossa vontade E mesmo quando cientes natildeo basta querer
para poder Natildeo eacute apenas por gostarmos de dirigir que podemos pegar do carro e sair por
aiacute tem toda uma teacutecnica e empenho envolvidos no processo Natildeo eacute porque estudamos
arduamente as lesmas e sabemos as respostas para todas as nossas perguntas que estamos
perante agrave duacutevida genuiacutena de pensamento vai a lesma de cajado rutilante eremita do
profundo cada instante ela recria ou natildeo nosso mundo como diria Legrende (2011 57)
Todos colaboramos tendo em vista um fim comum uns consciente e
deliberadamente outros sem o saber como Heraacuteclito [fragmento 75] (penso
eu) diz daqueles que dormem que satildeo obreiros e colaboradores das coisas que
se fazem no mundo Mas os homens cooperam de diferentes maneiras mesmo
aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir pois o universo necessita ateacute
desses homens Resta-te perceber entre que espeacutecie de obreiros estaacutes aquele
que governa o universo faraacute certamente uso adequado de ti e te receberaacute entre
os que jaacute colaboram e os que se dispotildeem a colaborar Mas natildeo ocupes um lugar
como o verso mediacuteocre e ridiacuteculo na trageacutedia de que fala Criacutesipo91 (MARCO
AUREacuteLIO 1967 paacuteg 97)
Por isso que nem o poeacutetico-filosoacutefico nem o teacutecnico-funcional estatildeo agrave medida do
λόγος aqueacutem ou aleacutem entre si Se ao inveacutes de fazer um poema decidiacutessemos medir o
tamanho de uma coluna de maacutermore esta mediccedilatildeo natildeo calaria necessariamente a
91 Criacutesipo foi um conhecido estoico grego Esta passagem se refere ao fragmente 1181 da ediccedilatildeo de von
Arnim conforme nota do original
101
desmedida do Coliseu seus diversos tamanhos a medir e a natildeo medir A medida que mede
o tamanho pelos nuacutemeros da matemaacutetica eacute mais um modo de ouvir a fala do λόγος Ainda
que definitivamente natildeo seja o λόγος em sua totalidade
Daiacute a dificuldade da metafiacutesica nos moldes dicotocircmicos de νοῦς e δόξα ao se
deparar com Heraacuteclito O Obscuro natildeo estaacute claro por natildeo se articular tradicionalmente
ou seja dentro de certos preceitos de oposiccedilotildees e argumentaccedilotildees esperadas inclusive
logicamente esperadas A desculpa de que sua escrita nos foi relegada fragmentada natildeo
convence jaacute que tantos outros escritos antigos estatildeo em fragmentos aleacutem do que a
alcunha adveacutem de uma eacutepoca na qual eacute concebiacutevel que alguns dizeres do pensador
estivessem ateacute em outras dimensotildees
Σκοτεινός natildeo eacute devido somente ao seu modo de se manifestar mas tambeacutem a
como seus interlocutores o podiam compreender Sua obscuridade faz jus agrave parcela de
confusatildeo de natildeo compreensatildeo e de tensatildeo do seu pensamento a fim de que o λόγος
retenha seu misteacuterio aquele natildeo dito em todo dizer como eacute fruto do excesso de
luminosidade na concatenaccedilatildeo das ideais com as quais seus leitores estariam
acostumados Essa medida torna-se problemaacutetica quando roga para si o que o λόγος eacute em
sua totalidade natildeo permitindo assim outras manifestaccedilotildees Como se impossiacutevel fosse o
ponto fora da curva
31 Linguagem e limite
Natildeo eacute de agora a questatildeo de como a filosofia se compreende E jaacute que a proacutepria
natildeo estaacute agrave parte do mundo compreender-se eacute em alguma medida compreender o mundo
Do mesmo modo o mundo encara a filosofia com as garras afiadas com que apanha tudo
o que encontra deixando pouco espaccedilo para brechas ou pontas soltas ldquoa incerteza sempre
foi uma fonte suprema de medordquo (BAUMAN 2010 paacuteg 25) Por natildeo se restringir a um
tempo especiacutefico esse incocircmodo aparece nos preacute-socraacuteticos e atravessa as eras
inquietando os homens
Se vale mais a pena morrer do que sonhar Isso certamente soa como algo senatildeo
impossiacutevel difiacutecil de decidir pois natildeo eacute uma pergunta funcional A permanecircncia em
102
estado de vigiacutelia daacute o tom da resposta heracliacutetica na mesma medida em que destoa do
status quo que deseja transformar o caminho filosoacutefico num passo a passo Assim segue
a pergunta conforme paraacutegrafo 309 de Philosophische Untersuchungen ldquoWas ist dein
Ziel in der Philosophie mdash Der Fliege den Ausweg aus dem Fliegenglas zeigenrdquo isto eacute
ldquoQual eacute seu objetivo na filosofia mdash Mostrar agrave mosca a saiacuteda do mosqueirordquo
(WITTGENSTEIN 1971 paacuteg 131 ndash traduccedilatildeo livre) a indicar outro caminho aleacutem do
aparente uacutenico jeito que nesse caso seria o fim do inseto
Ao mostrar ensina-se um caminho diz-se o que a mosca pode fazer aleacutem de se
debater frustrantemente Natildeo que ela faraacute o dito Tambeacutem natildeo haacute garantias de sucesso
pela simples audiccedilatildeo nem pela execuccedilatildeo Zeigen convida anuncia solenemente o que
antes era dado como certo a fim de que a atenccedilatildeo devida possa ser despendida
Etimologicamente esse verbo tem a raiz indo-germacircnica dįk- (KLUGE 1899 paacuteg 433
GRIMM GRIMM 1971 Zeigen)92 a mesma de ensinar em inglecircs (DICTIONARY
Teach)93 mostrar em grego (LIDDELL SCOTT 1940 Δείκνυμι)94 e dico dizer em latim
(GLARE 1968 paacuteg 537)
Haacute muito que mostrar algo eacute apenas ldquo1 oferecer agrave vistardquo (HOUAISS 2009a
Mostrar) dizer eacute ldquo1 expor atraveacutes de palavrasrdquo (HOUAISS 2009a Dizer) e ensinar eacute ldquo1
repassar ensinamentos sobre algo doutrinarrdquo (HOUAISS 2009a Ensinar) O domiacutenio da
funcionalidade preza pela presteza e reprodutibilidade logo tende-se ao uso mecacircnico das
palavras esvaziadas de significaccedilatildeo para o manejo ordinaacuterio com elas Isto equivale
agravequilo este siacutembolo sonoro representa tal gesto ou aquele objeto e por aiacute vai
Ainda a respeito dos sentidos de zeigen cabe detalhar um pouco sua relaccedilatildeo com
o verbo latino dico primeira pessoa do singular do presente dos verbos cujos infinitivos
satildeo dicare e dicere Ambos significam dizer mas com certos sentidos mais
pormenorizados em um verbete do que no outro Sobre as diferenccedilas entre eles
92 Disponiacutevel em lthttpwoerterbuchnetzdecgi-
binWBNetzwbgui_pysigle=DWBamplemid=GZ03301ampmode=Vernetzungamphitlist=amppatternlist=ampmain
mode=gt Acesso em 05 ago 2017 93 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowseteachs=tgt Acesso em 05 ago 2017 94 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei2
Fknumigt Acesso em 05 ago 2017
103
encontramos em dicare referecircncias a ldquodedicar devotar consagrarrdquo e em dicere ldquofazer um
juramento votar dar evidecircnciardquo (GLARE 1968 paacuteg 537)95
Embora o uso de dicare mantenha um tom cerimonioso em alguns contextos por
tratar da sagraccedilatildeo e da dedicaccedilatildeo a um deus a uma figura incontestadamente de
importacircncia dicere daacute seu testemunho pelo dizer ldquoComo orare dico tem um caraacuteter
solene e teacutecnico eacute um termo da liacutengua da religiatildeo e do direitordquo (ERNOUT MEILLET
2001 paacuteg 172 ndash traduccedilatildeo livre)96 Um mostrar que se diz Os sentidos dos dois vocaacutebulos
confluem entre si atraveacutes da voz que traz agrave tona o sagrado seja na evocaccedilatildeo da divindade
seja na presenccedila da verdade Um dizer que mostra faz evocar trazer agrave palavra o vigor do
sagrado ldquoA raiz indo-europeia wekw- [de evocar voz] indicava a emissatildeo de voz com
todas as forccedilas religiosas e juriacutedicas que delas resultamrdquo (ERNOUT MEILLET 2001
paacuteg 754 ndash traduccedilatildeo de Manuel Antocircnio de Castro)97
Concomitantemente a abstraccedilatildeo da realidade em conceitos na ψυχῇ platocircnica
conforme seccedilatildeo 511d da Repuacuteblica tem se demonstrado eficiente em se tratando do
empobrecimento da experiecircncia sensiacutevel Permitindo entre outras coisas postergar o
trato com as palavras isto eacute sabendo o significante e o significado basta aplicaacute-los
quando for mais conveniente O visiacutevel eacute limitado existindo apenas ateacute onde nossos olhos
alcanccedilam poreacutem o invisiacutevel as ideias abstratas independem de um objeto especiacutefico
pelo contraacuterio podem ser aplicadas a qualquer coisa Semelhantemente as palavras
sofreram um enfraquecimento de sua caracteriacutestica de evocaccedilatildeo de trazer agrave presenccedila na
nomeaccedilatildeo para serem compreendidas na loacutegica significante e significado Assim o que
algo significa pode ser reproduzido dicionarizado definido e arbitrariamente somente
relaciona-se com a coisa em questatildeo A experiecircncia oral concreta eacute limitada e irrelevante
natildeo se distinguindo em linhas gerais uma da outra
O mostrar agrave mosca natildeo pode esperar pois eacute uma experiecircncia radical Nem por isso
estaacute em sujeiccedilatildeo agrave pressa do ponteiro Diz conceitualmente o significado do significante
mas tambeacutem marca a ferro e fogo o bicho com o ensinamento de sua finitude Ratifica a
95 ldquo2 To dedicate devoterdquo e ldquo6 to make a oath to vote to give evidencerdquo respectivamente 96 Comme orare dico a un caractegravere solennel et technique crsquoest un terme de la langue de la religion et du
droit 97 La racine wekw- eacutetait en indo-europeacuteen celle qui indiquait leacutemission de la voix avec toutes les forces
religieuses et juridiques qui en reacutesultent
104
situaccedilatildeo limiacutetrofe da mosca em contato com o mosqueiro e alerta-a para uma condiccedilatildeo
aleacutem do vidro reconfigurando seus limites delimitando e deslimitando
Somente porque o filoacutesofo estaacute sempre a jogar com a linguagem que ele pode fazer
filosofia Por estar em concordacircncia com a fala da linguagem ele traccedila tanto um paralelo
com a tradiccedilatildeo quanto reconhece seus pontos sensiacuteveis e dignos de questionamento Por
estar em discordacircncia com a fala da linguagem o filoacutesofo pode responder a ela
cuidadosamente habitando seus limites e radicalmente atuando para sua criaccedilatildeo e
consequentemente destruiccedilatildeo ldquo56 Os limites da minha liacutengua [grifo no original]
significam os limites do meu mundordquo (WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 148 ndash traduccedilatildeo
livre)98
Logo ele eacute aquele que mostra a saiacuteda Quatildeo tentador natildeo eacute encarar essa assertiva
por salvaccedilatildeo De fato sair do mosqueiro salvaria a mosca Aleacutem do mais a palavra
Ausweg abarca os significados de remeacutedio e alternativa (LANGENSCHEIDT 2001 paacuteg
692) e o que seria mais curativo do que um bom remeacutedio durante o estado de
enfermidade A cura processada pode ser encarada dessa forma como a soluccedilatildeo do
problema se o problema fosse passiacutevel de cura Trata-se aqui de uma problemaacutetica
filosoacutefica na qual o alvo a meta ou objetivo das Ziel tal como pular a proacutepria sombra eacute
sair do frasco feito para que vocecirc natildeo saia dele
Eacute propor solucionar o insoluacutevel sair do caminho sem saiacuteda Ainda assim toda
partida chega a algum lugar logo para cada Ausweg podemos supor um Weg um
caminho Nesse sentido a proposta de Wittgenstein natildeo se mostra mais eficaz para
remediar o irremediaacutevel do que quaisquer outras atitudes mesmo assim eacute um caminho e
uma resposta Eacute uma assunccedilatildeo de que ele o pensador estaacute comprometido com o cuidado
entre a sanidade e o insano que salienta sua decisatildeo e o separa por um fio de dar murro
em ponta de faca ou de saber que o sucesso natildeo eacute a uacutenica soluccedilatildeo mas que o caminhar
natildeo eacute soacute possiacutevel mas nosso dever com o caminho
A saiacuteda estabelece um limite Ateacute entatildeo sem outro caminho ainda que aparente
natildeo haacute diferenciaccedilatildeo natildeo haacute chances de se diversificar para a mosca que caiu presa no
mosqueiro e por isso se fundiu nele Mosqueiro e mosca eram uma coisa soacute O mosqueiro
98 56 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt
105
era o mundo da mosca Na identificaccedilatildeo que mostra algo que pode acontecer uma
alternativa ocorre a cisatildeo do mundo
Mosqueiro e mosca se separam na exposiccedilatildeo da saiacuteda Assim como o umbral
marca o limite entre os cocircmodos e as cercanias da casa delimitam a propriedade assim o
caminho para fora reafirma o compromisso com o caminho de dentro Toda chegada parte
de algum lugar Mosqueiro pois toma seu lugar enquanto proveniente da mosca Natildeo faz
sentido mosqueiro sem mosca mas o contraacuterio natildeo eacute verdade a mosca natildeo eacute mosqueiro
natildeo se encerra nele natildeo necessariamente
Para haver Fliegenglas eacute imprescindiacutevel der Fliege se assim natildeo for se trataria de
somente mais um Glas soacute mais um vidrino recipiente sem nenhuma relevacircncia para a
mosca senatildeo eventuais resquiacutecios meliacutefluos Da mesma forma Glas demarca a qualidade
de natildeo mosca de Fliegenglas reafirmando tratar-se de duas entidades a mosca e o vidro
de pegar moscas Duas realidades separadas pelo limite apresentado pelo filoacutesofo
O mosqueiro eacute e natildeo eacute a mosca A proacutepria palavra jaacute diz a mosca mas
diferentemente fundando outra forma da mosca ser mosca Natildeo haacute limite sem o entorno
Sua circunvizinhanccedila se apresenta na saiacuteda eacute o reconhecimento da linha ao redor do
ciacuterculo O limite se confunde com sua transgressatildeo refazendo a ponte entre o que somos
e natildeo somos Essa eacute a meta do filoacutesofo reafirmar o abismo pelo salto Natildeo por tendecircncias
suicidas mas por ter sapiecircncia de que o abismo natildeo seria nada sem a possibilidade da
queda assim como cair natildeo seria possiacutevel sem o caminhar
O inuacutetil
Disse Hui Tzu a Chuang Tzu
mdash Todo o seu ensinamento estaacute baseado no que natildeo tem utilidade
Replicou-lhe Chuang Tzu
mdash Se vocecirc natildeo aprecia o que natildeo tem utilidade
Natildeo pode comeccedilar a falar sobre o que eacute uacutetil
Por exemplo a terra eacute larga e vasta
Mas de toda a sua extensatildeo o homem utiliza
Apenas poucas polegadas
Sobre as quais se manteacutem de peacute
Suponhamos agora que vocecirc tire
Tudo o que ele realmente natildeo usa
De modo que ao redor de seus peacutes
Um golfo se abra
E ele fica de peacute no vazio
Sem nada de soacutelido
Com exceccedilatildeo do que se encontra bem debaixo de cada peacute
Por quanto tempo poderaacute utilizar o que estaacute usando
106
Disse Hui Tzu
mdash Cessaria de servir a qualquer finalidade
Concluiu Chuang Tzu
mdash Isto prova
A absoluta necessidade
De que lsquonatildeo tem utilidadersquo (MERTON 1984 paacuteg 194-195)
Para isso ele se achega agrave beira do despenhadeiro para arriscar um salto Esta eacute sua
correspondecircncia ao abismo agrave questatildeo cuja profundidade natildeo se esgota mas se adentra
em cada resposta Natildeo eacute um saltar de cabeccedila no vazio sem sentido nem aterrar a
profundura para jamais sermos tragados por ela e fazecirc-la planiacutecie segura para um
pensamento raso
A resposta filosoacutefica agrave mosca natildeo pretende solucionar a problemaacutetica do frasco
diretamente Em vez disso coloca novamente a questatildeo instituindo a limitaccedilatildeo entre a
mosca e o vidro Mostrar a saiacuteda natildeo desfaz o mosqueiro como a porta natildeo desfaz a casa
mas convida a lidar com o limite como algo que natildeo precisa ser seguido agrave risca tambeacutem
somos aleacutem dele nem arriscado sempre ao extremo tambeacutem somos aqueacutem dele pois o
ciacuterculo se define tanto pelo que estaacute dentro como pelo que estaacute fora
32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem
Responder natildeo eacute um papel exclusivo da filosofia Eacute tanto uma palavra como uma
atitude muito comum Nas perguntas das provas haacute um espaccedilo destinado para isso Na
duacutevida de quanto custa o patildeozinho naquela outra padaria no momento apoacutes uma saudaccedilatildeo
e no fechar das matildeos depois de levado o soco acontece ali uma resposta agraves interpelaccedilotildees
da vida
Cria-se a expectativa do quadrado da hipotenusa que se iguala agrave soma dos
quadrados dos catetos na lacuna preenchida no teste do valor monetaacuterio do quilo mais ou
menos barato do que o da bodega da esquina do olaacute e do olho roxo Somos ensinados a
isso Embora as reaccedilotildees variem no tempo e no espaccedilo de modo geral estamos sempre no
aguardo de um posicionamento que nos tire da suspensatildeo da questatildeo
107
Todo o processo comunicativo eacute baseado em correspondecircncias Em remetentes e
destinataacuterios em dar agrave mensagem o recebido para na via de matildeo dupla da prosa moderna
devolver a missiva em seguida Se se pergunta espera-se com isso um termo o desenlace
pelo qual fomos formados a crer e compreender
Quando muito natildeo cabe a noacutes mas aos outros dar as respostas que aguardamos
Ao professor cabe responder o aluno com a soluccedilatildeo do problema ao atendente o
comprador com o preccedilo do patildeo ao amigo o irmatildeo com a atenccedilatildeo devida e ao rival a noacutes
com a violecircncia por vezes merecida Em nossa sociedade se a interrogaccedilatildeo eacute parcialmente
livre o travessatildeo costuma ser destinado a setores a profissionais e a especialistas no
assunto
Tudo tem seu lugar nas engrenagens da maacutequina a pergunta e a resposta natildeo
fogem a isso Responder passa a ser encarado como uma postura formal Como natildeo ser
seduzido pela crenccedila da oficialidade se tradicionalmente tem sido assim A mais antiga
universidade europeia em funcionamento data de 1088 e antes disso a Academia de
Platatildeo foi fundada no ano de 387 antes de Cristo isto significa dizer que haacute tempos o
Ocidente tem se empenhado a reter a produccedilatildeo do saber em determinadas instituiccedilotildees em
detrimentos de outras circunstacircncias e localidades
A partir do momento em que o conhecimento foi compartimentado retirado de
sua experiecircncia imediata e empossado no poacutedio das categorias especializadas fica cada
vez mais difiacutecil natildeo considerar as respostas oficiais para dizer o que as coisas satildeo Mal
comparando seria perguntar ao padeiro sobre o teorema de Pitaacutegoras Que se faccedila notar
natildeo eacute que o padeiro saiba ou natildeo saiba pouco importa pois ele natildeo deteacutem o saber oficial
a respeito dessa problemaacutetica isto eacute ele natildeo estaacute autorizado a responder oficialmente
Autorizaccedilatildeo dada pela tradiccedilatildeo Neste caso a tradiccedilatildeo tradicional encastela nas
instituiccedilotildees formais de ensino nos oacutergatildeos governamentais nas fundaccedilotildees emissoras de
diplomas e registros os atestes da veracidade das respostas Nossa sociedade distorceu a
seu bel-prazer a compreensatildeo mitoloacutegica de Pandora e Prometeu erigindo
estabelecimentos que concentram as verdades perante as opiniotildees e as experiecircncias
concretas dos indiviacuteduos e ateacute de grupos
Isto significa que esses locais e as pessoas que respaldam essas localidades satildeo
capazes de nos prover das respostas que necessitariacuteamos para manter as engrenagens
sociais em funcionamento Desse modo natildeo precisariacuteamos mais lidar diretamente com
108
os dilemas que jogam com nossos limites por mais simploacuterios ou essenciais que eles
possam ser As respostas vecircm prontas basta apenas acessaacute-las
A Pandora original foi enviada agrave Terra com uma caixa que continha todos os
males de coisas boas continha soacute a esperanccedila O homem primitivo vivia neste
mundo de esperanccedila Confiava na magnanimidade da natureza nos benefiacutecios
dos deuses e nos instintos de sua tribo para sobreviver Os gregos claacutessicos
comeccedilaram a substituir a esperanccedila pelas expectativas Em sua versatildeo do mito
de Pandora ela havia soltado tanto os males quanto os bens Lembravam-se
dela sobretudo pelos males que havia soltado E esqueceram que a lsquodoadora de
tudorsquo era tambeacutem a guardiatilde da esperanccedila
Os gregos contavam a histoacuteria de dois irmatildeos Prometeu e Epimeteu Prometeu
sempre admoestava Epimeteu para que deixasse Pandora em paz Mas este
acabou casando-se com ela No grego claacutessico o nome Epimeteu que significa
lsquoolhar para traacutesrsquo foi traduzido por lsquoboborsquo ou lsquoestuacutepidorsquo [] Os homens
planejaram instituiccedilotildees com que pretendiam fazer frente aos males
disseminados Conscientizaram-se de seu poder de modelar o mundo e fazecirc-lo
produzir serviccedilos que eles mesmos aprenderam a esperar Queriam que suas
proacuteprias necessidades e as futuras demandas de seus filhos fossem modeladas
por seus artefatos Tornaram-se legisladores arquitetos autores idealizadores
de constituiccedilotildees cidades e obras de arte que servissem de exemplo para seus
descendentes O homem primitivo confiava na participaccedilatildeo miacutetica dos ritos
sagrados para iniciar pessoas na doutrina da sociedade [] (ILLICH 1973
paacutegs 115-116)
Ora mas como as repostas poderiam vir prontas se fazemos perguntas Isso natildeo
pressupotildee uma duacutevida Naturalmente que sim mas ateacute para perguntar eacute indispensaacutevel
saber algo Natildeo eacute possiacutevel perguntar sobre o que natildeo temos como perguntar a respeito
Por mais tautoloacutegico que essa uacuteltima assertiva possa soar ela remete ao conhecimento do
ser a perambular o natildeo ser
Como acessar o natildeo ser Acessamos o ser agrave medida que ele se revela a noacutes Seja
nas questotildees como em suas respostas precisamos estar nas cercanias do ser para que haja
compreensatildeo Quando natildeo o habitamos em alguma instacircncia ou seja quando natildeo somos
simplesmente as coisas acontecem e natildeo temos a possibilidade de darmos conta disso
A luz das estrelas perguntou ao Natildeo-Ser mdash Mestre voacutes existis ou natildeo
Como a luz das estrelas natildeo obtivesse qualquer resposta dispocircs-se a vigiar o
Natildeo-Ser Esperou para ver se o Natildeo-Ser aparecia
Manteve seu olhar fixo no profundo Vaacutecuo esperando para tentar ver uma
sombra do Natildeo-Ser
Olhou durante todo o dia e nada viu Ouvia mas natildeo escutava nada Tentava
pegar mas nada pegava
Entatildeo a luz das estrelas exclamou finalmente mdash Eacute isto
mdash Este eacute o mais distante Quem poderaacute alcanccedilaacute-lo
Posso compreender a ausecircncia do Ser
Mas quem pode compreender a ausecircncia do Nada
109
Se agora acima de tudo o Natildeo-Ser eacute
Quem seraacute capaz de compreendecirc-lo (MERTON 1984 paacuteg 161)
Quantas coisas acontecem diante de nossos olhos neste exato momento sem que
percebamos Incontaacuteveis Mesmo aquelas que percebemos ainda eacute uma percentagem
iacutenfima do que poderia ter sido e o que poderia natildeo eacute assim como o que jamais poderaacute
ser tambeacutem natildeo eacute O natildeo ser natildeo estaacute presente o ser o ainda natildeo presente e o que acontece
eacute o ser sendo presenccedila simultaneamente presente e a presentificar-se independentemente
do que tenhamos a dizer sobre ou se tomamos ciecircncia dele
Nesse sentido nem o ser nem o natildeo ser eacute Do contraacuterio seria um ente acessado
por completo apreendido agrave nossa imagem e semelhanccedila ou seja natildeo estariacuteamos de fato
compreendendo o ser mas dizendo o que o ser deveria ser de nosso ponto de vista Isso
eacute tatildeo grave e presente que se construiu todo o aparato conceitual para dar respostas com
as quais jaacute estamos acostumados e no mais que conveacutem aos interesses Significa que
acessamos o ser e o devassamos o natildeo ser eacute o ser eacute tudo eacute ente tudo eacute o que jaacute foi dado
respondemos apenas a noacutes mesmos as nossas perguntas cujo misteacuterio natildeo passa de uma
farsa sem trageacutedia
Como gecircnio construtivo o homem se eleva nessa medida muito acima da
abelha esta constroacutei com cera que recolhe da natureza ele com a mateacuteria
muito mais tecircnue dos conceitos que antes tem de fabricar a partir de si mesmo
Ele eacute aqui muito admiraacutevel ndash mas soacute que natildeo por seu impulso agrave verdade ao
conhecimento puro das coisas Quando algueacutem esconde uma coisa atraacutes de um
arbusto vai procuraacute-la ali mesmo e a encontra natildeo haacute muito que gabar nesse
procurar e encontrar e eacute assim que se passa com o procurar e encontrar da
lsquoverdadersquo no interior do distrito da razatildeo Se forjo a definiccedilatildeo de animal
mamiacutefero e em seguida declaro depois de inspecionar um camelo lsquoVejam um
animal mamiacuteferorsquo com isso decerto uma verdade eacute trazida agrave luz mas ela eacute de
valor limitado quero dizer eacute cabalmente antropomoacuterfica e natildeo conteacutem um
uacutenico ponto que seja lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido sem
levar em conta o homem (NIETZSCHE 2009 paacuteg 537)
A iniciaccedilatildeo agrave realidade deixa de ser miacutetica e composta de rituais sacros para ser
fruto da educaccedilatildeo e das leis Eacute a passagem do concreto para o abstrato da experiecircncia
sensiacutevel para a inteligiacutevel O controle social chega a atingir as demandas por necessidades
isto eacute se o homem pode produzir algo ele deve poder produzir a necessidade daquela
produccedilatildeo Se o homem pode dar respostas ele deve poder produzir as perguntas que se
adequem agraves respostas agraves quais ele estaacute preparado
110
Por mais que tentemos fugir os mitos de Siacutesifo e de Tacircntalo insistem em bater na
nossa cara Condenados a empurrar uma pedra ateacute o cimo da montanha e a passar fome e
sede respectivamente essa dinacircmica de um esforccedilo interminaacutevel se desdobra
modernamente em crescentes e insaciaacuteveis demandas por necessidades Eis um paradoxo
social pois ao criar uma realidade de instrumentos os homens que ldquoquanto mais podem
comprar mais decepccedilotildees tecircm que engolirrdquo (ILLICH 1973 paacuteg 178) se
instrumentalizam tornando-se refeacutens da proacutepria criaccedilatildeo
Se algum dia natildeo foi assim se nos primoacuterdios o homem era governado pelos fatos
pelas necessidades baacutesicas e pelo destino arremedo do sagrado atualmente natildeo eacute essa a
maneira das coisas serem experienciadas Ao longo de seacuteculos desenvolveu-se a
confianccedila nas instituiccedilotildees humanas como bastiotildees do controle e doadoras da seguranccedila e
com o tempo o equiliacutebrio entre confiar na natureza e confiar em sua proacutepria criaccedilatildeo foi
abalado O homem atual esqueceu-se de sua tragicidade e elevou ao extremo sua
dependecircncia institucional Cego nessa confianccedila natildeo vecirc as contradiccedilotildees do processo
Essas estruturas satildeo auto e antropofaacutegicas a saber
Uma sociedade comprometida com a institucionalizaccedilatildeo dos valores identifica
a produccedilatildeo de bens e serviccedilos com a demanda pelos mesmos A educaccedilatildeo que
nos faz necessitar do produto estaacute incluiacuteda no preccedilo do produto A escola eacute a
agecircncia publicitaacuteria que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela
eacute (ILLICH 1973 paacuteg 178)
33 O limite da resposta
Do pondo de vista da educaccedilatildeo tradicional a importacircncia da transmissatildeo da
seleccedilatildeo e da reproduccedilatildeo de um conteuacutedo parece evidente Daiacute crer que satildeo as instituiccedilotildees
a educaccedilatildeo oficial que transmite os valores natildeo mais o mito natildeo mais os deuses (embora
o sagrado modernamente possa ser apreendido pelas instituiccedilotildees) Por outro lado na
construccedilatildeo de um pensamento criacutetico tambeacutem encontramos a crenccedila num controle a ser
transmitido ainda que justificado ideologicamente Por mais que se argumente que os
conteuacutedos transmitidos satildeo vitais para a sobrevivecircncia ou que os mesmos perpassam pela
111
responsabilidade dos envolvidos neste processo isto eacute os educadores os educados e o
mundo trata-se no mais das vezes do que pode ser apreensiacutevel pelo saber
A educaccedilatildeo eacute o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para
assumirmos a responsabilidade por ele [] eacute tambeacutem onde decidimos se
amamos nossas crianccedilas o bastante para natildeo expulsaacute-las de nosso mundo e
abandonaacute-las a seus proacuteprios recursos e tampouco arrancar de suas matildeos a
oportunidade de empreender alguma coisa nova [] preparando-as [] para a
tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT 1972 paacuteg 247)
Tomar uma decisatildeo eacute uma resposta A educaccedilatildeo pelas vias da tradiccedilatildeo decide
respostas aos pais agrave sociedade e agrave questatildeo colocada Esse tem sido o papel do ensino Por
mais que se decida pelo cuidado ou pela ousadia essas correspondecircncias podem vir pelas
vias da apreensatildeo dando indiacutecios de preparaccedilatildeo e margens agrave transmissatildeo Com isso
modela-se sentidos agrave existecircncia
A marca que o ensino deixa na carne desse mundo comum nem sempre eacute visiacutevel
a olho nu mas isso natildeo quer dizer que ela natildeo esteja exercendo sua influecircncia Em outras
palavras o que se identifica na vontade de preparaccedilatildeo eacute a necessidade de uma resposta
que valide a transmissatildeo Se a resposta natildeo for adequada se natildeo partir de uma decisatildeo
modelar a saber que pode ser usada como modelo agraves demais ela eacute excluiacuteda enquanto
verdade Torna-se ficccedilatildeo invencionice parvoiacutece de filoacutesofo que natildeo diz coisa com coisa
mdash Por conseguinte oacute Glaacuteucon quando encontrares encomiastas de Homero a
dizerem que esse poeta foi educador da Greacutecia99 e que eacute digno de se tomar por
modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humana para aprender com
ele a regular toda a nossa vida deves beijaacute-los e saudaacute-los como sendo as
melhores pessoas que eacute possiacutevel e concordar com eles em que Homero eacute o
maior dos poetas e o primeiro dos tragedioacutegrafos mas reconhecer que quanto
a poesia somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encoacutemios aos
varotildees honesto e nada mais Se poreacutem acolheres a Musa apraziacutevel na liacuterica ou
na epopeia governaratildeo a tua cidade o prazer e a dor em lugar da lei e do
princiacutepio que a comunidade considere em todas as circunstacircncias o melhor
mdash Exactamente
mdash Aqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao lembrarmos de novo a poesia por
justificadamente excluirmos da cidade uma arte desta espeacutecie (PLATAtildeO
1987 paacutegs 472-473)
Ironicamente o julgamento que Platatildeo fez agrave poesia de base homeacuterica no passado
se assemelha muito com a criacutetica agrave filosofia nos tempos atuais Significa dizer que a
99 Conforme nota da citaccedilatildeo a mais antiga prova dessa asserccedilatildeo diz respeito ao Fragmento 10 de
Xenoacutefanes ldquoUma vez que desde iniacutecio todos aprenderam por Homerordquo
112
pergunta que Soacutecrates faz agrave Homero ldquodiz-nos que cidade foi graccedilas a ti melhor
administradardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 456) compreende natildeo soacute o vigor do que se tem a
dizer a partir de sua relevacircncia uacutetil quanto ignora a inutilidade de toda utilidade A
imprescindibilidade de fazer algo com essa resposta tornando-a eficaz a nossos
problemas passa por cima do fato de que Platatildeo inclusive utilizou-se da poesia Sua
escrita dialoacutegica as referecircncias miacuteticas o fizeram fruto de sua proacutepria criacutetica
Na mesma linha de pensamento sarcaacutestica tambeacutem as instituiccedilotildees por mais
controladoras que sejam natildeo conseguem se livrar completamente da filosofia Quer dizer
o pensamento que se tenta abarcar nunca se esgota de todo Haacute brechas e veredas nem
tudo Nem tudo pode ser encontrado logo nem tudo estaacute perdido Eacute a isso que nos
referimos quando tratamos filosofia como resposta Natildeo eacute um responder a algo
definitivamente mas um postar-se a
Natildeo que a questatildeo do ser natildeo esteja presente Natildeo eacute possiacutevel natildeo estar a falar do
ser do contraacuterio estariacuteamos a falar de quecirc Do natildeo ser Aiacute ele seria ser natildeo Digamos
tratar-se pois de um modo distinto do que eacute ser a saber natildeo enquanto essecircncia
preocupada em identificar as qualidades imutaacuteveis mas com a presenccedila do que eacute mutaacutevel
e do que permanece Apregoa-se que pensar a essecircncia limita e dicotomiza sem perceber
que a identidade esvaziada da questatildeo do ser estaacute mais preocupada em classificar e
adequar do que propriamente em tornar-se presenccedila
Mas eacute tambeacutem uma questatildeo quem eacute quem Natildeo eacute lsquoO que eacute quemrsquo ndash natildeo eacute
uma questatildeo de essecircncia mas de identidade (como quando perguntamos diante
da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos mas natildeo os
seus rostos lsquoQuem eacute quemrsquo ndash Este eacute Kant Aquele eacute Heidegger E este outro
ao lado dele) (NANCY 1991 paacuteg 7 ‒ grifo no original)
Ateacute mesmo faz sentido lidar com as respostas agraves questotildees no modo da identidade
natildeo da essecircncia Podemos crer no que vemos com mais facilidade do que o que natildeo vemos
a princiacutepio Eacute mais faacutecil achar que detemos o controle do que podemos identificar ao
contraacuterio o ser natildeo eacute identificaacutevel embora possa ser aprendido ateacute certo ponto pelas
caracteriacutesticas de um ente poreacutem nunca por inteiro Quem eacute quem eacute questatildeo ndash assim como
para que como quando quanto etc ndash agrave medida que pressupotildeem a possibilidade do
questionamento isto eacute a pergunta pelo ser em todo perguntar o que eacute quem O que eacute
ser O que eacute quem eacute quem
113
Quando a tradiccedilatildeo pela accedilatildeo das estruturas de poder diz o que o ser eacute ou natildeo eacute
ela responde categoricamente agrave questatildeo Natildeo importa o quatildeo bem fundamentada uma
resposta possa ser se ela decide por um caminho ela se arrisca por ele Naturalmente que
estaacute em jogo aqui diversas concepccedilotildees de existecircncia Heidegger por exemplo reconhece
tanto Existenz existecircncia quanto Dasein presenccedila traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante
Schuback Em Dasein se espera resgatar pela palavra o caraacuteter de acontecimento do ser
mesmo aquele manifesto onticamente enquanto existecircncia se adequa mais agrave concepccedilatildeo
tradicional do termo no qual a relaccedilatildeo de ser soacute eacute possiacutevel pela existecircncia ldquoperceberemos
que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da lsquocoisa que existersquo
e de seu modo de existecircnciardquo (JARDIM 1995 paacuteg 15) Dessa forma pensamos que
existir natildeo deixa de ser uma resposta dada pelo ser portanto existir como estar em
identidade com o ser que por isso pode ser pensado Em outras palavras o ser que natildeo
pode ser pensado natildeo eacute no sentido de natildeo existir
εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
Os uacutenicos caminhos da investigaccedilatildeo em que importa pensar Um (aquilo) que
eacute e que (lhe) eacute impossiacutevel natildeo ser eacute a via da Persuasatildeo (por ser companheira
da Verdade) o outro (aquilo) que natildeo eacute e que forccediloso se torna que natildeo exista
esse te declaro eu que eacute uma vereda totalmente indiscerniacutevel pois natildeo poderaacutes
conhecer o que natildeo eacute ndash tal natildeo eacute possiacutevel ndash nem exprimi-lo por palavras
(PARMEcircNIDES apud KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 255)
O que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacute Uma definiccedilatildeo aparentemente simples e que
possibilita a pergunta pela identidade que responde ao certo ou errado Ou isso ou aquilo
traz agrave tona a questatildeo por meio da acomodaccedilatildeo loacutegica Por que natildeo isso e aquilo Quem
disse que tinha de ser cocircmodo que tinha de ser coerente Agraves vezes ao controle foge ateacute a
fuga e precisamos lidar com o sim e o natildeo com o limite que tanto abre possibilidades
quanto encerra-as
Numa hipoacutetese absurda suponha-se que pudeacutessemos expor todas as
possibilidades numa fotografia A pergunta pela identificaccedilatildeo estaria interessada em saber
ldquoqual eacute qualrdquo ldquoquem eacute quemrdquo ou ldquocomo eacute quemrdquo qual caminho tomar quem devo
114
escolher como proceder diante destas escolhas Mal comparando essa eacute a postura da
vontade de controle da resposta que assegura e da mensagem que transmite
De modo decircitico apontariacuteamos esta ou aquela chance de ser na expectativa de
fazer prevalecer nossos desejos Na urgecircncia por uma resposta que atenda nossas
necessidades o proacuteprio ldquoo que eacuterdquo em cada perguntar passa despercebido ndash p ex o que eacute
como o que eacute proceder o que eacute estar diante de o que eacute escolher Questionamentos que agrave
primeira vista natildeo levam a lugar algum e que natildeo precisam ser feitas a todo momento
caso contraacuterio natildeo seria possiacutevel a miacutenima conversa
Se natildeo se confia no chatildeo natildeo eacute possiacutevel sequer dar um passo Alguma crenccedila
alguma confianccedila eacute forccedilosa ainda assim estatildeo presentes em toda resposta certeira
infindas questotildees sem soluccedilotildees apenas encaminhamentos Para cada ser que eacute haacute certo
limite tensional que o define tambeacutem como natildeo ser como indecifraacutevel ou a decifrar no
desdobrar e no responder
A questatildeo da identidade torna-se pois a questatildeo da representaccedilatildeo quando
ignoramos essa parte velada no desvelamento da questatildeo Se na muacutesica natildeo soubeacutessemos
como o arranjo foi composto ainda assim ele deixaria de soar No momento em que
perguntar pela identidade pretende prescindir agrave pergunta pelo ser jmmperguntar pelo
ldquoquemrdquo ldquocomordquo ldquopor quecircrdquo apresenta-se como a medida do real e tudo o que diferir
seraacute de menor importacircncia
Representamos quando a medida de algo se daacute pelo que ele faz produz sua
finalidade a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta em detrimento do que
eacute Basicamente significa dizer que toda existecircncia funcional acontece na representaccedilatildeo
Entatildeo quando se eacute de fato quando o ser eacute presente Tornar-se presenccedila depende da coisa
que existe isto eacute ldquopermite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de
tornar-se presenccedila sem ter que explicar lsquoo quersquo existia antes que lsquoelersquo se tornasse
presenccedilardquo (BIESTA 2013 paacuteg 67 ‒ grifo no original) Poreacutem tornar-se presenccedila natildeo eacute a
coisa que existe natildeo se esgota nela
Para aleacutem do que achamos que as coisas sejam do que acreditamos que queremos
haacute o que natildeo sabiacuteamos que queriacuteamos Aquela outra forma de ser da qual natildeo tiacutenhamos a
menor noccedilatildeo Natildeo se trata de humildade de pensamento ou de postura prudente perante agrave
vida acontece que tornar-se presenccedila tambeacutem natildeo depende da coisa que existe Desse
modo a questatildeo ontoloacutegica natildeo perde sua relevacircncia pois ela diz respeito agrave
115
multiplicidade inerente a cada vontade desejo e existecircncia Ela estaacute presente embora natildeo
se faccedila presenccedila a rigor Eis que se esbarra no tatildeo afamado ser Em outras palavras eacute
pensar o que eacute esses muitos que acontecem τὸ ὂν λέγεται πολλαχῶς eacute a possibilidade de
como produzir do oacutebvio do funcional do uacutetil ou simplesmente o fundamento limitador
e constituidor
34 A resposta do limite
Natildeo tem muito jeito Para sair da mesmice das soluccedilotildees simploacuterias e da resposta
pronta eacute mister esforccedilo A tradiccedilatildeo jaacute estaacute dada As instituiccedilotildees jaacute estatildeo postas A mosca
jaacute estaacute presa no mosqueiro Quando isso tudo natildeo for o bastante esse eacute o momento do
pensamento Para isso que enveredamos por estradas tortuosas e por vezes escolhemos
o caminho desdenhado que assombra entre os arbustos
A saber a resposta e o responder nos mostram muito dessa circunstacircncia na qual
nos instamos Podem indicar tanto uma afinidade com a perpetuaccedilatildeo quanto o empenho
de transformaccedilatildeo tanto se referem ao lugar de fala quanto a quem ou a que se fala Enfim
cada resposta corresponde a uma perspectiva e se relaciona a uma postura de estar no
mundo
Responder ao mundo eacute como estamos no mundo Daiacute se deriva que o mundo
enquanto local de habitaccedilatildeo dos seres se configura pelas nossas respostas ao longo do
tempo Natildeo apenas pois nem tudo o que acontece tem nossa assinatura mas eacute inegaacutevel o
impacto que uma resposta bem dada pode causar em um ambiente propiacutecio Nesse
sentido responder ao mundo eacute responder o mundo ldquoO mundo eacute tudo o que ocorrerdquo
(WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 30 ndash traduccedilatildeo livre) conforme o original ldquoDie Welt ist
alles was der Fall istrdquo Por estarmos no mundo que o respondemos por sermos o mundo
que ele ocorre e nos ocorre em significaccedilotildees
Logo o cuidado com as respostas passa por um cuidado com o mundo Como
cuidar ao responder Cada qual cuida e eacute cuidado pelo empenho do cuidar Isso natildeo deve
ser confundido com zelo no entanto natildeo se afasta de todo Trata-se no mais de que para
realmente cuidar de algo habitamos aquilo a tal ponto que nos constitua Ao responder o
mundo respondemos ao mundo a partir do que somos do mundo
116
Somos na presenccedila do mundo e natildeo em sua posse Queremos que as coisas
aconteccedilam e por vezes controlamos seu fazimento Soacute por vezes mesmo pois a margem
das possibilidades eacute o local da habitaccedilatildeo dos seres nunca completamente imerso nunca
inexoravelmente excluiacutedo Em seu limiar o respondemos e o habitamos e por estar na
borda vislumbramos sua geraccedilatildeo tanto quanto seu falimento o entorno que o define e
definha Daiacute a necessidade de cuidado como quem cuida da terra vir a ser planta
Somente sendo um pouco vegetal somente sendo um pouco camponecircs
Esse cuidado eacute nosso dizer nosso responder Como os dizeres que datildeo diversos
relatos sobre a mesma coisa cada um corresponde como pode Vai o meacutedico e daacute uma
resposta medicinal a um problema de sauacutede vai o advogado e revela a lei que justificou
determinada accedilatildeo vai o professor e se compromete com a educaccedilatildeo de nossos filhos em
nossa ausecircncia Vai tudo isso sem necessariamente retornar agrave proacutepria urgecircncia de
respostas A quem cabe cuidar do responder ldquoO pensador diz o ser O poeta nomeia o
sagradordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) ou seja ldquoDer Denker sagt das Sein Der
Dichter nennt das Heiligerdquo (HEIDEGGER 1955 paacuteg 51)
Natildeo natildeo cabe soacute ao pensador cuidar do responder O mundo eacute responsabilidade
de todos pois todos satildeo fundamentados pelo mundo que somos Ele deixa sua marca na
carne assim como demarcamos o solo com as criaccedilotildees e existecircncia Existe-se e eacute-se de
muitas maneiras Medica-se advoga-se leciona-se Se o pensador estaacute incumbido de
alguma accedilatildeo talvez esteja de agir enquanto ποιεῖν e dizer enquanto λέγειν atentamente
conforme fragmento 73 de Heraacuteclito Isto eacute o pensador eacute aquele imerso no cuidado de
ser e estar no mundo de ser porque estaacute no mundo de ser do mundo que ele eacute
Diz-se o ser responde-o Essa resposta eacute e estaacute no mundo Natildeo encerra a
totalidade mas cerca a possibilidade O limite do responder do pensador diz das cercanias
do ser que possibilita e daacute sentido a todo o resto Por isso ele versa sobre inutilidades
Natildeo porque sejam despreziacuteveis suas colocaccedilotildees mas por natildeo terem a preocupaccedilatildeo
imediata das necessidades e daiacute serem apreciadas com dificuldade Natildeo eacute correta mas eacute
verdadeira natildeo eacute precisa mas duacutebia natildeo eacute contraditoacuteria mas paradoxal Sonolecircncia e
vigiacutelia morte e vida ser e natildeo ser estatildeo no dito do pensador e falam do mundo que nos
encontramos corresponde agraves respostas individuais e tenta conectaacute-las agrave coletividade e
permanecircncia da questatildeo O ser se diz diversamente e cabe ao pensador mostrar como
quem indica o que estaacute acontecendo e ningueacutem tem mais tempo para dar por isso
117
Eacute interessante notar como essa questatildeo temporal eacute vital para compreender o
pensador e todos que se comprometam unicamente com o imediatismo Alguns autores
inclusive resgatam o sentido etimoloacutegico da palavra escola para pensar o tempo algo
como ldquolazer descanso tranquilidaderdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σχολή ndash traduccedilatildeo
livre)100 Essa noccedilatildeo implica em conceber que se tudo for para alguma coisa estaremos
sujeitos agraves respostas dadas agraves pressas Uma linha reta e contiacutenua de causa e consequecircncias
uacuteteis quase que num estado constante e iminente subjugaccedilatildeo do outro na guerra com o
tempo Nesse domiacutenio decide-se limitando para poupar futuros questionamentos assim
basta aplicar e seguir adiante sempre adiante em evoluccedilatildeo sem fim
De fato eu queria aprofundar a criacutetica (no sentido de Kant) da razatildeo erudita
ateacute ao ponto em que os questionamentos deixam em geral intocado e tentar
explicitar os pressupostos inscritos na situaccedilatildeo de skholegrave tempo livre e
liberado das urgecircncias do mundo que torna possiacutevel uma relaccedilatildeo livre e
liberada com tais urgecircncias e com o proacuteprio mundo (BOURDIEU 2001 paacuteg
9)
Embora a tradiccedilatildeo escolar tenha se esforccedilado por desvincular o tempo dessa
perspectiva ldquoescola ndash como tempo livre na qual o mundo eacute compartilhado e crianccedilas ou
jovens tecircm a experiecircncia de serem capazes de comeccedilar ndash precisa ser criadardquo
(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 113 ndash traduccedilatildeo livre)101 essa atitude foi
frustrada pela sua mesma origem Isso porque o proacuteprio ato de pensar necessita de uma
medida de quietude alguma viela na rodovia da exatidatildeo para a reflexatildeo criacutetica enfim
para reafirmar o compromisso com o caminho trilhado
Conveacutem ressaltar que natildeo se refere a encastelar-se na torre de marfim da erudiccedilatildeo
dos eleitos Eacute patente que haveraacute teacutecnica conhecimentos teoacutericos e praacuteticos que
dependeratildeo do empenho de seus executores mas principalmente eacute uma questatildeo de
postura Dispor-se perante o ser para ouvi-lo e assim dizecirc-lo em resposta nomeaacute-lo em
concordacircncia soacute eacute possiacutevel na confianccedila em abrir matildeo da seguranccedila da mensagem do
tempo que urge por uma resposta objetiva e pragmaacutetica ou seja ldquose a sociedade eacute para
100 Leisure rest ease Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dsxolh
2Fgt Acesso em 30 ago 2017 101 School ndash as free time in which the world is shared and children or young people have the experience of
being able to begin ndash must be created
118
ser renovada precisa se libertar e aceitar o risco de confiar a responsabilidade pela sua
renovaccedilatildeo a figuras ndash professores ndash isentas da obrigaccedilatildeo de produzir resultadosrdquo
(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 129)102
Natildeo somente os professores mas eacute dever de todos empenharem-se vez por outra
no penhor de pensar o haacutebito Seraacute que eu devo comer isso sempre fazer isso sempre ser
assim sempre Certamente que eacute quase impossiacutevel ensinar algueacutem a pensar sem
doutrinar Fazer com que se pense autonomamente Decerto eacute um ato de ousadia Agora
natildeo daacute para saber o que eacute possiacutevel sem arriscar abraccedilando o ilimitado o limitado e o
limitaacutevel em seu limiar agrave beira de ser e natildeo ser
Ao pensador cabe dizer o ser Seu compromisso eacute com a questatildeo isto eacute pensar o
haacutebito do pensamento Sua decisatildeo eacute pelo risco Diferente de um soldado cuja proacutepria
vida estaacute em jogo diferente de um meacutedico cuja vida do paciente estaacute em suas matildeos o
pensador segue sempre pela encruzilhada Seus caminhos pactuam com o sagrado e o
profano com o inuacutetil e por incriacutevel que parece com a extrema necessidade de natildeo
permitir a desgraccedila do pensamento Qualquer coisa por coisa qualquer lugares comuns
opiniotildees fechadas respostas banais natildeo
O pensador fundamentalmente pensa Em seu dizer o ser se manifesta e a
existecircncia jaacute conhecida e gasta renova seu sentido A tradiccedilatildeo eacute ainda a mesma mas
tambeacutem natildeo eacute cria-se ousa-se criar crecirc que cria e eacute essa crenccedila que o motiva Esforccedilar-
se por um pensamento digno de ser pensado eacute o miacutenimo e o maacuteximo que qualquer
pensador pode crer
35 Dois lados da mesma moeda
351 A resposta que natildeo soluciona
102 If society is to be renewed it must free itself and hazard to entrust responsibility for this renewal to
figures ndash teachers ndash exempted from the obligation to produce results
119
Uma resposta que natildeo se fie apenas nas soluccedilotildees soacute por serem as tradicionais mas
que decirc tempo ao tempo de ldquorepor recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009a Resposta)
a questatildeo da tradiccedilatildeo O dizer do pensador natildeo repete o ser natildeo leva o ser agravequeles que
natildeo tecircm acesso a ele Natildeo soacute eacute leviano achar isso como natildeo condiz com o caraacuteter
inegociaacutevel do que eacute O ser natildeo barganha nem o dito troca favores por benesses natildeo
compra natildeo vende fiduacutecias
Dizer como quem daacute uma resposta colocando novamente o ser isto eacute responde e
diz o que jaacute estaacute posto ratificando-o presentificando-o manifestando-o em sua
singularidade o que se eacute em diaacutelogo com sua multiplicidade o que se pode ser A
resposta natildeo vem atender agraves preces pela resoluccedilatildeo novamente aqui se coloca o que a
princiacutepio natildeo se cala a questatildeo Numa dialeacutetica ocircntica o pensador diz o ser agrave medida que
ele se cala para ouvir a fala do ser que natildeo se restringe aos discursos agraves palavras de
ordem aos comandos mas desde isso tudo laacute tambeacutem se pronuncia o canto o hino a
ladainha o carpido ou seja o rito
Dizer como quem responde Eacute interessante notar que a palavra resposta natildeo eacute
substantivo derivado de responder A histoacuteria da liacutengua uniu duas palavras distintas num
uso muito semelhante Essa origem entretanto daacute uma pequena amostra da plurivalecircncia
da linguagem Resposta nos remete ao latim reposita ou reposta particiacutepio passado
feminino de repono (GLARE 1968 paacutegs 1620-1621) prefixaccedilatildeo de pono pela partiacutecula
re- que indica retrocesso e oposiccedilatildeo mas tambeacutem repeticcedilatildeo e reforccedilo (HOUAISS
2009b)
Por sua vez pono eacute uma corruptela de po- + sino gt pozno prefixaccedilatildeo pela
partiacutecula aspectual indicando que a accedilatildeo atingiu seu fim (ERNOUT MEILLET 2001
paacuteg 520) Essa eacute uma diferenciaccedilatildeo conhecida nossa Por exemplo em inglecircs temos os
verbos to lay e to lie por deitado e estar deitado respectivamente (DICTIONARY
Lay)103 e em alematildeo stellen e stehen pocircr e estar de peacute (LANGENSCHEIDT 2001 paacutegs
1082-1083)
Seja por meio gramatical seja lexical o significado dos verbos eacute o mesmo o que
muda eacute como a accedilatildeo verbal se processa Nas situaccedilotildees acima todas se referem a estar
cuja diferenccedila ocorre entre colocar algo em determinado estado para laacute permanecer e
103 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowselays=tgt Acesso em 02 set 2017
120
estar em certo estado e aqui permanecer Concomitantemente sino se afina com deixar
algo ou algueacutem sozinho deixar ir deixar uma coisa intocada permitir que algo aconteccedila
(GLARE 1968 paacuteg 1770) ficando a cargo de pono e seu particiacutepio situs o sentido mais
fiacutesico da palavra (ERNOUT MEILLET 2001 paacuteg 628) Em portuguecircs vamos ter as
palavras situaccedilatildeo posiccedilatildeo assento siacutetio etc todas se apresentando como o que jaacute foi
colocado ou sempre assim esteve e laacute fica ou se almeja esse fim Sino pois eacute o estado de
solidatildeo e permanecircncia em que algo eacute deixado constituindo assim uma localidade
A solitude emocional eacute uma solidatildeo espacial Estar soacute natildeo como um ato de
desespero ou anguacutestia pesarosa e negativa mas parte essencial da constituiccedilatildeo dos seres
Estar como parte integrante de ser espaccedilo determinado no tempo espacialidade soacute por
sua singularidade que define e se define perante as demais solidotildees Desse modo eacute
estabelecida a relaccedilatildeo com a palavra resposta Sinere eacute posicionar-se em solitude situs
sua posiccedilatildeo no tempo e no ser ponene enquanto pocircr em uma posiccedilatildeo ir ao encontro do
cerco de existecircncia que delimita e funda uma localidade no mundo e por fim reponere
como o reposicionamento dessa localidade movimento que a ratifica e daacute vigor agrave posiccedilatildeo
situada
A questatildeo eacute Por isso ela estaacute posta e ao nos postarmos diante dela a fim de
adentrarmos sua localidade recolocamo-la agrave medida que podemos agrave medida que
podemos habitar sua habitaccedilatildeo Resposta aleacutem de soluccedilatildeo para os problemas tambeacutem eacute
ao tomarmos aquele desvio do oacutebvio e do imediato recolocaccedilatildeo da questatildeo Para isso eacute
fundamental alguma liberdade com o tempo e certa dose de rompimento da temporalidade
vigente
Contemporaneamente tem-se um conceito que abarca tal ruptura como uma
profanaccedilatildeo Pensando nisso temporalmente temos um tempo que se desprende dos
dispositivos que dizem como a temporalidade deve ser ldquoSe consagrar (sacrare) era o
termo que designava a saiacuteda das coisas da esfera do direito humano profanar por sua
vez significava restituiacute-las ao livre uso dos homensrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg 65) Os
usos da hora dos minutos e dos segundos satildeo problematizados a saber desvinculados do
sentido usual o que ele chama de sagrado para pode adquirir uma nova experimentaccedilatildeo
tornar-se puacuteblica mais uma vez ldquoProfanar natildeo significa simplesmente abolir e cancelar
as separaccedilotildees mas fazer delas um uso novo a brincar com elasrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg
75)
121
Por outro lado essa aparente crenccedila no sagrado natildeo deixa de estar vinculada agrave
proacutepria noccedilatildeo que temos do tempo Diz-se gastar perder tempo para dar uma resposta
que fuja do esperado Desperdiccedila-o ao tentar refazer os passos como se caminhar natildeo
fosse jaacute outro caminho igualmente dotado de verdade A sacralidade estanque nos remete
ao dogma e deixa de lado o maravilhamento e assombro que o mito e o rito nos acometem
Ou seja suspende-se a noccedilatildeo das horas e insere-nos numa nova temporalidade numa
nova localidade por jogar com o que somos e natildeo somos
Assim tambeacutem o profano natildeo eacute tatildeo fluido assim pois natildeo haacute nada mais comum
em tempos de crise como a vontade de seguranccedila o dia a dia os costumes dos mais
variados haacutebitos agrave nossa casa tudo isso comum a noacutes sem a deferecircncia sacra com o calo
do uso corrente e que assim como o sagrado nos define e delimita Nesse sentido nem
tanto o tempo necessita urgentemente perder sacralidade assim como natildeo precisa perder
mundanidade Haacute de se pensar uma alternativa que congregue o paradoxo das nossas
experiecircncias
Os filoacutelogos natildeo cansam de ficar surpreendidos com o duacuteplice e contraditoacuterio
significado que o verbo profanare parece ter em latim por um lado tornar
profano por outro ndash em acepccedilatildeo atestada soacute em poucos casos ndash sacrificar
Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulaacuterio do sagrado
como tal adjetivo sacer com um contrassenso que Freud jaacute havia percebido
significaria tanto lsquoaugusto consagrado aos deusesrsquo como lsquomaldito excluiacutedo
da comunidadersquo A ambiguidade que aqui estaacute em jogo natildeo deve apenas a um
equiacutevoco mas eacute por assim dizer constitutiva da operaccedilatildeo profanatoacuteria (ou
daquela inversa da consagraccedilatildeo) Enquanto se referem a um mesmo objeto
que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano tais operaccedilotildees
devem prestar contas cada vez a algo parecido com um resiacuteduo de
profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente
em todo objeto profanado (AGAMBEN 2007 paacuteg 68)
352 Temor sagrado
Eacute paradoxal essa relaccedilatildeo entre sagrado e profano entre a retidatildeo das soluccedilotildees e o
entroncamento da coisa colocada novamente em resposta Isso porque a linguagem eacute um
paradoxo lar de absurdos de certezas dos homens e da verdade Ela responde a nossos
anseios temporais e nos tira as palavras no momento crucial Ao tentar dar uma resposta
no tempo estamos agrave mercecirc dele e de sua idiossincrasia A fim de compreender melhor
122
como se processa essa dinacircmica de responder na e agrave temporalidade conveacutem delongar-se
em sua instacircncia sagrada e profana
Acima Agamben se refere a Freud Num de seus artigos intitulado Totem e tabu
o psicanalista reflete sobre um importante conceito de tabu Ele comeccedila referindo-se agrave
origem polineacutesia do termo cujo significado versa ldquoem dois sentidos contraacuterios Para noacutes
significa por um lado lsquosagradorsquo lsquoconsagradorsquo e por outro lsquomisteriosorsquo lsquoperigosorsquo
lsquoproibidorsquo lsquoimpurorsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 16) Ideias semelhantes podem ser vistas neste
dicionaacuterio de maori refazendo o percurso histoacuterico da palavra ldquoser sagrado proibido
restrito afastado sobre a proteccedilatildeo de atua [os deuses e os ancentrais]rdquo (MOORFIELD
Tapu ndash traduccedilatildeo livre)104
As significaccedilotildees de tabu que utilizamos hoje se afastam do universo miacutetico e se
aproximam do moral No dicionaacuterio podemos encontrar seis entradas a primeira refere-
se agrave instituiccedilatildeo religiosa conferindo sacralidade a seres objetos ou lugares
concomitantemente proibindo qualquer contato com eles sob pena de castigo divino
Todas as demais entradas trazem a ideia de proibiccedilatildeo ora interdiccedilatildeo religiosa ora
cultural ou imposta por costume social ou como medida protetora Vejamos alguns
exemplos ldquoEm Samoa distribuiacutea-se todo o pescado pelo chatildeo e ele era lavado em aacutegua
doce para livraacute-lo do taburdquo ldquoBeltrano eacute uma pessoa que vive presa a tabusrdquo e ldquoOs tabus
convencionais da era vitorianardquo (HOUAISS 2009a Tabu)
Essa concepccedilatildeo ratifica as restriccedilotildees imposta agrave educaccedilatildeo pelos pais pela
sociedade e pelos educadores a fim de zelar pela estrutura vigente temendo por seus
filhos do sistema Tambeacutem reforccedila o sentido de separaccedilatildeo do tempo produtivo
controlaacutevel daquele que se perde em filosofias em tentativa e erro e na experienciaccedilatildeo
demorada do mundo Enfim perdemos a proteccedilatildeo das divindades e de nosso passado a
saber do sagrado que nos definia pela tradiccedilatildeo e deixamos o lugar vago entrada e saiacuteda
de novas ideologias que ao piscar dos olhos envelhecem em sua utilidade
[] o caacutelculo demonstra toda a eficiecircncia natildeo perde tempo com a espera do
inesperado onde natildeo haacute tempo a perder com interpretaccedilotildees onde natildeo
interferem as transferecircncias da anguacutestia [] a utilizaccedilatildeo dos modelos de
identificaccedilatildeo no universo dos fatos inventa espiacuteritos e por muito tempo o ceacuteu
foi povoado de seres metafiacutesicos como colonialismo capitalismo
imperialismo comunismo (LEAtildeO 1977 paacuteg 67)
104 Be sacred prohibited restricted set apart forbidden under atua protection Disponiacutevel em
lthttpmaoridictionaryconzword7504gt Acesso em 04 set 2017
123
Para cada situaccedilatildeo um limite apropriado tanto aqueles louvaacuteveis a serem
almejados quanto os despreziacuteveis a serem execrados e propriamente a esses uacuteltimos
chamariacuteamos de tabus Determinados assuntos natildeo devem ser mencionados Na exceccedilatildeo
das exceccedilotildees quando se precisar tocar no assunto que o toque seja delicado pois eacute toacutepico
sensiacutevel ou que seja riacutespido pois eacute passiacutevel de reprovaccedilatildeo Em ambas as circunstacircncias
preza-se pela brevidade discursiva jaacute que natildeo se deve falar de tal coisa chamariz de mau-
agouro
Com o tempo aprende-se a ignorar aquilo a que natildeo conseguimos dar a devida
atenccedilatildeo ateacute que se cria o haacutebito a tradiccedilatildeo da seguranccedila e do conforto Ao natildeo mencionaacute-
lo natildeo o tornamos presenccedila mas ele o sagrado e o profano estatildeo presentes queremos
isso ou natildeo Deixamos subentendida a pujanccedila posta pelo tema e tememos pelos
descontroles que dali possam se originar num ambiente controlado A existecircncia dos tabus
da tradiccedilatildeo surge concomitantemente agrave tradiccedilatildeo dos tabus mantenedores de um status
quo
Para responder o que eacute o tabu precisaremos pensaacute-lo Um problema com isso estaacute
pois no empecilho moral que eacute pensar sobre um tabu No geral evita-se dispor a respeito
de tal tema em falar sobre ele quanto mais com ou a partir dele Eacute difiacutecil dizer jaacute que no
dito somos convidados a secirc-lo para pensaacute-lo quando o pensamos aproximamo-nos tanto
dele que por fim incorremos em delito ou seja incorremos no proacuteprio tabu ldquolsquoA violaccedilatildeo
de um tabu transforma o proacuteprio transgressor em tabu ()rsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 17)
Esse encontro nos deixa desconfortaacuteveis moralmente estranhos ateacute que natildeo nos
reconhecemos no que nos transformamos
Dizer o ser tem seu risco e muitas vezes o tabu eacute o que natildeo queremos ser Aquilo
que natildeo queremos que seja Ainda que haja uma relativizaccedilatildeo imensa entre certo ou
errado algumas posturas estatildeo tatildeo enraizadas que tendemos a apenas passaacute-las adiante
erigindo praticamente uma cultura do bem e uma do mal daquilo que compreendemos
como mau e bom Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais
ambientes para coibir e incentivar tal e tal comportamento a ponto de se achar terriacutevel
pensar o contraacuterio
124
Os homens105 que incorrem em tabu satildeo estes que se transitam no limiar de uma
existecircncia seja social seja individual A ambivalecircncia na qual habitam torna-os notaacuteveis
negativa ou positivamente isto eacute perceptiacuteveis em meio agrave gama das mesmas decisotildees Da
notabilidade surgem as ponderaccedilotildees reprovaccedilotildees condenaccedilotildees exaltaccedilotildees a saber os
demais passam a responder a eles Acaba que por requisitarem respostas as pessoas natildeo
soacute correspondem como de algum modo satildeo respondidas por esse tabu Ou por partir de
um monstro ou por se originar de um heroacutei o tabu enquanto um misteacuterio parcialmente
acessado revela uma resposta que tanto inspira atitudes como pode servir de modelo de
comportamento No caso essa concepccedilatildeo moralizaria o tabu trabalhando por meio de
paradigmas para preservar um modus operandi um know how de como se pensar o real
[] qualquer um que faz o que eacute proibido isto eacute que viola o tabu se torna ele
proacuteprio tabu Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar natildeo somente
a uma pessoa que fez o que eacute proibido como tambeacutem a pessoas em estados
especiacuteficos aos proacuteprios estados bem como objetos impessoais Qual pode
ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condiccedilotildees
diferentes Soacute pode ser uma coisa a qualidade de excitar a ambivalecircncia dos
homens e de tentaacute-los a transgredir a proibiccedilatildeo
Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa
qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo por que se lhe deve
permitir fazer o que eacute proibido a outros Assim ele eacute verdadeiramente
contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitaccedilatildeo e por esse
motivo ele proacuteprio deve ser evitado (FREUD 2006 paacuteg 25)
Os limites nossa constituiccedilatildeo satildeo tanto sagrados quanto profanos E permeando
as duas instacircncias no limiar habita o ocultamento Natildeo sabemos nossa limitaccedilatildeo ateacute
sermos tentados por ela e arriscarmo-nos em sua borda Quando na interpretaccedilatildeo de
Freud das ideias de Wundt ele disse que ldquoEsse poder [tabu] estaacute ligado a todos os
indiviacuteduos especiais [] a todos os estados excepcionais [] e a todas as coisas
misteriosas como a doenccedila e a morte o que estaacute associado a elas atraveacutes do seu poder de
infecccedilatildeo ou contaacutegiordquo (FREUD 2006 paacuteg 18) e que ldquoAssim os rapazes satildeo tabu em
suas cerimocircnias de iniciaccedilatildeo as mulheres durante a menstruaccedilatildeo e imediatamente apoacutes
o parto assim como os receacutem-nascidos as pessoas enfermas e acima de tudo os mortosrdquo
(FREUD 2006 paacuteg 19) ele nos convida a pensar essa caracteriacutestica de convivecircncia com
o que natildeo sabemos este democircnio incontrolaacutevel e portanto temiacutevel
105 Cabe ressalvar que para os povos antigos da polineacutesia o tabu natildeo eacute uma condiccedilatildeo exclusivamente
humana mas tambeacutem eacute ligado a animais manifestaccedilotildees do clima frutas aacutervores etc
125
Simultaneamente tabu eacute o sagrado algo sempre presente Pelo menos era para
muitos povos antigos que experienciavam a tradiccedilatildeo como a presenccedila da ancestralidade
ou seja eles mesmos seus avoacutes seu passado e seu fundamento Por eles os deuses se
afirmavam como a primeira ascendecircncia genealoacutegica seu parente mais antigo isto eacute o
que funda uma famiacutelia consequentemente um povo Os maoris tecircm na palavra atua o
duplo sentido de deus e ancestral deixando transparecer um passado ativo respondente
nas pessoas e palco ainda de acontecimentos o que difere radicalmente do tempo
estanque e portador de mensagens estanques com o qual estamos acostumados a lidar
contemporaneamente
1 (substantivo) antepassado com influecircncia contiacutenua deus democircnio ser
sobrenatural deidade fantasma objeto de fruto de supersticcedilatildeo ser estranho ndash
embora muitas vezes traduzido como lsquodeusrsquo e agora tambeacutem usado para o Deus
cristatildeo isso eacute um equiacutevoco do significado real Muitos maori traccedilam sua
ancestralidade a partir de atua em sua whakapapa [genealogia (MOORFIELD
Whakapapa)106 literalmente lsquoo fundamento que acontece (MOORFIELD
Whaka107 Papa108)] e satildeo considerados ancestrais com influecircncia em
determinados domiacutenios Estes atua tambeacutem eram uma forma de racionalizar e
perceber o mundo Normalmente invisiacutevel atua pode ter representaccedilotildees
visiacuteveis (MOORFIELD Atua ndash traduccedilatildeo livre)109
353 O que responde o sagrado
Cada resposta cada ensinamento cada aprendizagem estaacute vinculada a uma
tradiccedilatildeo mas cada pessoa objeto animal ou seja ente eacute em si jaacute uma tradiccedilatildeo Somos
106 Disponiacutevel em
lthttpmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakapapaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017 107 Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakaampsearc
h=gt Acesso em 06 set 2017 108 Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=papaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017 109 1 (noun) ancestor with continuing influence god demon supernatural being deity ghost object of
superstitious regard strange being - although often translated as ldquogodrdquo and now also used for the
Christian God this is a misconception of the real meaning Many Māori trace their ancestry from atua in
their whakapapa and they are regarded as ancestors with influence over particular domains These atua
also were a way of rationalising and perceiving the world Normally invisible atua may have visible
representations Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=atuaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017
126
o que pode haver de mais tradicional de noacutes mesmos isso porque nos desdobramos numa
histoacuteria presente que se atualiza no mundo a partir das possiblidades de ser sua
ancestralidade sacra Nesse sentido podemos aqui traccedilar um paralelo com a educaccedilatildeo
como apropriar-se do que eacute proacuteprio o que jaacute somos o que fomos mas ainda vige e o que
seremos pela ousadia de dar um passo adiante criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Dessa forma eacute
possiacutevel compreender de que trata o sagrado sem por isso abrir matildeo de seu caraacuteter de
misteacuterio perene
Contudo natildeo eacute assim que o sagrado se manifesta contemporaneamente mas sob
a eacutegide da religiatildeo e da descrenccedila enquanto portador de inverdades De um modo geral
principalmente no Ocidente a atualidade natildeo crecirc no sagrado como por exemplo na
ciecircncia na miacutedia e na ciecircncia O proacuteprio termo tabu que ldquodenota tudordquo (FREUD 2006
paacuteg 16) permite um outro Qual o outro de tudo mdash Nada Para Freud (2006 paacuteg 16)
o inverso de tabu eacute noa que diz do que eacute comum ordinaacuterio e geralmente acessiacutevel Essa
concepccedilatildeo daacute a entender que somos ordinaacuterios e extraordinaacuterios ao mesmo tempo
1 (partiacutecula) apenas simplesmente ateacute ao acaso ociosamente
infrutiferamente em vatildeo assim que - uma partiacutecula que segue imediatamente
apoacutes a palavra a que se relaciona Indica uma ausecircncia de limitaccedilotildees ou
condiccedilotildees
2 (estativo) estar livre das influecircncias de tapu ordinaacuterio sem restriccedilotildees
vaacutecuo oco (MOORFIELD Noa ndash traduccedilatildeo livre)110
Dizer tabu de tudo estaacute para dizer sagrado de tudo dessa sacralidade profana e
misteriosa Em toda localidade haacute um deus dormindo Do simples da pedra que a crianccedila
brinca agraves grandes obras da humanidade o tempo sagrado natildeo suspende o tempo comum
ao contraacuterio chama atenccedilatildeo agrave fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada
acontece A correria da obrigaccedilatildeo tende a achar que algumas coisas natildeo estatildeo dignas dela
criando juiacutezos de valor certo ou errada da verdade das manifestaccedilotildees
Paralelamente ao dizer do pensador o artista nomeia (HEIDEGGER 1955 paacuteg
51) Dos ruiacutedos faz-se muacutesica das cores pintura ldquopensamento e linguagem satildeo para o
artista instrumentos de uma arte Viacutecio e virtude satildeo para o artista materiais para uma
110 1 (particle) only just merely quite until at random idly fruitlessly in vain as soon as - a particle
following immediately after the word it relates to Denotes an absence of limitations or conditions
2 (stative) be free from the extensions of tapu ordinary unrestricted void Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=noaampsearch=
gt Acesso em 07 set 2017
127
arterdquo (WILDE 1981 paacuteg 7) O poeta nomeia o sagrado Nomear norteia o nume O norte
do sagrado conduz agrave consagraccedilatildeo do mundo e agrave autosagraccedilatildeo no sentido de auscultar no
ordinaacuterio o extraordinaacuterio em repouso Uma resposta se forma deforma a realidade antes
sem nome sem senso de direccedilatildeo ao divino Nomear cerceia nas cercanias entoa o limite
fundador do nome o ancestral ainda presente
O tabu eacute o limite que vigora desde sempre fundamento que delimita Conviacutevio
diaacuterio de todos os homens mas mateacuteria-prima aos poetas e pensadores De modo que o
incorrer em tabu ou ocasiona em decadecircncia e posterior destruiccedilatildeo ou alarga os limites
desvelando o velado A parede da morada do ser eacute rompida ou a casa cai ou ganha-se
uma nova sala e um heroacutei ou um monstro arrombador de portas O sagrado inicia o que o
tabu limita ambos datildeo sentido ao mundo O comeccedilo eacute labiriacutentico que ldquopode se configurar
abertura significa espaccedilo-temporalidade que possa permitir e reunir tudordquo (JARDIM
2000 paacuteg 420)
O limite precisa obrar precisa fazer sentido tem que ser concreto para o limitado
Natildeo eacute arbitraacuterio ele eacute dado pelo real em suas diversas circunstacircncias A arbitrariedade do
limite confecciona barreiras invisiacuteveis gerando colocaccedilotildees muito honestas como quem
traccedilaraacute as barreiras e como mantecirc-las quais os modelos a serem seguidos e evitados para
manter a barreira invisiacutevel O limite eacute necessariamente uma barreira visiacutevel ou melhor
uma localidade que encerra as possibilidades do ser A partir da definiccedilatildeo heideggeriana
do fim no caso da Filosofia fica expliacutecito o finito enquanto a plenitude natildeo mero
esgotamento e enclausuramento do possiacutevel
O antigo significado de nossa palavra lsquofimrsquo (Ende) eacute o mesmo que o da palavra
ldquolugarrdquo (Ort) lsquode um fim a outrorsquo quer dizer lsquode um lugar a outrorsquo O fim da
Filosofia eacute o lugar eacute aquilo e em que se reuacutene o todo de sua histoacuteria em sua
extrema possibilidade Fim como acabamento quer dizer esta reuniatildeo
(HEIDEGGER 1979d paacuteg 72)
Agora como saber se ao quebrar a parede a casa permaneceraacute Soacute agrave medida de
como respondemos agraves questotildees saberemos o que sobraraacute de noacutes Natildeo eacute algo soacute para
poetas e pensadores decerto mas eles estatildeo sempre proacuteximos indicando os limites
provocando-os contando a histoacuteria de seus desbravadores
Sobre o que cabe a cada um haacute um relato de cultura antiga dos maori que dizia
que o chefe da tribo natildeo soprava o fogo com a boca para natildeo transmitir o sagrado agrave carne
128
cozida e matar quem a comesse transformando em chefe quem chefe natildeo era (FREUD
2006 paacuteg 22) Claro que isso tambeacutem poderia ocasionar num novo chefe Isto conflita
com a concepccedilatildeo de Freud de os homens se sentirem tentados Dentro desta loacutegica do
controle ele soacute pode ver como tentaccedilatildeo o que os antigos viam como presenccedila (qualquer
um que incorre em tabu eacute tabu) Tabu natildeo eacute apenas um exemplo para ser evitado e
adorado Quem eacute rei sempre foi rei Quem seraacute rei sempre foi rei Outro que tentasse ser
rei alargaria seu ser para aleacutem de seu proacuteprio ocasionando no fim para aleacutem da finitude
cegueira paralisia ou morte
Se consigo comer a carne em tabu do liacuteder se consigo encontrar o Graal ou tirar
a espada da pedra natildeo importa pois soacute consigo na medida em que jaacute sou a possibilidade
de tirar a espada da pedra Trata-se de destino natildeo de vontade Trata-se de apropriar-se
do que eacute proacuteprio natildeo de tentar ser algo que natildeo somos Trata-se de achar o que natildeo
podemos perder natildeo de possuir o que jamais podemos ter
Respondemos como quem casa ser e ente linguagem e liacutengua sagrado e profano
Concerne arriscar a medida ao diaacutelogo e agrave tensatildeo que se faz presenccedila Isso nos remete agrave
etimologia de responder como assegurar novamente seu compromisso com a questatildeo
Distinto de resposta responder vem do latim respondeo cujo significado se assemelha
muito ao sentido moderno da palavra (HOUAISS 2009a Responder)
Todavia vimos que haacute muito mais nas repostas do que crecirc nossa vatilde filosofia E jaacute
em latim podiacuteamos encontrar o verbo que acompanhado de re descambou em responder
Esse verbo nos falava de outra postura perante o mundo mas conhecida nossa ldquo1
Comprometer-se noivar 4 Prometer ou afirmar solenemente dar a palavra sobre dar
uma garantia derdquo (GLARE 1968 paacuteg 1809 ndash traduccedilatildeo livre)111 Do particiacutepio passado
de spondeo sponsus temos em portuguecircs esposo esposa e esponsais A relaccedilatildeo entre
casamento e responder daacute-se no compromisso firmado no sagrado reacutedeas cavalo e
cavaleiro da carruagem dos seres Em concoacuterdia entre o limite e o ilimitado esposamos
na localidade onde habita a questatildeo e ratificamos nosso compromisso com ela
Ainda que nem todo homem seja poeta ou pensador todos estatildeo sujeitos ao
questionamento Todos em alguma medida reafirmam seu compromisso com o
111 1 To give a pledge or under taking 4 To promise or asserts solemnly give onersquos word about give a
assurance of
129
questionar O sagrado natildeo eacute posse de ningueacutem sua natureza eacute tatildeo extraordinaacuteria quanto
gregaacuteria e fundadora dos limites
[] Eacute deus desconhecido
Ele aparece como ceacuteu Acredito mais
que sejam assim Eacute a medida dos homens
Cheio de meacuteritos mas poeticamente
o homem habita esta terra [] (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacutegs
256-257 ndash traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo)112
Num paralelo mitoloacutegico Iacutecaro natildeo se satisfaz em sair do labirinto mas leva-o
aonde quer que vaacute (JARDIM 2000 paacuteg 424) Natildeo eacute uma decisatildeo sua natildeo eacute uma
adequaccedilatildeo a um modelo Sua proacutepria praacutetica define quem ele eacute uma decisatildeo do real Sua
desmedida incorrer em tabu eacute a proacutepria condiccedilatildeo heroica e monstruosa seu fim sua
plenitude
Em sua correspondente grega spondeo aparece como σπένδω com um sentido
parecido com um sentido digamos mais concreto Em vez de circunscrever o
compromisso ele diz do ato que o precede ldquofazer uma oferenda liacutequida (porque antes de
beber o vinho uma porccedilatildeo foi derramada na mesa no coraccedilatildeo ou no altar) [] fazer
libaccedilotildeesrdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σπένδω ndash traduccedilatildeo livre)113 aquele gole para o
santo que a cultura popular tanto conhece
Seja pela muacutesica na meacutetrica espondeu seja pelo vinho cor de sangue vertido agrave
terra respondemos em mutiratildeo o que o mito evocava em palavra e rito A cada resposta
em compromisso ratificado com a localidade mais solitaacuteria responde-se com a bagagem
da tradiccedilatildeo e com a parte que nos cabe nosso proacuteprio Assim o tabu concerne a palavra
que nos forma e enforma apropriaccedilatildeo nomeada pelo poeta dito pelo pensador o sagrado
que eacute sendo Neste sentido poeacutetico e mitologicamente o homem habita pois em casa que
eacute tabu as coisas tecircm memoacuteria a fala que natildeo cessa em lembranccedila mas permanece a dizer
no tempo
112 [] Ist unbekannt Gott Ist er offenbarwie der Himmel Dieses Glaubrsquoich eher Der Mensch Maas
istrsquos Voll Verdienst doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde [] 113 make a drink-offering (because before drinking wine a portion was poured on the table hearth or altar)
[hellip] make libations Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dspe2
Fndwgt Acesso em 08 set 2017
130
O mito que eacute tabu nomeia o sagrado agrave medida que se escuta a fala do tempo O
que eacute o sagrado senatildeo o proacuteprio do tempo a presenccedila do presente uma teoria fundamental
do real mdash O fundamento da casa o que origina e permite a permanecircncia do originaacuterio
na plenitude da habitaccedilatildeo Trazer para extraordinaacuterio a fala do comum esquecido e ao
banal o maravilhoso que natildeo se escuta eis talvez um belo sentido para um ensino poeacutetico
131
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Natildeo basta definir poeacutetica para falar de uma educaccedilatildeo poeacutetica Quando se firmou
o compromisso de discutir sobre o ensino e a filosofia optou-se por uma discussatildeo que
se desse de modo poeacutetico tornando uma fala sobre algo um dito em conjunto com alguma
coisa Promoveu-se pois um diaacutelogo com as disciplinas em questatildeo poeticamente Nesse
vieacutes a mera definiccedilatildeo fugiria da perspectiva esteacutetico-filosoacutefica e estaria aqueacutem do ofiacutecio
de reunir no ato de ensinar o dizer do filoacutesofo e o nomear do poeta
ldquoPoeticamente o homem habitardquo (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacuteg
257) eacute quase um lema versa o leme deste barco Natildeo se trata de reconceituar o ensino eacute
preciso voltar a ensinar pela primeira vez natildeo se trata de fazer histoacuteria da filosofia apenas
mas de tambeacutem filosofar sua histoacuteria transgredindo a mensagem da tradiccedilatildeo ao mesmo
tempo em que se presta a ela a devida homenagem Habitar de modo poeacutetico eacute natildeo deixar
as linhas do pensamento serem declamadas prosaicamente
Fiz de mim o que natildeo soube
E o que podia fazer de mim natildeo o fiz
O dominoacute que vesti era errado
Conheceram-me logo por quem natildeo era e natildeo desmenti e perdi-me
Quando quis tirar a maacutescara
Estava pegada agrave cara
Quando a tirei e me vi ao espelho
Jaacute tinha envelhecido
Estava becircbado jaacute natildeo sabia vestir o dominoacute que natildeo tinha tirado
Deitei fora a maacutescara e dormi no vestiaacuterio
Como um catildeo tolerado pela gerecircncia
Por ser inofensivo
E vou escrever esta histoacuteria para provar que sou sublime (PESSOA 1997 paacuteg
124)
Naturalmente que estamos cheios de viacutecios Cheios de costumes acostumados e
encostados no haacutebito de se ensinar algo e de como encarar a filosofia Essa forma de
ensino na qual nos encontramos tem se mostrado desgastada e passiacutevel de incisivas
criacuteticas no que concerne a formar cidadatildeos pessoas mais humanas e em uacuteltima instacircncia
mais felizes Isso tudo eacute um ponto de interrogaccedilatildeo quanto agrave eficiecircncia Entretanto no que
diz respeito ao consumismo e agrave adesatildeo a uma loacutegica de mercado desenvolvimentista e
tecnocrata a educaccedilatildeo contemporacircnea de modo geral apresenta-se muito eficaz
132
Como uma maacutescara que se confunde com rosto os homens estatildeo agrave deriva em sua
existecircncia sem mais se perguntarem sobre si mesmos encarando tal postura como
improdutiva Vale mais a pena um conhecimento uacutetil e uma vida mansa mas segura
deter o controle do que arriscar novos caminhos Ainda que se decirc a entender o contraacuterio
a aparente sandice dessa uacuteltima assertiva natildeo ignora as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas e os altos
investimentos em infraestrutura que ocorrem em alguns setores da economia em algumas
partes do mundo poreacutem chama atenccedilatildeo agrave inovaccedilatildeo do novo natildeo da mesmice Novas
tecnologias natildeo necessariamente satildeo outras tecnologias no mais das vezes eacute a mesma
loacutegica impositiva que submete o λόγος dos demais discursos agrave vontade da teacutecnica
Navegar natildeo eacute mais preciso viver sim Viver como quem segue o fluxo da mareacute
e se adequa ao sobe e desce das ondas a fim de que o barco natildeo vire Vital mas natildeo
essencial Os homens precisam da utilidade urgem por seguranccedila por mais que tenham
que abrir matildeo de certa liberdade Eacute pois mister viver em nenhum momento se propocircs
aqui algo diferente disso que se ignorassem as condiccedilotildees baacutesicas para a vida para o
ensino e para o pensamento
Acontece que natildeo soacute de patildeo vive o homem Natildeo eacute possiacutevel que a medida das coisas
seja apenas o para quecirc elas servem Pobre das baratas Elas natildeo prestam logo podem ser
eliminadas A filosofia hoje natildeo serve para nada ou pouco logo vamos dar cabo dela
ou deixar soacute a rabiola para ser lembrada quase nunca no aacutelbum de fotografias da histoacuteria
Tal foacutermula poderia ser empregada com outros animais dos quais jaacute achamos que
exploramos tudo mas tambeacutem ideologias praacuteticas povos culturas faixas etaacuterias e por
aiacute vai
Por esse motivo o que permanece no fluxo das mudanccedilas eacute a pergunta que norteia
o primeiro capiacutetulo deste trabalho Faz parte do tempo inovar e definhar e natildeo caberaacute a
noacutes decidir sobre isso No entanto o que tange o possiacutevel haacute de ser ousado A serventia
de uns eacute a inutilidade de outros e a verdade de outrora foi esquecida Algumas contudo
cortam profundo na memoacuteria e sentidos vigem A tradiccedilatildeo se funda na ranhura do tempo
que ainda sangra
Ou porque natildeo tem cura ou por entalharmos o corpo mnemocircnico com
conhecimentos a ferida aberta da tradiccedilatildeo eacute nossa identidade no tempo e espaccedilo Nosso
modo de pensar agir e sentir nossas preferecircncias e desgostos nossos temores e louvores
nossos discursos e linguagem satildeo frutos de algo que foi passado de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo
133
Normalmente natildeo temos em mente que quando vemos uma fotografia antiga um livro
empoeirado ou um conceito anacrocircnico satildeo nossos pais e avoacutes surrando verdades
Vocecirc eacute o herdeiro
Filhos satildeo os herdeiros
pois pais morrem
Filhos ficam e floram
Vocecirc eacute o herdeiro (RILKE 2012 paacuteg 66 ndash traduccedilatildeo livre)114
Somos e natildeo somos o que fomos e seremos aquele diz respeito agrave tradiccedilatildeo este ao
ensino Tanto um quanto o outro estatildeo intrinsecamente relacionados de maneira que
estudar um tem jaacute imiscuiacutedo o estudo do outro Isto significa que perguntar-se pelo ensino
eacute responder pela tradiccedilatildeo e repensar a tradiccedilatildeo propotildee olhar o ato de ensino com a visatildeo
inquiridora que sabe e natildeo sabe
Compreende-se por ensino o que se apreende por tradiccedilatildeo Um ensino mecacircnico
precisa de uma tradiccedilatildeo tecnocrata da mesma forma que reconhecer no dito o eco poeacutetico
eacute natildeo encarar a educaccedilatildeo restrita agrave transmissatildeo do conhecimento nem somente palco de
avaliaccedilotildees e encenaccedilotildees de aprendizagens Refere-se agrave dignidade dos caminhares no
caminho por mais tortos que possam ser Eacute um dar-se ao risco Natildeo vale a pena para
passar na prova natildeo vale a pena para apertar o parafuso nem operar o paciente Eacute digno
sem ser aplicaacutevel aproveitaacutevel sem o aval aproveitador da norma Eacute da tradiccedilatildeo mas
ainda natildeo eacute tradicional
Mar Portuguez
Oacute mar salgado quanto do teu sal
Satildeo lagrimas de Portugal
Por te cruzarmos quantas matildees choraram
Quantos filhos em vatildeo resaram
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso oacute mar
Valeu a pena Tudo vale a pena
Se a alma natildeo eacute pequena
Quem quer passar aleacutem do Bojador
Tem que passar aleacutem da dor
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu
Mas nelle eacute que espelhou o ceacuteu (PESSOA 1934 p 64)
114 Du bist der Erbe Soumlhne sind die Erben denn Vaumlter sterben Soumlhne stehn und bluumlhn Du bist der
Erbe
134
O desbravamento pode ser feito de diversas maneiras Haacute quem pegasse da direccedilatildeo
e saiacutesse oceano afora Em sala de aula uma das formas de descobrir eacute sem duacutevidas por
meio do desdobramento de um pensamento questionador Perguntar agraves e ser perguntado
pelas questotildees que nos interpelam
Natildeo eacute qualquer caminhar mas o filosoacutefico Natildeo soacute por estar escancarado no
tiacutetulo mas principalmente pelo proacuteprio estigma da filosofia que ela foi inquirida para dar
prosseguimento ao incocircmodo deixado pela tradiccedilatildeo e pelo ensino Sob as alcunhas de
confusa e abstrata ela permanece ainda um bastiatildeo de criaccedilatildeo e de pensamento frente agraves
demandas por soluccedilotildees objetivas e praacuteticas Relegada ao curriacuteculo escolar e agrave caacutetedra
acadecircmica ela natildeo eacute a mesma da aacutegora claacutessica decerto Em tempos digitais e impessoais
como o nosso a filosofia surge sendo uma vaacutelvula de escape no miacutenimo Seu potencial eacute
do tamanho de seu desafio dar sentido ao insensiacutevel dar agrave tradiccedilatildeo o pensamento devido
e ao ensino o cuidado esperado
Contudo a filosofia natildeo estaacute agrave parte do mundo logo tambeacutem tem caracteriacutesticas
dele inclusive aquelas que a princiacutepio se dispotildee a problematizar Por esse motivo
conveacutem se perguntar pelo ser da filosofia A matildee de todas as ciecircncias tornou-se parte do
conhecimento cientiacutefico como isso foi possiacutevel Tida por obra de eleitos enclausurados
numa torre de marfim sem relevacircncia social e a sobreviver de um prestiacutegio decadente de
eras devassadas o ldquoamor ao saberrdquo padece por seacuteculos de erudiccedilatildeo metafiacutesica de
categorizaccedilotildees e hierarquizaccedilotildees e em uacuteltima instacircncia por ter sido uma das responsaacuteveis
por suplantar a verdade mito-poeacutetica em prol da razatildeo
Agrave exceccedilatildeo do excesso a filosofia come o que plantou Sua origem em Platatildeo tem
traccedilos transgressores e perversos ao mesmo tempo podendo ter influenciado seus
praticantes a exercer uma segregaccedilatildeo ideoloacutegica Somente quem saiacutesse da caverna das
opiniotildees dos pensamentos ditos rasos e sensiacuteveis da δόξα e adentrasse o νοῦς a
contraparte ideal da existecircncia seria digno dela Com isso poetas pensamentos do
subsolo revelaccedilotildees miacutesticas e tudo o que natildeo se adequasse ao raciociacutenio loacutegico-formal
foram postos em escanteio e perderam seu teor de verdade para assumir contornos
ficcionais pitorescos quando natildeo falaciosos
A proposiccedilatildeo de questionar a filosofia desenrola-se pois num filosofar outro
Concebe um pensamento que reconhece no ser algo de fluido de paradoxal e de dialoacutegico
A fim de tentar abarcar o mundo com as matildeos mesmo suas camadas aparentemente
135
contraditoacuterias esse risco do pensar responde aos mais diversos incocircmodos Do sono agrave
vigiacutelia quanto da morte agrave vida sem os opor sem os solucionar dispotildee-se a aceitar o
equiacutevoco inerente assim como quem anda sobre ovos
Olhar para frente e para traacutes Ao enveredar pela tradiccedilatildeo ouvem-se muitas vozes
a dizer e nomear isto que se apresenta no tempo Ateacute o pensamento pode ser pensado A
questatildeo entretanto natildeo eacute algo de nebuloso e eteacutereo entre cem e sem sentidos Ela situa o
ser no espaccedilo com suas respostas e perpetua a sagraccedilatildeo da linguagem ao ser respondida
Hipoteticamente se a filosofia estaacute restrita aos filoacutesofos o pensamento eacute de todos e de
ningueacutem O caminhar singular de cada um ao lidar com as questotildees resgata o cuidado
primordial das civilizaccedilotildees receacutem-nascidas cujo mundo se mostrava pela primeira vez e
precisava ter um nome
A palavra
Prodiacutegio distante e louco
Minha margem agrave sua eacute pouco
Aguardei ateacute a parda Parca
E encontrei o nome em sua marca ndash
Eu pude atecirc-lo com teso
Para brilhar e luzir preso
Ansiei por bom vindouro
Com fraacutegil e raro tesouro
Toda via Ela me dizia
mdash Nada haacute aqui e a terra eacute vazia
Eis que escorre entre meus dedos
E agrave paacutetria dou enganos ledos
Triste entatildeo soube abdicar
mdash Secirc sem palavra vaacutecuo e ar (GEORGE apud HEIDEGGER 2003 p 124 ndash
traduccedilatildeo livre)115
Uma postura proacutepria perante a tradiccedilatildeo da filosofia engendra um trato proacuteprio com
o modo de se pensar A morte natildeo cabe nos dicionaacuterios temos que fazer a experiecircncia de
115 Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die
graue norn Den namen fand in ihrem born ndash Drauf konnt ichs greifen dicht und stark Nun bluumlht und
glaumlnzt es durch die mark Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie
suchte lang und gab mir kund bdquoSo schlaumlft hier nichts auf tiefem grundldquo Worauf es meiner hand entrann
Und nie mein land den schatz gewann So lernt ich traurig den verzicht Kein ding sei wo das wort
gebricht
136
morrermos um pouco para saber o ser que se mostra no falecimento Tampouco se daacute a
linguagem por encerrada nos livros didaacuteticos da histoacuteria Natildeo satildeo os verbetes que ganham
novas entradas mas o mundo que brota significados antes ignorados O ofiacutecio da postura
poeacutetica e pensadora no mundo eacute encontrar as palavras que faccedilam jus ao descobrimento
do mesmo local onde habitamos e somos habitados constante e incessantemente Essa eacute
a proposta esse eacute o desafio isto eacute um convite a um ensino poeacutetico
137
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150
APEcircNDICE
TREcircS EXPERIEcircNCIAS POEacuteTICO-FILOSOacuteFICAS
Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira
Produto didaacutetico apresentado ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal
de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca
CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre
Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto
Rio de Janeiro
Outubro de 2017
151
RESUMO
Trecircs experiecircncias poeacutetico-filosoacuteficas
Apresentaccedilatildeo planejamento desenvolvimento e criacutetica de trecircs experiecircncias de
filosofia com uma perspectiva poeacutetica Elas foram pensadas para serem feitas a princiacutepio
com crianccedilas num ambiente de sala de aula Num primeiro movimento eacute exposta parte
de um filme paroacutedia de Frankenstein e discute-se sobre as limitaccedilotildees de nossa vontade
Num segundo movimento discute-se o que eacute ser perguntando a crianccedilas sobre o exerciacutecio
de ser crianccedila Num terceiro movimento realizado tanto com crianccedilas quanto com jovens
em pares uma pessoa eacute vendada e requisitada a guiar a outra pessoa discutindo-se com
isso nosso apego ao controle a relaccedilatildeo de confianccedila estabelecida aceitaccedilatildeo do equiacutevoco
Por fim eacute patente a existecircncia singular que cada crianccedila jovem e ateacute adulto possuem
Suas capacidades inventivas questionadoras aleacutem e aqueacutem dos preconceitos ou do
demasiado zelo com eles Nesse sentido arriscar-se e aceitar o provaacutevel tropeccedilo
apresenta-se como caracteriacutestica essencial neste caminhar
Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem
152
ABSTRACT
Three poetic-philosophical experiences
Presentation planning development and critic of three experiences of philosophy
with a poetic perspective They were designed to be done at first with children in a
classroom environment In a first movement part of a film Frankensteinrsquos parody is
exposed and the limitations of our will are discussed In a second movement it is
discussed what is to be asking children about the exercise of being a child In a third
movement carried out both with children and with young people in pairs a person is
blindfolded and asked to lead the other person discussing with this our attachment to
control the relationship of trust the acceptance of misunderstanding Finally it is clear
the unique existence that each child young and even adult have Their inventive
questioning abilities beyond prejudices or over-zeal with them In this sense risking and
accepting the probable stumbling is presented as an essential characteristic in this walk
Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language
153
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
Figura 1 ndash Calvin e Haroldo 165
Figura 2 ndash A morte 166
154
SUMAacuteRIO
Apresentaccedilatildeo 155
Quando a vida nos diz natildeo 157
Objetivo geral 157
Objetivo especiacutefico 157
Proposta para a atividade 158
Fluxograma 160
Relato da experiecircncia 161
Reflexatildeo com a experiecircncia 169
Exerciacutecios de ser crianccedila 171
Objetivo geral 171
Objetivo especiacutefico 171
Proposta para a atividade 171
Fluxograma 174
Relato da experiecircncia 174
Reflexatildeo com a experiecircncia 177
A cegueira da visatildeo 178
Objetivo geral 178
Objetivo especiacutefico 178
Proposta para a atividade 178
Fluxograma 180
Relato da experiecircncia 180
Reflexatildeo com a experiecircncia 183
Consideraccedilotildees finais 186
Referecircncias 188
155
Apresentaccedilatildeo
A volta da filosofia para as salas de aula alcanccedilou as seacuteries iniciais do
Fundamental Ainda um movimento isolado acontece em alguns locais do Brasil e mais
especificamente no Rio de Janeiro Em Duque de Caxias na Escola Municipal Joaquim
da Silva Peccedilanha juntamente com o Projeto de Extensatildeo Em Caxias a filosofia en-caixa
do Nuacutecleo de Estudos Filosoacuteficos da Infacircncia do PropedUerj coordenado pelo professor
Walter Kohan onde este trabalho foi apresentado o ensino de filosofia com crianccedilas tem
se mostrado como resposta116 agrave carecircncia reflexiva e questionadora jaacute em tenra idade
diante do mundo
O iniacutecio do projeto data de 2007 e desde entatildeo tem gerado um importante papel
na divulgaccedilatildeo e solidificaccedilatildeo da filosofia com crianccedilas Durante esses anos podemos
contar com o apoio da Secretaria de Educaccedilatildeo de Duque de Caxias da Faperj aleacutem da
direccedilatildeo das escolas seus professores e pesquisadores e alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-
graduaccedilatildeo Minha participaccedilatildeo eacute recente Inicia-se em 2013 quando comecei a frequentar
os grupos de discussatildeo Do segundo semestre de 2013 ateacute 2015 atuei diretamente na
escola Joaquim da Silva Peccedilanha coordenando e participando das experiecircncias
filosoacuteficas
Inicialmente o desenvolvimento destas atividades foram pensadas para estarem
sujeitas agrave brevidade de uns tempos de aula e voltadas para crianccedilas entre 8 e 11 anos
Entretanto conveacutem natildeo soacute ater-se ao desdobramento do tema mas a outros elementos
que possam convidar a pensar sobre o assunto ainda que indiretamente natildeo se
restringindo a faixas etaacuterias A questatildeo natildeo tem idade Ou seja o planejamento estaraacute
sempre aqueacutem da execuccedilatildeo e das nuances de cada contexto servindo apenas como guia
dentre uma multiplicidade de caminhos Conveacutem ressaltar que todos os responsaacuteveis
pelas crianccedilas estavam cientes das atividades propostas e que poderiam ser realizadas
filmagens fotografias e que os nomes de seus filhos poderiam ser expostos
116 O significado desta palavra aqui natildeo se restringe agrave dar uma soluccedilatildeo mas vista sua tradiccedilatildeo como ldquorepor
recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009 Resposta) promovendo a cada responder um recolocar-se
naquilo que nos instiga Nesse sentido ao inveacutes de encarar uma resposta como o que encerra a questatildeo
passa-se a lidar com ela por aquilo que apresenta novas possibilidades renovando e inovando
156
Ainda antes de dar iniacutecio propriamente eacute preciso sugerir que isto aqui natildeo se
refere ao primeiro contato com a turma nem ao uacuteltimo O pensamento natildeo comeccedila aqui
nem somos o suprassumo do saber por estarmos a fazer tais e tais atividades Mais vital
eacute a forma como a chamada experiecircncia filosoacutefica se organiza diferentemente de uma aula
tradicional propondo natildeo soacute ideias estranhas agrave uma disciplina usual como tambeacutem uma
praacutetica proacutepria e singular
A fim de que a atividade se desenvolva conveacutem que algum eacutethos comum se
estabeleccedila Tambeacutem sugerimos fortemente que a participaccedilatildeo de todos seja incentivada
mas natildeo exigida caso o aluno natildeo queira sem demanda por conhecimentos preacute-
estabelecidos com base no certo ou errado Dessa maneira dirimindo o iacutempeto por
reproduzir conceitos (para uma avaliaccedilatildeo por exemplo) ao estabelecer um espaccedilo de
conhecimento muacutetuo em que as estranhezas quanto agraves pessoas agrave forma de aula ou ao tipo
de tema sejam ao menos toleradas Isso porque em geral o aluno espera estar sujeito a
ameaccedilas de reprovaccedilatildeo consequentemente desqualificaccedilatildeo no que diz respeito a seu
meacuterito na resposta ou confia demasiadamente na autoridade do professor ou na voz da
turma como apelo demagoacutegico Embora seja improvaacutevel desfazer todas as falaacutecias
comuns do dia a dia educacional pelo menos o questionamento acerca delas precisa estar
em voga enquanto fundamento para erigir este trabalho
Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a
realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da
lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de
pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de filosofia como
um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das
experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que
natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas
157
Quando a vida nos diz natildeo
Objetivo geral
A partir de dinacircmicas filmes e trechos de livros pretende-se construir
conjuntamente com as crianccedilas uma postura questionadora diante do mundo
perguntando-se pelos porquecircs de determinados haacutebitos e trazendo agrave tona grandes temas
filosoacuteficos como a verdade a vontade e ateacute a morte atraveacutes da proacutepria realidade e
experiecircncias comuns da idade
Objetivo especiacutefico
Propotildee-se apresentar um trecho do filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton
Uma paroacutedia em animaccedilatildeo de Frankenstein com cerca de 20 minutos de duraccedilatildeo que
conta a relaccedilatildeo de um garoto com seu cachorro bruscamente interrompida por um
acidente fatal e a posterior reanimaccedilatildeo do cadaacutever Com isso apresentamos a relaccedilatildeo do
homem com a morte isto eacute a negaccedilatildeo do homem em morrer concomitante agrave sua vontade
de controlar a vida
Uma analogia mais simples e direta menos terriacutevel com dramas psicoloacutegicos de
um menino afeito a ciecircncias que perdeu seu amigo de estimaccedilatildeo e tenta recuperaacute-lo Esse
deslocamento do palco dos questionamentos do claacutessico literaacuterio para o curta metragem
de animaccedilatildeo pretende a empatia dos alunos abrindo um canal importante para o
desdobramento filosoacutefico apropriado
158
Proposta para a atividade
Com as estruturas baacutesicas para a apresentaccedilatildeo de filmes propomos dois tempos
de 45 minutos diluiacutedos em duas semanas nos quais os primeiros 10 minutos seriam para
trazer a disposiccedilatildeo da turma para a atividade Sabe-se laacute o que mais ocorreu se um recreio
agitado ou se uma aula monoacutetona Esse eacute o momento de perceber se a atividade deve
prosseguir ou se seraacute preciso deixaacute-la para outro momento a fim de trabalhar um
questionamento pujante Uma sugestatildeo eacute utilizar os proacuteprios afazeres burocraacuteticos ou
estruturais como proecircmio Por exemplo a arrumaccedilatildeo das carteiras em roda ou uma
simples chamada pode servir de chamariz para esse instante
Dando sequecircncia agrave introduccedilatildeo agora cabe apresentar o tema o que natildeo precisa
ser feito secamente Recapitulando questiona-se a ideia do homem pelo homem como
um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser diagnosticada e curada o humano torna-
se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma infinidade de predicativos que validam
o sujeito homem Pergunta-se entatildeo se nossa ideia de homem passa a ser o homem
Como introduccedilatildeo solicitaria que cada um pensasse brevemente numa palavra
conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado na pergunta ldquoO que eacute
lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo Nada mais do que 5 minutos Em seguida um de cada vez seria
requisitado a pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito poreacutem
sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido Caso a turma seja mais tiacutemida uma possibilidade
eacute comeccedilar com vocecirc mesmo aiacute sim desenvolvendo brevemente o motivo
Independentemente de como a turma corresponder a participaccedilatildeo do professor faz parte
de uma posiccedilatildeo dialeacutetica a diferenccedila estaacute na importacircncia que eacute devotada a ele Espera-se
que 10 minutos sejam o suficiente para tal Independentemente do comportamento da
turma como a fala eacute livre e incentivada a tendecircncia agraves vozes simultacircneas eacute grande Por
isso introduzimos o que chamamos de a ldquobola da vezrdquo uma bolinha que ditava quem
detinha a palavra para falar pedia-se a bola bastando levantar a matildeo
O segundo momento refere-se agrave suspensatildeo dos porquecircs Solicite que os alunos
pensem se manifestem mas natildeo digam seus motivos Isto daacute ensejo a um proacuteximo estaacutegio
da experiecircncia filosoacutefica aleacutem de interromper o fluxo esperado haja vista que teremos
os mais diversos exemplos mantendo a atenccedilatildeo por meio da curiosidade e ansiedade
159
Ao teacutermino do momento inicial estaacute na hora da exibiccedilatildeo do curta Conveacutem
chamar atenccedilatildeo de que o mesmo eacute um desdobrar do assunto anterior Tambeacutem eacute
interessante notar as expressotildees conversas e impressotildees da turma durante a exibiccedilatildeo
embora natildeo ache aconselhaacutevel deter-se por demais nisso com o risco de cair em
psicologias comportamentais caso natildeo seja sua aacuterea de domiacutenio
Passados 45 minutos do iniacutecio da atividade eacute feita uma rodada geneacuterica sobre as
opiniotildees Se gostaram e por que se o filme correspondeu agrave palavra-som-gesto de cada
um se houve empatia com a personagem etc Dependendo da turma os minutos finais
podem transcorrer sem muitos problemas Poreacutem caso haja poucas falas cabe ao
professor dar sua breve contribuiccedilatildeo explorando as privaccedilotildees de se querer algo e de poder
esse algo enquanto abre caminho para o fim da aula
Encerrando o primeiro dia seria solicitado que pensassem na pergunta ldquoO que eacute
lsquosimrsquo para vocecircrdquo cujas respostas agora escritas deveriam ser trazidas no encontro
seguinte A pergunta pela afirmaccedilatildeo sofre duas influecircncias imediatas o anterior ldquonatildeordquo e
os dizeres do filme sobre o assunto Isso deve movimentar as opiniotildees Ainda que os
alunos natildeo cumpram a tarefa o esforccedilo para se dispor a inquirir sobre a temaacutetica foi feito
pois tanto as perguntas como o Frankenwenie insistem nas referecircncias da vontade do
homem com a realidade reforccedilando o argumento
Na semana seguinte os primeiros 10 minutos se assemelhariam aos do uacuteltimo
encontro Os 15 minutos seguintes retomariam as respostas escritas ou natildeo a respeito do
ldquosimrdquo se se correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do
ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme responderia ao ldquonatildeordquo
e ao ldquosimrdquo Nesse momento os exemplos da induccedilatildeo satildeo revistos confirmados
descartados adaptam-se aos novos posicionamentos dando unidade agrave atividade Um
tempo tambeacutem utilizado para ambientar os alunos na discussatildeo Por fim cabe uma
interpretaccedilatildeo sua sobre como a personagem lida com a morte e o porquecirc o que parte e o
que permanece assunto desenvolvido no tema Quanto a isso conveacutem uma breve
explanaccedilatildeo
A explanaccedilatildeo deve alcanccedilar de 10 a 15 minutos Eacute o momento de assumir a
responsabilidade de ter levantado o toacutepico e de fato participar do diaacutelogo Sem respostas
prontas mas com sua opiniatildeo sincera embasada e digna de ser exposta O caminho jaacute foi
traccedilado natildeo se chegaraacute ao fim mas eacute preciso caminhar Pela explanaccedilatildeo se reforccedila a ideia
160
de que natildeo haacute soluccedilotildees faacuteceis mas que nos eacute requisitado pensar e se posicionar por mais
breve por mais incerto que seja buscando o provaacutevel que supomos ser
Nos minutos finais propotildee-se que todos escrevam num papel uma frase afirmativa
ou interrogativa um verso ou um desenho algo para dizer a esse menino retratado no
filme Quem assim desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez O epiacutelogo almeja
essa proximidade quase iacutentima entre cada aluno e a personagem jaacute que ambos teriam
vivenciado situaccedilotildees semelhantes Ratifica o concreto dos pensamentos e sentimentos
expostos no filme em comunhatildeo com o que foi pensado e sentido pelos expectadores
Como a personagem natildeo responde ao recadinho revela-se mais uma vez o caraacuteter sem
resposta da argumentaccedilatildeo sem desmotivar a accedilatildeo perante ao que natildeo dispomos de
controle Aproveite para aconselhar fortemente a quem natildeo assistiu ao filme por completo
que assim o faccedila
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar o tema e solicitar que cada um pensasse brevemente numa
palavra conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado
na pergunta ldquoO que eacute lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo ndash 5 minutos
3 Pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito
poreacutem sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido ndash 10 minutos
4 Exibir o curta ndash 25 minutos
5 Pensar e escrever ldquoO que eacute lsquosimrsquo para vocecircrdquo ndash para casa
6 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
7 Retomar as respostas escritas ou natildeo a respeito do ldquosimrdquo se se
correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do
ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme
responderia ao ldquonatildeordquo e ao ldquosimrdquo ndash 15 minutos
161
8 Expor um comentaacuterio participando do diaacutelogo ndash 10 a 15 minutos
9 Escrever num papel uma frase afirmativa ou interrogativa um verso ou
um desenho algo para dizer a esse menino retratado no filme Quem assim
desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez ndash minutos finais
Relato da experiecircncia
Terminado o breve desenho animado perguntamos o que acharam do filme se
gostaram o que gostaram e a maioria dos alunos respondeu afirmativamente Sem
demora a conversa ganhou espaccedilo nos silecircncios iniciais ora longos ora breves a
depender da turma
Primeiramente o que apareceu nas opiniotildees gerais foi a relaccedilatildeo do menino com o
cachorro Em duas turmas disseram que o fato de terem ressuscitado o cachorro foi uma
coisa boa no filme Na turma 502 a Katlem natildeo fala diretamente de ressuscitar mas a
relaccedilatildeo menino e cachorro se apresenta como siacutentese de uma possiacutevel oposiccedilatildeo agrave morte
pois juntos eles enfrentam a separaccedilatildeo e o fim e no filme saem vitoriosos Seria a morte
uma inimiga a ser subjugada ldquoQuando o menino arremessou a bola e a bola foi laacute pra
cima eu achei que o cachorro gostava muito do Vitor [nome do garoto do filme] e ele
gostava muito dele e ele natildeo merecia morrerrdquo
Estabeleceu-se a correspondecircncia do presente o que aparentemente temos e a
morte o que aparentemente natildeo temos o controle fronteira tecircnue guiada pelas aparecircncias
Na turma 501 depois das impressotildees iniciais decidimos ser mais diretos e caminhar no
limite mencionado Perguntamos ldquoO Luiz [um aluno] disse que o bicho mesmo morto se
mexe [] A morte natildeo passa uma ideia lsquoparadarsquo Como se mexer se estaacute mortordquo
ldquondash Por causa do choquerdquo Notamos que muitas pessoas responderam e ainda
tentaram detalhar os processos teacutecnicos Algumas ateacute como o Miqueias achavam que o
principal no filme era a experiecircncia cientiacutefica justificada nos comentaacuterios a respeito de
quantos volts tem um raio (o Luiz falou o valor com tanta certeza que todo mundo
acreditou) referecircncia agravequele ldquoaparelho que eu vi num filmerdquo (a referecircncia a filmes a
162
novelas e agrave tevecirc foi bem recorrente) aquele de ldquodar choque no peitordquo (desfibrilador) mas
ldquosoacute daacute para recuperar quando a pessoa morre naquele instanterdquo disse Luan
Nesse momento a turma estava bem envolvida na discussatildeo com vaacuterios querendo
contribuir A ldquobola da vezrdquo exerceu um papel norteador importante pois eacute um siacutembolo
uma lembranccedila de que algueacutem deseja falar e algueacutem deseja ouvir Quando muita gente
quer a bola combinamos com a turma de ir passando para o lado de matildeo em matildeo assim
todos teriam o direito de falar se quisessem
Desse modo o Luiz (sim novamente ele um dos nossos maiores participantes)
teve sua reacuteplica na pergunta sobre a morte parada ldquotipo assim cortar o rabo de um lagarto
[] ele solta o rabo que fica se mexendo e consegue fugirrdquo A morte em movimento para
que houvesse vida O rabo foi morto podemos supor pela lagartixa para que ela mesma
pudesse viver
A morte se mexe a morte estaacute parada a morte acontece Afinal ldquopor que ateacute hoje
o ser humano natildeo faz isso [ressuscitar] com todos os mortosrdquo perguntou o Max Eu
respondi que o cachorro era especial para a crianccedila do filme afinal nem todo mundo as
pessoas gostariam que voltasse (seguido de alguns risos) Jaacute o Wallace achou que foi
porque o corpo foi costurado
Objetividade era a palavra de ordem De fato o filme dava um destaque agrave
experiecircncia laboratorial nada mais justo que os 501 focassem na questatildeo teacutecnica As
colocaccedilotildees que eram feitas tinham um procedimento meacutedico por traacutes ou um detalhe mais
praacutetico e mais importante quase nenhuma referecircncia a qualquer emoccedilatildeo ou sobrenatural
foi feita Souza e Pereira (1998) vatildeo compreender o entendimento moderno do conceito
de ciecircncia como um modo da verdade entendida por certeza na qual a explicaccedilatildeo do real
se sobrepotildee ao proacuteprio real suas outras manifestaccedilotildees e misteacuterios insoluacuteveis
Ao final da atividade deste primeiro dia fizemos um trabalho mnemocircnico a fim
de reforccedilar o discutido para o proacuteximo encontro Cada pessoa iria fazer uma pergunta ou
dizer uma palavra que sintetizasse seus pensamentos emoccedilotildees a respeito do que tinha
acabado de acontecer Nesta ocasiatildeo notamos um lado mais sentimental juntamente com
o objetivocientiacutefico Questionava-se onde ficava a alma nesse processo de ressuscitar ou
soacute a palavra tristeza tivemos ateacute uma pergunta teoloacutegica de se deus natildeo devolver a alma
como ficaria o corpo
163
Esse teor menos material estaacute mais presente em todos os demais encontros Com
os 502 por exemplo cujo envolvimento nas discussotildees ocorreu mais depressa que na
501 logo nas primeiras colocaccedilotildees surgiu a tristeza o desmerecimento pelo ocorrido
Pareceu que ressuscitar natildeo supriu a urgecircncia de vida cabendo o luto Lembremos essa
turma era aquela que jaacute discutira em alguma medida a morte
Tristemente abatido impotecircncia diante do que natildeo controlamos por melhores que
sejam nossos aparelhos Na falta de esperanccedilas com o que contamos Quando nos
remetemos ao filme na hora que o garoto termina a experiecircncia para reviver o cachorro
a princiacutepio ela natildeo daacute resultados Sobre o corpo imoacutevel o pequeno cientista se debruccedila e
uma laacutegrima escorre de seu rosto Para a Eduarda Letiacutecia e outros tantos esse foi o fator
decisivo para que o cachorro pudesse ressuscitar
Mas seraacute o benedito essa turma natildeo vecirc o oacutebvio A ciecircncia teve seu papel soacute que
o choro funcionou melhor de acordo com a Luiza Para a Isabelle nem se tratou de fato
de aguinha dos olhos mas do amor e a Beth117 sintetizou ao dizer que ldquona ciecircncia natildeo haacute
tanto amor quanto na laacutegrimardquo Elas terem pensado essa relaccedilatildeo lanccedilou-me para o seacuteculo
XX Para a reprodutibilidade da teacutecnica para a questatildeo da teacutecnica e outros tantos ensaios
e pensamentos que se referiam ao homem esquecendo sua humanidade e agrave maacutequina
com seu sentido de ferramenta esvaziado para que tudo ao redor se mova em torno dela
Todavia essa natildeo eacute a idade em jogo naquele ambiente Provavelmente essas
crianccedilas nunca leram Benjamin nem Heidegger mas elas podem sim terem
experienciado as criacuteticas ao mundo ldquode devir-crianccedila ou de devir-infantil que eacute uma
forma de estar no mundo associada natildeo aos anos que se tem mas agrave experiecircncia de vida
que se afirmardquo (KOHAN 2012 paacuteg 43)
Ao considerar a emergecircncia de possibilidades no devir torna-se esperado
associaccedilotildees nunca antes imaginadas O Alex identificou a morte pelo olfato Ou talvez
tenha sido uma metaacutefora quando remeteu ao cheiro da morte afinal era soacute um filme Um
pouco antes do cachorro ser atropelado e vir a falecer aquela iminecircncia exalava uma
essecircncia prenuacutencio traacutegico Quando a crianccedila do filme vai ao cemiteacuterio eacute assustador ele
podia se machucar natildeo eacute Alex
117 Nome fictiacutecio devido agrave ausecircncia do nome real nas gravaccedilotildees
164
O aroma puacutetrido e a decomposiccedilatildeo dos corpos isso tambeacutem eacute o cheiro da morte
e natildeo eacute agradaacutevel Muitos outros na sala tambeacutem tiveram receio com o cemiteacuterio mas
natildeo a Katlem ela disse que o amor a teria dado coragem Aqui temos um velho embate
gerador de heroacuteis covardes e sensatos Entrar ou natildeo entrar no cemiteacuterio precisa ser agrave
noite Sentir o cheiro da morte e ainda assim ir agrave sua direccedilatildeo (talvez o cachorro natildeo tenha
sentido mesmo com seu focinho canino) eacute se aventurar na morte pelo Vitor da 502
E com a morte natildeo se brinca Pois para a Julia se aventurar era brincar mas o
pobre catildeo natildeo sabia do perigo que o aguardava nem que haacute brinquedos que natildeo perdoam
Julia mdash A morte tava presente laacute e quando ele foi voltar [] ele morreu
Vanise mdash A morte fica perto da pessoa
Julia mdash Eu acho que sim no momento certo
Isis mdash Eu vou tentar responder o cheiro da morte para mim foi que o
cheiro da morte deixou um rastro quando vocecirc faz uma comida vocecirc sente um
cheiro deixou um rastro
Isis mdash O rastro deixa uma pista o cheiro de que o carro ia vir A morte era o
carro
Andreacute Lira (2012) defende que a presenccedila da morte eacute algo que natildeo vivemos em
seu interior Sempre exterior quiccedilaacute ao redor a rigor soacute podemos falar sobre jaacute que
ningueacutem morreu e depois escreveu ou discursa proveniente dela embora julguemos poder
sentir sua proximidade Ser novo para morrer e a condenaccedilatildeo ao natildeo conhecimento vatildeo
influir diretamente no comportamento estrangeiro em relaccedilatildeo ao tema
Tanto a aluna Isabelle quanto a professora regente Adriana mais uma vez nos
mostrando a fluidez da questatildeo entre as idades sofreram pela falta de respostas Disse
aquela ldquoNatildeo sei se a morte taacute perto de mim mas eu natildeo quero estar perto dela Sou nova
demais para morrer [] Tenho medo porque natildeo conheccedilo o que vai ter depoisrdquo A Irandy
confessou que tambeacutem tinha medo por natildeo conhecer Ora se vocecirc natildeo conhece porque
supor que eacute ruim e principalmente que deve ser temido
165
Figura 3 ndash Calvin e Haroldo
Fonte DEPOSITODOCALVIN 2005
Um problema corrente do trabalho foi o tempo Quando a discussatildeo pegava fogo
tiacutenhamos que encerrar o encontro para receber a proacutexima turma O cheiro o rastro a
aventura a brincadeira O medo Um dos maiores motivos que me motivou a realizar um
trabalho desses foi o fato de que a morte eacute temida Quis aproveitar que o assunto surgiu
da turma 502 e contrapor com sua ausecircncia na 501 Antes contudo comentemos como
na turma 402 se desenvolveu o confronto com o diferente
Primeiro ponto como havia dito muitos disseram que a ressuscitaccedilatildeo foi o aacutepice
do filme A Tamiris ateacute disse que se fosse possiacutevel iria fazer o mesmo com a avoacute Agora
para ressuscitaacute-la de acordo com o filme teria de haver uma aproximaccedilatildeo com um lado
sombrio indigesto com o cemiteacuterio caveiras e corpos feacutetidos e em decomposiccedilatildeo
Eca e outras interjeiccedilotildees e caretas eram ouvidas durante a animaccedilatildeo O sentimento
de nojo foi instigado teria a Tamiris encarado a morte no corpo imoacutevel da avoacute com
repulsa O Mateus acredita que natildeo com um certo desdeacutem como se sentir nojo fosse
algo hipoacutecrita ldquoeu acho que fede mas queria fazer uma pergunta e uma pessoa que eles
amam muito vatildeo falar que eacute nojenta que eacute isso ou aquilordquo
Poxa Mateus mas natildeo eacute muito normal ver sangue saindo ou bichinhos comendo
a pessoa mesmo que seja da nossa famiacutelia neacute Mas a gente vai tentar se segurar porque
eacute uma pessoa proacutexima pelas ideias e algumas palavras de Fernando Sim concordo natildeo
eacute habitual separamos a morte da vida Evitamos por medo ou por nojo enxergar a morte
acontecendo ao nosso redor em noacutes mesmos Por esse vieacutes tornamos estranho o que nos
eacute proacuteximo e familiar
166
Figura 4 ndash A morte
Fonte O PATO A MORTE E A TULIPA 2009
mdash Vocecirc veio me buscar agora mdash Estou perto desde que vocecirc nasceu por via
das duacutevidas [] Eacute a tarefa da proacutepria vida cuidar do acidente e tambeacutem da
gripe e de todas as outras coisas que ocorrem a vocecircs patos118 Eu soacute digo uma
coisa raposa (ERLBRUCH 2009 paacutegs 4-7)
Ateacute o prezado momento do texto tratamos basicamente das primeiras aulas Para
natildeo depender unicamente da memoacuteria os colegas e eu bolamos uma atividade
Trouxemos duas reacuteplicas de cracircnios um mais realista tirando os olhos vermelhos e
brilhantes outro mais escurecido de porcelana e com um buraco na cabeccedila (para colocar
velas aromaacuteticas)
As caveiras passavam de matildeo em matildeo seguidas da admiraccedilatildeo pela turma 501 a
mais objetiva e espanto pela 502 a mais emotiva A turma 402 viveu a experiecircncia mas
natildeo chegamos a desenvolvecirc-la Houve ainda quem colocasse a foto de uma das cabeccedilas
como foto de fundo do celular Na hora falhamos por natildeo perguntarmos a causa da
admiraccedilatildeo aos alunos mas acertamos em perguntar do espanto
A turma 501 riu fez piada disse que era feia cheirou a caveira bateu nela se
aproximou como pocircde Natildeo que tivessem medo se mostraram curiosos mas natildeo
animados Perguntaram se era de verdade o Miqueias ateacute questionou a relevacircncia por
natildeo ser cabeccedila de cachorro De bebecirc natildeo era natildeo tinha moleira disse o Viniacutecius
118 Essa eacute a uacuteltima imagem do livro O pato a morte e a tulipa Entatildeo por que um coelho e natildeo um pato
Entendo que a histoacuteria se passa com um pato mas poderia ter acontecido com um coelho ou com uma
pessoa Cada um tem sua raposa e a morte acompanha a todos
167
Enquanto a turma 502 soacute queria fazer festa com a caveira a turma 501 se intrigou
Natildeo acredito na mera coincidecircncia de que exatamente na que teve as discussotildees mais
focadas na explicaccedilatildeo objetiva tenha se interessado mais em entender a aquele objeto
enquanto a turma da laacutegrima e do amor queria mais brincar Um estudo incipiente que
vislumbra uma diferenccedila com o lidar despreocupado ou natildeo
A ciecircncia e o que denominei emoccedilatildeo determinam as duas grandes linhas de
compreensatildeo da morte mas haacute uma terceira presente em todas e de maior presenccedila nos
uacuteltimos encontros a religiatildeo O conforto que a teacutecnica natildeo explicava e a esperanccedila que
faltava na presenccedila da morte preluacutedio de ausecircncia era oferecido pelo acalanto da
imortalidade A alma impereciacutevel o deus misericordioso que protege os bons e estaacute acima
da morte
Por exemplo na turma 501 o Washington disse que o cracircnio natildeo poderia
ressuscitar porque natildeo tinha corpo O Luiz nos lembrou natildeo poderia porque natildeo tinha
alma primeiro Deus precisaria devolver a alma ao corpo A vida estava na alma a carne
apenas a guarda Problematizamos ldquoSe a morte eacute uma questatildeo da alma porque mexer
com o corpordquo Seraacute que o embrulho precisa estar agrave altura do presente
Na 502 minha turma das emoccedilotildees deu para explicar tintim por tintim como se
processava a vida apoacutes a morte Mais seguros do que diziam afirmavam e sabiam Havia
menos tristeza entre os alunos naquele dia Assim falou a Julia ldquoQuando a gente morre
a gente natildeo sabe o que acontece Pode vir algum anjo [] quando vocecirc taacute dentro de um
caixatildeo vocecirc natildeo volta mais O espiacuterito fica laacute dormindo mas quando Jesus voltar ele
sobe Eu tenho certezardquo
Depois de uma concordacircncia geral a Julia continuou a relatar a existecircncia de trecircs
ceacuteus O primeiro seria o ceacuteu das nuvens e da chuva o segundo o ceacuteu do inimigo assim
ela disse e o terceiro seria o local de Deus Alguma mente brilhante entre risos e
jocosidade que infelizmente natildeo registramos o nome se pronunciou a respeito de 25
ceacuteus
Outras pessoas tambeacutem se pronunciaram sobre os trecircs ceacuteus uma delas propocircs ateacute
um desafio ldquoEstaacute na Biacuteblia qualquer uma catoacutelica evangeacutelica pode procurarrdquo (no
estado em que se encontravam as discussotildees todos queriam falar ao mesmo tempo a
turma estava agitada e os nomes natildeo tiveram seus aacuteudios registrados) Foi um espanto
168
entre os demais colegas e eu principalmente porque tiacutenhamos estudiosos de religiatildeo entre
noacutes e eles contestavam a veracidade daquelas informaccedilotildees
Em plena efusatildeo de opiniotildees um grupo estava distraiacutedo conversando Um dos
membros rindo falou ldquoAh gente parem de falar de morte parece macumbardquo poucos
prestaram atenccedilatildeo todavia pelo menos outras duas vezes ela repetiu se o que estaacutevamos
fazendo era macumba e se laacute era roda de macumba Fiquei feliz pelo material de pesquisa
mas entristecido pela opiniatildeo nitidamente preconceituosa
ldquoPor que falar de morterdquo ela perguntou na roda final de perguntas Eu perguntei
ldquopor que natildeo falar de morterdquo Pela religiatildeo eacute ofensivo ou desrespeitoso ao Senhor falar
de morte Somente as outras religiotildees falam sobre o tema (Isso para natildeo perguntar por
que natildeo falar de outras religiotildees)
Pude perceber que aquele grupo de pessoas estudantes de Caxias do quarto e
quinto ano fundamental tinha a realidade religiosa muito marcante em seus dias (pelo
menos duas alunas tinham parentes pastores) Tanto adultos quanto crianccedilas estatildeo
sujeitos agrave reprodutibilidade das opiniotildees Souza e Pereira (1998) defendem que o tempo
moderno estaacute regulado pela produtividade logo quanto mais raacutepido melhor Dessa
maneira entendo que o discurso religioso funciona tambeacutem nessa loacutegica e deseja se
afirmar com destreza e propriedade
A morte passa a ser um braccedilo da religiosidade pois essa consegue com primor o
que nenhuma outra verdade faz Suas soluccedilotildees datildeo por encerrada a questatildeo que natildeo
convive mais em misteacuterio A repeticcedilatildeo se processa a fala a liacutengua uacutenica do puacutelpito
Portanto somos conduzidos a pensar que a crianccedila eacute um pequeno adulto
Se a modernidade tem esse pensamento e a contemporaneidade faz uso sim dele
tambeacutem inventamos o soacute A crianccedila cresce em idade e reproduz o adulto que ela sempre
foi mas ela natildeo eacute soacute um adulto tambeacutem deteacutem singularidade Todo este trabalho mostra
o quatildeo originaacuterias eram suas posiccedilotildees reflexotildees e sentimentos caminhando
conjuntamente com a pretensatildeo de ser sobre ela
Se a crianccedila natildeo eacute soacute um pequeno adulto talvez o adulto tambeacutem seja uma crianccedila
grande embora natildeo soacute Se o adulto precisa se transmitir agrave crianccedila que ele se permita natildeo
esquececirc-la em si O cerne aqui se refere agravequela fluidez das idades de como a morte estaacute
presente a todos Por fim quando cerrarmos os olhos no sono das eras tenhamos a
169
serenidade da noite tranquila e nos lembremos por quaisquer meios que jaacute falamos da
morte e ela natildeo eacute uma estranha seja bem-vinda
Entonces recordar la infancia significa quizaacute preparar un mundo comuacuten [grifes
do autor] en el que el hecho de ser nintildeos no sea sinoacutenimo de imperfeccioacuten y
marginalidad ni donde devenir adultos tenga el sentido de una infancia
traicionada Aprender a concluir tratando de estar siempre a la altura de la
dignidad de esa despedida (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 16)
Reflexatildeo com a experiecircncia
Afinal aqui se trata de um homem por mais novo e diverso que seja com origem
Isto significa que ele estaacute num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos
e por fim sua forma de ser Esse eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita
alfabeacutetica119 a filosofia e a induacutestria
Nenhuma dessas revoluccedilotildees teacutecnicas chegaram sem cobrar um preccedilo pois cada
invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se para cada obra jaacute era preciso estar disposto a obrar
Eacute importante ratificar que o processo de transformaccedilatildeo da realidade natildeo eacute exclusivo do
homem ocidental mas talvez seja dessas caracteriacutesticas que nos unem a todos Nesse
sentido humanizar eacute proacuteprio do homem A questatildeo eacute que tipo de humanizaccedilatildeo eacute esta a
ocidental
Esse eacute o homem que vive a ilusatildeo Esse eacute o homem que vem perdendo seu contato
mais imediato e concreto com as coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que
nada mais eacute do que o desdobramento do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo das
coisas Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que
as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as
coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos
compreendecirc-las
119 Haacute um embate na Academia sobre a invenccedilatildeo da escrita alfabeacutetica A ideia neste trabalho natildeo eacute se
perder ldquona busca do primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica
fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo (HAVELOCK 1996
paacuteg 15)
170
A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana das coisas
mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa a ser nossa
possibilidade de ver as coisas Jaacute dizia o poeta que o universo natildeo seria uma ideia minha
mas sim minha ideia de universo eacute que seria uma ideia minha (PESSOA 2006 paacuteg 51)
Logo o que compreende eacute aquele que prende junto a si A ilusatildeo de poder
compreender tudo se faz principalmente por se tratar do caraacuteter ilusoacuterio com que nos
relacionamos com as coisas Natildeo lidamos mais com as singularidades preferimos seus
nuacutemeros estatiacutesticas o sabor de uma banana ou maccedilatilde cedem lugar ao conjunto das frutas
quantitativamente sem gosto A morte natildeo eacute mais uma manifestaccedilatildeo do real tanto quanto
respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser superado basta termos mais
conhecimentos a respeito
Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como
tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de
novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma
forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia
murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos
171
Exerciacutecios de ser crianccedila
Objetivo geral
Incentivar a autorreflexatildeo e o questionamento do senso comum tanto de si quanto
dos demais
Objetivo especiacutefico
A partir de poemas do livro Exerciacutecios de ser crianccedila de Manoel de Barros os
alunos satildeo convidados a pensar o que chamamos de crianccedila isto eacute eles mesmos Outro
desdobramento estaacute em como eacute possiacutevel algueacutem que natildeo seria crianccedila fazer esse
exerciacutecio por exemplo os professores e o autor Um terceiro encaminhamento diz
respeito ao contato com o texto literaacuterio e a relaccedilatildeo com a linguagem poeacutetica
Proposta para a atividade
Pensada para um grupo de crianccedilas entre 9 e 10 anos O mestre instigador apoacutes
ter se ambientado com a turma apresenta uns poemas do livro mencionado Conforme os
recursos da instituiccedilatildeo isso seraacute feito da forma que for mais adequada como uma
exposiccedilatildeo com os poemas em cartolinas (isso poderia ter sido uma atividade preacutevia entre
os alunos) expocirc-los no datashow e ler alguns com a turma ou mesmo ler direto no livro
para eles mas eacute importante que eles tenham como reler o poema No caso optamos por
uma mistura de cartolinas e exemplares do livro dividimos em grupos de cinco e eles
deveriam fazer um comentaacuterio a respeito Segue um dos poemas do livro citado
172
Exerciacutecios de ser crianccedila
No aeroporto o menino perguntou
mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho
O pai ficou torto e natildeo respondeu
O menino perguntou de novo
mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho triste
A matildee teve ternuras e pensou
Seraacute que os absurdos natildeo satildeo as maiores virtudes
da poesia
Seraacute que os despropoacutesitos natildeo satildeo mais carregados
de poesia do que o bom senso
Ao sair do sufoco o pai refletiu
Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com
as crianccedilas
E ficou sendo (BARROS 2010 paacuteg 469)
Um fator relevante para a dinacircmica aqui executada eacute a participaccedilatildeo do professor
ou coordenador na atividade Isto quer dizer sentar em grupo debruccedilar-se sobre um
poema e engendrar um comentaacuterio Natildeo para se sobressair nem engabelando um
simulacro participativo qualquer mas simplesmente ler e interpretar como todos os
outros Satildeo poemas curtos e simples embora profundos Algo em torno de 5 a 10 minutos
para a leitura e discussatildeo Pode ser que em algum momento o professor precise agir por
exemplo se a turma se dispersar em falatoacuterio excessivamente alto Natildeo tem jeito eacute
preciso intervir poreacutem tente natildeo deixar de fazer parte da atividade com a turma
Na hora dos comentaacuterios tudo vai depender das perguntas suscitadas Cada grupo
deveraacute apresentar seu poema para a turma A seguir alguns exemplos caso a turma tenha
dificuldade como se exercita ser crianccedila Ou assertivamente ser crianccedila eacute um exerciacutecio
logo natildeo se eacute crianccedila sem praticar ser crianccedila Ainda a relaccedilatildeo autor e obra foi
problematizada no sentido de compreender como um senhor de idade referindo-se a
Manoel de Barros conseguia ser crianccedila ou se ele se exercitava para natildeo engordar a
crianccedila interior dele e natildeo ter mais focirclegos para brincar (com as palavras)
O menino que carregava aacutegua na peneira
Eu tenho um livro sobre aacuteguas e meninos
Gostei mais de um menino que carregava aacutegua na peneira
A matildee disse que carregar aacutegua na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele
para mostrar aos irmatildeos
A matildee disse que era o mesmo que catar espinhos na aacutegua
O mesmo que criar peixes no bolso
O menino era ligado em despropoacutesitos
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos
173
A matildee reparou que o menino gostava mais do vazio do
que do cheio
Falava que os vazios satildeo maiores e ateacute infinitos
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar aacutegua na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que
carregar aacutegua na peneira
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviccedila
monge ou mendigo ao mesmo tempo
O menino aprendeu a usar as palavras
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras
E comeccedilou a fazer peraltagens
Foi capaz de interromper o voo de um paacutessaro botando
Ponto no final na frase
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela
O menino fazia prodiacutegios
Ateacute fez uma pedra dar flor
A matildee reparava o menino com ternura
A matildee falou Meu filho vocecirc vai ser poeta
Vocecirc vai carregar aacutegua na peneira a vida toda
Vocecirc vai encher os vazios com as suas peraltagens
E algumas pessoas vatildeo te amar por seus despropoacutesitos (BARROS 2010 paacutegs
469-470)
Outra possibilidade de realizaccedilatildeo eacute passar o mesmo poema a todos O que eacute
indicado a turmas muito tiacutemidas ou com dificuldade de abertura ao tipo de atividade
Nesse caso um poema maior eacute preferiacutevel para transcorrer com os comentaacuterios Uma dica
eacute nunca subestimar o oacutebvio Perguntas do tipo como eacute possiacutevel carregar aacutegua na peneira
pode gerar discussotildees acaloradas Algumas crianccedilas vatildeo ateacute sugerir que jaacute carregaram
focando no ato concreto de levar uma peneira agrave agua e retornar dela aos pingos A
linguagem pode ser encarada ao peacute da letra como tornar-se mais abstrata Seja uma ou
outra e ateacute ambas numa experiecircncia poeacutetico-filosoacutefica precisam ser encaradas como
manifestaccedilotildees de verdade e desdobradas em seus meandros Gotas de aacutegua na peneira
matam sede curta e servem aos despropoacutesitos do poeta brincalhatildeo
Apoacutes a exposiccedilatildeo de todos que assim desejem cabe agora dar corpo agrave profusatildeo
de ideias Muito provavelmente alguns dos comentaacuterios teratildeo a ver entre si eacute
aconselhaacutevel relacionaacute-los ldquoOlhem o que fulano disse eacute muito parecido com o que
sicrano falourdquo Outros se oporatildeo ldquoJaacute beltrano acredita que isso eacute o oposto agravequilo que
fulano disserdquo E ateacute haveraacute os confusos que merecem maiores detalhes Nesses casos
solicitar a recolocaccedilatildeo do problema eacute prudente e pode ensejar uma nova perspectiva para
a questatildeo
174
Com as observaccedilotildees mais ou menos reunidas agora eacute o momento de expor um
comentaacuterio sobre elas e sobre os poemas Ter algum esquema do que dizer eacute muito
importante para natildeo se perder e passar confianccedila aos alunos poreacutem dialogar com os
pontos de vista apresentados eacute vital do contraacuterio seria mais uma aula como outra
qualquer Cerca de 15 minutos entre a composiccedilatildeo das relaccedilotildees e a explanaccedilatildeo
Por fim peccedila que cada um tendo em vista o que foi discutido escreva o que eacute ser
crianccedila para ela e se desejar leia em voz alta e comente para a turma Como nem o livro
nem talvez as cartolinas os alunos poderatildeo ter para si ao escrever o que eacute ser crianccedilas
eles tecircm a oportunidade de se expressarem e poderatildeo guardar o escrito para futuros
possiacuteveis pensamentos
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar poemas e solicitar que cada um ou cada grupo faccedilam
comentaacuterios a respeito ndash 10 minutos
3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e expor um comentaacuterio participando do
diaacutelogo ndash 15 minutos
4 Escrever e expor o que eacute ser crianccedila ndash 10 minutos
Relato da experiecircncia
Abaixo segue a transcriccedilatildeo de uma atividade realizada em meados de 2014 por
mim e Vanise Dutra na Escola Municipal Joaquim da Silva Peccedilanha Tendo havido um
encontro de ambientaccedilatildeo na semana anterior desta experiecircncia os alunos tinham sido
levados ao paacutetio para brincar e como dever de casa eles deveriam escrever sobre o que
era ser crianccedila para eles
175
Vanise mdash Entatildeo gente Olha soacute Vocecircs lembram o que a gente fez na semana
passada
Fernando mdash A gente brincou laacute fora A gente treinou nesse exerciacutecio de ser
crianccedila A gente tentou treinar aiacute A gente brincou Fez atividade laacute fora Foi
muito divertido
Vanise mdash Foi
Fernando mdash Ateacute a tia Janaiacutena brincou que eu vi (Risos)
Professora mdash Que Janaiacutena Eacute Alessandra
Fernando mdash Eacute Alessandra Eu esqueci Eacute que eu vi Janaiacutena no caderno
Vanise mdash E como que foi esse exerciacutecio Esse exerciacutecio laacute fora de ser crianccedila
Vocecircs acham que tem alguma relaccedilatildeo com o exerciacutecio que a gente fez laacute fora
de ser crianccedila com o exerciacutecio de escrever
Fernando mdash Eu acho que sim porque uma das coisas de ser crianccedila neacute
coisas que as crianccedilas fazem no exerciacutecio de ser crianccedila eacute brincar e nesse dia a
gente brincou muito Entatildeo acho que sim que tem alguma coisa a ver
Notemos que propositalmente pomos as crianccedilas para brincar a fim de que a
resposta agrave pergunta de ser crianccedila orbite pelos lugares comuns de brincadeira e jogo O
proacuteprio Manoel de Barros vai jogar com essa ideia Com a introduccedilatildeo dos poemas
brincadeira e o jogo alargam sentidos de modo que adultos podem brincar e brincadeira
de crianccedila natildeo precisa ser bola ou gude mas palavras recolocando a questatildeo de ser
crianccedila como ser adulto ou ser velho sob outra perspectiva
Vanise mdash E o que a gente fez aqui dentro Tem relaccedilatildeo
Fernando mdash Tambeacutem Eacute uma brincadeira que a faz a gente imaginar coisas e
pensar mais Crianccedila natildeo soacute brinca tambeacutem tem aquelas coisas que tem que
pensar coisas de escola coisas de trabalho natildeo Vaacuterias coisas que a gente
pensa aqui a gente brinca na mente brinca com a mente vai pensar de vaacuterias
formas
Vanise mdash Ouviram isso que o Fernando falou Que a gente que crianccedila natildeo
soacute brinca mas que crianccedila tambeacutem pensa
Andreacute mdash Eacute deixa eu fazer uma pergunta Escrever tambeacutem pode ser uma
brincadeira
Camili mdash Que escrever eacute um exerciacutecio de ser crianccedila Eu acho que pode ser
uma brincadeira
Vanise mdash Por quecirc
Camili mdash Ah natildeo sei Porque a gente se diverte com algumas coisas
escrevendo
Willian mdash Pode porque a gente gosta de desenhar
Gustavo mdash Respondendo agrave pergunta do Andreacute se escrever eacute exerciacutecio de ser
crianccedila Eu acho que sim porque tem muitas pessoas que jogam adedanha ali
no papel e eacute divertido
Interessante notar a inversatildeo que eacute feita Natildeo eacute brincar que tem que ser divertido
mas se traz diversatildeo eacute por ser uma brincadeira Nesse vieacutes coisas como escrever (que se
iguala no contexto a desenhar) e pensar podem ser luacutedicas e apraziacuteveis
176
Fernando mdash Queria soacute lembrar que exerciacutecio de ser crianccedila natildeo eacute soacute o brincar
O exerciacutecio de ser crianccedila eacute a gente se divertir Por isso que os adultos eles
tambeacutem fazem o exerciacutecio de ser crianccedila Porque muitas vezes vamos dizer
assim saem com os amigos aiacute se divertem riem acho que soacute o fato de rir jaacute
eacute um exerciacutecio de ser crianccedila porque vocecirc estaacute se divertindo Vocecirc estaacute
trazendo aquela felicidade de volta assim Natildeo que vocecirc seja triste mas vocecirc
estaacute trazendo aquela felicidade Soacute o fato de vocecirc rir vocecirc jaacute tem uma ideia do
exerciacutecio de ser crianccedila Que crianccedila natildeo vamos dizer que eacute boba mas em
todo momento faz uma piada ri essas coisas
Vanise mdash Vocecircs estatildeo ouvindo isso gente que ele estaacute falando Natildeo eacute soacute de
brincar segundo o Fernando que tem a ver com o exerciacutecio de ser crianccedila
Joatildeo mdash Eu quero responder a pergunta da Vitoacuteria
Vanise mdash Qual eacute a brincadeira que vocecirc mais gosta
Joatildeo mdash Eu natildeo sou muito de brincar mdash Joatildeo fala com um tom seacuterio mdash Meu
negoacutecio eacute mais negoacutecio de instrumento essas coisas Meu pai tambeacutem eacute
muacutesico Aiacute aos domingos eu vou pra casa dele e a gente fica laacute tocando
instrumento Eu em casa quase natildeo brinco Soacute mexo no computador e depois
fico tocando bateria
Vanise mdash E vem caacute Tu acha que isso eacute o quecirc Que isso eacute um exerciacutecio de ser
crianccedila que natildeo eacute Que eacute brincar que natildeo eacute brincar Quando vocecirc estaacute laacute com
o teu pai
Joatildeo mdash Pra mim eacute tia Da mesma maneira eu brincando com meus amigos
na rua eu me divirto Eu com meu pai brin tocando instrumento eu tambeacutem
me divirto Eu tocando na igreja eu me divirto Pra mim eacute tia
A muacutesica aparece aqui como algo de crianccedila Novamente uma inversatildeo que vem
bem a calhar Natildeo seria o exerciacutecio de ser crianccedila que definiria a crianccedila mas jaacute sendo
crianccedila sua existecircncia eacute um exerciacutecio por si soacute Isso eacute uacutetil para romper paradigmas de que
brincadeiras satildeo coisas apenas de crianccedila Tambeacutem adultos podem brincar assim como
crianccedilas podem exercitar-se agrave medida que tocam um instrumento
Natildeo eacute sinocircnimo de besteira Ela natildeo eacute boba Seu pensamento e sua diversatildeo natildeo
necessitam recair sempre nos mesmos lugares e da mesma forma Joatildeo se diverte com seu
pai e ambos partilham da muacutesica enquanto morada Nem o pai volta a ser crianccedila nem o
filho vira adulto eles instauram um tempo cronologicamente enfraquecido sem idades
precisaacuteveis Tocando um com o outro exercem uma relaccedilatildeo familiar proacutepria e envolvente
somente possiacutevel por quem se dispotildee a experienciar o instante Natildeo eacute uma questatildeo de
vontade vale dizer mas de entrega
177
Reflexatildeo com a experiecircncia
Nem sempre eacute faacutecil dar cabo do que temos em mente Tudo se torna mais
complicado se nosso ponto de partida pretende natildeo determinar caminhos preacutevios ou
meacutetodos verdadeiros apenas e fundamentalmente oferecer sugestotildees Trata-se pois de
propor um convite para caminhar agravequeles que desejam inspiraccedilatildeo para novas ideias
diaacutelogo entre o seu e este modo de fazer ou ateacute mesmo um pontapeacute inicial
Quaisquer que sejam as circunstacircncias eacute vital se colocar agrave disposiccedilatildeo de pensar e
escutar as questotildees aqui apresentadas e a maneira como elas satildeo tratadas sem
preconceitos ou diligecircncias desnecessaacuterias Isso porque do contraacuterio corre-se o risco de
deixar cair por terra uma possibilidade construtiva de conhecimento para incorrer em
meras prescriccedilotildees ou em criacuteticas assaz severas sem o merecido cuidado ndash natildeo com o texto
muito menos com o autor ou o professor mas com o pensamento Pensar sempre inspira
cuidados
178
A cegueira da visatildeo
Objetivo geral
Promover uma atividade que aguce a atenccedilatildeo a outros sentidos aleacutem de levantar
questionamentos sobre a confianccedila no que natildeo temos controle
Objetivo especiacutefico
Em pares um participante seraacute vendado e o outro natildeo O que estaacute vendado deveraacute
guiar pelo espaccedilo aquele que pode ver Essa eacute uma versatildeo da tradicional experiecircncia de
se vendar para deixar ser guiado por outro a fim de exercitar a confianccedila Poreacutem aqui o
desafio toma tons mais radicais para ambos quem natildeo vecirc precisa se empenhar para
confiar nos demais sentidos e arcar com a responsabilidade por si e por outrem ainda que
suas possibilidades estejam limitadas quem vecirc precisa se esforccedilar para natildeo assumir o
papel que natildeo eacute dele ou seja de guiar e assim aceitar os erros e equiacutevocos do guia
Proposta para a atividade
Tatildeo simples quanto complexa a depender de seu modo de execuccedilatildeo De material
didaacutetico apenas fitas de um tecido qualquer para cobrir os olhos O tempo de execuccedilatildeo
pode variar bastante mas entre 5 a 10 minutos costumam ser suficientes Ratificamos
que para cada nova dinacircmica conveacutem a realizaccedilatildeo da ambientaccedilatildeo conforme descrita
em ldquoQuando a vida nos diz natildeordquo
Originalmente ldquoA cegueira da visatildeordquo foi pensada para uma turma de 20 25 alunos
entre 8 e 11 anos mas fazecirc-la com uma turma inteira eacute bem trabalhoso Entatildeo para uma
179
turma menor ou talvez sortear alguns alunos seja mais pertinente Por outro lado eles
podem realizar a experiecircncia por eles mesmos com facilidade bastando um coleguinha
ou irmatildeo Outro ponto positivo estaacute no fato de que este exerciacutecio funciona bem para
idades mais avanccediladas conforme seraacute relatado adiante
Primeiramente eacute exposto aos possiacuteveis participantes o que se pretende fazer Dois
em dois um vendado e o outro natildeo O que natildeo enxerga deveraacute guiar aquele que enxerga
Quem guia deve estar ciente de sua responsabilidade e tentar executaacute-la da melhor forma
possiacutevel Quem eacute guiado deve refrear o iacutempeto corretor e deixar-se levar confiando no
guia A princiacutepio tudo parece uma brincadeira mas urgimos cuidado de quem guia Uma
digressatildeo breve sobre a confianccedila e sobretudo confiar como natildeo deter o controle pela
visatildeo vem a calhar Apoacutes entregar as faixas a cada dupla
Na experiecircncia propriamente dita deixe a dupla ambientar-se e em seguida pode-
se sugerir pequenas tarefas ou se o espaccedilo for amplo que ousem exploraacute-lo O importante
eacute haver deslocamento e o medo inicial caminhar em tensatildeo com a confianccedila
Diferentemente das outras atividades natildeo eacute aconselhaacutevel participar desta pois aleacutem dos
comandos eacute necessaacuterio estar em alerta e julgar quais riscos e satildeo convenientes e podem
vir a contribuir com a discussatildeo
Ao teacutermino eacute feita uma rodada das primeiras impressotildees e assim como em
ldquoExerciacutecios de ser crianccedilardquo eacute importante criar relaccedilotildees entre os diversos comentaacuterios
dando clareza e possibilitando uma discussatildeo mais profiacutecua Como jaacute houve uma
explanaccedilatildeo anterior tome cuidado para natildeo monopolizar a atividade com sua fala e ao
inveacutes motive e instigue as observaccedilotildees dos participantes e dos expectadores Cerca de 15
minutos deve ser o suficiente Relembrando que caso a discussatildeo esteja fluida pode ser
mais interessante adiar a proacutexima etapa da atividade para se aprofundar na atual
Por fim inverta os papeacuteis nas duplas e convide-os a se pocircr no lugar do outro Com
mais tempo ou turmas menores esta etapa pode vir logo em seguida da primeira
experiecircncia com a venda Isso tende a contribuir em muito com a discussatildeo
180
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar a atividade expor um comentaacuterio e entregar as faixas ndash 15
minutos
3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e instigar observaccedilotildees ndash 15 minutos
4 Inverter os papeacuteis nas duplas ndash 5 minutos
Relato da experiecircncia
Tendo feita a explanaccedilatildeo que natildeo necessariamente deve seguir essa
argumentaccedilatildeo eacute hora de prosseguir com a experiecircncia Lembrando que o intuito natildeo foi
ministrar uma aula (embora nada impeccedila) somente foi uma provocaccedilatildeo para suscitar mais
duacutevidas do que entendimentos claros O importante eacute questionar o domiacutenio do controle
pela visatildeo
Um detalhe importante Por vezes o tempo iraacute se perder num ponto inesperado
Como natildeo haacute um rigor curricular nem avaliativo forte cabe ao professor medir se vale a
pena ou natildeo interromper Ateacute o momento foram contabilizados 16 minutos e 33
segundos
Dando seguimento trazemos a transcriccedilatildeo comentada da experiecircncia feita com
duas jovens Thayrine e Patriacutecia que se propuseram a realizaacute-la e concordaram em ter
suas falas aqui colocadas
Andreacute mdash Bom fizemos questionamentos muito interessantes Agora gostaria
de propor uma atividade para que corporifiquemos o que acabamos de discutir
Se eu pudesse resumir tudo em uma questatildeo ela seria ldquoNatildeo se trata de confiar
na visatildeo dos outros tambeacutem nem de confiar demais em si mesmo enquanto
subjetividade enquanto um eu mas talvez uma confianccedila no conviterdquo Tendo
isso em mente eu gostaria de convidar a uma de vocecircs para que fosse vendada
(podemos trocar depois) e que a pessoa com a venda guiasse a outra
181
Neste momento Patriacutecia se prontifica a ser vendada o que gera protestos de
Thayrine Natildeo que ela quisesse a venda para si mas por achar que Patriacutecia conhecia mais
o local do que ela e por isso teria uma noccedilatildeo espacial muito boa Natildeo se apresentou
como algo tatildeo importante assim o conhecimento preacutevio pois mesmo que ela conhecesse
bem o espaccedilo eacute um entendimento baseado na visatildeo Somente o movimentar-se com os
olhos cerrados jaacute eacute o suficiente para arremessaacute-la a um ambiente novo semelhante a
visitar uma paisagem qualquer que somente haviacuteamos visto por foto Colocada a venda
retomamos a atividade
Andreacute mdash Pois bem vocecirc que jaacute conhece este ambiente haacute anos estaacute insegura
para caminhar Vocecirc estaacute acostumada com ele pelos seus olhos mas o instante
eacute cego Por outro lado Thayrine vecirc ambas fazem parte do mundo que eacute uma
moradia mas de forma diferente e vocecirc tem a responsabilidade dos anos
[refiro-me agrave Patriacutecia que era mais velha] Na morada vocecirc sabe onde estatildeo os
pratos e talheres onde o papel higiecircnico fica guardado quando acaba no
banheiro em qual garrafa se bebe ou natildeo pelo gargalo mas e agora
Patriacutecia guie Thayrine pelos cocircmodos Thayrine mesmo que vocecirc possa
enxergar permita que Patriacutecia a conduza por esta bagunccedila adentro Se vocecircs
forem dar de cara na parede aproveitem e sintam o cheiro dela Se um copo
quebrar aproveitem a visatildeo do belo buquecirc de cacos de vidro e o som do
estrondo
A princiacutepio ela foi deixada sem mais orientaccedilotildees poreacutem ao longo da experiecircncia
optou-se por designar pequenas funccedilotildees a serem desempenhadas A falta de um propoacutesito
imediato aumenta a desorientaccedilatildeo o que contribuiacutea para um deslocamento reduzido As
duas comeccedilaram a caminhar sem rumo mas com as pequenas missotildees apanhar um objeto
ou ir ateacute certo canto da sala a exigecircncia e o envolvimento delas foi maior Patriacutecia estava
descalccedila ela tateou a parede e se dirigiu para o corredor que liga os cocircmodos
Patriacutecia mdash Isso mesmo Thayrine deixe eu topar com o peacute ou bater com a
cabeccedila
Thayrine mdash Que medo
Andreacute mdash Patriacutecia Thayrine estaacute com sede vocecirc poderia pegar um copo
drsquoaacutegua para ela
Havia uma garrafa grande de vidro que quase foi derrubada assim que Patriacutecia se
pocircs a procurar um copo para servir aacutegua Em seguida foram solicitadas outras duas
tarefas e depois retornamos para o local de iniacutecio e recomeccedilarmos com Thayrine a guiar
Determinou-se outras duas tarefas diferentes das anteriores apenas a do copo drsquoaacutegua se
182
repetiu a pedido de Patriacutecia Esta parte da atividade contabilizou 11 minutos e 10
segundos
Foi iniciada a etapa da confrontaccedilatildeo entre o que haviacuteamos discutido na explanaccedilatildeo
e a praacutetica que acabamos de fazer Conveacutem perceber que nem sempre os rumos da
discussatildeo satildeo os mesmos jaacute traccedilados a exemplo aqui ela descambou para a situaccedilatildeo
professor-aluno em sala de aula Eacute importante costurar com esse conhecimento insurgente
e espontacircneo Inclusive debates anteriores podem servir de base na construccedilatildeo da
explanaccedilatildeo da atividade seguinte
Andreacute mdash O que vocecircs acharam da experiecircncia
Patriacutecia mdash Eu gostei bastante
Thayrine mdash Eu tambeacutem mas me senti um pouco perdida no iniacutecio
Andreacute mdash E o que vocecircs gostaram
Patriacutecia mdash O fato de ter de fazer as coisas sem enxergar conjuntamente com
a funccedilatildeo de guia
Andreacute mdash Vocecirc sentiu que guiou ou recebeu algum sinal advindo dos olhos
dela
Patriacutecia mdash Natildeo ela pousou suavemente a matildeo na minha e assim foi a
experiecircncia toda
Andreacute mdash Quando vocecirc foi conduzida sentiu que a reciacuteproca foi verdadeira
Patriacutecia mdash Sim natildeo tivemos problema quanto a isso
Andreacute mdash Vocecircs acham que teria alguma diferenccedila se estivessem sozinhas
Thayrine mdash Eu sou muito individualista natildeo estava pensando muito na
Patriacutecia mdash Estava mais preocupada em me localizar
Andreacute mdash Mas vocecirc estava a guiaacute-la natildeo
Thayrine mdash Ainda assim me preocupava mais comigo afinal ela podia
enxergar natildeo havia como quebrar ou esbarrar em algo
Andreacute mdash Quanto a vocecirc Patriacutecia
Patriacutecia mdash Eu tambeacutem natildeo me preocupei muito com ela mas suponho que se
estivesse sozinha a experiecircncia natildeo seria tatildeo prazerosa
Thayrine mdash Para quem estaacute vendo eacute muito interessante estar bem proacuteximo e
poder vivenciar todos os descaminhos que a outra pessoa percorre
Andreacute mdash A meu ver o aacutepice da experiecircncia foi quando Patriacutecia quase
derrubou a garrafa e vocecirc nada fez para impedir Eacute a ideia do convite permitir-
se seguir os descaminhos de outrem Quem enxerga deteacutem um conhecimento
distinto e junto com ele um poder pois natildeo se trata de uma experiecircncia de
conhecer pelo contraacuterio ela convida a abrir matildeo momentaneamente do que jaacute
sabemos para experimentar algo novo
Patriacutecia mdash Bem se eu soubesse que havia uma garrafa ali certamente teria
desviado
Andreacute mdash Ao mesmo tempo natildeo eacute como se fosse um mundo completamente
proibido Tem-se acesso a ele soacute que por uma via diversa da qual se estaacute
habituado Haacute aromas tipos de superfiacutecie ruiacutedos etc
Andreacute mdash Agora pensando um pouco na discussatildeo do iniacutecio a partir dessa
experiecircncia vocecircs conseguem relacionar com o que haviacuteamos conversado
Thayrine mdash Eu acho que sim por essa questatildeo de o homem abandonar uma
necessidade de controlar o conhecimento para algueacutem e deixar que a pessoa se
vire mas foi bem mais libertaacuterio nesse sentido Quando eu a guiei natildeo teve
nenhuma interferecircncia no que eu estava fazendo Ela realmente me deixou
fazer tudo Se no caso eu fizesse o papel de aluno
183
Andreacute mdash Um momento A meu ver se eu tomasse essa experiecircncia como uma
alegoria da sala de aula o professor seria o cego Natildeo eacute ele quem estaacute
conduzindo
Patriacutecia mdash Eu pensei o contraacuterio ao que vocecirc estaacute dizendo porque de certa
forma apesar de ele estar guiando eacute como se ele natildeo tivesse conhecimento
natildeo
Andreacute mdash Pode ser o guia tem um conhecimento assim como o guiado soacute
satildeo diferentes Interessante que mesmo eu orientando vocecircs para natildeo
interferirem por vezes sua visatildeo de guiada natildeo consegue se ausentar Isso faz
parte eacute uma tensatildeo na verdade entre controle e descontrole Nem um nem
outro mas ambos Esse eacute o desafio
Thayrine mdash Deixe-me ver se eu entendi A pessoa que estaacute enxergando abre
matildeo do seu conhecimento para deixar que o outro assuma Ou seja quem
enxerga tenta guiar de alguma forma
Patriacutecia mdash Eu concordo com ela
Andreacute mdash Difiacutecil natildeo guiar Estamos habituados a isso Tambeacutem tem o fato de
por mais que possa haver um esforccedilo de pacificaccedilatildeo eacute muito difiacutecil nos
anularmos totalmente Creio que natildeo eacute possiacutevel jamais saber todo o ministeacuterio
Pois bem muito bom poreacutem a hora urge alguma consideraccedilatildeo final
Patriacutecia mdash Gostaria de ressaltar que concordo com Thayrine O aluno vendado
eacute de certa forma o professor guiado justamente porque a pessoa que estaacute
sendo guiada abre matildeo de seu conhecimento para se permitir ser guiada pelo
outro Na verdade o outro mostra a vocecirc as necessidades dele para que vocecirc
possa em alguma medida interferir Natildeo incisiva mas participativamente
Thayrine mdash Tem outra questatildeo que parte do pressuposto de que vocecirc sabe
tem algum conhecimento que aquela pessoa natildeo tem O que estaacute vendo de
algum modo tem um conhecimento que o outro natildeo tem mas deixando-se
guiar percebe que a outra pessoa tambeacutem tem um conhecimento diferente do
seu Ah Eu estava sentindo as coisas de outra forma diferente de Patriacutecia eu
tinha que tocar em tudo eacute diferente
Patriacutecia mdash Eacute outra forma de vivenciar de encontrar o mesmo caminho soacute que
por outras vias
Neste ponto encerramos a atividade Interessante perceber como a questatildeo do
controle e descontrole tomou rumos proacuteprios Numa situaccedilatildeo com outras pessoas a
discussatildeo certamente seria distinta O bate-papo final durou 9 minutos e 6 segundos Ao
todo foram cerca de 45 minutos
Reflexatildeo com a experiecircncia
De todos os cinco sentidos a visatildeo talvez seja o mais exaltado em nossa sociedade
Afirmaccedilatildeo que pode ser verificada de muitas maneiras uma delas se refere agrave luz Ela que
eacute possibilidade de visatildeo nos eacute apresentada como algo fundamental tanto pela via sacra
quanto pela sinoniacutemia com razatildeo Em Gecircnesis Capiacutetulo 1 Versiacuteculo 3 (BIacuteBLIA 1962)
184
temos a famosa passagem ldquoFiat luxrdquo na qual a divindade faz com que haja luz em
detrimento das trevas e a partir desse ato haacute vida De modo semelhante ldquoa racionalidade
eacute vista como a essecircncia e o destino do ser humanordquo (BIESTA 2013 paacuteg 31) no seacuteculo
XVIII conhecido tambeacutem como Seacuteculo das Luzes
Esta sociedade que vecirc acaba se definindo entre os limites do alcance de sua visatildeo
E a luz ora pelos deuses ora pela razatildeo possibilita que se possa ver isto eacute definir
Quando Heidegger (2008 paacuteg 41) se refere agrave ciecircncia (intimamente relacionada com a
razatildeo) como a ldquoteoria do realrdquo ele dialoga diretamente com o homem que vecirc e que precisa
ver para ser homem
O homem que vecirc se habituou com a visatildeo ele entende o mundo a sua volta por
esse sentido Um haacutebito que lhe trouxe conforto e seguranccedila A ciecircncia com sua exatidatildeo
traz seguranccedila Nesse vieacutes a teoria do real apresenta reminiscecircncias do sentido do verbo
grego theoreacutein contemplar perceber observar mas tambeacutem consultar um oraacuteculo
(LIDDELL SCOTT 1940) A luz da razatildeo permite que o homem veja o real assim como
o oraacuteculo permitia que o homem soubesse o desiacutegnio dos deuses
Natildeo podia o homem grego ter acesso ao desiacutegnio dos deuses senatildeo pelo oraacuteculo
Natildeo pode o homem atual ter acesso a seu mundo senatildeo pela luz da razatildeo Biesta (2013)
reconhece que o problema do homem racional (ou humanismo) eacute sua normatizaccedilatildeo do
que significa ser humano e consequentemente como compreender seu mundo Para entatildeo
corresponder a essa questatildeo o autor vai propor repensar o que entendemos por homem
Todavia em vez de perguntar pelo que eacute o homem a pergunta agora interroga a respeito
de onde o homem se torna presenccedila
Uma mudanccedila nada banal de como lidar com a questatildeo Enquanto a primeira
remete a si ao homem que (se) vecirc a segunda remete ao outro ao lugar no qual o homem
que vecirc se encontra uma pergunta pelo ser a outra pela presenccedila Sutilmente a questatildeo
engendra outra perspectiva de se dispor a perguntar pelo ser que tambeacutem eacute ser da
presenccedila e pela presenccedila do ser Trata-se de enfoque afinal ambas as perguntas satildeo feitas
pelo homem atual a saber noacutes mesmos
Perguntar pela presenccedila tambeacutem pergunta pelo ser mas tentando resgatar o que
haacute de mais concreto e mais perto embora nem sempre acessiacutevel deste ser Quando se
pergunta pela presenccedila assume-se que a essecircncia estaacute aqui independentemente do que
se acredita que ela seja ou poderia ser Se algueacutem pergunta eacute porque quer saber algo mas
185
a pergunta pela presenccedila natildeo comporta a seguranccedila de uma definiccedilatildeo propotildee o convite
da visita agrave presenccedila do outro
Por visita novamente o professor Biesta (2013) nos esclarece uma importante
distinccedilatildeo entre empatia turismo e visita A empatia e o turismo eacute uma adequaccedilatildeo de
sujeitos a outros sujeitos A visita por outro lado tenta manter as distacircncias entre cada
parte envolvida em um lugar comum Desta forma eacute assumido o desafio de amar o
proacuteximo como o proacuteximo que ele eacute ao inveacutes de como noacutes mesmos impondo ao outro
nossa forma de ver o mundo
O que podemos fazer sem luz Danccedilar eacute uma possibilidade O danccedilarino que olha
para os proacuteprios peacutes natildeo estaacute a danccedilar pois estaacute ocupado a olhar para os peacutes O deus que
danccedila (NIETZSCHE 1981) nunca sequer os viu ele confia no chatildeo e no ritmo
Naturalmente esta confianccedila natildeo vem sem risco Noacutes mortais mais do que os deuses
estamos sujeitos agrave violecircncia do mundo queremos possuir o diferente para nos
salvaguardar do que nos desafia irrita perturba (BIESTA 2013) e mata
Logo natildeo ver ou abrir matildeo da visatildeo natildeo pode ser resolvido num mero acender
ou apagar das lamparinas Eacute abraccedilar uma realidade com espinhos e perceber que nem tudo
poderaacute ser calculado e muito menos medido pela sua funcionalidade O homem que natildeo
valoriza a inutilidade vecirc a danccedila unicamente como adequaccedilatildeo aos passos coreograacuteficos
ele natildeo tem tempo para perder tempo para suspender o tempo fabril (MASSCHELEIN
2010) e experienciar a brevidade do mundo para arriscar e provar e natildeo gostar e
recomeccedilar de outra maneira Natildeo eacute capricho do cego danccedilar sem ver Assim como natildeo
devemos encarar a suspensatildeo da visatildeo como excentricidade mas sim por uma visita
(BIESTA 2013) a lidar com um mundo que natildeo conhecemos nem podemos conhecer
186
Consideraccedilotildees finais
Em linhas gerais tentamos relacionar entre si trecircs questotildees principais com o
intuito de habitar o terreno das praacuteticas mais adiante o que eacute tradiccedilatildeo o que eacute filosofia e
o que eacute linguagem Naturalmente que haacute uma infinidade de respostas Ratificando a accedilatildeo
de convidar seguem alguns encaminhamentos possiacuteveis que iratildeo ajudar na compreensatildeo
deste trabalho
A tradiccedilatildeo e o ensino andam juntos Este transmite a mensagem que aquele deixou
ao longo dos anos Concomitantemente aprendemos a crer na tradiccedilatildeo e em sua
transmissibilidade O modo como encaramos um natildeo se distancia muito do jeito que
lidamos com o outro a tal ponto que o ensino da tradiccedilatildeo se confunde com a tradiccedilatildeo do
ensino Nesse sentido natildeo eacute de se espantar que partir para estranhos rumos e diferentes
rotas gere algum abalo na maneira tradicional de ver as coisas Numa perspectiva mais
ampla somos e natildeo somos nossos pais assim como nossos filhos estatildeo destinados a ser
e natildeo ser agrave nossa imagem e semelhanccedila Nem a mensagem a ser transmitida costuma ser
assimilada de forma tatildeo inoacutecua sem alguma coisa de maacutecula e invencionice Por esse
motivo certo descontrole eacute mais do que bem-vindo eacute essencial
Prosseguindo o desenvolvimento das questotildees com as quais buscamos
familiaridade e em se tratando de experiecircncias de base filosoacutefica eacute interessante se
perguntar pela tradiccedilatildeo da filosofia Normalmente conceituaccedilotildees complexas e a sisudez
em seu trato se afinam com a filosofia e em contrapartida uma postura poeacutetica ou menos
centrada no conceito tendem a atrair repulsa O que chamamos de filosofia nem sempre
teve entendimentos afins com os atuais Nomeaccedilatildeo que instigava ideologias distintas sob
semelhante alcunha Inclusive aquelas definiccedilotildees e anedotas filosoacuteficas passaram por
modificaccedilotildees e solidificaccedilotildees no imaginaacuterio do pensamento de tal modo que pensar
aqueacutem ou aleacutem delas torna-se um esforccedilo tremendo
Refazer os passos que nos pisaram pisam e pisamos eacute conveniente Desde a
segregaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel ateacute o estabelecimento do domiacutenio da razatildeo o
pensamento soube se definir Eacute preciso desaprender Se o poeta foi expulso e com ele o
modo de ser poeacutetico tambeacutem a filosofia natildeo se encontra em bons lenccediloacuteis Achincalhada
de sandice e coroada de matildee de todas as ciecircncias enquanto foi esquecida propositalmente
187
no asilo das irrelevacircncias pelos filhos ingratos a maneira de dizer filosoacutefica eacute esvaziada
de importacircncia e soacute um pensamento disposto a pensar-se isto eacute uma filosofia capaz de
se questionar filosoficamente pode ousar um espaccedilo em nossa sociedade do controle
Conclui-se portanto que natildeo existe nada como uma existecircncia sem sentido Todo
existir significa um jeito de ver sentir pensar enfim ser A criacutetica da tradiccedilatildeo e
consequentemente da tradiccedilatildeo do pensamento estaacute intimamente vinculada com a criacutetica
de como somos o que somos Em outras palavras eacute perguntar o que eacute o ser a partir de
como se eacute Como natildeo deixar nossas respostas virarem soluccedilotildees mas permitirem a
recolocaccedilatildeo da questatildeo Como dizer sem definir nomear sem classificar Natildeo haacute
resultados garantidos soacute o horizonte e o misteacuterio que tanto esconde e nega quanto mostra
e ensina ldquoQuem quer passar aleacutem do Bojador Tem que passar aleacutem da dorrdquo (PESSOA
1934 paacuteg 64)
188
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lthttpdepositodocalvinblogspotcombr200506gt Acesso em 05 out 2017
O ENSINO DE FILOSOFIA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA POEacuteTICA
Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal
de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca
CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre
Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto
Rio de Janeiro
Outubro de 2017
DEDICATOacuteRIA
Agrave memoacuteria parte viva da tradiccedilatildeo de Maria da Guia
Motta de Oliveira Aladino Alexandrino da
Purificaccedilatildeo Antonio Borges de Oliveira e Ana Maria
Borges de Oliveira avoacutes maternos e paternos
respectivamente
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a todos por terem vindo agradeccedilo agravequeles que natildeo puderam mas
gostariam de ter vindo e agradeccedilo por isto aqui minha Dissertaccedilatildeo Agradecer por uma
obra sua parece estranho e ao mesmo tempo natildeo digo isso soacute por educaccedilatildeo claro
tambeacutem por educaccedilatildeo por gentileza em reconhecer o delicado gesto do deslocamento e
da disponibilidade de tempo que me concedem Mas principalmente pelo fato de
enxergar neste trabalho vaacuterias vozes vaacuterias matildeos e uma assinatura apenas que natildeo daacute
conta da magnitude das contribuiccedilotildees em sua na confecccedilatildeo
Para quem eacute daacute aacuterea quase como um bordatildeo eacute comum ouvirmos agradecer eacute
pensar (HEIDEGGER 1977b paacuteg 330) Por que isso Qual a semelhanccedila entre os dois
verbos No caso o autor tinha sido homenageado com o tiacutetulo de cidadatildeo honoraacuteria de
sua cidade natal Aqui vocecircs me homenageiam assistindo agrave Defesa que haacute de conceder-
me o tiacutetulo de Mestre reafirmando o lugar no qual jaacute me encontro e moro haacute tempos
O que faccedilo natildeo eacute senatildeo reconhecer a minha e a nossa parte algo que natildeo acontece
automaticamente que natildeo cai na leviandade das palavras apressadas na correria que mal
tem tempo para os amigos e o pensamento O que faccedilo eacute pensar com e para vocecircs o
movimento de gratidatildeo doaccedilatildeo e gratuidade de parar e atentar e ousar dizer sem exigir
uma troca mas recebendo os frutos do empenho como quem aceita das matildeos familiares
um presente inesperado
Entre agradecer e pensar em portuguecircs carece o gracejo da semelhanccedila musical
do alematildeo Sim o alematildeo tem sua graccedila tambeacutem As palavras danken e denken significam
respectivamente agradecer e pensar mas por outro lado falta nelas o desafio o esforccedilo
de ligar esses dois sentidos aparentemente distantes Agradecemos o bom dia o aceno de
matildeo aquele ou este obseacutequio ao mesmo tempo em que somos capazes de esquecer o
porquecirc disso tudo E por vezes calamos e estamos profundamente gratos
Dizemos que pensamos nisso ou naquilo pensamos quando achamos que vamos
sair mais agrave tarde sem contar com a chuva Pensamos quando lembramos da tarefa de casa
tal estante a pregar tal moacutevel a mudar de lugar Pensamos quando calculamos as contas
que faltam pagar e quando raciocinamos que uma escola distante do lar pode ser a melhor
opccedilatildeo para nossos filhos Pensamos e somos capazes de nos esquecer no processo
acabamos pensando sempre para fora a resolver a supor mas nunca ou raras vezes a ser
e saber o que somos e o que nos motiva a continuar a pensar Isso porque
corriqueiramente pensamos sem agradecer e agradecemos sem pensar Quero natildeo faltar
com essa moeda a vocecircs com essa dupla face que se desdobra e se encara Moeda
amassada e dobrada sem valor no mercado mas muito importante para o mercado para
os homens para a cultura pensamento e agradecimento
Como eu havia dito esta tambeacutem eacute minha cidade meu lugar de conforto meu lar
e minhas ideias Vocecircs satildeo desde antes da escrita uma disposiccedilatildeo para pensar e um
pensamento disposto a agradecer o que muda depois da escrita Nada e tudo Hoje se
encerra um ciclo poreacutem ciacuterculo que eacute ciacuterculo nunca acaba Ele gira ele roda enquanto o
centro permanece e possibilita a circulaccedilatildeo assim como a circulaccedilatildeo daacute sentido ao centro
irradiador
O Misteacuterio mora
Girando na roda o homem danccedila e ignora
Mas o Misteacuterio mora no meio e memora (FROST 1942 paacuteg 71 ndash traduccedilatildeo
de Andreacute Borges e Thayrine Kleinsorgen)1
Ainda assim alguns talvez natildeo conheccedilam do que trata o mutiratildeo que conduziu ateacute
a Dissertaccedilatildeo Eis o percurso tradiccedilatildeo filosofia e linguagem Disso meu trabalho fala a
respeito A parte de vocecircs Bem vocecircs satildeo a tradiccedilatildeo que quer se perpetuar e o ensino
que se esforccedila para que isso aconteccedila Satildeo a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo e sua mensagem dando
possibilidade para a criaccedilatildeo de novas coisas novas operaccedilotildees novas dissertaccedilotildees
Enquanto processava essas informaccedilotildees fiz um percurso ateacute meus 20 anos para o
iniacutecio da faculdade de Letras continuei ateacute os 18 ainda na faculdade de Filosofia e natildeo
parei esbarrando em Platatildeo e em sua filosofia que convenhamos eacute ainda a nossa
filosofia Eacute e natildeo eacute De Platatildeo a Heraacuteclito dei a volta para chegar agrave poesia ao dizer poeacutetico
a uma poeacutetica que natildeo eacute papo de quem nunca trabalhou de verdade mas de quem trabalha
com a verdade em sua multiplicidade e concretude
Vocecircs estavam juntos sem o saber ou sabendo Foi uma conversa aqui uma ajuda
com uma traduccedilatildeo ali muitas negativas e ausecircncias Cada pedaccedilo de texto eacute um bordado
a vaacuterias matildeos um diaacutelogo cujas vozes eu ouvia e caacute estou a dividir com vocecircs minha
esquizofrenia salutar A sauacutede convulsionante desses uacuteltimos tempos deixa uma
1 The Secret sits We dance round in a ring and suppose But the Secret sits in the middle and knows
significante marca a ferro na histoacuteria da minha vida de modo que natildeo seria possiacutevel nem
que eu quisesse nem que eu fosse desonesto comigo mesmo prosseguir sem que se
tornasse notaacutevel a boiada agrave qual faccedilo parte
Pensa quem agradece logo porque agradeccedilo penso A travessia que fiz e faccedilo eacute
nossa e minha Ela eacute sempre de dois dois extremos duas margens Atravessar por outro
lado eacute algo solitariamente proacuteprio Ningueacutem pode atravessar por mim Podem sim me
ensinar podem me carregar mas quem atravessa sou eu Eu atravesso e sou atravessado
pela travessia que satildeo duas que somos noacutes e em alguma medida nenhum de noacutes A
terceira margem de um extremo eacute o local ao qual natildeo temos acesso mas fazemos parte
sem saber sem querer sem buscar Acham mesmo que eu esperava fazer o que fiz
Acham mesmo que algueacutem faz exatamente o que planejou O ponto de chegada nunca eacute
aquele da partida
A terceira margem embora natildeo exista como um local fiacutesico eacute de uma
espacialidade presente esse lugar que estamos quase chegando poreacutem nunca aportamos
de fato Sabe quando terminamos algo mas na verdade sabemos que daria para fazer
mais alguma coisinha mais uma pincelada de tinta mais uma frase soacute um minutinho a
mais Isso eacute porque sempre haacute o que fazer sempre haacute aonde chegar Esta Dissertaccedilatildeo natildeo
eacute um comeccedilo natildeo eacute certamente um fim ela eacute um encaminhamento uma possibilidade
ela estaacute sendo feita ainda e jaacute foi concluiacuteda tempos atraacutes em certo sentido
Ela existe para mim e independente de mim um convite a vocecircs e inegavelmente
um convite a mim Se eu agora a relesse toda faria outra Dissertaccedilatildeo completamente
diferente Natildeo por discordacircncia mas porque depois dela depois de vocecircs depois de tudo
que nos atravessa jamais daria para repetir e concordar em absoluto com o que estaacute aqui
Mesmo assim talvez ateacute pelo carinho que tenha pelos presentes foi um enorme prazer
escrever
Prazer e dor Nunca foi tatildeo difiacutecil olhar no espelho Como quem envelhece dez
anos em dez meses como uma necessidade boa mas um fardo obrigatoacuterio escrever eacute ter
de lidar com todos nossos monstros e heroacuteis Algo do medo das primeiras vezes sabe-
se laacute o que pode acontecer Aquela primeira vez que andamos sem nossos pais na rua
quando a responsabilidade precisa ser assumida ainda que seja para comprar algumas
balas Em cada decisatildeo uma monstruosidade estaacute agrave espreita e temos medo
Nas histoacuterias em quadrinhos em geral aparecem os heroacuteis que salvam o dia Na
histoacuteria contada nestas paacuteginas dissertativas heroacutei e monstro salvam-se um ao outro
Afinal haacute alguma proximidade entre eles Ambos desafiam os limites estabelecidos por
isso tecircm de lidar com a criaccedilatildeo esse mundo desbravado e com a tradiccedilatildeo aquilo a ser
testado ao extremo Monstro e heroacutei satildeo aspectos diferentes da mesma dobradura de
paacutegina O que seria do Superman sem o Lex Lutor para que aquele pudesse ser super O
que seria do inimigo sem o guerreiro para fazer frente Teriacuteamos que aceitaacute-lo passivos
passividade terminal doenccedila Natildeo o caminho proposto traz agrave tona toda a tensatildeo que
qualquer boa conversa deve ter duas vozes que se completam em uma
Nesse sentido heroacutei eacute soacute um desdobramento nosso Assim como o monstro
Aquilo que talvez ainda natildeo sejamos mais almejamos e repudiamos Aquela presenccedila
que nos incomoda e nos mostra tudo o que somos e podemos ser Cada um de vocecircs que
compotildee minha escrita forccedilou-me agrave beira do que sou tanto que esgarcei e estou tranquilo
Fiz o que pude agrave luz de tatildeo heroica e monstruosa visatildeo
Com o intuito de dar um exemplo vivo do que falo trago uma anedota Numa
mesa de restaurante certa vez falava e ouvia com um amigo Ele relatava sua histoacuteria e as
personagens principais nela Ora tinham vilotildees e mocinhos ora as mesmas figuras
desempenhavam papeis diferentes hoje elas permaneceram fazendo dele o que ele ainda
eacute Pude assistir a tudo e refletir quais seriam meus protagonistas O tempo trouxe alguns
rostos agrave memoacuteria outros ficaram esquecidos Suas influecircncias nem sempre seratildeo
lembradas por mim mas nem por isso elas deixaratildeo de estar presentes Natildeo paro de
aprender com meus mestres sem nome e aos que tenho como nomear tento deixar
subentendido para natildeo deixaacute-los vaidosos e envergonhados Silenciosamente contorno a
gigantesca daacutediva a enorme diacutevida cuidando para natildeo tropeccedilar nas palavras gratuitas e
nos elogios vazios Busco a homenagem precisa meliacuteflua e perspicaz sem a
obrigatoriedade de deixar claros os rastros da minha monumental gratidatildeo Ao misteacuterio
fique relegada toda a verdade De modo sorrateiro deixo duas pegadas para cada passo
reverberando feito corajosa lira os sons delicados de gatos no jardim entre assumpta
figueira e oliveiras ao largo da almeida do barco do desbravador
Tive sorte e por isso agradeccedilo Fui afortunado por compartilhar meus
pensamentos Aquele menino que viu o Peleacute jamais jogaraacute bola do mesmo jeito
Lembram-se quando ainda estavam inseguros ou quando acreditavam jaacute saber fazer algo
e viram um grande mestre reinventar a roda Seja vendo sua avoacute cozinhar sua matildee trocar
a frauda de seu receacutem-nascido ou soacute um amigo mais velho a dividir suas histoacuterias
heroicamente o diaacutelogo se estabelece e vocecirc acaba de ser atravessado por ele Soacute resta
reaprender a viver depois disso Obrigado
Dedico este texto em profundo agradecimento aos seguintes nomes presentes na
minha Defesa
Adriano Furtado Hugo Afonso Correia de Almeida
Alice Bentzen Assumpccedilatildeo Isabella Daemon
Amanda Falconi Jessica Natarelli
Ana Cristina Gelape Julia Hortecircncia Carvalho Nascimento
Antonio Jardim Maria Lucia de Oliveira da Purificaccedilatildeo Marinho Pereira
Baacuterbara Martins Pedro Trajano Cardoso
Caio Cruz Priscila Loureiro
Denilson Marinho Pereira Rafael Barbosa
Diogo Santos Rodrigo Marques de Carvalho
Eduardo Gatto Thayrine Kleinsorgen de Almeida Cruz
Felipe Forain Marques Viniacutecius de Figueiredo Barbosa
Giovanna Giffoni
E agraves presenccedilas ausentes que contribuiacuteram para este trabalho
Allan Charles Marcus Caetano
Andreacute Viniacutecius Lira Costa Marcus Erbas
Andreacuteia Pedroso Mariana Borges de Oliveira
Carla Rodriguez Mariana Rodrigues
Daniel Forain Nicole de Oliveira
Edna Oliacutempia Patriacutecia Trajano Cardoso
Edson de Almeida Ramos Rafael Lemos
Felipe Copque Rodrigo Wentzel
Fernanda Fonseca Silvia Herkenhoff Carijoacute
Fernando Sampaio Taynaacute Rosa
Flaacutevio Chame Thiago Pereira
Gabriel Torres Vanise Dutra
Gabriela Borges de Oliveira Walter Kohan
Guiomar Borges Yasmin Motta
Ivana Machado Demais profissionais que me auxiliaram
Liacutevia Egger Demais professores que me formaram
Luiacutes Antocircnio Borges de Oliveira Demais amigos que me constituiacuteram
Manuel Antocircnio de Castro Demais familiares que me possibilitaram
EPIacuteGRAFE
Aacutervore genealoacutegica
A mais frondosa aacutervore da cidade
Eacute a aacutervore que jaz no cemiteacuterio
Seu viccedilo traz de longe uma saudade
Que a bruma envolve toda em misteacuterio
A seiva lembra sangue escurecido
Sangue que me sangra jaacute esquecido
Do pai do pai do pai (um fruto antigo)
Que crava suas raiacutezes laacute em Vigo
Comer a carne doce recolhida nesse horto
Eacute devorar um violado corpo (morto morto morto)
Que restou de um ancestral
Thayrine Kleinsorgen
RESUMO
O ensino de filosofia a partir de uma perspectiva poeacutetica
Questionamento acerca da concepccedilatildeo de filosofia que resgate sua afinidade
originaacuteria com a poesia a fim de que se compunha um ensino galgado na criaccedilatildeo ao inveacutes
da reproduccedilatildeo Por ser uma disciplina estigmatizada de obscura de inuacutetil e de pouco
importante numa compreensatildeo praacutetica e objetiva natildeo eacute de se espantar que isso influencie
diretamente seu ensino logo conveacutem se perguntar sobre nossa ideia de tradiccedilatildeo e
consequentemente da possibilidade ou natildeo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo pelo ensino
Naturalmente que a proacutepria tradiccedilatildeo da filosofia natildeo poderia ser deixada de lado Aleacutem
do mais eacute possiacutevel constatar que parte do caraacuteter segregante com a qual a filosofia eacute
relacionada tem um fundamento em sua histoacuteria com a separaccedilatildeo do poeta e da cidade e
da realidade sensiacutevel e inteligiacutevel Portanto recriar a ponte partida entre pensamento e
poesia significa tanto ousar uma nova postura diante da realidade quanto retomar sentidos
adormecidos na linguagem cotidiana Por fim fica patente que determinadas amarras
estatildeo presas demais para abrirmos matildeo mas outras nem tanto e ambas fazem parte do
que nos constitui Ou seja aceitar nossos limites enquanto o que nos fundamenta e daacute
sentido e natildeo apenas um cerceamento mas uma resposta que tanto define algo quanto
recoloca a questatildeo fundadora numa perspectiva singular torna-se postura essencial para
uma poeacutetico-filosofia
Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem
ABSTRACT
The teaching of philosophy from a poetic perspective
Questioning about the conception of philosophy that rescues its original affinity
with poetry in order to teach based in creation rather than reproduction Because it is a
discipline that is stigmatized as obscure useless and unimportant in a practical and
objective understanding itrsquos not surprising that this directly influences its teaching so
one has to ask about our idea of tradition and consequently the possibility of
transmission of tradition through teaching Of course the very tradition of philosophy
could not be left aside Moreover it can be seen that part of the segregating character
which philosophy is related has a foundation in its history with the separation of the poet
and the city and the sensible and intelligible reality Therefore re-creating the bridge
between thought and poetry means both to dare a new attitude towards reality and to
return to the dormant senses in everyday language Finally it becomes clear that certain
moorings are too fastened to give up but others not so much and both are part of what
constitutes us That is to accept our limits as what gives us meaning and not only a
restriction but an answer that both defines something and replaces the founding question
in a singular perspective becomes an essential posture for a poetic-philosophy
Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
Figura 1 ndash As quatro influecircncias 75
Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna 77
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 15 1 Pensando a Educaccedilatildeo 20 11 O ensino decide por dizer 20 111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc 22
112 Um saber que rasga 26 113 Natildeo ensinar e a ciecircncia 33 114 O jogo do poeta e da infacircncia 38 12 A tradiccedilatildeo 40 121 Quando o poeacutetico repousa esquecido 42
122 A ideia e o ser 43
123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo 46
124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo 49 125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo 52 126 Os mutirotildees do homem 55 2 Pensando a Filosofia 57
21 A filosofia como resposta 57 22 Filosofia inteligecircncia e entendimento 60
221 Ciecircncia e intelecto 72 23 Crenccedila e conjectura 73 24 Filosofia e opiniatildeo 80
25 Diaacutelogo e filosofia 85 3 Pensando a Linguagem 96
31 Linguagem e limite 101
32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem 106
33 O limite da resposta 110 34 A resposta do limite 115 35 Dois lados da mesma moeda 118 351 A resposta que natildeo soluciona 118
352 Temor sagrado 121 353 O que responde o sagrado 125 Consideraccedilotildees Finais 131 Referecircncias 137 Apecircndice 150
15
Introduccedilatildeo
Pensar uma educaccedilatildeo para aleacutem do controle eacute um desafio Os perigos satildeo os mais
diversos pois somos criados na mesma tradiccedilatildeo que agora pretendemos criticar
Diferente de outros temas ndash mais abstratos ou distantes historicamente ndash este apresenta
claro como o sol nossa relaccedilatildeo intriacutenseca com ele Somos filhos netos e pais de um
modelo educacional que compreende como fundamental a transmissatildeo de um
conhecimento das antigas para as novas geraccedilotildees
E qual natildeo seria o papel da educaccedilatildeo senatildeo este o de transmitir saberes valores
o de fornecer proteccedilatildeo e preparaccedilatildeo para uma realidade cada vez mais exigente e
competitiva A responsabilidade que a sociedade coloca e cobra da escola e
consequentemente dos professores se justifica por essas mesmas razotildees Por que entatildeo
natildeo seria um desserviccedilo questionar esse esquema que legitima os fundamentos da proacutepria
noccedilatildeo contemporacircnea de vida conjunta
Somos crias desse sistema e por isso aprendemos sempre a perguntar pela
funcionalidade das coisas o para quecirc serve isso ou aquilo evidentemente com a
educaccedilatildeo natildeo seria diferente Eacute nesse sentido principalmente que se torna desafiante
pensar a educaccedilatildeo movimento de des-afiar desfiar desafianccedilar de natildeo manter a
fidelidade com o desafiado (HOUAISS 2009a Desafiar) ou seja fazer o corte
delimitador entre o que somos e o natildeo ser Em outras palavras o desafio de pensar a
educaccedilatildeo caminha pelos limites que entrecortam os porquecircs de ensinar e aprender o que
ocasiona esses porquecircs e como podemos corresponder a eles
Eis que aceitando o convite do desafio da educaccedilatildeo deparamo-nos com o
seguinte impasse eacute possiacutevel abrir matildeo do controle Falar dos limites natildeo eacute a princiacutepio
o mesmo que falar da posse controladora Seacuteculos de metafiacutesica tecircm-nos confundido
quanto a isso e facilmente assumimos que controlar algo eacute limitaacute-lo como se nossa
vontade fosse decisiva para validar ou natildeo a sua existecircncia
Controla-se para dar sentidos O que estaacute dentro da cerca eacute nosso o que estaacute fora
eacute natildeo nosso outra coisa que estaacute sempre a rivalizar com as cercanias do que existe meu
mundo nosso mundo o mundo ocidental A esta forma de controle especiacutefica do
Ocidente chama-se ciecircncia ldquoa teoria do realrdquo (HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Um modo
16
peculiar de dizer o que algo eacute conferindo-lhe existecircncia cientiacutefica a partir da descriccedilatildeo
de suas partes de nuacutemeros que a representem matematicamente de utilidade na maacutequina
mantenedora da seduccedilatildeo da crenccedila pelo controle etc
Assim os limites da φύσις do real tornam-se os limites no real na φύσις como
cessaccedilatildeo do fluxo de acontecimentos em prol da seguranccedila da estatiacutestica 99 precisa
margem beirando o inalcanccedilaacutevel 0 Questionando junto com Fernando Pessoa (2006 paacuteg
62) o que eacute o zero na realidade Assim a ciecircncia eacute a seguranccedila de um pensamento uacutetil
capaz de servir a propoacutesitos dos mais diversos que depois seraacute colocado agrave disposiccedilatildeo
para por precauccedilatildeo posterior usufruto
Natildeo se admira que a educaccedilatildeo de algo possa ser transmitida pois acredita-se na
confecccedilatildeo de uma mensagem que atravessa de preferecircncia incoacutelume de um remetente a
um destinataacuterio Quer dizer que natildeo haacute mensagens Que nada pode ser ensinado e
aprendido Seria relativizar demais a discussatildeo e caminhar atraacutes do proacuteprio rabo para no
fim alcanccedilar quando muito o comeccedilo improfiacutecuo Natildeo aqui se refere agrave crenccedila na
mensagem
Certa tolice certa inocecircncia que nos acompanha eacute a de que podemos fazer
qualquer coisa conforme a planejamos Ter esperanccedilas e fazer planos para a realizaccedilatildeo do
sonho aparece neste trabalho tatildeo proacutepria aos entes quanto suas falhas incessantes e ainda
assim ldquoentre fazer e natildeo fazerrdquo
O artista inconfessaacutevel
Fazer o que seja eacute inuacutetil
Natildeo fazer nada eacute inuacutetil
Mas entre fazer e natildeo fazer
mais vale o inuacutetil do fazer
Mas natildeo fazer para esquecer
que eacute inuacutetil nunca o esquecer
Mas fazer o inuacutetil sabendo
que ele eacute inuacutetil e bem sabendo
que eacute inuacutetil e que seu sentido
natildeo seraacute sequer pressentido
fazer porque ele eacute mais difiacutecil
do que natildeo fazer e dificil-
mente se poderaacute dizer
com mais desdeacutem ou entatildeo dizer
mais direto ao leitor Ningueacutem
que o feito o foi para ningueacutem (MELO NETO 1975 paacuteg 30)
17
Natildeo haacute controle com o que se aprende Planejamos com cuidado uma aula
confiamos que nossos caacutelculos daratildeo certo mas em verdade natildeo importam quais os
dispositivos de controle utilizados todos estaratildeo sujeitos aos limites impostos pela
corrente de acontecimentos incertezas e impossibilidades a que chamamos real Natildeo agrave
toa a compreensatildeo mais tradicional de ensino estaacute calcada na ideia da transmissatildeo de um
conteuacutedo Nesse sentido questionar a extensatildeo de um controle eacute sim um risco ao
sustentaacuteculo da crenccedila na mensagem Isso passa por uma criacutetica da tradiccedilatildeo jaacute que ficaria
difiacutecil sem ela pois esta eacute nossa histoacuteria nosso modo de ver as coisas
Abrir matildeo do controle natildeo eacute abrir matildeo dos limites Que a questatildeo se torne pois
como agir diante do que se aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente
ele natildeo eacute Os limites satildeo tatildeo impostos pela tradiccedilatildeo quanto pelo saber atual Diga-se de
passagem tradiccedilatildeo e atualidade natildeo satildeo completamente distintas uma da outra
Numa outra concepccedilatildeo esquecida no uso mais habitual haacute a palavra poeacutetica que
brinca com os controles e alarga os limites Laacute jazem outros tempos outras liacutenguas que
aqui nos achegam como convites de pensamento Uma tradiccedilatildeo que eacute traditio uma
traditio que eacute traiccedilatildeo Perpetremos a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo enquanto mutiratildeo de todos pois
ontoloacutegica e etimologicamente todas as palavras se imiscuem e se dizem de modos
singulares
Ideias estranhas numa trajetoacuteria de conhecimento linear Entretanto quando nos
defrontamos com um saber que sabe porque vecirc e soacute vecirc porque sabe o que antes causava
estranheza pode suscitar sentido Compreensatildeo que natildeo se fia no controle mas que
delimita e por isso constitui uma existecircncia pela experiecircncia com algo
Um limite que marca sem controlar uma ideia que natildeo se restringe agrave sua
inteligibilidade mas que se apresenta como verdade que demarca uma manifestaccedilatildeo no
real Sem certo ou errado a priori apenas eacute Apenas natildeo como o que se esvai na
banalidade do sem importacircncia mas denso e simples como a dor de topar numa pedra
como se ela inanimada pudesse gritar caacute eu estou acolaacute tu
Ao aceitar o desafio que a educaccedilatildeo exige arrisca-se no estrangeiro do caminho
aquilo que natildeo conhecemos Postura essa conveniente se quisermos enveredar por
assuntos pouco visitados por exemplo a filosofia em tempos de crise do pensamento Isso
significa tratar de uma temaacutetica fora dos paradigmas sem os quais nos acostumamos a
fim de natildeo soacute educar de modo diverso mas concretamente diverso
18
A filosofia jaacute possuiu uma conduta puacuteblica e sua praacutetica era indicada para entre
outras coisas uma vida feliz e um Estado profiacutecuo Atualmente contudo atende a
indiviacuteduos e suas curiosidades ou assombra a escrita destinada agrave gaveta de algum
acadecircmico Em meio agrave tecnocracia ela natildeo tem mais vias praacuteticas de atuaccedilatildeo ou pelo
menos essa eacute a compreensatildeo corrente Isso porque eacute difiacutecil precisar sua funccedilatildeo e
consequentemente duro eacute o ensino que natildeo se fia no para quecirc ensinar
Vale se for para a prova mas apenas para a prova Vale se for soacute por saber desses
somentes simploacuterios e ociosos de sentido Vale pelas vias da utilidade que sem ela nada
presta Afinal qual o ofiacutecio do filoacutesofo ou do poeta O que um pensador faz constroacutei ou
salva A imaterialidade da obra da filosofia eacute mal vista no mundo materialista Ainda por
cima desde seus tempos de gloacuteria ela escolheu por amizade determinados saberes pondo
de lado sua origem poeacutetico-mitoloacutegica como deixou expresso Platatildeo (1987 paacuteg 473) em
sua rixa com Homero o poeta por excelecircncia
Destrinchando a carne disciplinando o conhecimento o saber filosoacutefico platocircnico
hierarquizou a apreensatildeo que eacute feita da realidade e com isso criou uma das bases para o
controle da verdade que mais tarde chamaremos de ciecircncia Etapa por etapa o homem
poderia evoluir a comeccedilar pelo lodo (sic) das sombras no interior da caverna onde soacute haacute
conjecturas e nenhuma verossimilhanccedila como se a verdade precisasse de espelhos e natildeo
fosse ela mesma presenccedila concreta Em seguida de imagens turvas fizeram-se formas
mais niacutetidas quiccedilaacute cores e principalmente crenccedila Eis a verdade persuasiva ou
verossimilhanccedila na qual o criacutevel era o foco natildeo verdadeiro
Tudo achismo conforme a velha filosofia Achar algo eacute natildeo saber natildeo ter
credibilidade soacute ser opiniatildeo o que pertence aos muitos mas natildeo a mim ndash o filoacutesofo
Depois que aqueles homens cavernosos se desprenderam dos grilhotildees da parede sombria
o redor deixa de ser encarado como a verdade mas apenas como uma representaccedilatildeo da
verdade Mal comparando antes as coisas eram sentidas manifestadas e pressentidas
agora elas seriam compreendidas intelectualmente de modo que natildeo se faz necessaacuterio
vivenciar cada manifestaccedilatildeo singular para se ter uma ideia do que se queria representar
Esse eacute o espectro inteligiacutevel do real
Todavia sejamos francos aiacute tambeacutem haacute uma hierarquia Entre as opiniotildees e a
verdade haacute o conhecimento de afinidade teacutecnica As abstraccedilotildees a um fim espelham-se no
ideal modelar para aplicaacute-lo nas mais diversas ocasiotildees Em outras palavras a finalidade
19
demonstra ainda certo apego ao sensiacutevel a um caso especiacutefico qualquer que deseja ser
solucionado Por isso que parte da tradiccedilatildeo reconhece nesse momento o geacutermen do
pensamento cientiacutefico
Ateacute que chegamos de fato agrave casa do filoacutesofo O topo da cadeia para o pensamento
de Platatildeo Quem deveria gerir os demais na cidade aquele mais distante do mundo das
manifestaccedilotildees Somos soacute representaccedilotildees da ideia natildeo manifestaacutevel O filoacutesofo traduziria
o ser representado e por isso deveria conduziria os homens
Sem perceber a filosofia se sabota Ao pronunciar-se aleacutem da arte inuacutetil a mesma
natildeo reconhece seu lado pouco praacutetico que demanda tempo tentativas e erros Com a
sedimentaccedilatildeo do domiacutenio da funcionalidade seu aprendizado torna-se estranho por natildeo
ser objetivo Por conseguinte ela eacute alijada do conviacutevio mundano juntamente com a
poesia que pela filosofia foi rejeitada Ambas estatildeo no canto da histoacuteria agrave margem da
ordem do dia Separadas elas foram banidas da πόλις e dificilmente juntas voltaratildeo agraves
graccedilas dela Tanto faz natildeo eacute o propoacutesito em vez disso busca-se reconhecer o vigor
originaacuterio tanto na filosofia quanto na poesia de dizer e nomear verdades
Em meio ao turbilhatildeo dos acontecimentos o silecircncio Um lugar onde a questatildeo
possa ser respondida sem a pressa de dar uma soluccedilatildeo mas com cuidado e esmero Sem
medo do erro mas tambeacutem com medo pois ele faz parte Natildeo haacute vida sem morte sagrado
sem temor nem sangue sem corte A tentativa de um ensino poeacutetico de filosofia natildeo eacute um
rabisco aleatoacuterio mas a alternativa possiacutevel de reconciliaccedilatildeo do que jaacute foi e em certa
medida estaacute inseparaacutevel
Nietzsche (1994 paacuteg 56) disse em uma ocasiatildeo muito proacutepria que soacute confiava no
que fosse escrito com sangue Jaacute se escreveu sulcando a pele de animais as cicatrizes
datam na carne um trauma do tempo e as tatuagens demarcam sentidos na ferida Todas
essas experiecircncias deixaram marcas imprimiram uma resposta num corpo de modo bem
concreto Assim se pretende uma filosofia poeacutetica uma tradiccedilatildeo poeacutetica e uma linguagem
poeacutetica que seja capaz de romper o limite instituiacutedo e assim engendrar novas limitaccedilotildees
abertura de possibilidades impingidas em ferro e fogo em controle e desafio em tradiccedilatildeo
e ensino em diaacutelogo paradoxal de limite e fundamento
20
1 Pensando a Educaccedilatildeo
11 O ensino decide por dizer
O ensino significa aqui estar na marca do pensamento Neste sentido este trabalho
natildeo trata de dizer como ou o que deve ser ensinado Ensinar natildeo se refere necessariamente
a o que aprender mas simplesmente a aprender A cada ensinamento algo eacute aprendido se
se faz o caminho do pensamento Enquanto o ensino convida a aprender ao convite se
corresponde como se pode ou seja a correspondecircncia ao ensino estaacute no acircmbito do que
natildeo temos controle
Natildeo haacute controle com o que se aprende Por mais elaborados que sejam os
esquemas e as metodologias nunca eacute garantido que determinado ensinamento seraacute
aprendido O ensino ndash enquanto crenccedila na apreensatildeo de um conteuacutedo isto eacute uma
concepccedilatildeo na qual se espera que algo seja compreendido logo aprendido e apreendido
pelo aluno ndash chama-se transmissatildeo do conhecimento
Para haver transmissatildeo eacute vital que algo possa ser transmitido como uma carta
inviolada entregue pelo carteiro diretamente do remetente ao destinataacuterio ou seja eacute
necessaacuterio que uma mensagem possa transitar preferencialmente incoacutelume de uma
pessoa para outra de uma geraccedilatildeo para outra Nesta perspectiva qualquer deslize a essa
mensagem qualquer sentido que fuja dos sentidos-modelo da mensagem que natildeo se
adeque agrave verdadeira mensagem estaacute incorreto e por isso seraacute evitado e ateacute mesmo
execrado pelos portadores da verdade enquanto transmissatildeo Assim tem sido ao longo da
histoacuteria para uma compreensatildeo mais tradicional da educaccedilatildeo com sutis mas sentidas
exceccedilotildees ateacute os dias atuais uma mensagem modelar e sua reproduccedilatildeo ditando o
significado de ensino
Somos seres que por milecircnios foram programados para concentrar-se em
determinadas possibilidades e obedecer a determinados princiacutepios Assim
fomos programados numa histoacuteria milenar a crer no progresso e a ter feacute no
poder da dominaccedilatildeo fomos programados para seguir modelos e obedecer a
paradigmas para cumprir ditados e aceitar tabus Numa palavra fomos
programados natildeo apenas para ter mas sobretudo para ser consciecircncia O
conteuacutedo que povoa nossa consciecircncia satildeo representaccedilotildees do que eacute do que
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foi e do que seraacute Satildeo representaccedilotildees do que pode ser do que vem a ser do que
deve ser Satildeo representaccedilotildees de crenccedilas e valores de anguacutestias e ansiedade de
dor e prazer de frustraccedilotildees e satisfaccedilotildees Satildeo representaccedilotildees de tudo Mas por
outro lado sempre em qualquer tempo em qualquer lugar ou condiccedilotildees os
homens natildeo satildeo apenas consciecircncia e representaccedilotildees (LEAtildeO 2003 paacuteg 18)
Quando abrimos matildeo da transmissatildeo abrimos matildeo do controle Contudo o
convite natildeo deixa de ser um juiacutezo Por exemplo quando chamamos algueacutem para uma
festa fazemos um convite Convidar natildeo eacute impor a presenccedila da pessoa mas demonstrar
sua importacircncia Tambeacutem acreditamos se convidamos com sinceridade que sua presenccedila
ali seraacute bem acolhida ainda que natildeo passe de uma suposiccedilatildeo podendo sua estadia naquele
evento festivo se revelar indesejada por uma ou ambas as partes envolvidas
A quem se predispotildee a ensinar conveacutem propor o convite Um juiacutezo cuidadoso
sobre o que como e a quem convidar mas que natildeo diz respeito a se e como o convite
seraacute aceito Julgar como quem toma uma decisatildeo como quem se avizinha da senda entre
dizer e natildeo dizer Uma decisatildeo natildeo pelo todo posto que natildeo se controla tudo mas acerca
de algo por aquele limite que marca e se arrisca na fronteira do dizer e do ensinar O
ensino decide por dizer O que ele diz
Eacute comum responder que praticamente tudo pode ser ensinado Ensina-se literatura
e filosofia como tambeacutem matemaacutetica fiacutesica e geografia O convite do ensino que
tambeacutem eacute uma decisatildeo remete a um conhecimento especiacutefico mas natildeo se restringe a ele
Ao decidir-se por ensinar algo leva-se em conta como proceder com esse ensinamento
ou seja sua metodologia traccedilam-se metas satildeo feitos planejamentos e promete-se aos
pais e agrave sociedade que aquele especiacutefico conteuacutedo seraacute transmitido
Todavia mesmo assim o ensino lida com imprevistos com o imprevisiacutevel
portanto a aprendizagem constantemente estaacute em tensatildeo entre o que achamos que eacute
possiacutevel transmitir e o que deixamos escapar agrave transmissatildeo seja por deslize seja por total
incapacidade de exercer qualquer saber ou conhecimento a respeito A pretensatildeo deste
trabalho eacute justamente lidar natildeo com a transmissatildeo mas com o ensino que estaacute sempre
condicionado ao natildeo ensinado ao natildeo ensinaacutevel ao natildeo dito em todo dizer
Ensinar diz e natildeo diz algo ensina e natildeo ensina alguma coisa demarcando um
saber em quem aprende O ensino aproxima um saber do aprendiz Ensinar en-sina in-
signum A palavra ensino eacute um substantivo formado por regressatildeo do verbo ensinar do
latim vulgar insigno ldquopocircr uma marca distinguir assinalarrdquo (HOUAISS 2009a) Por sua
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vez esse verbo latino proveacutem de sua forma erudita insignio ldquo1 Marcar com um traccedilo
caracteriacutestico meios de identidade 2 Marcar com aspas (em citaccedilotildees) 3 Adornar com
marcas honoriacuteficas 4 (transf) Tornar digno de nota ou notaacutevel marcar distinguirrdquo
(GLARE 1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)2
Literalmente ensino eacute se dispor agrave marca tanto demarcando uma caracteriacutestica em
algo ou algueacutem quanto a partir da marcaccedilatildeo fazer emergir essa distinccedilatildeo e diferenccedila
De modo menos literal marcar natildeo se refere a separar dos demais privando o que seja ndash
por estar marcado ndash de uma unidade agregadora refere-se contudo a identificar o que
ali se diz de modo singular em confluecircncia com outros dizeres
111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc
Assim faz-se um convite a pensar o ensino que distingue sem segregar Ensinar
sem se ater ao controle do conheciacutevel mas se esgueirando na fronteira neste rasgo
delimitador que daacute sentido ao sem sentido aos cem sentidos que a tudo iguala sem
distinccedilatildeo Distinguir sem segregar ocupa-se em natildeo esvaziar os modos proacuteprios de ser
em natildeo tornar cada ente distinto em peccedilas reproduziacuteveis para a sociedade Distinguir eacute
constituir a dignidade singular na dinacircmica do todo
A fim de esclarecer melhor a respeito da marca que jaz em todo ensino
debrucemo-nos um pouco mais sobre a palavra latina de modo a refazer as experiecircncias
de sentido que ela suscita Insignio eacute formada por regressatildeo da palavra insignitus ldquo1
Marcado com traccedilos caracteriacutesticos 2 Claramente definido ou caracterizado 3 Digno
de nota []rdquo (GLARE 1968 paacuteg 925 ndash traduccedilatildeo livre)3 cujo sentido ainda eacute bem
semelhante ao anteriormente descrito Esta palavra tem sua formaccedilatildeo atraveacutes da
composiccedilatildeo insigne + -itussup2
A palavra insigne eacute o neutro do adjetivo insignis que se junta a -itussup2 sufixo
formador de adjetivo que ldquoindica posse ou vestimentardquo (GLARE 1968 paacuteg 976 ndash
2 1 To mark with a characteristic feature means of identity 2 To mark with weals etc (in quots) 3 To
adorn with marks of honour 4 (transf) To make noteworthy or remarkable mark distinguish 3 1 Marked with distinctive features 2 Clearly defined or characterized 3 Noteworthy []
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traduccedilatildeo livre)4 Em insignis nota-se jaacute em suas primeiras entradas algo ainda natildeo
explorado quer dizer a distinccedilatildeo que traz agrave presenccedila por meio da visatildeo ldquo1 Claramente
visiacutevel ou reconheciacutevel 2 Facilmente apreensiacutevel 3 Notaacutevel em aparecircnciardquo (GLARE
1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)5
Na visatildeo da marca algo se faz facilmente presente distinccedilatildeo perceptiacutevel aos olhos
que passam No domiacutenio dos sentidos a visatildeo vige e a partir desta vigecircncia os contornos
que delimitam o que eacute digno de nota aparecem e definem o que eacute pela marca Na tradiccedilatildeo
do pensamento ocidental aparecendo em Platatildeo como um de seus conceitos
fundamentais a visatildeo exerce um papel crucial ldquoPlatatildeo chama esse perfil em que o
vigente mostra o que ele eacute de εἶδοςrdquo (HEIDEGGER 2002 paacuteg 45)
Εἶδος aparece diversas vezes na obra platocircnica e deu origem agrave palavra ideia em
portuguecircs que se tornou muito corriqueira hoje Em seu uso ordinaacuterio ter uma ideia se
assemelha ao aparecimento de uma imagem na mente do indiviacuteduo mas que remete a
uma representaccedilatildeo fora dela Todavia natildeo eacute esse o interesse aqui mas pretendemos sim
fazer o caminho de pensamento que a ideia (seja grega genericamente seja em Platatildeo)
nos convoca a percorrer No dicionaacuterio de grego εἶδος refere-se a ldquoaquilo que eacute visto
forma formatordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἶδος ndash traduccedilatildeo livre)6 do verbo εἴδω
ldquoseerdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἴδω)7 e οἶδα ldquoknowrdquo (LIDDELL SCOTT 1889
Οἶδα)8 respectivamente ver e saber
Essa eacute uma relaccedilatildeo peculiar uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc Agrave
primeira vista esse relacionamento entre ver e saber natildeo eacute muito claro basta pensarmos
que ver natildeo costuma ser o suficiente para justificar um saber Eacute preciso estudo foacutermulas
e um cabedal de teorias Ver tenderia a ser algo mais relacionado aos sentidos ao sensiacutevel
enquanto que saber estaria vinculado ao intelecto ao inteligiacutevel Seraacute possiacutevel
compreender esse mostrar que natildeo eacute incoacutelume que rasga seus contornos no real ao se
4 Denote possession or wearing 5 1 Clearly visible or recognizable 2 Easily apprehensible 3 Remarkable in appearance 6 That which is seen form shape Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999040057entry=ei)=dosgt Acesso em
27 set 2016 7 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3D233
0877ampredirect=truegt Acesso em 27 set 2016 8 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Doi)3
Ddagt Acesso em 27 set 2016
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fazer apreensiacutevel facilmente apreensiacutevel Como um disciacutepulo que aprende vendo seu
mestre εἶδος monta um cenaacuterio cujo saber se constitui como tal no acircmbito da visatildeo A
experiecircncia de ver proporciona a princiacutepio um saber imediato sem intermeacutedios do que
natildeo estaacute ali na exigecircncia do olhar em referecircncia apenas agrave visatildeo e disposta a apreender
seu ensinamento concreto
Nenhum sentido iacutentimo nenhum aleacutem atraacutes para fora da proacutepria coisa Ser
uma coisa esta coisa eacute natildeo ser susceptiacutevel de outra interpretaccedilatildeo aleacutem desta
que ela necessariamente jaacute eacute para poder ser isso que eacute Assim neste sentido
toda coisa tudo eacute precisa ser singela franciscana superfiacutecie Sim os gregos
foram superficiais muito superficiais ndash por profundeza lsquoaus Tiefersquo (FOGEL
2007 paacuteg 48 ndash grifos no original)
O ver traz agrave tona outra forma de saber deste que natildeo se faz apenas na leitura e
dissertaccedilatildeo de um tema Precisaria ver para crer como Tomeacute sem a feacute do conceito mas
calcado no vigor da presenccedila que eacute a marca que a visatildeo deixa no ser Este saber ldquopraacuteticordquo
em que se aprende enquanto se faz e portanto viu-se algueacutem fazendo (seja outrem seja
a si proacuteprio como autocriacutetica) para entatildeo fazer estaacute limitado pelo seu campo de visatildeo
Aqui soacute se aprende o que o limite do ver permite aprender no entanto enquanto algo
estiver sendo visto isto eacute enquanto algo se apresentar agrave apreensatildeo limitada e permanecer
apresentando-se e sendo apreendido limitadamente os limites estaratildeo imersos em uma
multiplicidade de limitaccedilotildees
Crianccedila desconhecida e suja brincando agrave minha porta
Natildeo te pergunto se me trazes um recado dos siacutembolos
Acho-te graccedila por nunca te ter visto antes
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra crianccedila
Nem aqui vinhas
Brinca na poeira brinca
Aprecio a tua presenccedila soacute com os olhos
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhececirc-la
Porque conhecer eacute como nunca ter visto pela primeira vez
E nunca ter visto pela primeira vez eacute soacute ter ouvido contar
O modo como esta crianccedila estaacute suja eacute diferente do modo como as outras estatildeo
sujas
Brinca pegando numa pedra que te cabe na matildeo
Sabes que te cabe na matildeo
Qual eacute a filosofia que chega a uma certeza maior
Nenhuma e nenhuma pode vir brincar nunca agrave minha porta (PESSOA 2006
paacutegs 42-43)
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No poema ldquoapreciar a tua presenccedila soacute com os olhosrdquo se aproxima de ldquover uma
cousa sempre pela primeira vezrdquo assim como de ldquosabes que te cabe na matildeordquo Este ver
imediato traz o saber para as coisas para as experiecircncias concretas nas quais a marca que
distingue se torna a proacutepria distinccedilatildeo Conhecer por sua vez diz respeito agrave representaccedilatildeo
do saber pela visatildeo do conceito que pode ser transportado repetido natildeo necessitando da
presenccedila de expectadores A ldquocrianccedila desconhecidardquo natildeo conhece soacute sabe jaacute que
conhecer seria ldquoter ouvido contarrdquo Saber que a pedra cabe na matildeo natildeo eacute conhecer que a
pedra cabe na matildeo pois este pressupotildee um inventaacuterio de caracteriacutesticas opiniotildees de
geoacutelogos livros e mais livros sobre a pedra enquanto que aquele precisa pegar a pedra
nas matildeos ndash e isso eacute simples mas denso pleno sem se esgotar
O siacutembolo por definiccedilatildeo natildeo eacute a proacutepria coisa mas evocaccedilatildeo substituiccedilatildeo ou
representaccedilatildeo da coisa ausente Representar aqui significa estar no lugar de
ou passar por Sim substituir o ausente E a palavra da poesia a palavra
poeacutetica ie instauradora ou realizadora que por isso eacute a palavra essencial
esta estaacute subdizendo o poema natildeo eacute siacutembolo natildeo eacute representaccedilatildeo ou evocaccedilatildeo
da coisa ausente masa proacutepria coisa isto eacute a proacutepria presenccedila Portanto
palavra poeacutetica natildeo eacute recado mensagem aviso de nada O poeta natildeo eacute moleque
de recado Natildeo eacute instrumento mediaccedilatildeo ou intermediaccedilatildeo de nada A palavra
poeacutetica eacute a proacutepria coisa em sua plena plenificada presenccedila (FOGEL 2007
paacuteg 43 ndash grifos no original)
O ver que sabe natildeo eacute o ver com que lidamos com os olhos hodiernos Sempre com
pressa requisitamos ldquoter ouvido falarrdquo das coisas para confiar nelas para natildeo ter que
pensar a respeito isto eacute natildeo ldquoter visto pela primeira vezrdquo e essa confianccedila e esse
conhecimento datildeo a garantia da existecircncia A legitimidade do conhecimento se justifica
muito pela sua reprodutibilidade sua constacircncia e sua previsibilidade Gilvan Fogel
(2007) chama atenccedilatildeo ao que a palavra poeacutetica apresenta como outra possiblidade de
manifestaccedilatildeo como um apresentar concreto que soacute sabe por ter sido atravessado pela
experiecircncia proporcionada por este concreto sua visatildeo
No εἶδος que se mostra em cada insignis enquanto manifestaccedilatildeo poeacutetica encontra-
se a palavra essencial Eacute pois compreensiacutevel que seacuteculos de metafiacutesica tenham tratado
essecircncia como origem algo a ser buscado alcanccedilado por alguns iniciados ou eleitos
portanto distante exatamente da fala cotidiana O comentaacuterio supracitado do professor
Fogel diz de uma essecircncia sua compreensatildeo da brincadeira da crianccedila do poema como
sendo ldquoinstauradora e restauradorardquo Essa crianccedila do poema tanto quanto qualquer
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crianccedila assim como qualquer coisa conquanto seja poeacutetica sempre seraacute instauradora e
restauradora agrave medida que natildeo ldquosubstituir o ausenterdquo mas se ativer agrave presenccedila Desse
modo natildeo eacute exclusividade dos poetas a essecircncia nem o cuidado para que ela natildeo seja
esquecida entre ruiacutedos de abstraccedilotildees e representaccedilotildees natildeo podendo ldquovir brincar nunca agrave
minha portardquo
112 Um saber que rasga
Para saber eacute preciso ver logo para ver eacute preciso saber este eacute o convite que εἶδος
faz ao ensino O que eacute saber neste contexto que natildeo se restringe ao conhecimento
Somente a palavra poeacutetica sabe como quem vecirc ou outros dizeres estatildeo inseridos nesta
dinacircmica Talvez a continuaccedilatildeo da etimologia da palavra ensino possa nos dar uma noccedilatildeo
acerca disso Insignis eacute formado por in-sup1 + signum + -issup1 no qual in-sup1 eacute um prefixo que
transfere seus sentidos de preposiccedilatildeo ao verbo agregando novas significaccedilotildees verbais ou
intensificando-as (GLARE 1968 paacuteg 858) Dentre esses sentidos destacam-se ldquolsquoem a
sobre superposiccedilatildeo aproximaccedilatildeo transformaccedilatildeorsquo de uma raiz i-e [indo-europeia] en
lsquono interior emrsquordquo (HOUAISS 2009b)
Ao nuacutecleo da raiz junta-se o sufixo formador de adjetivo -issup1 (GLARE 1968 paacuteg
970) e o nuacutecleo da palavra eacute signum Dele se originam quase todos os sentidos que foram
incorporados agraves demais formaccedilotildees chegando ateacute o portuguecircs com a palavra signo O
signum latino relaciona-se com a gama de significados da visatildeo ldquouma marca escrita a
impressatildeo de um siacutembolo ou um pouco de cera onde porta essa impressatildeo sinal visiacutevel
de uma presenccedila passadardquo do ensino ldquoalguma coisa percebida pela mente ou pelos
sentidos cuja inferecircncia pode ser desenhadardquo de uma marca ldquoemblema siacutembolo
estandarte uma escultura estaacutetua ou imagemrdquo e ateacute a ideia de movimento ldquogesto ou
movimento usado para designar um sentido manobra militarrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1759-
1760 ndash traduccedilatildeo livre) aparece dentro das possibilidades de compreensatildeo de signum
Qual deles diz respeito ao saber que vecirc principalmente ao saber da ldquopalavra
essencialrdquo (FOGEL 2007 paacuteg 43) da palavra poeacutetica mdash Todos se for considerada a
concretude dos sentidos Isto significa que a marca de cera eacute soacute a marca de cera sua
27
simplicidade natildeo eacute conhecida nem vulgar (PESSOA 2006 paacuteg 61) mas guarda dos
homens curiosos o enigma da carta Eacute compreensiacutevel contudo que um mero selo natildeo
seja fruto de enriquecedoras discussotildees filosoacuteficas Dizemos mero aqui referindo-nos ao
simples que eacute grande porque convida agrave experiecircncia singular ainda que banal com aquela
coisa ldquoO simples resguarda o enigma do que permanece e eacute granderdquo (HEIDEGGER
1983 paacuteg 39 ndash traduccedilatildeo livre)9
Outros sentidos entretanto natildeo satildeo tatildeo simples e imediatos o que natildeo deixa de
ser a perda de sua simplicidade Ao menos corriqueiramente concepccedilotildees como a de
emblema siacutembolo estandarte etc remetem a estacircncias fora do instante isto eacute
representam pela abstraccedilatildeo algo que deveria mas natildeo estaacute aqui A isto tanto o poeta
quanto o filoacutesofo supracitados combatem caso contraacuterio seria abrir matildeo da concretude
de cada momento em prol de um conceito estanque e pronto para ser aplicado
transmitido reproduzido e descartado Dicotomicamente falando assumindo o risco que
isso significa podemos aferir que o saber exige que a experiecircncia com a coisa seja feita
concretamente levando-se em conta as singularidades em questatildeo e as limitaccedilotildees que o
agora impotildee O conhecer por sua vez significa uma experiecircncia abstrata permitindo
categorias que facilitariam o trato por preacute-conceito criando-se assim o haacutebito o jaacute visto
e conhecido do fazer
Natildeo dicotomicamente falando tanto o conhecimento quanto o saber fazem parte
da experiecircncia com as coisas satildeo tatildeo intriacutensecos como necessaacuterios ldquoo desaparecimento
de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos
apoiaacutevamos de ordinaacuterio sem querer perceber que originariamente elas constituiacuteam
respostas a questotildeesrdquo (ARENDT 1972 paacuteg 223) cuja comunhatildeo define a existecircncia
humana seu modo de ser Se para cada passo fosse preciso uma reflexatildeo ningueacutem mais
andaria A tensatildeo se desfaz quando se perde no haacutebito a disposiccedilatildeo de questionar tudo se
transformando em conhecido ou conheciacutevel ou seja esquecendo-se de que o passo sim eacute
uma questatildeo a ser pensada que sob o chatildeo supostamente seguro jaz o que natildeo tem chatildeo
o abismo que andar eacute em si um risco agrave queda
O poeacutetico pois faz emergir o concreto da linguagem nas palavras Assim o
concreto manifesta torna presente o saber no que se vecirc Isto que manifesta o saber das
9 Das Einfache verwahrt das Raumltsel des Bleibenden und des Groszligen
28
coisas sem conhececirc-las encontramos sob o nome de aleacutetheia O concreto desse saber natildeo
eacute restrito ao poema escrito nem somente o poeta tem acesso a aleacutetheia agrave manifestaccedilatildeo
Na relaccedilatildeo com a verdade que se apresenta concretamente compreende-se que aleacutetheia eacute
sempre a mesma soacute que de modos diferenciados e eacute justamente isso que possibilita a
singularidade dos caminhos
Em Os trabalhos e os dias portanto Aleacutetheia eacute dupla eacute em primeiro lugar a
Aleacutetheia das Musas que o poeta profere em nome delas e que se manifesta no
discurso maacutegico-religioso articulado agrave memoacuteria poeacutetica em segundo lugar eacute
a Aleacutetheia que o labrador de Ascra possui lsquoVerdadersquo que dessa vez se define
explicitamente pelo lsquonatildeo esquecimentorsquo dos preceitos do poeta Entre as duas
natildeo haacute diferenccedila fundamental eacute a mesma Aleacutetheia vista sob dois aspectos ora
em sua relaccedilatildeo com o poeta ora em sua relaccedilatildeo com o lavrador que o ouve
Enquanto o primeiro a possui apenas em virtude do privileacutegio da funccedilatildeo
poeacutetica o segundo soacute pode ganhaacute-la agrave custa de um esforccedilo de memoacuteria O
camponecircs de Ascra soacute conhece a Aleacutetheia na ansiedade de uma memoacuteria
obsedada pelo esquecimento que pode repentinamente ensombrecer-lhe a
mente e privaacute-lo da lsquorevelaccedilatildeorsquo dos Trabalhos e os Dias (DETIENNE 2013
paacutegs 27-28)
Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi sinocircnimo de certeza isto
eacute mera oposiccedilatildeo entre certo e errado e tentativa de adequaccedilatildeo do errado ao certo Neste
sentido conveacutem observar que uma concepccedilatildeo de ldquoposserdquo da aleacutetheia natildeo se refere a ter a
propriedade de um conhecimento Nem o poeta nem o camponecircs poderiam possuir a
verdade pois ela natildeo era um conhecer ldquopossuiacutevelrdquo Somente quando o saber torna-se
capaz de ser possuiacutedo que ele se torna um conhecimento e um conhecimento inteligiacutevel
Isto porque o saber da verdade era dos deuses do real os poetas apenas se dispunham a
ouvi-lo e por conseguinte a cantaacute-lo como lhes era possiacutevel
O camponecircs por sua vez se detinha nas proximidades do trabalho do poeta ndash e a
isto talvez possamos chamar de posse ndash e dele ldquopode ganhaacute-la [aleacutetheia] agrave custa de um
esforccedilo de memoacuteriardquo (DETIENNE 2013 paacuteg 28) Da mesma forma ganhar aleacutetheia
confunde o leitor quanto a seu caraacuteter de natildeo posse Detienne assim como todos noacutes
estamos muito impregnados pela liacutengua da ciecircncia logo mesmo ao se referir ao que natildeo
eacute cientiacutefico fazemos ao modo da teacutecnica moderna Daiacute a importacircncia de ir aos
fundamentos da liacutengua que natildeo se trata de sua origem cronoloacutegica mas da aproximaccedilatildeo
agraves cercanias da linguagem ao que se diz inaudito no dito
Por este vieacutes alongando um pouco mais a etimologia de ensino chegamos a seco
+ -num a fim de que percebamos o tipo de saber que originou o ensino traduccedilatildeo de uma
29
experiecircncia concreta com a linguagem O Dicionaacuterio Oxford apresenta um significado
etimoloacutegico incerto da palavra signum (GLARE 1968 paacuteg 1759) formado com o sufixo
-num neutro de -nus ndash um formador de palavras adjetivas de numerais distributivos e
que tambeacutem funciona como alargamento do sentido (eg fortuna tribunus) (GLARE
1968 paacuteg 1207) ndash juntamente com o radical seco
1 Cortar com uma faca ou similar cortar 2 Cortar em pedaccedilos fatiar picar
recortar 3 Cortar uma porccedilatildeo de destacar (uma parte) por meio de corte
remover por corte 4 Fazer uma incisatildeo em cortar entalhar etc 5 Passar
atraveacutes de (aacutegua ar uma multidatildeo etc) em movimento raacutepido ou violento
fender um caminho atraveacutes de tambeacutem sulcar (a terra) em lavoura mineraccedilatildeo
etc 6 Formar ou abrir (uma trilha ou sim) por meio de corte (GLARE 1968
paacuteg 1717 ndash traduccedilatildeo livre)10
A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforccedilo com a consulta a Pokorny
(2007) Em ambos os casos a relaccedilatildeo entre seco e signum natildeo eacute segura enquanto origem
e originado mas parece haver concoacuterdia na proximidade de sentido entre ambos no que
se refere agrave marca agrave ldquoimpressatildeordquo que causa Correspondendo a uma interpretaccedilatildeo da
etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito se atendo a um aceno de pensamento
posso supor que a marca do signum eacute um corte seco que porta um saber agrave medida que
rasga criando assim um limite visiacutevel e concretamente experienciado Lidar com um
saber que rasga eacute fazer uma experiecircncia com o concreto da palavra causando sensaccedilotildees
sim mas tambeacutem e principalmente fazendo uma experiecircncia na e atraveacutes das fronteiras
da liacutengua Laacute onde nos aventuramos entre o que eacute e o natildeo ser onde o instante instaura
brevemente a verdade fugidia o concreto se diz somente enquanto experiecircncia deste
mesmo saber
sēk-2 ndash Significado em inglecircs tocut traduccedilatildeo para o alematildeo schneiden Latim
secō -āre lsquocortar podarrsquo segmen segmentum lsquoquebra secccedilatildeorsquo [] Latim
sīgnum neutro lsquomarca siacutembolo sinal indicaccedilatildeorsquo se originalmente lsquomarca
entalhadarsquo () [] Alto alematildeo antigo sega saga Europeu antigo sagu sage
(POKORNY 2007 paacuteg 2660 ndash traduccedilatildeo livre)11
10 1 To sever with a knife or similar cut 2 To cut in pieces slice chop cut up 3 To cut a portion from
to detach (a portion) by cutting cut off 4 To make an incision in cut gash etc 5 To pass through (water
air a crowd etc) in rapid or violent motion cleave a path through also to cut into (the earth) in
ploughing mining etc 6 To form or open up (a track or sim) by cutting 11 sēk-2 ndash English meaning to cut deutsche Uumlbersetzung ldquoschneidenrdquo Lat secō -āre ldquocut clip
abschneidenrdquo segmen segmentum ldquobreak sectionrdquo [hellip] Lat sīgnum n ldquomark token sign indicationrdquo
if originally ldquoeingeschnittene Markerdquo () [] OHG sega saga OE sagu sage
30
Este eacute pois o sentido de um saber que se encrusta na carne Nietzsche (1994 paacuteg
56) jaacute dizia que ldquode tudo o que se escreve aprecio somente o que algueacutem escreve com o
proacuteprio sangue [] Aquele que escreve em sangue e maacuteximas natildeo quer ser lido mas
aprendido de corrdquo Filosoficamente falando apreciar neste sentido natildeo se restringe agrave
opiniatildeo pessoal somente mas diz tambeacutem de uma entrega no que se faz
Ao afirmar uma oposiccedilatildeo entre ler e aprender de cor haacute um reconhecimento da
experiecircncia de um saber vivido na medida em que um conceitua e descreve e outro que
demarca um modo sanguinolento de ser Este sangrar traz ao ato a memoacuteria da verdade
seja como valor moral de vontade e de ldquoquererrdquo seja por simplesmente se dar de outra
forma natildeo dimensionaacutevel no falar sobre algo mas sim em dizer com algo Quem condiz
diz junto ou seja convoca agrave participaccedilatildeo sem ser arbitraacuterio convida a manifestar-se no
que se manifesta agrave medida da manifestaccedilatildeo que eacute o corte entre as possibilidades de cada
um e o impossiacutevel aquilo sobre o qual natildeo exercemos posse nem poder de possuir mas
que por isso nos delimita e constitui ldquoVai-se ao limiar sempre que se vai aos limites
[grifo no original]rdquo (NIETZSCHE 1967 ndash traduccedilatildeo livre)12
Heidegger (2003) tambeacutem a seu modo pensou este saber que corta No seu ensaio
A linguagem o pensador alematildeo interpreta o poema Uma tarde de inverno13
Na janela a neve cai
Prolongado soa o sino da tarde
Para muitos a mesa estaacute posta
E a casa bem servida
Alguns viandantes da erracircncia
Chegam ateacute a porta por veredas escuras
Da seiva bruta da terra
Surge dourada a aacutervore dos dons
O viandante chega quieto
A dor petrificou a soleira
Aiacute brilha em pura claridade
Patildeo e vinho sobre a mesa (TRAKL 2016 ndash traduccedilatildeo de Marcia Saacute de
Cavalcante Schuback)14
12 Man geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden geht 13 Ein Winterabend 14 Wenn der Schnee ans Fenster faumlllt Lang die Abendglocke laumlutet Vielen ist der Tisch bereitet Und
das Haus ist wohlbestellt Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden Golden
bluumlht der Baum der Gnaden Aus der Erde kuumlhlem Saft Wanderer tritt still herein Schmerz versteinerte
die Schwelle
Da erglaumlnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein
31
Pela obra literaacuteria eacute construiacuteda uma compreensatildeo filosoacutefica da dor natildeo restrita agrave
certa negatividade O verso central para tal pensamento eacute o seguinte ldquoSchmerz
versteinerte die Schwellerdquo ldquoA dor petrificou a soleirardquo A traduccedilatildeo para o portuguecircs leva
em conta a sonoridade e o jogo imageacutetico proacuteprios da liacutengua de destino sem faltar com
cuidado ao original O esforccedilo poeacutetico eacute visiacutevel contudo traduzir eacute tanto caminho como
descaminho de sentido parte do que caracteriza o poema em alematildeo se desdobra
singularmente em portuguecircs
O verso fala de dor Schmerz em correspondecircncia com a soleira Schwelle Como
o que doacutei Heidegger (2003 paacuteg 21) entende por ldquoA dor eacute a junta articuladora no
dilaceramento que corta e reuacutene Dor eacute a articulaccedilatildeo do rasgo do dilaceramento Dor eacute
soleira Ela daacute suporte ao entre ao meio dos dois que nela se separam A dor articula e
traccedila o rasgo da di-ferenccedila A dor eacute a proacutepria di-ferenccedilardquo Na mesma instacircncia ontoloacutegica
estatildeo a dor e a soleira a dor e a di-ferenccedila o que isso significa
Em alematildeo Schwelle tambeacutem diz do limite o limiar entre duas coisas como a
soleira eacute a fronteira que separa o dentro do fora da casa Enquanto separa instaura tanto
a casa quanto a rua como a natildeo casa ainda a casa que viraacute Sem soleira rua e casa natildeo
teriam suas singularidades mantidas suas di-ferenccedilas ldquoo termo lsquoa di-ferenccedilarsquo natildeo diz
uma categoria geneacuterica para vaacuterias espeacutecies de distinccedilotildees A di-ferenccedila aqui nomeada eacute
soacute uma Eacute uacutenicardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 19) Diferir natildeo eacute deixar misturar
categorizar mas fazer aparecerem os limites que definem e constituem eacute emergir a
unidade que se encontra no ldquoentrerdquo de uma e outra coisa
Dor e limite se fundem Ambos datildeo fundamento um ao outro no entre que os
diferencia O poema no original traz um jogo sonoro em que essa relaccedilatildeo correlata se
mostra novamente Tanto as palavras Schmertz e Schwelle comeccedilam com o mesmo som
sch- [ʃ] fricativo ou seja com quase nenhuma interrupccedilatildeo de ar seguidas de m- [m] e
w- [v] que embora diferentes ainda resguardam essa mesma caracteriacutestica de som
continuado Sonoramente dor e limite fluem abertamente Um introduzindo outro
terminando ndash origem e plenitude do verso pela dor e pela soleira respectivamente
Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta tem pois sua
quietude Afinal ldquoa dor petrificourdquo o limite a soleira para diante da dor Eacute marcada uma
pausa que natildeo faz do limite igual ao comeccedilo O instante que demarca o quieto da fluidez
32
constitui e distingue as diferenccedilas e identidades entre origem e fim enquanto plenitude
Em alematildeo o verbo versteinern tambeacutem comeccedila com o tipo de som fricativo v- [f] para
coincidir com o som anterior sch- [ʃ] todavia seguido pela oclusiva -t- [t] ou seja onde
haacute uma obstruccedilatildeo parcial da saiacuteda de ar
A construccedilatildeo sonora do verso eacute marcada por uma pausa entre dois sons contiacutenuos
Ali onde dor e limite se encontram haacute tanto multiplicidade de um quanto unidade de
vaacuterios ndash pausa e continuaccedilatildeo Versteinern proveacutem do substantivo Stein pedra uma pedra
que se interpotildee entre dois acontecimentos de mundo lembra-nos de ldquono meio do caminho
tinha uma pedrardquo (ANDRADE 2013 paacuteg 30) O verso tatildeo conhecido de Drummond
retoma em Georg Trakl a tensatildeo no embate causador de dor e de limite fundador Trazer
agrave quietude da pedra eacute dar sentido ontoloacutegico tanto ao limite quanto agrave dor
A linguagem fala Sua fala chama a diferenccedila a di-ferenccedila que des-apropria
mundo e coisa para a simplicidade de sua intimidade
A linguagem fala
O homem fala agrave medida que corresponde agrave linguagem Corresponder eacute escutar
Ele escuta agrave medida que pertence ao chamado da quietude (HEIDEGGER
2003 paacuteg 26)
Pelo ensino pois transita-se na marca Via de acesso que traduz uma experiecircncia
de des-conhecer se as reacutedeas da imposiccedilatildeo cedem lugar agrave fronteira do pensar Ali as
distacircncias se estreitam proximidades natildeo se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre
afinal ldquomestre natildeo eacute quem sempre ensina mas quem de repente aprenderdquo (ROSA 2006
paacuteg 213) Ensinar eacute estar na marca do pensamento em outras palavras eacute aprender a estar
no pensamento da marca a saber atento a que o limite demarcante seja assim como natildeo
seja O ensinamento sem aprendizagem eacute pobre de sentido restringe-se agrave mera
informaccedilatildeo de conteuacutedos pragmaacuteticos Radicalmente ensinar significa tambeacutem natildeo
ensinar agrave medida que daacute espaccedilo para que o outro (que tambeacutem sou eu) aprenda
Formar eacute deixar o outro aprender integrando no que ele eacute os limites do que
ele natildeo eacute [] Soacute quem realmente sabe aprender e somente na medida em que
o sabe pode realmente ensinar [] Ensinar exige e impotildee a ascese de
aprender a ascese de constantemente assumir tanto a ignoracircncia quanto o saber
do que jaacute se sabe Natildeo apenas aquele que jaacute sabe tudo natildeo pode nem aprender
nem ensinar Tambeacutem natildeo pode quem natildeo assumir o saber de sua ignoracircncia
quem natildeo reconhecer que sabe alguma coisa (LEAtildeO 1977 paacuteg 49)
33
113 Natildeo ensinar e a ciecircncia
Nesta dimensatildeo natildeo ensinar eacute uma prerrogativa O que natildeo quer dizer faltar com
as suas responsabilidades enquanto professor enquanto pais ou enquanto sociedade Natildeo
ensinar estaacute comumente relacionado com negligecircncia Isso tem pouco a ver com o
pensamento do ensino e mais com o que se espera de determinadas funccedilotildees e papeacuteis
sociais Natildeo ensinar se refere diversamente ao compromisso com seu desconhecimento
impossibilidade de que algo seja dito ndash pois natildeo se sabe ndash e tendo cuidado com o
conhecimento jaacute que mesmo no dito haacute o natildeo dito o natildeo controle do que seraacute
compreendido
Entretanto parece que nos atuais tempos esta eacute uma decisatildeo estranha de se tomar
Jaacute causa estranhamento natildeo ensinar sem optar por isso Ou seja natildeo detendo todas as
variaacuteveis e circunstacircncias falhamos ao passar um determinado conteuacutedo seja este teacutecnico
cultural ou moral Diferente eacute pois ldquoescolherrdquo natildeo ensinar Aceitar que faz parte do
processo o equiacutevoco a falta e o improviso Reconhecer a ponta solta o diacutegito errado o
ponto fora da curva e natildeo fazer nada a respeito
Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista na qual o ensino
serve aos propoacutesitos da aprendizagem Sistemas preacute-programados demandam o
cumprimento de tarefas Logo eacute conveniente a transmissatildeo do que fazer para o
desempenho esperado Natildeo soacute isso mais do que fazer adveacutem o como fazer cuja resposta
procura constantemente por um melhor desempenho produzir mais a menor custo ou
mais por menos tempo o que costuma coincidir
Este aspecto performaacutetico que se dedica a se superar ininterruptamente natildeo pode
permitir o natildeo ser Como num teatrinho de marionetes tudo estaacute sob controle ou acredita-
se que esteja Da filosofia agrave mesa de bar das salas de aula aos hospiacutecios nossa sociedade
se vecirc como peccedilas de um quebra-cabeccedila que pode ser solucionado Quem monta as peccedilas
eacute o homem quem diz que as peccedilas satildeo montaacuteveis eacute a ciecircncia pois ela eacute ldquoa teoria do realrdquo
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Aqui para pensar a palavra teoria referimo-nos tanto ao
sentido de ldquoconjunto de regras ou leis mais ou menos sistematizadas aplicadas a uma
aacuterea especiacuteficardquo (HOUAISS 2009a Teoria) quanto agrave etimologia a qual significaria accedilatildeo
34
de ver observar testemunhar ldquoenviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oraacuteculos
ou jogos ou coletivamente os proacuteprios θεωροί embaixada missatildeordquo (LIDDELL
SCOTT 1940 Θεωρία ndash traduccedilatildeo livre)15
Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por ldquoverrdquo ou ldquopocircr-se a observarrdquo
Ainda assim diferentes nomeares sugerem diversos modos de o proacuteprio compreender o
real ldquoo pensamento doacutecil agrave voz do ser procura encontrar-lhe a palavra atraveacutes da qual a
verdade do ser chegue agrave linguagemrdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) Neste sentido
observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo semacircntico de ver olhar entretanto
esse mesmo eacutetimo pode ser lido com acentuaccedilotildees diferentes θεά feminino de θεός
ldquodeusa divindaderdquo e ὤρα ldquocuidadordquo (LIDDELL SCOTT 1940 ndash traduccedilatildeo livre)16
Temos pois um convite Fomos convidados a ver tambeacutem em teoria a palavra θεωρία
como um cuidado sagrado o divino em todo cuidar ou ainda ldquoora foi como deusa que
ἀλήθεια apareceu ao pensador originaacuterio Parmecircnides [] Em sentido antigo isto eacute
originaacuterio mas de forma alguma antiquado a teoria eacute a visatildeo protetora da verdaderdquo
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 46 ndash grifos no original)17
O real para muitos povos antigos eram os proacuteprios deuses se manifestando Esta
era ldquosuardquo verdade ldquoseurdquo mundo Um possessivo que natildeo traduz da posse como estamos
habituados Natildeo havia a verdade de cada um embora todos fizessem uma experiecircncia
com a verdade singularmente Isto porque para os antigos a verdade era muacuteltipla e
diversa Diferentemente de nossa concepccedilatildeo atual de verdade regida pela ciecircncia pedras
15 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games or collectively the θεωροί themselves
embassy mission Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqewri
2Fagt Acesso em 13 out 2016 16 Cf Θέα Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqe2
Fa2gt Acesso em 14 set 2016
Cf Θεά Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqea2
F1gt Acesso em 14 set 2016
Cf Ὁράω Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(ra
2Fwgt Acesso em 14 set 2016
Cf Ὤρα Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dw)2
Fragt Acesso em 14 set 2016 17 Cf Ἀλήθεια Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)lh
2Fqeia Acesso em 14 set 2016
35
animais pessoas proacuteximas e inimigos eram a verdade pois a proacutepria presenccedila desses
seres constituiacutea sua veracidade ldquoprovardquo cabal da doaccedilatildeo de existecircncia de um deus A
verdade eacute sempre verdade dos deuses seja quem for que a proferir
Os indo-iranianos tecircm uma palavra comumente traduzida por Verdade Rta
Mas Rta eacute tambeacutem a prece lituacutergica o poder que garante o retorno das auroras
a ordem estabelecida pelo culto aos deuses o direito enfim um conjunto de
valores que estilhaccedilam nossa imagem da verdade (DETIENNE 2013 paacutegs
1-2)
Isso significa que a compreensatildeo de oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso natildeo era
possiacutevel visto que o que se manifesta seja bom ou ruim tem um sentido de ser que
remete ao sagrado Sendo atribuiacuteda ao artiacutefice divino a verdade jamais poderia ser
possuiacuteda no sentido de controlada apenas se convive em sua cercania natildeo havendo
possibilidade de cercaacute-la cerceando-a ao uso a bel-prazer Desse modo as diferenccedilas satildeo
apenas outras manifestaccedilotildees da mesma verdade sagrada Seu e sua satildeo possessivos que
natildeo indicam posse mas apropriaccedilatildeo eacute o ser no mundo em sua limitaccedilatildeo fundadora
Sua lsquoVerdadersquo eacute uma lsquoVerdadersquo assertoacuterica ningueacutem a contesta ningueacutem a
demonstra [] Aleacutetheia natildeo eacute a concordacircncia entre a proposiccedilatildeo e seu objeto
tampouco a concordacircncia de um juiacutezo com os outros juiacutezos natildeo se opotildee agrave
lsquomentirarsquo natildeo haacute lsquoverdadeirorsquo em face do lsquofalsorsquo A uacutenica oposiccedilatildeo
significativa eacute entre Aleacutetheia e Leacutethe
[]
Natildeo haacute de um lado Aleacutetheia (+) e do outro Leacutethe (-) mas entre esses dois polos
se desenvolve uma zona intermediaacuteria em que Aleacutetheia desliza para Leacutethe e
vice-versa A lsquonegatividadersquo portanto natildeo estaacute isolada apartada do Ser ela
orla a lsquoVerdadersquo eacute a sua sombra inseparaacutevel As duas potecircncias antiteacuteticas natildeo
satildeo pois contraditoacuterias mas tendem uma agrave outra o positivo tende ao negativo
que de certo modo o lsquonegarsquo mas sem o qual natildeo se sustenta (DETIENNE
2013 paacuteg 29 paacutegs 77-78 ndash grifos no original)
Para noacutes da modernidade real eacute o mundo que vemos ou podemos ver e controlar
cujo descobrimento torna-se sinocircnimo de confirmaccedilatildeo de uma teoria A compreensatildeo do
mundo se daacute agrave medida que o vemos e nossa visatildeo eacute guiada pela ciecircncia no sentido de
que damos existecircncia agrave realidade ao dispor cada peccedila em seu lugar A isto chamamos
conhecer categorizar o real agrave mercecirc do que podemos apreender dele Em contrapartida
o que natildeo podemos conceituar natildeo tem valor de existecircncia simplesmente natildeo eacute ldquorealrdquo eacute
ldquofictiacuteciordquo eacute ldquoimaginaccedilatildeordquo quer dizer natildeo eacute verdade mas mentira Ao aderir agrave concepccedilatildeo
36
de opostos subentende-se a ideia de norma padratildeo ndash haacute o que eacute e o que natildeo eacute distinccedilatildeo
claramente determinaacutevel quando coincidente correta quando divergente corrigiacutevel
A ontologia perde sentido em detrimento do que eacute claro evidente praacutetico
objetivo uacutetil enfim do que eacute capaz de levar a algum lugar ainda que esse
lugar possa natildeo ser exatamente o lugar mais desejaacutevel Natildeo importa O
importante eacute que seja algum lugar A questatildeo ontoloacutegica passa ao longo do
desenvolvimento da Cultura Ocidental a ser considerada perda de tempo
(JARDIM 1995 paacutegs 15-16)
Exige-se que se encaixe Como reconhecer o natildeo ensinar se natildeo se pode classificar
o que natildeo eacute Natildeo tem clareza falta utilidade no natildeo ser Qual a validade de natildeo ensinar
para um meacutedico um advogado Como natildeo ensinar a uma crianccedila tatildeo em tenra idade e
desprotegida ldquoPerdem-se no vazio consideraccedilotildees sobre o modo como se poderia levar
a agir sobre a vida cotidiana e puacuteblica de modo efetivo e uacutetil o pensamento ainda e apenas
metafiacutesicordquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 58) A pergunta aqui versa a respeito de uma
vontade mesmo que seja vontade de cuidar ainda assim eacute um desejo pelo ente antiteacutetico
ao ser circunstacircncia de realizaccedilatildeo do ser que foi que eacute ou que seraacute como se instacircncias
discerniacuteveis fossem
Busca-se uma postura de soluccedilatildeo de problemas resoluccedilatildeo de conflitos sem se dar
conta de que a tensatildeo eacute a proacutepria condiccedilatildeo de existecircncia no embate entre o nada e o ser
ldquoUm dos lugares fundamentais em que reina a indigecircncia da linguagem eacute a anguacutestia no
sentido do espanto no qual o abismo do nada dispotildee o homem O nada enquanto o outro
do ente eacute o veacuteu do ser No ser jaacute todo o destino do ente chegou originariamente agrave sua
plenituderdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) A questatildeo eacute como agir diante do que se
aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente ele natildeo eacute Chegar agrave
plenitude na origem se contradiz com a ideia da construccedilatildeo de um conhecimento que se
inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acuacutemulo de informaccedilotildees Isto porque natildeo nos
referimos agrave origem como comeccedilo muito menos agrave plenitude como fim aqui diz-se
respeito ao movimento Ir a algum lugar eacute sempre chegar de um lugar de modo que essa
concepccedilatildeo de saber eacute estar dentro da dinacircmica de partida e chegada de ser e estar do
nada e do ente de origem e de plenitude
Ora afirmamos que o natildeo ensinar imerso na senda do pensar nada diz respeito
ao descuido com o outro mas nesse embate entre ensinar um conteuacutedo e deixar o ensino
seguir seu curso de aprendizagem e vazio quanto mais se aceita como vital uma funccedilatildeo
maior seratildeo as garras do controle Seja por teorias sempre novas seja por soluccedilotildees agrave
37
disposiccedilatildeo o importante eacute sanar quaisquer duacutevidas ter sempre algo a dizer e muito muito
a ensinar ldquoA carga ndash inevitavelmente ndash normativa do saber pedagoacutegico acaba muitas
vezes por bloquear a experiecircncia da infacircncia [grifo no original]rdquo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg
9 ndash traduccedilatildeo livre)18
Quem deteacutem o dizer dita as regras Diferentemente de impor a vontade por forccedila
fiacutesica controla-se o dizer que eacute o saber vigente dominante e aceito A palavra que sabe
que eacute cientiacutefica diz o que eacute exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocaacute-los
literal mas radicalmente ldquojaacute natildeo se trata de pocircr a morte em accedilatildeo no campo da soberania
mas de distribuir os vivos em um domiacutenio de valor e utilidaderdquo (FOUCAULT 1988 paacuteg
157)
Ocorre uma inversatildeo radical a ciecircncia diz o que eacute A ciecircncia deixa de ser uma
dentre tantas possibilidades passando a ser a deliberaccedilatildeo fundamental da existecircncia ldquoo
homem ndash um ente entre outros ndash faz lsquociecircnciarsquo Neste lsquofazerrsquo ocorre nada menos que a
irrupccedilatildeo de um ente chamado homem na totalidade do ente mas de tal maneira que na
e atraveacutes desta irrupccedilatildeo se descobre o ente naquilo que eacute em seu modo de serrdquo
(HEIDEGGER 1979c paacuteg 36) Os filhos desse mundo seratildeo crias cientiacuteficas homens
que veem no mundo somente um espelho de si Daiacute o predomiacutenio do indiviacuteduo da
vontade pois se tudo eacute um reflexo de noacutes mesmos basta esticar a matildeo e apanhar O que
natildeo nos serve natildeo eacute natildeo nos vemos logo desprezamos Ciumento eacute o deus-ciecircncia que
natildeo permite adoraccedilotildees alheias
A ciecircncia eacute a seguranccedila do pensamento isto eacute o que haacute de inofensivo sem ser
inocente Seguro pelas contas estaacute o proacuteprio pensar que se fia na loacutegica infaliacutevel ou na
estatiacutestica mais aceita por todos Quando o real eacute domado ele se torna conhecido a este
papel se presta a ciecircncia ldquoo pensamento calculador submete-se a si mesmo agrave ordem de
tudo dominar a partir da loacutegica de seu procedimentordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 50)
Nessas categorias se constitui a interpretaccedilatildeo do ser sem se perceber que satildeo as mesmas
categorias partes da possibilidade de categorizar A essa multiplicaccedilatildeo de chances
apreensotildees e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o caacutelculo e o encerra em seu
destino sua derradeira conta o incalculaacutevel em todo calcular
18 La carga ndash iquestinevitablemente ndash normativa del saber pedagoacutegico acaba muchas veces por bloquear la
experiencia de la infancia
38
114 O jogo do poeta e da infacircncia
Ainda que natildeo fuja ao controle ousamos ao ensino de Dispor-se a ensinar algo
natildeo eacute demeacuterito natildeo contradiz o caminho aqui percorrido natildeo deve ser evitado ao
contraacuterio constitui fundamentalmente o ato de ensinar Um ensino que se integra ao natildeo
ensino do mesmo ensinar Deste modo perguntar para que ensinar natildeo perde sua validade
apenas agora congrega na pergunta pela utilidade sua inutilidade
Natildeo seria conveniente tutelar o ensino a fim de guiar aos cuidados de
profissionais respeitados a educaccedilatildeo de nossos filhos Como vimos brevemente por mais
que quiseacutessemos nossa vontade estaacute aqueacutem das possibilidades de realizaccedilatildeo Por este
vieacutes podemos traccedilar duas concepccedilotildees de ensino uma que se sabe limitada e neste limite
funda seu ensinamento outra que pretende limitar pelo controle que se diz sabedora dos
caminhos e se torna tutora do que e como proceder Uma ousa a outra se assegura uma
cuida no risco a outra entende que cuidar eacute evitar arriscar-se
Supotildee-se estar vendo dois caminhantes diante de uma correnteza selvagem
que arrasta consigo pedregulhos diversos o primeiro atravessa-o com leveza
nos peacutes utilizando as pedras para impulsionar-se cada vez mais adiante
mesmo que estas afundem assim que ele as deixa O outro permanece agrave
margem desamparado ele precisa primeiro construir os fundamentos que iratildeo
suportar o sem passo pesado e prudente (NIETZSCHE 2013 paacuteg 41)
A criacutetica ao ensino acompanha uma criacutetica no ensino Radicalmente eacute questionar
as instituiccedilotildees seus conteuacutedos e o modo como compreendemos seus papeacuteis na sociedade
isso ao menos em alguma instacircncia do contraacuterio estariacuteamos renegando o caraacuteter dialoacutegico
do pensamento e do ensino aqui propostos
Noacutes todos viemos de uma concepccedilatildeo de ldquoescola paternalista destinada a educar
os governados os que iriam obedecer e fazer em oposiccedilatildeo aos que iriam mandar e
pensarrdquo (TEIXEIRA 1947 paacuteg 27) que nada mais eacute do que a escola do sistema de
controle da ciecircncia pela teacutecnica Nesse paternalismo escolar natildeo soacute o ensino eacute controlado
mas tambeacutem a instituiccedilatildeo e suas partes componentes inclusive seu puacuteblico-alvo ndash os
alunos Na compreensatildeo funcional estes satildeo partes do todo que ainda natildeo se sabem todo
39
logo eacute preciso adestrar a compor o sistema Construccedilatildeo essa interminaacutevel sempre a
necessitar de mais instrutores pois novos satildeo os mecanismos
Nossa sociedade do conhecimento ou da aprendizagem como se a denomina
com seu slogan do aprender a aprender e do aprender ao longo de toda vida eacute
neste sentido um tipo de processo que em sua alunizaccedilatildeo do aprendiz o
converte tambeacutem em um aprendiz eterno mas de outra iacutendole um aprendiz
nunca de todo emancipado um aprendiz que natildeo solta da matildeo de seus
educadores (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 14 ndash traduccedilatildeo livre)19
Eacute um cuidado com a peccedila talvez um cuidado com o ente destituiacutedo de essecircncia
em que a diferenccedila eacute combatida e entendida por desigualdade e identidade por igualdade
cujas melhores hipoacuteteses criacuteticas recaem sobre as relaccedilotildees de poder ndash nas quais ldquoo
contraacuterio da igualdade natildeo eacute a diferenccedila mas a desigualdade que eacute socialmente
construiacuteda sobretudo numa sociedade tatildeo marcada pela exploraccedilatildeo classistardquo
(BENEVIDES 1998 paacuteg 156 ndash grifos no original) ndash mas carecem de questionamentos
sobre os mesmos valores que compotildeem e fundam suas criacuteticas
A partir disso podemos concluir que [] a criacutetica do ponto de vista do trabalho
natildeo nos permite pensar o proacuteprio modo de produzir [] O socialismo seria
uma lsquoforma social de distribuiccedilatildeorsquo adequada agrave produccedilatildeo industrial o modo de
produccedilatildeo natildeo eacute criticado radicalmente pelo contraacuterio ele eacute o ponto referencial
para a construccedilatildeo da criacutetica (SILVA 2016 paacuteg 37)
Trocando em miuacutedos para se dizer o que o aluno deve ou natildeo receber como
educaccedilatildeo se se deve ensinar ou natildeo filosofia ou literatura eacute preciso se perguntar o que
satildeo filosofia e literatura Arriscar pensar (natildeo necessariamente determinar) o ser dos entes
para aiacute viver no risco desta decisatildeo ao ensinar
Um dos criacuteticos literaacuterios brasileiros mais tradicionais e influentes interpreta que
decidir pela literatura eacute aceitar que ldquonas nossas sociedades a literatura tem sido um
instrumento poderoso de instruccedilatildeo e educaccedilatildeo [] A literatura confirma e nega propotildee
e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemasrdquo (CANDIDO 1989 paacuteg 113) Decerto esta eacute uma posiccedilatildeo que merece
diversas ressalvas principalmente por se referir ao ato literaacuterio como um instrumento
19 Nuestra sociedad del conocimiento o del aprendizaje como se la denomina con su eslogan del aprender
a aprender y del aprender a lo largo de toda la vida es en este sentido una suerte de proceso que en su
alumnizacioacuten del aprendiz lo convierte tambieacuten en un aprendiz eterno pero de otra iacutendole un aprendiz
nunca del todo emancipado un aprendiz que no se acaba soltar de la mano de sus educadores
40
remetendo-o assim agrave loacutegica tecnicista de pocircr tudo a serviccedilo da ciecircncia Contudo
chamamos atenccedilatildeo agrave importacircncia ldquopoderosardquo que a literatura adquire jaacute na tradiccedilatildeo
Neste sentido lidar com literatura e ensino trata mais de estabelecer um diaacutelogo
entre ambos do que simplesmente de apanhar livros nas seccedilotildees luacutedicas da biblioteca e
levar para que os alunos os leiam Pode-se fazer isso mas natildeo eacute necessaacuterio como aqui
vemos O convite ao poeacutetico cabe a todas as idades e se em tenra idade estamos carentes
de conhecimento o saber enquanto marca de pensamento ndash experiecircncia concreta de
vislumbramento de dor de temor de alegria ou seja de realidade ndash se dispotildee a quem
quer que entre em contato com o poeacutetico que faccedila o caminho de pensar e ser o poeacutetico
O saber natildeo eacute apreendido mas sim experienciado e para isso natildeo haacute preacute-requisito de
idade ldquoo termo infantil denomina normalmente uma faixa etaacuteria [] Pode o fenocircmeno
literaacuterio submeter-se a e ser apreendido por um tal criteacuterio ou classificaccedilatildeo Eacute
problemaacuteticordquo (CASTRO 1994 paacuteg 132)
Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a
realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da
lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de
pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de literatura como
um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das
experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que
natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas
Amor oacutedio guerra paz permanecer e partir Haacute muito tempo que andam juntos
com a filosofia e a literatura Esta eacute a proposta de um ensino na marca do pensamento
que diz porque sabe e cala porque diz Ao decidir pelo convite do ensinar reconhecemos
ldquoum vir a ser e perecer um construir e destruir sem qualquer acreacutescimo moral numa
inocecircncia eternamente idecircntica neste mundo existe apenas no jogo do artista e da crianccedilardquo
(NIETZSCHE 2013 paacuteg 68) Estar na marca do pensamento eacute portanto jogar o jogo
do poeta e da infacircncia
12 A tradiccedilatildeo
41
Este jogo de ensino seja ele de literatura e de filosofia seja de qualquer outra
disciplina eacute marcado por uma tradiccedilatildeo Quando nos perguntamos o que como e a quem
ensinar estamos levando em conta querendo ou natildeo um percurso histoacuterico de
compreensatildeo do mundo em que vivemos De certa maneira a tradiccedilatildeo foi um caminho
na marca do pensamento que se estabeleceu canonicamente de modo que essa tomada de
atitude torna-se familiar e conhecida num determinado grupo
Simultaneamente ao criticar o ensino critica-se a tradiccedilatildeo do ensinar Em linhas
gerais tanto o ensino quanto a tradiccedilatildeo se confundem em significado Como mostra o
sentido aceito amplamente pela sociedade encontra-se na palavra tradiccedilatildeo os significados
de ldquoato ou efeito de transmitir ou entregar transferecircncia heranccedila cultural conjunto de
valores costume haacutebito conjunto de doutrinas essenciais reconhecidos e aceitos por sua
ortodoxia e autoridaderdquo (HOUAISS 2009a)
Contudo assim como o ensino tambeacutem a tradiccedilatildeo pode ser pensada diversa e
criticamente Aqui se dispotildee a pensar a tradiccedilatildeo da tradiccedilatildeo isto eacute a tradiccedilatildeo do que se
costuma compreender como o que seja tradiccedilatildeo No seu ensaio A crise na educaccedilatildeo
Hannah Arendt (1972 paacuteg 243) jaacute chamava atenccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e
educaccedilatildeo ao dizer ldquoa crise da autoridade na educaccedilatildeo guarda a mais estreita conexatildeo com
a crise da tradiccedilatildeo ou seja com a crise de nossa atitude face ao acircmbito do passadordquo Um
relacionamento que evoca tambeacutem a autoridade de que a tradiccedilatildeo dispunha e que
determina os modos de ser da educaccedilatildeo consequentemente do ensino
Neste sentido qual a relaccedilatildeo entre ensino tradiccedilatildeo e autoridade Seria a tradiccedilatildeo
o ensino da autoridade Concebendo tradiccedilatildeo como conjunto de valores heranccedila cultural
e transferecircncia pode-se supor daiacute uma autoridade dos conteuacutedos Se foi feito assim
faccedilamos assim Mais uma vez lidamos com a transmissatildeo de uma concepccedilatildeo de maneiras
de ver o real teorias e metodologias Uma tradiccedilatildeo tecnicista que transmite a autoridade
cientiacutefica pelo ensino determinando o que o real eacute a partir do que se acredita que ele deve
ser controlaacutevel e controlado Por esse vieacutes de tradiccedilatildeo a criaccedilatildeo cede espaccedilo agrave
reproduccedilatildeo e a ousadia ao zelo
Pertence agrave proacutepria natureza da condiccedilatildeo humana o fato de que cada geraccedilatildeo se
transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geraccedilatildeo
para um mundo novo soacute pode significar o desejo de arrancar das matildeos dos
receacutem-chegados sua proacutepria oportunidade face ao novo (ARENDT 1972 paacuteg
226)
42
121 Quando o poeacutetico repousa esquecido
Esta eacute a tradiccedilatildeo do homem ocidental o mesmo que vive a ilusatildeo de poder
compreender tudo a seu redor Um homem que busca suas origens Isto significa estar
num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos e por fim sua forma de
ser Este eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita alfabeacutetica a filosofia e a
induacutestria Vale ressaltar que haacute um embate na Academia sobre se a invenccedilatildeo da escrita
alfabeacutetica eacute ou natildeo eacute obra grega A ideia neste trabalho natildeo eacute se perder ldquona busca do
primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica
fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo
(HAVELOCK 1996a paacuteg 15) pois nenhuma dessas revoluccedilotildees chegaram sem cobrar
um preccedilo Cada invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se
Como a tradiccedilatildeo tradicional lida com a inventividade Ao longo dos seacuteculos
houve criaccedilotildees das mais variadas nunca se deixou de inventar e criar a despeito da
autoridade da tradiccedilatildeo Por outro lado talvez certo desconforto com o que se apresenta
seja mesmo necessaacuterio a fim de que haja um impulso pela criaccedilatildeo Inclusive eacute de se
suspeitar a coincidecircncia de que justo no seacuteculo no qual mais se inventaram coisas maior
foi a repulsa pela tradiccedilatildeo A pergunta agora se refaz como se daacute essa inventividade que
despreza o jaacute inventado a ponto de estar sempre agrave busca por uma novidade
O problema da educaccedilatildeo no mundo moderno estaacute no fato de por sua natureza
natildeo poder esta abrir matildeo nem da autoridade nem da tradiccedilatildeo e ser obrigada
apesar disso a caminhar em um mundo que natildeo eacute estruturado nem pela
autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradiccedilatildeo (ARENDT 1972 paacuteg
245-246)
Este eacute o homem que vive a ilusatildeo A criaccedilatildeo que renega a tradiccedilatildeo desprezando-
a se ilude por natildeo reconhecer que toda invenccedilatildeo jaacute faz parte da tradiccedilatildeo somente por ter
sido inventada A novidade soacute existe conceitualmente ou no instante imensuraacutevel pois a
partir do derradeiro momento da criaccedilatildeo o a fazer se torna feito particiacutepio passado
43
Estando a coisa posta somente a disposiccedilatildeo criativa perante a tradiccedilatildeo pode dar
movimento e sentidos ao ateacute entatildeo adormecido
Poreacutem o imaginaacuterio da ficccedilatildeo da literatura natildeo pode ser confundido com a
simples ilusatildeo promotora da coisificaccedilatildeo e da alienaccedilatildeo do homem pela
manipulaccedilatildeo de estereoacutetipos ideoloacutegicos O ilusoacuterio natildeo promove o descortinar
do sentido do ser do homem humanizando-o libertando-o Pelo contraacuterio o
seu modelo eacute uniforme e repetido jamais dando lugar agrave diferenccedila ao que ainda
natildeo se sabe ao desafio do perguntar (CASTRO 1994 paacuteg 135 ndash grifo no
original)
Este eacute o homem que vem perdendo seu contato mais imediato e concreto com as
coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que nada mais eacute do que o desdobramento
do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo Um homem teacutecnico um homem no qual o
poeacutetico repousa esquecido Sobre este periacuteodo da nossa histoacuteria impotildee-se uma tradiccedilatildeo
nos moldes da ciecircncia e da teacutecnica moderna que almeja sempre suplantar qualquer outra
tradiccedilatildeo que natildeo lhe diga respeito
O pensar poeacutetico eacute o pensar se manifestando realizaccedilatildeo concreta [] Sua
concretude adveacutem precisamente da ausecircncia de certeza e da vigecircncia de uma
dinacircmica O pensar eacute apresentado como o pensar que pensa realizando
diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulaccedilatildeo
de abstraccedilotildees como informaccedilotildees coligidas para se apresentarem no mais das
vezes como simulacro de alguma realizaccedilatildeo externa a esse mesmo pensar
(JARDIM 2005 paacuteg 33)
122 A ideia e o ser
Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que
as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as
coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos
compreendecirc-las A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana
das coisas mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa
a ser nossa possibilidade de vecirc-las Jaacute dizia Pessoa
O Universo natildeo eacute uma ideia minha
A minha ideia do Universo eacute que eacute uma ideia minha
44
A noite natildeo anoitece pelos meus olhos
A minha ideia da noite eacute que anoitece por meus olhos
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso (PESSOA 2006 paacuteg 51)
Nos versos do poeta na voz de seu heterocircnimo Alberto Caeiro ressoa como um
estrondo a dicotomia entre concreto e abstrato entre lidar com uma tradiccedilatildeo de
pensamento que se insere na emergecircncia das circunstacircncias na qual tudo tem um limite
no deslimite das possibilidades e compreender a instacircncia das coisas como algo
mensuraacutevel apreensiacutevel pelas ideias e conceitos em sua totalidade Isto eacute a crenccedila de que
a realidade pode ser conhecida genericamente apresentada num modelo que representa
todo o resto Desta forma jaacute tendo conhecido o molde basta adequaacute-la reproduzi-la Sem
que haja a necessidade de pensamento e criaccedilatildeo surge o costume de fazer
O calo eacute o haacutebito ndash o haacutebito cultural ndash e porque haacutebito automaacutetico mecacircnico
imediato esquema estiacutemulo-resposta embotador e gerador de apatia
indiferenccedila lassidatildeo Vecirc-se entatildeo como habitualmente se vecirc ou como todo
mundo vecirc Assim se sente assim se pensa Impera a atitude que uni-formiza
uni-dimensionaliza homo-geneiza e que eacute a vigecircncia do raso do plano da
planiacutecie ou seja a apatia ou a indiferenccedila do tudo igual do mediacuteocre
(FOGEL 2007 paacuteg 40 ndash grifos no original)
Natildeo soacute isso esta tradiccedilatildeo que se engendra no haacutebito tende a natildeo dar importacircncia
ao que natildeo tem utilidade isto eacute natildeo pode se adequar aos moldes da funcionalidade A
pergunta que se faz diante do desconhecido deixa de ser ldquoo que eacute istordquo para virar ldquopara
que serve istordquo Quando a resposta eacute positiva a realidade passa a vigorar pela sua funccedilatildeo
quando negativa eacute descartada ou deixada agrave mercecirc da indiferenccedila e do desdeacutem A respeito
do poema ldquoUma flor agrave margem do rio para ele era uma flor amarela e natildeo era mais nadardquo
(WORDSWORTH apud PESSOA 2006 paacuteg 61)20 diz Caeiro
Toda coisa que vemos devemos vecirc-la sempre pela primeira vez porque
realmente eacute a primeira vez que a vemos E entatildeo cada flor amarela eacute uma nova
flor amarela ainda que seja o que se chama a mesma de ontem A gente natildeo eacute
jaacute o mesmo nem a flor a mesma O proacuteprio amarelo natildeo pode ser jaacute o mesmo
Eacute pena a gente natildeo ter exatamente os olhos para saber isso por que entatildeo
eacuteramos todos felizes (PESSOA 2006 paacuteg 61)
20 A primrose by the riverrsquos brim A yellow primrose was to him And it was nothing more
45
Neste sentido compreende-se a tradiccedilatildeo como um conceito isto eacute ldquocomo a coisa
sempre jaacute vista sempre jaacute sabidardquo (FOGEL 2007 paacuteg 41 ndash grifos no original)
Compreende-se enquanto o que se prende junto a si A ilusatildeo de poder compreender tudo
se faz principalmente por se tratar desse caraacuteter conceitual e abstrato com que nos
relacionamos com as coisas Entatildeo quando o poeta chama atenccedilatildeo agrave diferenccedila entre
alguma coisa e a minha ideia sobre alguma coisa eacute como se ele convidasse a experienciar
a realidade para os limites que ela a cada vez nos impotildee ao inveacutes de impormos nossa
limitaccedilatildeo conceitual a ela
Diferente de ser dois homem e realidade o poema apresenta que ldquoo fulgor das
estrelas existe como se tivesse pesordquo (PESSOA 2006 paacuteg 51) ou seja sentimos a
realidade como a um semelhante o fulgor natildeo eacute substantivo abstrato mas o arremate que
nos causa maravilhamento espanto terror todas as sensaccedilotildees que por sua vez geram
reaccedilotildees prova de que natildeo estamos apaacuteticos perante o que eacute Tal estado de ser se
corresponde a uma multiplicidade de disposiccedilotildees natildeo se esgotando na funcionalidade
que o fulgor das estrelas poderia ter
A ideia de algo natildeo versa a respeito das singularidades e sim sobre o que seus
nuacutemeros e estatiacutesticas indicam Pode de fato o sabor de uma banana ou maccedilatilde ceder lugar
ao conjunto das frutas quantitativamente sem gosto Ateacute a morte natildeo eacute mais uma
manifestaccedilatildeo do real tanto quanto respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser
superado basta termos mais conhecimentos a respeito
mdash Se concebo o quecirc Uma coisa ter limites Pudera O que natildeo tem limites
natildeo existe Existir eacute haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser
limitada O que eacute que custa conceber que uma coisa eacute uma coisa e natildeo estaacute
sempre a ser uma outra coisa que estaacute mais adiante []
mdash Olhe Caeiro Considere os nuacutemeros Onde eacute que acabam os nuacutemeros
Tomemos qualquer nuacutemero ndash 34 por exemplo Para aleacutem dele temos 35 36
37 38 e assim sem poder parar Natildeo haacute nuacutemero grande que natildeo haja um
nuacutemero maior
mdash Mas isso satildeo soacute nuacutemeros ndash protestou o meu mestre Caeiro E depois
acrescentou olhando-me com uma formidaacutevel infacircncia
mdash O que eacute o 34 na Realidade (PESSOA 2006 paacuteg 62)
Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como
tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de
novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma
46
forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia
murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos
Tudo com o que se tem contato passa a ser o sem misteacuterio o sabido e o
compreendido ou a compreender Tudo pode ser acessado inclusive o proacuteprio homem O
homem pelo homem passa a ser um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser
diagnosticada e curada o humano torna-se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma
infinidade de predicativos que validam o sujeito homem Nossa ideia de homem passa a
ser o homem
123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo
Nossa ideia de tradiccedilatildeo natildeo eacute a tradiccedilatildeo Melhor dizendo atualmente vigora uma
concepccedilatildeo de tradiccedilatildeo que natildeo permaneceu a mesma no tempo o que significa que o
modo como o homem foi apreendido pela histoacuteria mudou Na proacutepria liacutengua encontramos
traccedilos de outra tradiccedilatildeo em sua etimologia formas diversas de ser no mundo Conveacutem
entretanto uma ressalva a busca aos sentidos anteriores quiccedilaacute originaacuterios nem sempre
tem a ver com um empenho gramatical ldquoEtimologia natildeo diz em primeiro lugar ciecircncia
linguiacutestica que investiga a identidade entre os radicais das palavras [] Em sentido
proacuteprio (aqui literal) etimologia diz logos do eacutetimo linguagem do proacuteprio comeccedilordquo
(SCHUBACK 1996 paacuteg 62) Em vez disso trata-se de estar atento ao aceno de
significaccedilotildees e de experiecircncias que as palavras portam cujo uso comunicativo da liacutengua
ignora ou desconhece
Etimologia tambeacutem eacute um dizer mas um dizer originaacuterio que emerge de uma
consentaneidade O radical eacutetymos significa legiacutetimo autecircntico verdadeiro
Etimologia natildeo eacute um dizer qualquer Eacute o dizer que remonta para o proacuteprio
processo de dizer que proveacutem da verdade do proacuteprio dizer e por isso se faz
legiacutetimo pelo vigor de sua proacutepria vigecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 104)
Tendo isso dito observa-se que a palavra tradiccedilatildeo se origina de traditio ndash
conforme se encontra em Houaiss (2009a Tradiccedilatildeo) Dicionaacuterio Michaelis (2015
47
Tradiccedilatildeo)21 e Aulete e Valente (2016 Tradiccedilatildeo)22 ndash por via erudita conforme Ferreira
(2004 Tradiccedilatildeo) Por sua vez temos os seguintes sentidos etimoloacutegicos ldquoaccedilatildeo de dar
entrega transmissatildeo tradiccedilatildeo ensinordquo (HOUAISS 2009a) que aparentemente se
mantiveram com relativa estabilidade no uso contemporacircneo da liacutengua em se tratando do
significado mais abstrato da palavra sob o conceito de ir passando um conhecimento
adiante perpetuando um saber
Ao procurar num dicionaacuterio de latim confirma-se o significado de entrega
transmissatildeo e ensino natildeo se restringindo todavia ao abstrato do termo Considera-se
tambeacutem o transporte fiacutesico de objetos e de pessoas ldquo1 A entrega (de mercadorias bens
etc) rendiccedilatildeo (de pessoas territoacuterio etc) [] 2 A transmissatildeo de conhecimento ensino
b a entrega do conhecimento um item de conhecimento tradicional crenccedila etc)rdquo
(GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)23 Perdemos no habitual da liacutengua a tradiccedilatildeo
para o concreto Uma pessoa pode ser entregue agrave poliacutecia um terreno pode ser entregue ao
seu proprietaacuterio mas dificilmente chamariacuteamos isso de tradiccedilatildeo Logo a primeira entrada
do dicionaacuterio latino ficou esquecida Aqui seraacute tarefa do pensamento perscrutar o terreno
do esquecimento para fazer a experiecircncia de mundo calada na palavra
Prosseguindo traditio eacute constituiacuteda a partir da substantivaccedilatildeo do verbo trado com
o sufixo -tio (GLARE 1968 paacuteg 1956) equivalente ao nosso -ccedilatildeo Um verbo rico por
sinal com dez entradas no Oxford Dictionary A maioria satildeo nuances do sentido-base de
entregar por exemplo ldquo1 Entregar ou passar adiante (para uma pessoa) b dar (para uma
pessoa para segurar) transferir (para uma posiccedilatildeo) c entregar (ao funcionamento das
forccedilas naturais etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)24 Alguns sentidos jaacute
mais distantes referem-se a trado como ldquo7 Introduzir (uma pessoa a outra ndash traduccedilatildeo
livre)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956)25
21 Disponiacutevel em
lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=tradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16
set 2016 22 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16 set 2016 23 1 The handing over delivery (of goods possessions etc) surrender (of persons territory etc) [] 2
The transmission of knowledge teaching b the handing down of knowledge a item of traditional
knowledge belief etc) 24 1 To hand or pass over (to a person) b to hand over give (to a person to hold) to transfer (to a
position) c to deliver hand over (to the operation of natural forces etc) 25 7 To introduce (a person to another)
48
Introduzir natildeo deixa de guardar certa semelhanccedila com entregar pois tambeacutem diz
de levar algueacutem ou algo de uma posiccedilatildeo a outra Todo esse translado natildeo eacute agrave toa uma vez
que a palavra trado jaacute remete a isso em sua formaccedilatildeo por meio do prefixo trans- com o
verbo do (GLARE 1968 paacuteg 1956) em que trans- nos diz de ldquo1 Do outro lado ou por
cima atraveacutes para o outro lado de [] Formas frequentemente tra- antes de consoantes
surdasrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1961 ndash traduccedilatildeo livre)26 A saber temos ainda no portuguecircs
falado o uso do trans- seja nesta forma como em transbordar e transportar seja na forma
tra- em tradiccedilatildeo traduzir ou ateacute numa outra variaacutevel como em trespassar (LIMA 1972
paacuteg 178) Isto significa que natildeo eacute nenhum espanto ter ainda que vagamente a noccedilatildeo de
passagem passar aleacutem de ao pensar ao pronunciar a palavra tradiccedilatildeo tra-diccedilatildeo
A outra parte dessa uacuteltima composiccedilatildeo eacute do o verbo dar em latim Este eacute um verbo
complexo Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos O
primeiro deles que aparece no latim eacute ldquo1 Conferir gratuitamente dar posse de fazer uma
doaccedilatildeo de dar b dar oferecer (aos deuses os mortos etc) c conceder (a posse legal a
utilizaccedilatildeo etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 566 ndash traduccedilatildeo livre)27
De fato na entrega algo eacute dado algo eacute oferecido garante-se que por um
deslocamento algo atravessa ateacute outra circunstacircncia Em todo trado haacute um do toda
entrega daacute Um dar que reforccedila a travessia do dado no seu prefixo Entregar como o que
ldquotransdaacuterdquo resguardando a importacircncia que a passagem tem para a entrega Levando isso
em conta o modo verbal que foca seu aspecto no movimento eacute o geruacutendio Tem-se pois
entregar trado enquanto um dar oferecendo Um dar que eacute dando E assim eacute feita a
entrega a tradiccedilatildeo como o ato que daacute e permanece neste movimento de doaccedilatildeo
Quem oferece introduz uma oferta Uma daacutediva que natildeo se materializa
simplesmente no seu destino como se seu objetivo fosse somente a finalidade mas que
faz uma trajetoacuteria da entrega ao recebimento E quanto agrave sua origem quanto agrave sua meta
Entrega enquanto tradiccedilatildeo atravessa e por isso eacute atravessada Isto eacute tradiccedilatildeo eacute um
atravessamento da entrega sempre se originando ldquoTudo o que acontece eacute sempre um
comeccedilordquo (RILKE 1976 paacuteg 52)
26 1 Across or over also through to the other side of [hellip] Forms freq tra- before voiced consonants 27 1 To confer gratuitously give possession of make a gift of give b to give offer (to the gods the dead
etc) c to grant (legal possession use etc)
49
A partir do momento em que se chega ao alvo cessa a entrega para a tradiccedilatildeo
Por isso que tradiccedilatildeo enquanto tra-diccedilatildeo precisa estar em constante recebimento e oferta
Precisa passar adiante e desta forma estar em insistente diaacutelogo com a histoacuteria e sua
dinacircmica A mera reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo em outras palavras a tradiccedilatildeo da reproduccedilatildeo
natildeo reverbera na tensatildeo do ontem do hoje e do sempre Eacute dar sem a travessia sem os
percalccedilos do caminho Entre o que permanece no fluxo das mudanccedilas haacute uma tradiccedilatildeo
entre o que muda na constacircncia haacute uma tradiccedilatildeo e assim sua obra continua a fazer sentido
por mais diversas que sejam as eacutepocas as pessoas as circunstacircncias Num paralelo com
a obra de arte a tradiccedilatildeo exerce sua dinacircmica de maravilhamento e repulsa concessatildeo do
tracircnsito das experiecircncias de mundo
A unicidade da obra de arte eacute idecircntica agrave sua inserccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo
Sem duacutevida essa tradiccedilatildeo eacute algo de vivo de extraordinariamente variaacutevel
Uma antiga estaacutetua de Vecircnus por exemplo estava inscrita numa certa tradiccedilatildeo
entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradiccedilatildeo na
Idade Meacutedia quando os doutores da Igreja viam nela um iacutedolo malfazejo O
que era comum as duas tradiccedilotildees contudo era a unicidade da obra []
(BENJAMIN 1987 paacuteg 171)
124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo
A tradiccedilatildeo pois eacute um processo natildeo um produto Ou pelo menos assim seria para
os entendidos das etimologias conhecedores das liacutenguas claacutessicas estudiosos e
especialistas A quem eacute vedado o conhecimento distante estaacute a luz do saber Equivoca-
se quem se debruccedila sobre dicionaacuterios mais do que se dedica ao pensamento O caminho
aqui oferece questotildees natildeo soluccedilotildees
O que eacute a palavra sem a relaccedilatildeo com o que nomeia e o que nela vem agrave palavra
Deve-se sair correndo de toda etimologia vazia e acidental ela se torna
jogatina se o que se estaacute a nomear na palavra jaacute natildeo tiver sido anteriormente
pensado por caminhos longos e vagarosos e natildeo continuar a ser sempre de
novo pensado comprovado e sempre de novo provado em sua essecircncia de
palavra (HEIDEGGER 1998 paacuteg 207)
Por isso conveacutem enveredar-se tanto no mais recocircndito significado a fim de
auscultar seu sentido praticamente mudo na fala mais corriqueira bem como no
50
aparentemente mais banal significado arcaico Desse modo reconhecemos que em toda
fala cotidiana haacute um canto antigo e inaudito Assim continuamos com a etimologia agora
pela via popular de traditio
Em Aulete e Valente (2016 Traiccedilatildeo)28 e Ferreira (2004 Traiccedilatildeo) encontra-se
outra via de acesso que natildeo a erudita ao portuguecircs brasileiro da palavra traditio a palavra
traiccedilatildeo Resumidamente tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo possuem exatamente a mesma origem latina
em traditio Ora traiccedilatildeo nos eacute apresentada pelos meios de comunicaccedilatildeo mais usados e
acessiacuteveis como uma ruptura da expectativa e da confianccedila sendo normalmente encarada
como uma maldade por nossa moral vigente ldquoQuebra de fidelidade prometida e
empenhada aleivosia deslealdade perfiacutediardquo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015
Traiccedilatildeo)29 Qual eacute a daacutediva entatildeo Onde estaacute a traditio na traiccedilatildeo
Bom e ruim satildeo paradigmas morais Quando se diz da traiccedilatildeo de outrem leva-se
em conta sua conduta perante o que se espera enquanto membro de uma sociedade Pela
traiccedilatildeo se fixou a negatividade do que eacute dado A tradiccedilatildeo maacute a tradiccedilatildeo perversa a daacutediva
rejeitada socialmente uma traiccedilatildeo Ora essa postura determiniacutestica natildeo considera o trans-
que tambeacutem haacute na traiccedilatildeo O absoluto que jaz aparentemente em toda traiccedilatildeo se revela
tatildeo variaacutevel assim como a relaccedilatildeo de infidelidade da esposa com o marido natildeo tem a
mesma perfiacutedia moral que a quebra da confianccedila pelo espiatildeo em defesa da paacutetria Esta
talvez nem maldade fosse mas digna de medalha por seus pares
Originalmente ndash assim eles decretam ndash as accedilotildees natildeo egoiacutestas foram louvadas e
consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas aqueles aos quais eram
uacuteteis mais tarde foi esquecida essa origem do louvor e as accedilotildees natildeo egoiacutestas
pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas foram
tambeacutem sentidas como boas ndash como se em si fossem algo bom (NIETZSCHE
1998 paacuteg 18)
Na dinacircmica do movimento o bom e o ruim se imiscuem Entatildeo trair pode ser
uma coisa boa justificaacutevel em algumas ocasiotildees assim como a tradiccedilatildeo Eacute importante
aqui natildeo confundirmos o caminho com o caminhar O caminho natildeo faz escolhas o
caminhar sim A traiccedilatildeo oferece daacute e entrega algo o modo como lidamos com essa oferta
eacute outra perspectiva Um caso social pessoal cultural Traiccedilatildeo natildeo eacute soacute mateacuteria de
tabloides pelo contraacuterio ela reconhece a tradiccedilatildeo e neste reconhecimento nega-a
28 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtraiC3A7C3A3ogt Acesso em 18 set 2016 29 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscaid=4bjp3gt Acesso em 18 set 2016
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oferecendo outra possibilidade de concepccedilatildeo do real cuja moral da tradiccedilatildeo ndash aquela
tradicional e comprometida com o produto a ser entregue natildeo com o processo ndash reprova
Em consonacircncia com a dinacircmica da travessia a traiccedilatildeo engendra o outro valor da tradiccedilatildeo
sua proacutepria instacircncia de desvio agrave qual a entrega enquanto doaccedilatildeo de possibilidades se
dispotildee
Contudo eacute compreensiacutevel a descrenccedila de que traiccedilatildeo seja algo que natildeo um
comportamento execraacutevel Afinal desde haacute muito a proximidade com uma semacircntica da
malignidade se adequa agrave palavra Os primeiros dicionaacuterios do portuguecircs jaacute apresentam
esse sentido e isto nos indica ao menos nos ciacuterculos intelectuais qual eacute a interpretaccedilatildeo
do termo que se arrasta na histoacuteria da liacutengua permeando nossa concepccedilatildeo de mundo
ldquoTraiccedilaotilde ndash perfiacutedia falta de fidelidade ao Principe ao amigo que se fiava de nogravesrdquo
(BLUTEAU 1728 paacuteg 237) ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia entrega da feacute quebra da fidelidade
prometidardquo (SILVA 1789 paacuteg 794) e ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia falta de fidelidaderdquo (PINTO
1832 paacuteg 1057)
A relaccedilatildeo entre perfiacutedia e traiccedilatildeo natildeo comeccedila neste momento nem se restringe ao
portuguecircs mostrando que outras liacutenguas detiveram semelhante compreensatildeo de mundo
ldquoO Italiano chama ao Traductor Traidor Traduttore Traditore mas o Traductor fiel natildeo
he Traidorrdquo (BLUTEAU 1728 paacuteg 234) Uma proximidade que se justificaria na
formaccedilatildeo na qual traduccedilatildeo deriva de trans- + -duco- + -tio Ambos os verbos trado e
traduco satildeo introduzidos pelo prefixo-ponte aceno para a travessia na sua forma tra-
Entre duco e do entre trazer e dar haacute sim muitos sentidos parecidos que se distanciam
com sutileza e se aproximam com cautela Na proposiccedilatildeo anterior o tradutor fiel traria o
sentido do verso enquanto que o traidor daacute sentido ao verso fugindo agrave fidelidade da
mensagem
Ora quantos ruiacutedos existem entre o que se diz e o que se quer dizer Quem haacute de
mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido Imersa em
narrativa a mensagem assume o rosto das variadas interpretaccedilotildees e ainda assim a
mensagem eacute apenas a interpretaccedilatildeo do real enquanto palavra obra gesto e natildeo o real
propriamente A unicidade da obra a que Benjamin (1987 paacuteg 171) se referia eacute o que
permite uma entrega a cada vez autecircntica de respostas sem esgotar a questatildeo que a arte
suscita Nessa dimensatildeo todo tradutor eacute em certa medida traidor ainda sem o querer
pois necessariamente ele falharaacute em entregar a mensagem na iacutentegra concomitantemente
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o tradutor eacute um ldquotraditorrdquo algueacutem que porta uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo e a passa
adiante em sua possibilidade de autenticidade
125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo
A traiccedilatildeo natildeo deixa de ser uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ou melhor
da falta agrave tradiccedilatildeo seja na figura de um rei enganado seja na de um amante infiel A
histoacuteria da liacutengua apenas serve para confirmar a desconfianccedila que a traiccedilatildeo engendra
Todavia o uacuteltimo seacuteculo tem revisto sua proacutepria compreensatildeo de relato histoacuterico o que
vem influenciando as mais diversas aacutereas inclusive a lexicografia
Os dicionaristas agora levam em conta natildeo apenas a norma culta escrita para
reconhecer uma entrada no dicionaacuterio ndash como nas primeiras publicaccedilotildees em liacutengua
vernacular ndash mas o uso corrente oral palavras chulas e ateacute palavras de uso apenas em
determinadas comunidades Essas populaccedilotildees algumas delas isoladas do conviacutevio com o
restante da civilizaccedilatildeo tiveram um desenvolvimento proacuteprio da liacutengua condizente com
sua experiecircncia de mundo
Nesse sentido algumas palavras para noacutes ndash que estamos acostumados com o
linguajar citadino que fomos atravessados por anos de teorias e praacuteticas cientiacuteficas jaacute
cristalizadas ndash podem soar estranhas pela maneira como usam aquelas comunidades
embora ambas tenham uma origem comum Isto eacute cada tradiccedilatildeo faz seu caminho e
resguarda interpretaccedilotildees singulares em diaacutelogos mais ou menos audiacuteveis no uso
corriqueiro das fontes propulsoras do nomear
No dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que
pela fala perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircncia Contudo na maior
parte das vezes e com frequecircncia o dito nos vem ao encontro como uma fala
que passou
Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz fariacuteamos bem em
encontrar um dito que se diz genuinamente e natildeo um dito qualquer escolhido
de qualquer modo Dizer genuinamente eacute dizer de tal maneira que a plenitude
do dizer proacutepria ao dito eacute por sua vez inaugural (HEIDEGGER 2003 paacuteg
12)
53
Nos grandes dicionaacuterios de portuguecircs brasileiro uma das entradas de traiccedilatildeo
destoa do sentido de perfiacutedia mais usual ao mesmo tempo em que se aproxima de uma
entrega e uma oferta ldquo4 Regionalismo Minas Gerais Mato Grosso Mato Grosso do Sul
Variedade de mutiratildeo em que o fazendeiro que tenciona auxiliar o vizinho chega agrave casa
deste de madrugada em companhia de trabalhadores e desperta-o ao som de cantosrdquo
(HOUAISS 2009a Traiccedilatildeo) ldquo5 MG MT MS Mutiratildeo em que os ajudantes chegam agrave
casa de quem vai ser ajudado de madrugada e acordam-no com cantosrdquo (AULETE
VALENTE 2016 Traiccedilatildeo) ldquo5 Bras MT Espeacutecie de mutiratildeo (q v) com a
particularidade de o fazendeiro que pretende auxiliar o vizinho chegar agrave casa deste alta
noite de surpresa em companhia dos trabalhadores acordando-o em geral ao som de
cantos [Cf nesta acepccedil suta (3) e estalada (5)]rdquo (FERREIRA 2004 Traiccedilatildeo)
6 REG (MG MS MT) ETNOL Ver suta acepccedilatildeo 3 3 REG (GO) ETNOL
Mutiratildeo prestado por amigos e vizinhos de um fazendeiro que chegam de
surpresa para realizar um serviccedilo urgente e quando concluiacutedo voltam para a
sede da fazenda para um jantar especial seguido de reza cantoria e danccedila
traiccedilatildeo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015 Suta)30
Como a traiccedilatildeo virou auxiacutelio Como de perfiacutedia a palavra traiccedilatildeo ganhou uma
conotaccedilatildeo praticamente oposta digna inclusive de comemoraccedilotildees A tal pergunta natildeo se
pode responder com certeza neste trabalho Em geral os regionalismos satildeo marcas
culturais como estruturas linguiacutesticas que se referem a determinadas comunidades e satildeo
leituras de mundo feitas por ou a respeito delas Apresentam uma singularidade no uso
seja na manutenccedilatildeo de sentidos seja na construccedilatildeo de novas relaccedilotildees entre palavra e
realidade de tal modo que um sentido antigo poderia tomar um caminho aparentemente
contraditoacuterio ao canocircnico e ainda assim dialogar com este no que haacute de originaacuterio em
ambos Em entrevista ao Diaacuterio de Lisboa Joatildeo Cabral de Melo Neto nos oferece sua
interpretaccedilatildeo do que seja o regionalismo e o regional
O regionalismo natildeo eacute uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de
problemas que estatildeo mais proacuteximos da pessoa que fala a dor do homem a
alegria suas lutas e as suas belezas etc [] Quando me bato pelo regionalismo
eacute para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os
30 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=sutagt Acesso em 20 set
2016
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homens O homem soacute eacute amplamente homem quando eacute regional (ATHAYDE
1998 paacuteg 85)
Tem-se pois a ajuda oferecida Uma comunidade na qual um de seus membros
receberia auxiacutelio de bom grado apresenta-se e se dispotildee ao trabalho conjunto Importante
notar que a vinda auxiliadora natildeo recai exclusivamente na realizaccedilatildeo do labor mas se
enfeita de muacutesica e danccedila um rito trabalhiacutestico Ela natildeo eacute imediata natildeo eacute objetiva em sua
funccedilatildeo mas se permite demorar no empenho de ajudar num tempo em que ajuda natildeo eacute
puro desempenho da tarefa Por sua vez o ajudado tambeacutem oferece algo comidas
agradecimentos e seu trabalho se junta aos demais na comunhatildeo criada para aquela
circunstacircncia especiacutefica
Neste caso a festa eacute tatildeo necessaacuteria quanto o trabalho Tanto que o serviccedilo natildeo visa
agrave remuneraccedilatildeo natildeo se busca a troca simboacutelica A voluntariedade estaacute na garantia de
persistecircncia desse tipo de relaccedilatildeo de comunidade que se ajuda pois cada um eacute tanto um
uacutenico quanto a unidade que caracteriza o comum Eu o ajudo no que me ajudo Na entrega
da ajuda que eacute uma traiccedilatildeo em particular eu perpetuo a tradiccedilatildeo daquela comunidade
Esta eacute a traiccedilatildeo que oferece ajuda mediante confraternizaccedilatildeo e agrave revelia de salaacuterio
Uma daacutediva que natildeo se fia unicamente no desfecho para o ato e que atravessa toda a accedilatildeo
desde sua requisiccedilatildeo de auxiacutelio ateacute sua promessa ambas veladas no desvelar daquela
comunidade A isto chamamos de outro nome quando nos reunimos para ajudar em
amizade e em prol de um uacutenico em unidade com os demais mutiratildeo
Para compreender a relaccedilatildeo regionalista com a palavra traiccedilatildeo conveacutem ouvir nela
o que aparece como sinocircnimo dicionarizado agrave palavra mutiratildeo Aqui sinocircnimo seraacute
tratado como um termo que indica a aproximaccedilatildeo entre as experiecircncias de mundo que as
palavras sugerem Logo prestar atenccedilatildeo ao que mutiratildeo se refere eacute atentar-se agravequilo que
a traiccedilatildeo pode vir a dizer a noacutes e diz agrave sua maneira aos que vivem naquelas comunidades
regionais
A palavra mutiratildeo se origina de potyrotilde pitibotilde popitibotilde e picorotilde (DICIONAacuteRIO
TUPI-GUARANI 2016 Mutiratildeo)31 Na liacutengua tupi ldquop t k quando precedidos por vogai
nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng [] b em siacutelaba aacutetona muda-se em m quando
precedido por vogal nasal ou nasalizadardquo (RODRIGUES 1953 paacuteg 123) Isso ocasiona
31 Disponiacutevel em lthttpwwwdicionariotupiguaranicombrdicionariomutiraogt Acesso em 21 set
2016
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a variaccedilatildeo motyrotilde que significa no idioma indiacutegena ldquo(v intr) ndash trabalhar em conjuntordquo
(NAVARRO 2013 paacuteg 405) Diferentemente de um grego ou latim o tupi eacute uma liacutengua
que nos chegou exclusivamente pela via oral assim uma mesma palavra pode ter vaacuterias
origens devido agraves incertezas que a envolvem Isso de nenhuma maneira precisa ser
encarado como um demeacuterito mas como desafio de lidar com o variado e o mesmo
simultaneamente
Um caminho de interpretaccedilatildeo possiacutevel para isto a que os indiacutegenas chamavam de
popitibotilde ou popytybotilde proveacutem da palavra popy que literalmente quer dizer ldquoponta cabo
extremidade (de qualquer coisa)rdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 394) haja vista sua
constituiccedilatildeo poacute ldquomatildeordquo (NAVARRO 2013 paacuteg 390) + py ldquopeacute patardquo (NAVARRO
2013 paacuteg 413) Vaacuterias satildeo as palavras geradas com esse radical por exemplo popyatatilde
e popyrsquoi ldquolsquoser forte de braccedilosrsquo [e] lsquodestreza de matildeosrsquordquo(NAVARRO 2013 paacuteg 394)
respectivamente Nesse sentido popytybotilde significa ldquo(etim ndash ajudar a matildeo) (v tr) ndash
ajudarrdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 395) Ajudar com as matildeos uma indicaccedilatildeo ao esforccedilo
no empenho do auxiacutelio como nos esforccedilamos em trabalhos manuais Auxiliar natildeo como
quem apoia ou aconselha mas como quem carrega o fardo alheio com as proacuteprias matildeos
fazendo-o seu por instantes
126 Os mutirotildees do homem
Embora a palavra seja de origem tupi outras tribos como os šerersquonte tinham
experiecircncias semelhantes agravequela referente a potyrotilde ldquoSe a capina foi demasiada para uma
famiacutelia o marido saiu para caccedilar preparou uma torta de carne a partir da caccedila e a serviu
para os companheiros que vieram assisti-lordquo (NIMUENDAJUacute 1942 paacuteg 33 ndash traduccedilatildeo
livre)32 Tambeacutem assim o portuguecircs compara em sinocircnimo emergecircncia do que se afina
nas diversas singularidades o mutiratildeo agrave traiccedilatildeo
Traiccedilatildeo que eacute tradiccedilatildeo ou seja mutiratildeo que eacute tradiccedilatildeo um atravessamento no
tempo de um trabalho conjunto em comunidade Neste desdobramento social daacute-se um
32 If the weeding was too much for one family the husband went hunting had a meat-pie made from the
kill and served it to fellow-members who came to assist him
56
trabalho pelas mesmas matildeos que recebem a festa que eacute o natildeo trabalho que eacute o desvio do
caminho da ajuda Desvio e via de trabalho fazem parte do mutiratildeo assim como fazem
da tradiccedilatildeo sua traiccedilatildeo sua outra via de acesso ao que eacute entregue
Aprender que a tradiccedilatildeo porta o descaminho da mensagem eacute aceitar a festa sem a
qual natildeo haacute mutiratildeo sem o mutiratildeo a obra natildeo anda Sem a traiccedilatildeo a histoacuteria se repete
sem invenccedilatildeo tradicionalmente se repete Justamente eacute pela educaccedilatildeo que nos deparamos
com o empenho de pensar o desempenho da traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo agrave medida que se educa
como quem traduz cuidando para que se deixe emergir na traduccedilatildeo o vigor da tradiccedilatildeo
isto eacute o que manteacutem a tradiccedilatildeo viva doadora de sentidos sejam eles arcaicos sejam
contemporacircneos instigadora de sentidos tanto conservadores quanto iconoclastas
Mas na mesa aquele menino Guirigoacute na senvergonhice inocente de sua pouca
geraccedilatildeo tinha adormecido completo antecipadamente e eu consenti que as
mulheres carregassem o coitadinho diabinho pesado como um de maioridade
e levassem para dormir sei laacute onde por entre colchatildeo e lenccedilol A vida inventa
A gente principia as coisas no natildeo saber por que e desde aiacute perde o poder de
continuaccedilatildeo ― porque a vida eacute mutiratildeo de todos por todos remexida e
temperada (ROSA 2016 paacuteg 316)
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2 Pensando a Filosofia
21 A filosofia como resposta
Seria pois a resposta para nossos problemas a filosofia Ao optar pelo estudo
dessa disciplina leva-se a crer que haacute certo indiacutecio da apoteose filosoacutefica como desenlace
Pretensotildees agrave parte questiona-se entre outras coisas se e como a filosofia se relaciona
com a tradiccedilatildeo e haja vista a relaccedilatildeo de ensino e tradiccedilatildeo como ela se relaciona com o
ensino
Para isso conveacutem uma seacuterie de outras perguntas Poreacutem um dilema eacute estabelecido
na hora de responder a elas eacute possiacutevel de fato dar uma resposta O que eacute isto aonde chega
meu questionamento A relaccedilatildeo de filosofia com o responder natildeo eacute a mais oacutebvia Isso
porque compreendecirc-la no acircmbito do perguntar tornou-se lugar-comum do filosofar cujas
respostas passam por fugidias para natildeo dizer pouco confiaacuteveis Essa falta de confianccedila
em suas soluccedilotildees aparece como uma de suas caracteriacutesticas fundamentais possibilitando
um questionamento incessante sem um compromisso expliacutecito de resoluccedilatildeo e nem de
compreensatildeo ldquoo fazer-se compreensiacutevel eacute o suiciacutedio da filosofiardquo (HEIDEGGER 1989
paacuteg 435 ndash traduccedilatildeo livre) 33
Natildeo que essa forma de conhecimento seja totalmente avessa a propor caminhos
afinal ldquoa exclusividade da criaccedilatildeo de conceitos assegura agrave filosofia uma funccedilatildeo []rdquo
(DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17) Natildeo encerrando na assertiva anterior a
problemaacutetica a dupla de intelectuais franceses ainda desmistifica diversas crenccedilas a
respeito da filosofia e ratifica seu papel uacutetil neste caso o de conceituar Dar nome ao
inominado enveredando pelo inominaacutevel
[] a grandeza da filosofia estaria justamente em natildeo servir para nada eacute um
coquetismo que natildeo tem graccedila nem mesmo para os jovens Em todo caso natildeo
tivemos jamais um problema concernente agrave morte da metafiacutesica ou agrave superaccedilatildeo
da filosofia satildeo disparates inuacuteteis e penosos Fala-se hoje da falecircncia dos
sistemas quando eacute apenas o conceito de sistema que mudou Se haacute lugar e
tempo para a criaccedilatildeo dos conceitos a essa operaccedilatildeo de criaccedilatildeo sempre se
33 Das Sichverstaumlndlichmachen ist der Selbstmord der Philosophie
58
chamaraacute filosofia ou natildeo se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um
outro nome (DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17)
Apregoa-se na citaccedilatildeo acima a serventia da filosofia Sua causa seria algo claro
e em contrapartida qualquer aporia seja em suas teorias (como o fim da metafiacutesica) seja
dela consigo proacutepria seu porquecirc de existir eacute faceirice de criadores de intrigas
desnecessaacuterias Em outras palavras nesse trecho um conceito eacute uma resposta As nuances
do que isso significa para Deleuze se desdobram e ldquo[] natildeo deixam margem para duacutevida
a filosofia natildeo eacute uma simples arte de inventar de produzir os conceitos ela eacute uma
disciplina rigorosa que tem como funccedilatildeo primordial a criaccedilatildeo de novos conceitosrdquo
(SCHOPKE 2004 paacuteg 131)
Este rigor aproxima a filosofia da ciecircncia (mas tambeacutem da arte) pois pressupotildee
uma teacutecnica e grande labor Os limites entre as faculdades se desfazem em alguns casos
acentuando ainda mais o compromisso com uma resposta a seus anseios ldquoa filosofia eacute
pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos conhecimentos racionais a partir dos
conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico dessa ciecircnciardquo (KANT 1992 paacuteg 41)
A funcionalidade justifica com facilidade o conhecimento Precisamos saber fazer
contas para o troco da padaria e para as construccedilotildees da engenharia precisamos do idioma
para a compreensatildeo escrita da sociedade precisamos disso para aquilo basicamente
tem-se uma foacutermula Basta substituir isso para se chegar agravequilo e vice-versa Entretanto
haacute um certo vazio quando a filosofia eacute a primeira variaacutevel da equaccedilatildeo pois ateacute para o
mais elementar (por exemplo no acircmbito escolar as notas e provas) nem para isso ela
serve
Para todo professor de Filosofia acostumado agrave lida no Ensino Meacutedio satildeo
bastante conhecidas as perguntas do tipo lsquopara que serve a Filosofiarsquo lsquoeacute
mesmo necessaacuteria esta disciplina ou ela eacute apenas para mostrar que este coleacutegio
tem mais disciplinas do que os outrosrsquo ou ainda lsquose Filosofia natildeo cai no
vestibular por que temos de estudaacute-larsquo Questotildees surgidas na maior parte das
vezes logo nos primeiros contatos do aluno com essa lsquonova realidadersquo
(BRASIL 2000 paacuteg 44)
O empenho nos estudos se confunde com a dificuldade de aceitaccedilatildeo da
importacircncia da filosofia Natildeo eacute agrave toa que seus praticantes os filoacutesofos satildeo ditos seres
questionadores repletos de duacutevidas natildeo de soluccedilotildees Inclusive a distacircncia da praacutetica
59
torna-a por vezes inalcanccedilaacutevel agravequeles que natildeo foram iniciados nos conceitos dessa
mateacuteria e por isso inapropriada ao contexto de Ensino Fundamental e Meacutedio
Entretanto natildeo foi assim que comeccedilamos este texto e natildeo se pretende dar
prosseguimento creditando a nefelibatas eruditos o papel do filoacutesofo muito menos tratar
a filosofia em meio a balbuacutecies sem sentido Existe tanto um apreensiacutevel por meio do
conceito quanto o embate entre o que ainda natildeo foi pensado e o impensaacutevel Somente no
percurso desses questionamentos pode-se ter mais clareza quanto a seu significado
Falemos mais concretamente A direccedilatildeo de um Estado pode bem dizer
precisamos agora a fim de realizar um plano quinquenal de fiacutesicos que
recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras naccedilotildees ou
necessitamos de meacutedicos que elaborem cientificamente um medicamento
efetivo contra a gripe [] Mas lsquoPrecisamos no momento de filoacutesofos quersquo
ndash sim o quecirc Agora soacute haacute uma possibilidade lsquo que desenvolvam
fundamentem e defendam a seguinte ideologiarsquo ndash soacute se pode falar assim com
a destruiccedilatildeo simultacircnea da filosofia (PIEPER 2014 paacuteg 19)
Propotildee-se aqui encarar a filosofia como a resposta que seja Para tanto a fim de
reconhececirc-la em suas idiossincrasias seraacute preciso aceitar que de fato parece um
contrassenso senatildeo maacute feacute da Histoacuteria colocar a filosofia no domiacutenio tanto das respostas
e da austera dedicaccedilatildeo quanto no do questionamento e do insoluacutevel Apenas apoacutes
debruccedilarmo-nos em seus sentidos do mais cotidiano ao canocircnico podemos ousar
responder ao que ela presta contas e quais relaccedilotildees esperar com tradiccedilatildeo e ensino ldquoIsso
eacute assim por ser o reconhecimento uma resposta Ele responde ao inacessiacutevel agrave medida que
o resguarda O pensamento compreende como resposta a uma relaccedilatildeo com um outro que
se mostra como velamento recusa como um adyton34rdquo (TRAWNY 2013 paacuteg 22)
34 ldquoSantuaacuterio secreto a que soacute tinham acesso os sacerdotes nos templos antigos da Greacuteciardquo (HOUAISS
Aacutedito 2009a) proveniente do grego ldquonatildeo deve ser adentradordquo (LIDDELL SCOTT Ἄδυτος 1940)
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)2F
dutosgt Acesso em 11 mai 2017
60
22 Filosofia inteligecircncia e entendimento
Ao longo de sua histoacuteria a filosofia tem assumido diversas acepccedilotildees o que eacute
determinante para compreender seu propoacutesito se eacute que haacute um Isso natildeo apenas em
variaccedilatildeo diacrocircnica de significados mas tambeacutem sincrocircnica ou seja nos registros atuais
da liacutengua Desde o uso diaacuterio da palavra ateacute os mais formais e teacutecnicos significados
encontramos conceituaccedilotildees ateacute contraditoacuterias do que seja filosofia
Naturalmente isso natildeo eacute um problema As contradiccedilotildees satildeo bem-vindas mas sem
que se caia na esparrela de aceitaacute-las esquecendo-se de fazer a devida criacutetica soacute porque a
princiacutepio tudo eacute vaacutelido Nem por outro lado fazer do filoacutesofo um inquisidor cuja missatildeo
eacute hierarquizar categorizando os diversos saberes Aleacutem disso histoacuteria discurso canocircnico
e opiniatildeo cotidiana natildeo satildeo coisas tatildeo diversas entre si e no mais das vezes se imiscuem
cada uma revelando um sentido que nos auxilia a pensar a questatildeo
Apesar disso no mais das vezes em sua trajetoacuteria a filosofia apregoa a si o ofiacutecio
de distanciar-se da opiniatildeo ou δόξα Quer dizer ao se questionar pelo significado
filosoacutefico a δόξα aparece como uma resposta equivocada Ora isso revela esse iacutempeto
que afasta os natildeo iniciados criando um estigma segregador na disciplina Na suposiccedilatildeo
de natildeo validar tudo na mesma medida promove-se a separaccedilatildeo em joio e trigo valorando
positiva ou negativamente as partes ldquoo meacutetodo da dialeacutectica eacute o uacutenico que procede por
meio da destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a caminho do autecircntico princiacutepio a fim de tornar seguro
seus resultados e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espeacutecie de lodo
baacuterbaro em que estaacute atoladardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 347)
A referecircncia agraves almas castigadas que jaziam no Hades atoladas no lodo (PLATAtildeO
2000 paacuteg 47) natildeo eacute leviana Por esse vieacutes da Repuacuteblica embora nela sejam considerados
outros modos de saber o meacutetodo dialeacutetico (que eacute o da filosofia) prepondera A filosofia
platocircnica se confunde com a proacutepria dialeacutetica sob a ressalva de que a ldquopalavra lsquodialeacuteticarsquo
natildeo designa nada com precisatildeo natildeo passa de uma miscelacircnea Ela abarca e potildee em
confusatildeo uma vasta gama de problemas de necessidades especulativas e de temas e
pensamentos heterogecircneosrdquo (RUYER 1961 paacuteg 1 ndash traduccedilatildeo de Thayrine
61
Kleinsorgen)35 haja vista todos os seus diaacutelogos nos quais Soacutecrates se apresenta sempre
perante os interlocutores a lidar com as diversas concepccedilotildees e com o princiacutepio agregador
delas
Para ele [Platatildeo] a Dialeacutetica eacute a teacutecnica da pesquisa associada que se efetua
atraveacutes da colaboraccedilatildeo de duas ou mais pessoas com o processo socraacutetico do
perguntar e responder A filosofia era de fato para Platatildeo natildeo uma tarefa
individual e privada mas obra de homens que lsquovivem juntamentersquo e lsquodiscutem
com benevolecircnciarsquo eacute a atividade proacutepria de lsquouma comunidade da educaccedilatildeo
livrersquo (Leis VII 344b) (ABBAGNANO 1970 paacuteg 252)
Desse modo a hierarquia de Platatildeo dos tipos de conhecimento justifica tanto o
iacutempeto filosoacutefico pela coerecircncia loacutegico-semacircntica quanto a repulsa histoacuterica dessa
disciplina pela opiniatildeo ou senso comum Isso ocorre seja pelo fato de ldquoabarcar num soacute
golpe de vista todas as ideias esparsas de um lado e do outro e fundi-las numa soacute ideia
geralrdquo (PLATAtildeO 2002 paacutegs 106-107) seja por ldquoseparar novamente a ideia geral nos
seus elementos nas suas articulaccedilotildees naturais sem todavia mutilar qualquer dos
elementos primitivos como faz um mau accedilougueirordquo (PLATAtildeO 2002 paacuteg 107)
definindo assim os modos de proceder com a dialeacutetica
lsquoSua interpretaccedilatildeo eacute deveras suficientersquo eu disse lsquoe agora respondendo a36
estas quatro partes assume-se estas quatro influecircncias ocorrendo na alma a
intelecto ou razatildeo para a mais alta a entendimento para a segunda atribui-se
a crenccedila para a terceira e para a uacuteltima o pensamento pictoacuterico ou a conjectura
e arranjaacute-las numa proporccedilatildeo considerando que elas participam no
esclarecimento e precisatildeo na mesma medida em que seus objetivos tomam
parte da verdade e da realidade (PLATAtildeO 1969a 511d-511e ndash traduccedilatildeo
livre)37
ἱκανώτατα ἦν δ᾽ ἐγώ ἀπεδέξω καί μοι ἐπὶ τοῖς τέτταρσι τμήμασι τέτταρα ταῦτα
παθήματα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενα λαβέ νόησιν μὲν ἐπὶ τῷ ἀνωτάτω διάνοιαν δὲ
ἐπὶ τῷ δευτέρῳ τῷ τρίτῳ δὲ πίστιν ἀπόδος καὶ τῷ τελευταίῳ εἰκασίαν καὶ τάξον
35 Le mot laquodialectiqueraquo ne deacutesigne rien de preacutecis nest quun fourre-tout Il couvre et met confusion toute
une vaste reacutegion de problegraveme de besoins speacuteculatifs de thegravemes de penseacutee heacuteteacuteroclites Disponiacutevel em
lthttpwwwjstororgstable40900578gt Acesso em 19 jul 2017 36 A preposiccedilatildeo ἐπί possibilita diversas traduccedilotildees conforme ldquofor [por ou para]rdquo e ldquocomrdquo vide o diaacutelogo
Goacutergias ldquofour branches of it for four kinds of affairsrdquo (PLATAtildeO 1967 463b) e ldquoquatro partes com quatro
campos diferentes de atividaderdquo (PLATAtildeO 2017b) 37 ldquoYour interpretation is quite sufficientrdquo I said ldquoand now answering to these four sections assume these
four affections occurring in the soul intellection or reason for the highest understanding for the second
assign belief to the third and to the last picture-thinking or conjecture and arrange them in a proportion
considering that they participate in clearness and precision in the same degree as their objects partake of
truth and realityrdquo Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017
62
αὐτὰ ἀνὰ λόγον ὥσπερ ἐφ᾽ οἷς ἐστιν ἀληθείας μετέχει οὕτω ταῦτα σαφηνείας
ἡγησάμενος μετέχειν (PLATAtildeO 1903 511δ-511ε)38
Aqui se apresenta um exemplo do caraacuteter categorizante da filosofia O auge da
influecircncia na alma (ψυχῇ) eacute o intelecto (νόησιν) Essa palavra grega eacute a forma declinada
de νόησις que ldquoeacute usada em seu sentido estrito de νοῦς natildeo apenas a faculdade de νοῦς
[] O exerciacutecio de νοῦς eacute corretamente falado como πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον
[influecircncias ocorrendo na alma] mas a faculdade em si mesma dificilmente poderia ser
assim descritardquo (ADAM 1902 ndash traduccedilatildeo livre)39
Essa eacute a inteligecircncia (LIDDELL SCOTT 1940 Νόησις)40 que faz oposiccedilatildeo agrave
percepccedilatildeo pelos sentidos agrave sensaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Αἴσθησις PLATAtildeO
1987 paacuteg 313)41 Somente o que fosse validado pelo intelecto seria de interesse da
filosofia o que eacute aprendido apenas pela experiecircncia com a proacutepria coisa teria consistecircncia
lodosa e seria menos confiaacutevel A razatildeo inspira seguranccedila pois pode ser comprovada e
medida (Cf ratio vide HOUAISS 2009a Razatildeo) As sensaccedilotildees podem ser
primeiramente sentidas depois descritas narradas cantadas e vividas mas dificilmente
satildeo precisas na convicccedilatildeo do caacutelculo ldquoAprende entatildeo o que quero dizer com o outro
segmento do inteligiacutevel daquele que o raciociacutenio atinge pelo poder da dialeacutectica [] sem
se servir em nada de qualquer dado sensiacutevel mas passando das ideias umas agraves outras e
terminando em ideiasrdquo (PLATAtildeO 1987 paacutegs 312-313)42
38 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017 39 Νόησιν is used in its strict sense of νοῦς in actual exercise not merely the faculty of νοῦς cf 508 E note
The exercise of νοῦς is correctly spoken of as a πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον but the faculty itself could
hardly be thus described Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A
section3D511Dgt Acesso em 20 mai 2017 40 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dno2
Fhsisgt Acesso em 17 mai 2017 41 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dai)2
Fsqhsisgt Acesso em 21 mai 2017 42 τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι
δυνάμει [hellip] αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος ἀλλ᾽ εἴδεσιν αὐτοῖς δι᾽ αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ
εἰς εἴδη Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A
section3D511bgt Acesso em 04 jul 2017
63
Uma ressalva contudo faz-se necessaacuteria a respeito das traduccedilotildees de νοῦς por
razatildeo Nas duas citaccedilotildees acima utiliza-se essa palavra e seus derivados no entanto a fim
de corresponder com o original grego conveacutem uma observaccedilatildeo acerca de certo
anacronismo do termo Isso porque estritamente falando o conceito de razatildeo como noacutes
o conhecemos hoje ainda natildeo tinha sido inventado
Claro que a rigor nenhuma palavra grega melhor dizendo nenhuma palavra no
tempo tem um sentido atual se ela mesma natildeo for atualizada Aleacutem disso natildeo eacute nada
incongruente a traduccedilatildeo de νοῦς por razatildeo Logo de que vale essa observaccedilatildeo
Exatamente pelo dito para tornar atual a palavra Significa fazer seu passado soar de
modo presente atento natildeo agrave fala pronunciada mas ao que nunca cessa de dizer a questatildeo
ldquoAuscultando natildeo a mim mas o Logos eacute saacutebio concordar que tudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO
1991 paacuteg 71)43
Inclusive esse pensador tambeacutem faraacute uso dessa palavra em seu fragmento 40 que
na traduccedilatildeo de Carneiro Leatildeo aparece como ldquomuito saber natildeo ensina sabedoria [νόον]
pois teria ensinado a Hesiacuteodo e Pitaacutegoras a Xenoacutefanes e Hecateurdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 69)44 Assim temos outro vieacutes de interpretaccedilatildeo mas que natildeo para por aiacute pois ao
longo da histoacuteria conforme as compreensotildees de realidade mudam tambeacutem a palavra diz
a quem a ouve coisas distintas ldquoSinto poreacutem nos meus membros outra lei que luta
contra a lei do meu espiacuterito [νοός] e me prende agrave lei do pecado que estaacute nos meus
membrosrdquo (BIacuteBLIA Romanos 7 23)45 Desse modo ratifica-se o caraacuteter profiacutecuo que a
palavra adquire geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo ao mesmo tempo em que endossa a confusatildeo de
qual sentido adotar neste ou naquele contexto
Contudo nem sempre haacute um compromisso com a palavra ou seja a
responsabilidade assumida para a traduccedilatildeo com a tradiccedilatildeo e sua respectiva traiccedilatildeo
Ocasiona-se entatildeo sua transformaccedilatildeo em invoacutelucro vocabular a serviccedilo da propagaccedilatildeo
de ideias Ueacute mas natildeo eacute disso que tratam os vocaacutebulos transposiccedilatildeo da realidade concreta
para o conceito abstrato E ainda que Bakhtin (2003 paacuteg 324) diga que ldquoa liacutengua a
43 ldquoοὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναιrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg
70) 44 ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκειmiddot Ἡδίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ
Ἑκαταῖονrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 68) 45 βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά
με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-
alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle557000179999gt Acesso em 3 jul 2017
64
palavra satildeo quase tudo na vida humanardquo isso passa longe do entendimento de que tudo eacute
qualquer coisa como se natildeo importasse o que usaacutessemos e todo dizer fosse igualmente
vaacutelido
Nesse sentido a sinoniacutemia entre intelecto e razatildeo conforme sugere a traduccedilatildeo de
Paul Shorey torna-se senatildeo equivocada ao menos digna de suspeita A razatildeo recebe uma
conceituaccedilatildeo bem especiacutefica no caminho do Ocidente demarcando por exemplo um vieacutes
sobre o sentido fundamental de interpretaccedilatildeo bem diferente do proposto pelas Escrituras
e pelo pensador brasileiro Daiacute a conveniecircncia em nos atentarmos a natildeo fazer das palavras
veiacuteculos de nossa vontade sob o risco de natildeo aceitarmos o convite do outro e soacute
estancarmos disciplinadamente estancarmos num monoacutelogo
Com a disciplina afirma-se um acircmbito de questotildees possiacuteveis que estabelece
direccedilotildees e caminhos dotados de certa validade O campo de objeto ocupado
pela disciplina fica confinado agrave disciplina As coisas de que trata a disciplina
soacute podem vir agrave palavra enquanto e agrave medida que a disciplina e seu aparato
metodoloacutegico permitem A disciplina e sua validade permanecem a instacircncia
paradigmaacutetica da possibilidade e do modo em que uma coisa se torna objeto
de uma ciecircncia ndash e um objeto apropriado para pesquisa As disciplinas em vigor
satildeo como uma peneira soacute admitindo aspectos bem determinados das coisas
Natildeo eacute tanto a coisa o seu fundamento e sua lsquoverdadersquo que decidem o que
pertence lsquoagrave coisarsquo mas sim a disciplina que confina a coisa enquanto objeto da
disciplina (HEIDEGGER 1998 paacuteg 240)
O perigo estaacute aiacute fazer do rigor de nossos desejos o real esquecendo-se do que eacute
ndash somos e natildeo somos Fazer do real apenas o eu ignora parte essencial de sua constituiccedilatildeo
aquele pedacinho sobre o qual natildeo nos cabe versar pois a noacutes estaacute velado Platatildeo trata
tanto de uma realidade apreensiacutevel quanto de uma incompreensiacutevel Sua questatildeo
todavia se processa a partir dos modos em que isso ocorre Parca eacute a compreensatildeo do
real sua conjectura alta o intelecto Ao nomeaacute-lo por razatildeo natildeo soacute utilizamos uma
palavra fortemente carregada de conceitos como determinamos que a excelecircncia do
conhecer daacute-se pela razatildeo e natildeo pela sabedoria ou pelo espiacuterito
A tarefa que se impocircs foi portanto conceber a ratio determinante do animal
homem na direccedilatildeo que pouco a pouco se revela no pensamento moderno A
essecircncia da razatildeo e isto significa da subjetividade natildeo eacute o mero pensamento
ou entendimento A essecircncia da razatildeo eacute a vontade Pois eacute na vontade
apreendida como o que se quer a si mesmo que se completa o colocar-se-
diante-de-si-mesmo do homem a subjetividade (HEIDEGGER 1998 paacuteg
235)
65
Semelhantemente ocorre com a traduccedilatildeo de λόγος por raciociacutenio Que bandeira
quer se defender em qual interpretaccedilatildeo do original claacutessico ela se fia Por que natildeo fazer
como o pensador Carneiro Leatildeo no fragmento 50 de Heraacuteclito (1991 paacuteg 71) e
simplesmente natildeo traduzir deixando a criteacuterio do leitor o estudo do grego antigo Outra
possibilidade eacute a total adequaccedilatildeo do termo ao sentido de essecircncia como acontece em ldquoNo
princiacutepio era o Verbo []rdquo (BIacuteBLIA Joatildeo 1 1) A histoacuteria dessa interpretaccedilatildeo de λόγος
marca o caminho que o Ocidente percorreu ateacute seu destino enquanto raciociacutenio passando
pela Vulgata ldquoIn principio erat Verbum []rdquo (BIacuteBLIA Ioannes 1 1)46 que por sua vez
adveacutem de ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος []rdquo (BIacuteBLIA Ιωαννην 1 1)47
Quaisquer desses posicionamentos escondem (e revelam) o sentido fundamental
da questatildeo do ser em cada dizer e nomear fundando pelo limite dito uma presenccedila no
real Enquanto a apropriaccedilatildeo de λόγος por Verbo ou Palavra como em Lutero ldquoIm Anfang
war das Wortrdquo (BIacuteBLIA Johannes 1 1)48 reapresenta sua concepccedilatildeo essencialista nos
paracircmetros da metafiacutesica do periacuteodo claacutessico ateacute os dias de hoje a manutenccedilatildeo do verbete
grego elitiza e convida o leitor a retornar ao movimento primordial da palavra
atualizando-a reversamente ou seja vai-se agraves origens em busca do que vigora
Conhecemos a definiccedilatildeo grega na formulaccedilatildeo posterior de homo est animal
rationale o homem eacute o animal racional Do λόγος a ratio da ratio a razatildeo O
elemento caracteriacutestico da capacidade racional eacute o pensamento Como animal
racional o homem eacute o animal pensante [] Podemos dizer que a definiccedilatildeo
referida eacute a determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem Nela o homem
que se encontra sob o domiacutenio da metafiacutesica exprime a sua essecircncia
(HEIDEGGER 1998 paacuteg 234)
Um detalhe Heidegger se refere agrave expressatildeo grega ἄνθρωπος ζῷον λόγος ἔχον
remetendo-se a Aristoacuteteles Contudo natildeo haacute em sua obra essa citaccedilatildeo ipsis litteris O mais
provaacutevel eacute que ela seja uma corruptela de ldquoοὐθὲν γάρ ὡς φαμέν μάτην ἡ φύσις ποιεῖ
λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴωνrdquo (ARISTOacuteTELES 1957 1253a)49 algo como
ldquoPois a natureza [φύσις] como noacutes declaramos natildeo faz nada sem propoacutesito e soacute o homem
46 Disponiacutevel em lt httpswwwbibliaonlinecombrtnvjo1gt Acesso em 07 jul 2017 47 Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle53gt
Acesso em 07 jul 2017 48 Disponiacutevel em lthttpswwwbibliaonlinecombrluther-1545jo1gt Acesso em 07 jul 2017 49 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100573Abook3D13A
section3D1253agt Acesso em 08 jul 2017
66
dos animais possui [ἔχει] discurso [λόγον]rdquo (ARISTOacuteTELES 1944 1253a)50 conforme
sugere Andrew Glynn (2015)51
Sutileza que faz toda a diferenccedila pois nesse trecho podemos aferir que a φύσις
enquanto real eacute quem possibilita o homem centrando a questatildeo natildeo na subjetividade
mas deslocando-a agrave apropriaccedilatildeo da essecircncia Apropriar-se porque embora o homem
ldquotenhardquo o λόγος ele deve mantecirc-lo seguraacute-lo nas proacuteprias matildeos ateacute habitaacute-lo vesti-lo
engravidar-se dele todos esses satildeo os sentidos do verbo grego (LIDDELL SCOTT 1940
Ἔχω)52 e natildeo abarcam a compreensatildeo de possuir apenas como quem controla a posse
material de um objeto possuir eacute ser possuiacutedo pela posse
Assim o que temos satildeo termos da Antiguidade que datildeo certa origem cronoloacutegica
a conceituaccedilotildees atuais e exatamente por isso natildeo devem ser igualados em significacircncia
Para natildeo estagnar em uma problemaacutetica historiograacutefica mais proveitoso para este
percurso que pretendemos aqui eacute decerto aceitar o desafio de pensar a oposiccedilatildeo
estabelecida em Platatildeo Ele tenta fundamentar a distinccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel a tal
ponto que chega a ser excludente um pelo outro Enquanto o intelecto trabalha com a
destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a fim de encontrar a verdade embasada justificada logicamente
a sensaccedilatildeo redundantemente apenas sente um bastar da proacutepria vivecircncia Eacute a partir desse
viver experienciado que estaacute a verdade dos sentidos
A Razatildeo eacute a forccedila que liberta dos preconceitos e do mito das opiniotildees
enraizadas mas falsas das aparecircncias e consente estabelecer um criteacuterio
universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos Do outro
lado como guia propriamente humano a Razatildeo eacute a forccedila a qual consente que
o homem se liberte dos apetites que tem em comum com os animais
submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida Esta eacute a duacuteplice
funccedilatildeo que foi atribuiacuteda agrave Razatildeo desde os primoacuterdios da filosofia ocidental
(ABBAGNANO 1970 paacuteg 792 ndash grifos no original)
50 For nature as we declare does nothing without purpose and man alone of the animals possesses speech
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Aristot+Pol+11253aampfromdoc=Perseus3Atext3A1
999010058gt Acesso em 08 jul 2017 51 Disponiacutevel em lthttpskalountoswordpresscom20150427what-is-the-human-part-one-rational-
animal-or-zoon-logon-echongt Acesso em 08 jul 2017 52 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)2F
xw1gt Acesso em 08 jul 2017
67
Uma oposiccedilatildeo radical mas que natildeo ocorre bruscamente Haacute etapas intermediaacuterias
entre os extremos que constituem essa segregaccedilatildeo essencial para Platatildeo Discute-se sobre
διάνοιαν forma declinada de διάνοια cujo sentido perpassa διά-νοια o que estaacute entre
(διά) a inteligecircncia (νοῦν) e a opiniatildeo (δόξης) ldquopois considere entendimento como algo
intermediaacuterio entre opiniatildeo e razatildeordquo (PLATAtildeO 1969a 511d ndash traduccedilatildeo livre)53 Logo
διάνοια aqui significa entendimento compreensatildeo mas fundamentalmente quer dizer o
lugar que natildeo eacute jaacute opiniatildeo mas que tambeacutem natildeo alcanccedilou a inteligecircncia Ainda natildeo ao
menos Estaacute em contato com o intelecto vislumbra-o sem tecirc-lo compreende-o agrave medida
que a δόξα enquanto local de predominacircncia das sensaccedilotildees eacute rejeitada
Esse eacute o conhecimento que ocorre ldquona geometria e nas ciecircncias afins [ἀδελφαῖς
τέχναις]rdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 312) Ao declarar indiretamente que somente ao filoacutesofo
como aquele que estaacute em relaccedilatildeo de profunda intimidade com o νοῦς cabe pensar os
princiacutepios e aos ldquocientistasrdquo eacute forccedilado ldquoinvestigar a partir de hipoacuteteses sem poder
caminhar para o princiacutepio mas para a conclusatildeordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311) ele faz
uma distinccedilatildeo importante O filoacutesofo marca uma ruptura que caracteriza sua forma de
pensar e que vai de encontro a outros importantes pensadores por aproximar a ciecircncia da
filosofia embora discernindo ambas entre si
Temos assim como base a aritmeacutetica que lsquofacilita a passagem da proacutepria alma
da mutabilidade agrave verdade e agrave essecircnciarsquo (Livro VII 525c) a seguir o espaccedilo a
duas dimensotildees ou geometria plana em terceiro lugar o espaccedilo a trecircs
dimensotildees por meio da estereometria a astronomia estuda os corpos soacutelidos
em movimento e a harmonia o som que eles entatildeo produzem Trata-se
portanto de um ensino essencialmente formativo Todas estas ciecircncias tecircm por
missatildeo preparar o espiacuterito para atingir o plano mais elevado a dialeacutectica cujo
fim eacute o conhecimento do Bem (Livro VII 333b-e) (PEREIRA 1987 paacuteg
XXXI)
Conveacutem reforccedilar que tanto teacutecnica quanto ciecircncia adequam-se ao contexto
somente se considerarmos que uma mesma terminologia pode tratar de assuntos distintos
Isso porque ao nos referirmos agrave ciecircncia noacutes homens modernos temos o haacutebito de
imaginar doutores de jalecos brancos e sentenccedilas de verdade inquestionaacutevel
Costumamos ao falar de teacutecnica pensar o modo de fazer algo agrave medida que detemos os
53 [hellip] because you regard understanding as something intermediate between opinion and reason
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 16 de mai 2017
68
meios a partir dos quais algo se faz Em outros termos para noacutes ter uma teacutecnica eacute
sinocircnimo de ter o controle cognosciacutevel sobre a produccedilatildeo de alguma coisa
Quanto maior for o controle aparentemente mais controle eacute desejado dando-se a
impressatildeo de evoluccedilatildeo e desenvolvimento Teacutecnica e tecnologia hoje se imiscuem e uma
ciecircncia de ponta indica tecnologia mais avanccedilada mesmo que problemas elementares
estejam esperando soluccedilatildeo Nesse meio tempo a teacutecnica mais simples torna-se obsoleta
a despeito de sua eficaacutecia em prol das novas tecnologias Se antes a teacutecnica nunca
houvera prometido a soluccedilatildeo do problema apenas delegando a si o papel de ferramenta
facilitadora a teacutecnica moderna promete mundos e fundos a cura dos mais terriacuteveis males
aquele uacuteltimo gadget e update para manter a roda dos desejos sempre a girar
Em contrapartida uma regiatildeo se desenvolve na exploraccedilatildeo de fornecer carvatildeo
e mineacuterios O subsolo passa a se desencobrir como reservatoacuterio de carvatildeo o
chatildeo como jazidas de mineacuterio Era diferente o campo que o camponecircs outrora
lavrava quando lavrar ainda significava cuidar e tratar O trabalho camponecircs
natildeo provoca e desafia o solo agriacutecola
Em contraste explora-se uma aacuterea da terra a fornecer carvatildeo e mineacuterios A
terra se des-encobre neste caso depoacutesito de carvatildeo e o solo jazida de minerais
Era outro o lavradio que o lavrador dispunha outrora quando dis-por ainda
significava lavrar isto eacute cultivar e proteger A lavra do lavrador natildeo desafiava
o lavradio Na semeadura apenas confiava a semente agraves forccedilas do crescimento
encobrindo-a para seu desenvolvimento Hoje em dia uma outra posiccedilatildeo
tambeacutem absorveu a lavra do campo a saber a posiccedilatildeo que dis-potildee da natureza
E dela dis-potildee no sentido de uma exploraccedilatildeo A agricultura tornou-se induacutestria
motorizada de alimentaccedilatildeo Dis-potildee-se o ar a fornecer azoto o solo a fornecer
mineacuterio como por exemplo uracircnio o uracircnio a fornecer energia atocircmica esta
pode entatildeo ser desintegrada para a destruiccedilatildeo da guerra ou para fins paciacuteficos
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 19 ndash grifos no original)
Natildeo podemos ignorar que ainda natildeo se trata da teacutecnica como a conhecemos hoje
e consequentemente da ciecircncia moderna senatildeo por uma questatildeo cronoloacutegica por
ontologicamente a concepccedilatildeo generalizante do homem e sua loacutegica natildeo estarem em pleno
vigor Cabe lembrar que tanto o mito quanto a sua transmissatildeo eram tidos como naturais
entre todos e quiccedilaacute seja esse o grande embate de Soacutecrates ndash a maiecircutica nunca foi para
convencer Agatatildeo ou Trasiacutemaco para um fim qualquer mas a toda πoacuteλις pelo fim digno
do periacuteodo de influecircncia homeacuterica
Podemos supor que como P Shorey (1968 p 248) e F M Cornford
(PLATAtildeO 1969b p 321) que Platatildeo se viu na necessidade de se defender
contra a celeuma levantada pelas afirmaccedilotildees sobre o tema [a condenaccedilatildeo da
poesia] feitas naqueles mesmos livros [II e III] Mas a importacircncia da poesia
69
na vida grega justifica a expansatildeo dada a este ataque Embora desde os finais
do seacutec VI aC a escrita estivesse divulgada e desde o seacutec V houvesse um
comeacutercio de livros apreciaacutevel (PEREIRA 1998 p 18-19) a verdade eacute que era
a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos quer pelos actores
dramaacuteticos) o principal meio de educaccedilatildeo e veiacuteculo de conhecimentos Esta
transmissatildeo intersubjetiva do saber eacute um aspecto caracteriacutestico e fundamental
da cultura grega bem visiacutevel aliaacutes nos proacuteprios diaacutelogos de Platatildeo E natildeo
esquecemos que mesmo para extensas narrativas em prosa como eram as
Histoacuterias de Heroacutedoto natildeo estava excluiacuteda a praacutetica da recitaccedilatildeo perante um
grande auditoacuterio (PEREIRA 1987 paacuteg XXXV)
Em outras palavras para Platatildeo os fins imediatos dados pela aparecircncia e
sensaccedilotildees natildeo seriam concernentes agrave filosofia estivessem eles envolvidos com pequenos
problemas do cotidiano ou com grandes obras de poliacutetica e de construccedilatildeo civil mas
apenas os princiacutepios geradores de todos os problemas Enquanto as demais disciplinas
respondem agrave pergunta por si (o que eacute a poliacutetica O que eacute construccedilatildeo civil) por suas accedilotildees
e finalidades praacuteticas (p ex a poliacutetica faz construccedilatildeo civil serve para) a filosofia
transforma a proacutepria pergunta existencial como seu caraacuteter fundamental almejando natildeo
necessariamente a um fim outro senatildeo o de se perguntar pelo ser em tudo ldquoo que eacuterdquo
Esse tipo de entendimento sobre a filosofia influencia o Ocidente ateacute eacutepocas mais
recentes Por exemplo em Kant (1992 paacuteg 41) podemos notar certa afinidade com o
exposto haja vista nomear filosofia como ciecircncia (Wissenschaft)
A filosofia eacute pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos
conhecimentos racionais a partir dos conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico
dessa ciecircncia De acordo com o conceito mundano ela eacute a ciecircncia das
finalidades uacuteltimas da razatildeo humana Esse conceito altivo confere dignidade agrave
filosofia isto eacute um valor absoluto E realmente tambeacutem eacute o uacutenico
conhecimento que soacute tem valor intriacutenseco e aquilo que vem primeiro conferir
valor a todos os demais conhecimentos (KANT 1992 paacuteg 41)
Eacute possiacutevel encarar sua referecircncia agraves finalidades uacuteltimas (letzten Zwecken) no
conceito mundano como que reafirmando em alguma medida o percurso platocircnico no
Ocidente Isso porque embora as ideias de fim e princiacutepio aparentem ser diametralmente
opostas nos dois casos domina a dinacircmica metafiacutesica e essencialista por tratarem de
conceitos absolutos ldquo[] ao passo que na outra parte a que conduz ao princiacutepio
absolutordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311)
Por outro lado pensadores como Heidegger se propuseram a aproximar mais a
filosofia agrave arte e em contrapartida a fazer uma criacutetica ferrenha agrave ciecircncia Dessa forma eacute
rompida a tradiccedilatildeo que limitava e congregava toda uma compreensatildeo de realidade acerca
70
da ciecircncia e da filosofia Satildeo outros meacutetodos buscam-se outras influecircncias e geram-se
confusotildees plenamente aceitaacuteveis ao se dispor a tais leituras ldquoConhecemos eacute claro muita
coisa sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e poesia Natildeo sabemos poreacutem do diaacutelogo dos poetas
e dos pensadores que lsquomoram proacuteximos nas montanhas mais separadasrsquo [nahe wohnen
auf getrennsten Bergen]rdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51)
Enquanto a διάνοια platocircnica faz a ponte cognosciacutevel entre inteligecircncia e opiniatildeo
para Heidegger haacute certa distacircncia instransponiacutevel entre filosofia e poesia contudo isso
as define como iacutentimas ao abismo esse limite cerceador e constituidor de constantes
questionamentos e desafios Para tanto o pensador traz o poema em sua tensatildeo com o
pensar ldquodepois de um verso do hino Patmos de Houmllderlin ele [Heidegger] descreve a
relaccedilatildeo entre pensamento e poesia que lsquoperto vivem nas mais separadas montanhasrsquo com
a imagem do cimo do tempordquo (KIMMERLE 1995 paacutegs 77-78 ndash traduccedilatildeo livre)
Conveacutem pois conferir um trecho maior sua primeira estrofe a fim de discutir com mais
propriedade a imagem-questatildeo colocada
Patmos54
Estaacute proacuteximo
E difiacutecil de agarrar o deus
Onde contudo haacute perigo cresce
O que salva tambeacutem
Agraves escuras vivem
As aacuteguias e destemidas partem
As filhas dos Alpes sobre o abismo
Em singelas feitas pontes
Por isso juntas laacute estatildeo em torno
Do cimo do tempo e as mais amadas
Perto vivem esmorecendo nas
Mais separadas montanhas
Entatildeo daacute pura aacutegua
Oacute asas daacute-nos os mais apurados sentidos
Para atravessar e regressar (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre)55
54 Pequena ilha grega no Egeu Meridional Local onde o apoacutestolo Joatildeo foi exilado e teria recebido a
revelaccedilatildeo para escrever o Evangelho (SMITH PatrsquoMos 1901) Disponiacutevel em
lthttpwwwstudylightorgdictionariessbdppatmoshtmlgt Acesso em 27 mai 2017 55 Nah ist Und schwer zu fassen der Gott Wo aber Gefahr ist waumlchst Das Rettende auch Im Finstern
wohnen Die Adler und furchtlos gehn Die Soumlhne der Alpen uumlber den Abgrund weg Auf leichtgebaueten
Bruumlcken Drum da gehaumluft sind rings Die Gipfel der Zeit und die Liebsten Nah wohnen ermattend auf
Getrenntesten Bergen So gib unschuldig Wasser O Fittiche gib uns treuesten Sinns Hinuumlberzugehn
und wiederzukehren Disponiacutevel em lthttpgutenbergspiegeldebuchfriedrich-h-262132gt Acesso em
27 mai 2017
71
Νοῦς eacute a superaccedilatildeo de διάνοια e portanto superior a δόξα e a αἴσθησις ndash que se
relaciona com a arte (daiacute a palavra esteacutetica) Para Platatildeo a poesia as sensaccedilotildees e suas
representaccedilotildees estatildeo intimamente ligadas ao que haacute de mais abjeto satildeo uma espeacutecie ldquode
veneno intelectual e inimiga da verdaderdquo (HAVELOCK 1996b paacuteg 20) Tudo que elas
representam deve ser evitado para que suas maacutes influecircncias natildeo desvirtuem os homens
De acordo com o caminho do que haacute de mais nobre e belo aos olhos da filosofia conforme
Livro X ldquoDe modo que natildeo devemos deixar-nos arrebatar por honrarias riquezas nem
poder algum nem mesmo pela poesia descurando a justiccedila e as outras virtudesrdquo
(PLATAtildeO 1987 paacuteg 474)
A ceacutelebre expulsatildeo dos poetas nada mais eacute do que a sequecircncia loacutegica Natildeo nos
surpreende quando Platatildeo (1987 paacuteg 473) fala que ldquoaqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao
lembrarmos de novo a poesia por justificadamente excluirmos da cidade uma arte dessa
espeacutecierdquo se nos ativermos ao empenho de sistematizaccedilatildeo e adequaccedilatildeo que fundamenta
essa verdade Esta soacute tem validade pelo intelecto e natildeo soacute pode mas deve ignorar as
sensaccedilotildees A revoluccedilatildeo circunscrita aqui diz respeito a uma concepccedilatildeo de ser e estar no
mundo anterior retroacutegrada que precisa ceder espaccedilo abrir matildeo de sua presenccedila para se
reconhecer aparecircncia imaginaccedilatildeo perdendo seu estatuto de seriedade Assim no
decorrer de milecircnios acaba por tornar-se entretenimento isto eacute tudo o que natildeo for por
essa nova loacutegica simplesmente natildeo eacute
Fica imediatamente evidente que um tiacutetulo como a Repuacuteblica natildeo pode nos
preparar para o surgimento nesta obra de um ataque tatildeo frontal agrave essecircncia da
literatura grega Se a discussatildeo segue um plano e se a investida vinda de onde
vem constitui uma parte essencial daquele plano entatildeo o objetivo do tratado
como um todo natildeo pode ser contido dentro dos limites a que denominamos
teoria poliacutetica (HAVELOCK 1996b paacuteg 20)
Para Heidegger poesia e filosofia estatildeo no ldquocimo do tempordquo Natildeo se trata aqui de
trocar arte por ciecircncia mas de reconhecer o vigor da palavra poeacutetica destratada pela
histoacuteria Seu desterro platocircnico natildeo faz jus ao voo da aacuteguia empreendido para ter com sua
irmatilde de pensamento O abismo marca o intransponiacutevel a ponte e a travessia o diaacutelogo e
o regresso e o perigo definem a identidade desta relaccedilatildeo de proximidade e distacircncia na
qual convivem filosofia e poesia
72
221 Ciecircncia e intelecto
Todavia cabe antes uma ressalva pois haacute uma incongruecircncia entre passagens da
Repuacuteblica Vejamos ldquocomo anteriormente chamar agrave primeira divisatildeo ciecircncia agrave segunda
entendimento agrave terceira crenccedila e agrave quarta conjectura ou pensamento pictoacuterico ndash e agraves duas
uacuteltimas ambas opiniatildeo e agraves duas primeiras intelectordquo (PLATAtildeO 1969a 533e-534a ndash
traduccedilatildeo livre)56 conforme o original ldquoἀρκέσει οὖν [] τὴν μὲν πρώτην μοῖραν ἐπιστήμην
καλεῖν δευτέραν δὲ διάνοιαν τρίτην δὲ πίστιν καὶ εἰκασίαν τετάρτην καὶ συναμφότερα μὲν
ταῦτα δόξαν νόησιν δὲ περὶ οὐσίανrdquo (PLATAtildeO 1903 533ε-534α)57 Em 511d Platatildeo
descreve o cume do conhecimento como sendo νοῦς e em 533e ἐπιστήμην sendo esta
subdivisatildeo de νοῦς
Mais importante do que exigir clareza absoluta dos textos antigos eacute empreender o
caminho de pensamento que por vezes seraacute duacutebio Ἐπιστήμην eacute a forma declinada de
ἐπιστήμη que significa entre outros sentidos conhecimento conhecimento cientiacutefico e
faz oposiccedilatildeo agrave δόξα (LIDDELL SCOTT 1940 Ἐπιστήμη)58 Por sua vez δόξαν eacute a forma
declinada de δόξα significando opiniatildeo sim mas tambeacutem expectativa julgamento
noccedilatildeo reputaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Δόξα)59
Haacute pois dois campos semacircnticos aproximados um sujeito agrave especulaccedilatildeo
possibilidade de certeza ou ateacute achismo outro sujeito agrave comprovaccedilatildeo teoacuterica
argumentaccedilatildeo loacutegica e fundamentaccedilatildeo da certeza Desse modo leva-se a crer que Platatildeo
deveria estar se referindo a νοῦς e διάνοια como ambas sendo ἐπιστήμη ndash e natildeo o contraacuterio
ndash que por conseguinte se opunha agraves outras duas δόξα
56 as before to call the first division science the second understanding the third belief and the fourth
conjecture or picture-thoughtmdashand the last two collectively opinion and the first two intellection
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D73A
section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 57 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D73A
section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 58 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)pisth
2Fmhgt Acesso em 28 mai 2017 59 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddo2
Fca5Egt Acesso em 28 mai 2017
73
Outro aspecto problemaacutetico eacute igualar ἐπιστήμη agrave ciecircncia pois vimos que Platatildeo
distingue ciecircncia de intelecto Decerto em diversos contextos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel
entretanto especificamente nesse causa confusotildees Talvez uma possibilidade fosse
simplesmente considerar a palavra por ldquoconhecimentordquo em oposiccedilatildeo agrave ldquoopiniatildeordquo
Entendemos contudo tratar-se de uma ambiguidade jaacute estabelecida na tradiccedilatildeo
filosoacutefica e por respeito agrave fonte do texto em inglecircs optou-se por manter ldquociecircnciardquo
Eacute muito frequente a traduccedilatildeo dessa [ἐπιστήμη] palavra por lsquociecircnciarsquo remetendo-
se assim de modo impliacutecito mas tambeacutem impreciso e apressadamente
aproximado agrave ciecircncia moderna Em seu germe mais interior que soacute vem agrave tona
no encaminhamento da histoacuteria moderna essa ciecircncia eacute de essecircncia teacutecnica
[] O fundamento e o acircmbito essencial da teacutecnica moderna eacute essa vontade [de
ser senhor da totalidade do mundo no modo do ordenamento] que em toda
intenccedilatildeo e apreensatildeo em tudo o que se quer e alcanccedila sempre quer somente a
si mesma e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-
querer-a-si (HEIDEGGER 1998 paacutegs 204-205)
23 Crenccedila e conjectura
Entramos agora no domiacutenio da δόξα Se para falarmos de ἐπιστήμη e νοῦς tivemos
de ter cautela tambeacutem este acircmbito eacute traiccediloeiro Sobre o que tratamos quando nos
referimos a δόξα Vejamos um exemplo o hino Patmos comeccedila com os seguintes versos
ldquoEstaacute proacuteximo E difiacutecil de agarrar o deusrdquo (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre) A
referecircncia agrave divindade eacute clara proacutepria inclusive do Romantismo e essencial ao poema
Ela diz algo a respeito de uma postura diversa que privilegia o que antes voluntariamente
se velava na histoacuteria do Ocidente
Eacute como se o poeta cuja influecircncia claacutessica eacute notoacuteria resolvesse aludir agrave musa que
laacute se encontrava e se desencontrava A aproximaccedilatildeo do sagrado ratifica o contexto das
sensaccedilotildees do que precisa ser experienciado agrave medida que se torna menos preciso e
calculaacutevel Em contraste com o filoacutesofo que exclui a πoacuteλις do verso e jaacute que os poemas
coparticipam do domiacutenio do sensiacutevel retira o homem das sensaccedilotildees e seus crenccedilas
Houmllderlin refaz a ponte singela que aproxima em sua dificuldade essas duas aacuteguias as
quais Heidegger propositalmente identifica por poesia e filosofia
74
Este eacute o domiacutenio ao qual relega Platatildeo a δόξα o de ser contraponto de νοῦς Se
este se apresentava como superior aquele eacute o inferior das sensaccedilotildees que tocam a ψυχῇ
mas que por isso estaacute em meio ao comum e ao geral ao normalmente aceito e
imediatamente sentido Assim como o anterior superior tambeacutem eacute subdividido
Como terceiro estaacutegio de influecircncia na alma temos em Platatildeo a πίστιν forma
declinada de πίστις A traduccedilatildeo portuguesa comentada da Repuacuteblica de 1987 assim como
a ediccedilatildeo brasileira de 2000 opta por ldquofeacuterdquo Para evitar o sincretismo a escolha pela
palavra ldquocrenccedilardquo parece ser mais aconselhaacutevel indo ao encontro da ediccedilatildeo em liacutengua
inglesa Outras definiccedilotildees tais quais ldquoconfianccedila persuasatildeo honestidade garantia e ateacute
creacuteditordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Πίστις)60 versam em torno da palavra
Dessa forma por que considerar crenccedila como de menor importacircncia para a
filosofia Essa eacute uma duacutevida honesta mas talvez a pergunta inicial possa ser reformulada
para saber sobre o quecirc do crer quer dizer o que se acredita aqui que difere do credo da
etapa anterior Ora a δόξα eacute o acircmbito da αἴσθησις logo se fia nos sentidos Confia-se
no que se vecirc no que pode ser tocado de modo que seria preciso fazer a experiecircncia com
as coisas mais do que sobre as coisas Contudo para Platatildeo apenas fazer uma experiecircncia
praacutetica com as coisas natildeo eacute garantia de acesso a elas pois somente pelo intelecto se
achegaria aonde natildeo se pode ver como se natildeo ver as coisas mas a ideia das coisas fosse
realmente vecirc-las
Se noacutes limitarmos estritamente DC [segmento da Figura 1 referente a ζῷα etc]
a ὁρατά πίστις precisa ser entendida como um estado da mente que acredita
apenas nas coisas palpaacuteveis (ἐναργῆ) e visiacuteveis (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ
φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510 A)61 lsquoverrsquo como noacutes ainda dizemos
lsquopara crerrsquo Mas Platatildeo jaacute falou de AC [segmento da Figura 1 referente a
εἰκόνες e ζῷα etc] como δοξαστόν62 (nota 510 A) logo que πίστις natildeo deve
ser confinada aos objetos da visatildeo (ADAM 1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)63
60 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpi2F
stisgt Acesso em 29 mai 2017 61 [] a que nos abrange a noacutes seres vivos e a todas as plantas e toda a espeacutecie de artefactos (PLATAtildeO
1987 paacuteg 311) 62 [hellip] Acaso consentirias em aceitar que o visiacutevel se divide no que eacute verdadeiro e no que natildeo o eacute e que tal
como a opiniatildeo [δοξαστόν] estaacute para o saber assim estaacute a imagem para o modelo (PLATAtildeO 1987 paacuteg
311) 63 If we strictly limit DC to ὁρατά πίστις must be understood as the state of mind which believes only in
visible palpable (ἐναργῆ) things (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510
A) lsquoseeingrsquo as we still say lsquois believingrsquo But Plato has already spoken of AC as δοξαστόν (510 A note)
so that πίστις should not be confined to the objects of sight
75
Figura 1 ndash As quatro influecircncias
Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929
Em mateacuteria de conhecimento πίστις estaacute na parte inferior por principalmente natildeo
aceitar o convencimento pelo conceito mormente julga pelo sensiacutevel a realidade Dessa
forma as respostas que algueacutem pode procurar e oferecer natildeo seriam apenas loacutegicas mas
tambeacutem emotivas e situacionais Aqui faz-se uma distinccedilatildeo importante pois abre um
precedente agrave compreensatildeo das coisas natildeo pelo que elas satildeo mas por suas categorias
Platatildeo refere-se a πίστις como uma imagem que convence mas natildeo vence
independentemente de como e o que for retratado nela Simplesmente por ser retrataacutevel
ela jaacute abre matildeo de certa inteligibilidade e por isso estaacute fadada agrave imperfeiccedilatildeo das
experiecircncias concretas
Quer isto dizer que o que a coisa eacute o seu Was-sein ou o seu ser eacute dado natildeo na
sua pura e simples aparecircncia sensiacutevel e sempre particular mas no seu lsquoaspectorsquo
(εἶδος) tal que soacute uma visatildeo supra-sensiacutevel do ente o pode captar ndash e que soacute eacute
ele proacuteprio acessiacutevel como poderia mostrar uma nova anaacutelise senatildeo por meio
das lsquocateroriasrsquo (κατηγορiacuteα) que decidem das possibilidades de ser desse ente
(ZARADER 1998 paacuteg 210)
Jaacute Aristoacuteteles (2005 paacuteg 95-96) desenvolve diversa e detalhadamente esse tema
ao classificar a retoacuterica como ldquoa capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso
com o fim de persuadir [πιθανόν] Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra
arte pois cada uma das outras apenas eacute instrutiva e persuasiva [πειστική64] nas aacutereas de
sua competecircnciardquo Aludindo ao caraacuteter fronteiriccedilo do convencimento ele divide sua obra
em trecircs livros que discorrem sobre λόγος πάθος e ἔθος da persuasatildeo percepccedilatildeo triacuteplice a
64 Forma tardia e declinada de πιστικός (LIDDELL SCOTT 1940 Πιστικός) Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpistiko
2Fs2gt Acesso em 30 mai 2017
76
partir da qual ele compreende o tema Em outras palavras eis o entendimento de que a
crenccedila eacute um convencer por argumentaccedilatildeo loacutegica assim como pelas emoccedilotildees e pelo
contexto em que ocorre
Se Platatildeo colocou πίστις num acircmbito eminentemente opinativo por conseguinte
oposto ao epistemoloacutegico Aristoacuteteles tambeacutem concorda que a retoacuterica natildeo eacute uma ciecircncia
e como tal tem qualidades proacuteprias Embora ambas possuam uma teacutecnica a retoacuterica
apenas se aproxima do verdadeiro trabalhando com probabilidades e possibilidades
provaacuteveis Enquanto isso para os dois filoacutesofos a ciecircncia se constitui por verdades
universais ldquoEacute igualmente insensato aceitar conclusotildees meramente provaacuteveis de um
matemaacutetico e demandar demonstraccedilatildeo precisa de um oradorrdquo (ARISTOacuteTELES 1934 ndash
traduccedilatildeo livre)65 conforme o original ldquoΠαραπλήσιον γὰρ φαίνεται μαθηματικοῦ τε
πιθανολογοῦντος ἀποδέχεσθαι καὶ ῥητορικὸν ἀποδείξεις ἀπαιτεῖνrdquo (ARISTOacuteTELES
1894)66
Agora se crenccedila pressupotildee um convencimento por mais que ele natildeo fosse
dialeticamente adequado haacute aiacute um jogo tensional no qual existe uma possibilidade de
questionamento Quem pode ser convencido deve possuir os subsiacutedios para o
convencimento precisa haver alguma duacutevida a ser respondida ou certezas passiacuteveis de
contra-argumentaccedilotildees O que eacute totalmente dado como certo pronto estaacute sem necessidade
de acabamento
Imagina homens numa morada subterracircnea [Figura 2] [] desde a infacircncia []
de pernas e pescoccedilo acorrentados [segmento 119886119887 ] [] a luz chega-lhes de uma
fogueira acesa numa colina [] entre o fogo e os prisioneiros passa uma
estrada ascendente [segmento 119890119891 ] Imagina que ao longo dessa estrada estaacute
construiacutedo um pequeno muro [segmento 119892ℎ ] []
[] Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam
objetos de toda espeacutecie []
[] Dessa forma tais homens [os acorrentados] natildeo atribuiratildeo realidade senatildeo
agraves sombras dos objetos fabricados (PLATAtildeO 2000 paacutegs 225-226)
65 It is equally unreasonable to accept merely probable conclusions from a mathematician and to demand
strict demonstration from an orator Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100543Abekker20page
3D1094b3Abekker20line3D20gt Acesso em 01 jun 2017 66 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker20page
3D1094b3Abekker20line3D25gt Acesso em 01 jun 2017
77
Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna
Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929
Quando natildeo haacute questotildees soacute respostas quando natildeo haacute um conceito a ser
reproduzido e nem sua reproduccedilatildeo apenas um vestiacutegio de algo que dificilmente pode ser
caracterizado pela ousadia da resposta nem pela inquietude da pergunta laacute dominam as
sombras Natildeo pode haver convencimento onde soacute haacute convicccedilatildeo ldquoE se o arrancarem agrave
forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem
antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de
tais violecircncias mdash Com toda a certezardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226)
Eis que por fim analisaremos a palavra εἰκασίαν forma declinada de εἰκασία
como pensamento pictoacuterico imaginaccedilatildeo conjectura representaccedilatildeo suposiccedilatildeo etc
(LIDDELL SCOTT 1940 Εἰκασία)67 Esse eacute o estaacutegio mais distante do conhecimento
Domiacutenio da praacutetica e das sensaccedilotildees a aprendizagem se daria pela via empiacuterica e natildeo
67 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dei)kasi
2Fagt Acesso em 20 mai 2017
78
atraveacutes de formulaccedilotildees inteligiacuteveis Sabe-se o que se fez ou o que se viu do contraacuterio natildeo
existe Haacute somente o puro e simples saber ou o achar que se sabe pelo menos
Achismos agrave parte haacute de se convir que nunca se natildeo sabe de nada Esse
desmerecimento das aparecircncias e das opiniotildees parte de um Platatildeo de fora da caverna sem
possibilidade de retorno a ela Decerto que na Repuacuteblica ele volta mas natildeo como antes
ldquoSe um homem nessas condiccedilotildees descesse de novo para o seu antigo posto natildeo teria os
olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Solrdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg
318) E como natildeo teria Do contato com a ideia platocircnica ateacute o contato com as demais
pessoas ldquoacorrentadasrdquo passaram-se dois milecircnios e o filoacutesofo ainda natildeo reestabeleceu
plenamente sua visatildeo
A filosofia sofre desse estigma que ela mesma criou o de ser inacessiacutevel aos
muitos Na alegoria da caverna Platatildeo supotildee tanto os acorrentados como ldquoos curados da
sua ignoracircnciardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226) Relata seus percursos de saiacuteda e retorno
mas nada diz desse primeiro despertar Eacute possiacutevel ensinar teacutecnicas de memorizaccedilatildeo de
argumentaccedilatildeo de convencimento mas como ensinar a pensar Eacute possiacutevel ensinar
teacutecnicas de como fazer poesia muacutesica mas como algueacutem vira poeta muacutesico ou no nosso
caso filoacutesofo
Na instacircncia de nossas experiecircncias cotidianas e da tradiccedilatildeo acabamos por
reproduzir muitas aprendizagens e compreender muitos ensinamentos
Independentemente do juiacutezo em torno deles o saber acontece Buscar o saber se for esse
mesmo o caminho empreendido natildeo passa ldquoda parte que nos cabe deste latifuacutendiordquo
Aquele que busca o saber pode aprender ou natildeo aquele que natildeo busca pode aprender ou
natildeo Como proceder Qual caminho seguir Assim deve-se descer agrave caverna natildeo se deve
descer ou natildeo se deve nem mesmo sair dela ldquoEntatildeo aonde noacutes vamos mdash Sempre para
casardquo (NOVALIS 1982 ndash traduccedilatildeo livre)68
Por vezes aquele conhecimento mais insignificante pode ser explorado pelo
intelecto Quiccedilaacute aquele conhecimento mais insignificante natildeo deve ser explorado pelo
intelecto mas simplesmente deve-se aceitaacute-lo do mesmo modo como eacute preciso aceitar
muitas verdades sem as quais natildeo seria possiacutevel viver se cada chatildeo fosse uma questatildeo
natildeo dariacuteamos um passo sequer Nem por isso tal postura precisa ser tratada por
68 raquoWo gehn wir denn hinlaquo raquoImmer nach Hauselaquo Disponiacutevel em
lthttpgutenbergspiegeldebuchheinrich-von-ofterdingen-523524gt Acesso em 03 mai 2017
79
ignoracircncia nem a inacessibilidade de muitos deve ser igualada ao ofiacutecio de poucos
Alguns satildeo filoacutesofos assim como alguns satildeo camponeses e embora agraves vezes
circunstacircncias avessas agrave vontade forcem que muitos se tornem camponeses
provavelmente soacute alguns tambeacutem teriam a vocaccedilatildeo para o campo
Para Platatildeo tende-se a crer que a vocaccedilatildeo para a filosofia eacute natildeo saber Afinal ele
relaciona os quatro estaacutegios de afetaccedilatildeo da alma em proporccedilatildeo isto eacute em analogia ou
melhor em ἀνὰ λογόν forma declinada de ἀνὰλόγος (ora escrita junta ora separada no
texto original) aquilo que estaacute em relaccedilatildeo de correspondecircncia com o λόγος (LIDDELL
SCOTT 1940 Ἀνὰλόγος)69 Daiacute εἰκασία ser o domiacutenio absoluto das certezas ldquoA traduccedilatildeo
lsquoconjecturarsquo leva a equiacutevocos pois conjectura implica duacutevida consciente ou hesitaccedilatildeo e
duacutevida eacute estranha para εἰκασία no sentido de Platatildeo Contudo ele pode ter pretendido
sugerir que tal estado mental natildeo fosse em realidade melhor do que conjecturardquo (ADAM
1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)70 Tudo eacute puro aceitamento
Do ponto de vista meramente de ὁρατά o a ser visto o visiacutevel (LIDDELL
SCOTT 1940 Ὁρατός)71 o estaacutegio inicial se daacute nas sombras Entretanto o caminho de
apreensatildeo do conhecimento por Platatildeo tambeacutem eacute um percurso de questionamento Na
alegoria da caverna εἰκασία trata de apreender o mundo ao redor a partir somente do que
vemos dele Jaacute em πίστις abre-se matildeo de algumas certezas num contexto natildeo mais tatildeo
uniformizado pela penumbra A interpretaccedilatildeo cristatilde vai traduzi-la por fides temos pois
a feacute e seus misteacuterios enquanto desdobramento do mundo Seja por crenccedila ou por mera
suspeita amorfa dos conceitos a realidade natildeo se apresenta cheia de certezas como antes
No estaacutegio superior encontra-se διάνοια o vigorar das questotildees ἀδελφαῖς τέχναις
afins agrave teacutecnica Aqui a realidade natildeo eacute apenas as coisas os seres vivos e suas
representaccedilotildees mas o modo como essas manifestaccedilotildees ocorrem Em outras palavras os
procedimentos pelos quais a realidade estaacute subjugada fazem inclusive com que ela possa
69 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)nalo
gi2Fagt Acesso em 03 jun 2017 70 The translation lsquoconjecturersquo is misleading for conjecture implies conscious doubt or hesitation and
doubt is foreign to εἰκασία in Platos sense Plato may however have intended to suggest that such a state
of mind is in reality no better than conjecture Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A
section3D511Egt Acesso em 04 jun 2017 71 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(rato
2Fsgt Acesso em 04 jun 2017
80
ser manipulada e controlada por definiccedilotildees universais embora sem transcender das
finalidades imediatas
Cabe ressaltar que em εἰκασία e πίστις as manifestaccedilotildees satildeo tidas por
apresentaccedilotildees ou seja elas se mostram assim como satildeo e satildeo assim como se mostram
compreendidas por meio da experimentaccedilatildeo concreta com as coisas e sem a exigecircncia do
intermeacutedio conceitual por isso a compreensatildeo sensiacutevel da realidade Jaacute em διάνοια e νοῦς
haacute certa convicccedilatildeo de que as manifestaccedilotildees satildeo representaccedilotildees do plano universal e ideal
logo imperfeitas e passiacuteveis de questionamentos daiacute sua inteligibilidade e seu caraacuteter
superior para a filosofia platocircnica
Por fim νοῦς eacute o saber mais elevado e com mais questionamentos
Paradoxalmente a maior compreensatildeo de si e do que haacute ao redor eacute o estaacutegio de maior
duacutevida a ponto de Soacutecrates o mais saacutebio para a pitonisa e personagem principal dessa
filosofia chegar ao cuacutemulo de soacute saber uma coisa ndash que nada sabe Esse eacute o saber
fundamental que envolto em sombras os homens natildeo podem sequer imaginar ateacute
derradeiramente se verem retornando agrave caverna com a compreensatildeo de que a luz eacute soacute
mais um aspecto menos sombrio das trevas como se ser fosse soacute uma passagem para natildeo
ser
Entatildeo pus-me a considerar de mim para mim que eu sou mais saacutebio do que
esse homem pois que ao contraacuterio nenhum de noacutes dois sabe nada de belo e
de bom mas aquele homem acredita saber alguma cousa sem sabecirc-la
enquanto eu como natildeo sei nada tambeacutem estou certo de natildeo saber (PLATAtildeO
1949 paacuteg 17)
24 Filosofia e opiniatildeo
Seja ou natildeo seja a filosofia a resposta para nossos problemas ela certamente se
apresenta como uma das possibilidades para um ensino contraacuterio agrave proposta
tradicionalmente imposta Mas ateacute ela mesma tem sua histoacuteria e maneiras proacuteprias de ser
Seu modus operandi responde agrave medida que se distancia em caraacuteter voluntaacuterio de um
saber praacutetico simples sem as lisuras da Academia nem a pretensatildeo de semelhante esmero
racional Poreacutem haacute outras formas de cuidar do pensamento que natildeo pelo intelecto
81
A intenccedilatildeo natildeo eacute trocar seis por meia duacutezia desqualificando o empenho seacuterio de
sistematizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo mas a partir do momento em que se questiona o preacute-
estabelecido conveacutem ao menos sugerir uma alternativa E tanto o rompimento quanto o
outro caminho natildeo satildeo aleatoacuterios Se a tradiccedilatildeo natildeo consegue conceber bem que
determinadas camadas sociais estejam aptas ao pensamento eacute praticamente peremptoacuterio
rever essa forma de compreender a realidade por exemplo no caso do ensino de filosofia
a partir de uma perspectiva poeacutetica
Entatildeo eacute possiacutevel certo questionamento advindo de eg crianccedilas mas natildeo apenas
de pobres de miseraacuteveis de pessoas de baixa escolaridade de culturas tidas como
exoacuteticas etc Todavia jaacute sendo a filosofia excludente por toda sua histoacuteria ela proacutepria
convida a um repensar sua atividade a fim de que possamos contemplar o natildeo
arbitrariamente velado Natildeo por puro moralismo haja vista certa desconfianccedila salutar sim
pelos caminhos muito pisados em nossos tempos midiaacuteticos de controle de massa
Duas estradas divergiam num bosque em setembro
E lamentando natildeo poder seguir em ambas as vias
E sendo o uacutenico viajante durante muito tempo me lembro
olhei para uma tatildeo longe quanto eu conseguia
ateacute onde ela dobrava na descida e sumia
Entatildeo peguei a outra parecia boa e vasta
e fosse talvez a mais atraente
pois estava coberta de grama precisando ser gasta
embora aqueles que passaram na frente
tivessem gasto ambas quase igualmente
E ambas que aquela manhatilde igualmente fez
cobertas por folhas pegada alguma a manchar
Oh deixei a primeira para outra vez
Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar
duvidei se iria algum dia voltar
Devo estar contando isso com a alma cortada
Em algum lugar haacute uma distacircncia de tempo imensa
divergiam em um bosque duas estradas
e eu escolhi a menos viajada
e esta escolha fez toda a diferenccedila (FROST 1916 paacuteg 9 ndash traduccedilatildeo de Ceacutesar
Ramos)72
72 Two roads diverged in a yellow wood And sorry I could not travel both And be one traveler long I
stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth Then took the other
as just as fair And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear Though
as for that the passing there Had worn them really about the same And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black Oh I kept the first for another day Yet knowing how way leads on
to way I doubted if I should ever come back I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and
82
Nem decerto por acreditar que todos podem fazer tudo eacute que todos podem ser
filoacutesofos Natildeo natildeo podem assim como todos natildeo podem ser jogadores de futebol o que
natildeo se trata de uma problemaacutetica de meacuterito Naturalmente que o esforccedilo e as condiccedilotildees
favoraacuteveis do sistema vatildeo influenciar para se alcanccedilar tal e tal objetivo Contudo haacute de
se levar em conta tambeacutem a aptidatildeo caracteriacutestica pouco precisaacutevel supostamente inata
das pessoas para determinadas atividades Aleacutem disso tudo o simples fato de que para
cada escolha pressupotildee-se necessariamente a exclusatildeo de tantas outras jaacute eacute forte indiacutecio
de que nem todos chegam a fazer filosofia
Por outro lado natildeo eacute disso que se propotildee a falar neste trabalho A filosofia do
mesmo modo que muitos outros ofiacutecios pode (quiccedilaacute deve) ser um empenho de poucos
mas enquanto possibilidade fundamental de recolhimento dos questionamentos natildeo
conveacutem que ela (quiccedilaacute todos os outros ofiacutecios) seja reconhecida por um caraacuteter excludente
de muitos como se somente os ldquoescolhidosrdquo pudessem assim pensar O penhor de alguns
natildeo deve ser confundido com a segregaccedilatildeo dos demais
Claro que tal exclusatildeo natildeo se processa tatildeo agraves claras No mais das vezes ela vem
com a sutileza fria da navalha ao destituir de valor uma colocaccedilatildeo legiacutetima poreacutem oriunda
de uma fonte pouco estimada ou impressotildees e suposiccedilotildees sem um embasamento teoacuterico
canocircnico Ateacute puacuteblicos inteiros podem ser ignorados por natildeo gozarem de prestiacutegio
intelectual como no caso das crianccedilas que quando fazem um comentaacuterio ldquofilosoacuteficordquo
coloca-se aspas nele ou em sequecircncia faz-se uma interjeiccedilatildeo qualquer de espanto e
admiraccedilatildeo adorno comum sobre atitudes inesperadas
Um reconhecimento que resvala pelo preacute-conceito de se crer que desse mato natildeo
sairia coelho mas espantosamente aqui estaacute ele o leporiacutedeo Noacutes julgamos agrave revelia e
surpreendemo-nos quando o juiacutezo natildeo daacute conta do real Estes ldquoohrdquo e ldquoahrdquo natildeo possuem
a mesma atenccedilatildeo demandada aos comentadores oficiais mas sim alternam entre o bibelocirc
e o gracejo respondendo natildeo ao pensamento doado pelos sentidos mas pela alegoria
hierarquizante e excludente criada pelo intelecto
ages hence Two roads diverged in a wood and Imdash I took the one less traveled by And that has made
all the difference Traduccedilatildeo disponiacutevel em lthttpmunhoblogspotcombr201105robert-frost-poeta-
americano-in-roadhtmlgt Acesso em 10 jun 2017
83
Desde sua raiz etimoloacutegica a infacircncia parece evocar um estado de minoria ou
de incapacidade de dependecircncia ou de fraqueza de imperfeiccedilatildeo ou mesmo de
selvageria imagens todas as quais transferidas para nossos discursos
educacionais que em sua maioria compartilham a ideia de que a crianccedila natildeo eacute
nada mais do que um presente sem presenccedila [grifo no original] um estado
preparatoacuterio e provisoacuterio um tempo sem direito proacuteprio pois toda educaccedilatildeo eacute
uma instruccedilatildeo das crianccedilas natildeo para elas mesmas (pelo que satildeo) mas assim
pelo que seratildeo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 11 ndash traduccedilatildeo livre)73
Se ldquoa filosofia como ateacute aqui a entendi e vivi eacute a vida voluntaacuteria no meio do gelo
e nas altas montanhas ndash a procura de tudo o que eacute estranho e problemaacutetico na existecircnciardquo
(NIETZSCHE 2008 paacuteg 8) isso natildeo quer dizer colocar-se numa torre de marfim numa
transcendecircncia mundana em prol das questotildees Indica contudo um caminhar singular a
despeito da seguranccedila e do conforto coletivos sem a princiacutepio opor-se a eles Ademais o
comportamento voluntarioso (freiwillige) pressupotildee uma adesatildeo agraves questotildees ditas
filosoacuteficas a partir da liberdade pela vontade que eacute entendida aqui como a possibilidade
de escolha entre ser ou natildeo filoacutesofo Eacute certo que podemos exercer nossos desejos nisso
ou naquilo mas concernidos em nossas proacuteprias limitaccedilotildees caso contraacuterio retornariacuteamos
agrave esparrela do querer eacute poder Portanto quanto a isso faz-se uma ressalva
As questotildees natildeo satildeo posses Natildeo estatildeo agrave mercecirc de algum grupo para que possam
ser desenvolvidas em conceitos ldquoComo a palavra querer tambeacutem as palavras questatildeo
questionar e questionamento vecircm do latim quaerere Quaerere significa empenhar-se
na busca e na procura do que natildeo se tem por jaacute se ter e para se vir a terrdquo (LEAtildeO 1977
paacuteg 44) Elas natildeo servem para dar voz a minorias nem exaltar a maioria O que se faz
com as questotildees natildeo satildeo as questotildees satildeo seus encaminhamentos suas respostas suas
soluccedilotildees sua limitaccedilatildeo entre as demais questotildees Elas mesmas satildeo apenas possibilidades
de pensamento agraves quais a filosofia atenta e corresponde agrave sua maneira questionar
enquanto a harmonia e sintoma articuladores com aquilo que o pensamento tem a pensar
(HEIDEGGER 2003 paacuteg 135)
Nessa dimensatildeo natildeo tendo as questotildees dono tambeacutem natildeo teratildeo seus tratadores
seus cuidadores seus pensadores Melhor dizendo se cabe agrave filosofia a lida com as
73 Desde su misma raiacutez etimoloacutegica la infancia parece evocar un estado de minoriacutea o de incapacidad de
dependencia o de debilidad de imperfeccioacuten o incluso de salvajismo imaacutegenes todas ellas que se han
trasladado a nuestros discursos pedagoacutegicos los cuales en su mayoriacutea comparten la idea de que el nintildeo
no es maacutes que un presente sin presencia un estado preparatorio y provisional un tiempo sin derecho
propio pues toda educacioacuten es una instruccioacuten de los nintildeos no por ellos mismos (por lo que son) sino por
lo que seraacuten
84
questotildees elas natildeo se restringem exclusivamente ao apreendido pelo intelecto Natildeo sendo
posse do saber tradicional conveacutem averiguar o trespassar delas pelos sentidos pela
opiniatildeo pelo simples conviver com elas Desse modo a resposta pela filosofia natildeo se
apresenta jaacute dada em algum grande mestre mas tambeacutem exige o escrutiacutenio nas mais
variadas manifestaccedilotildees inclusive laacute onde normalmente eacute vedado o interesse conceitual
no uso corrente sem prestiacutegio sem muito raciociacutenio puro empirismo e achismo Encarar
a questatildeo eacute lidar com sua multiplicidade
O que eacute filosofia Veja-se por exemplo seu sentido querendo dizer ldquomodo de
pensarrdquo ldquoNada afeta sua filosofia de boecircmio inveteradordquo (FERREIRA 2004 Filosofia)
Neste contexto o termo se aproxima a ldquoprinciacutepiordquo fio condutor de determinada maneira
de agir pensar e ser mesmo num registro mais popular Daiacute vem a notoacuteria expressatildeo
ldquofilosofia de vida visatildeo ou enfoque filosoacutefico sobre a natureza o propoacutesito da existecircncia
ou o modo como se deve viverrdquo (HOUAISS 2009a Filosofia)
Parece claro que os casos supracitados se referem a uma resposta objetiva com
preceitos e meacutetodos de accedilatildeo como etiquetas sociais posiccedilotildees poliacuteticas e posturas eacuteticas
Por esse aspecto o ensino de filosofia pode ser justificado sem muita dificuldade pois
estariacuteamos no domiacutenio da transmissatildeo de valores ou quando muito num
pseudoquestionamento que oculta uma certeza
Eis como o uso corriqueiro enxerga a filosofia uma integridade dogmaacutetica
Naturalmente que quaisquer manejos de palavras estatildeo sujeitos a seriedades e a
leviandades Decerto natildeo eacute muito usado pelos filoacutesofos profissionais acostumados com
historiografias e reflexotildees abstratas entrementes estaacute na boca do povo instruiacutedo no
portuguecircs falado Uma filosofia de vida enquanto insistecircncia de uma crenccedila inclusive
remete agrave proacutepria histoacuteria da disciplina quando Soacutecrates resoluto aceita sua pena
Embora os homens natildeo o percebam eacute possiacutevel que todos os que se dedicam
verdadeiramente agrave Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem
mortos Sendo isso um fato seria absurdo natildeo fazendo outra coisa o filoacutesofo
toda a vida ao chegar esse momento insurgir-se contra o que ele mesmo pedira
com tal empenho e em poacutes do que sempre se afanara (PLATAtildeO 2017a)
Essa profissatildeo de feacute que Soacutecrates realiza particulariza o filoacutesofo como um ser para
a morte Ao mesmo tempo identifica-o por seu aspecto fundamentalmente gregaacuterio cuja
dedicaccedilatildeo profissional se estabelece mediante uma questatildeo comum a todos os homens o
85
finamento Portanto ainda que o termo filosofia em filosofia de vida natildeo seja o sentido
canocircnico ele reflete parte importante dessa loacutegica nem sempre clara mas profundamente
coerente de convivecircncia com as questotildees e seu pensamento
A filosofia que se distancia do uso exiacutemio do raciociacutenio mas se manteacutem atenta ao
questionar natildeo trai seu princiacutepio do contraacuterio habita-o novamente retificando e
ratificando seu aspecto mais genuiacuteno sua busca questionadora e fundadora Ela passa por
uma compreensatildeo legiacutetima e concreta de uma entrega agraves questotildees comparaacutevel por
exemplo a um padeiro ciente de sua dignidade e inclinado dia apoacutes dia a zelar pelo seu
patildeo natildeo importando quatildeo cedo precise acordar Para ele suas ideias sua teacutecnica e sua
realidade coordenam e consagram valor a suas accedilotildees que por sua vez se apresentam como
oferta a quem se dispor agrave padaria ainda que por ser a mais proacutexima
Quando no fundo da noite de inverno uma tormenta de neve brame
debatendo-se em torno do abrigo escurece e cobre tudo eacute a hora propiacutecia da
filosofia O questionamento tem entatildeo de deixar-se fazer simples e essencial
A elaboraccedilatildeo de cada pensamento natildeo pode ser senatildeo aacuterdua e severa O esforccedilo
de formar as palavras se identifica com a resistecircncia que os abetos oferecem
de peacute agrave tormenta
O trabalho da filosofia natildeo corre por fora no campo extra-vagante Conserva
uma relaccedilatildeo de intimidade com o trabalho dos camponeses (HEIDEGGER
1977a paacuteg 324)
25 Diaacutelogo e filosofia
No entanto das partes anteriores faz-se presente um dos maiores argumentos
contra uma resposta filosoacutefica de que a filosofia natildeo responde a coisa alguma Isso
porque demos exemplos como sendo descrita pelo sistema racional e loacutegico mas tambeacutem
a identificamos com o labor quieto e simples do camponecircs Qual a ponte entre um e outro
Haacute uma relaccedilatildeo ou trata-se apenas de diversidade de opiniotildees
Quanto a isso fala a voz da tradiccedilatildeo tradicional e seu aspecto transmissor e
controlador nem por isso menos honesta Esperar uma resposta definitiva pode ser
frustrante mas fugir agrave responsabilidade de propor um caminhar natildeo deve ser encarado
apenas como prudecircncia A falta da ousadia de pensamento e o receio constante de natildeo
tomar decisotildees eacute uma fronteira entre o cuidado e a cobardia De modo semelhante a Heitor
86
encarando seu destino funesto assim a resposta se ousa a responder fadada ao equiacutevoco
pela incapacidade de apreensatildeo totalizante do real
Haacute muito tempo decerto Zeus grande e seu filho frecheiro
determinaram que as coisas assim se passassem pois eles
sempre beneacutevolos soiacuteam salvar-me ora o Fado me alcanccedila
Que pelo menos obscuro natildeo venha a morrer inativo
hei de fazer algo digno que chegue ao porvir exaltado (HOMERO 2015 paacuteg
457)74
Diante da inexoraacutevel imprecisatildeo da resposta soacute nos resta a dignidade de responder
agrave questatildeo como pudermos Desse modo foram expostas na pretensatildeo de diaacutelogo diversas
acepccedilotildees do que seja filosofia ainda que algumas delas natildeo estivessem em sintonia com
este percurso de pensamento O cerne problemaacutetico estaacute em a partir do diverso que se
apresenta confluir tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo enquanto identidade e diferenccedila a fim de chegar a
uma resposta que corresponda agrave ldquodinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircnciardquo (LEAtildeO
2010 paacuteg 212) ou seja que decirc conta da anguacutestia da pergunta que eacute simultaneamente
tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo
Afinal soacute se pergunta porque natildeo se sabe algo ndash a criaccedilatildeo por vir ndash mas se natildeo
soubeacutessemos nada natildeo haveria como perguntar ndash o respaldo da tradiccedilatildeo De maneira
semelhante eacute orquestrado o jogo das respostas nunca eacute posto algo completamente novo
nem se reproduz algo exatamente igual ldquoTodavia antes mesmo de explorar a resposta
que aiacute eacute dada importa medir o caraacutecter especiacutefico da questatildeo Tornar-se-aacute entatildeo patente
que esta clivagem questatildeo-resposta eacute ela mesma provisoacuteria e que uma justa medida da
questatildeo encerra jaacute em si o essencial da respostardquo (ZARADER 1998 paacuteg 237) Sejam os
posicionamentos mais ou menos afins com seu modo de pensar almeja-se aqui ao diaacutelogo
entre as partes
Dialogar natildeo eacute aceitar tudo o que vem do outro nem soacute aceitar o que mais se
aproxima teoricamente de noacutes mas eacute lidar com a tensatildeo entre o estranho e o conhecido
a fim de propriamente responder Dar propriedade agrave resposta como o que adentra um
percurso singular em confronto com a tradiccedilatildeo sem ao mesmo tempo abrir matildeo dela
Eis o motivo de pensar a filosofia como resposta um caminho que compara logo traz agrave
identidade sem igualar Fazem parte de toda comparaccedilatildeo na verdade quaisquer dois
74 Livro XXII linhas 301-304
87
elementos que satildeo aproximados e colocados um agrave disposiccedilatildeo do outro identificam-se
aproximadamente colocados frente a frente satildeo tidos por semelhantes mesmo que ainda
diferentes
Esse detalhe demarca uma forma de guiar o pensamento e se distingue
radicalmente da definiccedilatildeo na qual a filosofia eacute uma resposta acabada soluccedilatildeo encontraacutevel
categoria reprodutiacutevel Tampouco devia se furtar a responder aos anseios das pessoas e
da sociedade como se fosse algo fora de sua alccedilada Ela natildeo estaacute agrave mercecirc da resposta
nem aqueacutem nem aleacutem Se a filosofia se propotildee a algo eacute a este diaacutelogo entre permanecircncia
e mudanccedila
Natildeo se pode estabelecer todo relacionamento numa posiccedilatildeo a natildeo ser
aceitando a multiplicidade de posiccedilotildees Na multiplicidade vocecirc se coloca
assume uma posiccedilatildeo Sempre haacute o outro o diferente tanto o outro do outro
quanto o outro de si mesmo em cada posiccedilatildeo O outro eacute a diferenccedila do proacuteprio
movimento de constituir uma diferenccedila uma posiccedilatildeo Toda posiccedilatildeo se manteacutem
num processo de diferenciaccedilatildeo e jaacute eacute em si mesmo um outro e traz consigo a
dinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 212)
Ao longo do tempo a filosofia vem dando respostas atraacutes de respostas num
movimento incessante embora com seus contratempos Nem por isso os posicionamentos
devem ser encarados hierarquicamente anulando o anterior em prol do vindouro A
filosofia natildeo evolui Muito menos o estudo dos textos claacutessicos precisa acontecer para
que sejam decorados transformando a tradiccedilatildeo numa coisa estanque e sem vida
literalmente fruto apenas de um passado morto feito por falecidos filoacutesofos A filosofia
natildeo eacute mero relato de conceitos e categorias
Uma das dificuldades em lidar com ela encarando-a por ciecircncia eacute a natildeo
progressatildeo dos diferentes posicionamentos Hegel eacute um Kant superado Aristoacuteteles um
Platatildeo melhorado Embora os questionamentos possam ser desdobrados o empenho de
cada um desses grandes autores assim como o geacutermen inquiridor dos incipientes
discentes tem caracteriacutesticas proacuteprias e propriedade filosoacutefica quando se atecircm agrave questatildeo
que eacute sempre geradora de novas questotildees Daiacute seu caraacuteter dialogal Natildeo eacute possiacutevel sem a
diferenccedila natildeo eacute possiacutevel sem a identidade e isso natildeo quer dizer igualdade
O pequeno pensador natildeo se equivaleria agrave tradiccedilatildeo Honestamente falando ele natildeo
tem a mesma importacircncia histoacuterica nem sequer deve ter a mesma densidade no
questionar Todavia na singularidade do seu questionamento haacute ali agrave espreita o natildeo
88
pensado A experiecircncia que o caminhar do caminho proporciona revela uma existecircncia
sensiacutevel compreensiacutevel agrave medida que se experiencia e eacute dificilmente transmissiacutevel pois
arduamente conceituaacutevel
Afinal ningueacutem nunca comeu fruta alguma Fruta natildeo tem gosto nem cor nem
forma Sabemos da fruta apenas conceitualmente do relato do que seja uma fruta seu
sabor seu cheiro Come-se entretanto lsquoestarsquo banana lsquoestarsquo maccedilatilde lsquoestarsquo manga e como
tal elas jamais poderatildeo ser comidas novamente Esta sim eacute saboreada e infelizmente (ou
natildeo) soacute por quem caacute come ldquonatildeo se pode entrar duas vezes no mesmo riordquo (HERAacuteCLITO
1991 paacuteg 83)75 Pode-se contudo convidar a realizar quem queira a experiecircncia ediacutevel
com outra banana Em diaacutelogo gustativo nota-se que bananas jaacute foram comidas mas
nunca lsquoestarsquo senatildeo aqui nem estaria e por isso sabe-se e natildeo se sabe seu sabor Ela eacute
uacutenica no bananal propriamente proacutexima e diferente ldquono mesmo rio entramos e natildeo
entramos somos e natildeo somosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)76
O diaacutelogo tem que partir do proacuteprio do contraacuterio ele estaria fadado ao vozerio
reprodutivo sem qualquer compromisso consigo e com o outro (que eacute um consigo) Ele
natildeo tem que dizer tudo nem poderia natildeo dizer nada natildeo diz necessariamente o que deve
ser dito (deve ser para quem) nem se omite a dizer o requisitado Ambas as atitudes satildeo
partes da vontade dos interlocutores O diaacutelogo do proacuteprio apenas diz ou seja sua accedilatildeo eacute
medida pela sua possibilidade de accedilatildeo nada aleacutem nada aqueacutem
O sucesso dessa realizaccedilatildeo dessa perfeiccedilatildeo por sua vez soacute eacute possiacutevel com a
instauraccedilatildeo de um fator que assegure a sua consecuccedilatildeo a sua realizaccedilatildeo Se
por um lado esse fator pode ser entendido a partir da realizaccedilatildeo da citaccedilatildeo
acima [navegar eacute preciso viver natildeo eacute preciso]77 como a manutenccedilatildeo do
mesmo se impotildee que pensemos o que vem a ser esse mesmo O mesmo natildeo eacute
a mera realizaccedilatildeo e sim a condiccedilatildeo de possibilidade para que essa realizaccedilatildeo
se realize (JARDIM 2005 paacuteg 45)
Este proacuteprio dita a correspondecircncia com tradiccedilatildeo e ensino As condiccedilotildees de sua
manifestaccedilatildeo as quais perpassam pelas demandas situacionais pela histoacuteria pelos gostos
pessoais etc fazem parte do grande pacote que eacute a resposta E haacute ainda a vigiar o
75 ldquoποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82) 76 ldquoποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμενrdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 70) 77 Πλεῖν ἀνάγκη ζῆν οὐκ ἀνάγκη
89
inominaacutevel onde a matildeo humana nunca alcanccedila Como a resposta lida com esse vazio
Como dizer e agir perante o que natildeo se tem como responder O pensador diz que ldquonatildeo eacute
para falar [λέγειν] e agir dormindordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 79)78 e em um outro
fragmento ele se refere agrave morte como sendo ldquotudo que vemos acordados sono o que
vemos adormecidosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 63)79 Talvez isso indique que estamos
fadados ao funesto ao que natildeo diz respeito agrave nossa vontade se queremos de fato viver
Por outro lado temos a vivecircncia adormecida Dormitando dirigimo-nos agrave vida
segura ou agrave impressatildeo de seguranccedila e dormimos a fim de que nada aconteccedila como se
debaixo das cobertas o monstro natildeo viesse nos pegar Nesse sentido o falar e o agir do
sono ignorando os ensinamentos do pensador satildeo o compromisso com a penumbra do
estado de sonolecircncia com o que chega sem nos afetar sem fazermos a experiecircncia
apenas um sonho nebuloso e fugaz
Trabalhando pois sobre o oacutebvio (mas nem por isso desprezaacutevel) natildeo eacute possiacutevel
dialogar dormindo e λέγειν infinitivo do verbo de mesma raiz de λόγος natildeo nos deixa
escapar desse sentido dialoacutegico Na resposta da filosofia para a tradiccedilatildeo se funda ao
menos a atenccedilatildeo do desperto Um responder que dialoga com o proacuteprio de cada um e
com aquilo comum a todos noacutes isto eacute a morte
Como se daacute o diaacutelogo na morte Esse eacute o tipo de colocaccedilatildeo que faz do filoacutesofo
algueacutem de pouco acesso Para uma pergunta absurda justifica-se com o espanto afinal
ningueacutem fala nada depois de morto como poderia entatildeo haver diaacutelogo Em se tratando
de Heraacuteclito talvez seja apenas uma idiossincrasia de pensador seu estilo de lidar com
as questotildees conforme se compreendia em De finibus bonorum et malorum Livro II
Capiacutetulo V paraacutegrafo 15 ldquoQuod duobus modis sine reprensione fit si aut de industria
facias ut Heraclitus lsquocognomento qui σκοτεινός perhibeturrsquo quia lsquode natura nimis
obscure memoravitrsquordquo (CIacuteCERO 1914 paacuteg 94)80 a saber ldquoO qual pode ser feito em dois
casos sem repreensatildeo se se procede intencionalmente como em Heraacuteclito que
78 ldquoκαὶ ὃτι οὐ δεῖ lsquoὥσπερ καθεύδοντας ποιεῖν καὶ λέγεινrsquordquo (HERAacuteCLITO apud ANTONINUS 1916 paacuteg
92) Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreaminernetdli20151834032015183403Marcus-Aurelius-
Antoninuspagen121mode2upgt Acesso em 06 ago 2017 79 ldquoθάνατός ἐστιν ὁκόσα ἐγερθέντες ὁρέομεν ὁκόσα δὲ εὕδοντες ὕπνοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 62) 80 Conforme nota da ediccedilatildeo de 1914 desta obra a citaccedilatildeo eacute provavelmente de Luciacutelio
90
lsquocognominado Obscuro haviarsquo pois lsquoniacutemio obscura memorava sua filosofiarsquordquo (CIacuteCERO
1960 paacuteg 87 ndash traduccedilatildeo livre)81
Ainda que a questatildeo da morte seja tratada por diversos setores de nossa sociedade
desde o acadecircmico e cientiacutefico ateacute o religioso se estabelece no mais das vezes um
diaacutelogo com mas fundamentalmente sobre a morte afinal ldquono decorrer dos uacuteltimos
seacuteculos pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciecircncia coletiva
sua onipresenccedila e sua forccedila de evocaccedilatildeordquo (BENJAMIN 1987 paacuteg 207) Heraacuteclito (1991
paacuteg 63) em seu fragmento 21 revestindo-se da alcunha da obscuridade propotildee um
diaacutelogo na morte ou a partir da morte Eacute estabelecido um desatino como se fosse possiacutevel
falar com a morte ou atraveacutes dela sem perecer Por outro lado eacute sugerido que realmente
se vive para e na morte Como isso eacute possiacutevel
Falar dormindo natildeo seria pois mais factiacutevel A psicanaacutelise por exemplo efetua
toda uma estrutura de conhecimento sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos Muitas religiotildees
tomam o sono por transe estado de consciecircncia alterada e ponte para as verdades ocultas
agrave vigiacutelia Uma vida guiada pelo sono se adequaria melhor agrave compreensatildeo geral do que
uma pela morte Imaginar um diaacutelogo com o sono eacute bem mais criacutevel do que o paradoxo
posto pelo pensador preacute-socraacutetico soacute reforccedilando o paradigma obscuro tanto dele quanto
da filosofia em geral
Era bem verdade que numerosos versos dos livros sagrados sobretudo dos
upanixades do Sama-Veda referiam-se a esse quecirc derradeiro mais iacutentimo Que
versos maravilhosos lsquoTua alma eacute o mundo inteirorsquo ndash rezava um deles e estava
escrito que o homem durante o sono o sono profundo entrava no proacuteprio
acircmago e habitava o Aacutetman82 Sabedoria milagrosa residia nesses poemas []
Mas onde se achariam os bracircmanes onde os sacerdotes os saacutebios ou os ascetas
que lograssem natildeo somente conhecer senatildeo tambeacutem viver essa profunda
sabedoria Onde estaria o homem perito que fosse capaz de realizar aquele
passe de maacutegica que transportasse a familiaridade com o Aacutetman desde o sono
para o estado de vigiacutelia para a vida de todos os momentos e a demonstrasse
por atos e palavras (HESSE 2003 paacuteg 12)
Entre os diferentes modos da fala o que estaacute em jogo aqui eacute como se portar diante
de λέγειν Apresenta-se enquanto colocaccedilatildeo primordial a ausculta da unidade de λόγου
81 ldquoDas kann in zwei Faumlllen geschehen ohne Anstoszlig zu erregen wenn man entweder absichtlich so
verfaumlhrt wie Heraklit der den Beinamen bdquoder Dunkleldquo erhielt weil er uumlber die Gesetzmaumlssigkeit der Natur
gar zu dunkel berichteterdquo 82 Do sacircnscrito atma essecircncia sopro alma Na filosofia hindu significa o proacuteprio ou a alma Sua origem
remete ao proto-indoeuropeu etmen sopro conforme The Online Etymology Dictionary Disponiacutevel em
lthttpwwwetymonlinecomindexphpterm=atmangt Acesso em 02 ago 2017
91
conforme Hipoacutelito em Refutaccedilatildeo de todas as heresias IX 9 1 ao citar Heraacuteclito (apud
KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 193) ldquoDando ouvidos natildeo a mim mas ao
Logos eacute avisado concordar em que todas as coisas satildeo umardquo Ainda que se estiveacutessemos
mortos ou dormindo tudo natildeo passaria de uma manifestaccedilatildeo do λόγος daiacute o pensador
natildeo estar visando a princiacutepio sua clareza imediata mas a concordacircncia nesse domiacutenio
ontoloacutegico no qual tudo eacute um ldquoO mesmo eacute vivo e morto vivendo-morrendo a vigiacutelia e o
sono tanto novo como velho pois estes se alterando satildeo aqueles e aqueles se modificando
satildeo estesrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 83)83
Nesse sentido tanto o que vemos acordados quanto o que vemos adormecidos
ldquodariardquo no mesmo tudo seria um ndash apenas natildeo damos conta disso Natildeo prestamos atenccedilatildeo
agrave unidade e nos debatemos entre este ou aquele caminho entre ser algo ou parecer ser
algo entre o inteligiacutevel ou o sensiacutevel entre morrer ou dormir Segue um trecho do
soliloacutequio do personagem Hamlet Ato II Cena I insigne caso do dilema de morrer e
dormir
Ser ou natildeo ser Eis a questatildeo Que eacute mais
nobre para a alma suportar os dardos
e arremessos do fado sempre adverso
ou armar-se contra um mar de desventuras
e dar-lhes fim tentando resistir-lhes
Morrer dormir mais nada Imaginar
que um sono potildee remate aos sofrimentos
do coraccedilatildeo e aos golpes infinitos
que constituem a natural heranccedila
da carne eacute soluccedilatildeo para almejar-se
Morrer dormir dormir Talvez sonhar (SHAKESPEARE 2011 paacuteg 70)
Natildeo obstante o filoacutesofo se esmera por um sentido e desaconselha o outro o limite
posto eacute fundamental Diz de sua filosofia apresentando como mais conveniente para o
entendimento dela seguir pela morte do que pelo sono Limitando respondendo aderindo
a uma posiccedilatildeo esse pensamento define sem encerrar ou seja sem fechar por resolvida a
questatildeo do uno pois entre um ou outro haacute um e outro Morrer e dormir estatildeo em tensatildeo
perpeacutetua mesmo na adesatildeo de uma por outra ldquoO homem toca a luz na noite quando com
83 ldquoταὐτὸ ζῶν καὶ τεθνηκὸς καὶ ἐγρηγορὸς καὶ καθεῦδον καὶ νέον καὶ γηραιόνmiddot τάδε γὰρ μεταπεσόντα ἐκεῖνά
ἐστι κἀκεῖνα πάλιν μεταπεσόντα ταῦταrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82)
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visatildeo extinta estaacute morto para si mas vivendo toca o morto quando com visatildeo extinta
dorme na vigiacutelia toca o adormecidordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 65)84
Heraacuteclito em sua filosofia abraccedilou o paradoxo da linguagem no qual ele concebe
como possiacutevel a morte em sintonia com a vida e de modo semelhante o sono com a
vigiacutelia ldquoDe todas as coisas a guerra eacute pai de todas as coisas eacute senhor a uns mostrou
desses a outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 73)85 Πόλεμος a guerra a polecircmica sentidos todos que abarcam a tensatildeo inerente
e paradoxal que natildeo resume tudo nem cessa tudo pelo contraacuterio manteacutem acesa a disputa
em tudo Natildeo eacute uma questatildeo de escolha permanecer a dormir ou despertar para a vida
que tambeacutem natildeo aparece com negaccedilatildeo da morte Trata-se concomitantemente de viver
morrendo e de adentrar demoradamente a morte enquanto se vive A morte natildeo eacute uma
maldiccedilatildeo como se pretende pintar mas traccedilo distintivo dos mortais
Morte aqui eacute plenitude de realizaccedilatildeo do homem sua grande saiacuteda de si ndash ex-
istecircncia assim como uma saiacuteda em si dentro do proacuteprio que o define A busca natildeo eacute
incansaacutevel ao contraacuterio ela se plenifica quando cansamos pois eacute nosso destino tanto
correr atraacutes quanto deixar ir A humanidade vive partindo de laacute para caacute a decidir e a
inventar de mal a pior e desta para melhor tal atitude leva-a a criar e a ansiar pela criaccedilatildeo
mas como ela natildeo bastaraacute leva-o tambeacutem a se insatisfazer pelo criado e em sequecircncia
a produzir mais Daiacute a exaustatildeo buscamos por algo que nunca se basta Uma hora cansa
Uma hora para Partir em uacuteltima instacircncia eacute morrer
Heraacuteclito relega morte e sono agrave experiecircncia do ver Em grego o substantivo nesse
caso diz objetivamente do aspecto ou aparecircncia de uma coisa ou pessoa seus contornos
da apariccedilatildeo de algo e subjetivamente do ato de ver dignidade posiccedilatildeo (LIDDELL
SCOTT 1940 Ὄψις) Esse modo de encarar a visatildeo natildeo foca exclusivamente no que o
homem vecirc ou pode ser visto por ele mas chama atenccedilatildeo ao que se dispotildee agrave vista
manifesta-se aos olhos dos mortais e dos imortais Faz-se presenccedila mas nem por isso
torna-se presente a todos
Com a extinccedilatildeo da visatildeo morte e sono se aproximam como se ao cerrar os olhos
das muacuteltiplas atenccedilotildees fosse mais propiacutecio a ausculta do λόγος Depois de um dia
84 ldquoἄνθρωπος ἐν εὐφρόνῃ φάος ἅπτεται ἑωυτῷ ἀποσβεσθεὶς ὄψεις ζῶν δὲ ἅπτεται τεθνεῶτος εὕδων
ἐγρηγορὼς ἅπτεται εὕδοντοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 64) 85 ldquoπόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς
μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρουςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 72)
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exaustivo o sono ateacute que seria muito bem-vindo Em contrapartida pela experienciaccedilatildeo
do visiacutevel o homem heracliacutetico precisa decidir Satildeo as escolhas impostas pelo proacuteprio
viver e para isso natildeo deve estar dormindo mas ir ao encontro do λόγος na morte esse
embate vivo e contiacutenuo Deve-se como quem tem uma obrigaccedilatildeo natildeo com a moral
vigente mas com o que impele agrave plenitude de sua constituiccedilatildeo Οὐ δεῖ natildeo eacute para natildeo se
deve conforme fragmento 73 falar e agir a dormir Οὐ eacute adveacuterbio de negaccedilatildeo e δεῖ
(LIDDELL SCOTT 1940)86 verbo que joga com os sentidos de precisar necessitar
querer sobremaneira etc Nossa obrigaccedilatildeo eacute com a escuta do Um natildeo de um pensador de
uma sumidade ou de um conjunto delas no tempo embora natildeo seja possiacutevel se
desvencilhar totalmente disso
Morte e vida morte e sono satildeo o conflito vigorando ldquoo contraacuterio em tensatildeo eacute
convergente da divergecircncia dos contraacuterios a mais bela harmoniardquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 61)87 Claro que no livre caminho das escolhas qualquer posiccedilatildeo passa por
imposiccedilatildeo e a fala de um cala a voz do outro Tomar uma escolha dentro da loacutegica do
certo e do errado visa a cessaccedilatildeo do combate Trata-se caacute da harmonia natildeo da anulaccedilatildeo
da diferenccedila Por mais responsaacuteveis que desejemos ser com os homens apenas podemos
convidaacute-los ensinar propondo encaminhamentos caso contraacuterio seria impor nossa
vontade dizer como se faz prescrever e doutrinar
O perigo de qualquer ajuda estaacute em acreditar que um sujeito deteacutem a resposta
definitiva e simultaneamente que outrem eacute incapaz de alcanccedilaacute-la Quando estender a
matildeo Mesmo se houvesse um empenho para tornar o que eacute pequeno e simples aos nossos
olhos em grandioso natildeo eacute possiacutevel ignorar a singularidade da pequenez pois cada
responder tem seu quinhatildeo de equiacutevoco e para cada soluccedilatildeo uma pretensatildeo de verdade
Perante os conflitos a oposiccedilatildeo ou a treacutegua busca a cessaccedilatildeo do embate num campo de
batalha um quer derrotar o outro ateacute que natildeo haja batalha ou entatildeo fazem-se as pazes
volta-se ao lar pois a batalha findou Haacute a situaccedilatildeo conflitante e sua resoluccedilatildeo haacute a causa
e a consequecircncia mas ldquonatildeo compreendem como concorda o que de si difere harmonia
de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)88 isto
86 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei3
Dgt Acesso em 26 set 2017 87 ldquoτὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίηνrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 60) 88 ldquoοὐ ξυνιᾶσιν ὅκως διαφερόμενον ἑωυτῷ συμφέρεταιmiddot παλίντονος ἁρμονίη ὅκωσπερ τόξου καὶ λύρηςrdquo
(HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 70)
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eacute natildeo se opor natildeo se igualar mas manter a tensatildeo Aqui tomar uma decisatildeo dever fazer
isso ou aquilo eacute soacute mais um modo de caminhar no caminho
Apenas por ser dual que pode haver a presunccedilatildeo da unidade do real Embora o um
seja o princiacutepio gerador que conflagra a aproximaccedilatildeo das distacircncias conforme fragmento
50 isso soacute eacute possiacutevel porque aparentemente nem tudo eacute proacuteximo Do um como princiacutepio
ao dois como unidade natildeo eacute soacute um belo tiacutetulo mas faz referecircncia direta agrave discussatildeo
ontoloacutegica em torno do λόγος heracliacutetico Por haver tensatildeo haacute a possibilidade de
complemento mantendo assim uma oposiccedilatildeo que de fato se opotildee ou seja natildeo anseia
pelo teacutermino de sua posiccedilatildeo oposta Nessa realidade ambivalente a decisatildeo proferida
sussurra a incapacidade de perda da singularidade dos contraacuterios no um Por isso seja
qual for o caminho morrer ou dormir este natildeo se soma com o aquele na unidade aquele
natildeo se sintetiza com este morrer eacute dormir e natildeo eacute dormir na unidade do ciacuterculo
Simultaneamente dizer que ldquotudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71) eacute o modo mais
simples no qual pulsa o vigor originaacuterio do pensamento de dizer que tudo natildeo eacute um
[] uma paisagem que se apresenta sempre atraveacutes de dois binocircmios um o
mais secreto e escondido que faz brotar dentro de si mesmo um outro que se
revela que se faz visiacutevel Eacute como se esses pensadores [Heraacuteclito e Parmecircnides]
dissessem que toda coisa tudo aquilo que eacute natildeo estaacute nunca sozinha no sentido
de algo encerrado em si mesmo mas sempre o eacute junto a uma outra coisa em
sintonia com a alteridade com a qual a um soacute tempo se relaciona e se opotildee
constituindo com ela uma unidade (MICHELAZZO 1999 paacuteg 85)
Tudo eacute tatildeo singular quanto dual e plural e por isso ἓν πάντα εἶναι eacute paradoxal
necessariamente Nem poderia ser diferente afinal supondo que tudo fosse um apenas
com o rigor matemaacutetico de 1 ne 2 e o universo cessasse de possibilidades e de tudo restasse
somente um lsquouacutenica cadeirarsquo Ou lsquouacutenica canetarsquo ateacute mesmo lsquouacutenico homemrsquo Ningueacutem
haveria de sentar-se naquela ou nenhum poema seria escrito com esta Qualquer
possibilidade de vida seria sem sentido Da mesma forma se tudo natildeo fosse um se natildeo
houvesse essa relaccedilatildeo entre minus entre as coisas entre as pessoas entre os instantes do tempo
minus qualquer transitoriedade cessaria natildeo haveria enigmas nem caminhos para a cadeira
ser sentada a caneta virar poema e o homem morrer
Morte natildeo eacute e eacute vida vigiacutelia natildeo eacute e eacute sono assim como o uno eacute e natildeo eacute uno O
que eacute o uno No momento em que nos atemos ao momento o mesmo natildeo eacute mais o mesmo
e outro momento eacute apenas para jaacute natildeo ser outro momento Por que natildeo medir a unidade
95
se ao fim ela permaneceraacute unidade Como medir o que natildeo pode ser medido mdash
Medindo por mais impreciso que possa ser Se se faraacute crenccedila na verdade dessa mediccedilatildeo
satildeo outros quinhentos
96
3 Pensando a Linguagem
O homem fala O λόγος tambeacutem fala Tudo fala Em meio ao vozerio dos seres
nem sempre eacute possiacutevel ouvir a proacutepria voz Mesmo sem sua audiccedilatildeo o carro anda o barco
zarpa e a vida segue surda Sem o cuidado promovido pelo ouvido o diaacutelogo dos seres
cessa e batem-se cabeccedilas na multiplicidade amorfa que natildeo se sabe unidade
Natildeo agrave toa almejou-se sair da caverna como uma compreensatildeo de resgate de uma
ausculta no caso das ideias em meio agrave rede de sombras A filosofia ao longo de sua
histoacuteria tem se preocupado em diversos momentos com o que constitui e daacute sentido aos
seres Pergunta-se pela essecircncia a tradiccedilatildeo responde com a aacutegua em Tales com o fogo
em Heraacuteclito mas tambeacutem com εἶδος com Deus com ratio etc
De tudo que a filosofia fez ou faz ainda hoje laacute estaacute ora encoberta ora mais direta
a pergunta pelo que eacute Na introduccedilatildeo de ldquoWas ist Metaphysikrdquo de 1949 Heidegger
(1955 paacuteg 35) vai nos colocar diante da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoDas Seiende das in der
Weise der Existenz ist ist der Mensch Der Mensch allein existiertrdquo Em versatildeo brasileira
de Os pensadores Ernildo Stein traduziu a sentenccedila como ldquoo ente que eacute ao modo da
existecircncia eacute o homem Somente o homem existerdquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 59) Aqui
nos dispomos a ela como uma duacutevida eacute possiacutevel que somente o homem exista Quase
sem dificuldades pode-se protestar pelo absurdo ensejado na asserccedilatildeo heideggeriana
Afinal a seu lado haacute um bicho este ser estaacute no mundo tambeacutem Ele respira come
e interage com os demais seres Ele natildeo existe Para negar que natildeo soacute o homem existe
precisariacuteamos perguntar o que eacute existecircncia e em seguida de que modo o homem eacute e os
demais seres natildeo satildeo Naturalmente soacute o homem existir natildeo nega que o homem eacute nem
que os demais seres satildeo O que estamos tentando fazer eacute responder agrave escuta do ser do
homem na medida em que o ser do homem eacute como o ser do homem pode ser ndash e somente
ele pode ser
Natildeo se pressupotildee que soacute o homem possa ser Tudo eacute Entretanto a pergunta pelo
ser ganha contornos diferentes se atentarmos ao modo como se eacute ou seja como tornar-se
a si mesmo como apropriar-se do que eacute proacuteprio No livre caminho das escolhas qualquer
posiccedilatildeo poderia passar por imposiccedilatildeo e calar a voz do outro por isso a importacircncia de se
atentar aos modos de ser
97
Opta-se por isso ou aquilo daacute-se respostas a esmo sem o devido cuidado Tais
consideraccedilotildees a respeito das escolhas passa pela vontade (sou algo porque quero) e em
sequecircncia pela exclusatildeo (vocecirc natildeo eacute algo porque eu natildeo quero) O homem fala sob
pressatildeo Ele precisa responder agraves exigecircncias do cotidiano e prover de soluccedilotildees a lousa
Por esse vieacutes suas escolhas pressionadas acabam por gerar opressatildeo tanto de si quanto
dos demais Quem estaacute oprimido necessita exprimir-se e ao ser natildeo seria diferente
O ser precisaria ser exprimido precisaria se exteriorizar isto eacute existir Por sua
vez o ser seria uma interioridade opressora da existecircncia Nesse sentido ser e existir
fariam praticamente oposiccedilatildeo De um lado o ser exigindo sua expressatildeo a ponto de forccedilar
uma existecircncia e do outro o natildeo ser cuja inexistecircncia estaria agrave mercecirc do que eacute
Da oposiccedilatildeo busca-se a cessaccedilatildeo dos conflitos numa sociedade que esqueceu o
paradoxo de ser e natildeo ser Haacute a situaccedilatildeo conflitante e o depois haacute a causa e o depois Daiacute
encarar a pergunta pela essecircncia por algo de resoluto ou a fala do homem sem a tensatildeo
dos contraacuterios externando sua voz agraves demais falas Natildeo A pergunta pela fala natildeo cala
natildeo precisa calar
Tendo em vista o dito soacute o homem eacute ao modo da existecircncia natildeo conclui que os
demais seres natildeo satildeo nem que natildeo existem somente que natildeo existem como o homem
existe Em outras palavras os demais seres natildeo ldquoexistemrdquo porque o homem existe E de
fato os demais seres natildeo existem na sentenccedila heideggeriana mas ainda assim se
atentarmos para o natildeo dito no dito devemos dizer natildeo ao fato de o homem existir na
causalidade referencial dos demais seres natildeo existirem
Assim a existecircncia natildeo nega algo aos outros seres mas afirma uma singularidade
no homem Nesse caso a afirmaccedilatildeo eacute escuta agrave fala do ser Agrave medida da fala do λόγος o
homem escuta Ser e λόγος natildeo se confundem em significado pelo contraacuterio se
complementam em sentidos no paradoxo da linguagem um servindo de morada ao outro
(HEIDEGGER 1947 paacuteg 5) Agrave medida dessa escuta o homem decide e responde ldquono
dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala
perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 12)
O passarinho eacute o homem escuta o canto do passarinho A aacutervore eacute o homem vecirc
se ela caiu ou natildeo se fez barulho ou natildeo ou seja a escuta proacutepria agrave fala do ser nomeia agrave
medida que pode nomear na correspondecircncia das limitaccedilotildees da escuta Cantar e cair satildeo
somente disposiccedilotildees da fala do homem para compreender o ser do paacutessaro e da aacutervore
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Retoacuterica 1
Cantam os paacutessaros cantam
Sem saber o que cantam
Toda sua compreensatildeo eacute sua garganta (PAZ 1989 p 19 ndash traduccedilatildeo livre)89
Chamar de existecircncia o modo proacuteprio de o homem escutar a fala do ser natildeo nega
que os demais seres tenham um modo proacuteprio de escuta e fala nem esgota o ser do homem
na existecircncia O entendimento da fala humana natildeo se consuma no grito ela interpreta diz
o oacutebvio repete a diferenccedila e cala Jaacute o paacutessaro a planta e as pedras satildeo exclusivamente
Exclusivo natildeo porque natildeo possam corresponder ao ser mas porque o homem que
corresponde ao ser do homem natildeo pode deixar de ouvir-se Em outras palavras a
existecircncia eacute a correspondecircncia agrave fala do ser agrave medida do homem Nesse sentido tudo que
eacute para o homem existe tambeacutem para o homem quer dizer soacute pode ser interpretado
compreendido assimilado dissecado estudado e experienciado agrave medida humana e agrave
escuta da fala do ser ao homem Daiacute a margem sempre errada no encontro das existecircncias
Equivocadas estatildeo sempre a se ouvir Existir natildeo eacute ser Existir eacute uma possibilidade Ser eacute
o possiacutevel
De maneira semelhante quando a filosofia se pergunta por como ser filosofia ela
natildeo anula suas variadas respostas assim como a de outras faculdades do pensamento
sobre ela mas diz do modo proacuteprio de dizer atenta ao que eacute ldquopensar desde a linguagem
significa alcanccedilar de tal modo a fala da linguagem que essa fala aconteccedila como o que
concede e garante uma morada para a essecircncia para o modo de ser dos mortaisrdquo
(HEIDEGGER 2003 paacuteg 10) A fala do homem eacute uma concessatildeo da fala do λόγος
Quanto mais atento formos agrave escuta da fala do λόγος mais habitaremos nela
O λόγος estaacute presente nas falas mas natildeo se consome nelas se encontra nas
decisotildees nossas de cada dia mas natildeo se esgota ali O esgotamento faz parte pois a escuta
atenta demanda certo tardamento demora na morada da linguagem tardanccedila que nem
sempre dispomos Normalmente cremos nas falas imediatas porque precisamos de
respostas imediatas por exemplo o dinheiro para a mensalidade do plano de sauacutede Tanta
correria que natildeo haacute tempo nem para perceber a questatildeo que permanece inconclusa e
89 Retoacuterica 1 Cantan los paacutejaros cantan sin saber lo que cantan todo su entendimiento es su garganta
99
doadora de sentidos por exemplo o que eacute cuidar por que o cuidado se desdobra na
instituiccedilatildeo meacutedica e por aiacute vai
A esse papel delongado na fala dos homens em ressonacircncia agrave do λόγος prestam-
se personagens especiacuteficas ldquoA linguagem eacute a casa do ser Nessa habitaccedilatildeo mora o
homem Poetas e pensadores satildeo seus vigiasrdquo (HEIDEGGER 1947 paacuteg 5 ndash traduccedilatildeo
livre)90 Significa dizer que haacute uma disposiccedilatildeo de tempo proacutepria que se distancia da hora
funcional para parar e para criar uma temporalidade memoraacutevel para movimentar
sentidos de uma coisa qualquer um cuidado com as coisas para operar a partir delas
interpretando experienciando tornando-as de fato obra
Uma unidade que natildeo eacute lsquocoisarsquo mas lsquoobrarsquo ndash quer dizer antes de tudo combate
Porque o mundo aspira sempre a dominar a terra a terra aspira sempre a reter
o mundo Deixar o mundo ser mundo e a terra ser terra eacute portanto mantecirc-los
no seu afrontamento vivo afrontamento que eacute o uacutenico a permitir-lhes ser cada
um para si e ser um para o outro Instigadora do combate do mundo e da terra
a obra eacute o espaccedilo de realizaccedilatildeo da unidade (ZARADER 1998 paacuteg 252)
Nesse sentido pode parecer ateacute que poetas e pensadores podem se ausentar por
completo da ordem das coisas e das exigecircncias mundanas Natildeo natildeo podem como
tambeacutem natildeo pode o motorista fugir agrave conduccedilatildeo do veiacuteculo e a sentinela ao posto sem
colocar em risco sua obra Portanto tambeacutem os poetas e pensadores natildeo podem se
ausentar do cuidado ao λόγος Natildeo por escolherem ser poetas e pensadores e por isso
precisarem cuidar do λόγος mas sim porque a escuta do λόγος vige neles que haacute poesia e
pensamento Por a questatildeo urgir primordialmente que a possibilidade de responder
acontece
A correspondecircncia agrave fala do λόγος eacute proacutepria de cada um assim como sua ausculta
Defronte de semelhantes contratempos as pessoas reagem diferentemente conforme
Metafiacutesica Livro IV Capiacutetulo 2 Seccedilatildeo 1003a Linha 33 ldquoτὸ δὲ ὂν λέγεται μὲν πολλαχῶςrdquo
(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 130) a saber ldquoo ser se diz em muacuteltiplos significadosrdquo
(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 131) Se o dito eacute pois diverso tambeacutem seraacute nossa
interpretaccedilatildeo Eacute o caso da lesma que pode ser apreendida pelo livro de biologia ou
enojada pela dissecaccedilatildeo da crianccedila curiosa E pode ser cantada de verso em prosa segue
90 Die Sprache ist das Haus des Seins In ihrer Behausung wohnt der Mensch Die Denkenden und
Dichtenden sind die Waumlchter dieser Behausung
100
de vento em popa os desdobramentos do λόγος do uno divisiacutevel cujas partes se mostram
distintamente a noacutes
De cajado
rutilante
eremita
do profundo
vai a lesma
cada instante
recriando
nosso mundo (LEGRENDE 2011 paacuteg 57)
No modo moderno de lidar com o embate do uno surge a decisatildeo da vontade
Decide-se pela vida decide-se pelo sono e por vezes pela morte Esquecida a dualidade
opta-se por um ou por outro Nada fora do comum jaacute que nem sempre estamos cientes agrave
ausculta do λόγος Conscientes ou natildeo haacute o uno e perpetramos sua rede de manifestaccedilotildees
sem o saber sem passar pela nossa vontade E mesmo quando cientes natildeo basta querer
para poder Natildeo eacute apenas por gostarmos de dirigir que podemos pegar do carro e sair por
aiacute tem toda uma teacutecnica e empenho envolvidos no processo Natildeo eacute porque estudamos
arduamente as lesmas e sabemos as respostas para todas as nossas perguntas que estamos
perante agrave duacutevida genuiacutena de pensamento vai a lesma de cajado rutilante eremita do
profundo cada instante ela recria ou natildeo nosso mundo como diria Legrende (2011 57)
Todos colaboramos tendo em vista um fim comum uns consciente e
deliberadamente outros sem o saber como Heraacuteclito [fragmento 75] (penso
eu) diz daqueles que dormem que satildeo obreiros e colaboradores das coisas que
se fazem no mundo Mas os homens cooperam de diferentes maneiras mesmo
aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir pois o universo necessita ateacute
desses homens Resta-te perceber entre que espeacutecie de obreiros estaacutes aquele
que governa o universo faraacute certamente uso adequado de ti e te receberaacute entre
os que jaacute colaboram e os que se dispotildeem a colaborar Mas natildeo ocupes um lugar
como o verso mediacuteocre e ridiacuteculo na trageacutedia de que fala Criacutesipo91 (MARCO
AUREacuteLIO 1967 paacuteg 97)
Por isso que nem o poeacutetico-filosoacutefico nem o teacutecnico-funcional estatildeo agrave medida do
λόγος aqueacutem ou aleacutem entre si Se ao inveacutes de fazer um poema decidiacutessemos medir o
tamanho de uma coluna de maacutermore esta mediccedilatildeo natildeo calaria necessariamente a
91 Criacutesipo foi um conhecido estoico grego Esta passagem se refere ao fragmente 1181 da ediccedilatildeo de von
Arnim conforme nota do original
101
desmedida do Coliseu seus diversos tamanhos a medir e a natildeo medir A medida que mede
o tamanho pelos nuacutemeros da matemaacutetica eacute mais um modo de ouvir a fala do λόγος Ainda
que definitivamente natildeo seja o λόγος em sua totalidade
Daiacute a dificuldade da metafiacutesica nos moldes dicotocircmicos de νοῦς e δόξα ao se
deparar com Heraacuteclito O Obscuro natildeo estaacute claro por natildeo se articular tradicionalmente
ou seja dentro de certos preceitos de oposiccedilotildees e argumentaccedilotildees esperadas inclusive
logicamente esperadas A desculpa de que sua escrita nos foi relegada fragmentada natildeo
convence jaacute que tantos outros escritos antigos estatildeo em fragmentos aleacutem do que a
alcunha adveacutem de uma eacutepoca na qual eacute concebiacutevel que alguns dizeres do pensador
estivessem ateacute em outras dimensotildees
Σκοτεινός natildeo eacute devido somente ao seu modo de se manifestar mas tambeacutem a
como seus interlocutores o podiam compreender Sua obscuridade faz jus agrave parcela de
confusatildeo de natildeo compreensatildeo e de tensatildeo do seu pensamento a fim de que o λόγος
retenha seu misteacuterio aquele natildeo dito em todo dizer como eacute fruto do excesso de
luminosidade na concatenaccedilatildeo das ideais com as quais seus leitores estariam
acostumados Essa medida torna-se problemaacutetica quando roga para si o que o λόγος eacute em
sua totalidade natildeo permitindo assim outras manifestaccedilotildees Como se impossiacutevel fosse o
ponto fora da curva
31 Linguagem e limite
Natildeo eacute de agora a questatildeo de como a filosofia se compreende E jaacute que a proacutepria
natildeo estaacute agrave parte do mundo compreender-se eacute em alguma medida compreender o mundo
Do mesmo modo o mundo encara a filosofia com as garras afiadas com que apanha tudo
o que encontra deixando pouco espaccedilo para brechas ou pontas soltas ldquoa incerteza sempre
foi uma fonte suprema de medordquo (BAUMAN 2010 paacuteg 25) Por natildeo se restringir a um
tempo especiacutefico esse incocircmodo aparece nos preacute-socraacuteticos e atravessa as eras
inquietando os homens
Se vale mais a pena morrer do que sonhar Isso certamente soa como algo senatildeo
impossiacutevel difiacutecil de decidir pois natildeo eacute uma pergunta funcional A permanecircncia em
102
estado de vigiacutelia daacute o tom da resposta heracliacutetica na mesma medida em que destoa do
status quo que deseja transformar o caminho filosoacutefico num passo a passo Assim segue
a pergunta conforme paraacutegrafo 309 de Philosophische Untersuchungen ldquoWas ist dein
Ziel in der Philosophie mdash Der Fliege den Ausweg aus dem Fliegenglas zeigenrdquo isto eacute
ldquoQual eacute seu objetivo na filosofia mdash Mostrar agrave mosca a saiacuteda do mosqueirordquo
(WITTGENSTEIN 1971 paacuteg 131 ndash traduccedilatildeo livre) a indicar outro caminho aleacutem do
aparente uacutenico jeito que nesse caso seria o fim do inseto
Ao mostrar ensina-se um caminho diz-se o que a mosca pode fazer aleacutem de se
debater frustrantemente Natildeo que ela faraacute o dito Tambeacutem natildeo haacute garantias de sucesso
pela simples audiccedilatildeo nem pela execuccedilatildeo Zeigen convida anuncia solenemente o que
antes era dado como certo a fim de que a atenccedilatildeo devida possa ser despendida
Etimologicamente esse verbo tem a raiz indo-germacircnica dįk- (KLUGE 1899 paacuteg 433
GRIMM GRIMM 1971 Zeigen)92 a mesma de ensinar em inglecircs (DICTIONARY
Teach)93 mostrar em grego (LIDDELL SCOTT 1940 Δείκνυμι)94 e dico dizer em latim
(GLARE 1968 paacuteg 537)
Haacute muito que mostrar algo eacute apenas ldquo1 oferecer agrave vistardquo (HOUAISS 2009a
Mostrar) dizer eacute ldquo1 expor atraveacutes de palavrasrdquo (HOUAISS 2009a Dizer) e ensinar eacute ldquo1
repassar ensinamentos sobre algo doutrinarrdquo (HOUAISS 2009a Ensinar) O domiacutenio da
funcionalidade preza pela presteza e reprodutibilidade logo tende-se ao uso mecacircnico das
palavras esvaziadas de significaccedilatildeo para o manejo ordinaacuterio com elas Isto equivale
agravequilo este siacutembolo sonoro representa tal gesto ou aquele objeto e por aiacute vai
Ainda a respeito dos sentidos de zeigen cabe detalhar um pouco sua relaccedilatildeo com
o verbo latino dico primeira pessoa do singular do presente dos verbos cujos infinitivos
satildeo dicare e dicere Ambos significam dizer mas com certos sentidos mais
pormenorizados em um verbete do que no outro Sobre as diferenccedilas entre eles
92 Disponiacutevel em lthttpwoerterbuchnetzdecgi-
binWBNetzwbgui_pysigle=DWBamplemid=GZ03301ampmode=Vernetzungamphitlist=amppatternlist=ampmain
mode=gt Acesso em 05 ago 2017 93 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowseteachs=tgt Acesso em 05 ago 2017 94 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei2
Fknumigt Acesso em 05 ago 2017
103
encontramos em dicare referecircncias a ldquodedicar devotar consagrarrdquo e em dicere ldquofazer um
juramento votar dar evidecircnciardquo (GLARE 1968 paacuteg 537)95
Embora o uso de dicare mantenha um tom cerimonioso em alguns contextos por
tratar da sagraccedilatildeo e da dedicaccedilatildeo a um deus a uma figura incontestadamente de
importacircncia dicere daacute seu testemunho pelo dizer ldquoComo orare dico tem um caraacuteter
solene e teacutecnico eacute um termo da liacutengua da religiatildeo e do direitordquo (ERNOUT MEILLET
2001 paacuteg 172 ndash traduccedilatildeo livre)96 Um mostrar que se diz Os sentidos dos dois vocaacutebulos
confluem entre si atraveacutes da voz que traz agrave tona o sagrado seja na evocaccedilatildeo da divindade
seja na presenccedila da verdade Um dizer que mostra faz evocar trazer agrave palavra o vigor do
sagrado ldquoA raiz indo-europeia wekw- [de evocar voz] indicava a emissatildeo de voz com
todas as forccedilas religiosas e juriacutedicas que delas resultamrdquo (ERNOUT MEILLET 2001
paacuteg 754 ndash traduccedilatildeo de Manuel Antocircnio de Castro)97
Concomitantemente a abstraccedilatildeo da realidade em conceitos na ψυχῇ platocircnica
conforme seccedilatildeo 511d da Repuacuteblica tem se demonstrado eficiente em se tratando do
empobrecimento da experiecircncia sensiacutevel Permitindo entre outras coisas postergar o
trato com as palavras isto eacute sabendo o significante e o significado basta aplicaacute-los
quando for mais conveniente O visiacutevel eacute limitado existindo apenas ateacute onde nossos olhos
alcanccedilam poreacutem o invisiacutevel as ideias abstratas independem de um objeto especiacutefico
pelo contraacuterio podem ser aplicadas a qualquer coisa Semelhantemente as palavras
sofreram um enfraquecimento de sua caracteriacutestica de evocaccedilatildeo de trazer agrave presenccedila na
nomeaccedilatildeo para serem compreendidas na loacutegica significante e significado Assim o que
algo significa pode ser reproduzido dicionarizado definido e arbitrariamente somente
relaciona-se com a coisa em questatildeo A experiecircncia oral concreta eacute limitada e irrelevante
natildeo se distinguindo em linhas gerais uma da outra
O mostrar agrave mosca natildeo pode esperar pois eacute uma experiecircncia radical Nem por isso
estaacute em sujeiccedilatildeo agrave pressa do ponteiro Diz conceitualmente o significado do significante
mas tambeacutem marca a ferro e fogo o bicho com o ensinamento de sua finitude Ratifica a
95 ldquo2 To dedicate devoterdquo e ldquo6 to make a oath to vote to give evidencerdquo respectivamente 96 Comme orare dico a un caractegravere solennel et technique crsquoest un terme de la langue de la religion et du
droit 97 La racine wekw- eacutetait en indo-europeacuteen celle qui indiquait leacutemission de la voix avec toutes les forces
religieuses et juridiques qui en reacutesultent
104
situaccedilatildeo limiacutetrofe da mosca em contato com o mosqueiro e alerta-a para uma condiccedilatildeo
aleacutem do vidro reconfigurando seus limites delimitando e deslimitando
Somente porque o filoacutesofo estaacute sempre a jogar com a linguagem que ele pode fazer
filosofia Por estar em concordacircncia com a fala da linguagem ele traccedila tanto um paralelo
com a tradiccedilatildeo quanto reconhece seus pontos sensiacuteveis e dignos de questionamento Por
estar em discordacircncia com a fala da linguagem o filoacutesofo pode responder a ela
cuidadosamente habitando seus limites e radicalmente atuando para sua criaccedilatildeo e
consequentemente destruiccedilatildeo ldquo56 Os limites da minha liacutengua [grifo no original]
significam os limites do meu mundordquo (WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 148 ndash traduccedilatildeo
livre)98
Logo ele eacute aquele que mostra a saiacuteda Quatildeo tentador natildeo eacute encarar essa assertiva
por salvaccedilatildeo De fato sair do mosqueiro salvaria a mosca Aleacutem do mais a palavra
Ausweg abarca os significados de remeacutedio e alternativa (LANGENSCHEIDT 2001 paacuteg
692) e o que seria mais curativo do que um bom remeacutedio durante o estado de
enfermidade A cura processada pode ser encarada dessa forma como a soluccedilatildeo do
problema se o problema fosse passiacutevel de cura Trata-se aqui de uma problemaacutetica
filosoacutefica na qual o alvo a meta ou objetivo das Ziel tal como pular a proacutepria sombra eacute
sair do frasco feito para que vocecirc natildeo saia dele
Eacute propor solucionar o insoluacutevel sair do caminho sem saiacuteda Ainda assim toda
partida chega a algum lugar logo para cada Ausweg podemos supor um Weg um
caminho Nesse sentido a proposta de Wittgenstein natildeo se mostra mais eficaz para
remediar o irremediaacutevel do que quaisquer outras atitudes mesmo assim eacute um caminho e
uma resposta Eacute uma assunccedilatildeo de que ele o pensador estaacute comprometido com o cuidado
entre a sanidade e o insano que salienta sua decisatildeo e o separa por um fio de dar murro
em ponta de faca ou de saber que o sucesso natildeo eacute a uacutenica soluccedilatildeo mas que o caminhar
natildeo eacute soacute possiacutevel mas nosso dever com o caminho
A saiacuteda estabelece um limite Ateacute entatildeo sem outro caminho ainda que aparente
natildeo haacute diferenciaccedilatildeo natildeo haacute chances de se diversificar para a mosca que caiu presa no
mosqueiro e por isso se fundiu nele Mosqueiro e mosca eram uma coisa soacute O mosqueiro
98 56 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt
105
era o mundo da mosca Na identificaccedilatildeo que mostra algo que pode acontecer uma
alternativa ocorre a cisatildeo do mundo
Mosqueiro e mosca se separam na exposiccedilatildeo da saiacuteda Assim como o umbral
marca o limite entre os cocircmodos e as cercanias da casa delimitam a propriedade assim o
caminho para fora reafirma o compromisso com o caminho de dentro Toda chegada parte
de algum lugar Mosqueiro pois toma seu lugar enquanto proveniente da mosca Natildeo faz
sentido mosqueiro sem mosca mas o contraacuterio natildeo eacute verdade a mosca natildeo eacute mosqueiro
natildeo se encerra nele natildeo necessariamente
Para haver Fliegenglas eacute imprescindiacutevel der Fliege se assim natildeo for se trataria de
somente mais um Glas soacute mais um vidrino recipiente sem nenhuma relevacircncia para a
mosca senatildeo eventuais resquiacutecios meliacutefluos Da mesma forma Glas demarca a qualidade
de natildeo mosca de Fliegenglas reafirmando tratar-se de duas entidades a mosca e o vidro
de pegar moscas Duas realidades separadas pelo limite apresentado pelo filoacutesofo
O mosqueiro eacute e natildeo eacute a mosca A proacutepria palavra jaacute diz a mosca mas
diferentemente fundando outra forma da mosca ser mosca Natildeo haacute limite sem o entorno
Sua circunvizinhanccedila se apresenta na saiacuteda eacute o reconhecimento da linha ao redor do
ciacuterculo O limite se confunde com sua transgressatildeo refazendo a ponte entre o que somos
e natildeo somos Essa eacute a meta do filoacutesofo reafirmar o abismo pelo salto Natildeo por tendecircncias
suicidas mas por ter sapiecircncia de que o abismo natildeo seria nada sem a possibilidade da
queda assim como cair natildeo seria possiacutevel sem o caminhar
O inuacutetil
Disse Hui Tzu a Chuang Tzu
mdash Todo o seu ensinamento estaacute baseado no que natildeo tem utilidade
Replicou-lhe Chuang Tzu
mdash Se vocecirc natildeo aprecia o que natildeo tem utilidade
Natildeo pode comeccedilar a falar sobre o que eacute uacutetil
Por exemplo a terra eacute larga e vasta
Mas de toda a sua extensatildeo o homem utiliza
Apenas poucas polegadas
Sobre as quais se manteacutem de peacute
Suponhamos agora que vocecirc tire
Tudo o que ele realmente natildeo usa
De modo que ao redor de seus peacutes
Um golfo se abra
E ele fica de peacute no vazio
Sem nada de soacutelido
Com exceccedilatildeo do que se encontra bem debaixo de cada peacute
Por quanto tempo poderaacute utilizar o que estaacute usando
106
Disse Hui Tzu
mdash Cessaria de servir a qualquer finalidade
Concluiu Chuang Tzu
mdash Isto prova
A absoluta necessidade
De que lsquonatildeo tem utilidadersquo (MERTON 1984 paacuteg 194-195)
Para isso ele se achega agrave beira do despenhadeiro para arriscar um salto Esta eacute sua
correspondecircncia ao abismo agrave questatildeo cuja profundidade natildeo se esgota mas se adentra
em cada resposta Natildeo eacute um saltar de cabeccedila no vazio sem sentido nem aterrar a
profundura para jamais sermos tragados por ela e fazecirc-la planiacutecie segura para um
pensamento raso
A resposta filosoacutefica agrave mosca natildeo pretende solucionar a problemaacutetica do frasco
diretamente Em vez disso coloca novamente a questatildeo instituindo a limitaccedilatildeo entre a
mosca e o vidro Mostrar a saiacuteda natildeo desfaz o mosqueiro como a porta natildeo desfaz a casa
mas convida a lidar com o limite como algo que natildeo precisa ser seguido agrave risca tambeacutem
somos aleacutem dele nem arriscado sempre ao extremo tambeacutem somos aqueacutem dele pois o
ciacuterculo se define tanto pelo que estaacute dentro como pelo que estaacute fora
32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem
Responder natildeo eacute um papel exclusivo da filosofia Eacute tanto uma palavra como uma
atitude muito comum Nas perguntas das provas haacute um espaccedilo destinado para isso Na
duacutevida de quanto custa o patildeozinho naquela outra padaria no momento apoacutes uma saudaccedilatildeo
e no fechar das matildeos depois de levado o soco acontece ali uma resposta agraves interpelaccedilotildees
da vida
Cria-se a expectativa do quadrado da hipotenusa que se iguala agrave soma dos
quadrados dos catetos na lacuna preenchida no teste do valor monetaacuterio do quilo mais ou
menos barato do que o da bodega da esquina do olaacute e do olho roxo Somos ensinados a
isso Embora as reaccedilotildees variem no tempo e no espaccedilo de modo geral estamos sempre no
aguardo de um posicionamento que nos tire da suspensatildeo da questatildeo
107
Todo o processo comunicativo eacute baseado em correspondecircncias Em remetentes e
destinataacuterios em dar agrave mensagem o recebido para na via de matildeo dupla da prosa moderna
devolver a missiva em seguida Se se pergunta espera-se com isso um termo o desenlace
pelo qual fomos formados a crer e compreender
Quando muito natildeo cabe a noacutes mas aos outros dar as respostas que aguardamos
Ao professor cabe responder o aluno com a soluccedilatildeo do problema ao atendente o
comprador com o preccedilo do patildeo ao amigo o irmatildeo com a atenccedilatildeo devida e ao rival a noacutes
com a violecircncia por vezes merecida Em nossa sociedade se a interrogaccedilatildeo eacute parcialmente
livre o travessatildeo costuma ser destinado a setores a profissionais e a especialistas no
assunto
Tudo tem seu lugar nas engrenagens da maacutequina a pergunta e a resposta natildeo
fogem a isso Responder passa a ser encarado como uma postura formal Como natildeo ser
seduzido pela crenccedila da oficialidade se tradicionalmente tem sido assim A mais antiga
universidade europeia em funcionamento data de 1088 e antes disso a Academia de
Platatildeo foi fundada no ano de 387 antes de Cristo isto significa dizer que haacute tempos o
Ocidente tem se empenhado a reter a produccedilatildeo do saber em determinadas instituiccedilotildees em
detrimentos de outras circunstacircncias e localidades
A partir do momento em que o conhecimento foi compartimentado retirado de
sua experiecircncia imediata e empossado no poacutedio das categorias especializadas fica cada
vez mais difiacutecil natildeo considerar as respostas oficiais para dizer o que as coisas satildeo Mal
comparando seria perguntar ao padeiro sobre o teorema de Pitaacutegoras Que se faccedila notar
natildeo eacute que o padeiro saiba ou natildeo saiba pouco importa pois ele natildeo deteacutem o saber oficial
a respeito dessa problemaacutetica isto eacute ele natildeo estaacute autorizado a responder oficialmente
Autorizaccedilatildeo dada pela tradiccedilatildeo Neste caso a tradiccedilatildeo tradicional encastela nas
instituiccedilotildees formais de ensino nos oacutergatildeos governamentais nas fundaccedilotildees emissoras de
diplomas e registros os atestes da veracidade das respostas Nossa sociedade distorceu a
seu bel-prazer a compreensatildeo mitoloacutegica de Pandora e Prometeu erigindo
estabelecimentos que concentram as verdades perante as opiniotildees e as experiecircncias
concretas dos indiviacuteduos e ateacute de grupos
Isto significa que esses locais e as pessoas que respaldam essas localidades satildeo
capazes de nos prover das respostas que necessitariacuteamos para manter as engrenagens
sociais em funcionamento Desse modo natildeo precisariacuteamos mais lidar diretamente com
108
os dilemas que jogam com nossos limites por mais simploacuterios ou essenciais que eles
possam ser As respostas vecircm prontas basta apenas acessaacute-las
A Pandora original foi enviada agrave Terra com uma caixa que continha todos os
males de coisas boas continha soacute a esperanccedila O homem primitivo vivia neste
mundo de esperanccedila Confiava na magnanimidade da natureza nos benefiacutecios
dos deuses e nos instintos de sua tribo para sobreviver Os gregos claacutessicos
comeccedilaram a substituir a esperanccedila pelas expectativas Em sua versatildeo do mito
de Pandora ela havia soltado tanto os males quanto os bens Lembravam-se
dela sobretudo pelos males que havia soltado E esqueceram que a lsquodoadora de
tudorsquo era tambeacutem a guardiatilde da esperanccedila
Os gregos contavam a histoacuteria de dois irmatildeos Prometeu e Epimeteu Prometeu
sempre admoestava Epimeteu para que deixasse Pandora em paz Mas este
acabou casando-se com ela No grego claacutessico o nome Epimeteu que significa
lsquoolhar para traacutesrsquo foi traduzido por lsquoboborsquo ou lsquoestuacutepidorsquo [] Os homens
planejaram instituiccedilotildees com que pretendiam fazer frente aos males
disseminados Conscientizaram-se de seu poder de modelar o mundo e fazecirc-lo
produzir serviccedilos que eles mesmos aprenderam a esperar Queriam que suas
proacuteprias necessidades e as futuras demandas de seus filhos fossem modeladas
por seus artefatos Tornaram-se legisladores arquitetos autores idealizadores
de constituiccedilotildees cidades e obras de arte que servissem de exemplo para seus
descendentes O homem primitivo confiava na participaccedilatildeo miacutetica dos ritos
sagrados para iniciar pessoas na doutrina da sociedade [] (ILLICH 1973
paacutegs 115-116)
Ora mas como as repostas poderiam vir prontas se fazemos perguntas Isso natildeo
pressupotildee uma duacutevida Naturalmente que sim mas ateacute para perguntar eacute indispensaacutevel
saber algo Natildeo eacute possiacutevel perguntar sobre o que natildeo temos como perguntar a respeito
Por mais tautoloacutegico que essa uacuteltima assertiva possa soar ela remete ao conhecimento do
ser a perambular o natildeo ser
Como acessar o natildeo ser Acessamos o ser agrave medida que ele se revela a noacutes Seja
nas questotildees como em suas respostas precisamos estar nas cercanias do ser para que haja
compreensatildeo Quando natildeo o habitamos em alguma instacircncia ou seja quando natildeo somos
simplesmente as coisas acontecem e natildeo temos a possibilidade de darmos conta disso
A luz das estrelas perguntou ao Natildeo-Ser mdash Mestre voacutes existis ou natildeo
Como a luz das estrelas natildeo obtivesse qualquer resposta dispocircs-se a vigiar o
Natildeo-Ser Esperou para ver se o Natildeo-Ser aparecia
Manteve seu olhar fixo no profundo Vaacutecuo esperando para tentar ver uma
sombra do Natildeo-Ser
Olhou durante todo o dia e nada viu Ouvia mas natildeo escutava nada Tentava
pegar mas nada pegava
Entatildeo a luz das estrelas exclamou finalmente mdash Eacute isto
mdash Este eacute o mais distante Quem poderaacute alcanccedilaacute-lo
Posso compreender a ausecircncia do Ser
Mas quem pode compreender a ausecircncia do Nada
109
Se agora acima de tudo o Natildeo-Ser eacute
Quem seraacute capaz de compreendecirc-lo (MERTON 1984 paacuteg 161)
Quantas coisas acontecem diante de nossos olhos neste exato momento sem que
percebamos Incontaacuteveis Mesmo aquelas que percebemos ainda eacute uma percentagem
iacutenfima do que poderia ter sido e o que poderia natildeo eacute assim como o que jamais poderaacute
ser tambeacutem natildeo eacute O natildeo ser natildeo estaacute presente o ser o ainda natildeo presente e o que acontece
eacute o ser sendo presenccedila simultaneamente presente e a presentificar-se independentemente
do que tenhamos a dizer sobre ou se tomamos ciecircncia dele
Nesse sentido nem o ser nem o natildeo ser eacute Do contraacuterio seria um ente acessado
por completo apreendido agrave nossa imagem e semelhanccedila ou seja natildeo estariacuteamos de fato
compreendendo o ser mas dizendo o que o ser deveria ser de nosso ponto de vista Isso
eacute tatildeo grave e presente que se construiu todo o aparato conceitual para dar respostas com
as quais jaacute estamos acostumados e no mais que conveacutem aos interesses Significa que
acessamos o ser e o devassamos o natildeo ser eacute o ser eacute tudo eacute ente tudo eacute o que jaacute foi dado
respondemos apenas a noacutes mesmos as nossas perguntas cujo misteacuterio natildeo passa de uma
farsa sem trageacutedia
Como gecircnio construtivo o homem se eleva nessa medida muito acima da
abelha esta constroacutei com cera que recolhe da natureza ele com a mateacuteria
muito mais tecircnue dos conceitos que antes tem de fabricar a partir de si mesmo
Ele eacute aqui muito admiraacutevel ndash mas soacute que natildeo por seu impulso agrave verdade ao
conhecimento puro das coisas Quando algueacutem esconde uma coisa atraacutes de um
arbusto vai procuraacute-la ali mesmo e a encontra natildeo haacute muito que gabar nesse
procurar e encontrar e eacute assim que se passa com o procurar e encontrar da
lsquoverdadersquo no interior do distrito da razatildeo Se forjo a definiccedilatildeo de animal
mamiacutefero e em seguida declaro depois de inspecionar um camelo lsquoVejam um
animal mamiacuteferorsquo com isso decerto uma verdade eacute trazida agrave luz mas ela eacute de
valor limitado quero dizer eacute cabalmente antropomoacuterfica e natildeo conteacutem um
uacutenico ponto que seja lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido sem
levar em conta o homem (NIETZSCHE 2009 paacuteg 537)
A iniciaccedilatildeo agrave realidade deixa de ser miacutetica e composta de rituais sacros para ser
fruto da educaccedilatildeo e das leis Eacute a passagem do concreto para o abstrato da experiecircncia
sensiacutevel para a inteligiacutevel O controle social chega a atingir as demandas por necessidades
isto eacute se o homem pode produzir algo ele deve poder produzir a necessidade daquela
produccedilatildeo Se o homem pode dar respostas ele deve poder produzir as perguntas que se
adequem agraves respostas agraves quais ele estaacute preparado
110
Por mais que tentemos fugir os mitos de Siacutesifo e de Tacircntalo insistem em bater na
nossa cara Condenados a empurrar uma pedra ateacute o cimo da montanha e a passar fome e
sede respectivamente essa dinacircmica de um esforccedilo interminaacutevel se desdobra
modernamente em crescentes e insaciaacuteveis demandas por necessidades Eis um paradoxo
social pois ao criar uma realidade de instrumentos os homens que ldquoquanto mais podem
comprar mais decepccedilotildees tecircm que engolirrdquo (ILLICH 1973 paacuteg 178) se
instrumentalizam tornando-se refeacutens da proacutepria criaccedilatildeo
Se algum dia natildeo foi assim se nos primoacuterdios o homem era governado pelos fatos
pelas necessidades baacutesicas e pelo destino arremedo do sagrado atualmente natildeo eacute essa a
maneira das coisas serem experienciadas Ao longo de seacuteculos desenvolveu-se a
confianccedila nas instituiccedilotildees humanas como bastiotildees do controle e doadoras da seguranccedila e
com o tempo o equiliacutebrio entre confiar na natureza e confiar em sua proacutepria criaccedilatildeo foi
abalado O homem atual esqueceu-se de sua tragicidade e elevou ao extremo sua
dependecircncia institucional Cego nessa confianccedila natildeo vecirc as contradiccedilotildees do processo
Essas estruturas satildeo auto e antropofaacutegicas a saber
Uma sociedade comprometida com a institucionalizaccedilatildeo dos valores identifica
a produccedilatildeo de bens e serviccedilos com a demanda pelos mesmos A educaccedilatildeo que
nos faz necessitar do produto estaacute incluiacuteda no preccedilo do produto A escola eacute a
agecircncia publicitaacuteria que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela
eacute (ILLICH 1973 paacuteg 178)
33 O limite da resposta
Do pondo de vista da educaccedilatildeo tradicional a importacircncia da transmissatildeo da
seleccedilatildeo e da reproduccedilatildeo de um conteuacutedo parece evidente Daiacute crer que satildeo as instituiccedilotildees
a educaccedilatildeo oficial que transmite os valores natildeo mais o mito natildeo mais os deuses (embora
o sagrado modernamente possa ser apreendido pelas instituiccedilotildees) Por outro lado na
construccedilatildeo de um pensamento criacutetico tambeacutem encontramos a crenccedila num controle a ser
transmitido ainda que justificado ideologicamente Por mais que se argumente que os
conteuacutedos transmitidos satildeo vitais para a sobrevivecircncia ou que os mesmos perpassam pela
111
responsabilidade dos envolvidos neste processo isto eacute os educadores os educados e o
mundo trata-se no mais das vezes do que pode ser apreensiacutevel pelo saber
A educaccedilatildeo eacute o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para
assumirmos a responsabilidade por ele [] eacute tambeacutem onde decidimos se
amamos nossas crianccedilas o bastante para natildeo expulsaacute-las de nosso mundo e
abandonaacute-las a seus proacuteprios recursos e tampouco arrancar de suas matildeos a
oportunidade de empreender alguma coisa nova [] preparando-as [] para a
tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT 1972 paacuteg 247)
Tomar uma decisatildeo eacute uma resposta A educaccedilatildeo pelas vias da tradiccedilatildeo decide
respostas aos pais agrave sociedade e agrave questatildeo colocada Esse tem sido o papel do ensino Por
mais que se decida pelo cuidado ou pela ousadia essas correspondecircncias podem vir pelas
vias da apreensatildeo dando indiacutecios de preparaccedilatildeo e margens agrave transmissatildeo Com isso
modela-se sentidos agrave existecircncia
A marca que o ensino deixa na carne desse mundo comum nem sempre eacute visiacutevel
a olho nu mas isso natildeo quer dizer que ela natildeo esteja exercendo sua influecircncia Em outras
palavras o que se identifica na vontade de preparaccedilatildeo eacute a necessidade de uma resposta
que valide a transmissatildeo Se a resposta natildeo for adequada se natildeo partir de uma decisatildeo
modelar a saber que pode ser usada como modelo agraves demais ela eacute excluiacuteda enquanto
verdade Torna-se ficccedilatildeo invencionice parvoiacutece de filoacutesofo que natildeo diz coisa com coisa
mdash Por conseguinte oacute Glaacuteucon quando encontrares encomiastas de Homero a
dizerem que esse poeta foi educador da Greacutecia99 e que eacute digno de se tomar por
modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humana para aprender com
ele a regular toda a nossa vida deves beijaacute-los e saudaacute-los como sendo as
melhores pessoas que eacute possiacutevel e concordar com eles em que Homero eacute o
maior dos poetas e o primeiro dos tragedioacutegrafos mas reconhecer que quanto
a poesia somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encoacutemios aos
varotildees honesto e nada mais Se poreacutem acolheres a Musa apraziacutevel na liacuterica ou
na epopeia governaratildeo a tua cidade o prazer e a dor em lugar da lei e do
princiacutepio que a comunidade considere em todas as circunstacircncias o melhor
mdash Exactamente
mdash Aqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao lembrarmos de novo a poesia por
justificadamente excluirmos da cidade uma arte desta espeacutecie (PLATAtildeO
1987 paacutegs 472-473)
Ironicamente o julgamento que Platatildeo fez agrave poesia de base homeacuterica no passado
se assemelha muito com a criacutetica agrave filosofia nos tempos atuais Significa dizer que a
99 Conforme nota da citaccedilatildeo a mais antiga prova dessa asserccedilatildeo diz respeito ao Fragmento 10 de
Xenoacutefanes ldquoUma vez que desde iniacutecio todos aprenderam por Homerordquo
112
pergunta que Soacutecrates faz agrave Homero ldquodiz-nos que cidade foi graccedilas a ti melhor
administradardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 456) compreende natildeo soacute o vigor do que se tem a
dizer a partir de sua relevacircncia uacutetil quanto ignora a inutilidade de toda utilidade A
imprescindibilidade de fazer algo com essa resposta tornando-a eficaz a nossos
problemas passa por cima do fato de que Platatildeo inclusive utilizou-se da poesia Sua
escrita dialoacutegica as referecircncias miacuteticas o fizeram fruto de sua proacutepria criacutetica
Na mesma linha de pensamento sarcaacutestica tambeacutem as instituiccedilotildees por mais
controladoras que sejam natildeo conseguem se livrar completamente da filosofia Quer dizer
o pensamento que se tenta abarcar nunca se esgota de todo Haacute brechas e veredas nem
tudo Nem tudo pode ser encontrado logo nem tudo estaacute perdido Eacute a isso que nos
referimos quando tratamos filosofia como resposta Natildeo eacute um responder a algo
definitivamente mas um postar-se a
Natildeo que a questatildeo do ser natildeo esteja presente Natildeo eacute possiacutevel natildeo estar a falar do
ser do contraacuterio estariacuteamos a falar de quecirc Do natildeo ser Aiacute ele seria ser natildeo Digamos
tratar-se pois de um modo distinto do que eacute ser a saber natildeo enquanto essecircncia
preocupada em identificar as qualidades imutaacuteveis mas com a presenccedila do que eacute mutaacutevel
e do que permanece Apregoa-se que pensar a essecircncia limita e dicotomiza sem perceber
que a identidade esvaziada da questatildeo do ser estaacute mais preocupada em classificar e
adequar do que propriamente em tornar-se presenccedila
Mas eacute tambeacutem uma questatildeo quem eacute quem Natildeo eacute lsquoO que eacute quemrsquo ndash natildeo eacute
uma questatildeo de essecircncia mas de identidade (como quando perguntamos diante
da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos mas natildeo os
seus rostos lsquoQuem eacute quemrsquo ndash Este eacute Kant Aquele eacute Heidegger E este outro
ao lado dele) (NANCY 1991 paacuteg 7 ‒ grifo no original)
Ateacute mesmo faz sentido lidar com as respostas agraves questotildees no modo da identidade
natildeo da essecircncia Podemos crer no que vemos com mais facilidade do que o que natildeo vemos
a princiacutepio Eacute mais faacutecil achar que detemos o controle do que podemos identificar ao
contraacuterio o ser natildeo eacute identificaacutevel embora possa ser aprendido ateacute certo ponto pelas
caracteriacutesticas de um ente poreacutem nunca por inteiro Quem eacute quem eacute questatildeo ndash assim como
para que como quando quanto etc ndash agrave medida que pressupotildeem a possibilidade do
questionamento isto eacute a pergunta pelo ser em todo perguntar o que eacute quem O que eacute
ser O que eacute quem eacute quem
113
Quando a tradiccedilatildeo pela accedilatildeo das estruturas de poder diz o que o ser eacute ou natildeo eacute
ela responde categoricamente agrave questatildeo Natildeo importa o quatildeo bem fundamentada uma
resposta possa ser se ela decide por um caminho ela se arrisca por ele Naturalmente que
estaacute em jogo aqui diversas concepccedilotildees de existecircncia Heidegger por exemplo reconhece
tanto Existenz existecircncia quanto Dasein presenccedila traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante
Schuback Em Dasein se espera resgatar pela palavra o caraacuteter de acontecimento do ser
mesmo aquele manifesto onticamente enquanto existecircncia se adequa mais agrave concepccedilatildeo
tradicional do termo no qual a relaccedilatildeo de ser soacute eacute possiacutevel pela existecircncia ldquoperceberemos
que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da lsquocoisa que existersquo
e de seu modo de existecircnciardquo (JARDIM 1995 paacuteg 15) Dessa forma pensamos que
existir natildeo deixa de ser uma resposta dada pelo ser portanto existir como estar em
identidade com o ser que por isso pode ser pensado Em outras palavras o ser que natildeo
pode ser pensado natildeo eacute no sentido de natildeo existir
εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
Os uacutenicos caminhos da investigaccedilatildeo em que importa pensar Um (aquilo) que
eacute e que (lhe) eacute impossiacutevel natildeo ser eacute a via da Persuasatildeo (por ser companheira
da Verdade) o outro (aquilo) que natildeo eacute e que forccediloso se torna que natildeo exista
esse te declaro eu que eacute uma vereda totalmente indiscerniacutevel pois natildeo poderaacutes
conhecer o que natildeo eacute ndash tal natildeo eacute possiacutevel ndash nem exprimi-lo por palavras
(PARMEcircNIDES apud KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 255)
O que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacute Uma definiccedilatildeo aparentemente simples e que
possibilita a pergunta pela identidade que responde ao certo ou errado Ou isso ou aquilo
traz agrave tona a questatildeo por meio da acomodaccedilatildeo loacutegica Por que natildeo isso e aquilo Quem
disse que tinha de ser cocircmodo que tinha de ser coerente Agraves vezes ao controle foge ateacute a
fuga e precisamos lidar com o sim e o natildeo com o limite que tanto abre possibilidades
quanto encerra-as
Numa hipoacutetese absurda suponha-se que pudeacutessemos expor todas as
possibilidades numa fotografia A pergunta pela identificaccedilatildeo estaria interessada em saber
ldquoqual eacute qualrdquo ldquoquem eacute quemrdquo ou ldquocomo eacute quemrdquo qual caminho tomar quem devo
114
escolher como proceder diante destas escolhas Mal comparando essa eacute a postura da
vontade de controle da resposta que assegura e da mensagem que transmite
De modo decircitico apontariacuteamos esta ou aquela chance de ser na expectativa de
fazer prevalecer nossos desejos Na urgecircncia por uma resposta que atenda nossas
necessidades o proacuteprio ldquoo que eacuterdquo em cada perguntar passa despercebido ndash p ex o que eacute
como o que eacute proceder o que eacute estar diante de o que eacute escolher Questionamentos que agrave
primeira vista natildeo levam a lugar algum e que natildeo precisam ser feitas a todo momento
caso contraacuterio natildeo seria possiacutevel a miacutenima conversa
Se natildeo se confia no chatildeo natildeo eacute possiacutevel sequer dar um passo Alguma crenccedila
alguma confianccedila eacute forccedilosa ainda assim estatildeo presentes em toda resposta certeira
infindas questotildees sem soluccedilotildees apenas encaminhamentos Para cada ser que eacute haacute certo
limite tensional que o define tambeacutem como natildeo ser como indecifraacutevel ou a decifrar no
desdobrar e no responder
A questatildeo da identidade torna-se pois a questatildeo da representaccedilatildeo quando
ignoramos essa parte velada no desvelamento da questatildeo Se na muacutesica natildeo soubeacutessemos
como o arranjo foi composto ainda assim ele deixaria de soar No momento em que
perguntar pela identidade pretende prescindir agrave pergunta pelo ser jmmperguntar pelo
ldquoquemrdquo ldquocomordquo ldquopor quecircrdquo apresenta-se como a medida do real e tudo o que diferir
seraacute de menor importacircncia
Representamos quando a medida de algo se daacute pelo que ele faz produz sua
finalidade a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta em detrimento do que
eacute Basicamente significa dizer que toda existecircncia funcional acontece na representaccedilatildeo
Entatildeo quando se eacute de fato quando o ser eacute presente Tornar-se presenccedila depende da coisa
que existe isto eacute ldquopermite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de
tornar-se presenccedila sem ter que explicar lsquoo quersquo existia antes que lsquoelersquo se tornasse
presenccedilardquo (BIESTA 2013 paacuteg 67 ‒ grifo no original) Poreacutem tornar-se presenccedila natildeo eacute a
coisa que existe natildeo se esgota nela
Para aleacutem do que achamos que as coisas sejam do que acreditamos que queremos
haacute o que natildeo sabiacuteamos que queriacuteamos Aquela outra forma de ser da qual natildeo tiacutenhamos a
menor noccedilatildeo Natildeo se trata de humildade de pensamento ou de postura prudente perante agrave
vida acontece que tornar-se presenccedila tambeacutem natildeo depende da coisa que existe Desse
modo a questatildeo ontoloacutegica natildeo perde sua relevacircncia pois ela diz respeito agrave
115
multiplicidade inerente a cada vontade desejo e existecircncia Ela estaacute presente embora natildeo
se faccedila presenccedila a rigor Eis que se esbarra no tatildeo afamado ser Em outras palavras eacute
pensar o que eacute esses muitos que acontecem τὸ ὂν λέγεται πολλαχῶς eacute a possibilidade de
como produzir do oacutebvio do funcional do uacutetil ou simplesmente o fundamento limitador
e constituidor
34 A resposta do limite
Natildeo tem muito jeito Para sair da mesmice das soluccedilotildees simploacuterias e da resposta
pronta eacute mister esforccedilo A tradiccedilatildeo jaacute estaacute dada As instituiccedilotildees jaacute estatildeo postas A mosca
jaacute estaacute presa no mosqueiro Quando isso tudo natildeo for o bastante esse eacute o momento do
pensamento Para isso que enveredamos por estradas tortuosas e por vezes escolhemos
o caminho desdenhado que assombra entre os arbustos
A saber a resposta e o responder nos mostram muito dessa circunstacircncia na qual
nos instamos Podem indicar tanto uma afinidade com a perpetuaccedilatildeo quanto o empenho
de transformaccedilatildeo tanto se referem ao lugar de fala quanto a quem ou a que se fala Enfim
cada resposta corresponde a uma perspectiva e se relaciona a uma postura de estar no
mundo
Responder ao mundo eacute como estamos no mundo Daiacute se deriva que o mundo
enquanto local de habitaccedilatildeo dos seres se configura pelas nossas respostas ao longo do
tempo Natildeo apenas pois nem tudo o que acontece tem nossa assinatura mas eacute inegaacutevel o
impacto que uma resposta bem dada pode causar em um ambiente propiacutecio Nesse
sentido responder ao mundo eacute responder o mundo ldquoO mundo eacute tudo o que ocorrerdquo
(WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 30 ndash traduccedilatildeo livre) conforme o original ldquoDie Welt ist
alles was der Fall istrdquo Por estarmos no mundo que o respondemos por sermos o mundo
que ele ocorre e nos ocorre em significaccedilotildees
Logo o cuidado com as respostas passa por um cuidado com o mundo Como
cuidar ao responder Cada qual cuida e eacute cuidado pelo empenho do cuidar Isso natildeo deve
ser confundido com zelo no entanto natildeo se afasta de todo Trata-se no mais de que para
realmente cuidar de algo habitamos aquilo a tal ponto que nos constitua Ao responder o
mundo respondemos ao mundo a partir do que somos do mundo
116
Somos na presenccedila do mundo e natildeo em sua posse Queremos que as coisas
aconteccedilam e por vezes controlamos seu fazimento Soacute por vezes mesmo pois a margem
das possibilidades eacute o local da habitaccedilatildeo dos seres nunca completamente imerso nunca
inexoravelmente excluiacutedo Em seu limiar o respondemos e o habitamos e por estar na
borda vislumbramos sua geraccedilatildeo tanto quanto seu falimento o entorno que o define e
definha Daiacute a necessidade de cuidado como quem cuida da terra vir a ser planta
Somente sendo um pouco vegetal somente sendo um pouco camponecircs
Esse cuidado eacute nosso dizer nosso responder Como os dizeres que datildeo diversos
relatos sobre a mesma coisa cada um corresponde como pode Vai o meacutedico e daacute uma
resposta medicinal a um problema de sauacutede vai o advogado e revela a lei que justificou
determinada accedilatildeo vai o professor e se compromete com a educaccedilatildeo de nossos filhos em
nossa ausecircncia Vai tudo isso sem necessariamente retornar agrave proacutepria urgecircncia de
respostas A quem cabe cuidar do responder ldquoO pensador diz o ser O poeta nomeia o
sagradordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) ou seja ldquoDer Denker sagt das Sein Der
Dichter nennt das Heiligerdquo (HEIDEGGER 1955 paacuteg 51)
Natildeo natildeo cabe soacute ao pensador cuidar do responder O mundo eacute responsabilidade
de todos pois todos satildeo fundamentados pelo mundo que somos Ele deixa sua marca na
carne assim como demarcamos o solo com as criaccedilotildees e existecircncia Existe-se e eacute-se de
muitas maneiras Medica-se advoga-se leciona-se Se o pensador estaacute incumbido de
alguma accedilatildeo talvez esteja de agir enquanto ποιεῖν e dizer enquanto λέγειν atentamente
conforme fragmento 73 de Heraacuteclito Isto eacute o pensador eacute aquele imerso no cuidado de
ser e estar no mundo de ser porque estaacute no mundo de ser do mundo que ele eacute
Diz-se o ser responde-o Essa resposta eacute e estaacute no mundo Natildeo encerra a
totalidade mas cerca a possibilidade O limite do responder do pensador diz das cercanias
do ser que possibilita e daacute sentido a todo o resto Por isso ele versa sobre inutilidades
Natildeo porque sejam despreziacuteveis suas colocaccedilotildees mas por natildeo terem a preocupaccedilatildeo
imediata das necessidades e daiacute serem apreciadas com dificuldade Natildeo eacute correta mas eacute
verdadeira natildeo eacute precisa mas duacutebia natildeo eacute contraditoacuteria mas paradoxal Sonolecircncia e
vigiacutelia morte e vida ser e natildeo ser estatildeo no dito do pensador e falam do mundo que nos
encontramos corresponde agraves respostas individuais e tenta conectaacute-las agrave coletividade e
permanecircncia da questatildeo O ser se diz diversamente e cabe ao pensador mostrar como
quem indica o que estaacute acontecendo e ningueacutem tem mais tempo para dar por isso
117
Eacute interessante notar como essa questatildeo temporal eacute vital para compreender o
pensador e todos que se comprometam unicamente com o imediatismo Alguns autores
inclusive resgatam o sentido etimoloacutegico da palavra escola para pensar o tempo algo
como ldquolazer descanso tranquilidaderdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σχολή ndash traduccedilatildeo
livre)100 Essa noccedilatildeo implica em conceber que se tudo for para alguma coisa estaremos
sujeitos agraves respostas dadas agraves pressas Uma linha reta e contiacutenua de causa e consequecircncias
uacuteteis quase que num estado constante e iminente subjugaccedilatildeo do outro na guerra com o
tempo Nesse domiacutenio decide-se limitando para poupar futuros questionamentos assim
basta aplicar e seguir adiante sempre adiante em evoluccedilatildeo sem fim
De fato eu queria aprofundar a criacutetica (no sentido de Kant) da razatildeo erudita
ateacute ao ponto em que os questionamentos deixam em geral intocado e tentar
explicitar os pressupostos inscritos na situaccedilatildeo de skholegrave tempo livre e
liberado das urgecircncias do mundo que torna possiacutevel uma relaccedilatildeo livre e
liberada com tais urgecircncias e com o proacuteprio mundo (BOURDIEU 2001 paacuteg
9)
Embora a tradiccedilatildeo escolar tenha se esforccedilado por desvincular o tempo dessa
perspectiva ldquoescola ndash como tempo livre na qual o mundo eacute compartilhado e crianccedilas ou
jovens tecircm a experiecircncia de serem capazes de comeccedilar ndash precisa ser criadardquo
(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 113 ndash traduccedilatildeo livre)101 essa atitude foi
frustrada pela sua mesma origem Isso porque o proacuteprio ato de pensar necessita de uma
medida de quietude alguma viela na rodovia da exatidatildeo para a reflexatildeo criacutetica enfim
para reafirmar o compromisso com o caminho trilhado
Conveacutem ressaltar que natildeo se refere a encastelar-se na torre de marfim da erudiccedilatildeo
dos eleitos Eacute patente que haveraacute teacutecnica conhecimentos teoacutericos e praacuteticos que
dependeratildeo do empenho de seus executores mas principalmente eacute uma questatildeo de
postura Dispor-se perante o ser para ouvi-lo e assim dizecirc-lo em resposta nomeaacute-lo em
concordacircncia soacute eacute possiacutevel na confianccedila em abrir matildeo da seguranccedila da mensagem do
tempo que urge por uma resposta objetiva e pragmaacutetica ou seja ldquose a sociedade eacute para
100 Leisure rest ease Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dsxolh
2Fgt Acesso em 30 ago 2017 101 School ndash as free time in which the world is shared and children or young people have the experience of
being able to begin ndash must be created
118
ser renovada precisa se libertar e aceitar o risco de confiar a responsabilidade pela sua
renovaccedilatildeo a figuras ndash professores ndash isentas da obrigaccedilatildeo de produzir resultadosrdquo
(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 129)102
Natildeo somente os professores mas eacute dever de todos empenharem-se vez por outra
no penhor de pensar o haacutebito Seraacute que eu devo comer isso sempre fazer isso sempre ser
assim sempre Certamente que eacute quase impossiacutevel ensinar algueacutem a pensar sem
doutrinar Fazer com que se pense autonomamente Decerto eacute um ato de ousadia Agora
natildeo daacute para saber o que eacute possiacutevel sem arriscar abraccedilando o ilimitado o limitado e o
limitaacutevel em seu limiar agrave beira de ser e natildeo ser
Ao pensador cabe dizer o ser Seu compromisso eacute com a questatildeo isto eacute pensar o
haacutebito do pensamento Sua decisatildeo eacute pelo risco Diferente de um soldado cuja proacutepria
vida estaacute em jogo diferente de um meacutedico cuja vida do paciente estaacute em suas matildeos o
pensador segue sempre pela encruzilhada Seus caminhos pactuam com o sagrado e o
profano com o inuacutetil e por incriacutevel que parece com a extrema necessidade de natildeo
permitir a desgraccedila do pensamento Qualquer coisa por coisa qualquer lugares comuns
opiniotildees fechadas respostas banais natildeo
O pensador fundamentalmente pensa Em seu dizer o ser se manifesta e a
existecircncia jaacute conhecida e gasta renova seu sentido A tradiccedilatildeo eacute ainda a mesma mas
tambeacutem natildeo eacute cria-se ousa-se criar crecirc que cria e eacute essa crenccedila que o motiva Esforccedilar-
se por um pensamento digno de ser pensado eacute o miacutenimo e o maacuteximo que qualquer
pensador pode crer
35 Dois lados da mesma moeda
351 A resposta que natildeo soluciona
102 If society is to be renewed it must free itself and hazard to entrust responsibility for this renewal to
figures ndash teachers ndash exempted from the obligation to produce results
119
Uma resposta que natildeo se fie apenas nas soluccedilotildees soacute por serem as tradicionais mas
que decirc tempo ao tempo de ldquorepor recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009a Resposta)
a questatildeo da tradiccedilatildeo O dizer do pensador natildeo repete o ser natildeo leva o ser agravequeles que
natildeo tecircm acesso a ele Natildeo soacute eacute leviano achar isso como natildeo condiz com o caraacuteter
inegociaacutevel do que eacute O ser natildeo barganha nem o dito troca favores por benesses natildeo
compra natildeo vende fiduacutecias
Dizer como quem daacute uma resposta colocando novamente o ser isto eacute responde e
diz o que jaacute estaacute posto ratificando-o presentificando-o manifestando-o em sua
singularidade o que se eacute em diaacutelogo com sua multiplicidade o que se pode ser A
resposta natildeo vem atender agraves preces pela resoluccedilatildeo novamente aqui se coloca o que a
princiacutepio natildeo se cala a questatildeo Numa dialeacutetica ocircntica o pensador diz o ser agrave medida que
ele se cala para ouvir a fala do ser que natildeo se restringe aos discursos agraves palavras de
ordem aos comandos mas desde isso tudo laacute tambeacutem se pronuncia o canto o hino a
ladainha o carpido ou seja o rito
Dizer como quem responde Eacute interessante notar que a palavra resposta natildeo eacute
substantivo derivado de responder A histoacuteria da liacutengua uniu duas palavras distintas num
uso muito semelhante Essa origem entretanto daacute uma pequena amostra da plurivalecircncia
da linguagem Resposta nos remete ao latim reposita ou reposta particiacutepio passado
feminino de repono (GLARE 1968 paacutegs 1620-1621) prefixaccedilatildeo de pono pela partiacutecula
re- que indica retrocesso e oposiccedilatildeo mas tambeacutem repeticcedilatildeo e reforccedilo (HOUAISS
2009b)
Por sua vez pono eacute uma corruptela de po- + sino gt pozno prefixaccedilatildeo pela
partiacutecula aspectual indicando que a accedilatildeo atingiu seu fim (ERNOUT MEILLET 2001
paacuteg 520) Essa eacute uma diferenciaccedilatildeo conhecida nossa Por exemplo em inglecircs temos os
verbos to lay e to lie por deitado e estar deitado respectivamente (DICTIONARY
Lay)103 e em alematildeo stellen e stehen pocircr e estar de peacute (LANGENSCHEIDT 2001 paacutegs
1082-1083)
Seja por meio gramatical seja lexical o significado dos verbos eacute o mesmo o que
muda eacute como a accedilatildeo verbal se processa Nas situaccedilotildees acima todas se referem a estar
cuja diferenccedila ocorre entre colocar algo em determinado estado para laacute permanecer e
103 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowselays=tgt Acesso em 02 set 2017
120
estar em certo estado e aqui permanecer Concomitantemente sino se afina com deixar
algo ou algueacutem sozinho deixar ir deixar uma coisa intocada permitir que algo aconteccedila
(GLARE 1968 paacuteg 1770) ficando a cargo de pono e seu particiacutepio situs o sentido mais
fiacutesico da palavra (ERNOUT MEILLET 2001 paacuteg 628) Em portuguecircs vamos ter as
palavras situaccedilatildeo posiccedilatildeo assento siacutetio etc todas se apresentando como o que jaacute foi
colocado ou sempre assim esteve e laacute fica ou se almeja esse fim Sino pois eacute o estado de
solidatildeo e permanecircncia em que algo eacute deixado constituindo assim uma localidade
A solitude emocional eacute uma solidatildeo espacial Estar soacute natildeo como um ato de
desespero ou anguacutestia pesarosa e negativa mas parte essencial da constituiccedilatildeo dos seres
Estar como parte integrante de ser espaccedilo determinado no tempo espacialidade soacute por
sua singularidade que define e se define perante as demais solidotildees Desse modo eacute
estabelecida a relaccedilatildeo com a palavra resposta Sinere eacute posicionar-se em solitude situs
sua posiccedilatildeo no tempo e no ser ponene enquanto pocircr em uma posiccedilatildeo ir ao encontro do
cerco de existecircncia que delimita e funda uma localidade no mundo e por fim reponere
como o reposicionamento dessa localidade movimento que a ratifica e daacute vigor agrave posiccedilatildeo
situada
A questatildeo eacute Por isso ela estaacute posta e ao nos postarmos diante dela a fim de
adentrarmos sua localidade recolocamo-la agrave medida que podemos agrave medida que
podemos habitar sua habitaccedilatildeo Resposta aleacutem de soluccedilatildeo para os problemas tambeacutem eacute
ao tomarmos aquele desvio do oacutebvio e do imediato recolocaccedilatildeo da questatildeo Para isso eacute
fundamental alguma liberdade com o tempo e certa dose de rompimento da temporalidade
vigente
Contemporaneamente tem-se um conceito que abarca tal ruptura como uma
profanaccedilatildeo Pensando nisso temporalmente temos um tempo que se desprende dos
dispositivos que dizem como a temporalidade deve ser ldquoSe consagrar (sacrare) era o
termo que designava a saiacuteda das coisas da esfera do direito humano profanar por sua
vez significava restituiacute-las ao livre uso dos homensrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg 65) Os
usos da hora dos minutos e dos segundos satildeo problematizados a saber desvinculados do
sentido usual o que ele chama de sagrado para pode adquirir uma nova experimentaccedilatildeo
tornar-se puacuteblica mais uma vez ldquoProfanar natildeo significa simplesmente abolir e cancelar
as separaccedilotildees mas fazer delas um uso novo a brincar com elasrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg
75)
121
Por outro lado essa aparente crenccedila no sagrado natildeo deixa de estar vinculada agrave
proacutepria noccedilatildeo que temos do tempo Diz-se gastar perder tempo para dar uma resposta
que fuja do esperado Desperdiccedila-o ao tentar refazer os passos como se caminhar natildeo
fosse jaacute outro caminho igualmente dotado de verdade A sacralidade estanque nos remete
ao dogma e deixa de lado o maravilhamento e assombro que o mito e o rito nos acometem
Ou seja suspende-se a noccedilatildeo das horas e insere-nos numa nova temporalidade numa
nova localidade por jogar com o que somos e natildeo somos
Assim tambeacutem o profano natildeo eacute tatildeo fluido assim pois natildeo haacute nada mais comum
em tempos de crise como a vontade de seguranccedila o dia a dia os costumes dos mais
variados haacutebitos agrave nossa casa tudo isso comum a noacutes sem a deferecircncia sacra com o calo
do uso corrente e que assim como o sagrado nos define e delimita Nesse sentido nem
tanto o tempo necessita urgentemente perder sacralidade assim como natildeo precisa perder
mundanidade Haacute de se pensar uma alternativa que congregue o paradoxo das nossas
experiecircncias
Os filoacutelogos natildeo cansam de ficar surpreendidos com o duacuteplice e contraditoacuterio
significado que o verbo profanare parece ter em latim por um lado tornar
profano por outro ndash em acepccedilatildeo atestada soacute em poucos casos ndash sacrificar
Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulaacuterio do sagrado
como tal adjetivo sacer com um contrassenso que Freud jaacute havia percebido
significaria tanto lsquoaugusto consagrado aos deusesrsquo como lsquomaldito excluiacutedo
da comunidadersquo A ambiguidade que aqui estaacute em jogo natildeo deve apenas a um
equiacutevoco mas eacute por assim dizer constitutiva da operaccedilatildeo profanatoacuteria (ou
daquela inversa da consagraccedilatildeo) Enquanto se referem a um mesmo objeto
que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano tais operaccedilotildees
devem prestar contas cada vez a algo parecido com um resiacuteduo de
profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente
em todo objeto profanado (AGAMBEN 2007 paacuteg 68)
352 Temor sagrado
Eacute paradoxal essa relaccedilatildeo entre sagrado e profano entre a retidatildeo das soluccedilotildees e o
entroncamento da coisa colocada novamente em resposta Isso porque a linguagem eacute um
paradoxo lar de absurdos de certezas dos homens e da verdade Ela responde a nossos
anseios temporais e nos tira as palavras no momento crucial Ao tentar dar uma resposta
no tempo estamos agrave mercecirc dele e de sua idiossincrasia A fim de compreender melhor
122
como se processa essa dinacircmica de responder na e agrave temporalidade conveacutem delongar-se
em sua instacircncia sagrada e profana
Acima Agamben se refere a Freud Num de seus artigos intitulado Totem e tabu
o psicanalista reflete sobre um importante conceito de tabu Ele comeccedila referindo-se agrave
origem polineacutesia do termo cujo significado versa ldquoem dois sentidos contraacuterios Para noacutes
significa por um lado lsquosagradorsquo lsquoconsagradorsquo e por outro lsquomisteriosorsquo lsquoperigosorsquo
lsquoproibidorsquo lsquoimpurorsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 16) Ideias semelhantes podem ser vistas neste
dicionaacuterio de maori refazendo o percurso histoacuterico da palavra ldquoser sagrado proibido
restrito afastado sobre a proteccedilatildeo de atua [os deuses e os ancentrais]rdquo (MOORFIELD
Tapu ndash traduccedilatildeo livre)104
As significaccedilotildees de tabu que utilizamos hoje se afastam do universo miacutetico e se
aproximam do moral No dicionaacuterio podemos encontrar seis entradas a primeira refere-
se agrave instituiccedilatildeo religiosa conferindo sacralidade a seres objetos ou lugares
concomitantemente proibindo qualquer contato com eles sob pena de castigo divino
Todas as demais entradas trazem a ideia de proibiccedilatildeo ora interdiccedilatildeo religiosa ora
cultural ou imposta por costume social ou como medida protetora Vejamos alguns
exemplos ldquoEm Samoa distribuiacutea-se todo o pescado pelo chatildeo e ele era lavado em aacutegua
doce para livraacute-lo do taburdquo ldquoBeltrano eacute uma pessoa que vive presa a tabusrdquo e ldquoOs tabus
convencionais da era vitorianardquo (HOUAISS 2009a Tabu)
Essa concepccedilatildeo ratifica as restriccedilotildees imposta agrave educaccedilatildeo pelos pais pela
sociedade e pelos educadores a fim de zelar pela estrutura vigente temendo por seus
filhos do sistema Tambeacutem reforccedila o sentido de separaccedilatildeo do tempo produtivo
controlaacutevel daquele que se perde em filosofias em tentativa e erro e na experienciaccedilatildeo
demorada do mundo Enfim perdemos a proteccedilatildeo das divindades e de nosso passado a
saber do sagrado que nos definia pela tradiccedilatildeo e deixamos o lugar vago entrada e saiacuteda
de novas ideologias que ao piscar dos olhos envelhecem em sua utilidade
[] o caacutelculo demonstra toda a eficiecircncia natildeo perde tempo com a espera do
inesperado onde natildeo haacute tempo a perder com interpretaccedilotildees onde natildeo
interferem as transferecircncias da anguacutestia [] a utilizaccedilatildeo dos modelos de
identificaccedilatildeo no universo dos fatos inventa espiacuteritos e por muito tempo o ceacuteu
foi povoado de seres metafiacutesicos como colonialismo capitalismo
imperialismo comunismo (LEAtildeO 1977 paacuteg 67)
104 Be sacred prohibited restricted set apart forbidden under atua protection Disponiacutevel em
lthttpmaoridictionaryconzword7504gt Acesso em 04 set 2017
123
Para cada situaccedilatildeo um limite apropriado tanto aqueles louvaacuteveis a serem
almejados quanto os despreziacuteveis a serem execrados e propriamente a esses uacuteltimos
chamariacuteamos de tabus Determinados assuntos natildeo devem ser mencionados Na exceccedilatildeo
das exceccedilotildees quando se precisar tocar no assunto que o toque seja delicado pois eacute toacutepico
sensiacutevel ou que seja riacutespido pois eacute passiacutevel de reprovaccedilatildeo Em ambas as circunstacircncias
preza-se pela brevidade discursiva jaacute que natildeo se deve falar de tal coisa chamariz de mau-
agouro
Com o tempo aprende-se a ignorar aquilo a que natildeo conseguimos dar a devida
atenccedilatildeo ateacute que se cria o haacutebito a tradiccedilatildeo da seguranccedila e do conforto Ao natildeo mencionaacute-
lo natildeo o tornamos presenccedila mas ele o sagrado e o profano estatildeo presentes queremos
isso ou natildeo Deixamos subentendida a pujanccedila posta pelo tema e tememos pelos
descontroles que dali possam se originar num ambiente controlado A existecircncia dos tabus
da tradiccedilatildeo surge concomitantemente agrave tradiccedilatildeo dos tabus mantenedores de um status
quo
Para responder o que eacute o tabu precisaremos pensaacute-lo Um problema com isso estaacute
pois no empecilho moral que eacute pensar sobre um tabu No geral evita-se dispor a respeito
de tal tema em falar sobre ele quanto mais com ou a partir dele Eacute difiacutecil dizer jaacute que no
dito somos convidados a secirc-lo para pensaacute-lo quando o pensamos aproximamo-nos tanto
dele que por fim incorremos em delito ou seja incorremos no proacuteprio tabu ldquolsquoA violaccedilatildeo
de um tabu transforma o proacuteprio transgressor em tabu ()rsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 17)
Esse encontro nos deixa desconfortaacuteveis moralmente estranhos ateacute que natildeo nos
reconhecemos no que nos transformamos
Dizer o ser tem seu risco e muitas vezes o tabu eacute o que natildeo queremos ser Aquilo
que natildeo queremos que seja Ainda que haja uma relativizaccedilatildeo imensa entre certo ou
errado algumas posturas estatildeo tatildeo enraizadas que tendemos a apenas passaacute-las adiante
erigindo praticamente uma cultura do bem e uma do mal daquilo que compreendemos
como mau e bom Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais
ambientes para coibir e incentivar tal e tal comportamento a ponto de se achar terriacutevel
pensar o contraacuterio
124
Os homens105 que incorrem em tabu satildeo estes que se transitam no limiar de uma
existecircncia seja social seja individual A ambivalecircncia na qual habitam torna-os notaacuteveis
negativa ou positivamente isto eacute perceptiacuteveis em meio agrave gama das mesmas decisotildees Da
notabilidade surgem as ponderaccedilotildees reprovaccedilotildees condenaccedilotildees exaltaccedilotildees a saber os
demais passam a responder a eles Acaba que por requisitarem respostas as pessoas natildeo
soacute correspondem como de algum modo satildeo respondidas por esse tabu Ou por partir de
um monstro ou por se originar de um heroacutei o tabu enquanto um misteacuterio parcialmente
acessado revela uma resposta que tanto inspira atitudes como pode servir de modelo de
comportamento No caso essa concepccedilatildeo moralizaria o tabu trabalhando por meio de
paradigmas para preservar um modus operandi um know how de como se pensar o real
[] qualquer um que faz o que eacute proibido isto eacute que viola o tabu se torna ele
proacuteprio tabu Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar natildeo somente
a uma pessoa que fez o que eacute proibido como tambeacutem a pessoas em estados
especiacuteficos aos proacuteprios estados bem como objetos impessoais Qual pode
ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condiccedilotildees
diferentes Soacute pode ser uma coisa a qualidade de excitar a ambivalecircncia dos
homens e de tentaacute-los a transgredir a proibiccedilatildeo
Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa
qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo por que se lhe deve
permitir fazer o que eacute proibido a outros Assim ele eacute verdadeiramente
contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitaccedilatildeo e por esse
motivo ele proacuteprio deve ser evitado (FREUD 2006 paacuteg 25)
Os limites nossa constituiccedilatildeo satildeo tanto sagrados quanto profanos E permeando
as duas instacircncias no limiar habita o ocultamento Natildeo sabemos nossa limitaccedilatildeo ateacute
sermos tentados por ela e arriscarmo-nos em sua borda Quando na interpretaccedilatildeo de
Freud das ideias de Wundt ele disse que ldquoEsse poder [tabu] estaacute ligado a todos os
indiviacuteduos especiais [] a todos os estados excepcionais [] e a todas as coisas
misteriosas como a doenccedila e a morte o que estaacute associado a elas atraveacutes do seu poder de
infecccedilatildeo ou contaacutegiordquo (FREUD 2006 paacuteg 18) e que ldquoAssim os rapazes satildeo tabu em
suas cerimocircnias de iniciaccedilatildeo as mulheres durante a menstruaccedilatildeo e imediatamente apoacutes
o parto assim como os receacutem-nascidos as pessoas enfermas e acima de tudo os mortosrdquo
(FREUD 2006 paacuteg 19) ele nos convida a pensar essa caracteriacutestica de convivecircncia com
o que natildeo sabemos este democircnio incontrolaacutevel e portanto temiacutevel
105 Cabe ressalvar que para os povos antigos da polineacutesia o tabu natildeo eacute uma condiccedilatildeo exclusivamente
humana mas tambeacutem eacute ligado a animais manifestaccedilotildees do clima frutas aacutervores etc
125
Simultaneamente tabu eacute o sagrado algo sempre presente Pelo menos era para
muitos povos antigos que experienciavam a tradiccedilatildeo como a presenccedila da ancestralidade
ou seja eles mesmos seus avoacutes seu passado e seu fundamento Por eles os deuses se
afirmavam como a primeira ascendecircncia genealoacutegica seu parente mais antigo isto eacute o
que funda uma famiacutelia consequentemente um povo Os maoris tecircm na palavra atua o
duplo sentido de deus e ancestral deixando transparecer um passado ativo respondente
nas pessoas e palco ainda de acontecimentos o que difere radicalmente do tempo
estanque e portador de mensagens estanques com o qual estamos acostumados a lidar
contemporaneamente
1 (substantivo) antepassado com influecircncia contiacutenua deus democircnio ser
sobrenatural deidade fantasma objeto de fruto de supersticcedilatildeo ser estranho ndash
embora muitas vezes traduzido como lsquodeusrsquo e agora tambeacutem usado para o Deus
cristatildeo isso eacute um equiacutevoco do significado real Muitos maori traccedilam sua
ancestralidade a partir de atua em sua whakapapa [genealogia (MOORFIELD
Whakapapa)106 literalmente lsquoo fundamento que acontece (MOORFIELD
Whaka107 Papa108)] e satildeo considerados ancestrais com influecircncia em
determinados domiacutenios Estes atua tambeacutem eram uma forma de racionalizar e
perceber o mundo Normalmente invisiacutevel atua pode ter representaccedilotildees
visiacuteveis (MOORFIELD Atua ndash traduccedilatildeo livre)109
353 O que responde o sagrado
Cada resposta cada ensinamento cada aprendizagem estaacute vinculada a uma
tradiccedilatildeo mas cada pessoa objeto animal ou seja ente eacute em si jaacute uma tradiccedilatildeo Somos
106 Disponiacutevel em
lthttpmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakapapaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017 107 Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakaampsearc
h=gt Acesso em 06 set 2017 108 Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=papaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017 109 1 (noun) ancestor with continuing influence god demon supernatural being deity ghost object of
superstitious regard strange being - although often translated as ldquogodrdquo and now also used for the
Christian God this is a misconception of the real meaning Many Māori trace their ancestry from atua in
their whakapapa and they are regarded as ancestors with influence over particular domains These atua
also were a way of rationalising and perceiving the world Normally invisible atua may have visible
representations Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=atuaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017
126
o que pode haver de mais tradicional de noacutes mesmos isso porque nos desdobramos numa
histoacuteria presente que se atualiza no mundo a partir das possiblidades de ser sua
ancestralidade sacra Nesse sentido podemos aqui traccedilar um paralelo com a educaccedilatildeo
como apropriar-se do que eacute proacuteprio o que jaacute somos o que fomos mas ainda vige e o que
seremos pela ousadia de dar um passo adiante criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Dessa forma eacute
possiacutevel compreender de que trata o sagrado sem por isso abrir matildeo de seu caraacuteter de
misteacuterio perene
Contudo natildeo eacute assim que o sagrado se manifesta contemporaneamente mas sob
a eacutegide da religiatildeo e da descrenccedila enquanto portador de inverdades De um modo geral
principalmente no Ocidente a atualidade natildeo crecirc no sagrado como por exemplo na
ciecircncia na miacutedia e na ciecircncia O proacuteprio termo tabu que ldquodenota tudordquo (FREUD 2006
paacuteg 16) permite um outro Qual o outro de tudo mdash Nada Para Freud (2006 paacuteg 16)
o inverso de tabu eacute noa que diz do que eacute comum ordinaacuterio e geralmente acessiacutevel Essa
concepccedilatildeo daacute a entender que somos ordinaacuterios e extraordinaacuterios ao mesmo tempo
1 (partiacutecula) apenas simplesmente ateacute ao acaso ociosamente
infrutiferamente em vatildeo assim que - uma partiacutecula que segue imediatamente
apoacutes a palavra a que se relaciona Indica uma ausecircncia de limitaccedilotildees ou
condiccedilotildees
2 (estativo) estar livre das influecircncias de tapu ordinaacuterio sem restriccedilotildees
vaacutecuo oco (MOORFIELD Noa ndash traduccedilatildeo livre)110
Dizer tabu de tudo estaacute para dizer sagrado de tudo dessa sacralidade profana e
misteriosa Em toda localidade haacute um deus dormindo Do simples da pedra que a crianccedila
brinca agraves grandes obras da humanidade o tempo sagrado natildeo suspende o tempo comum
ao contraacuterio chama atenccedilatildeo agrave fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada
acontece A correria da obrigaccedilatildeo tende a achar que algumas coisas natildeo estatildeo dignas dela
criando juiacutezos de valor certo ou errada da verdade das manifestaccedilotildees
Paralelamente ao dizer do pensador o artista nomeia (HEIDEGGER 1955 paacuteg
51) Dos ruiacutedos faz-se muacutesica das cores pintura ldquopensamento e linguagem satildeo para o
artista instrumentos de uma arte Viacutecio e virtude satildeo para o artista materiais para uma
110 1 (particle) only just merely quite until at random idly fruitlessly in vain as soon as - a particle
following immediately after the word it relates to Denotes an absence of limitations or conditions
2 (stative) be free from the extensions of tapu ordinary unrestricted void Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=noaampsearch=
gt Acesso em 07 set 2017
127
arterdquo (WILDE 1981 paacuteg 7) O poeta nomeia o sagrado Nomear norteia o nume O norte
do sagrado conduz agrave consagraccedilatildeo do mundo e agrave autosagraccedilatildeo no sentido de auscultar no
ordinaacuterio o extraordinaacuterio em repouso Uma resposta se forma deforma a realidade antes
sem nome sem senso de direccedilatildeo ao divino Nomear cerceia nas cercanias entoa o limite
fundador do nome o ancestral ainda presente
O tabu eacute o limite que vigora desde sempre fundamento que delimita Conviacutevio
diaacuterio de todos os homens mas mateacuteria-prima aos poetas e pensadores De modo que o
incorrer em tabu ou ocasiona em decadecircncia e posterior destruiccedilatildeo ou alarga os limites
desvelando o velado A parede da morada do ser eacute rompida ou a casa cai ou ganha-se
uma nova sala e um heroacutei ou um monstro arrombador de portas O sagrado inicia o que o
tabu limita ambos datildeo sentido ao mundo O comeccedilo eacute labiriacutentico que ldquopode se configurar
abertura significa espaccedilo-temporalidade que possa permitir e reunir tudordquo (JARDIM
2000 paacuteg 420)
O limite precisa obrar precisa fazer sentido tem que ser concreto para o limitado
Natildeo eacute arbitraacuterio ele eacute dado pelo real em suas diversas circunstacircncias A arbitrariedade do
limite confecciona barreiras invisiacuteveis gerando colocaccedilotildees muito honestas como quem
traccedilaraacute as barreiras e como mantecirc-las quais os modelos a serem seguidos e evitados para
manter a barreira invisiacutevel O limite eacute necessariamente uma barreira visiacutevel ou melhor
uma localidade que encerra as possibilidades do ser A partir da definiccedilatildeo heideggeriana
do fim no caso da Filosofia fica expliacutecito o finito enquanto a plenitude natildeo mero
esgotamento e enclausuramento do possiacutevel
O antigo significado de nossa palavra lsquofimrsquo (Ende) eacute o mesmo que o da palavra
ldquolugarrdquo (Ort) lsquode um fim a outrorsquo quer dizer lsquode um lugar a outrorsquo O fim da
Filosofia eacute o lugar eacute aquilo e em que se reuacutene o todo de sua histoacuteria em sua
extrema possibilidade Fim como acabamento quer dizer esta reuniatildeo
(HEIDEGGER 1979d paacuteg 72)
Agora como saber se ao quebrar a parede a casa permaneceraacute Soacute agrave medida de
como respondemos agraves questotildees saberemos o que sobraraacute de noacutes Natildeo eacute algo soacute para
poetas e pensadores decerto mas eles estatildeo sempre proacuteximos indicando os limites
provocando-os contando a histoacuteria de seus desbravadores
Sobre o que cabe a cada um haacute um relato de cultura antiga dos maori que dizia
que o chefe da tribo natildeo soprava o fogo com a boca para natildeo transmitir o sagrado agrave carne
128
cozida e matar quem a comesse transformando em chefe quem chefe natildeo era (FREUD
2006 paacuteg 22) Claro que isso tambeacutem poderia ocasionar num novo chefe Isto conflita
com a concepccedilatildeo de Freud de os homens se sentirem tentados Dentro desta loacutegica do
controle ele soacute pode ver como tentaccedilatildeo o que os antigos viam como presenccedila (qualquer
um que incorre em tabu eacute tabu) Tabu natildeo eacute apenas um exemplo para ser evitado e
adorado Quem eacute rei sempre foi rei Quem seraacute rei sempre foi rei Outro que tentasse ser
rei alargaria seu ser para aleacutem de seu proacuteprio ocasionando no fim para aleacutem da finitude
cegueira paralisia ou morte
Se consigo comer a carne em tabu do liacuteder se consigo encontrar o Graal ou tirar
a espada da pedra natildeo importa pois soacute consigo na medida em que jaacute sou a possibilidade
de tirar a espada da pedra Trata-se de destino natildeo de vontade Trata-se de apropriar-se
do que eacute proacuteprio natildeo de tentar ser algo que natildeo somos Trata-se de achar o que natildeo
podemos perder natildeo de possuir o que jamais podemos ter
Respondemos como quem casa ser e ente linguagem e liacutengua sagrado e profano
Concerne arriscar a medida ao diaacutelogo e agrave tensatildeo que se faz presenccedila Isso nos remete agrave
etimologia de responder como assegurar novamente seu compromisso com a questatildeo
Distinto de resposta responder vem do latim respondeo cujo significado se assemelha
muito ao sentido moderno da palavra (HOUAISS 2009a Responder)
Todavia vimos que haacute muito mais nas repostas do que crecirc nossa vatilde filosofia E jaacute
em latim podiacuteamos encontrar o verbo que acompanhado de re descambou em responder
Esse verbo nos falava de outra postura perante o mundo mas conhecida nossa ldquo1
Comprometer-se noivar 4 Prometer ou afirmar solenemente dar a palavra sobre dar
uma garantia derdquo (GLARE 1968 paacuteg 1809 ndash traduccedilatildeo livre)111 Do particiacutepio passado
de spondeo sponsus temos em portuguecircs esposo esposa e esponsais A relaccedilatildeo entre
casamento e responder daacute-se no compromisso firmado no sagrado reacutedeas cavalo e
cavaleiro da carruagem dos seres Em concoacuterdia entre o limite e o ilimitado esposamos
na localidade onde habita a questatildeo e ratificamos nosso compromisso com ela
Ainda que nem todo homem seja poeta ou pensador todos estatildeo sujeitos ao
questionamento Todos em alguma medida reafirmam seu compromisso com o
111 1 To give a pledge or under taking 4 To promise or asserts solemnly give onersquos word about give a
assurance of
129
questionar O sagrado natildeo eacute posse de ningueacutem sua natureza eacute tatildeo extraordinaacuteria quanto
gregaacuteria e fundadora dos limites
[] Eacute deus desconhecido
Ele aparece como ceacuteu Acredito mais
que sejam assim Eacute a medida dos homens
Cheio de meacuteritos mas poeticamente
o homem habita esta terra [] (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacutegs
256-257 ndash traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo)112
Num paralelo mitoloacutegico Iacutecaro natildeo se satisfaz em sair do labirinto mas leva-o
aonde quer que vaacute (JARDIM 2000 paacuteg 424) Natildeo eacute uma decisatildeo sua natildeo eacute uma
adequaccedilatildeo a um modelo Sua proacutepria praacutetica define quem ele eacute uma decisatildeo do real Sua
desmedida incorrer em tabu eacute a proacutepria condiccedilatildeo heroica e monstruosa seu fim sua
plenitude
Em sua correspondente grega spondeo aparece como σπένδω com um sentido
parecido com um sentido digamos mais concreto Em vez de circunscrever o
compromisso ele diz do ato que o precede ldquofazer uma oferenda liacutequida (porque antes de
beber o vinho uma porccedilatildeo foi derramada na mesa no coraccedilatildeo ou no altar) [] fazer
libaccedilotildeesrdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σπένδω ndash traduccedilatildeo livre)113 aquele gole para o
santo que a cultura popular tanto conhece
Seja pela muacutesica na meacutetrica espondeu seja pelo vinho cor de sangue vertido agrave
terra respondemos em mutiratildeo o que o mito evocava em palavra e rito A cada resposta
em compromisso ratificado com a localidade mais solitaacuteria responde-se com a bagagem
da tradiccedilatildeo e com a parte que nos cabe nosso proacuteprio Assim o tabu concerne a palavra
que nos forma e enforma apropriaccedilatildeo nomeada pelo poeta dito pelo pensador o sagrado
que eacute sendo Neste sentido poeacutetico e mitologicamente o homem habita pois em casa que
eacute tabu as coisas tecircm memoacuteria a fala que natildeo cessa em lembranccedila mas permanece a dizer
no tempo
112 [] Ist unbekannt Gott Ist er offenbarwie der Himmel Dieses Glaubrsquoich eher Der Mensch Maas
istrsquos Voll Verdienst doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde [] 113 make a drink-offering (because before drinking wine a portion was poured on the table hearth or altar)
[hellip] make libations Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dspe2
Fndwgt Acesso em 08 set 2017
130
O mito que eacute tabu nomeia o sagrado agrave medida que se escuta a fala do tempo O
que eacute o sagrado senatildeo o proacuteprio do tempo a presenccedila do presente uma teoria fundamental
do real mdash O fundamento da casa o que origina e permite a permanecircncia do originaacuterio
na plenitude da habitaccedilatildeo Trazer para extraordinaacuterio a fala do comum esquecido e ao
banal o maravilhoso que natildeo se escuta eis talvez um belo sentido para um ensino poeacutetico
131
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Natildeo basta definir poeacutetica para falar de uma educaccedilatildeo poeacutetica Quando se firmou
o compromisso de discutir sobre o ensino e a filosofia optou-se por uma discussatildeo que
se desse de modo poeacutetico tornando uma fala sobre algo um dito em conjunto com alguma
coisa Promoveu-se pois um diaacutelogo com as disciplinas em questatildeo poeticamente Nesse
vieacutes a mera definiccedilatildeo fugiria da perspectiva esteacutetico-filosoacutefica e estaria aqueacutem do ofiacutecio
de reunir no ato de ensinar o dizer do filoacutesofo e o nomear do poeta
ldquoPoeticamente o homem habitardquo (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacuteg
257) eacute quase um lema versa o leme deste barco Natildeo se trata de reconceituar o ensino eacute
preciso voltar a ensinar pela primeira vez natildeo se trata de fazer histoacuteria da filosofia apenas
mas de tambeacutem filosofar sua histoacuteria transgredindo a mensagem da tradiccedilatildeo ao mesmo
tempo em que se presta a ela a devida homenagem Habitar de modo poeacutetico eacute natildeo deixar
as linhas do pensamento serem declamadas prosaicamente
Fiz de mim o que natildeo soube
E o que podia fazer de mim natildeo o fiz
O dominoacute que vesti era errado
Conheceram-me logo por quem natildeo era e natildeo desmenti e perdi-me
Quando quis tirar a maacutescara
Estava pegada agrave cara
Quando a tirei e me vi ao espelho
Jaacute tinha envelhecido
Estava becircbado jaacute natildeo sabia vestir o dominoacute que natildeo tinha tirado
Deitei fora a maacutescara e dormi no vestiaacuterio
Como um catildeo tolerado pela gerecircncia
Por ser inofensivo
E vou escrever esta histoacuteria para provar que sou sublime (PESSOA 1997 paacuteg
124)
Naturalmente que estamos cheios de viacutecios Cheios de costumes acostumados e
encostados no haacutebito de se ensinar algo e de como encarar a filosofia Essa forma de
ensino na qual nos encontramos tem se mostrado desgastada e passiacutevel de incisivas
criacuteticas no que concerne a formar cidadatildeos pessoas mais humanas e em uacuteltima instacircncia
mais felizes Isso tudo eacute um ponto de interrogaccedilatildeo quanto agrave eficiecircncia Entretanto no que
diz respeito ao consumismo e agrave adesatildeo a uma loacutegica de mercado desenvolvimentista e
tecnocrata a educaccedilatildeo contemporacircnea de modo geral apresenta-se muito eficaz
132
Como uma maacutescara que se confunde com rosto os homens estatildeo agrave deriva em sua
existecircncia sem mais se perguntarem sobre si mesmos encarando tal postura como
improdutiva Vale mais a pena um conhecimento uacutetil e uma vida mansa mas segura
deter o controle do que arriscar novos caminhos Ainda que se decirc a entender o contraacuterio
a aparente sandice dessa uacuteltima assertiva natildeo ignora as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas e os altos
investimentos em infraestrutura que ocorrem em alguns setores da economia em algumas
partes do mundo poreacutem chama atenccedilatildeo agrave inovaccedilatildeo do novo natildeo da mesmice Novas
tecnologias natildeo necessariamente satildeo outras tecnologias no mais das vezes eacute a mesma
loacutegica impositiva que submete o λόγος dos demais discursos agrave vontade da teacutecnica
Navegar natildeo eacute mais preciso viver sim Viver como quem segue o fluxo da mareacute
e se adequa ao sobe e desce das ondas a fim de que o barco natildeo vire Vital mas natildeo
essencial Os homens precisam da utilidade urgem por seguranccedila por mais que tenham
que abrir matildeo de certa liberdade Eacute pois mister viver em nenhum momento se propocircs
aqui algo diferente disso que se ignorassem as condiccedilotildees baacutesicas para a vida para o
ensino e para o pensamento
Acontece que natildeo soacute de patildeo vive o homem Natildeo eacute possiacutevel que a medida das coisas
seja apenas o para quecirc elas servem Pobre das baratas Elas natildeo prestam logo podem ser
eliminadas A filosofia hoje natildeo serve para nada ou pouco logo vamos dar cabo dela
ou deixar soacute a rabiola para ser lembrada quase nunca no aacutelbum de fotografias da histoacuteria
Tal foacutermula poderia ser empregada com outros animais dos quais jaacute achamos que
exploramos tudo mas tambeacutem ideologias praacuteticas povos culturas faixas etaacuterias e por
aiacute vai
Por esse motivo o que permanece no fluxo das mudanccedilas eacute a pergunta que norteia
o primeiro capiacutetulo deste trabalho Faz parte do tempo inovar e definhar e natildeo caberaacute a
noacutes decidir sobre isso No entanto o que tange o possiacutevel haacute de ser ousado A serventia
de uns eacute a inutilidade de outros e a verdade de outrora foi esquecida Algumas contudo
cortam profundo na memoacuteria e sentidos vigem A tradiccedilatildeo se funda na ranhura do tempo
que ainda sangra
Ou porque natildeo tem cura ou por entalharmos o corpo mnemocircnico com
conhecimentos a ferida aberta da tradiccedilatildeo eacute nossa identidade no tempo e espaccedilo Nosso
modo de pensar agir e sentir nossas preferecircncias e desgostos nossos temores e louvores
nossos discursos e linguagem satildeo frutos de algo que foi passado de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo
133
Normalmente natildeo temos em mente que quando vemos uma fotografia antiga um livro
empoeirado ou um conceito anacrocircnico satildeo nossos pais e avoacutes surrando verdades
Vocecirc eacute o herdeiro
Filhos satildeo os herdeiros
pois pais morrem
Filhos ficam e floram
Vocecirc eacute o herdeiro (RILKE 2012 paacuteg 66 ndash traduccedilatildeo livre)114
Somos e natildeo somos o que fomos e seremos aquele diz respeito agrave tradiccedilatildeo este ao
ensino Tanto um quanto o outro estatildeo intrinsecamente relacionados de maneira que
estudar um tem jaacute imiscuiacutedo o estudo do outro Isto significa que perguntar-se pelo ensino
eacute responder pela tradiccedilatildeo e repensar a tradiccedilatildeo propotildee olhar o ato de ensino com a visatildeo
inquiridora que sabe e natildeo sabe
Compreende-se por ensino o que se apreende por tradiccedilatildeo Um ensino mecacircnico
precisa de uma tradiccedilatildeo tecnocrata da mesma forma que reconhecer no dito o eco poeacutetico
eacute natildeo encarar a educaccedilatildeo restrita agrave transmissatildeo do conhecimento nem somente palco de
avaliaccedilotildees e encenaccedilotildees de aprendizagens Refere-se agrave dignidade dos caminhares no
caminho por mais tortos que possam ser Eacute um dar-se ao risco Natildeo vale a pena para
passar na prova natildeo vale a pena para apertar o parafuso nem operar o paciente Eacute digno
sem ser aplicaacutevel aproveitaacutevel sem o aval aproveitador da norma Eacute da tradiccedilatildeo mas
ainda natildeo eacute tradicional
Mar Portuguez
Oacute mar salgado quanto do teu sal
Satildeo lagrimas de Portugal
Por te cruzarmos quantas matildees choraram
Quantos filhos em vatildeo resaram
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso oacute mar
Valeu a pena Tudo vale a pena
Se a alma natildeo eacute pequena
Quem quer passar aleacutem do Bojador
Tem que passar aleacutem da dor
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu
Mas nelle eacute que espelhou o ceacuteu (PESSOA 1934 p 64)
114 Du bist der Erbe Soumlhne sind die Erben denn Vaumlter sterben Soumlhne stehn und bluumlhn Du bist der
Erbe
134
O desbravamento pode ser feito de diversas maneiras Haacute quem pegasse da direccedilatildeo
e saiacutesse oceano afora Em sala de aula uma das formas de descobrir eacute sem duacutevidas por
meio do desdobramento de um pensamento questionador Perguntar agraves e ser perguntado
pelas questotildees que nos interpelam
Natildeo eacute qualquer caminhar mas o filosoacutefico Natildeo soacute por estar escancarado no
tiacutetulo mas principalmente pelo proacuteprio estigma da filosofia que ela foi inquirida para dar
prosseguimento ao incocircmodo deixado pela tradiccedilatildeo e pelo ensino Sob as alcunhas de
confusa e abstrata ela permanece ainda um bastiatildeo de criaccedilatildeo e de pensamento frente agraves
demandas por soluccedilotildees objetivas e praacuteticas Relegada ao curriacuteculo escolar e agrave caacutetedra
acadecircmica ela natildeo eacute a mesma da aacutegora claacutessica decerto Em tempos digitais e impessoais
como o nosso a filosofia surge sendo uma vaacutelvula de escape no miacutenimo Seu potencial eacute
do tamanho de seu desafio dar sentido ao insensiacutevel dar agrave tradiccedilatildeo o pensamento devido
e ao ensino o cuidado esperado
Contudo a filosofia natildeo estaacute agrave parte do mundo logo tambeacutem tem caracteriacutesticas
dele inclusive aquelas que a princiacutepio se dispotildee a problematizar Por esse motivo
conveacutem se perguntar pelo ser da filosofia A matildee de todas as ciecircncias tornou-se parte do
conhecimento cientiacutefico como isso foi possiacutevel Tida por obra de eleitos enclausurados
numa torre de marfim sem relevacircncia social e a sobreviver de um prestiacutegio decadente de
eras devassadas o ldquoamor ao saberrdquo padece por seacuteculos de erudiccedilatildeo metafiacutesica de
categorizaccedilotildees e hierarquizaccedilotildees e em uacuteltima instacircncia por ter sido uma das responsaacuteveis
por suplantar a verdade mito-poeacutetica em prol da razatildeo
Agrave exceccedilatildeo do excesso a filosofia come o que plantou Sua origem em Platatildeo tem
traccedilos transgressores e perversos ao mesmo tempo podendo ter influenciado seus
praticantes a exercer uma segregaccedilatildeo ideoloacutegica Somente quem saiacutesse da caverna das
opiniotildees dos pensamentos ditos rasos e sensiacuteveis da δόξα e adentrasse o νοῦς a
contraparte ideal da existecircncia seria digno dela Com isso poetas pensamentos do
subsolo revelaccedilotildees miacutesticas e tudo o que natildeo se adequasse ao raciociacutenio loacutegico-formal
foram postos em escanteio e perderam seu teor de verdade para assumir contornos
ficcionais pitorescos quando natildeo falaciosos
A proposiccedilatildeo de questionar a filosofia desenrola-se pois num filosofar outro
Concebe um pensamento que reconhece no ser algo de fluido de paradoxal e de dialoacutegico
A fim de tentar abarcar o mundo com as matildeos mesmo suas camadas aparentemente
135
contraditoacuterias esse risco do pensar responde aos mais diversos incocircmodos Do sono agrave
vigiacutelia quanto da morte agrave vida sem os opor sem os solucionar dispotildee-se a aceitar o
equiacutevoco inerente assim como quem anda sobre ovos
Olhar para frente e para traacutes Ao enveredar pela tradiccedilatildeo ouvem-se muitas vozes
a dizer e nomear isto que se apresenta no tempo Ateacute o pensamento pode ser pensado A
questatildeo entretanto natildeo eacute algo de nebuloso e eteacutereo entre cem e sem sentidos Ela situa o
ser no espaccedilo com suas respostas e perpetua a sagraccedilatildeo da linguagem ao ser respondida
Hipoteticamente se a filosofia estaacute restrita aos filoacutesofos o pensamento eacute de todos e de
ningueacutem O caminhar singular de cada um ao lidar com as questotildees resgata o cuidado
primordial das civilizaccedilotildees receacutem-nascidas cujo mundo se mostrava pela primeira vez e
precisava ter um nome
A palavra
Prodiacutegio distante e louco
Minha margem agrave sua eacute pouco
Aguardei ateacute a parda Parca
E encontrei o nome em sua marca ndash
Eu pude atecirc-lo com teso
Para brilhar e luzir preso
Ansiei por bom vindouro
Com fraacutegil e raro tesouro
Toda via Ela me dizia
mdash Nada haacute aqui e a terra eacute vazia
Eis que escorre entre meus dedos
E agrave paacutetria dou enganos ledos
Triste entatildeo soube abdicar
mdash Secirc sem palavra vaacutecuo e ar (GEORGE apud HEIDEGGER 2003 p 124 ndash
traduccedilatildeo livre)115
Uma postura proacutepria perante a tradiccedilatildeo da filosofia engendra um trato proacuteprio com
o modo de se pensar A morte natildeo cabe nos dicionaacuterios temos que fazer a experiecircncia de
115 Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die
graue norn Den namen fand in ihrem born ndash Drauf konnt ichs greifen dicht und stark Nun bluumlht und
glaumlnzt es durch die mark Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie
suchte lang und gab mir kund bdquoSo schlaumlft hier nichts auf tiefem grundldquo Worauf es meiner hand entrann
Und nie mein land den schatz gewann So lernt ich traurig den verzicht Kein ding sei wo das wort
gebricht
136
morrermos um pouco para saber o ser que se mostra no falecimento Tampouco se daacute a
linguagem por encerrada nos livros didaacuteticos da histoacuteria Natildeo satildeo os verbetes que ganham
novas entradas mas o mundo que brota significados antes ignorados O ofiacutecio da postura
poeacutetica e pensadora no mundo eacute encontrar as palavras que faccedilam jus ao descobrimento
do mesmo local onde habitamos e somos habitados constante e incessantemente Essa eacute
a proposta esse eacute o desafio isto eacute um convite a um ensino poeacutetico
137
REFEREcircNCIAS
ABBAGNANO Nicola Dicionaacuterio de filosofia Satildeo Paulo Mestre Jou 1970
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APEcircNDICE
TREcircS EXPERIEcircNCIAS POEacuteTICO-FILOSOacuteFICAS
Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira
Produto didaacutetico apresentado ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal
de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca
CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre
Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto
Rio de Janeiro
Outubro de 2017
151
RESUMO
Trecircs experiecircncias poeacutetico-filosoacuteficas
Apresentaccedilatildeo planejamento desenvolvimento e criacutetica de trecircs experiecircncias de
filosofia com uma perspectiva poeacutetica Elas foram pensadas para serem feitas a princiacutepio
com crianccedilas num ambiente de sala de aula Num primeiro movimento eacute exposta parte
de um filme paroacutedia de Frankenstein e discute-se sobre as limitaccedilotildees de nossa vontade
Num segundo movimento discute-se o que eacute ser perguntando a crianccedilas sobre o exerciacutecio
de ser crianccedila Num terceiro movimento realizado tanto com crianccedilas quanto com jovens
em pares uma pessoa eacute vendada e requisitada a guiar a outra pessoa discutindo-se com
isso nosso apego ao controle a relaccedilatildeo de confianccedila estabelecida aceitaccedilatildeo do equiacutevoco
Por fim eacute patente a existecircncia singular que cada crianccedila jovem e ateacute adulto possuem
Suas capacidades inventivas questionadoras aleacutem e aqueacutem dos preconceitos ou do
demasiado zelo com eles Nesse sentido arriscar-se e aceitar o provaacutevel tropeccedilo
apresenta-se como caracteriacutestica essencial neste caminhar
Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem
152
ABSTRACT
Three poetic-philosophical experiences
Presentation planning development and critic of three experiences of philosophy
with a poetic perspective They were designed to be done at first with children in a
classroom environment In a first movement part of a film Frankensteinrsquos parody is
exposed and the limitations of our will are discussed In a second movement it is
discussed what is to be asking children about the exercise of being a child In a third
movement carried out both with children and with young people in pairs a person is
blindfolded and asked to lead the other person discussing with this our attachment to
control the relationship of trust the acceptance of misunderstanding Finally it is clear
the unique existence that each child young and even adult have Their inventive
questioning abilities beyond prejudices or over-zeal with them In this sense risking and
accepting the probable stumbling is presented as an essential characteristic in this walk
Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language
153
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
Figura 1 ndash Calvin e Haroldo 165
Figura 2 ndash A morte 166
154
SUMAacuteRIO
Apresentaccedilatildeo 155
Quando a vida nos diz natildeo 157
Objetivo geral 157
Objetivo especiacutefico 157
Proposta para a atividade 158
Fluxograma 160
Relato da experiecircncia 161
Reflexatildeo com a experiecircncia 169
Exerciacutecios de ser crianccedila 171
Objetivo geral 171
Objetivo especiacutefico 171
Proposta para a atividade 171
Fluxograma 174
Relato da experiecircncia 174
Reflexatildeo com a experiecircncia 177
A cegueira da visatildeo 178
Objetivo geral 178
Objetivo especiacutefico 178
Proposta para a atividade 178
Fluxograma 180
Relato da experiecircncia 180
Reflexatildeo com a experiecircncia 183
Consideraccedilotildees finais 186
Referecircncias 188
155
Apresentaccedilatildeo
A volta da filosofia para as salas de aula alcanccedilou as seacuteries iniciais do
Fundamental Ainda um movimento isolado acontece em alguns locais do Brasil e mais
especificamente no Rio de Janeiro Em Duque de Caxias na Escola Municipal Joaquim
da Silva Peccedilanha juntamente com o Projeto de Extensatildeo Em Caxias a filosofia en-caixa
do Nuacutecleo de Estudos Filosoacuteficos da Infacircncia do PropedUerj coordenado pelo professor
Walter Kohan onde este trabalho foi apresentado o ensino de filosofia com crianccedilas tem
se mostrado como resposta116 agrave carecircncia reflexiva e questionadora jaacute em tenra idade
diante do mundo
O iniacutecio do projeto data de 2007 e desde entatildeo tem gerado um importante papel
na divulgaccedilatildeo e solidificaccedilatildeo da filosofia com crianccedilas Durante esses anos podemos
contar com o apoio da Secretaria de Educaccedilatildeo de Duque de Caxias da Faperj aleacutem da
direccedilatildeo das escolas seus professores e pesquisadores e alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-
graduaccedilatildeo Minha participaccedilatildeo eacute recente Inicia-se em 2013 quando comecei a frequentar
os grupos de discussatildeo Do segundo semestre de 2013 ateacute 2015 atuei diretamente na
escola Joaquim da Silva Peccedilanha coordenando e participando das experiecircncias
filosoacuteficas
Inicialmente o desenvolvimento destas atividades foram pensadas para estarem
sujeitas agrave brevidade de uns tempos de aula e voltadas para crianccedilas entre 8 e 11 anos
Entretanto conveacutem natildeo soacute ater-se ao desdobramento do tema mas a outros elementos
que possam convidar a pensar sobre o assunto ainda que indiretamente natildeo se
restringindo a faixas etaacuterias A questatildeo natildeo tem idade Ou seja o planejamento estaraacute
sempre aqueacutem da execuccedilatildeo e das nuances de cada contexto servindo apenas como guia
dentre uma multiplicidade de caminhos Conveacutem ressaltar que todos os responsaacuteveis
pelas crianccedilas estavam cientes das atividades propostas e que poderiam ser realizadas
filmagens fotografias e que os nomes de seus filhos poderiam ser expostos
116 O significado desta palavra aqui natildeo se restringe agrave dar uma soluccedilatildeo mas vista sua tradiccedilatildeo como ldquorepor
recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009 Resposta) promovendo a cada responder um recolocar-se
naquilo que nos instiga Nesse sentido ao inveacutes de encarar uma resposta como o que encerra a questatildeo
passa-se a lidar com ela por aquilo que apresenta novas possibilidades renovando e inovando
156
Ainda antes de dar iniacutecio propriamente eacute preciso sugerir que isto aqui natildeo se
refere ao primeiro contato com a turma nem ao uacuteltimo O pensamento natildeo comeccedila aqui
nem somos o suprassumo do saber por estarmos a fazer tais e tais atividades Mais vital
eacute a forma como a chamada experiecircncia filosoacutefica se organiza diferentemente de uma aula
tradicional propondo natildeo soacute ideias estranhas agrave uma disciplina usual como tambeacutem uma
praacutetica proacutepria e singular
A fim de que a atividade se desenvolva conveacutem que algum eacutethos comum se
estabeleccedila Tambeacutem sugerimos fortemente que a participaccedilatildeo de todos seja incentivada
mas natildeo exigida caso o aluno natildeo queira sem demanda por conhecimentos preacute-
estabelecidos com base no certo ou errado Dessa maneira dirimindo o iacutempeto por
reproduzir conceitos (para uma avaliaccedilatildeo por exemplo) ao estabelecer um espaccedilo de
conhecimento muacutetuo em que as estranhezas quanto agraves pessoas agrave forma de aula ou ao tipo
de tema sejam ao menos toleradas Isso porque em geral o aluno espera estar sujeito a
ameaccedilas de reprovaccedilatildeo consequentemente desqualificaccedilatildeo no que diz respeito a seu
meacuterito na resposta ou confia demasiadamente na autoridade do professor ou na voz da
turma como apelo demagoacutegico Embora seja improvaacutevel desfazer todas as falaacutecias
comuns do dia a dia educacional pelo menos o questionamento acerca delas precisa estar
em voga enquanto fundamento para erigir este trabalho
Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a
realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da
lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de
pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de filosofia como
um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das
experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que
natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas
157
Quando a vida nos diz natildeo
Objetivo geral
A partir de dinacircmicas filmes e trechos de livros pretende-se construir
conjuntamente com as crianccedilas uma postura questionadora diante do mundo
perguntando-se pelos porquecircs de determinados haacutebitos e trazendo agrave tona grandes temas
filosoacuteficos como a verdade a vontade e ateacute a morte atraveacutes da proacutepria realidade e
experiecircncias comuns da idade
Objetivo especiacutefico
Propotildee-se apresentar um trecho do filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton
Uma paroacutedia em animaccedilatildeo de Frankenstein com cerca de 20 minutos de duraccedilatildeo que
conta a relaccedilatildeo de um garoto com seu cachorro bruscamente interrompida por um
acidente fatal e a posterior reanimaccedilatildeo do cadaacutever Com isso apresentamos a relaccedilatildeo do
homem com a morte isto eacute a negaccedilatildeo do homem em morrer concomitante agrave sua vontade
de controlar a vida
Uma analogia mais simples e direta menos terriacutevel com dramas psicoloacutegicos de
um menino afeito a ciecircncias que perdeu seu amigo de estimaccedilatildeo e tenta recuperaacute-lo Esse
deslocamento do palco dos questionamentos do claacutessico literaacuterio para o curta metragem
de animaccedilatildeo pretende a empatia dos alunos abrindo um canal importante para o
desdobramento filosoacutefico apropriado
158
Proposta para a atividade
Com as estruturas baacutesicas para a apresentaccedilatildeo de filmes propomos dois tempos
de 45 minutos diluiacutedos em duas semanas nos quais os primeiros 10 minutos seriam para
trazer a disposiccedilatildeo da turma para a atividade Sabe-se laacute o que mais ocorreu se um recreio
agitado ou se uma aula monoacutetona Esse eacute o momento de perceber se a atividade deve
prosseguir ou se seraacute preciso deixaacute-la para outro momento a fim de trabalhar um
questionamento pujante Uma sugestatildeo eacute utilizar os proacuteprios afazeres burocraacuteticos ou
estruturais como proecircmio Por exemplo a arrumaccedilatildeo das carteiras em roda ou uma
simples chamada pode servir de chamariz para esse instante
Dando sequecircncia agrave introduccedilatildeo agora cabe apresentar o tema o que natildeo precisa
ser feito secamente Recapitulando questiona-se a ideia do homem pelo homem como
um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser diagnosticada e curada o humano torna-
se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma infinidade de predicativos que validam
o sujeito homem Pergunta-se entatildeo se nossa ideia de homem passa a ser o homem
Como introduccedilatildeo solicitaria que cada um pensasse brevemente numa palavra
conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado na pergunta ldquoO que eacute
lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo Nada mais do que 5 minutos Em seguida um de cada vez seria
requisitado a pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito poreacutem
sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido Caso a turma seja mais tiacutemida uma possibilidade
eacute comeccedilar com vocecirc mesmo aiacute sim desenvolvendo brevemente o motivo
Independentemente de como a turma corresponder a participaccedilatildeo do professor faz parte
de uma posiccedilatildeo dialeacutetica a diferenccedila estaacute na importacircncia que eacute devotada a ele Espera-se
que 10 minutos sejam o suficiente para tal Independentemente do comportamento da
turma como a fala eacute livre e incentivada a tendecircncia agraves vozes simultacircneas eacute grande Por
isso introduzimos o que chamamos de a ldquobola da vezrdquo uma bolinha que ditava quem
detinha a palavra para falar pedia-se a bola bastando levantar a matildeo
O segundo momento refere-se agrave suspensatildeo dos porquecircs Solicite que os alunos
pensem se manifestem mas natildeo digam seus motivos Isto daacute ensejo a um proacuteximo estaacutegio
da experiecircncia filosoacutefica aleacutem de interromper o fluxo esperado haja vista que teremos
os mais diversos exemplos mantendo a atenccedilatildeo por meio da curiosidade e ansiedade
159
Ao teacutermino do momento inicial estaacute na hora da exibiccedilatildeo do curta Conveacutem
chamar atenccedilatildeo de que o mesmo eacute um desdobrar do assunto anterior Tambeacutem eacute
interessante notar as expressotildees conversas e impressotildees da turma durante a exibiccedilatildeo
embora natildeo ache aconselhaacutevel deter-se por demais nisso com o risco de cair em
psicologias comportamentais caso natildeo seja sua aacuterea de domiacutenio
Passados 45 minutos do iniacutecio da atividade eacute feita uma rodada geneacuterica sobre as
opiniotildees Se gostaram e por que se o filme correspondeu agrave palavra-som-gesto de cada
um se houve empatia com a personagem etc Dependendo da turma os minutos finais
podem transcorrer sem muitos problemas Poreacutem caso haja poucas falas cabe ao
professor dar sua breve contribuiccedilatildeo explorando as privaccedilotildees de se querer algo e de poder
esse algo enquanto abre caminho para o fim da aula
Encerrando o primeiro dia seria solicitado que pensassem na pergunta ldquoO que eacute
lsquosimrsquo para vocecircrdquo cujas respostas agora escritas deveriam ser trazidas no encontro
seguinte A pergunta pela afirmaccedilatildeo sofre duas influecircncias imediatas o anterior ldquonatildeordquo e
os dizeres do filme sobre o assunto Isso deve movimentar as opiniotildees Ainda que os
alunos natildeo cumpram a tarefa o esforccedilo para se dispor a inquirir sobre a temaacutetica foi feito
pois tanto as perguntas como o Frankenwenie insistem nas referecircncias da vontade do
homem com a realidade reforccedilando o argumento
Na semana seguinte os primeiros 10 minutos se assemelhariam aos do uacuteltimo
encontro Os 15 minutos seguintes retomariam as respostas escritas ou natildeo a respeito do
ldquosimrdquo se se correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do
ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme responderia ao ldquonatildeordquo
e ao ldquosimrdquo Nesse momento os exemplos da induccedilatildeo satildeo revistos confirmados
descartados adaptam-se aos novos posicionamentos dando unidade agrave atividade Um
tempo tambeacutem utilizado para ambientar os alunos na discussatildeo Por fim cabe uma
interpretaccedilatildeo sua sobre como a personagem lida com a morte e o porquecirc o que parte e o
que permanece assunto desenvolvido no tema Quanto a isso conveacutem uma breve
explanaccedilatildeo
A explanaccedilatildeo deve alcanccedilar de 10 a 15 minutos Eacute o momento de assumir a
responsabilidade de ter levantado o toacutepico e de fato participar do diaacutelogo Sem respostas
prontas mas com sua opiniatildeo sincera embasada e digna de ser exposta O caminho jaacute foi
traccedilado natildeo se chegaraacute ao fim mas eacute preciso caminhar Pela explanaccedilatildeo se reforccedila a ideia
160
de que natildeo haacute soluccedilotildees faacuteceis mas que nos eacute requisitado pensar e se posicionar por mais
breve por mais incerto que seja buscando o provaacutevel que supomos ser
Nos minutos finais propotildee-se que todos escrevam num papel uma frase afirmativa
ou interrogativa um verso ou um desenho algo para dizer a esse menino retratado no
filme Quem assim desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez O epiacutelogo almeja
essa proximidade quase iacutentima entre cada aluno e a personagem jaacute que ambos teriam
vivenciado situaccedilotildees semelhantes Ratifica o concreto dos pensamentos e sentimentos
expostos no filme em comunhatildeo com o que foi pensado e sentido pelos expectadores
Como a personagem natildeo responde ao recadinho revela-se mais uma vez o caraacuteter sem
resposta da argumentaccedilatildeo sem desmotivar a accedilatildeo perante ao que natildeo dispomos de
controle Aproveite para aconselhar fortemente a quem natildeo assistiu ao filme por completo
que assim o faccedila
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar o tema e solicitar que cada um pensasse brevemente numa
palavra conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado
na pergunta ldquoO que eacute lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo ndash 5 minutos
3 Pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito
poreacutem sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido ndash 10 minutos
4 Exibir o curta ndash 25 minutos
5 Pensar e escrever ldquoO que eacute lsquosimrsquo para vocecircrdquo ndash para casa
6 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
7 Retomar as respostas escritas ou natildeo a respeito do ldquosimrdquo se se
correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do
ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme
responderia ao ldquonatildeordquo e ao ldquosimrdquo ndash 15 minutos
161
8 Expor um comentaacuterio participando do diaacutelogo ndash 10 a 15 minutos
9 Escrever num papel uma frase afirmativa ou interrogativa um verso ou
um desenho algo para dizer a esse menino retratado no filme Quem assim
desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez ndash minutos finais
Relato da experiecircncia
Terminado o breve desenho animado perguntamos o que acharam do filme se
gostaram o que gostaram e a maioria dos alunos respondeu afirmativamente Sem
demora a conversa ganhou espaccedilo nos silecircncios iniciais ora longos ora breves a
depender da turma
Primeiramente o que apareceu nas opiniotildees gerais foi a relaccedilatildeo do menino com o
cachorro Em duas turmas disseram que o fato de terem ressuscitado o cachorro foi uma
coisa boa no filme Na turma 502 a Katlem natildeo fala diretamente de ressuscitar mas a
relaccedilatildeo menino e cachorro se apresenta como siacutentese de uma possiacutevel oposiccedilatildeo agrave morte
pois juntos eles enfrentam a separaccedilatildeo e o fim e no filme saem vitoriosos Seria a morte
uma inimiga a ser subjugada ldquoQuando o menino arremessou a bola e a bola foi laacute pra
cima eu achei que o cachorro gostava muito do Vitor [nome do garoto do filme] e ele
gostava muito dele e ele natildeo merecia morrerrdquo
Estabeleceu-se a correspondecircncia do presente o que aparentemente temos e a
morte o que aparentemente natildeo temos o controle fronteira tecircnue guiada pelas aparecircncias
Na turma 501 depois das impressotildees iniciais decidimos ser mais diretos e caminhar no
limite mencionado Perguntamos ldquoO Luiz [um aluno] disse que o bicho mesmo morto se
mexe [] A morte natildeo passa uma ideia lsquoparadarsquo Como se mexer se estaacute mortordquo
ldquondash Por causa do choquerdquo Notamos que muitas pessoas responderam e ainda
tentaram detalhar os processos teacutecnicos Algumas ateacute como o Miqueias achavam que o
principal no filme era a experiecircncia cientiacutefica justificada nos comentaacuterios a respeito de
quantos volts tem um raio (o Luiz falou o valor com tanta certeza que todo mundo
acreditou) referecircncia agravequele ldquoaparelho que eu vi num filmerdquo (a referecircncia a filmes a
162
novelas e agrave tevecirc foi bem recorrente) aquele de ldquodar choque no peitordquo (desfibrilador) mas
ldquosoacute daacute para recuperar quando a pessoa morre naquele instanterdquo disse Luan
Nesse momento a turma estava bem envolvida na discussatildeo com vaacuterios querendo
contribuir A ldquobola da vezrdquo exerceu um papel norteador importante pois eacute um siacutembolo
uma lembranccedila de que algueacutem deseja falar e algueacutem deseja ouvir Quando muita gente
quer a bola combinamos com a turma de ir passando para o lado de matildeo em matildeo assim
todos teriam o direito de falar se quisessem
Desse modo o Luiz (sim novamente ele um dos nossos maiores participantes)
teve sua reacuteplica na pergunta sobre a morte parada ldquotipo assim cortar o rabo de um lagarto
[] ele solta o rabo que fica se mexendo e consegue fugirrdquo A morte em movimento para
que houvesse vida O rabo foi morto podemos supor pela lagartixa para que ela mesma
pudesse viver
A morte se mexe a morte estaacute parada a morte acontece Afinal ldquopor que ateacute hoje
o ser humano natildeo faz isso [ressuscitar] com todos os mortosrdquo perguntou o Max Eu
respondi que o cachorro era especial para a crianccedila do filme afinal nem todo mundo as
pessoas gostariam que voltasse (seguido de alguns risos) Jaacute o Wallace achou que foi
porque o corpo foi costurado
Objetividade era a palavra de ordem De fato o filme dava um destaque agrave
experiecircncia laboratorial nada mais justo que os 501 focassem na questatildeo teacutecnica As
colocaccedilotildees que eram feitas tinham um procedimento meacutedico por traacutes ou um detalhe mais
praacutetico e mais importante quase nenhuma referecircncia a qualquer emoccedilatildeo ou sobrenatural
foi feita Souza e Pereira (1998) vatildeo compreender o entendimento moderno do conceito
de ciecircncia como um modo da verdade entendida por certeza na qual a explicaccedilatildeo do real
se sobrepotildee ao proacuteprio real suas outras manifestaccedilotildees e misteacuterios insoluacuteveis
Ao final da atividade deste primeiro dia fizemos um trabalho mnemocircnico a fim
de reforccedilar o discutido para o proacuteximo encontro Cada pessoa iria fazer uma pergunta ou
dizer uma palavra que sintetizasse seus pensamentos emoccedilotildees a respeito do que tinha
acabado de acontecer Nesta ocasiatildeo notamos um lado mais sentimental juntamente com
o objetivocientiacutefico Questionava-se onde ficava a alma nesse processo de ressuscitar ou
soacute a palavra tristeza tivemos ateacute uma pergunta teoloacutegica de se deus natildeo devolver a alma
como ficaria o corpo
163
Esse teor menos material estaacute mais presente em todos os demais encontros Com
os 502 por exemplo cujo envolvimento nas discussotildees ocorreu mais depressa que na
501 logo nas primeiras colocaccedilotildees surgiu a tristeza o desmerecimento pelo ocorrido
Pareceu que ressuscitar natildeo supriu a urgecircncia de vida cabendo o luto Lembremos essa
turma era aquela que jaacute discutira em alguma medida a morte
Tristemente abatido impotecircncia diante do que natildeo controlamos por melhores que
sejam nossos aparelhos Na falta de esperanccedilas com o que contamos Quando nos
remetemos ao filme na hora que o garoto termina a experiecircncia para reviver o cachorro
a princiacutepio ela natildeo daacute resultados Sobre o corpo imoacutevel o pequeno cientista se debruccedila e
uma laacutegrima escorre de seu rosto Para a Eduarda Letiacutecia e outros tantos esse foi o fator
decisivo para que o cachorro pudesse ressuscitar
Mas seraacute o benedito essa turma natildeo vecirc o oacutebvio A ciecircncia teve seu papel soacute que
o choro funcionou melhor de acordo com a Luiza Para a Isabelle nem se tratou de fato
de aguinha dos olhos mas do amor e a Beth117 sintetizou ao dizer que ldquona ciecircncia natildeo haacute
tanto amor quanto na laacutegrimardquo Elas terem pensado essa relaccedilatildeo lanccedilou-me para o seacuteculo
XX Para a reprodutibilidade da teacutecnica para a questatildeo da teacutecnica e outros tantos ensaios
e pensamentos que se referiam ao homem esquecendo sua humanidade e agrave maacutequina
com seu sentido de ferramenta esvaziado para que tudo ao redor se mova em torno dela
Todavia essa natildeo eacute a idade em jogo naquele ambiente Provavelmente essas
crianccedilas nunca leram Benjamin nem Heidegger mas elas podem sim terem
experienciado as criacuteticas ao mundo ldquode devir-crianccedila ou de devir-infantil que eacute uma
forma de estar no mundo associada natildeo aos anos que se tem mas agrave experiecircncia de vida
que se afirmardquo (KOHAN 2012 paacuteg 43)
Ao considerar a emergecircncia de possibilidades no devir torna-se esperado
associaccedilotildees nunca antes imaginadas O Alex identificou a morte pelo olfato Ou talvez
tenha sido uma metaacutefora quando remeteu ao cheiro da morte afinal era soacute um filme Um
pouco antes do cachorro ser atropelado e vir a falecer aquela iminecircncia exalava uma
essecircncia prenuacutencio traacutegico Quando a crianccedila do filme vai ao cemiteacuterio eacute assustador ele
podia se machucar natildeo eacute Alex
117 Nome fictiacutecio devido agrave ausecircncia do nome real nas gravaccedilotildees
164
O aroma puacutetrido e a decomposiccedilatildeo dos corpos isso tambeacutem eacute o cheiro da morte
e natildeo eacute agradaacutevel Muitos outros na sala tambeacutem tiveram receio com o cemiteacuterio mas
natildeo a Katlem ela disse que o amor a teria dado coragem Aqui temos um velho embate
gerador de heroacuteis covardes e sensatos Entrar ou natildeo entrar no cemiteacuterio precisa ser agrave
noite Sentir o cheiro da morte e ainda assim ir agrave sua direccedilatildeo (talvez o cachorro natildeo tenha
sentido mesmo com seu focinho canino) eacute se aventurar na morte pelo Vitor da 502
E com a morte natildeo se brinca Pois para a Julia se aventurar era brincar mas o
pobre catildeo natildeo sabia do perigo que o aguardava nem que haacute brinquedos que natildeo perdoam
Julia mdash A morte tava presente laacute e quando ele foi voltar [] ele morreu
Vanise mdash A morte fica perto da pessoa
Julia mdash Eu acho que sim no momento certo
Isis mdash Eu vou tentar responder o cheiro da morte para mim foi que o
cheiro da morte deixou um rastro quando vocecirc faz uma comida vocecirc sente um
cheiro deixou um rastro
Isis mdash O rastro deixa uma pista o cheiro de que o carro ia vir A morte era o
carro
Andreacute Lira (2012) defende que a presenccedila da morte eacute algo que natildeo vivemos em
seu interior Sempre exterior quiccedilaacute ao redor a rigor soacute podemos falar sobre jaacute que
ningueacutem morreu e depois escreveu ou discursa proveniente dela embora julguemos poder
sentir sua proximidade Ser novo para morrer e a condenaccedilatildeo ao natildeo conhecimento vatildeo
influir diretamente no comportamento estrangeiro em relaccedilatildeo ao tema
Tanto a aluna Isabelle quanto a professora regente Adriana mais uma vez nos
mostrando a fluidez da questatildeo entre as idades sofreram pela falta de respostas Disse
aquela ldquoNatildeo sei se a morte taacute perto de mim mas eu natildeo quero estar perto dela Sou nova
demais para morrer [] Tenho medo porque natildeo conheccedilo o que vai ter depoisrdquo A Irandy
confessou que tambeacutem tinha medo por natildeo conhecer Ora se vocecirc natildeo conhece porque
supor que eacute ruim e principalmente que deve ser temido
165
Figura 3 ndash Calvin e Haroldo
Fonte DEPOSITODOCALVIN 2005
Um problema corrente do trabalho foi o tempo Quando a discussatildeo pegava fogo
tiacutenhamos que encerrar o encontro para receber a proacutexima turma O cheiro o rastro a
aventura a brincadeira O medo Um dos maiores motivos que me motivou a realizar um
trabalho desses foi o fato de que a morte eacute temida Quis aproveitar que o assunto surgiu
da turma 502 e contrapor com sua ausecircncia na 501 Antes contudo comentemos como
na turma 402 se desenvolveu o confronto com o diferente
Primeiro ponto como havia dito muitos disseram que a ressuscitaccedilatildeo foi o aacutepice
do filme A Tamiris ateacute disse que se fosse possiacutevel iria fazer o mesmo com a avoacute Agora
para ressuscitaacute-la de acordo com o filme teria de haver uma aproximaccedilatildeo com um lado
sombrio indigesto com o cemiteacuterio caveiras e corpos feacutetidos e em decomposiccedilatildeo
Eca e outras interjeiccedilotildees e caretas eram ouvidas durante a animaccedilatildeo O sentimento
de nojo foi instigado teria a Tamiris encarado a morte no corpo imoacutevel da avoacute com
repulsa O Mateus acredita que natildeo com um certo desdeacutem como se sentir nojo fosse
algo hipoacutecrita ldquoeu acho que fede mas queria fazer uma pergunta e uma pessoa que eles
amam muito vatildeo falar que eacute nojenta que eacute isso ou aquilordquo
Poxa Mateus mas natildeo eacute muito normal ver sangue saindo ou bichinhos comendo
a pessoa mesmo que seja da nossa famiacutelia neacute Mas a gente vai tentar se segurar porque
eacute uma pessoa proacutexima pelas ideias e algumas palavras de Fernando Sim concordo natildeo
eacute habitual separamos a morte da vida Evitamos por medo ou por nojo enxergar a morte
acontecendo ao nosso redor em noacutes mesmos Por esse vieacutes tornamos estranho o que nos
eacute proacuteximo e familiar
166
Figura 4 ndash A morte
Fonte O PATO A MORTE E A TULIPA 2009
mdash Vocecirc veio me buscar agora mdash Estou perto desde que vocecirc nasceu por via
das duacutevidas [] Eacute a tarefa da proacutepria vida cuidar do acidente e tambeacutem da
gripe e de todas as outras coisas que ocorrem a vocecircs patos118 Eu soacute digo uma
coisa raposa (ERLBRUCH 2009 paacutegs 4-7)
Ateacute o prezado momento do texto tratamos basicamente das primeiras aulas Para
natildeo depender unicamente da memoacuteria os colegas e eu bolamos uma atividade
Trouxemos duas reacuteplicas de cracircnios um mais realista tirando os olhos vermelhos e
brilhantes outro mais escurecido de porcelana e com um buraco na cabeccedila (para colocar
velas aromaacuteticas)
As caveiras passavam de matildeo em matildeo seguidas da admiraccedilatildeo pela turma 501 a
mais objetiva e espanto pela 502 a mais emotiva A turma 402 viveu a experiecircncia mas
natildeo chegamos a desenvolvecirc-la Houve ainda quem colocasse a foto de uma das cabeccedilas
como foto de fundo do celular Na hora falhamos por natildeo perguntarmos a causa da
admiraccedilatildeo aos alunos mas acertamos em perguntar do espanto
A turma 501 riu fez piada disse que era feia cheirou a caveira bateu nela se
aproximou como pocircde Natildeo que tivessem medo se mostraram curiosos mas natildeo
animados Perguntaram se era de verdade o Miqueias ateacute questionou a relevacircncia por
natildeo ser cabeccedila de cachorro De bebecirc natildeo era natildeo tinha moleira disse o Viniacutecius
118 Essa eacute a uacuteltima imagem do livro O pato a morte e a tulipa Entatildeo por que um coelho e natildeo um pato
Entendo que a histoacuteria se passa com um pato mas poderia ter acontecido com um coelho ou com uma
pessoa Cada um tem sua raposa e a morte acompanha a todos
167
Enquanto a turma 502 soacute queria fazer festa com a caveira a turma 501 se intrigou
Natildeo acredito na mera coincidecircncia de que exatamente na que teve as discussotildees mais
focadas na explicaccedilatildeo objetiva tenha se interessado mais em entender a aquele objeto
enquanto a turma da laacutegrima e do amor queria mais brincar Um estudo incipiente que
vislumbra uma diferenccedila com o lidar despreocupado ou natildeo
A ciecircncia e o que denominei emoccedilatildeo determinam as duas grandes linhas de
compreensatildeo da morte mas haacute uma terceira presente em todas e de maior presenccedila nos
uacuteltimos encontros a religiatildeo O conforto que a teacutecnica natildeo explicava e a esperanccedila que
faltava na presenccedila da morte preluacutedio de ausecircncia era oferecido pelo acalanto da
imortalidade A alma impereciacutevel o deus misericordioso que protege os bons e estaacute acima
da morte
Por exemplo na turma 501 o Washington disse que o cracircnio natildeo poderia
ressuscitar porque natildeo tinha corpo O Luiz nos lembrou natildeo poderia porque natildeo tinha
alma primeiro Deus precisaria devolver a alma ao corpo A vida estava na alma a carne
apenas a guarda Problematizamos ldquoSe a morte eacute uma questatildeo da alma porque mexer
com o corpordquo Seraacute que o embrulho precisa estar agrave altura do presente
Na 502 minha turma das emoccedilotildees deu para explicar tintim por tintim como se
processava a vida apoacutes a morte Mais seguros do que diziam afirmavam e sabiam Havia
menos tristeza entre os alunos naquele dia Assim falou a Julia ldquoQuando a gente morre
a gente natildeo sabe o que acontece Pode vir algum anjo [] quando vocecirc taacute dentro de um
caixatildeo vocecirc natildeo volta mais O espiacuterito fica laacute dormindo mas quando Jesus voltar ele
sobe Eu tenho certezardquo
Depois de uma concordacircncia geral a Julia continuou a relatar a existecircncia de trecircs
ceacuteus O primeiro seria o ceacuteu das nuvens e da chuva o segundo o ceacuteu do inimigo assim
ela disse e o terceiro seria o local de Deus Alguma mente brilhante entre risos e
jocosidade que infelizmente natildeo registramos o nome se pronunciou a respeito de 25
ceacuteus
Outras pessoas tambeacutem se pronunciaram sobre os trecircs ceacuteus uma delas propocircs ateacute
um desafio ldquoEstaacute na Biacuteblia qualquer uma catoacutelica evangeacutelica pode procurarrdquo (no
estado em que se encontravam as discussotildees todos queriam falar ao mesmo tempo a
turma estava agitada e os nomes natildeo tiveram seus aacuteudios registrados) Foi um espanto
168
entre os demais colegas e eu principalmente porque tiacutenhamos estudiosos de religiatildeo entre
noacutes e eles contestavam a veracidade daquelas informaccedilotildees
Em plena efusatildeo de opiniotildees um grupo estava distraiacutedo conversando Um dos
membros rindo falou ldquoAh gente parem de falar de morte parece macumbardquo poucos
prestaram atenccedilatildeo todavia pelo menos outras duas vezes ela repetiu se o que estaacutevamos
fazendo era macumba e se laacute era roda de macumba Fiquei feliz pelo material de pesquisa
mas entristecido pela opiniatildeo nitidamente preconceituosa
ldquoPor que falar de morterdquo ela perguntou na roda final de perguntas Eu perguntei
ldquopor que natildeo falar de morterdquo Pela religiatildeo eacute ofensivo ou desrespeitoso ao Senhor falar
de morte Somente as outras religiotildees falam sobre o tema (Isso para natildeo perguntar por
que natildeo falar de outras religiotildees)
Pude perceber que aquele grupo de pessoas estudantes de Caxias do quarto e
quinto ano fundamental tinha a realidade religiosa muito marcante em seus dias (pelo
menos duas alunas tinham parentes pastores) Tanto adultos quanto crianccedilas estatildeo
sujeitos agrave reprodutibilidade das opiniotildees Souza e Pereira (1998) defendem que o tempo
moderno estaacute regulado pela produtividade logo quanto mais raacutepido melhor Dessa
maneira entendo que o discurso religioso funciona tambeacutem nessa loacutegica e deseja se
afirmar com destreza e propriedade
A morte passa a ser um braccedilo da religiosidade pois essa consegue com primor o
que nenhuma outra verdade faz Suas soluccedilotildees datildeo por encerrada a questatildeo que natildeo
convive mais em misteacuterio A repeticcedilatildeo se processa a fala a liacutengua uacutenica do puacutelpito
Portanto somos conduzidos a pensar que a crianccedila eacute um pequeno adulto
Se a modernidade tem esse pensamento e a contemporaneidade faz uso sim dele
tambeacutem inventamos o soacute A crianccedila cresce em idade e reproduz o adulto que ela sempre
foi mas ela natildeo eacute soacute um adulto tambeacutem deteacutem singularidade Todo este trabalho mostra
o quatildeo originaacuterias eram suas posiccedilotildees reflexotildees e sentimentos caminhando
conjuntamente com a pretensatildeo de ser sobre ela
Se a crianccedila natildeo eacute soacute um pequeno adulto talvez o adulto tambeacutem seja uma crianccedila
grande embora natildeo soacute Se o adulto precisa se transmitir agrave crianccedila que ele se permita natildeo
esquececirc-la em si O cerne aqui se refere agravequela fluidez das idades de como a morte estaacute
presente a todos Por fim quando cerrarmos os olhos no sono das eras tenhamos a
169
serenidade da noite tranquila e nos lembremos por quaisquer meios que jaacute falamos da
morte e ela natildeo eacute uma estranha seja bem-vinda
Entonces recordar la infancia significa quizaacute preparar un mundo comuacuten [grifes
do autor] en el que el hecho de ser nintildeos no sea sinoacutenimo de imperfeccioacuten y
marginalidad ni donde devenir adultos tenga el sentido de una infancia
traicionada Aprender a concluir tratando de estar siempre a la altura de la
dignidad de esa despedida (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 16)
Reflexatildeo com a experiecircncia
Afinal aqui se trata de um homem por mais novo e diverso que seja com origem
Isto significa que ele estaacute num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos
e por fim sua forma de ser Esse eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita
alfabeacutetica119 a filosofia e a induacutestria
Nenhuma dessas revoluccedilotildees teacutecnicas chegaram sem cobrar um preccedilo pois cada
invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se para cada obra jaacute era preciso estar disposto a obrar
Eacute importante ratificar que o processo de transformaccedilatildeo da realidade natildeo eacute exclusivo do
homem ocidental mas talvez seja dessas caracteriacutesticas que nos unem a todos Nesse
sentido humanizar eacute proacuteprio do homem A questatildeo eacute que tipo de humanizaccedilatildeo eacute esta a
ocidental
Esse eacute o homem que vive a ilusatildeo Esse eacute o homem que vem perdendo seu contato
mais imediato e concreto com as coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que
nada mais eacute do que o desdobramento do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo das
coisas Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que
as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as
coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos
compreendecirc-las
119 Haacute um embate na Academia sobre a invenccedilatildeo da escrita alfabeacutetica A ideia neste trabalho natildeo eacute se
perder ldquona busca do primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica
fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo (HAVELOCK 1996
paacuteg 15)
170
A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana das coisas
mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa a ser nossa
possibilidade de ver as coisas Jaacute dizia o poeta que o universo natildeo seria uma ideia minha
mas sim minha ideia de universo eacute que seria uma ideia minha (PESSOA 2006 paacuteg 51)
Logo o que compreende eacute aquele que prende junto a si A ilusatildeo de poder
compreender tudo se faz principalmente por se tratar do caraacuteter ilusoacuterio com que nos
relacionamos com as coisas Natildeo lidamos mais com as singularidades preferimos seus
nuacutemeros estatiacutesticas o sabor de uma banana ou maccedilatilde cedem lugar ao conjunto das frutas
quantitativamente sem gosto A morte natildeo eacute mais uma manifestaccedilatildeo do real tanto quanto
respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser superado basta termos mais
conhecimentos a respeito
Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como
tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de
novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma
forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia
murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos
171
Exerciacutecios de ser crianccedila
Objetivo geral
Incentivar a autorreflexatildeo e o questionamento do senso comum tanto de si quanto
dos demais
Objetivo especiacutefico
A partir de poemas do livro Exerciacutecios de ser crianccedila de Manoel de Barros os
alunos satildeo convidados a pensar o que chamamos de crianccedila isto eacute eles mesmos Outro
desdobramento estaacute em como eacute possiacutevel algueacutem que natildeo seria crianccedila fazer esse
exerciacutecio por exemplo os professores e o autor Um terceiro encaminhamento diz
respeito ao contato com o texto literaacuterio e a relaccedilatildeo com a linguagem poeacutetica
Proposta para a atividade
Pensada para um grupo de crianccedilas entre 9 e 10 anos O mestre instigador apoacutes
ter se ambientado com a turma apresenta uns poemas do livro mencionado Conforme os
recursos da instituiccedilatildeo isso seraacute feito da forma que for mais adequada como uma
exposiccedilatildeo com os poemas em cartolinas (isso poderia ter sido uma atividade preacutevia entre
os alunos) expocirc-los no datashow e ler alguns com a turma ou mesmo ler direto no livro
para eles mas eacute importante que eles tenham como reler o poema No caso optamos por
uma mistura de cartolinas e exemplares do livro dividimos em grupos de cinco e eles
deveriam fazer um comentaacuterio a respeito Segue um dos poemas do livro citado
172
Exerciacutecios de ser crianccedila
No aeroporto o menino perguntou
mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho
O pai ficou torto e natildeo respondeu
O menino perguntou de novo
mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho triste
A matildee teve ternuras e pensou
Seraacute que os absurdos natildeo satildeo as maiores virtudes
da poesia
Seraacute que os despropoacutesitos natildeo satildeo mais carregados
de poesia do que o bom senso
Ao sair do sufoco o pai refletiu
Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com
as crianccedilas
E ficou sendo (BARROS 2010 paacuteg 469)
Um fator relevante para a dinacircmica aqui executada eacute a participaccedilatildeo do professor
ou coordenador na atividade Isto quer dizer sentar em grupo debruccedilar-se sobre um
poema e engendrar um comentaacuterio Natildeo para se sobressair nem engabelando um
simulacro participativo qualquer mas simplesmente ler e interpretar como todos os
outros Satildeo poemas curtos e simples embora profundos Algo em torno de 5 a 10 minutos
para a leitura e discussatildeo Pode ser que em algum momento o professor precise agir por
exemplo se a turma se dispersar em falatoacuterio excessivamente alto Natildeo tem jeito eacute
preciso intervir poreacutem tente natildeo deixar de fazer parte da atividade com a turma
Na hora dos comentaacuterios tudo vai depender das perguntas suscitadas Cada grupo
deveraacute apresentar seu poema para a turma A seguir alguns exemplos caso a turma tenha
dificuldade como se exercita ser crianccedila Ou assertivamente ser crianccedila eacute um exerciacutecio
logo natildeo se eacute crianccedila sem praticar ser crianccedila Ainda a relaccedilatildeo autor e obra foi
problematizada no sentido de compreender como um senhor de idade referindo-se a
Manoel de Barros conseguia ser crianccedila ou se ele se exercitava para natildeo engordar a
crianccedila interior dele e natildeo ter mais focirclegos para brincar (com as palavras)
O menino que carregava aacutegua na peneira
Eu tenho um livro sobre aacuteguas e meninos
Gostei mais de um menino que carregava aacutegua na peneira
A matildee disse que carregar aacutegua na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele
para mostrar aos irmatildeos
A matildee disse que era o mesmo que catar espinhos na aacutegua
O mesmo que criar peixes no bolso
O menino era ligado em despropoacutesitos
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos
173
A matildee reparou que o menino gostava mais do vazio do
que do cheio
Falava que os vazios satildeo maiores e ateacute infinitos
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar aacutegua na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que
carregar aacutegua na peneira
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviccedila
monge ou mendigo ao mesmo tempo
O menino aprendeu a usar as palavras
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras
E comeccedilou a fazer peraltagens
Foi capaz de interromper o voo de um paacutessaro botando
Ponto no final na frase
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela
O menino fazia prodiacutegios
Ateacute fez uma pedra dar flor
A matildee reparava o menino com ternura
A matildee falou Meu filho vocecirc vai ser poeta
Vocecirc vai carregar aacutegua na peneira a vida toda
Vocecirc vai encher os vazios com as suas peraltagens
E algumas pessoas vatildeo te amar por seus despropoacutesitos (BARROS 2010 paacutegs
469-470)
Outra possibilidade de realizaccedilatildeo eacute passar o mesmo poema a todos O que eacute
indicado a turmas muito tiacutemidas ou com dificuldade de abertura ao tipo de atividade
Nesse caso um poema maior eacute preferiacutevel para transcorrer com os comentaacuterios Uma dica
eacute nunca subestimar o oacutebvio Perguntas do tipo como eacute possiacutevel carregar aacutegua na peneira
pode gerar discussotildees acaloradas Algumas crianccedilas vatildeo ateacute sugerir que jaacute carregaram
focando no ato concreto de levar uma peneira agrave agua e retornar dela aos pingos A
linguagem pode ser encarada ao peacute da letra como tornar-se mais abstrata Seja uma ou
outra e ateacute ambas numa experiecircncia poeacutetico-filosoacutefica precisam ser encaradas como
manifestaccedilotildees de verdade e desdobradas em seus meandros Gotas de aacutegua na peneira
matam sede curta e servem aos despropoacutesitos do poeta brincalhatildeo
Apoacutes a exposiccedilatildeo de todos que assim desejem cabe agora dar corpo agrave profusatildeo
de ideias Muito provavelmente alguns dos comentaacuterios teratildeo a ver entre si eacute
aconselhaacutevel relacionaacute-los ldquoOlhem o que fulano disse eacute muito parecido com o que
sicrano falourdquo Outros se oporatildeo ldquoJaacute beltrano acredita que isso eacute o oposto agravequilo que
fulano disserdquo E ateacute haveraacute os confusos que merecem maiores detalhes Nesses casos
solicitar a recolocaccedilatildeo do problema eacute prudente e pode ensejar uma nova perspectiva para
a questatildeo
174
Com as observaccedilotildees mais ou menos reunidas agora eacute o momento de expor um
comentaacuterio sobre elas e sobre os poemas Ter algum esquema do que dizer eacute muito
importante para natildeo se perder e passar confianccedila aos alunos poreacutem dialogar com os
pontos de vista apresentados eacute vital do contraacuterio seria mais uma aula como outra
qualquer Cerca de 15 minutos entre a composiccedilatildeo das relaccedilotildees e a explanaccedilatildeo
Por fim peccedila que cada um tendo em vista o que foi discutido escreva o que eacute ser
crianccedila para ela e se desejar leia em voz alta e comente para a turma Como nem o livro
nem talvez as cartolinas os alunos poderatildeo ter para si ao escrever o que eacute ser crianccedilas
eles tecircm a oportunidade de se expressarem e poderatildeo guardar o escrito para futuros
possiacuteveis pensamentos
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar poemas e solicitar que cada um ou cada grupo faccedilam
comentaacuterios a respeito ndash 10 minutos
3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e expor um comentaacuterio participando do
diaacutelogo ndash 15 minutos
4 Escrever e expor o que eacute ser crianccedila ndash 10 minutos
Relato da experiecircncia
Abaixo segue a transcriccedilatildeo de uma atividade realizada em meados de 2014 por
mim e Vanise Dutra na Escola Municipal Joaquim da Silva Peccedilanha Tendo havido um
encontro de ambientaccedilatildeo na semana anterior desta experiecircncia os alunos tinham sido
levados ao paacutetio para brincar e como dever de casa eles deveriam escrever sobre o que
era ser crianccedila para eles
175
Vanise mdash Entatildeo gente Olha soacute Vocecircs lembram o que a gente fez na semana
passada
Fernando mdash A gente brincou laacute fora A gente treinou nesse exerciacutecio de ser
crianccedila A gente tentou treinar aiacute A gente brincou Fez atividade laacute fora Foi
muito divertido
Vanise mdash Foi
Fernando mdash Ateacute a tia Janaiacutena brincou que eu vi (Risos)
Professora mdash Que Janaiacutena Eacute Alessandra
Fernando mdash Eacute Alessandra Eu esqueci Eacute que eu vi Janaiacutena no caderno
Vanise mdash E como que foi esse exerciacutecio Esse exerciacutecio laacute fora de ser crianccedila
Vocecircs acham que tem alguma relaccedilatildeo com o exerciacutecio que a gente fez laacute fora
de ser crianccedila com o exerciacutecio de escrever
Fernando mdash Eu acho que sim porque uma das coisas de ser crianccedila neacute
coisas que as crianccedilas fazem no exerciacutecio de ser crianccedila eacute brincar e nesse dia a
gente brincou muito Entatildeo acho que sim que tem alguma coisa a ver
Notemos que propositalmente pomos as crianccedilas para brincar a fim de que a
resposta agrave pergunta de ser crianccedila orbite pelos lugares comuns de brincadeira e jogo O
proacuteprio Manoel de Barros vai jogar com essa ideia Com a introduccedilatildeo dos poemas
brincadeira e o jogo alargam sentidos de modo que adultos podem brincar e brincadeira
de crianccedila natildeo precisa ser bola ou gude mas palavras recolocando a questatildeo de ser
crianccedila como ser adulto ou ser velho sob outra perspectiva
Vanise mdash E o que a gente fez aqui dentro Tem relaccedilatildeo
Fernando mdash Tambeacutem Eacute uma brincadeira que a faz a gente imaginar coisas e
pensar mais Crianccedila natildeo soacute brinca tambeacutem tem aquelas coisas que tem que
pensar coisas de escola coisas de trabalho natildeo Vaacuterias coisas que a gente
pensa aqui a gente brinca na mente brinca com a mente vai pensar de vaacuterias
formas
Vanise mdash Ouviram isso que o Fernando falou Que a gente que crianccedila natildeo
soacute brinca mas que crianccedila tambeacutem pensa
Andreacute mdash Eacute deixa eu fazer uma pergunta Escrever tambeacutem pode ser uma
brincadeira
Camili mdash Que escrever eacute um exerciacutecio de ser crianccedila Eu acho que pode ser
uma brincadeira
Vanise mdash Por quecirc
Camili mdash Ah natildeo sei Porque a gente se diverte com algumas coisas
escrevendo
Willian mdash Pode porque a gente gosta de desenhar
Gustavo mdash Respondendo agrave pergunta do Andreacute se escrever eacute exerciacutecio de ser
crianccedila Eu acho que sim porque tem muitas pessoas que jogam adedanha ali
no papel e eacute divertido
Interessante notar a inversatildeo que eacute feita Natildeo eacute brincar que tem que ser divertido
mas se traz diversatildeo eacute por ser uma brincadeira Nesse vieacutes coisas como escrever (que se
iguala no contexto a desenhar) e pensar podem ser luacutedicas e apraziacuteveis
176
Fernando mdash Queria soacute lembrar que exerciacutecio de ser crianccedila natildeo eacute soacute o brincar
O exerciacutecio de ser crianccedila eacute a gente se divertir Por isso que os adultos eles
tambeacutem fazem o exerciacutecio de ser crianccedila Porque muitas vezes vamos dizer
assim saem com os amigos aiacute se divertem riem acho que soacute o fato de rir jaacute
eacute um exerciacutecio de ser crianccedila porque vocecirc estaacute se divertindo Vocecirc estaacute
trazendo aquela felicidade de volta assim Natildeo que vocecirc seja triste mas vocecirc
estaacute trazendo aquela felicidade Soacute o fato de vocecirc rir vocecirc jaacute tem uma ideia do
exerciacutecio de ser crianccedila Que crianccedila natildeo vamos dizer que eacute boba mas em
todo momento faz uma piada ri essas coisas
Vanise mdash Vocecircs estatildeo ouvindo isso gente que ele estaacute falando Natildeo eacute soacute de
brincar segundo o Fernando que tem a ver com o exerciacutecio de ser crianccedila
Joatildeo mdash Eu quero responder a pergunta da Vitoacuteria
Vanise mdash Qual eacute a brincadeira que vocecirc mais gosta
Joatildeo mdash Eu natildeo sou muito de brincar mdash Joatildeo fala com um tom seacuterio mdash Meu
negoacutecio eacute mais negoacutecio de instrumento essas coisas Meu pai tambeacutem eacute
muacutesico Aiacute aos domingos eu vou pra casa dele e a gente fica laacute tocando
instrumento Eu em casa quase natildeo brinco Soacute mexo no computador e depois
fico tocando bateria
Vanise mdash E vem caacute Tu acha que isso eacute o quecirc Que isso eacute um exerciacutecio de ser
crianccedila que natildeo eacute Que eacute brincar que natildeo eacute brincar Quando vocecirc estaacute laacute com
o teu pai
Joatildeo mdash Pra mim eacute tia Da mesma maneira eu brincando com meus amigos
na rua eu me divirto Eu com meu pai brin tocando instrumento eu tambeacutem
me divirto Eu tocando na igreja eu me divirto Pra mim eacute tia
A muacutesica aparece aqui como algo de crianccedila Novamente uma inversatildeo que vem
bem a calhar Natildeo seria o exerciacutecio de ser crianccedila que definiria a crianccedila mas jaacute sendo
crianccedila sua existecircncia eacute um exerciacutecio por si soacute Isso eacute uacutetil para romper paradigmas de que
brincadeiras satildeo coisas apenas de crianccedila Tambeacutem adultos podem brincar assim como
crianccedilas podem exercitar-se agrave medida que tocam um instrumento
Natildeo eacute sinocircnimo de besteira Ela natildeo eacute boba Seu pensamento e sua diversatildeo natildeo
necessitam recair sempre nos mesmos lugares e da mesma forma Joatildeo se diverte com seu
pai e ambos partilham da muacutesica enquanto morada Nem o pai volta a ser crianccedila nem o
filho vira adulto eles instauram um tempo cronologicamente enfraquecido sem idades
precisaacuteveis Tocando um com o outro exercem uma relaccedilatildeo familiar proacutepria e envolvente
somente possiacutevel por quem se dispotildee a experienciar o instante Natildeo eacute uma questatildeo de
vontade vale dizer mas de entrega
177
Reflexatildeo com a experiecircncia
Nem sempre eacute faacutecil dar cabo do que temos em mente Tudo se torna mais
complicado se nosso ponto de partida pretende natildeo determinar caminhos preacutevios ou
meacutetodos verdadeiros apenas e fundamentalmente oferecer sugestotildees Trata-se pois de
propor um convite para caminhar agravequeles que desejam inspiraccedilatildeo para novas ideias
diaacutelogo entre o seu e este modo de fazer ou ateacute mesmo um pontapeacute inicial
Quaisquer que sejam as circunstacircncias eacute vital se colocar agrave disposiccedilatildeo de pensar e
escutar as questotildees aqui apresentadas e a maneira como elas satildeo tratadas sem
preconceitos ou diligecircncias desnecessaacuterias Isso porque do contraacuterio corre-se o risco de
deixar cair por terra uma possibilidade construtiva de conhecimento para incorrer em
meras prescriccedilotildees ou em criacuteticas assaz severas sem o merecido cuidado ndash natildeo com o texto
muito menos com o autor ou o professor mas com o pensamento Pensar sempre inspira
cuidados
178
A cegueira da visatildeo
Objetivo geral
Promover uma atividade que aguce a atenccedilatildeo a outros sentidos aleacutem de levantar
questionamentos sobre a confianccedila no que natildeo temos controle
Objetivo especiacutefico
Em pares um participante seraacute vendado e o outro natildeo O que estaacute vendado deveraacute
guiar pelo espaccedilo aquele que pode ver Essa eacute uma versatildeo da tradicional experiecircncia de
se vendar para deixar ser guiado por outro a fim de exercitar a confianccedila Poreacutem aqui o
desafio toma tons mais radicais para ambos quem natildeo vecirc precisa se empenhar para
confiar nos demais sentidos e arcar com a responsabilidade por si e por outrem ainda que
suas possibilidades estejam limitadas quem vecirc precisa se esforccedilar para natildeo assumir o
papel que natildeo eacute dele ou seja de guiar e assim aceitar os erros e equiacutevocos do guia
Proposta para a atividade
Tatildeo simples quanto complexa a depender de seu modo de execuccedilatildeo De material
didaacutetico apenas fitas de um tecido qualquer para cobrir os olhos O tempo de execuccedilatildeo
pode variar bastante mas entre 5 a 10 minutos costumam ser suficientes Ratificamos
que para cada nova dinacircmica conveacutem a realizaccedilatildeo da ambientaccedilatildeo conforme descrita
em ldquoQuando a vida nos diz natildeordquo
Originalmente ldquoA cegueira da visatildeordquo foi pensada para uma turma de 20 25 alunos
entre 8 e 11 anos mas fazecirc-la com uma turma inteira eacute bem trabalhoso Entatildeo para uma
179
turma menor ou talvez sortear alguns alunos seja mais pertinente Por outro lado eles
podem realizar a experiecircncia por eles mesmos com facilidade bastando um coleguinha
ou irmatildeo Outro ponto positivo estaacute no fato de que este exerciacutecio funciona bem para
idades mais avanccediladas conforme seraacute relatado adiante
Primeiramente eacute exposto aos possiacuteveis participantes o que se pretende fazer Dois
em dois um vendado e o outro natildeo O que natildeo enxerga deveraacute guiar aquele que enxerga
Quem guia deve estar ciente de sua responsabilidade e tentar executaacute-la da melhor forma
possiacutevel Quem eacute guiado deve refrear o iacutempeto corretor e deixar-se levar confiando no
guia A princiacutepio tudo parece uma brincadeira mas urgimos cuidado de quem guia Uma
digressatildeo breve sobre a confianccedila e sobretudo confiar como natildeo deter o controle pela
visatildeo vem a calhar Apoacutes entregar as faixas a cada dupla
Na experiecircncia propriamente dita deixe a dupla ambientar-se e em seguida pode-
se sugerir pequenas tarefas ou se o espaccedilo for amplo que ousem exploraacute-lo O importante
eacute haver deslocamento e o medo inicial caminhar em tensatildeo com a confianccedila
Diferentemente das outras atividades natildeo eacute aconselhaacutevel participar desta pois aleacutem dos
comandos eacute necessaacuterio estar em alerta e julgar quais riscos e satildeo convenientes e podem
vir a contribuir com a discussatildeo
Ao teacutermino eacute feita uma rodada das primeiras impressotildees e assim como em
ldquoExerciacutecios de ser crianccedilardquo eacute importante criar relaccedilotildees entre os diversos comentaacuterios
dando clareza e possibilitando uma discussatildeo mais profiacutecua Como jaacute houve uma
explanaccedilatildeo anterior tome cuidado para natildeo monopolizar a atividade com sua fala e ao
inveacutes motive e instigue as observaccedilotildees dos participantes e dos expectadores Cerca de 15
minutos deve ser o suficiente Relembrando que caso a discussatildeo esteja fluida pode ser
mais interessante adiar a proacutexima etapa da atividade para se aprofundar na atual
Por fim inverta os papeacuteis nas duplas e convide-os a se pocircr no lugar do outro Com
mais tempo ou turmas menores esta etapa pode vir logo em seguida da primeira
experiecircncia com a venda Isso tende a contribuir em muito com a discussatildeo
180
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar a atividade expor um comentaacuterio e entregar as faixas ndash 15
minutos
3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e instigar observaccedilotildees ndash 15 minutos
4 Inverter os papeacuteis nas duplas ndash 5 minutos
Relato da experiecircncia
Tendo feita a explanaccedilatildeo que natildeo necessariamente deve seguir essa
argumentaccedilatildeo eacute hora de prosseguir com a experiecircncia Lembrando que o intuito natildeo foi
ministrar uma aula (embora nada impeccedila) somente foi uma provocaccedilatildeo para suscitar mais
duacutevidas do que entendimentos claros O importante eacute questionar o domiacutenio do controle
pela visatildeo
Um detalhe importante Por vezes o tempo iraacute se perder num ponto inesperado
Como natildeo haacute um rigor curricular nem avaliativo forte cabe ao professor medir se vale a
pena ou natildeo interromper Ateacute o momento foram contabilizados 16 minutos e 33
segundos
Dando seguimento trazemos a transcriccedilatildeo comentada da experiecircncia feita com
duas jovens Thayrine e Patriacutecia que se propuseram a realizaacute-la e concordaram em ter
suas falas aqui colocadas
Andreacute mdash Bom fizemos questionamentos muito interessantes Agora gostaria
de propor uma atividade para que corporifiquemos o que acabamos de discutir
Se eu pudesse resumir tudo em uma questatildeo ela seria ldquoNatildeo se trata de confiar
na visatildeo dos outros tambeacutem nem de confiar demais em si mesmo enquanto
subjetividade enquanto um eu mas talvez uma confianccedila no conviterdquo Tendo
isso em mente eu gostaria de convidar a uma de vocecircs para que fosse vendada
(podemos trocar depois) e que a pessoa com a venda guiasse a outra
181
Neste momento Patriacutecia se prontifica a ser vendada o que gera protestos de
Thayrine Natildeo que ela quisesse a venda para si mas por achar que Patriacutecia conhecia mais
o local do que ela e por isso teria uma noccedilatildeo espacial muito boa Natildeo se apresentou
como algo tatildeo importante assim o conhecimento preacutevio pois mesmo que ela conhecesse
bem o espaccedilo eacute um entendimento baseado na visatildeo Somente o movimentar-se com os
olhos cerrados jaacute eacute o suficiente para arremessaacute-la a um ambiente novo semelhante a
visitar uma paisagem qualquer que somente haviacuteamos visto por foto Colocada a venda
retomamos a atividade
Andreacute mdash Pois bem vocecirc que jaacute conhece este ambiente haacute anos estaacute insegura
para caminhar Vocecirc estaacute acostumada com ele pelos seus olhos mas o instante
eacute cego Por outro lado Thayrine vecirc ambas fazem parte do mundo que eacute uma
moradia mas de forma diferente e vocecirc tem a responsabilidade dos anos
[refiro-me agrave Patriacutecia que era mais velha] Na morada vocecirc sabe onde estatildeo os
pratos e talheres onde o papel higiecircnico fica guardado quando acaba no
banheiro em qual garrafa se bebe ou natildeo pelo gargalo mas e agora
Patriacutecia guie Thayrine pelos cocircmodos Thayrine mesmo que vocecirc possa
enxergar permita que Patriacutecia a conduza por esta bagunccedila adentro Se vocecircs
forem dar de cara na parede aproveitem e sintam o cheiro dela Se um copo
quebrar aproveitem a visatildeo do belo buquecirc de cacos de vidro e o som do
estrondo
A princiacutepio ela foi deixada sem mais orientaccedilotildees poreacutem ao longo da experiecircncia
optou-se por designar pequenas funccedilotildees a serem desempenhadas A falta de um propoacutesito
imediato aumenta a desorientaccedilatildeo o que contribuiacutea para um deslocamento reduzido As
duas comeccedilaram a caminhar sem rumo mas com as pequenas missotildees apanhar um objeto
ou ir ateacute certo canto da sala a exigecircncia e o envolvimento delas foi maior Patriacutecia estava
descalccedila ela tateou a parede e se dirigiu para o corredor que liga os cocircmodos
Patriacutecia mdash Isso mesmo Thayrine deixe eu topar com o peacute ou bater com a
cabeccedila
Thayrine mdash Que medo
Andreacute mdash Patriacutecia Thayrine estaacute com sede vocecirc poderia pegar um copo
drsquoaacutegua para ela
Havia uma garrafa grande de vidro que quase foi derrubada assim que Patriacutecia se
pocircs a procurar um copo para servir aacutegua Em seguida foram solicitadas outras duas
tarefas e depois retornamos para o local de iniacutecio e recomeccedilarmos com Thayrine a guiar
Determinou-se outras duas tarefas diferentes das anteriores apenas a do copo drsquoaacutegua se
182
repetiu a pedido de Patriacutecia Esta parte da atividade contabilizou 11 minutos e 10
segundos
Foi iniciada a etapa da confrontaccedilatildeo entre o que haviacuteamos discutido na explanaccedilatildeo
e a praacutetica que acabamos de fazer Conveacutem perceber que nem sempre os rumos da
discussatildeo satildeo os mesmos jaacute traccedilados a exemplo aqui ela descambou para a situaccedilatildeo
professor-aluno em sala de aula Eacute importante costurar com esse conhecimento insurgente
e espontacircneo Inclusive debates anteriores podem servir de base na construccedilatildeo da
explanaccedilatildeo da atividade seguinte
Andreacute mdash O que vocecircs acharam da experiecircncia
Patriacutecia mdash Eu gostei bastante
Thayrine mdash Eu tambeacutem mas me senti um pouco perdida no iniacutecio
Andreacute mdash E o que vocecircs gostaram
Patriacutecia mdash O fato de ter de fazer as coisas sem enxergar conjuntamente com
a funccedilatildeo de guia
Andreacute mdash Vocecirc sentiu que guiou ou recebeu algum sinal advindo dos olhos
dela
Patriacutecia mdash Natildeo ela pousou suavemente a matildeo na minha e assim foi a
experiecircncia toda
Andreacute mdash Quando vocecirc foi conduzida sentiu que a reciacuteproca foi verdadeira
Patriacutecia mdash Sim natildeo tivemos problema quanto a isso
Andreacute mdash Vocecircs acham que teria alguma diferenccedila se estivessem sozinhas
Thayrine mdash Eu sou muito individualista natildeo estava pensando muito na
Patriacutecia mdash Estava mais preocupada em me localizar
Andreacute mdash Mas vocecirc estava a guiaacute-la natildeo
Thayrine mdash Ainda assim me preocupava mais comigo afinal ela podia
enxergar natildeo havia como quebrar ou esbarrar em algo
Andreacute mdash Quanto a vocecirc Patriacutecia
Patriacutecia mdash Eu tambeacutem natildeo me preocupei muito com ela mas suponho que se
estivesse sozinha a experiecircncia natildeo seria tatildeo prazerosa
Thayrine mdash Para quem estaacute vendo eacute muito interessante estar bem proacuteximo e
poder vivenciar todos os descaminhos que a outra pessoa percorre
Andreacute mdash A meu ver o aacutepice da experiecircncia foi quando Patriacutecia quase
derrubou a garrafa e vocecirc nada fez para impedir Eacute a ideia do convite permitir-
se seguir os descaminhos de outrem Quem enxerga deteacutem um conhecimento
distinto e junto com ele um poder pois natildeo se trata de uma experiecircncia de
conhecer pelo contraacuterio ela convida a abrir matildeo momentaneamente do que jaacute
sabemos para experimentar algo novo
Patriacutecia mdash Bem se eu soubesse que havia uma garrafa ali certamente teria
desviado
Andreacute mdash Ao mesmo tempo natildeo eacute como se fosse um mundo completamente
proibido Tem-se acesso a ele soacute que por uma via diversa da qual se estaacute
habituado Haacute aromas tipos de superfiacutecie ruiacutedos etc
Andreacute mdash Agora pensando um pouco na discussatildeo do iniacutecio a partir dessa
experiecircncia vocecircs conseguem relacionar com o que haviacuteamos conversado
Thayrine mdash Eu acho que sim por essa questatildeo de o homem abandonar uma
necessidade de controlar o conhecimento para algueacutem e deixar que a pessoa se
vire mas foi bem mais libertaacuterio nesse sentido Quando eu a guiei natildeo teve
nenhuma interferecircncia no que eu estava fazendo Ela realmente me deixou
fazer tudo Se no caso eu fizesse o papel de aluno
183
Andreacute mdash Um momento A meu ver se eu tomasse essa experiecircncia como uma
alegoria da sala de aula o professor seria o cego Natildeo eacute ele quem estaacute
conduzindo
Patriacutecia mdash Eu pensei o contraacuterio ao que vocecirc estaacute dizendo porque de certa
forma apesar de ele estar guiando eacute como se ele natildeo tivesse conhecimento
natildeo
Andreacute mdash Pode ser o guia tem um conhecimento assim como o guiado soacute
satildeo diferentes Interessante que mesmo eu orientando vocecircs para natildeo
interferirem por vezes sua visatildeo de guiada natildeo consegue se ausentar Isso faz
parte eacute uma tensatildeo na verdade entre controle e descontrole Nem um nem
outro mas ambos Esse eacute o desafio
Thayrine mdash Deixe-me ver se eu entendi A pessoa que estaacute enxergando abre
matildeo do seu conhecimento para deixar que o outro assuma Ou seja quem
enxerga tenta guiar de alguma forma
Patriacutecia mdash Eu concordo com ela
Andreacute mdash Difiacutecil natildeo guiar Estamos habituados a isso Tambeacutem tem o fato de
por mais que possa haver um esforccedilo de pacificaccedilatildeo eacute muito difiacutecil nos
anularmos totalmente Creio que natildeo eacute possiacutevel jamais saber todo o ministeacuterio
Pois bem muito bom poreacutem a hora urge alguma consideraccedilatildeo final
Patriacutecia mdash Gostaria de ressaltar que concordo com Thayrine O aluno vendado
eacute de certa forma o professor guiado justamente porque a pessoa que estaacute
sendo guiada abre matildeo de seu conhecimento para se permitir ser guiada pelo
outro Na verdade o outro mostra a vocecirc as necessidades dele para que vocecirc
possa em alguma medida interferir Natildeo incisiva mas participativamente
Thayrine mdash Tem outra questatildeo que parte do pressuposto de que vocecirc sabe
tem algum conhecimento que aquela pessoa natildeo tem O que estaacute vendo de
algum modo tem um conhecimento que o outro natildeo tem mas deixando-se
guiar percebe que a outra pessoa tambeacutem tem um conhecimento diferente do
seu Ah Eu estava sentindo as coisas de outra forma diferente de Patriacutecia eu
tinha que tocar em tudo eacute diferente
Patriacutecia mdash Eacute outra forma de vivenciar de encontrar o mesmo caminho soacute que
por outras vias
Neste ponto encerramos a atividade Interessante perceber como a questatildeo do
controle e descontrole tomou rumos proacuteprios Numa situaccedilatildeo com outras pessoas a
discussatildeo certamente seria distinta O bate-papo final durou 9 minutos e 6 segundos Ao
todo foram cerca de 45 minutos
Reflexatildeo com a experiecircncia
De todos os cinco sentidos a visatildeo talvez seja o mais exaltado em nossa sociedade
Afirmaccedilatildeo que pode ser verificada de muitas maneiras uma delas se refere agrave luz Ela que
eacute possibilidade de visatildeo nos eacute apresentada como algo fundamental tanto pela via sacra
quanto pela sinoniacutemia com razatildeo Em Gecircnesis Capiacutetulo 1 Versiacuteculo 3 (BIacuteBLIA 1962)
184
temos a famosa passagem ldquoFiat luxrdquo na qual a divindade faz com que haja luz em
detrimento das trevas e a partir desse ato haacute vida De modo semelhante ldquoa racionalidade
eacute vista como a essecircncia e o destino do ser humanordquo (BIESTA 2013 paacuteg 31) no seacuteculo
XVIII conhecido tambeacutem como Seacuteculo das Luzes
Esta sociedade que vecirc acaba se definindo entre os limites do alcance de sua visatildeo
E a luz ora pelos deuses ora pela razatildeo possibilita que se possa ver isto eacute definir
Quando Heidegger (2008 paacuteg 41) se refere agrave ciecircncia (intimamente relacionada com a
razatildeo) como a ldquoteoria do realrdquo ele dialoga diretamente com o homem que vecirc e que precisa
ver para ser homem
O homem que vecirc se habituou com a visatildeo ele entende o mundo a sua volta por
esse sentido Um haacutebito que lhe trouxe conforto e seguranccedila A ciecircncia com sua exatidatildeo
traz seguranccedila Nesse vieacutes a teoria do real apresenta reminiscecircncias do sentido do verbo
grego theoreacutein contemplar perceber observar mas tambeacutem consultar um oraacuteculo
(LIDDELL SCOTT 1940) A luz da razatildeo permite que o homem veja o real assim como
o oraacuteculo permitia que o homem soubesse o desiacutegnio dos deuses
Natildeo podia o homem grego ter acesso ao desiacutegnio dos deuses senatildeo pelo oraacuteculo
Natildeo pode o homem atual ter acesso a seu mundo senatildeo pela luz da razatildeo Biesta (2013)
reconhece que o problema do homem racional (ou humanismo) eacute sua normatizaccedilatildeo do
que significa ser humano e consequentemente como compreender seu mundo Para entatildeo
corresponder a essa questatildeo o autor vai propor repensar o que entendemos por homem
Todavia em vez de perguntar pelo que eacute o homem a pergunta agora interroga a respeito
de onde o homem se torna presenccedila
Uma mudanccedila nada banal de como lidar com a questatildeo Enquanto a primeira
remete a si ao homem que (se) vecirc a segunda remete ao outro ao lugar no qual o homem
que vecirc se encontra uma pergunta pelo ser a outra pela presenccedila Sutilmente a questatildeo
engendra outra perspectiva de se dispor a perguntar pelo ser que tambeacutem eacute ser da
presenccedila e pela presenccedila do ser Trata-se de enfoque afinal ambas as perguntas satildeo feitas
pelo homem atual a saber noacutes mesmos
Perguntar pela presenccedila tambeacutem pergunta pelo ser mas tentando resgatar o que
haacute de mais concreto e mais perto embora nem sempre acessiacutevel deste ser Quando se
pergunta pela presenccedila assume-se que a essecircncia estaacute aqui independentemente do que
se acredita que ela seja ou poderia ser Se algueacutem pergunta eacute porque quer saber algo mas
185
a pergunta pela presenccedila natildeo comporta a seguranccedila de uma definiccedilatildeo propotildee o convite
da visita agrave presenccedila do outro
Por visita novamente o professor Biesta (2013) nos esclarece uma importante
distinccedilatildeo entre empatia turismo e visita A empatia e o turismo eacute uma adequaccedilatildeo de
sujeitos a outros sujeitos A visita por outro lado tenta manter as distacircncias entre cada
parte envolvida em um lugar comum Desta forma eacute assumido o desafio de amar o
proacuteximo como o proacuteximo que ele eacute ao inveacutes de como noacutes mesmos impondo ao outro
nossa forma de ver o mundo
O que podemos fazer sem luz Danccedilar eacute uma possibilidade O danccedilarino que olha
para os proacuteprios peacutes natildeo estaacute a danccedilar pois estaacute ocupado a olhar para os peacutes O deus que
danccedila (NIETZSCHE 1981) nunca sequer os viu ele confia no chatildeo e no ritmo
Naturalmente esta confianccedila natildeo vem sem risco Noacutes mortais mais do que os deuses
estamos sujeitos agrave violecircncia do mundo queremos possuir o diferente para nos
salvaguardar do que nos desafia irrita perturba (BIESTA 2013) e mata
Logo natildeo ver ou abrir matildeo da visatildeo natildeo pode ser resolvido num mero acender
ou apagar das lamparinas Eacute abraccedilar uma realidade com espinhos e perceber que nem tudo
poderaacute ser calculado e muito menos medido pela sua funcionalidade O homem que natildeo
valoriza a inutilidade vecirc a danccedila unicamente como adequaccedilatildeo aos passos coreograacuteficos
ele natildeo tem tempo para perder tempo para suspender o tempo fabril (MASSCHELEIN
2010) e experienciar a brevidade do mundo para arriscar e provar e natildeo gostar e
recomeccedilar de outra maneira Natildeo eacute capricho do cego danccedilar sem ver Assim como natildeo
devemos encarar a suspensatildeo da visatildeo como excentricidade mas sim por uma visita
(BIESTA 2013) a lidar com um mundo que natildeo conhecemos nem podemos conhecer
186
Consideraccedilotildees finais
Em linhas gerais tentamos relacionar entre si trecircs questotildees principais com o
intuito de habitar o terreno das praacuteticas mais adiante o que eacute tradiccedilatildeo o que eacute filosofia e
o que eacute linguagem Naturalmente que haacute uma infinidade de respostas Ratificando a accedilatildeo
de convidar seguem alguns encaminhamentos possiacuteveis que iratildeo ajudar na compreensatildeo
deste trabalho
A tradiccedilatildeo e o ensino andam juntos Este transmite a mensagem que aquele deixou
ao longo dos anos Concomitantemente aprendemos a crer na tradiccedilatildeo e em sua
transmissibilidade O modo como encaramos um natildeo se distancia muito do jeito que
lidamos com o outro a tal ponto que o ensino da tradiccedilatildeo se confunde com a tradiccedilatildeo do
ensino Nesse sentido natildeo eacute de se espantar que partir para estranhos rumos e diferentes
rotas gere algum abalo na maneira tradicional de ver as coisas Numa perspectiva mais
ampla somos e natildeo somos nossos pais assim como nossos filhos estatildeo destinados a ser
e natildeo ser agrave nossa imagem e semelhanccedila Nem a mensagem a ser transmitida costuma ser
assimilada de forma tatildeo inoacutecua sem alguma coisa de maacutecula e invencionice Por esse
motivo certo descontrole eacute mais do que bem-vindo eacute essencial
Prosseguindo o desenvolvimento das questotildees com as quais buscamos
familiaridade e em se tratando de experiecircncias de base filosoacutefica eacute interessante se
perguntar pela tradiccedilatildeo da filosofia Normalmente conceituaccedilotildees complexas e a sisudez
em seu trato se afinam com a filosofia e em contrapartida uma postura poeacutetica ou menos
centrada no conceito tendem a atrair repulsa O que chamamos de filosofia nem sempre
teve entendimentos afins com os atuais Nomeaccedilatildeo que instigava ideologias distintas sob
semelhante alcunha Inclusive aquelas definiccedilotildees e anedotas filosoacuteficas passaram por
modificaccedilotildees e solidificaccedilotildees no imaginaacuterio do pensamento de tal modo que pensar
aqueacutem ou aleacutem delas torna-se um esforccedilo tremendo
Refazer os passos que nos pisaram pisam e pisamos eacute conveniente Desde a
segregaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel ateacute o estabelecimento do domiacutenio da razatildeo o
pensamento soube se definir Eacute preciso desaprender Se o poeta foi expulso e com ele o
modo de ser poeacutetico tambeacutem a filosofia natildeo se encontra em bons lenccediloacuteis Achincalhada
de sandice e coroada de matildee de todas as ciecircncias enquanto foi esquecida propositalmente
187
no asilo das irrelevacircncias pelos filhos ingratos a maneira de dizer filosoacutefica eacute esvaziada
de importacircncia e soacute um pensamento disposto a pensar-se isto eacute uma filosofia capaz de
se questionar filosoficamente pode ousar um espaccedilo em nossa sociedade do controle
Conclui-se portanto que natildeo existe nada como uma existecircncia sem sentido Todo
existir significa um jeito de ver sentir pensar enfim ser A criacutetica da tradiccedilatildeo e
consequentemente da tradiccedilatildeo do pensamento estaacute intimamente vinculada com a criacutetica
de como somos o que somos Em outras palavras eacute perguntar o que eacute o ser a partir de
como se eacute Como natildeo deixar nossas respostas virarem soluccedilotildees mas permitirem a
recolocaccedilatildeo da questatildeo Como dizer sem definir nomear sem classificar Natildeo haacute
resultados garantidos soacute o horizonte e o misteacuterio que tanto esconde e nega quanto mostra
e ensina ldquoQuem quer passar aleacutem do Bojador Tem que passar aleacutem da dorrdquo (PESSOA
1934 paacuteg 64)
188
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DEDICATOacuteRIA
Agrave memoacuteria parte viva da tradiccedilatildeo de Maria da Guia
Motta de Oliveira Aladino Alexandrino da
Purificaccedilatildeo Antonio Borges de Oliveira e Ana Maria
Borges de Oliveira avoacutes maternos e paternos
respectivamente
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a todos por terem vindo agradeccedilo agravequeles que natildeo puderam mas
gostariam de ter vindo e agradeccedilo por isto aqui minha Dissertaccedilatildeo Agradecer por uma
obra sua parece estranho e ao mesmo tempo natildeo digo isso soacute por educaccedilatildeo claro
tambeacutem por educaccedilatildeo por gentileza em reconhecer o delicado gesto do deslocamento e
da disponibilidade de tempo que me concedem Mas principalmente pelo fato de
enxergar neste trabalho vaacuterias vozes vaacuterias matildeos e uma assinatura apenas que natildeo daacute
conta da magnitude das contribuiccedilotildees em sua na confecccedilatildeo
Para quem eacute daacute aacuterea quase como um bordatildeo eacute comum ouvirmos agradecer eacute
pensar (HEIDEGGER 1977b paacuteg 330) Por que isso Qual a semelhanccedila entre os dois
verbos No caso o autor tinha sido homenageado com o tiacutetulo de cidadatildeo honoraacuteria de
sua cidade natal Aqui vocecircs me homenageiam assistindo agrave Defesa que haacute de conceder-
me o tiacutetulo de Mestre reafirmando o lugar no qual jaacute me encontro e moro haacute tempos
O que faccedilo natildeo eacute senatildeo reconhecer a minha e a nossa parte algo que natildeo acontece
automaticamente que natildeo cai na leviandade das palavras apressadas na correria que mal
tem tempo para os amigos e o pensamento O que faccedilo eacute pensar com e para vocecircs o
movimento de gratidatildeo doaccedilatildeo e gratuidade de parar e atentar e ousar dizer sem exigir
uma troca mas recebendo os frutos do empenho como quem aceita das matildeos familiares
um presente inesperado
Entre agradecer e pensar em portuguecircs carece o gracejo da semelhanccedila musical
do alematildeo Sim o alematildeo tem sua graccedila tambeacutem As palavras danken e denken significam
respectivamente agradecer e pensar mas por outro lado falta nelas o desafio o esforccedilo
de ligar esses dois sentidos aparentemente distantes Agradecemos o bom dia o aceno de
matildeo aquele ou este obseacutequio ao mesmo tempo em que somos capazes de esquecer o
porquecirc disso tudo E por vezes calamos e estamos profundamente gratos
Dizemos que pensamos nisso ou naquilo pensamos quando achamos que vamos
sair mais agrave tarde sem contar com a chuva Pensamos quando lembramos da tarefa de casa
tal estante a pregar tal moacutevel a mudar de lugar Pensamos quando calculamos as contas
que faltam pagar e quando raciocinamos que uma escola distante do lar pode ser a melhor
opccedilatildeo para nossos filhos Pensamos e somos capazes de nos esquecer no processo
acabamos pensando sempre para fora a resolver a supor mas nunca ou raras vezes a ser
e saber o que somos e o que nos motiva a continuar a pensar Isso porque
corriqueiramente pensamos sem agradecer e agradecemos sem pensar Quero natildeo faltar
com essa moeda a vocecircs com essa dupla face que se desdobra e se encara Moeda
amassada e dobrada sem valor no mercado mas muito importante para o mercado para
os homens para a cultura pensamento e agradecimento
Como eu havia dito esta tambeacutem eacute minha cidade meu lugar de conforto meu lar
e minhas ideias Vocecircs satildeo desde antes da escrita uma disposiccedilatildeo para pensar e um
pensamento disposto a agradecer o que muda depois da escrita Nada e tudo Hoje se
encerra um ciclo poreacutem ciacuterculo que eacute ciacuterculo nunca acaba Ele gira ele roda enquanto o
centro permanece e possibilita a circulaccedilatildeo assim como a circulaccedilatildeo daacute sentido ao centro
irradiador
O Misteacuterio mora
Girando na roda o homem danccedila e ignora
Mas o Misteacuterio mora no meio e memora (FROST 1942 paacuteg 71 ndash traduccedilatildeo
de Andreacute Borges e Thayrine Kleinsorgen)1
Ainda assim alguns talvez natildeo conheccedilam do que trata o mutiratildeo que conduziu ateacute
a Dissertaccedilatildeo Eis o percurso tradiccedilatildeo filosofia e linguagem Disso meu trabalho fala a
respeito A parte de vocecircs Bem vocecircs satildeo a tradiccedilatildeo que quer se perpetuar e o ensino
que se esforccedila para que isso aconteccedila Satildeo a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo e sua mensagem dando
possibilidade para a criaccedilatildeo de novas coisas novas operaccedilotildees novas dissertaccedilotildees
Enquanto processava essas informaccedilotildees fiz um percurso ateacute meus 20 anos para o
iniacutecio da faculdade de Letras continuei ateacute os 18 ainda na faculdade de Filosofia e natildeo
parei esbarrando em Platatildeo e em sua filosofia que convenhamos eacute ainda a nossa
filosofia Eacute e natildeo eacute De Platatildeo a Heraacuteclito dei a volta para chegar agrave poesia ao dizer poeacutetico
a uma poeacutetica que natildeo eacute papo de quem nunca trabalhou de verdade mas de quem trabalha
com a verdade em sua multiplicidade e concretude
Vocecircs estavam juntos sem o saber ou sabendo Foi uma conversa aqui uma ajuda
com uma traduccedilatildeo ali muitas negativas e ausecircncias Cada pedaccedilo de texto eacute um bordado
a vaacuterias matildeos um diaacutelogo cujas vozes eu ouvia e caacute estou a dividir com vocecircs minha
esquizofrenia salutar A sauacutede convulsionante desses uacuteltimos tempos deixa uma
1 The Secret sits We dance round in a ring and suppose But the Secret sits in the middle and knows
significante marca a ferro na histoacuteria da minha vida de modo que natildeo seria possiacutevel nem
que eu quisesse nem que eu fosse desonesto comigo mesmo prosseguir sem que se
tornasse notaacutevel a boiada agrave qual faccedilo parte
Pensa quem agradece logo porque agradeccedilo penso A travessia que fiz e faccedilo eacute
nossa e minha Ela eacute sempre de dois dois extremos duas margens Atravessar por outro
lado eacute algo solitariamente proacuteprio Ningueacutem pode atravessar por mim Podem sim me
ensinar podem me carregar mas quem atravessa sou eu Eu atravesso e sou atravessado
pela travessia que satildeo duas que somos noacutes e em alguma medida nenhum de noacutes A
terceira margem de um extremo eacute o local ao qual natildeo temos acesso mas fazemos parte
sem saber sem querer sem buscar Acham mesmo que eu esperava fazer o que fiz
Acham mesmo que algueacutem faz exatamente o que planejou O ponto de chegada nunca eacute
aquele da partida
A terceira margem embora natildeo exista como um local fiacutesico eacute de uma
espacialidade presente esse lugar que estamos quase chegando poreacutem nunca aportamos
de fato Sabe quando terminamos algo mas na verdade sabemos que daria para fazer
mais alguma coisinha mais uma pincelada de tinta mais uma frase soacute um minutinho a
mais Isso eacute porque sempre haacute o que fazer sempre haacute aonde chegar Esta Dissertaccedilatildeo natildeo
eacute um comeccedilo natildeo eacute certamente um fim ela eacute um encaminhamento uma possibilidade
ela estaacute sendo feita ainda e jaacute foi concluiacuteda tempos atraacutes em certo sentido
Ela existe para mim e independente de mim um convite a vocecircs e inegavelmente
um convite a mim Se eu agora a relesse toda faria outra Dissertaccedilatildeo completamente
diferente Natildeo por discordacircncia mas porque depois dela depois de vocecircs depois de tudo
que nos atravessa jamais daria para repetir e concordar em absoluto com o que estaacute aqui
Mesmo assim talvez ateacute pelo carinho que tenha pelos presentes foi um enorme prazer
escrever
Prazer e dor Nunca foi tatildeo difiacutecil olhar no espelho Como quem envelhece dez
anos em dez meses como uma necessidade boa mas um fardo obrigatoacuterio escrever eacute ter
de lidar com todos nossos monstros e heroacuteis Algo do medo das primeiras vezes sabe-
se laacute o que pode acontecer Aquela primeira vez que andamos sem nossos pais na rua
quando a responsabilidade precisa ser assumida ainda que seja para comprar algumas
balas Em cada decisatildeo uma monstruosidade estaacute agrave espreita e temos medo
Nas histoacuterias em quadrinhos em geral aparecem os heroacuteis que salvam o dia Na
histoacuteria contada nestas paacuteginas dissertativas heroacutei e monstro salvam-se um ao outro
Afinal haacute alguma proximidade entre eles Ambos desafiam os limites estabelecidos por
isso tecircm de lidar com a criaccedilatildeo esse mundo desbravado e com a tradiccedilatildeo aquilo a ser
testado ao extremo Monstro e heroacutei satildeo aspectos diferentes da mesma dobradura de
paacutegina O que seria do Superman sem o Lex Lutor para que aquele pudesse ser super O
que seria do inimigo sem o guerreiro para fazer frente Teriacuteamos que aceitaacute-lo passivos
passividade terminal doenccedila Natildeo o caminho proposto traz agrave tona toda a tensatildeo que
qualquer boa conversa deve ter duas vozes que se completam em uma
Nesse sentido heroacutei eacute soacute um desdobramento nosso Assim como o monstro
Aquilo que talvez ainda natildeo sejamos mais almejamos e repudiamos Aquela presenccedila
que nos incomoda e nos mostra tudo o que somos e podemos ser Cada um de vocecircs que
compotildee minha escrita forccedilou-me agrave beira do que sou tanto que esgarcei e estou tranquilo
Fiz o que pude agrave luz de tatildeo heroica e monstruosa visatildeo
Com o intuito de dar um exemplo vivo do que falo trago uma anedota Numa
mesa de restaurante certa vez falava e ouvia com um amigo Ele relatava sua histoacuteria e as
personagens principais nela Ora tinham vilotildees e mocinhos ora as mesmas figuras
desempenhavam papeis diferentes hoje elas permaneceram fazendo dele o que ele ainda
eacute Pude assistir a tudo e refletir quais seriam meus protagonistas O tempo trouxe alguns
rostos agrave memoacuteria outros ficaram esquecidos Suas influecircncias nem sempre seratildeo
lembradas por mim mas nem por isso elas deixaratildeo de estar presentes Natildeo paro de
aprender com meus mestres sem nome e aos que tenho como nomear tento deixar
subentendido para natildeo deixaacute-los vaidosos e envergonhados Silenciosamente contorno a
gigantesca daacutediva a enorme diacutevida cuidando para natildeo tropeccedilar nas palavras gratuitas e
nos elogios vazios Busco a homenagem precisa meliacuteflua e perspicaz sem a
obrigatoriedade de deixar claros os rastros da minha monumental gratidatildeo Ao misteacuterio
fique relegada toda a verdade De modo sorrateiro deixo duas pegadas para cada passo
reverberando feito corajosa lira os sons delicados de gatos no jardim entre assumpta
figueira e oliveiras ao largo da almeida do barco do desbravador
Tive sorte e por isso agradeccedilo Fui afortunado por compartilhar meus
pensamentos Aquele menino que viu o Peleacute jamais jogaraacute bola do mesmo jeito
Lembram-se quando ainda estavam inseguros ou quando acreditavam jaacute saber fazer algo
e viram um grande mestre reinventar a roda Seja vendo sua avoacute cozinhar sua matildee trocar
a frauda de seu receacutem-nascido ou soacute um amigo mais velho a dividir suas histoacuterias
heroicamente o diaacutelogo se estabelece e vocecirc acaba de ser atravessado por ele Soacute resta
reaprender a viver depois disso Obrigado
Dedico este texto em profundo agradecimento aos seguintes nomes presentes na
minha Defesa
Adriano Furtado Hugo Afonso Correia de Almeida
Alice Bentzen Assumpccedilatildeo Isabella Daemon
Amanda Falconi Jessica Natarelli
Ana Cristina Gelape Julia Hortecircncia Carvalho Nascimento
Antonio Jardim Maria Lucia de Oliveira da Purificaccedilatildeo Marinho Pereira
Baacuterbara Martins Pedro Trajano Cardoso
Caio Cruz Priscila Loureiro
Denilson Marinho Pereira Rafael Barbosa
Diogo Santos Rodrigo Marques de Carvalho
Eduardo Gatto Thayrine Kleinsorgen de Almeida Cruz
Felipe Forain Marques Viniacutecius de Figueiredo Barbosa
Giovanna Giffoni
E agraves presenccedilas ausentes que contribuiacuteram para este trabalho
Allan Charles Marcus Caetano
Andreacute Viniacutecius Lira Costa Marcus Erbas
Andreacuteia Pedroso Mariana Borges de Oliveira
Carla Rodriguez Mariana Rodrigues
Daniel Forain Nicole de Oliveira
Edna Oliacutempia Patriacutecia Trajano Cardoso
Edson de Almeida Ramos Rafael Lemos
Felipe Copque Rodrigo Wentzel
Fernanda Fonseca Silvia Herkenhoff Carijoacute
Fernando Sampaio Taynaacute Rosa
Flaacutevio Chame Thiago Pereira
Gabriel Torres Vanise Dutra
Gabriela Borges de Oliveira Walter Kohan
Guiomar Borges Yasmin Motta
Ivana Machado Demais profissionais que me auxiliaram
Liacutevia Egger Demais professores que me formaram
Luiacutes Antocircnio Borges de Oliveira Demais amigos que me constituiacuteram
Manuel Antocircnio de Castro Demais familiares que me possibilitaram
EPIacuteGRAFE
Aacutervore genealoacutegica
A mais frondosa aacutervore da cidade
Eacute a aacutervore que jaz no cemiteacuterio
Seu viccedilo traz de longe uma saudade
Que a bruma envolve toda em misteacuterio
A seiva lembra sangue escurecido
Sangue que me sangra jaacute esquecido
Do pai do pai do pai (um fruto antigo)
Que crava suas raiacutezes laacute em Vigo
Comer a carne doce recolhida nesse horto
Eacute devorar um violado corpo (morto morto morto)
Que restou de um ancestral
Thayrine Kleinsorgen
RESUMO
O ensino de filosofia a partir de uma perspectiva poeacutetica
Questionamento acerca da concepccedilatildeo de filosofia que resgate sua afinidade
originaacuteria com a poesia a fim de que se compunha um ensino galgado na criaccedilatildeo ao inveacutes
da reproduccedilatildeo Por ser uma disciplina estigmatizada de obscura de inuacutetil e de pouco
importante numa compreensatildeo praacutetica e objetiva natildeo eacute de se espantar que isso influencie
diretamente seu ensino logo conveacutem se perguntar sobre nossa ideia de tradiccedilatildeo e
consequentemente da possibilidade ou natildeo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo pelo ensino
Naturalmente que a proacutepria tradiccedilatildeo da filosofia natildeo poderia ser deixada de lado Aleacutem
do mais eacute possiacutevel constatar que parte do caraacuteter segregante com a qual a filosofia eacute
relacionada tem um fundamento em sua histoacuteria com a separaccedilatildeo do poeta e da cidade e
da realidade sensiacutevel e inteligiacutevel Portanto recriar a ponte partida entre pensamento e
poesia significa tanto ousar uma nova postura diante da realidade quanto retomar sentidos
adormecidos na linguagem cotidiana Por fim fica patente que determinadas amarras
estatildeo presas demais para abrirmos matildeo mas outras nem tanto e ambas fazem parte do
que nos constitui Ou seja aceitar nossos limites enquanto o que nos fundamenta e daacute
sentido e natildeo apenas um cerceamento mas uma resposta que tanto define algo quanto
recoloca a questatildeo fundadora numa perspectiva singular torna-se postura essencial para
uma poeacutetico-filosofia
Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem
ABSTRACT
The teaching of philosophy from a poetic perspective
Questioning about the conception of philosophy that rescues its original affinity
with poetry in order to teach based in creation rather than reproduction Because it is a
discipline that is stigmatized as obscure useless and unimportant in a practical and
objective understanding itrsquos not surprising that this directly influences its teaching so
one has to ask about our idea of tradition and consequently the possibility of
transmission of tradition through teaching Of course the very tradition of philosophy
could not be left aside Moreover it can be seen that part of the segregating character
which philosophy is related has a foundation in its history with the separation of the poet
and the city and the sensible and intelligible reality Therefore re-creating the bridge
between thought and poetry means both to dare a new attitude towards reality and to
return to the dormant senses in everyday language Finally it becomes clear that certain
moorings are too fastened to give up but others not so much and both are part of what
constitutes us That is to accept our limits as what gives us meaning and not only a
restriction but an answer that both defines something and replaces the founding question
in a singular perspective becomes an essential posture for a poetic-philosophy
Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
Figura 1 ndash As quatro influecircncias 75
Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna 77
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 15 1 Pensando a Educaccedilatildeo 20 11 O ensino decide por dizer 20 111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc 22
112 Um saber que rasga 26 113 Natildeo ensinar e a ciecircncia 33 114 O jogo do poeta e da infacircncia 38 12 A tradiccedilatildeo 40 121 Quando o poeacutetico repousa esquecido 42
122 A ideia e o ser 43
123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo 46
124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo 49 125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo 52 126 Os mutirotildees do homem 55 2 Pensando a Filosofia 57
21 A filosofia como resposta 57 22 Filosofia inteligecircncia e entendimento 60
221 Ciecircncia e intelecto 72 23 Crenccedila e conjectura 73 24 Filosofia e opiniatildeo 80
25 Diaacutelogo e filosofia 85 3 Pensando a Linguagem 96
31 Linguagem e limite 101
32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem 106
33 O limite da resposta 110 34 A resposta do limite 115 35 Dois lados da mesma moeda 118 351 A resposta que natildeo soluciona 118
352 Temor sagrado 121 353 O que responde o sagrado 125 Consideraccedilotildees Finais 131 Referecircncias 137 Apecircndice 150
15
Introduccedilatildeo
Pensar uma educaccedilatildeo para aleacutem do controle eacute um desafio Os perigos satildeo os mais
diversos pois somos criados na mesma tradiccedilatildeo que agora pretendemos criticar
Diferente de outros temas ndash mais abstratos ou distantes historicamente ndash este apresenta
claro como o sol nossa relaccedilatildeo intriacutenseca com ele Somos filhos netos e pais de um
modelo educacional que compreende como fundamental a transmissatildeo de um
conhecimento das antigas para as novas geraccedilotildees
E qual natildeo seria o papel da educaccedilatildeo senatildeo este o de transmitir saberes valores
o de fornecer proteccedilatildeo e preparaccedilatildeo para uma realidade cada vez mais exigente e
competitiva A responsabilidade que a sociedade coloca e cobra da escola e
consequentemente dos professores se justifica por essas mesmas razotildees Por que entatildeo
natildeo seria um desserviccedilo questionar esse esquema que legitima os fundamentos da proacutepria
noccedilatildeo contemporacircnea de vida conjunta
Somos crias desse sistema e por isso aprendemos sempre a perguntar pela
funcionalidade das coisas o para quecirc serve isso ou aquilo evidentemente com a
educaccedilatildeo natildeo seria diferente Eacute nesse sentido principalmente que se torna desafiante
pensar a educaccedilatildeo movimento de des-afiar desfiar desafianccedilar de natildeo manter a
fidelidade com o desafiado (HOUAISS 2009a Desafiar) ou seja fazer o corte
delimitador entre o que somos e o natildeo ser Em outras palavras o desafio de pensar a
educaccedilatildeo caminha pelos limites que entrecortam os porquecircs de ensinar e aprender o que
ocasiona esses porquecircs e como podemos corresponder a eles
Eis que aceitando o convite do desafio da educaccedilatildeo deparamo-nos com o
seguinte impasse eacute possiacutevel abrir matildeo do controle Falar dos limites natildeo eacute a princiacutepio
o mesmo que falar da posse controladora Seacuteculos de metafiacutesica tecircm-nos confundido
quanto a isso e facilmente assumimos que controlar algo eacute limitaacute-lo como se nossa
vontade fosse decisiva para validar ou natildeo a sua existecircncia
Controla-se para dar sentidos O que estaacute dentro da cerca eacute nosso o que estaacute fora
eacute natildeo nosso outra coisa que estaacute sempre a rivalizar com as cercanias do que existe meu
mundo nosso mundo o mundo ocidental A esta forma de controle especiacutefica do
Ocidente chama-se ciecircncia ldquoa teoria do realrdquo (HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Um modo
16
peculiar de dizer o que algo eacute conferindo-lhe existecircncia cientiacutefica a partir da descriccedilatildeo
de suas partes de nuacutemeros que a representem matematicamente de utilidade na maacutequina
mantenedora da seduccedilatildeo da crenccedila pelo controle etc
Assim os limites da φύσις do real tornam-se os limites no real na φύσις como
cessaccedilatildeo do fluxo de acontecimentos em prol da seguranccedila da estatiacutestica 99 precisa
margem beirando o inalcanccedilaacutevel 0 Questionando junto com Fernando Pessoa (2006 paacuteg
62) o que eacute o zero na realidade Assim a ciecircncia eacute a seguranccedila de um pensamento uacutetil
capaz de servir a propoacutesitos dos mais diversos que depois seraacute colocado agrave disposiccedilatildeo
para por precauccedilatildeo posterior usufruto
Natildeo se admira que a educaccedilatildeo de algo possa ser transmitida pois acredita-se na
confecccedilatildeo de uma mensagem que atravessa de preferecircncia incoacutelume de um remetente a
um destinataacuterio Quer dizer que natildeo haacute mensagens Que nada pode ser ensinado e
aprendido Seria relativizar demais a discussatildeo e caminhar atraacutes do proacuteprio rabo para no
fim alcanccedilar quando muito o comeccedilo improfiacutecuo Natildeo aqui se refere agrave crenccedila na
mensagem
Certa tolice certa inocecircncia que nos acompanha eacute a de que podemos fazer
qualquer coisa conforme a planejamos Ter esperanccedilas e fazer planos para a realizaccedilatildeo do
sonho aparece neste trabalho tatildeo proacutepria aos entes quanto suas falhas incessantes e ainda
assim ldquoentre fazer e natildeo fazerrdquo
O artista inconfessaacutevel
Fazer o que seja eacute inuacutetil
Natildeo fazer nada eacute inuacutetil
Mas entre fazer e natildeo fazer
mais vale o inuacutetil do fazer
Mas natildeo fazer para esquecer
que eacute inuacutetil nunca o esquecer
Mas fazer o inuacutetil sabendo
que ele eacute inuacutetil e bem sabendo
que eacute inuacutetil e que seu sentido
natildeo seraacute sequer pressentido
fazer porque ele eacute mais difiacutecil
do que natildeo fazer e dificil-
mente se poderaacute dizer
com mais desdeacutem ou entatildeo dizer
mais direto ao leitor Ningueacutem
que o feito o foi para ningueacutem (MELO NETO 1975 paacuteg 30)
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Natildeo haacute controle com o que se aprende Planejamos com cuidado uma aula
confiamos que nossos caacutelculos daratildeo certo mas em verdade natildeo importam quais os
dispositivos de controle utilizados todos estaratildeo sujeitos aos limites impostos pela
corrente de acontecimentos incertezas e impossibilidades a que chamamos real Natildeo agrave
toa a compreensatildeo mais tradicional de ensino estaacute calcada na ideia da transmissatildeo de um
conteuacutedo Nesse sentido questionar a extensatildeo de um controle eacute sim um risco ao
sustentaacuteculo da crenccedila na mensagem Isso passa por uma criacutetica da tradiccedilatildeo jaacute que ficaria
difiacutecil sem ela pois esta eacute nossa histoacuteria nosso modo de ver as coisas
Abrir matildeo do controle natildeo eacute abrir matildeo dos limites Que a questatildeo se torne pois
como agir diante do que se aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente
ele natildeo eacute Os limites satildeo tatildeo impostos pela tradiccedilatildeo quanto pelo saber atual Diga-se de
passagem tradiccedilatildeo e atualidade natildeo satildeo completamente distintas uma da outra
Numa outra concepccedilatildeo esquecida no uso mais habitual haacute a palavra poeacutetica que
brinca com os controles e alarga os limites Laacute jazem outros tempos outras liacutenguas que
aqui nos achegam como convites de pensamento Uma tradiccedilatildeo que eacute traditio uma
traditio que eacute traiccedilatildeo Perpetremos a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo enquanto mutiratildeo de todos pois
ontoloacutegica e etimologicamente todas as palavras se imiscuem e se dizem de modos
singulares
Ideias estranhas numa trajetoacuteria de conhecimento linear Entretanto quando nos
defrontamos com um saber que sabe porque vecirc e soacute vecirc porque sabe o que antes causava
estranheza pode suscitar sentido Compreensatildeo que natildeo se fia no controle mas que
delimita e por isso constitui uma existecircncia pela experiecircncia com algo
Um limite que marca sem controlar uma ideia que natildeo se restringe agrave sua
inteligibilidade mas que se apresenta como verdade que demarca uma manifestaccedilatildeo no
real Sem certo ou errado a priori apenas eacute Apenas natildeo como o que se esvai na
banalidade do sem importacircncia mas denso e simples como a dor de topar numa pedra
como se ela inanimada pudesse gritar caacute eu estou acolaacute tu
Ao aceitar o desafio que a educaccedilatildeo exige arrisca-se no estrangeiro do caminho
aquilo que natildeo conhecemos Postura essa conveniente se quisermos enveredar por
assuntos pouco visitados por exemplo a filosofia em tempos de crise do pensamento Isso
significa tratar de uma temaacutetica fora dos paradigmas sem os quais nos acostumamos a
fim de natildeo soacute educar de modo diverso mas concretamente diverso
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A filosofia jaacute possuiu uma conduta puacuteblica e sua praacutetica era indicada para entre
outras coisas uma vida feliz e um Estado profiacutecuo Atualmente contudo atende a
indiviacuteduos e suas curiosidades ou assombra a escrita destinada agrave gaveta de algum
acadecircmico Em meio agrave tecnocracia ela natildeo tem mais vias praacuteticas de atuaccedilatildeo ou pelo
menos essa eacute a compreensatildeo corrente Isso porque eacute difiacutecil precisar sua funccedilatildeo e
consequentemente duro eacute o ensino que natildeo se fia no para quecirc ensinar
Vale se for para a prova mas apenas para a prova Vale se for soacute por saber desses
somentes simploacuterios e ociosos de sentido Vale pelas vias da utilidade que sem ela nada
presta Afinal qual o ofiacutecio do filoacutesofo ou do poeta O que um pensador faz constroacutei ou
salva A imaterialidade da obra da filosofia eacute mal vista no mundo materialista Ainda por
cima desde seus tempos de gloacuteria ela escolheu por amizade determinados saberes pondo
de lado sua origem poeacutetico-mitoloacutegica como deixou expresso Platatildeo (1987 paacuteg 473) em
sua rixa com Homero o poeta por excelecircncia
Destrinchando a carne disciplinando o conhecimento o saber filosoacutefico platocircnico
hierarquizou a apreensatildeo que eacute feita da realidade e com isso criou uma das bases para o
controle da verdade que mais tarde chamaremos de ciecircncia Etapa por etapa o homem
poderia evoluir a comeccedilar pelo lodo (sic) das sombras no interior da caverna onde soacute haacute
conjecturas e nenhuma verossimilhanccedila como se a verdade precisasse de espelhos e natildeo
fosse ela mesma presenccedila concreta Em seguida de imagens turvas fizeram-se formas
mais niacutetidas quiccedilaacute cores e principalmente crenccedila Eis a verdade persuasiva ou
verossimilhanccedila na qual o criacutevel era o foco natildeo verdadeiro
Tudo achismo conforme a velha filosofia Achar algo eacute natildeo saber natildeo ter
credibilidade soacute ser opiniatildeo o que pertence aos muitos mas natildeo a mim ndash o filoacutesofo
Depois que aqueles homens cavernosos se desprenderam dos grilhotildees da parede sombria
o redor deixa de ser encarado como a verdade mas apenas como uma representaccedilatildeo da
verdade Mal comparando antes as coisas eram sentidas manifestadas e pressentidas
agora elas seriam compreendidas intelectualmente de modo que natildeo se faz necessaacuterio
vivenciar cada manifestaccedilatildeo singular para se ter uma ideia do que se queria representar
Esse eacute o espectro inteligiacutevel do real
Todavia sejamos francos aiacute tambeacutem haacute uma hierarquia Entre as opiniotildees e a
verdade haacute o conhecimento de afinidade teacutecnica As abstraccedilotildees a um fim espelham-se no
ideal modelar para aplicaacute-lo nas mais diversas ocasiotildees Em outras palavras a finalidade
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demonstra ainda certo apego ao sensiacutevel a um caso especiacutefico qualquer que deseja ser
solucionado Por isso que parte da tradiccedilatildeo reconhece nesse momento o geacutermen do
pensamento cientiacutefico
Ateacute que chegamos de fato agrave casa do filoacutesofo O topo da cadeia para o pensamento
de Platatildeo Quem deveria gerir os demais na cidade aquele mais distante do mundo das
manifestaccedilotildees Somos soacute representaccedilotildees da ideia natildeo manifestaacutevel O filoacutesofo traduziria
o ser representado e por isso deveria conduziria os homens
Sem perceber a filosofia se sabota Ao pronunciar-se aleacutem da arte inuacutetil a mesma
natildeo reconhece seu lado pouco praacutetico que demanda tempo tentativas e erros Com a
sedimentaccedilatildeo do domiacutenio da funcionalidade seu aprendizado torna-se estranho por natildeo
ser objetivo Por conseguinte ela eacute alijada do conviacutevio mundano juntamente com a
poesia que pela filosofia foi rejeitada Ambas estatildeo no canto da histoacuteria agrave margem da
ordem do dia Separadas elas foram banidas da πόλις e dificilmente juntas voltaratildeo agraves
graccedilas dela Tanto faz natildeo eacute o propoacutesito em vez disso busca-se reconhecer o vigor
originaacuterio tanto na filosofia quanto na poesia de dizer e nomear verdades
Em meio ao turbilhatildeo dos acontecimentos o silecircncio Um lugar onde a questatildeo
possa ser respondida sem a pressa de dar uma soluccedilatildeo mas com cuidado e esmero Sem
medo do erro mas tambeacutem com medo pois ele faz parte Natildeo haacute vida sem morte sagrado
sem temor nem sangue sem corte A tentativa de um ensino poeacutetico de filosofia natildeo eacute um
rabisco aleatoacuterio mas a alternativa possiacutevel de reconciliaccedilatildeo do que jaacute foi e em certa
medida estaacute inseparaacutevel
Nietzsche (1994 paacuteg 56) disse em uma ocasiatildeo muito proacutepria que soacute confiava no
que fosse escrito com sangue Jaacute se escreveu sulcando a pele de animais as cicatrizes
datam na carne um trauma do tempo e as tatuagens demarcam sentidos na ferida Todas
essas experiecircncias deixaram marcas imprimiram uma resposta num corpo de modo bem
concreto Assim se pretende uma filosofia poeacutetica uma tradiccedilatildeo poeacutetica e uma linguagem
poeacutetica que seja capaz de romper o limite instituiacutedo e assim engendrar novas limitaccedilotildees
abertura de possibilidades impingidas em ferro e fogo em controle e desafio em tradiccedilatildeo
e ensino em diaacutelogo paradoxal de limite e fundamento
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1 Pensando a Educaccedilatildeo
11 O ensino decide por dizer
O ensino significa aqui estar na marca do pensamento Neste sentido este trabalho
natildeo trata de dizer como ou o que deve ser ensinado Ensinar natildeo se refere necessariamente
a o que aprender mas simplesmente a aprender A cada ensinamento algo eacute aprendido se
se faz o caminho do pensamento Enquanto o ensino convida a aprender ao convite se
corresponde como se pode ou seja a correspondecircncia ao ensino estaacute no acircmbito do que
natildeo temos controle
Natildeo haacute controle com o que se aprende Por mais elaborados que sejam os
esquemas e as metodologias nunca eacute garantido que determinado ensinamento seraacute
aprendido O ensino ndash enquanto crenccedila na apreensatildeo de um conteuacutedo isto eacute uma
concepccedilatildeo na qual se espera que algo seja compreendido logo aprendido e apreendido
pelo aluno ndash chama-se transmissatildeo do conhecimento
Para haver transmissatildeo eacute vital que algo possa ser transmitido como uma carta
inviolada entregue pelo carteiro diretamente do remetente ao destinataacuterio ou seja eacute
necessaacuterio que uma mensagem possa transitar preferencialmente incoacutelume de uma
pessoa para outra de uma geraccedilatildeo para outra Nesta perspectiva qualquer deslize a essa
mensagem qualquer sentido que fuja dos sentidos-modelo da mensagem que natildeo se
adeque agrave verdadeira mensagem estaacute incorreto e por isso seraacute evitado e ateacute mesmo
execrado pelos portadores da verdade enquanto transmissatildeo Assim tem sido ao longo da
histoacuteria para uma compreensatildeo mais tradicional da educaccedilatildeo com sutis mas sentidas
exceccedilotildees ateacute os dias atuais uma mensagem modelar e sua reproduccedilatildeo ditando o
significado de ensino
Somos seres que por milecircnios foram programados para concentrar-se em
determinadas possibilidades e obedecer a determinados princiacutepios Assim
fomos programados numa histoacuteria milenar a crer no progresso e a ter feacute no
poder da dominaccedilatildeo fomos programados para seguir modelos e obedecer a
paradigmas para cumprir ditados e aceitar tabus Numa palavra fomos
programados natildeo apenas para ter mas sobretudo para ser consciecircncia O
conteuacutedo que povoa nossa consciecircncia satildeo representaccedilotildees do que eacute do que
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foi e do que seraacute Satildeo representaccedilotildees do que pode ser do que vem a ser do que
deve ser Satildeo representaccedilotildees de crenccedilas e valores de anguacutestias e ansiedade de
dor e prazer de frustraccedilotildees e satisfaccedilotildees Satildeo representaccedilotildees de tudo Mas por
outro lado sempre em qualquer tempo em qualquer lugar ou condiccedilotildees os
homens natildeo satildeo apenas consciecircncia e representaccedilotildees (LEAtildeO 2003 paacuteg 18)
Quando abrimos matildeo da transmissatildeo abrimos matildeo do controle Contudo o
convite natildeo deixa de ser um juiacutezo Por exemplo quando chamamos algueacutem para uma
festa fazemos um convite Convidar natildeo eacute impor a presenccedila da pessoa mas demonstrar
sua importacircncia Tambeacutem acreditamos se convidamos com sinceridade que sua presenccedila
ali seraacute bem acolhida ainda que natildeo passe de uma suposiccedilatildeo podendo sua estadia naquele
evento festivo se revelar indesejada por uma ou ambas as partes envolvidas
A quem se predispotildee a ensinar conveacutem propor o convite Um juiacutezo cuidadoso
sobre o que como e a quem convidar mas que natildeo diz respeito a se e como o convite
seraacute aceito Julgar como quem toma uma decisatildeo como quem se avizinha da senda entre
dizer e natildeo dizer Uma decisatildeo natildeo pelo todo posto que natildeo se controla tudo mas acerca
de algo por aquele limite que marca e se arrisca na fronteira do dizer e do ensinar O
ensino decide por dizer O que ele diz
Eacute comum responder que praticamente tudo pode ser ensinado Ensina-se literatura
e filosofia como tambeacutem matemaacutetica fiacutesica e geografia O convite do ensino que
tambeacutem eacute uma decisatildeo remete a um conhecimento especiacutefico mas natildeo se restringe a ele
Ao decidir-se por ensinar algo leva-se em conta como proceder com esse ensinamento
ou seja sua metodologia traccedilam-se metas satildeo feitos planejamentos e promete-se aos
pais e agrave sociedade que aquele especiacutefico conteuacutedo seraacute transmitido
Todavia mesmo assim o ensino lida com imprevistos com o imprevisiacutevel
portanto a aprendizagem constantemente estaacute em tensatildeo entre o que achamos que eacute
possiacutevel transmitir e o que deixamos escapar agrave transmissatildeo seja por deslize seja por total
incapacidade de exercer qualquer saber ou conhecimento a respeito A pretensatildeo deste
trabalho eacute justamente lidar natildeo com a transmissatildeo mas com o ensino que estaacute sempre
condicionado ao natildeo ensinado ao natildeo ensinaacutevel ao natildeo dito em todo dizer
Ensinar diz e natildeo diz algo ensina e natildeo ensina alguma coisa demarcando um
saber em quem aprende O ensino aproxima um saber do aprendiz Ensinar en-sina in-
signum A palavra ensino eacute um substantivo formado por regressatildeo do verbo ensinar do
latim vulgar insigno ldquopocircr uma marca distinguir assinalarrdquo (HOUAISS 2009a) Por sua
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vez esse verbo latino proveacutem de sua forma erudita insignio ldquo1 Marcar com um traccedilo
caracteriacutestico meios de identidade 2 Marcar com aspas (em citaccedilotildees) 3 Adornar com
marcas honoriacuteficas 4 (transf) Tornar digno de nota ou notaacutevel marcar distinguirrdquo
(GLARE 1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)2
Literalmente ensino eacute se dispor agrave marca tanto demarcando uma caracteriacutestica em
algo ou algueacutem quanto a partir da marcaccedilatildeo fazer emergir essa distinccedilatildeo e diferenccedila
De modo menos literal marcar natildeo se refere a separar dos demais privando o que seja ndash
por estar marcado ndash de uma unidade agregadora refere-se contudo a identificar o que
ali se diz de modo singular em confluecircncia com outros dizeres
111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc
Assim faz-se um convite a pensar o ensino que distingue sem segregar Ensinar
sem se ater ao controle do conheciacutevel mas se esgueirando na fronteira neste rasgo
delimitador que daacute sentido ao sem sentido aos cem sentidos que a tudo iguala sem
distinccedilatildeo Distinguir sem segregar ocupa-se em natildeo esvaziar os modos proacuteprios de ser
em natildeo tornar cada ente distinto em peccedilas reproduziacuteveis para a sociedade Distinguir eacute
constituir a dignidade singular na dinacircmica do todo
A fim de esclarecer melhor a respeito da marca que jaz em todo ensino
debrucemo-nos um pouco mais sobre a palavra latina de modo a refazer as experiecircncias
de sentido que ela suscita Insignio eacute formada por regressatildeo da palavra insignitus ldquo1
Marcado com traccedilos caracteriacutesticos 2 Claramente definido ou caracterizado 3 Digno
de nota []rdquo (GLARE 1968 paacuteg 925 ndash traduccedilatildeo livre)3 cujo sentido ainda eacute bem
semelhante ao anteriormente descrito Esta palavra tem sua formaccedilatildeo atraveacutes da
composiccedilatildeo insigne + -itussup2
A palavra insigne eacute o neutro do adjetivo insignis que se junta a -itussup2 sufixo
formador de adjetivo que ldquoindica posse ou vestimentardquo (GLARE 1968 paacuteg 976 ndash
2 1 To mark with a characteristic feature means of identity 2 To mark with weals etc (in quots) 3 To
adorn with marks of honour 4 (transf) To make noteworthy or remarkable mark distinguish 3 1 Marked with distinctive features 2 Clearly defined or characterized 3 Noteworthy []
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traduccedilatildeo livre)4 Em insignis nota-se jaacute em suas primeiras entradas algo ainda natildeo
explorado quer dizer a distinccedilatildeo que traz agrave presenccedila por meio da visatildeo ldquo1 Claramente
visiacutevel ou reconheciacutevel 2 Facilmente apreensiacutevel 3 Notaacutevel em aparecircnciardquo (GLARE
1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)5
Na visatildeo da marca algo se faz facilmente presente distinccedilatildeo perceptiacutevel aos olhos
que passam No domiacutenio dos sentidos a visatildeo vige e a partir desta vigecircncia os contornos
que delimitam o que eacute digno de nota aparecem e definem o que eacute pela marca Na tradiccedilatildeo
do pensamento ocidental aparecendo em Platatildeo como um de seus conceitos
fundamentais a visatildeo exerce um papel crucial ldquoPlatatildeo chama esse perfil em que o
vigente mostra o que ele eacute de εἶδοςrdquo (HEIDEGGER 2002 paacuteg 45)
Εἶδος aparece diversas vezes na obra platocircnica e deu origem agrave palavra ideia em
portuguecircs que se tornou muito corriqueira hoje Em seu uso ordinaacuterio ter uma ideia se
assemelha ao aparecimento de uma imagem na mente do indiviacuteduo mas que remete a
uma representaccedilatildeo fora dela Todavia natildeo eacute esse o interesse aqui mas pretendemos sim
fazer o caminho de pensamento que a ideia (seja grega genericamente seja em Platatildeo)
nos convoca a percorrer No dicionaacuterio de grego εἶδος refere-se a ldquoaquilo que eacute visto
forma formatordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἶδος ndash traduccedilatildeo livre)6 do verbo εἴδω
ldquoseerdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἴδω)7 e οἶδα ldquoknowrdquo (LIDDELL SCOTT 1889
Οἶδα)8 respectivamente ver e saber
Essa eacute uma relaccedilatildeo peculiar uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc Agrave
primeira vista esse relacionamento entre ver e saber natildeo eacute muito claro basta pensarmos
que ver natildeo costuma ser o suficiente para justificar um saber Eacute preciso estudo foacutermulas
e um cabedal de teorias Ver tenderia a ser algo mais relacionado aos sentidos ao sensiacutevel
enquanto que saber estaria vinculado ao intelecto ao inteligiacutevel Seraacute possiacutevel
compreender esse mostrar que natildeo eacute incoacutelume que rasga seus contornos no real ao se
4 Denote possession or wearing 5 1 Clearly visible or recognizable 2 Easily apprehensible 3 Remarkable in appearance 6 That which is seen form shape Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999040057entry=ei)=dosgt Acesso em
27 set 2016 7 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3D233
0877ampredirect=truegt Acesso em 27 set 2016 8 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Doi)3
Ddagt Acesso em 27 set 2016
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fazer apreensiacutevel facilmente apreensiacutevel Como um disciacutepulo que aprende vendo seu
mestre εἶδος monta um cenaacuterio cujo saber se constitui como tal no acircmbito da visatildeo A
experiecircncia de ver proporciona a princiacutepio um saber imediato sem intermeacutedios do que
natildeo estaacute ali na exigecircncia do olhar em referecircncia apenas agrave visatildeo e disposta a apreender
seu ensinamento concreto
Nenhum sentido iacutentimo nenhum aleacutem atraacutes para fora da proacutepria coisa Ser
uma coisa esta coisa eacute natildeo ser susceptiacutevel de outra interpretaccedilatildeo aleacutem desta
que ela necessariamente jaacute eacute para poder ser isso que eacute Assim neste sentido
toda coisa tudo eacute precisa ser singela franciscana superfiacutecie Sim os gregos
foram superficiais muito superficiais ndash por profundeza lsquoaus Tiefersquo (FOGEL
2007 paacuteg 48 ndash grifos no original)
O ver traz agrave tona outra forma de saber deste que natildeo se faz apenas na leitura e
dissertaccedilatildeo de um tema Precisaria ver para crer como Tomeacute sem a feacute do conceito mas
calcado no vigor da presenccedila que eacute a marca que a visatildeo deixa no ser Este saber ldquopraacuteticordquo
em que se aprende enquanto se faz e portanto viu-se algueacutem fazendo (seja outrem seja
a si proacuteprio como autocriacutetica) para entatildeo fazer estaacute limitado pelo seu campo de visatildeo
Aqui soacute se aprende o que o limite do ver permite aprender no entanto enquanto algo
estiver sendo visto isto eacute enquanto algo se apresentar agrave apreensatildeo limitada e permanecer
apresentando-se e sendo apreendido limitadamente os limites estaratildeo imersos em uma
multiplicidade de limitaccedilotildees
Crianccedila desconhecida e suja brincando agrave minha porta
Natildeo te pergunto se me trazes um recado dos siacutembolos
Acho-te graccedila por nunca te ter visto antes
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra crianccedila
Nem aqui vinhas
Brinca na poeira brinca
Aprecio a tua presenccedila soacute com os olhos
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhececirc-la
Porque conhecer eacute como nunca ter visto pela primeira vez
E nunca ter visto pela primeira vez eacute soacute ter ouvido contar
O modo como esta crianccedila estaacute suja eacute diferente do modo como as outras estatildeo
sujas
Brinca pegando numa pedra que te cabe na matildeo
Sabes que te cabe na matildeo
Qual eacute a filosofia que chega a uma certeza maior
Nenhuma e nenhuma pode vir brincar nunca agrave minha porta (PESSOA 2006
paacutegs 42-43)
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No poema ldquoapreciar a tua presenccedila soacute com os olhosrdquo se aproxima de ldquover uma
cousa sempre pela primeira vezrdquo assim como de ldquosabes que te cabe na matildeordquo Este ver
imediato traz o saber para as coisas para as experiecircncias concretas nas quais a marca que
distingue se torna a proacutepria distinccedilatildeo Conhecer por sua vez diz respeito agrave representaccedilatildeo
do saber pela visatildeo do conceito que pode ser transportado repetido natildeo necessitando da
presenccedila de expectadores A ldquocrianccedila desconhecidardquo natildeo conhece soacute sabe jaacute que
conhecer seria ldquoter ouvido contarrdquo Saber que a pedra cabe na matildeo natildeo eacute conhecer que a
pedra cabe na matildeo pois este pressupotildee um inventaacuterio de caracteriacutesticas opiniotildees de
geoacutelogos livros e mais livros sobre a pedra enquanto que aquele precisa pegar a pedra
nas matildeos ndash e isso eacute simples mas denso pleno sem se esgotar
O siacutembolo por definiccedilatildeo natildeo eacute a proacutepria coisa mas evocaccedilatildeo substituiccedilatildeo ou
representaccedilatildeo da coisa ausente Representar aqui significa estar no lugar de
ou passar por Sim substituir o ausente E a palavra da poesia a palavra
poeacutetica ie instauradora ou realizadora que por isso eacute a palavra essencial
esta estaacute subdizendo o poema natildeo eacute siacutembolo natildeo eacute representaccedilatildeo ou evocaccedilatildeo
da coisa ausente masa proacutepria coisa isto eacute a proacutepria presenccedila Portanto
palavra poeacutetica natildeo eacute recado mensagem aviso de nada O poeta natildeo eacute moleque
de recado Natildeo eacute instrumento mediaccedilatildeo ou intermediaccedilatildeo de nada A palavra
poeacutetica eacute a proacutepria coisa em sua plena plenificada presenccedila (FOGEL 2007
paacuteg 43 ndash grifos no original)
O ver que sabe natildeo eacute o ver com que lidamos com os olhos hodiernos Sempre com
pressa requisitamos ldquoter ouvido falarrdquo das coisas para confiar nelas para natildeo ter que
pensar a respeito isto eacute natildeo ldquoter visto pela primeira vezrdquo e essa confianccedila e esse
conhecimento datildeo a garantia da existecircncia A legitimidade do conhecimento se justifica
muito pela sua reprodutibilidade sua constacircncia e sua previsibilidade Gilvan Fogel
(2007) chama atenccedilatildeo ao que a palavra poeacutetica apresenta como outra possiblidade de
manifestaccedilatildeo como um apresentar concreto que soacute sabe por ter sido atravessado pela
experiecircncia proporcionada por este concreto sua visatildeo
No εἶδος que se mostra em cada insignis enquanto manifestaccedilatildeo poeacutetica encontra-
se a palavra essencial Eacute pois compreensiacutevel que seacuteculos de metafiacutesica tenham tratado
essecircncia como origem algo a ser buscado alcanccedilado por alguns iniciados ou eleitos
portanto distante exatamente da fala cotidiana O comentaacuterio supracitado do professor
Fogel diz de uma essecircncia sua compreensatildeo da brincadeira da crianccedila do poema como
sendo ldquoinstauradora e restauradorardquo Essa crianccedila do poema tanto quanto qualquer
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crianccedila assim como qualquer coisa conquanto seja poeacutetica sempre seraacute instauradora e
restauradora agrave medida que natildeo ldquosubstituir o ausenterdquo mas se ativer agrave presenccedila Desse
modo natildeo eacute exclusividade dos poetas a essecircncia nem o cuidado para que ela natildeo seja
esquecida entre ruiacutedos de abstraccedilotildees e representaccedilotildees natildeo podendo ldquovir brincar nunca agrave
minha portardquo
112 Um saber que rasga
Para saber eacute preciso ver logo para ver eacute preciso saber este eacute o convite que εἶδος
faz ao ensino O que eacute saber neste contexto que natildeo se restringe ao conhecimento
Somente a palavra poeacutetica sabe como quem vecirc ou outros dizeres estatildeo inseridos nesta
dinacircmica Talvez a continuaccedilatildeo da etimologia da palavra ensino possa nos dar uma noccedilatildeo
acerca disso Insignis eacute formado por in-sup1 + signum + -issup1 no qual in-sup1 eacute um prefixo que
transfere seus sentidos de preposiccedilatildeo ao verbo agregando novas significaccedilotildees verbais ou
intensificando-as (GLARE 1968 paacuteg 858) Dentre esses sentidos destacam-se ldquolsquoem a
sobre superposiccedilatildeo aproximaccedilatildeo transformaccedilatildeorsquo de uma raiz i-e [indo-europeia] en
lsquono interior emrsquordquo (HOUAISS 2009b)
Ao nuacutecleo da raiz junta-se o sufixo formador de adjetivo -issup1 (GLARE 1968 paacuteg
970) e o nuacutecleo da palavra eacute signum Dele se originam quase todos os sentidos que foram
incorporados agraves demais formaccedilotildees chegando ateacute o portuguecircs com a palavra signo O
signum latino relaciona-se com a gama de significados da visatildeo ldquouma marca escrita a
impressatildeo de um siacutembolo ou um pouco de cera onde porta essa impressatildeo sinal visiacutevel
de uma presenccedila passadardquo do ensino ldquoalguma coisa percebida pela mente ou pelos
sentidos cuja inferecircncia pode ser desenhadardquo de uma marca ldquoemblema siacutembolo
estandarte uma escultura estaacutetua ou imagemrdquo e ateacute a ideia de movimento ldquogesto ou
movimento usado para designar um sentido manobra militarrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1759-
1760 ndash traduccedilatildeo livre) aparece dentro das possibilidades de compreensatildeo de signum
Qual deles diz respeito ao saber que vecirc principalmente ao saber da ldquopalavra
essencialrdquo (FOGEL 2007 paacuteg 43) da palavra poeacutetica mdash Todos se for considerada a
concretude dos sentidos Isto significa que a marca de cera eacute soacute a marca de cera sua
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simplicidade natildeo eacute conhecida nem vulgar (PESSOA 2006 paacuteg 61) mas guarda dos
homens curiosos o enigma da carta Eacute compreensiacutevel contudo que um mero selo natildeo
seja fruto de enriquecedoras discussotildees filosoacuteficas Dizemos mero aqui referindo-nos ao
simples que eacute grande porque convida agrave experiecircncia singular ainda que banal com aquela
coisa ldquoO simples resguarda o enigma do que permanece e eacute granderdquo (HEIDEGGER
1983 paacuteg 39 ndash traduccedilatildeo livre)9
Outros sentidos entretanto natildeo satildeo tatildeo simples e imediatos o que natildeo deixa de
ser a perda de sua simplicidade Ao menos corriqueiramente concepccedilotildees como a de
emblema siacutembolo estandarte etc remetem a estacircncias fora do instante isto eacute
representam pela abstraccedilatildeo algo que deveria mas natildeo estaacute aqui A isto tanto o poeta
quanto o filoacutesofo supracitados combatem caso contraacuterio seria abrir matildeo da concretude
de cada momento em prol de um conceito estanque e pronto para ser aplicado
transmitido reproduzido e descartado Dicotomicamente falando assumindo o risco que
isso significa podemos aferir que o saber exige que a experiecircncia com a coisa seja feita
concretamente levando-se em conta as singularidades em questatildeo e as limitaccedilotildees que o
agora impotildee O conhecer por sua vez significa uma experiecircncia abstrata permitindo
categorias que facilitariam o trato por preacute-conceito criando-se assim o haacutebito o jaacute visto
e conhecido do fazer
Natildeo dicotomicamente falando tanto o conhecimento quanto o saber fazem parte
da experiecircncia com as coisas satildeo tatildeo intriacutensecos como necessaacuterios ldquoo desaparecimento
de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos
apoiaacutevamos de ordinaacuterio sem querer perceber que originariamente elas constituiacuteam
respostas a questotildeesrdquo (ARENDT 1972 paacuteg 223) cuja comunhatildeo define a existecircncia
humana seu modo de ser Se para cada passo fosse preciso uma reflexatildeo ningueacutem mais
andaria A tensatildeo se desfaz quando se perde no haacutebito a disposiccedilatildeo de questionar tudo se
transformando em conhecido ou conheciacutevel ou seja esquecendo-se de que o passo sim eacute
uma questatildeo a ser pensada que sob o chatildeo supostamente seguro jaz o que natildeo tem chatildeo
o abismo que andar eacute em si um risco agrave queda
O poeacutetico pois faz emergir o concreto da linguagem nas palavras Assim o
concreto manifesta torna presente o saber no que se vecirc Isto que manifesta o saber das
9 Das Einfache verwahrt das Raumltsel des Bleibenden und des Groszligen
28
coisas sem conhececirc-las encontramos sob o nome de aleacutetheia O concreto desse saber natildeo
eacute restrito ao poema escrito nem somente o poeta tem acesso a aleacutetheia agrave manifestaccedilatildeo
Na relaccedilatildeo com a verdade que se apresenta concretamente compreende-se que aleacutetheia eacute
sempre a mesma soacute que de modos diferenciados e eacute justamente isso que possibilita a
singularidade dos caminhos
Em Os trabalhos e os dias portanto Aleacutetheia eacute dupla eacute em primeiro lugar a
Aleacutetheia das Musas que o poeta profere em nome delas e que se manifesta no
discurso maacutegico-religioso articulado agrave memoacuteria poeacutetica em segundo lugar eacute
a Aleacutetheia que o labrador de Ascra possui lsquoVerdadersquo que dessa vez se define
explicitamente pelo lsquonatildeo esquecimentorsquo dos preceitos do poeta Entre as duas
natildeo haacute diferenccedila fundamental eacute a mesma Aleacutetheia vista sob dois aspectos ora
em sua relaccedilatildeo com o poeta ora em sua relaccedilatildeo com o lavrador que o ouve
Enquanto o primeiro a possui apenas em virtude do privileacutegio da funccedilatildeo
poeacutetica o segundo soacute pode ganhaacute-la agrave custa de um esforccedilo de memoacuteria O
camponecircs de Ascra soacute conhece a Aleacutetheia na ansiedade de uma memoacuteria
obsedada pelo esquecimento que pode repentinamente ensombrecer-lhe a
mente e privaacute-lo da lsquorevelaccedilatildeorsquo dos Trabalhos e os Dias (DETIENNE 2013
paacutegs 27-28)
Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi sinocircnimo de certeza isto
eacute mera oposiccedilatildeo entre certo e errado e tentativa de adequaccedilatildeo do errado ao certo Neste
sentido conveacutem observar que uma concepccedilatildeo de ldquoposserdquo da aleacutetheia natildeo se refere a ter a
propriedade de um conhecimento Nem o poeta nem o camponecircs poderiam possuir a
verdade pois ela natildeo era um conhecer ldquopossuiacutevelrdquo Somente quando o saber torna-se
capaz de ser possuiacutedo que ele se torna um conhecimento e um conhecimento inteligiacutevel
Isto porque o saber da verdade era dos deuses do real os poetas apenas se dispunham a
ouvi-lo e por conseguinte a cantaacute-lo como lhes era possiacutevel
O camponecircs por sua vez se detinha nas proximidades do trabalho do poeta ndash e a
isto talvez possamos chamar de posse ndash e dele ldquopode ganhaacute-la [aleacutetheia] agrave custa de um
esforccedilo de memoacuteriardquo (DETIENNE 2013 paacuteg 28) Da mesma forma ganhar aleacutetheia
confunde o leitor quanto a seu caraacuteter de natildeo posse Detienne assim como todos noacutes
estamos muito impregnados pela liacutengua da ciecircncia logo mesmo ao se referir ao que natildeo
eacute cientiacutefico fazemos ao modo da teacutecnica moderna Daiacute a importacircncia de ir aos
fundamentos da liacutengua que natildeo se trata de sua origem cronoloacutegica mas da aproximaccedilatildeo
agraves cercanias da linguagem ao que se diz inaudito no dito
Por este vieacutes alongando um pouco mais a etimologia de ensino chegamos a seco
+ -num a fim de que percebamos o tipo de saber que originou o ensino traduccedilatildeo de uma
29
experiecircncia concreta com a linguagem O Dicionaacuterio Oxford apresenta um significado
etimoloacutegico incerto da palavra signum (GLARE 1968 paacuteg 1759) formado com o sufixo
-num neutro de -nus ndash um formador de palavras adjetivas de numerais distributivos e
que tambeacutem funciona como alargamento do sentido (eg fortuna tribunus) (GLARE
1968 paacuteg 1207) ndash juntamente com o radical seco
1 Cortar com uma faca ou similar cortar 2 Cortar em pedaccedilos fatiar picar
recortar 3 Cortar uma porccedilatildeo de destacar (uma parte) por meio de corte
remover por corte 4 Fazer uma incisatildeo em cortar entalhar etc 5 Passar
atraveacutes de (aacutegua ar uma multidatildeo etc) em movimento raacutepido ou violento
fender um caminho atraveacutes de tambeacutem sulcar (a terra) em lavoura mineraccedilatildeo
etc 6 Formar ou abrir (uma trilha ou sim) por meio de corte (GLARE 1968
paacuteg 1717 ndash traduccedilatildeo livre)10
A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforccedilo com a consulta a Pokorny
(2007) Em ambos os casos a relaccedilatildeo entre seco e signum natildeo eacute segura enquanto origem
e originado mas parece haver concoacuterdia na proximidade de sentido entre ambos no que
se refere agrave marca agrave ldquoimpressatildeordquo que causa Correspondendo a uma interpretaccedilatildeo da
etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito se atendo a um aceno de pensamento
posso supor que a marca do signum eacute um corte seco que porta um saber agrave medida que
rasga criando assim um limite visiacutevel e concretamente experienciado Lidar com um
saber que rasga eacute fazer uma experiecircncia com o concreto da palavra causando sensaccedilotildees
sim mas tambeacutem e principalmente fazendo uma experiecircncia na e atraveacutes das fronteiras
da liacutengua Laacute onde nos aventuramos entre o que eacute e o natildeo ser onde o instante instaura
brevemente a verdade fugidia o concreto se diz somente enquanto experiecircncia deste
mesmo saber
sēk-2 ndash Significado em inglecircs tocut traduccedilatildeo para o alematildeo schneiden Latim
secō -āre lsquocortar podarrsquo segmen segmentum lsquoquebra secccedilatildeorsquo [] Latim
sīgnum neutro lsquomarca siacutembolo sinal indicaccedilatildeorsquo se originalmente lsquomarca
entalhadarsquo () [] Alto alematildeo antigo sega saga Europeu antigo sagu sage
(POKORNY 2007 paacuteg 2660 ndash traduccedilatildeo livre)11
10 1 To sever with a knife or similar cut 2 To cut in pieces slice chop cut up 3 To cut a portion from
to detach (a portion) by cutting cut off 4 To make an incision in cut gash etc 5 To pass through (water
air a crowd etc) in rapid or violent motion cleave a path through also to cut into (the earth) in
ploughing mining etc 6 To form or open up (a track or sim) by cutting 11 sēk-2 ndash English meaning to cut deutsche Uumlbersetzung ldquoschneidenrdquo Lat secō -āre ldquocut clip
abschneidenrdquo segmen segmentum ldquobreak sectionrdquo [hellip] Lat sīgnum n ldquomark token sign indicationrdquo
if originally ldquoeingeschnittene Markerdquo () [] OHG sega saga OE sagu sage
30
Este eacute pois o sentido de um saber que se encrusta na carne Nietzsche (1994 paacuteg
56) jaacute dizia que ldquode tudo o que se escreve aprecio somente o que algueacutem escreve com o
proacuteprio sangue [] Aquele que escreve em sangue e maacuteximas natildeo quer ser lido mas
aprendido de corrdquo Filosoficamente falando apreciar neste sentido natildeo se restringe agrave
opiniatildeo pessoal somente mas diz tambeacutem de uma entrega no que se faz
Ao afirmar uma oposiccedilatildeo entre ler e aprender de cor haacute um reconhecimento da
experiecircncia de um saber vivido na medida em que um conceitua e descreve e outro que
demarca um modo sanguinolento de ser Este sangrar traz ao ato a memoacuteria da verdade
seja como valor moral de vontade e de ldquoquererrdquo seja por simplesmente se dar de outra
forma natildeo dimensionaacutevel no falar sobre algo mas sim em dizer com algo Quem condiz
diz junto ou seja convoca agrave participaccedilatildeo sem ser arbitraacuterio convida a manifestar-se no
que se manifesta agrave medida da manifestaccedilatildeo que eacute o corte entre as possibilidades de cada
um e o impossiacutevel aquilo sobre o qual natildeo exercemos posse nem poder de possuir mas
que por isso nos delimita e constitui ldquoVai-se ao limiar sempre que se vai aos limites
[grifo no original]rdquo (NIETZSCHE 1967 ndash traduccedilatildeo livre)12
Heidegger (2003) tambeacutem a seu modo pensou este saber que corta No seu ensaio
A linguagem o pensador alematildeo interpreta o poema Uma tarde de inverno13
Na janela a neve cai
Prolongado soa o sino da tarde
Para muitos a mesa estaacute posta
E a casa bem servida
Alguns viandantes da erracircncia
Chegam ateacute a porta por veredas escuras
Da seiva bruta da terra
Surge dourada a aacutervore dos dons
O viandante chega quieto
A dor petrificou a soleira
Aiacute brilha em pura claridade
Patildeo e vinho sobre a mesa (TRAKL 2016 ndash traduccedilatildeo de Marcia Saacute de
Cavalcante Schuback)14
12 Man geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden geht 13 Ein Winterabend 14 Wenn der Schnee ans Fenster faumlllt Lang die Abendglocke laumlutet Vielen ist der Tisch bereitet Und
das Haus ist wohlbestellt Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden Golden
bluumlht der Baum der Gnaden Aus der Erde kuumlhlem Saft Wanderer tritt still herein Schmerz versteinerte
die Schwelle
Da erglaumlnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein
31
Pela obra literaacuteria eacute construiacuteda uma compreensatildeo filosoacutefica da dor natildeo restrita agrave
certa negatividade O verso central para tal pensamento eacute o seguinte ldquoSchmerz
versteinerte die Schwellerdquo ldquoA dor petrificou a soleirardquo A traduccedilatildeo para o portuguecircs leva
em conta a sonoridade e o jogo imageacutetico proacuteprios da liacutengua de destino sem faltar com
cuidado ao original O esforccedilo poeacutetico eacute visiacutevel contudo traduzir eacute tanto caminho como
descaminho de sentido parte do que caracteriza o poema em alematildeo se desdobra
singularmente em portuguecircs
O verso fala de dor Schmerz em correspondecircncia com a soleira Schwelle Como
o que doacutei Heidegger (2003 paacuteg 21) entende por ldquoA dor eacute a junta articuladora no
dilaceramento que corta e reuacutene Dor eacute a articulaccedilatildeo do rasgo do dilaceramento Dor eacute
soleira Ela daacute suporte ao entre ao meio dos dois que nela se separam A dor articula e
traccedila o rasgo da di-ferenccedila A dor eacute a proacutepria di-ferenccedilardquo Na mesma instacircncia ontoloacutegica
estatildeo a dor e a soleira a dor e a di-ferenccedila o que isso significa
Em alematildeo Schwelle tambeacutem diz do limite o limiar entre duas coisas como a
soleira eacute a fronteira que separa o dentro do fora da casa Enquanto separa instaura tanto
a casa quanto a rua como a natildeo casa ainda a casa que viraacute Sem soleira rua e casa natildeo
teriam suas singularidades mantidas suas di-ferenccedilas ldquoo termo lsquoa di-ferenccedilarsquo natildeo diz
uma categoria geneacuterica para vaacuterias espeacutecies de distinccedilotildees A di-ferenccedila aqui nomeada eacute
soacute uma Eacute uacutenicardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 19) Diferir natildeo eacute deixar misturar
categorizar mas fazer aparecerem os limites que definem e constituem eacute emergir a
unidade que se encontra no ldquoentrerdquo de uma e outra coisa
Dor e limite se fundem Ambos datildeo fundamento um ao outro no entre que os
diferencia O poema no original traz um jogo sonoro em que essa relaccedilatildeo correlata se
mostra novamente Tanto as palavras Schmertz e Schwelle comeccedilam com o mesmo som
sch- [ʃ] fricativo ou seja com quase nenhuma interrupccedilatildeo de ar seguidas de m- [m] e
w- [v] que embora diferentes ainda resguardam essa mesma caracteriacutestica de som
continuado Sonoramente dor e limite fluem abertamente Um introduzindo outro
terminando ndash origem e plenitude do verso pela dor e pela soleira respectivamente
Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta tem pois sua
quietude Afinal ldquoa dor petrificourdquo o limite a soleira para diante da dor Eacute marcada uma
pausa que natildeo faz do limite igual ao comeccedilo O instante que demarca o quieto da fluidez
32
constitui e distingue as diferenccedilas e identidades entre origem e fim enquanto plenitude
Em alematildeo o verbo versteinern tambeacutem comeccedila com o tipo de som fricativo v- [f] para
coincidir com o som anterior sch- [ʃ] todavia seguido pela oclusiva -t- [t] ou seja onde
haacute uma obstruccedilatildeo parcial da saiacuteda de ar
A construccedilatildeo sonora do verso eacute marcada por uma pausa entre dois sons contiacutenuos
Ali onde dor e limite se encontram haacute tanto multiplicidade de um quanto unidade de
vaacuterios ndash pausa e continuaccedilatildeo Versteinern proveacutem do substantivo Stein pedra uma pedra
que se interpotildee entre dois acontecimentos de mundo lembra-nos de ldquono meio do caminho
tinha uma pedrardquo (ANDRADE 2013 paacuteg 30) O verso tatildeo conhecido de Drummond
retoma em Georg Trakl a tensatildeo no embate causador de dor e de limite fundador Trazer
agrave quietude da pedra eacute dar sentido ontoloacutegico tanto ao limite quanto agrave dor
A linguagem fala Sua fala chama a diferenccedila a di-ferenccedila que des-apropria
mundo e coisa para a simplicidade de sua intimidade
A linguagem fala
O homem fala agrave medida que corresponde agrave linguagem Corresponder eacute escutar
Ele escuta agrave medida que pertence ao chamado da quietude (HEIDEGGER
2003 paacuteg 26)
Pelo ensino pois transita-se na marca Via de acesso que traduz uma experiecircncia
de des-conhecer se as reacutedeas da imposiccedilatildeo cedem lugar agrave fronteira do pensar Ali as
distacircncias se estreitam proximidades natildeo se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre
afinal ldquomestre natildeo eacute quem sempre ensina mas quem de repente aprenderdquo (ROSA 2006
paacuteg 213) Ensinar eacute estar na marca do pensamento em outras palavras eacute aprender a estar
no pensamento da marca a saber atento a que o limite demarcante seja assim como natildeo
seja O ensinamento sem aprendizagem eacute pobre de sentido restringe-se agrave mera
informaccedilatildeo de conteuacutedos pragmaacuteticos Radicalmente ensinar significa tambeacutem natildeo
ensinar agrave medida que daacute espaccedilo para que o outro (que tambeacutem sou eu) aprenda
Formar eacute deixar o outro aprender integrando no que ele eacute os limites do que
ele natildeo eacute [] Soacute quem realmente sabe aprender e somente na medida em que
o sabe pode realmente ensinar [] Ensinar exige e impotildee a ascese de
aprender a ascese de constantemente assumir tanto a ignoracircncia quanto o saber
do que jaacute se sabe Natildeo apenas aquele que jaacute sabe tudo natildeo pode nem aprender
nem ensinar Tambeacutem natildeo pode quem natildeo assumir o saber de sua ignoracircncia
quem natildeo reconhecer que sabe alguma coisa (LEAtildeO 1977 paacuteg 49)
33
113 Natildeo ensinar e a ciecircncia
Nesta dimensatildeo natildeo ensinar eacute uma prerrogativa O que natildeo quer dizer faltar com
as suas responsabilidades enquanto professor enquanto pais ou enquanto sociedade Natildeo
ensinar estaacute comumente relacionado com negligecircncia Isso tem pouco a ver com o
pensamento do ensino e mais com o que se espera de determinadas funccedilotildees e papeacuteis
sociais Natildeo ensinar se refere diversamente ao compromisso com seu desconhecimento
impossibilidade de que algo seja dito ndash pois natildeo se sabe ndash e tendo cuidado com o
conhecimento jaacute que mesmo no dito haacute o natildeo dito o natildeo controle do que seraacute
compreendido
Entretanto parece que nos atuais tempos esta eacute uma decisatildeo estranha de se tomar
Jaacute causa estranhamento natildeo ensinar sem optar por isso Ou seja natildeo detendo todas as
variaacuteveis e circunstacircncias falhamos ao passar um determinado conteuacutedo seja este teacutecnico
cultural ou moral Diferente eacute pois ldquoescolherrdquo natildeo ensinar Aceitar que faz parte do
processo o equiacutevoco a falta e o improviso Reconhecer a ponta solta o diacutegito errado o
ponto fora da curva e natildeo fazer nada a respeito
Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista na qual o ensino
serve aos propoacutesitos da aprendizagem Sistemas preacute-programados demandam o
cumprimento de tarefas Logo eacute conveniente a transmissatildeo do que fazer para o
desempenho esperado Natildeo soacute isso mais do que fazer adveacutem o como fazer cuja resposta
procura constantemente por um melhor desempenho produzir mais a menor custo ou
mais por menos tempo o que costuma coincidir
Este aspecto performaacutetico que se dedica a se superar ininterruptamente natildeo pode
permitir o natildeo ser Como num teatrinho de marionetes tudo estaacute sob controle ou acredita-
se que esteja Da filosofia agrave mesa de bar das salas de aula aos hospiacutecios nossa sociedade
se vecirc como peccedilas de um quebra-cabeccedila que pode ser solucionado Quem monta as peccedilas
eacute o homem quem diz que as peccedilas satildeo montaacuteveis eacute a ciecircncia pois ela eacute ldquoa teoria do realrdquo
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Aqui para pensar a palavra teoria referimo-nos tanto ao
sentido de ldquoconjunto de regras ou leis mais ou menos sistematizadas aplicadas a uma
aacuterea especiacuteficardquo (HOUAISS 2009a Teoria) quanto agrave etimologia a qual significaria accedilatildeo
34
de ver observar testemunhar ldquoenviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oraacuteculos
ou jogos ou coletivamente os proacuteprios θεωροί embaixada missatildeordquo (LIDDELL
SCOTT 1940 Θεωρία ndash traduccedilatildeo livre)15
Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por ldquoverrdquo ou ldquopocircr-se a observarrdquo
Ainda assim diferentes nomeares sugerem diversos modos de o proacuteprio compreender o
real ldquoo pensamento doacutecil agrave voz do ser procura encontrar-lhe a palavra atraveacutes da qual a
verdade do ser chegue agrave linguagemrdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) Neste sentido
observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo semacircntico de ver olhar entretanto
esse mesmo eacutetimo pode ser lido com acentuaccedilotildees diferentes θεά feminino de θεός
ldquodeusa divindaderdquo e ὤρα ldquocuidadordquo (LIDDELL SCOTT 1940 ndash traduccedilatildeo livre)16
Temos pois um convite Fomos convidados a ver tambeacutem em teoria a palavra θεωρία
como um cuidado sagrado o divino em todo cuidar ou ainda ldquoora foi como deusa que
ἀλήθεια apareceu ao pensador originaacuterio Parmecircnides [] Em sentido antigo isto eacute
originaacuterio mas de forma alguma antiquado a teoria eacute a visatildeo protetora da verdaderdquo
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 46 ndash grifos no original)17
O real para muitos povos antigos eram os proacuteprios deuses se manifestando Esta
era ldquosuardquo verdade ldquoseurdquo mundo Um possessivo que natildeo traduz da posse como estamos
habituados Natildeo havia a verdade de cada um embora todos fizessem uma experiecircncia
com a verdade singularmente Isto porque para os antigos a verdade era muacuteltipla e
diversa Diferentemente de nossa concepccedilatildeo atual de verdade regida pela ciecircncia pedras
15 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games or collectively the θεωροί themselves
embassy mission Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqewri
2Fagt Acesso em 13 out 2016 16 Cf Θέα Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqe2
Fa2gt Acesso em 14 set 2016
Cf Θεά Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqea2
F1gt Acesso em 14 set 2016
Cf Ὁράω Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(ra
2Fwgt Acesso em 14 set 2016
Cf Ὤρα Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dw)2
Fragt Acesso em 14 set 2016 17 Cf Ἀλήθεια Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)lh
2Fqeia Acesso em 14 set 2016
35
animais pessoas proacuteximas e inimigos eram a verdade pois a proacutepria presenccedila desses
seres constituiacutea sua veracidade ldquoprovardquo cabal da doaccedilatildeo de existecircncia de um deus A
verdade eacute sempre verdade dos deuses seja quem for que a proferir
Os indo-iranianos tecircm uma palavra comumente traduzida por Verdade Rta
Mas Rta eacute tambeacutem a prece lituacutergica o poder que garante o retorno das auroras
a ordem estabelecida pelo culto aos deuses o direito enfim um conjunto de
valores que estilhaccedilam nossa imagem da verdade (DETIENNE 2013 paacutegs
1-2)
Isso significa que a compreensatildeo de oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso natildeo era
possiacutevel visto que o que se manifesta seja bom ou ruim tem um sentido de ser que
remete ao sagrado Sendo atribuiacuteda ao artiacutefice divino a verdade jamais poderia ser
possuiacuteda no sentido de controlada apenas se convive em sua cercania natildeo havendo
possibilidade de cercaacute-la cerceando-a ao uso a bel-prazer Desse modo as diferenccedilas satildeo
apenas outras manifestaccedilotildees da mesma verdade sagrada Seu e sua satildeo possessivos que
natildeo indicam posse mas apropriaccedilatildeo eacute o ser no mundo em sua limitaccedilatildeo fundadora
Sua lsquoVerdadersquo eacute uma lsquoVerdadersquo assertoacuterica ningueacutem a contesta ningueacutem a
demonstra [] Aleacutetheia natildeo eacute a concordacircncia entre a proposiccedilatildeo e seu objeto
tampouco a concordacircncia de um juiacutezo com os outros juiacutezos natildeo se opotildee agrave
lsquomentirarsquo natildeo haacute lsquoverdadeirorsquo em face do lsquofalsorsquo A uacutenica oposiccedilatildeo
significativa eacute entre Aleacutetheia e Leacutethe
[]
Natildeo haacute de um lado Aleacutetheia (+) e do outro Leacutethe (-) mas entre esses dois polos
se desenvolve uma zona intermediaacuteria em que Aleacutetheia desliza para Leacutethe e
vice-versa A lsquonegatividadersquo portanto natildeo estaacute isolada apartada do Ser ela
orla a lsquoVerdadersquo eacute a sua sombra inseparaacutevel As duas potecircncias antiteacuteticas natildeo
satildeo pois contraditoacuterias mas tendem uma agrave outra o positivo tende ao negativo
que de certo modo o lsquonegarsquo mas sem o qual natildeo se sustenta (DETIENNE
2013 paacuteg 29 paacutegs 77-78 ndash grifos no original)
Para noacutes da modernidade real eacute o mundo que vemos ou podemos ver e controlar
cujo descobrimento torna-se sinocircnimo de confirmaccedilatildeo de uma teoria A compreensatildeo do
mundo se daacute agrave medida que o vemos e nossa visatildeo eacute guiada pela ciecircncia no sentido de
que damos existecircncia agrave realidade ao dispor cada peccedila em seu lugar A isto chamamos
conhecer categorizar o real agrave mercecirc do que podemos apreender dele Em contrapartida
o que natildeo podemos conceituar natildeo tem valor de existecircncia simplesmente natildeo eacute ldquorealrdquo eacute
ldquofictiacuteciordquo eacute ldquoimaginaccedilatildeordquo quer dizer natildeo eacute verdade mas mentira Ao aderir agrave concepccedilatildeo
36
de opostos subentende-se a ideia de norma padratildeo ndash haacute o que eacute e o que natildeo eacute distinccedilatildeo
claramente determinaacutevel quando coincidente correta quando divergente corrigiacutevel
A ontologia perde sentido em detrimento do que eacute claro evidente praacutetico
objetivo uacutetil enfim do que eacute capaz de levar a algum lugar ainda que esse
lugar possa natildeo ser exatamente o lugar mais desejaacutevel Natildeo importa O
importante eacute que seja algum lugar A questatildeo ontoloacutegica passa ao longo do
desenvolvimento da Cultura Ocidental a ser considerada perda de tempo
(JARDIM 1995 paacutegs 15-16)
Exige-se que se encaixe Como reconhecer o natildeo ensinar se natildeo se pode classificar
o que natildeo eacute Natildeo tem clareza falta utilidade no natildeo ser Qual a validade de natildeo ensinar
para um meacutedico um advogado Como natildeo ensinar a uma crianccedila tatildeo em tenra idade e
desprotegida ldquoPerdem-se no vazio consideraccedilotildees sobre o modo como se poderia levar
a agir sobre a vida cotidiana e puacuteblica de modo efetivo e uacutetil o pensamento ainda e apenas
metafiacutesicordquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 58) A pergunta aqui versa a respeito de uma
vontade mesmo que seja vontade de cuidar ainda assim eacute um desejo pelo ente antiteacutetico
ao ser circunstacircncia de realizaccedilatildeo do ser que foi que eacute ou que seraacute como se instacircncias
discerniacuteveis fossem
Busca-se uma postura de soluccedilatildeo de problemas resoluccedilatildeo de conflitos sem se dar
conta de que a tensatildeo eacute a proacutepria condiccedilatildeo de existecircncia no embate entre o nada e o ser
ldquoUm dos lugares fundamentais em que reina a indigecircncia da linguagem eacute a anguacutestia no
sentido do espanto no qual o abismo do nada dispotildee o homem O nada enquanto o outro
do ente eacute o veacuteu do ser No ser jaacute todo o destino do ente chegou originariamente agrave sua
plenituderdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) A questatildeo eacute como agir diante do que se
aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente ele natildeo eacute Chegar agrave
plenitude na origem se contradiz com a ideia da construccedilatildeo de um conhecimento que se
inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acuacutemulo de informaccedilotildees Isto porque natildeo nos
referimos agrave origem como comeccedilo muito menos agrave plenitude como fim aqui diz-se
respeito ao movimento Ir a algum lugar eacute sempre chegar de um lugar de modo que essa
concepccedilatildeo de saber eacute estar dentro da dinacircmica de partida e chegada de ser e estar do
nada e do ente de origem e de plenitude
Ora afirmamos que o natildeo ensinar imerso na senda do pensar nada diz respeito
ao descuido com o outro mas nesse embate entre ensinar um conteuacutedo e deixar o ensino
seguir seu curso de aprendizagem e vazio quanto mais se aceita como vital uma funccedilatildeo
maior seratildeo as garras do controle Seja por teorias sempre novas seja por soluccedilotildees agrave
37
disposiccedilatildeo o importante eacute sanar quaisquer duacutevidas ter sempre algo a dizer e muito muito
a ensinar ldquoA carga ndash inevitavelmente ndash normativa do saber pedagoacutegico acaba muitas
vezes por bloquear a experiecircncia da infacircncia [grifo no original]rdquo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg
9 ndash traduccedilatildeo livre)18
Quem deteacutem o dizer dita as regras Diferentemente de impor a vontade por forccedila
fiacutesica controla-se o dizer que eacute o saber vigente dominante e aceito A palavra que sabe
que eacute cientiacutefica diz o que eacute exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocaacute-los
literal mas radicalmente ldquojaacute natildeo se trata de pocircr a morte em accedilatildeo no campo da soberania
mas de distribuir os vivos em um domiacutenio de valor e utilidaderdquo (FOUCAULT 1988 paacuteg
157)
Ocorre uma inversatildeo radical a ciecircncia diz o que eacute A ciecircncia deixa de ser uma
dentre tantas possibilidades passando a ser a deliberaccedilatildeo fundamental da existecircncia ldquoo
homem ndash um ente entre outros ndash faz lsquociecircnciarsquo Neste lsquofazerrsquo ocorre nada menos que a
irrupccedilatildeo de um ente chamado homem na totalidade do ente mas de tal maneira que na
e atraveacutes desta irrupccedilatildeo se descobre o ente naquilo que eacute em seu modo de serrdquo
(HEIDEGGER 1979c paacuteg 36) Os filhos desse mundo seratildeo crias cientiacuteficas homens
que veem no mundo somente um espelho de si Daiacute o predomiacutenio do indiviacuteduo da
vontade pois se tudo eacute um reflexo de noacutes mesmos basta esticar a matildeo e apanhar O que
natildeo nos serve natildeo eacute natildeo nos vemos logo desprezamos Ciumento eacute o deus-ciecircncia que
natildeo permite adoraccedilotildees alheias
A ciecircncia eacute a seguranccedila do pensamento isto eacute o que haacute de inofensivo sem ser
inocente Seguro pelas contas estaacute o proacuteprio pensar que se fia na loacutegica infaliacutevel ou na
estatiacutestica mais aceita por todos Quando o real eacute domado ele se torna conhecido a este
papel se presta a ciecircncia ldquoo pensamento calculador submete-se a si mesmo agrave ordem de
tudo dominar a partir da loacutegica de seu procedimentordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 50)
Nessas categorias se constitui a interpretaccedilatildeo do ser sem se perceber que satildeo as mesmas
categorias partes da possibilidade de categorizar A essa multiplicaccedilatildeo de chances
apreensotildees e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o caacutelculo e o encerra em seu
destino sua derradeira conta o incalculaacutevel em todo calcular
18 La carga ndash iquestinevitablemente ndash normativa del saber pedagoacutegico acaba muchas veces por bloquear la
experiencia de la infancia
38
114 O jogo do poeta e da infacircncia
Ainda que natildeo fuja ao controle ousamos ao ensino de Dispor-se a ensinar algo
natildeo eacute demeacuterito natildeo contradiz o caminho aqui percorrido natildeo deve ser evitado ao
contraacuterio constitui fundamentalmente o ato de ensinar Um ensino que se integra ao natildeo
ensino do mesmo ensinar Deste modo perguntar para que ensinar natildeo perde sua validade
apenas agora congrega na pergunta pela utilidade sua inutilidade
Natildeo seria conveniente tutelar o ensino a fim de guiar aos cuidados de
profissionais respeitados a educaccedilatildeo de nossos filhos Como vimos brevemente por mais
que quiseacutessemos nossa vontade estaacute aqueacutem das possibilidades de realizaccedilatildeo Por este
vieacutes podemos traccedilar duas concepccedilotildees de ensino uma que se sabe limitada e neste limite
funda seu ensinamento outra que pretende limitar pelo controle que se diz sabedora dos
caminhos e se torna tutora do que e como proceder Uma ousa a outra se assegura uma
cuida no risco a outra entende que cuidar eacute evitar arriscar-se
Supotildee-se estar vendo dois caminhantes diante de uma correnteza selvagem
que arrasta consigo pedregulhos diversos o primeiro atravessa-o com leveza
nos peacutes utilizando as pedras para impulsionar-se cada vez mais adiante
mesmo que estas afundem assim que ele as deixa O outro permanece agrave
margem desamparado ele precisa primeiro construir os fundamentos que iratildeo
suportar o sem passo pesado e prudente (NIETZSCHE 2013 paacuteg 41)
A criacutetica ao ensino acompanha uma criacutetica no ensino Radicalmente eacute questionar
as instituiccedilotildees seus conteuacutedos e o modo como compreendemos seus papeacuteis na sociedade
isso ao menos em alguma instacircncia do contraacuterio estariacuteamos renegando o caraacuteter dialoacutegico
do pensamento e do ensino aqui propostos
Noacutes todos viemos de uma concepccedilatildeo de ldquoescola paternalista destinada a educar
os governados os que iriam obedecer e fazer em oposiccedilatildeo aos que iriam mandar e
pensarrdquo (TEIXEIRA 1947 paacuteg 27) que nada mais eacute do que a escola do sistema de
controle da ciecircncia pela teacutecnica Nesse paternalismo escolar natildeo soacute o ensino eacute controlado
mas tambeacutem a instituiccedilatildeo e suas partes componentes inclusive seu puacuteblico-alvo ndash os
alunos Na compreensatildeo funcional estes satildeo partes do todo que ainda natildeo se sabem todo
39
logo eacute preciso adestrar a compor o sistema Construccedilatildeo essa interminaacutevel sempre a
necessitar de mais instrutores pois novos satildeo os mecanismos
Nossa sociedade do conhecimento ou da aprendizagem como se a denomina
com seu slogan do aprender a aprender e do aprender ao longo de toda vida eacute
neste sentido um tipo de processo que em sua alunizaccedilatildeo do aprendiz o
converte tambeacutem em um aprendiz eterno mas de outra iacutendole um aprendiz
nunca de todo emancipado um aprendiz que natildeo solta da matildeo de seus
educadores (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 14 ndash traduccedilatildeo livre)19
Eacute um cuidado com a peccedila talvez um cuidado com o ente destituiacutedo de essecircncia
em que a diferenccedila eacute combatida e entendida por desigualdade e identidade por igualdade
cujas melhores hipoacuteteses criacuteticas recaem sobre as relaccedilotildees de poder ndash nas quais ldquoo
contraacuterio da igualdade natildeo eacute a diferenccedila mas a desigualdade que eacute socialmente
construiacuteda sobretudo numa sociedade tatildeo marcada pela exploraccedilatildeo classistardquo
(BENEVIDES 1998 paacuteg 156 ndash grifos no original) ndash mas carecem de questionamentos
sobre os mesmos valores que compotildeem e fundam suas criacuteticas
A partir disso podemos concluir que [] a criacutetica do ponto de vista do trabalho
natildeo nos permite pensar o proacuteprio modo de produzir [] O socialismo seria
uma lsquoforma social de distribuiccedilatildeorsquo adequada agrave produccedilatildeo industrial o modo de
produccedilatildeo natildeo eacute criticado radicalmente pelo contraacuterio ele eacute o ponto referencial
para a construccedilatildeo da criacutetica (SILVA 2016 paacuteg 37)
Trocando em miuacutedos para se dizer o que o aluno deve ou natildeo receber como
educaccedilatildeo se se deve ensinar ou natildeo filosofia ou literatura eacute preciso se perguntar o que
satildeo filosofia e literatura Arriscar pensar (natildeo necessariamente determinar) o ser dos entes
para aiacute viver no risco desta decisatildeo ao ensinar
Um dos criacuteticos literaacuterios brasileiros mais tradicionais e influentes interpreta que
decidir pela literatura eacute aceitar que ldquonas nossas sociedades a literatura tem sido um
instrumento poderoso de instruccedilatildeo e educaccedilatildeo [] A literatura confirma e nega propotildee
e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemasrdquo (CANDIDO 1989 paacuteg 113) Decerto esta eacute uma posiccedilatildeo que merece
diversas ressalvas principalmente por se referir ao ato literaacuterio como um instrumento
19 Nuestra sociedad del conocimiento o del aprendizaje como se la denomina con su eslogan del aprender
a aprender y del aprender a lo largo de toda la vida es en este sentido una suerte de proceso que en su
alumnizacioacuten del aprendiz lo convierte tambieacuten en un aprendiz eterno pero de otra iacutendole un aprendiz
nunca del todo emancipado un aprendiz que no se acaba soltar de la mano de sus educadores
40
remetendo-o assim agrave loacutegica tecnicista de pocircr tudo a serviccedilo da ciecircncia Contudo
chamamos atenccedilatildeo agrave importacircncia ldquopoderosardquo que a literatura adquire jaacute na tradiccedilatildeo
Neste sentido lidar com literatura e ensino trata mais de estabelecer um diaacutelogo
entre ambos do que simplesmente de apanhar livros nas seccedilotildees luacutedicas da biblioteca e
levar para que os alunos os leiam Pode-se fazer isso mas natildeo eacute necessaacuterio como aqui
vemos O convite ao poeacutetico cabe a todas as idades e se em tenra idade estamos carentes
de conhecimento o saber enquanto marca de pensamento ndash experiecircncia concreta de
vislumbramento de dor de temor de alegria ou seja de realidade ndash se dispotildee a quem
quer que entre em contato com o poeacutetico que faccedila o caminho de pensar e ser o poeacutetico
O saber natildeo eacute apreendido mas sim experienciado e para isso natildeo haacute preacute-requisito de
idade ldquoo termo infantil denomina normalmente uma faixa etaacuteria [] Pode o fenocircmeno
literaacuterio submeter-se a e ser apreendido por um tal criteacuterio ou classificaccedilatildeo Eacute
problemaacuteticordquo (CASTRO 1994 paacuteg 132)
Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a
realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da
lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de
pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de literatura como
um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das
experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que
natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas
Amor oacutedio guerra paz permanecer e partir Haacute muito tempo que andam juntos
com a filosofia e a literatura Esta eacute a proposta de um ensino na marca do pensamento
que diz porque sabe e cala porque diz Ao decidir pelo convite do ensinar reconhecemos
ldquoum vir a ser e perecer um construir e destruir sem qualquer acreacutescimo moral numa
inocecircncia eternamente idecircntica neste mundo existe apenas no jogo do artista e da crianccedilardquo
(NIETZSCHE 2013 paacuteg 68) Estar na marca do pensamento eacute portanto jogar o jogo
do poeta e da infacircncia
12 A tradiccedilatildeo
41
Este jogo de ensino seja ele de literatura e de filosofia seja de qualquer outra
disciplina eacute marcado por uma tradiccedilatildeo Quando nos perguntamos o que como e a quem
ensinar estamos levando em conta querendo ou natildeo um percurso histoacuterico de
compreensatildeo do mundo em que vivemos De certa maneira a tradiccedilatildeo foi um caminho
na marca do pensamento que se estabeleceu canonicamente de modo que essa tomada de
atitude torna-se familiar e conhecida num determinado grupo
Simultaneamente ao criticar o ensino critica-se a tradiccedilatildeo do ensinar Em linhas
gerais tanto o ensino quanto a tradiccedilatildeo se confundem em significado Como mostra o
sentido aceito amplamente pela sociedade encontra-se na palavra tradiccedilatildeo os significados
de ldquoato ou efeito de transmitir ou entregar transferecircncia heranccedila cultural conjunto de
valores costume haacutebito conjunto de doutrinas essenciais reconhecidos e aceitos por sua
ortodoxia e autoridaderdquo (HOUAISS 2009a)
Contudo assim como o ensino tambeacutem a tradiccedilatildeo pode ser pensada diversa e
criticamente Aqui se dispotildee a pensar a tradiccedilatildeo da tradiccedilatildeo isto eacute a tradiccedilatildeo do que se
costuma compreender como o que seja tradiccedilatildeo No seu ensaio A crise na educaccedilatildeo
Hannah Arendt (1972 paacuteg 243) jaacute chamava atenccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e
educaccedilatildeo ao dizer ldquoa crise da autoridade na educaccedilatildeo guarda a mais estreita conexatildeo com
a crise da tradiccedilatildeo ou seja com a crise de nossa atitude face ao acircmbito do passadordquo Um
relacionamento que evoca tambeacutem a autoridade de que a tradiccedilatildeo dispunha e que
determina os modos de ser da educaccedilatildeo consequentemente do ensino
Neste sentido qual a relaccedilatildeo entre ensino tradiccedilatildeo e autoridade Seria a tradiccedilatildeo
o ensino da autoridade Concebendo tradiccedilatildeo como conjunto de valores heranccedila cultural
e transferecircncia pode-se supor daiacute uma autoridade dos conteuacutedos Se foi feito assim
faccedilamos assim Mais uma vez lidamos com a transmissatildeo de uma concepccedilatildeo de maneiras
de ver o real teorias e metodologias Uma tradiccedilatildeo tecnicista que transmite a autoridade
cientiacutefica pelo ensino determinando o que o real eacute a partir do que se acredita que ele deve
ser controlaacutevel e controlado Por esse vieacutes de tradiccedilatildeo a criaccedilatildeo cede espaccedilo agrave
reproduccedilatildeo e a ousadia ao zelo
Pertence agrave proacutepria natureza da condiccedilatildeo humana o fato de que cada geraccedilatildeo se
transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geraccedilatildeo
para um mundo novo soacute pode significar o desejo de arrancar das matildeos dos
receacutem-chegados sua proacutepria oportunidade face ao novo (ARENDT 1972 paacuteg
226)
42
121 Quando o poeacutetico repousa esquecido
Esta eacute a tradiccedilatildeo do homem ocidental o mesmo que vive a ilusatildeo de poder
compreender tudo a seu redor Um homem que busca suas origens Isto significa estar
num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos e por fim sua forma de
ser Este eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita alfabeacutetica a filosofia e a
induacutestria Vale ressaltar que haacute um embate na Academia sobre se a invenccedilatildeo da escrita
alfabeacutetica eacute ou natildeo eacute obra grega A ideia neste trabalho natildeo eacute se perder ldquona busca do
primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica
fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo
(HAVELOCK 1996a paacuteg 15) pois nenhuma dessas revoluccedilotildees chegaram sem cobrar
um preccedilo Cada invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se
Como a tradiccedilatildeo tradicional lida com a inventividade Ao longo dos seacuteculos
houve criaccedilotildees das mais variadas nunca se deixou de inventar e criar a despeito da
autoridade da tradiccedilatildeo Por outro lado talvez certo desconforto com o que se apresenta
seja mesmo necessaacuterio a fim de que haja um impulso pela criaccedilatildeo Inclusive eacute de se
suspeitar a coincidecircncia de que justo no seacuteculo no qual mais se inventaram coisas maior
foi a repulsa pela tradiccedilatildeo A pergunta agora se refaz como se daacute essa inventividade que
despreza o jaacute inventado a ponto de estar sempre agrave busca por uma novidade
O problema da educaccedilatildeo no mundo moderno estaacute no fato de por sua natureza
natildeo poder esta abrir matildeo nem da autoridade nem da tradiccedilatildeo e ser obrigada
apesar disso a caminhar em um mundo que natildeo eacute estruturado nem pela
autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradiccedilatildeo (ARENDT 1972 paacuteg
245-246)
Este eacute o homem que vive a ilusatildeo A criaccedilatildeo que renega a tradiccedilatildeo desprezando-
a se ilude por natildeo reconhecer que toda invenccedilatildeo jaacute faz parte da tradiccedilatildeo somente por ter
sido inventada A novidade soacute existe conceitualmente ou no instante imensuraacutevel pois a
partir do derradeiro momento da criaccedilatildeo o a fazer se torna feito particiacutepio passado
43
Estando a coisa posta somente a disposiccedilatildeo criativa perante a tradiccedilatildeo pode dar
movimento e sentidos ao ateacute entatildeo adormecido
Poreacutem o imaginaacuterio da ficccedilatildeo da literatura natildeo pode ser confundido com a
simples ilusatildeo promotora da coisificaccedilatildeo e da alienaccedilatildeo do homem pela
manipulaccedilatildeo de estereoacutetipos ideoloacutegicos O ilusoacuterio natildeo promove o descortinar
do sentido do ser do homem humanizando-o libertando-o Pelo contraacuterio o
seu modelo eacute uniforme e repetido jamais dando lugar agrave diferenccedila ao que ainda
natildeo se sabe ao desafio do perguntar (CASTRO 1994 paacuteg 135 ndash grifo no
original)
Este eacute o homem que vem perdendo seu contato mais imediato e concreto com as
coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que nada mais eacute do que o desdobramento
do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo Um homem teacutecnico um homem no qual o
poeacutetico repousa esquecido Sobre este periacuteodo da nossa histoacuteria impotildee-se uma tradiccedilatildeo
nos moldes da ciecircncia e da teacutecnica moderna que almeja sempre suplantar qualquer outra
tradiccedilatildeo que natildeo lhe diga respeito
O pensar poeacutetico eacute o pensar se manifestando realizaccedilatildeo concreta [] Sua
concretude adveacutem precisamente da ausecircncia de certeza e da vigecircncia de uma
dinacircmica O pensar eacute apresentado como o pensar que pensa realizando
diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulaccedilatildeo
de abstraccedilotildees como informaccedilotildees coligidas para se apresentarem no mais das
vezes como simulacro de alguma realizaccedilatildeo externa a esse mesmo pensar
(JARDIM 2005 paacuteg 33)
122 A ideia e o ser
Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que
as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as
coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos
compreendecirc-las A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana
das coisas mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa
a ser nossa possibilidade de vecirc-las Jaacute dizia Pessoa
O Universo natildeo eacute uma ideia minha
A minha ideia do Universo eacute que eacute uma ideia minha
44
A noite natildeo anoitece pelos meus olhos
A minha ideia da noite eacute que anoitece por meus olhos
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso (PESSOA 2006 paacuteg 51)
Nos versos do poeta na voz de seu heterocircnimo Alberto Caeiro ressoa como um
estrondo a dicotomia entre concreto e abstrato entre lidar com uma tradiccedilatildeo de
pensamento que se insere na emergecircncia das circunstacircncias na qual tudo tem um limite
no deslimite das possibilidades e compreender a instacircncia das coisas como algo
mensuraacutevel apreensiacutevel pelas ideias e conceitos em sua totalidade Isto eacute a crenccedila de que
a realidade pode ser conhecida genericamente apresentada num modelo que representa
todo o resto Desta forma jaacute tendo conhecido o molde basta adequaacute-la reproduzi-la Sem
que haja a necessidade de pensamento e criaccedilatildeo surge o costume de fazer
O calo eacute o haacutebito ndash o haacutebito cultural ndash e porque haacutebito automaacutetico mecacircnico
imediato esquema estiacutemulo-resposta embotador e gerador de apatia
indiferenccedila lassidatildeo Vecirc-se entatildeo como habitualmente se vecirc ou como todo
mundo vecirc Assim se sente assim se pensa Impera a atitude que uni-formiza
uni-dimensionaliza homo-geneiza e que eacute a vigecircncia do raso do plano da
planiacutecie ou seja a apatia ou a indiferenccedila do tudo igual do mediacuteocre
(FOGEL 2007 paacuteg 40 ndash grifos no original)
Natildeo soacute isso esta tradiccedilatildeo que se engendra no haacutebito tende a natildeo dar importacircncia
ao que natildeo tem utilidade isto eacute natildeo pode se adequar aos moldes da funcionalidade A
pergunta que se faz diante do desconhecido deixa de ser ldquoo que eacute istordquo para virar ldquopara
que serve istordquo Quando a resposta eacute positiva a realidade passa a vigorar pela sua funccedilatildeo
quando negativa eacute descartada ou deixada agrave mercecirc da indiferenccedila e do desdeacutem A respeito
do poema ldquoUma flor agrave margem do rio para ele era uma flor amarela e natildeo era mais nadardquo
(WORDSWORTH apud PESSOA 2006 paacuteg 61)20 diz Caeiro
Toda coisa que vemos devemos vecirc-la sempre pela primeira vez porque
realmente eacute a primeira vez que a vemos E entatildeo cada flor amarela eacute uma nova
flor amarela ainda que seja o que se chama a mesma de ontem A gente natildeo eacute
jaacute o mesmo nem a flor a mesma O proacuteprio amarelo natildeo pode ser jaacute o mesmo
Eacute pena a gente natildeo ter exatamente os olhos para saber isso por que entatildeo
eacuteramos todos felizes (PESSOA 2006 paacuteg 61)
20 A primrose by the riverrsquos brim A yellow primrose was to him And it was nothing more
45
Neste sentido compreende-se a tradiccedilatildeo como um conceito isto eacute ldquocomo a coisa
sempre jaacute vista sempre jaacute sabidardquo (FOGEL 2007 paacuteg 41 ndash grifos no original)
Compreende-se enquanto o que se prende junto a si A ilusatildeo de poder compreender tudo
se faz principalmente por se tratar desse caraacuteter conceitual e abstrato com que nos
relacionamos com as coisas Entatildeo quando o poeta chama atenccedilatildeo agrave diferenccedila entre
alguma coisa e a minha ideia sobre alguma coisa eacute como se ele convidasse a experienciar
a realidade para os limites que ela a cada vez nos impotildee ao inveacutes de impormos nossa
limitaccedilatildeo conceitual a ela
Diferente de ser dois homem e realidade o poema apresenta que ldquoo fulgor das
estrelas existe como se tivesse pesordquo (PESSOA 2006 paacuteg 51) ou seja sentimos a
realidade como a um semelhante o fulgor natildeo eacute substantivo abstrato mas o arremate que
nos causa maravilhamento espanto terror todas as sensaccedilotildees que por sua vez geram
reaccedilotildees prova de que natildeo estamos apaacuteticos perante o que eacute Tal estado de ser se
corresponde a uma multiplicidade de disposiccedilotildees natildeo se esgotando na funcionalidade
que o fulgor das estrelas poderia ter
A ideia de algo natildeo versa a respeito das singularidades e sim sobre o que seus
nuacutemeros e estatiacutesticas indicam Pode de fato o sabor de uma banana ou maccedilatilde ceder lugar
ao conjunto das frutas quantitativamente sem gosto Ateacute a morte natildeo eacute mais uma
manifestaccedilatildeo do real tanto quanto respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser
superado basta termos mais conhecimentos a respeito
mdash Se concebo o quecirc Uma coisa ter limites Pudera O que natildeo tem limites
natildeo existe Existir eacute haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser
limitada O que eacute que custa conceber que uma coisa eacute uma coisa e natildeo estaacute
sempre a ser uma outra coisa que estaacute mais adiante []
mdash Olhe Caeiro Considere os nuacutemeros Onde eacute que acabam os nuacutemeros
Tomemos qualquer nuacutemero ndash 34 por exemplo Para aleacutem dele temos 35 36
37 38 e assim sem poder parar Natildeo haacute nuacutemero grande que natildeo haja um
nuacutemero maior
mdash Mas isso satildeo soacute nuacutemeros ndash protestou o meu mestre Caeiro E depois
acrescentou olhando-me com uma formidaacutevel infacircncia
mdash O que eacute o 34 na Realidade (PESSOA 2006 paacuteg 62)
Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como
tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de
novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma
46
forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia
murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos
Tudo com o que se tem contato passa a ser o sem misteacuterio o sabido e o
compreendido ou a compreender Tudo pode ser acessado inclusive o proacuteprio homem O
homem pelo homem passa a ser um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser
diagnosticada e curada o humano torna-se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma
infinidade de predicativos que validam o sujeito homem Nossa ideia de homem passa a
ser o homem
123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo
Nossa ideia de tradiccedilatildeo natildeo eacute a tradiccedilatildeo Melhor dizendo atualmente vigora uma
concepccedilatildeo de tradiccedilatildeo que natildeo permaneceu a mesma no tempo o que significa que o
modo como o homem foi apreendido pela histoacuteria mudou Na proacutepria liacutengua encontramos
traccedilos de outra tradiccedilatildeo em sua etimologia formas diversas de ser no mundo Conveacutem
entretanto uma ressalva a busca aos sentidos anteriores quiccedilaacute originaacuterios nem sempre
tem a ver com um empenho gramatical ldquoEtimologia natildeo diz em primeiro lugar ciecircncia
linguiacutestica que investiga a identidade entre os radicais das palavras [] Em sentido
proacuteprio (aqui literal) etimologia diz logos do eacutetimo linguagem do proacuteprio comeccedilordquo
(SCHUBACK 1996 paacuteg 62) Em vez disso trata-se de estar atento ao aceno de
significaccedilotildees e de experiecircncias que as palavras portam cujo uso comunicativo da liacutengua
ignora ou desconhece
Etimologia tambeacutem eacute um dizer mas um dizer originaacuterio que emerge de uma
consentaneidade O radical eacutetymos significa legiacutetimo autecircntico verdadeiro
Etimologia natildeo eacute um dizer qualquer Eacute o dizer que remonta para o proacuteprio
processo de dizer que proveacutem da verdade do proacuteprio dizer e por isso se faz
legiacutetimo pelo vigor de sua proacutepria vigecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 104)
Tendo isso dito observa-se que a palavra tradiccedilatildeo se origina de traditio ndash
conforme se encontra em Houaiss (2009a Tradiccedilatildeo) Dicionaacuterio Michaelis (2015
47
Tradiccedilatildeo)21 e Aulete e Valente (2016 Tradiccedilatildeo)22 ndash por via erudita conforme Ferreira
(2004 Tradiccedilatildeo) Por sua vez temos os seguintes sentidos etimoloacutegicos ldquoaccedilatildeo de dar
entrega transmissatildeo tradiccedilatildeo ensinordquo (HOUAISS 2009a) que aparentemente se
mantiveram com relativa estabilidade no uso contemporacircneo da liacutengua em se tratando do
significado mais abstrato da palavra sob o conceito de ir passando um conhecimento
adiante perpetuando um saber
Ao procurar num dicionaacuterio de latim confirma-se o significado de entrega
transmissatildeo e ensino natildeo se restringindo todavia ao abstrato do termo Considera-se
tambeacutem o transporte fiacutesico de objetos e de pessoas ldquo1 A entrega (de mercadorias bens
etc) rendiccedilatildeo (de pessoas territoacuterio etc) [] 2 A transmissatildeo de conhecimento ensino
b a entrega do conhecimento um item de conhecimento tradicional crenccedila etc)rdquo
(GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)23 Perdemos no habitual da liacutengua a tradiccedilatildeo
para o concreto Uma pessoa pode ser entregue agrave poliacutecia um terreno pode ser entregue ao
seu proprietaacuterio mas dificilmente chamariacuteamos isso de tradiccedilatildeo Logo a primeira entrada
do dicionaacuterio latino ficou esquecida Aqui seraacute tarefa do pensamento perscrutar o terreno
do esquecimento para fazer a experiecircncia de mundo calada na palavra
Prosseguindo traditio eacute constituiacuteda a partir da substantivaccedilatildeo do verbo trado com
o sufixo -tio (GLARE 1968 paacuteg 1956) equivalente ao nosso -ccedilatildeo Um verbo rico por
sinal com dez entradas no Oxford Dictionary A maioria satildeo nuances do sentido-base de
entregar por exemplo ldquo1 Entregar ou passar adiante (para uma pessoa) b dar (para uma
pessoa para segurar) transferir (para uma posiccedilatildeo) c entregar (ao funcionamento das
forccedilas naturais etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)24 Alguns sentidos jaacute
mais distantes referem-se a trado como ldquo7 Introduzir (uma pessoa a outra ndash traduccedilatildeo
livre)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956)25
21 Disponiacutevel em
lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=tradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16
set 2016 22 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16 set 2016 23 1 The handing over delivery (of goods possessions etc) surrender (of persons territory etc) [] 2
The transmission of knowledge teaching b the handing down of knowledge a item of traditional
knowledge belief etc) 24 1 To hand or pass over (to a person) b to hand over give (to a person to hold) to transfer (to a
position) c to deliver hand over (to the operation of natural forces etc) 25 7 To introduce (a person to another)
48
Introduzir natildeo deixa de guardar certa semelhanccedila com entregar pois tambeacutem diz
de levar algueacutem ou algo de uma posiccedilatildeo a outra Todo esse translado natildeo eacute agrave toa uma vez
que a palavra trado jaacute remete a isso em sua formaccedilatildeo por meio do prefixo trans- com o
verbo do (GLARE 1968 paacuteg 1956) em que trans- nos diz de ldquo1 Do outro lado ou por
cima atraveacutes para o outro lado de [] Formas frequentemente tra- antes de consoantes
surdasrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1961 ndash traduccedilatildeo livre)26 A saber temos ainda no portuguecircs
falado o uso do trans- seja nesta forma como em transbordar e transportar seja na forma
tra- em tradiccedilatildeo traduzir ou ateacute numa outra variaacutevel como em trespassar (LIMA 1972
paacuteg 178) Isto significa que natildeo eacute nenhum espanto ter ainda que vagamente a noccedilatildeo de
passagem passar aleacutem de ao pensar ao pronunciar a palavra tradiccedilatildeo tra-diccedilatildeo
A outra parte dessa uacuteltima composiccedilatildeo eacute do o verbo dar em latim Este eacute um verbo
complexo Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos O
primeiro deles que aparece no latim eacute ldquo1 Conferir gratuitamente dar posse de fazer uma
doaccedilatildeo de dar b dar oferecer (aos deuses os mortos etc) c conceder (a posse legal a
utilizaccedilatildeo etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 566 ndash traduccedilatildeo livre)27
De fato na entrega algo eacute dado algo eacute oferecido garante-se que por um
deslocamento algo atravessa ateacute outra circunstacircncia Em todo trado haacute um do toda
entrega daacute Um dar que reforccedila a travessia do dado no seu prefixo Entregar como o que
ldquotransdaacuterdquo resguardando a importacircncia que a passagem tem para a entrega Levando isso
em conta o modo verbal que foca seu aspecto no movimento eacute o geruacutendio Tem-se pois
entregar trado enquanto um dar oferecendo Um dar que eacute dando E assim eacute feita a
entrega a tradiccedilatildeo como o ato que daacute e permanece neste movimento de doaccedilatildeo
Quem oferece introduz uma oferta Uma daacutediva que natildeo se materializa
simplesmente no seu destino como se seu objetivo fosse somente a finalidade mas que
faz uma trajetoacuteria da entrega ao recebimento E quanto agrave sua origem quanto agrave sua meta
Entrega enquanto tradiccedilatildeo atravessa e por isso eacute atravessada Isto eacute tradiccedilatildeo eacute um
atravessamento da entrega sempre se originando ldquoTudo o que acontece eacute sempre um
comeccedilordquo (RILKE 1976 paacuteg 52)
26 1 Across or over also through to the other side of [hellip] Forms freq tra- before voiced consonants 27 1 To confer gratuitously give possession of make a gift of give b to give offer (to the gods the dead
etc) c to grant (legal possession use etc)
49
A partir do momento em que se chega ao alvo cessa a entrega para a tradiccedilatildeo
Por isso que tradiccedilatildeo enquanto tra-diccedilatildeo precisa estar em constante recebimento e oferta
Precisa passar adiante e desta forma estar em insistente diaacutelogo com a histoacuteria e sua
dinacircmica A mera reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo em outras palavras a tradiccedilatildeo da reproduccedilatildeo
natildeo reverbera na tensatildeo do ontem do hoje e do sempre Eacute dar sem a travessia sem os
percalccedilos do caminho Entre o que permanece no fluxo das mudanccedilas haacute uma tradiccedilatildeo
entre o que muda na constacircncia haacute uma tradiccedilatildeo e assim sua obra continua a fazer sentido
por mais diversas que sejam as eacutepocas as pessoas as circunstacircncias Num paralelo com
a obra de arte a tradiccedilatildeo exerce sua dinacircmica de maravilhamento e repulsa concessatildeo do
tracircnsito das experiecircncias de mundo
A unicidade da obra de arte eacute idecircntica agrave sua inserccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo
Sem duacutevida essa tradiccedilatildeo eacute algo de vivo de extraordinariamente variaacutevel
Uma antiga estaacutetua de Vecircnus por exemplo estava inscrita numa certa tradiccedilatildeo
entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradiccedilatildeo na
Idade Meacutedia quando os doutores da Igreja viam nela um iacutedolo malfazejo O
que era comum as duas tradiccedilotildees contudo era a unicidade da obra []
(BENJAMIN 1987 paacuteg 171)
124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo
A tradiccedilatildeo pois eacute um processo natildeo um produto Ou pelo menos assim seria para
os entendidos das etimologias conhecedores das liacutenguas claacutessicas estudiosos e
especialistas A quem eacute vedado o conhecimento distante estaacute a luz do saber Equivoca-
se quem se debruccedila sobre dicionaacuterios mais do que se dedica ao pensamento O caminho
aqui oferece questotildees natildeo soluccedilotildees
O que eacute a palavra sem a relaccedilatildeo com o que nomeia e o que nela vem agrave palavra
Deve-se sair correndo de toda etimologia vazia e acidental ela se torna
jogatina se o que se estaacute a nomear na palavra jaacute natildeo tiver sido anteriormente
pensado por caminhos longos e vagarosos e natildeo continuar a ser sempre de
novo pensado comprovado e sempre de novo provado em sua essecircncia de
palavra (HEIDEGGER 1998 paacuteg 207)
Por isso conveacutem enveredar-se tanto no mais recocircndito significado a fim de
auscultar seu sentido praticamente mudo na fala mais corriqueira bem como no
50
aparentemente mais banal significado arcaico Desse modo reconhecemos que em toda
fala cotidiana haacute um canto antigo e inaudito Assim continuamos com a etimologia agora
pela via popular de traditio
Em Aulete e Valente (2016 Traiccedilatildeo)28 e Ferreira (2004 Traiccedilatildeo) encontra-se
outra via de acesso que natildeo a erudita ao portuguecircs brasileiro da palavra traditio a palavra
traiccedilatildeo Resumidamente tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo possuem exatamente a mesma origem latina
em traditio Ora traiccedilatildeo nos eacute apresentada pelos meios de comunicaccedilatildeo mais usados e
acessiacuteveis como uma ruptura da expectativa e da confianccedila sendo normalmente encarada
como uma maldade por nossa moral vigente ldquoQuebra de fidelidade prometida e
empenhada aleivosia deslealdade perfiacutediardquo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015
Traiccedilatildeo)29 Qual eacute a daacutediva entatildeo Onde estaacute a traditio na traiccedilatildeo
Bom e ruim satildeo paradigmas morais Quando se diz da traiccedilatildeo de outrem leva-se
em conta sua conduta perante o que se espera enquanto membro de uma sociedade Pela
traiccedilatildeo se fixou a negatividade do que eacute dado A tradiccedilatildeo maacute a tradiccedilatildeo perversa a daacutediva
rejeitada socialmente uma traiccedilatildeo Ora essa postura determiniacutestica natildeo considera o trans-
que tambeacutem haacute na traiccedilatildeo O absoluto que jaz aparentemente em toda traiccedilatildeo se revela
tatildeo variaacutevel assim como a relaccedilatildeo de infidelidade da esposa com o marido natildeo tem a
mesma perfiacutedia moral que a quebra da confianccedila pelo espiatildeo em defesa da paacutetria Esta
talvez nem maldade fosse mas digna de medalha por seus pares
Originalmente ndash assim eles decretam ndash as accedilotildees natildeo egoiacutestas foram louvadas e
consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas aqueles aos quais eram
uacuteteis mais tarde foi esquecida essa origem do louvor e as accedilotildees natildeo egoiacutestas
pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas foram
tambeacutem sentidas como boas ndash como se em si fossem algo bom (NIETZSCHE
1998 paacuteg 18)
Na dinacircmica do movimento o bom e o ruim se imiscuem Entatildeo trair pode ser
uma coisa boa justificaacutevel em algumas ocasiotildees assim como a tradiccedilatildeo Eacute importante
aqui natildeo confundirmos o caminho com o caminhar O caminho natildeo faz escolhas o
caminhar sim A traiccedilatildeo oferece daacute e entrega algo o modo como lidamos com essa oferta
eacute outra perspectiva Um caso social pessoal cultural Traiccedilatildeo natildeo eacute soacute mateacuteria de
tabloides pelo contraacuterio ela reconhece a tradiccedilatildeo e neste reconhecimento nega-a
28 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtraiC3A7C3A3ogt Acesso em 18 set 2016 29 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscaid=4bjp3gt Acesso em 18 set 2016
51
oferecendo outra possibilidade de concepccedilatildeo do real cuja moral da tradiccedilatildeo ndash aquela
tradicional e comprometida com o produto a ser entregue natildeo com o processo ndash reprova
Em consonacircncia com a dinacircmica da travessia a traiccedilatildeo engendra o outro valor da tradiccedilatildeo
sua proacutepria instacircncia de desvio agrave qual a entrega enquanto doaccedilatildeo de possibilidades se
dispotildee
Contudo eacute compreensiacutevel a descrenccedila de que traiccedilatildeo seja algo que natildeo um
comportamento execraacutevel Afinal desde haacute muito a proximidade com uma semacircntica da
malignidade se adequa agrave palavra Os primeiros dicionaacuterios do portuguecircs jaacute apresentam
esse sentido e isto nos indica ao menos nos ciacuterculos intelectuais qual eacute a interpretaccedilatildeo
do termo que se arrasta na histoacuteria da liacutengua permeando nossa concepccedilatildeo de mundo
ldquoTraiccedilaotilde ndash perfiacutedia falta de fidelidade ao Principe ao amigo que se fiava de nogravesrdquo
(BLUTEAU 1728 paacuteg 237) ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia entrega da feacute quebra da fidelidade
prometidardquo (SILVA 1789 paacuteg 794) e ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia falta de fidelidaderdquo (PINTO
1832 paacuteg 1057)
A relaccedilatildeo entre perfiacutedia e traiccedilatildeo natildeo comeccedila neste momento nem se restringe ao
portuguecircs mostrando que outras liacutenguas detiveram semelhante compreensatildeo de mundo
ldquoO Italiano chama ao Traductor Traidor Traduttore Traditore mas o Traductor fiel natildeo
he Traidorrdquo (BLUTEAU 1728 paacuteg 234) Uma proximidade que se justificaria na
formaccedilatildeo na qual traduccedilatildeo deriva de trans- + -duco- + -tio Ambos os verbos trado e
traduco satildeo introduzidos pelo prefixo-ponte aceno para a travessia na sua forma tra-
Entre duco e do entre trazer e dar haacute sim muitos sentidos parecidos que se distanciam
com sutileza e se aproximam com cautela Na proposiccedilatildeo anterior o tradutor fiel traria o
sentido do verso enquanto que o traidor daacute sentido ao verso fugindo agrave fidelidade da
mensagem
Ora quantos ruiacutedos existem entre o que se diz e o que se quer dizer Quem haacute de
mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido Imersa em
narrativa a mensagem assume o rosto das variadas interpretaccedilotildees e ainda assim a
mensagem eacute apenas a interpretaccedilatildeo do real enquanto palavra obra gesto e natildeo o real
propriamente A unicidade da obra a que Benjamin (1987 paacuteg 171) se referia eacute o que
permite uma entrega a cada vez autecircntica de respostas sem esgotar a questatildeo que a arte
suscita Nessa dimensatildeo todo tradutor eacute em certa medida traidor ainda sem o querer
pois necessariamente ele falharaacute em entregar a mensagem na iacutentegra concomitantemente
52
o tradutor eacute um ldquotraditorrdquo algueacutem que porta uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo e a passa
adiante em sua possibilidade de autenticidade
125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo
A traiccedilatildeo natildeo deixa de ser uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ou melhor
da falta agrave tradiccedilatildeo seja na figura de um rei enganado seja na de um amante infiel A
histoacuteria da liacutengua apenas serve para confirmar a desconfianccedila que a traiccedilatildeo engendra
Todavia o uacuteltimo seacuteculo tem revisto sua proacutepria compreensatildeo de relato histoacuterico o que
vem influenciando as mais diversas aacutereas inclusive a lexicografia
Os dicionaristas agora levam em conta natildeo apenas a norma culta escrita para
reconhecer uma entrada no dicionaacuterio ndash como nas primeiras publicaccedilotildees em liacutengua
vernacular ndash mas o uso corrente oral palavras chulas e ateacute palavras de uso apenas em
determinadas comunidades Essas populaccedilotildees algumas delas isoladas do conviacutevio com o
restante da civilizaccedilatildeo tiveram um desenvolvimento proacuteprio da liacutengua condizente com
sua experiecircncia de mundo
Nesse sentido algumas palavras para noacutes ndash que estamos acostumados com o
linguajar citadino que fomos atravessados por anos de teorias e praacuteticas cientiacuteficas jaacute
cristalizadas ndash podem soar estranhas pela maneira como usam aquelas comunidades
embora ambas tenham uma origem comum Isto eacute cada tradiccedilatildeo faz seu caminho e
resguarda interpretaccedilotildees singulares em diaacutelogos mais ou menos audiacuteveis no uso
corriqueiro das fontes propulsoras do nomear
No dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que
pela fala perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircncia Contudo na maior
parte das vezes e com frequecircncia o dito nos vem ao encontro como uma fala
que passou
Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz fariacuteamos bem em
encontrar um dito que se diz genuinamente e natildeo um dito qualquer escolhido
de qualquer modo Dizer genuinamente eacute dizer de tal maneira que a plenitude
do dizer proacutepria ao dito eacute por sua vez inaugural (HEIDEGGER 2003 paacuteg
12)
53
Nos grandes dicionaacuterios de portuguecircs brasileiro uma das entradas de traiccedilatildeo
destoa do sentido de perfiacutedia mais usual ao mesmo tempo em que se aproxima de uma
entrega e uma oferta ldquo4 Regionalismo Minas Gerais Mato Grosso Mato Grosso do Sul
Variedade de mutiratildeo em que o fazendeiro que tenciona auxiliar o vizinho chega agrave casa
deste de madrugada em companhia de trabalhadores e desperta-o ao som de cantosrdquo
(HOUAISS 2009a Traiccedilatildeo) ldquo5 MG MT MS Mutiratildeo em que os ajudantes chegam agrave
casa de quem vai ser ajudado de madrugada e acordam-no com cantosrdquo (AULETE
VALENTE 2016 Traiccedilatildeo) ldquo5 Bras MT Espeacutecie de mutiratildeo (q v) com a
particularidade de o fazendeiro que pretende auxiliar o vizinho chegar agrave casa deste alta
noite de surpresa em companhia dos trabalhadores acordando-o em geral ao som de
cantos [Cf nesta acepccedil suta (3) e estalada (5)]rdquo (FERREIRA 2004 Traiccedilatildeo)
6 REG (MG MS MT) ETNOL Ver suta acepccedilatildeo 3 3 REG (GO) ETNOL
Mutiratildeo prestado por amigos e vizinhos de um fazendeiro que chegam de
surpresa para realizar um serviccedilo urgente e quando concluiacutedo voltam para a
sede da fazenda para um jantar especial seguido de reza cantoria e danccedila
traiccedilatildeo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015 Suta)30
Como a traiccedilatildeo virou auxiacutelio Como de perfiacutedia a palavra traiccedilatildeo ganhou uma
conotaccedilatildeo praticamente oposta digna inclusive de comemoraccedilotildees A tal pergunta natildeo se
pode responder com certeza neste trabalho Em geral os regionalismos satildeo marcas
culturais como estruturas linguiacutesticas que se referem a determinadas comunidades e satildeo
leituras de mundo feitas por ou a respeito delas Apresentam uma singularidade no uso
seja na manutenccedilatildeo de sentidos seja na construccedilatildeo de novas relaccedilotildees entre palavra e
realidade de tal modo que um sentido antigo poderia tomar um caminho aparentemente
contraditoacuterio ao canocircnico e ainda assim dialogar com este no que haacute de originaacuterio em
ambos Em entrevista ao Diaacuterio de Lisboa Joatildeo Cabral de Melo Neto nos oferece sua
interpretaccedilatildeo do que seja o regionalismo e o regional
O regionalismo natildeo eacute uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de
problemas que estatildeo mais proacuteximos da pessoa que fala a dor do homem a
alegria suas lutas e as suas belezas etc [] Quando me bato pelo regionalismo
eacute para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os
30 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=sutagt Acesso em 20 set
2016
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homens O homem soacute eacute amplamente homem quando eacute regional (ATHAYDE
1998 paacuteg 85)
Tem-se pois a ajuda oferecida Uma comunidade na qual um de seus membros
receberia auxiacutelio de bom grado apresenta-se e se dispotildee ao trabalho conjunto Importante
notar que a vinda auxiliadora natildeo recai exclusivamente na realizaccedilatildeo do labor mas se
enfeita de muacutesica e danccedila um rito trabalhiacutestico Ela natildeo eacute imediata natildeo eacute objetiva em sua
funccedilatildeo mas se permite demorar no empenho de ajudar num tempo em que ajuda natildeo eacute
puro desempenho da tarefa Por sua vez o ajudado tambeacutem oferece algo comidas
agradecimentos e seu trabalho se junta aos demais na comunhatildeo criada para aquela
circunstacircncia especiacutefica
Neste caso a festa eacute tatildeo necessaacuteria quanto o trabalho Tanto que o serviccedilo natildeo visa
agrave remuneraccedilatildeo natildeo se busca a troca simboacutelica A voluntariedade estaacute na garantia de
persistecircncia desse tipo de relaccedilatildeo de comunidade que se ajuda pois cada um eacute tanto um
uacutenico quanto a unidade que caracteriza o comum Eu o ajudo no que me ajudo Na entrega
da ajuda que eacute uma traiccedilatildeo em particular eu perpetuo a tradiccedilatildeo daquela comunidade
Esta eacute a traiccedilatildeo que oferece ajuda mediante confraternizaccedilatildeo e agrave revelia de salaacuterio
Uma daacutediva que natildeo se fia unicamente no desfecho para o ato e que atravessa toda a accedilatildeo
desde sua requisiccedilatildeo de auxiacutelio ateacute sua promessa ambas veladas no desvelar daquela
comunidade A isto chamamos de outro nome quando nos reunimos para ajudar em
amizade e em prol de um uacutenico em unidade com os demais mutiratildeo
Para compreender a relaccedilatildeo regionalista com a palavra traiccedilatildeo conveacutem ouvir nela
o que aparece como sinocircnimo dicionarizado agrave palavra mutiratildeo Aqui sinocircnimo seraacute
tratado como um termo que indica a aproximaccedilatildeo entre as experiecircncias de mundo que as
palavras sugerem Logo prestar atenccedilatildeo ao que mutiratildeo se refere eacute atentar-se agravequilo que
a traiccedilatildeo pode vir a dizer a noacutes e diz agrave sua maneira aos que vivem naquelas comunidades
regionais
A palavra mutiratildeo se origina de potyrotilde pitibotilde popitibotilde e picorotilde (DICIONAacuteRIO
TUPI-GUARANI 2016 Mutiratildeo)31 Na liacutengua tupi ldquop t k quando precedidos por vogai
nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng [] b em siacutelaba aacutetona muda-se em m quando
precedido por vogal nasal ou nasalizadardquo (RODRIGUES 1953 paacuteg 123) Isso ocasiona
31 Disponiacutevel em lthttpwwwdicionariotupiguaranicombrdicionariomutiraogt Acesso em 21 set
2016
55
a variaccedilatildeo motyrotilde que significa no idioma indiacutegena ldquo(v intr) ndash trabalhar em conjuntordquo
(NAVARRO 2013 paacuteg 405) Diferentemente de um grego ou latim o tupi eacute uma liacutengua
que nos chegou exclusivamente pela via oral assim uma mesma palavra pode ter vaacuterias
origens devido agraves incertezas que a envolvem Isso de nenhuma maneira precisa ser
encarado como um demeacuterito mas como desafio de lidar com o variado e o mesmo
simultaneamente
Um caminho de interpretaccedilatildeo possiacutevel para isto a que os indiacutegenas chamavam de
popitibotilde ou popytybotilde proveacutem da palavra popy que literalmente quer dizer ldquoponta cabo
extremidade (de qualquer coisa)rdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 394) haja vista sua
constituiccedilatildeo poacute ldquomatildeordquo (NAVARRO 2013 paacuteg 390) + py ldquopeacute patardquo (NAVARRO
2013 paacuteg 413) Vaacuterias satildeo as palavras geradas com esse radical por exemplo popyatatilde
e popyrsquoi ldquolsquoser forte de braccedilosrsquo [e] lsquodestreza de matildeosrsquordquo(NAVARRO 2013 paacuteg 394)
respectivamente Nesse sentido popytybotilde significa ldquo(etim ndash ajudar a matildeo) (v tr) ndash
ajudarrdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 395) Ajudar com as matildeos uma indicaccedilatildeo ao esforccedilo
no empenho do auxiacutelio como nos esforccedilamos em trabalhos manuais Auxiliar natildeo como
quem apoia ou aconselha mas como quem carrega o fardo alheio com as proacuteprias matildeos
fazendo-o seu por instantes
126 Os mutirotildees do homem
Embora a palavra seja de origem tupi outras tribos como os šerersquonte tinham
experiecircncias semelhantes agravequela referente a potyrotilde ldquoSe a capina foi demasiada para uma
famiacutelia o marido saiu para caccedilar preparou uma torta de carne a partir da caccedila e a serviu
para os companheiros que vieram assisti-lordquo (NIMUENDAJUacute 1942 paacuteg 33 ndash traduccedilatildeo
livre)32 Tambeacutem assim o portuguecircs compara em sinocircnimo emergecircncia do que se afina
nas diversas singularidades o mutiratildeo agrave traiccedilatildeo
Traiccedilatildeo que eacute tradiccedilatildeo ou seja mutiratildeo que eacute tradiccedilatildeo um atravessamento no
tempo de um trabalho conjunto em comunidade Neste desdobramento social daacute-se um
32 If the weeding was too much for one family the husband went hunting had a meat-pie made from the
kill and served it to fellow-members who came to assist him
56
trabalho pelas mesmas matildeos que recebem a festa que eacute o natildeo trabalho que eacute o desvio do
caminho da ajuda Desvio e via de trabalho fazem parte do mutiratildeo assim como fazem
da tradiccedilatildeo sua traiccedilatildeo sua outra via de acesso ao que eacute entregue
Aprender que a tradiccedilatildeo porta o descaminho da mensagem eacute aceitar a festa sem a
qual natildeo haacute mutiratildeo sem o mutiratildeo a obra natildeo anda Sem a traiccedilatildeo a histoacuteria se repete
sem invenccedilatildeo tradicionalmente se repete Justamente eacute pela educaccedilatildeo que nos deparamos
com o empenho de pensar o desempenho da traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo agrave medida que se educa
como quem traduz cuidando para que se deixe emergir na traduccedilatildeo o vigor da tradiccedilatildeo
isto eacute o que manteacutem a tradiccedilatildeo viva doadora de sentidos sejam eles arcaicos sejam
contemporacircneos instigadora de sentidos tanto conservadores quanto iconoclastas
Mas na mesa aquele menino Guirigoacute na senvergonhice inocente de sua pouca
geraccedilatildeo tinha adormecido completo antecipadamente e eu consenti que as
mulheres carregassem o coitadinho diabinho pesado como um de maioridade
e levassem para dormir sei laacute onde por entre colchatildeo e lenccedilol A vida inventa
A gente principia as coisas no natildeo saber por que e desde aiacute perde o poder de
continuaccedilatildeo ― porque a vida eacute mutiratildeo de todos por todos remexida e
temperada (ROSA 2016 paacuteg 316)
57
2 Pensando a Filosofia
21 A filosofia como resposta
Seria pois a resposta para nossos problemas a filosofia Ao optar pelo estudo
dessa disciplina leva-se a crer que haacute certo indiacutecio da apoteose filosoacutefica como desenlace
Pretensotildees agrave parte questiona-se entre outras coisas se e como a filosofia se relaciona
com a tradiccedilatildeo e haja vista a relaccedilatildeo de ensino e tradiccedilatildeo como ela se relaciona com o
ensino
Para isso conveacutem uma seacuterie de outras perguntas Poreacutem um dilema eacute estabelecido
na hora de responder a elas eacute possiacutevel de fato dar uma resposta O que eacute isto aonde chega
meu questionamento A relaccedilatildeo de filosofia com o responder natildeo eacute a mais oacutebvia Isso
porque compreendecirc-la no acircmbito do perguntar tornou-se lugar-comum do filosofar cujas
respostas passam por fugidias para natildeo dizer pouco confiaacuteveis Essa falta de confianccedila
em suas soluccedilotildees aparece como uma de suas caracteriacutesticas fundamentais possibilitando
um questionamento incessante sem um compromisso expliacutecito de resoluccedilatildeo e nem de
compreensatildeo ldquoo fazer-se compreensiacutevel eacute o suiciacutedio da filosofiardquo (HEIDEGGER 1989
paacuteg 435 ndash traduccedilatildeo livre) 33
Natildeo que essa forma de conhecimento seja totalmente avessa a propor caminhos
afinal ldquoa exclusividade da criaccedilatildeo de conceitos assegura agrave filosofia uma funccedilatildeo []rdquo
(DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17) Natildeo encerrando na assertiva anterior a
problemaacutetica a dupla de intelectuais franceses ainda desmistifica diversas crenccedilas a
respeito da filosofia e ratifica seu papel uacutetil neste caso o de conceituar Dar nome ao
inominado enveredando pelo inominaacutevel
[] a grandeza da filosofia estaria justamente em natildeo servir para nada eacute um
coquetismo que natildeo tem graccedila nem mesmo para os jovens Em todo caso natildeo
tivemos jamais um problema concernente agrave morte da metafiacutesica ou agrave superaccedilatildeo
da filosofia satildeo disparates inuacuteteis e penosos Fala-se hoje da falecircncia dos
sistemas quando eacute apenas o conceito de sistema que mudou Se haacute lugar e
tempo para a criaccedilatildeo dos conceitos a essa operaccedilatildeo de criaccedilatildeo sempre se
33 Das Sichverstaumlndlichmachen ist der Selbstmord der Philosophie
58
chamaraacute filosofia ou natildeo se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um
outro nome (DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17)
Apregoa-se na citaccedilatildeo acima a serventia da filosofia Sua causa seria algo claro
e em contrapartida qualquer aporia seja em suas teorias (como o fim da metafiacutesica) seja
dela consigo proacutepria seu porquecirc de existir eacute faceirice de criadores de intrigas
desnecessaacuterias Em outras palavras nesse trecho um conceito eacute uma resposta As nuances
do que isso significa para Deleuze se desdobram e ldquo[] natildeo deixam margem para duacutevida
a filosofia natildeo eacute uma simples arte de inventar de produzir os conceitos ela eacute uma
disciplina rigorosa que tem como funccedilatildeo primordial a criaccedilatildeo de novos conceitosrdquo
(SCHOPKE 2004 paacuteg 131)
Este rigor aproxima a filosofia da ciecircncia (mas tambeacutem da arte) pois pressupotildee
uma teacutecnica e grande labor Os limites entre as faculdades se desfazem em alguns casos
acentuando ainda mais o compromisso com uma resposta a seus anseios ldquoa filosofia eacute
pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos conhecimentos racionais a partir dos
conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico dessa ciecircnciardquo (KANT 1992 paacuteg 41)
A funcionalidade justifica com facilidade o conhecimento Precisamos saber fazer
contas para o troco da padaria e para as construccedilotildees da engenharia precisamos do idioma
para a compreensatildeo escrita da sociedade precisamos disso para aquilo basicamente
tem-se uma foacutermula Basta substituir isso para se chegar agravequilo e vice-versa Entretanto
haacute um certo vazio quando a filosofia eacute a primeira variaacutevel da equaccedilatildeo pois ateacute para o
mais elementar (por exemplo no acircmbito escolar as notas e provas) nem para isso ela
serve
Para todo professor de Filosofia acostumado agrave lida no Ensino Meacutedio satildeo
bastante conhecidas as perguntas do tipo lsquopara que serve a Filosofiarsquo lsquoeacute
mesmo necessaacuteria esta disciplina ou ela eacute apenas para mostrar que este coleacutegio
tem mais disciplinas do que os outrosrsquo ou ainda lsquose Filosofia natildeo cai no
vestibular por que temos de estudaacute-larsquo Questotildees surgidas na maior parte das
vezes logo nos primeiros contatos do aluno com essa lsquonova realidadersquo
(BRASIL 2000 paacuteg 44)
O empenho nos estudos se confunde com a dificuldade de aceitaccedilatildeo da
importacircncia da filosofia Natildeo eacute agrave toa que seus praticantes os filoacutesofos satildeo ditos seres
questionadores repletos de duacutevidas natildeo de soluccedilotildees Inclusive a distacircncia da praacutetica
59
torna-a por vezes inalcanccedilaacutevel agravequeles que natildeo foram iniciados nos conceitos dessa
mateacuteria e por isso inapropriada ao contexto de Ensino Fundamental e Meacutedio
Entretanto natildeo foi assim que comeccedilamos este texto e natildeo se pretende dar
prosseguimento creditando a nefelibatas eruditos o papel do filoacutesofo muito menos tratar
a filosofia em meio a balbuacutecies sem sentido Existe tanto um apreensiacutevel por meio do
conceito quanto o embate entre o que ainda natildeo foi pensado e o impensaacutevel Somente no
percurso desses questionamentos pode-se ter mais clareza quanto a seu significado
Falemos mais concretamente A direccedilatildeo de um Estado pode bem dizer
precisamos agora a fim de realizar um plano quinquenal de fiacutesicos que
recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras naccedilotildees ou
necessitamos de meacutedicos que elaborem cientificamente um medicamento
efetivo contra a gripe [] Mas lsquoPrecisamos no momento de filoacutesofos quersquo
ndash sim o quecirc Agora soacute haacute uma possibilidade lsquo que desenvolvam
fundamentem e defendam a seguinte ideologiarsquo ndash soacute se pode falar assim com
a destruiccedilatildeo simultacircnea da filosofia (PIEPER 2014 paacuteg 19)
Propotildee-se aqui encarar a filosofia como a resposta que seja Para tanto a fim de
reconhececirc-la em suas idiossincrasias seraacute preciso aceitar que de fato parece um
contrassenso senatildeo maacute feacute da Histoacuteria colocar a filosofia no domiacutenio tanto das respostas
e da austera dedicaccedilatildeo quanto no do questionamento e do insoluacutevel Apenas apoacutes
debruccedilarmo-nos em seus sentidos do mais cotidiano ao canocircnico podemos ousar
responder ao que ela presta contas e quais relaccedilotildees esperar com tradiccedilatildeo e ensino ldquoIsso
eacute assim por ser o reconhecimento uma resposta Ele responde ao inacessiacutevel agrave medida que
o resguarda O pensamento compreende como resposta a uma relaccedilatildeo com um outro que
se mostra como velamento recusa como um adyton34rdquo (TRAWNY 2013 paacuteg 22)
34 ldquoSantuaacuterio secreto a que soacute tinham acesso os sacerdotes nos templos antigos da Greacuteciardquo (HOUAISS
Aacutedito 2009a) proveniente do grego ldquonatildeo deve ser adentradordquo (LIDDELL SCOTT Ἄδυτος 1940)
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)2F
dutosgt Acesso em 11 mai 2017
60
22 Filosofia inteligecircncia e entendimento
Ao longo de sua histoacuteria a filosofia tem assumido diversas acepccedilotildees o que eacute
determinante para compreender seu propoacutesito se eacute que haacute um Isso natildeo apenas em
variaccedilatildeo diacrocircnica de significados mas tambeacutem sincrocircnica ou seja nos registros atuais
da liacutengua Desde o uso diaacuterio da palavra ateacute os mais formais e teacutecnicos significados
encontramos conceituaccedilotildees ateacute contraditoacuterias do que seja filosofia
Naturalmente isso natildeo eacute um problema As contradiccedilotildees satildeo bem-vindas mas sem
que se caia na esparrela de aceitaacute-las esquecendo-se de fazer a devida criacutetica soacute porque a
princiacutepio tudo eacute vaacutelido Nem por outro lado fazer do filoacutesofo um inquisidor cuja missatildeo
eacute hierarquizar categorizando os diversos saberes Aleacutem disso histoacuteria discurso canocircnico
e opiniatildeo cotidiana natildeo satildeo coisas tatildeo diversas entre si e no mais das vezes se imiscuem
cada uma revelando um sentido que nos auxilia a pensar a questatildeo
Apesar disso no mais das vezes em sua trajetoacuteria a filosofia apregoa a si o ofiacutecio
de distanciar-se da opiniatildeo ou δόξα Quer dizer ao se questionar pelo significado
filosoacutefico a δόξα aparece como uma resposta equivocada Ora isso revela esse iacutempeto
que afasta os natildeo iniciados criando um estigma segregador na disciplina Na suposiccedilatildeo
de natildeo validar tudo na mesma medida promove-se a separaccedilatildeo em joio e trigo valorando
positiva ou negativamente as partes ldquoo meacutetodo da dialeacutectica eacute o uacutenico que procede por
meio da destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a caminho do autecircntico princiacutepio a fim de tornar seguro
seus resultados e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espeacutecie de lodo
baacuterbaro em que estaacute atoladardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 347)
A referecircncia agraves almas castigadas que jaziam no Hades atoladas no lodo (PLATAtildeO
2000 paacuteg 47) natildeo eacute leviana Por esse vieacutes da Repuacuteblica embora nela sejam considerados
outros modos de saber o meacutetodo dialeacutetico (que eacute o da filosofia) prepondera A filosofia
platocircnica se confunde com a proacutepria dialeacutetica sob a ressalva de que a ldquopalavra lsquodialeacuteticarsquo
natildeo designa nada com precisatildeo natildeo passa de uma miscelacircnea Ela abarca e potildee em
confusatildeo uma vasta gama de problemas de necessidades especulativas e de temas e
pensamentos heterogecircneosrdquo (RUYER 1961 paacuteg 1 ndash traduccedilatildeo de Thayrine
61
Kleinsorgen)35 haja vista todos os seus diaacutelogos nos quais Soacutecrates se apresenta sempre
perante os interlocutores a lidar com as diversas concepccedilotildees e com o princiacutepio agregador
delas
Para ele [Platatildeo] a Dialeacutetica eacute a teacutecnica da pesquisa associada que se efetua
atraveacutes da colaboraccedilatildeo de duas ou mais pessoas com o processo socraacutetico do
perguntar e responder A filosofia era de fato para Platatildeo natildeo uma tarefa
individual e privada mas obra de homens que lsquovivem juntamentersquo e lsquodiscutem
com benevolecircnciarsquo eacute a atividade proacutepria de lsquouma comunidade da educaccedilatildeo
livrersquo (Leis VII 344b) (ABBAGNANO 1970 paacuteg 252)
Desse modo a hierarquia de Platatildeo dos tipos de conhecimento justifica tanto o
iacutempeto filosoacutefico pela coerecircncia loacutegico-semacircntica quanto a repulsa histoacuterica dessa
disciplina pela opiniatildeo ou senso comum Isso ocorre seja pelo fato de ldquoabarcar num soacute
golpe de vista todas as ideias esparsas de um lado e do outro e fundi-las numa soacute ideia
geralrdquo (PLATAtildeO 2002 paacutegs 106-107) seja por ldquoseparar novamente a ideia geral nos
seus elementos nas suas articulaccedilotildees naturais sem todavia mutilar qualquer dos
elementos primitivos como faz um mau accedilougueirordquo (PLATAtildeO 2002 paacuteg 107)
definindo assim os modos de proceder com a dialeacutetica
lsquoSua interpretaccedilatildeo eacute deveras suficientersquo eu disse lsquoe agora respondendo a36
estas quatro partes assume-se estas quatro influecircncias ocorrendo na alma a
intelecto ou razatildeo para a mais alta a entendimento para a segunda atribui-se
a crenccedila para a terceira e para a uacuteltima o pensamento pictoacuterico ou a conjectura
e arranjaacute-las numa proporccedilatildeo considerando que elas participam no
esclarecimento e precisatildeo na mesma medida em que seus objetivos tomam
parte da verdade e da realidade (PLATAtildeO 1969a 511d-511e ndash traduccedilatildeo
livre)37
ἱκανώτατα ἦν δ᾽ ἐγώ ἀπεδέξω καί μοι ἐπὶ τοῖς τέτταρσι τμήμασι τέτταρα ταῦτα
παθήματα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενα λαβέ νόησιν μὲν ἐπὶ τῷ ἀνωτάτω διάνοιαν δὲ
ἐπὶ τῷ δευτέρῳ τῷ τρίτῳ δὲ πίστιν ἀπόδος καὶ τῷ τελευταίῳ εἰκασίαν καὶ τάξον
35 Le mot laquodialectiqueraquo ne deacutesigne rien de preacutecis nest quun fourre-tout Il couvre et met confusion toute
une vaste reacutegion de problegraveme de besoins speacuteculatifs de thegravemes de penseacutee heacuteteacuteroclites Disponiacutevel em
lthttpwwwjstororgstable40900578gt Acesso em 19 jul 2017 36 A preposiccedilatildeo ἐπί possibilita diversas traduccedilotildees conforme ldquofor [por ou para]rdquo e ldquocomrdquo vide o diaacutelogo
Goacutergias ldquofour branches of it for four kinds of affairsrdquo (PLATAtildeO 1967 463b) e ldquoquatro partes com quatro
campos diferentes de atividaderdquo (PLATAtildeO 2017b) 37 ldquoYour interpretation is quite sufficientrdquo I said ldquoand now answering to these four sections assume these
four affections occurring in the soul intellection or reason for the highest understanding for the second
assign belief to the third and to the last picture-thinking or conjecture and arrange them in a proportion
considering that they participate in clearness and precision in the same degree as their objects partake of
truth and realityrdquo Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017
62
αὐτὰ ἀνὰ λόγον ὥσπερ ἐφ᾽ οἷς ἐστιν ἀληθείας μετέχει οὕτω ταῦτα σαφηνείας
ἡγησάμενος μετέχειν (PLATAtildeO 1903 511δ-511ε)38
Aqui se apresenta um exemplo do caraacuteter categorizante da filosofia O auge da
influecircncia na alma (ψυχῇ) eacute o intelecto (νόησιν) Essa palavra grega eacute a forma declinada
de νόησις que ldquoeacute usada em seu sentido estrito de νοῦς natildeo apenas a faculdade de νοῦς
[] O exerciacutecio de νοῦς eacute corretamente falado como πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον
[influecircncias ocorrendo na alma] mas a faculdade em si mesma dificilmente poderia ser
assim descritardquo (ADAM 1902 ndash traduccedilatildeo livre)39
Essa eacute a inteligecircncia (LIDDELL SCOTT 1940 Νόησις)40 que faz oposiccedilatildeo agrave
percepccedilatildeo pelos sentidos agrave sensaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Αἴσθησις PLATAtildeO
1987 paacuteg 313)41 Somente o que fosse validado pelo intelecto seria de interesse da
filosofia o que eacute aprendido apenas pela experiecircncia com a proacutepria coisa teria consistecircncia
lodosa e seria menos confiaacutevel A razatildeo inspira seguranccedila pois pode ser comprovada e
medida (Cf ratio vide HOUAISS 2009a Razatildeo) As sensaccedilotildees podem ser
primeiramente sentidas depois descritas narradas cantadas e vividas mas dificilmente
satildeo precisas na convicccedilatildeo do caacutelculo ldquoAprende entatildeo o que quero dizer com o outro
segmento do inteligiacutevel daquele que o raciociacutenio atinge pelo poder da dialeacutectica [] sem
se servir em nada de qualquer dado sensiacutevel mas passando das ideias umas agraves outras e
terminando em ideiasrdquo (PLATAtildeO 1987 paacutegs 312-313)42
38 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017 39 Νόησιν is used in its strict sense of νοῦς in actual exercise not merely the faculty of νοῦς cf 508 E note
The exercise of νοῦς is correctly spoken of as a πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον but the faculty itself could
hardly be thus described Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A
section3D511Dgt Acesso em 20 mai 2017 40 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dno2
Fhsisgt Acesso em 17 mai 2017 41 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dai)2
Fsqhsisgt Acesso em 21 mai 2017 42 τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι
δυνάμει [hellip] αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος ἀλλ᾽ εἴδεσιν αὐτοῖς δι᾽ αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ
εἰς εἴδη Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A
section3D511bgt Acesso em 04 jul 2017
63
Uma ressalva contudo faz-se necessaacuteria a respeito das traduccedilotildees de νοῦς por
razatildeo Nas duas citaccedilotildees acima utiliza-se essa palavra e seus derivados no entanto a fim
de corresponder com o original grego conveacutem uma observaccedilatildeo acerca de certo
anacronismo do termo Isso porque estritamente falando o conceito de razatildeo como noacutes
o conhecemos hoje ainda natildeo tinha sido inventado
Claro que a rigor nenhuma palavra grega melhor dizendo nenhuma palavra no
tempo tem um sentido atual se ela mesma natildeo for atualizada Aleacutem disso natildeo eacute nada
incongruente a traduccedilatildeo de νοῦς por razatildeo Logo de que vale essa observaccedilatildeo
Exatamente pelo dito para tornar atual a palavra Significa fazer seu passado soar de
modo presente atento natildeo agrave fala pronunciada mas ao que nunca cessa de dizer a questatildeo
ldquoAuscultando natildeo a mim mas o Logos eacute saacutebio concordar que tudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO
1991 paacuteg 71)43
Inclusive esse pensador tambeacutem faraacute uso dessa palavra em seu fragmento 40 que
na traduccedilatildeo de Carneiro Leatildeo aparece como ldquomuito saber natildeo ensina sabedoria [νόον]
pois teria ensinado a Hesiacuteodo e Pitaacutegoras a Xenoacutefanes e Hecateurdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 69)44 Assim temos outro vieacutes de interpretaccedilatildeo mas que natildeo para por aiacute pois ao
longo da histoacuteria conforme as compreensotildees de realidade mudam tambeacutem a palavra diz
a quem a ouve coisas distintas ldquoSinto poreacutem nos meus membros outra lei que luta
contra a lei do meu espiacuterito [νοός] e me prende agrave lei do pecado que estaacute nos meus
membrosrdquo (BIacuteBLIA Romanos 7 23)45 Desse modo ratifica-se o caraacuteter profiacutecuo que a
palavra adquire geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo ao mesmo tempo em que endossa a confusatildeo de
qual sentido adotar neste ou naquele contexto
Contudo nem sempre haacute um compromisso com a palavra ou seja a
responsabilidade assumida para a traduccedilatildeo com a tradiccedilatildeo e sua respectiva traiccedilatildeo
Ocasiona-se entatildeo sua transformaccedilatildeo em invoacutelucro vocabular a serviccedilo da propagaccedilatildeo
de ideias Ueacute mas natildeo eacute disso que tratam os vocaacutebulos transposiccedilatildeo da realidade concreta
para o conceito abstrato E ainda que Bakhtin (2003 paacuteg 324) diga que ldquoa liacutengua a
43 ldquoοὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναιrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg
70) 44 ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκειmiddot Ἡδίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ
Ἑκαταῖονrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 68) 45 βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά
με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-
alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle557000179999gt Acesso em 3 jul 2017
64
palavra satildeo quase tudo na vida humanardquo isso passa longe do entendimento de que tudo eacute
qualquer coisa como se natildeo importasse o que usaacutessemos e todo dizer fosse igualmente
vaacutelido
Nesse sentido a sinoniacutemia entre intelecto e razatildeo conforme sugere a traduccedilatildeo de
Paul Shorey torna-se senatildeo equivocada ao menos digna de suspeita A razatildeo recebe uma
conceituaccedilatildeo bem especiacutefica no caminho do Ocidente demarcando por exemplo um vieacutes
sobre o sentido fundamental de interpretaccedilatildeo bem diferente do proposto pelas Escrituras
e pelo pensador brasileiro Daiacute a conveniecircncia em nos atentarmos a natildeo fazer das palavras
veiacuteculos de nossa vontade sob o risco de natildeo aceitarmos o convite do outro e soacute
estancarmos disciplinadamente estancarmos num monoacutelogo
Com a disciplina afirma-se um acircmbito de questotildees possiacuteveis que estabelece
direccedilotildees e caminhos dotados de certa validade O campo de objeto ocupado
pela disciplina fica confinado agrave disciplina As coisas de que trata a disciplina
soacute podem vir agrave palavra enquanto e agrave medida que a disciplina e seu aparato
metodoloacutegico permitem A disciplina e sua validade permanecem a instacircncia
paradigmaacutetica da possibilidade e do modo em que uma coisa se torna objeto
de uma ciecircncia ndash e um objeto apropriado para pesquisa As disciplinas em vigor
satildeo como uma peneira soacute admitindo aspectos bem determinados das coisas
Natildeo eacute tanto a coisa o seu fundamento e sua lsquoverdadersquo que decidem o que
pertence lsquoagrave coisarsquo mas sim a disciplina que confina a coisa enquanto objeto da
disciplina (HEIDEGGER 1998 paacuteg 240)
O perigo estaacute aiacute fazer do rigor de nossos desejos o real esquecendo-se do que eacute
ndash somos e natildeo somos Fazer do real apenas o eu ignora parte essencial de sua constituiccedilatildeo
aquele pedacinho sobre o qual natildeo nos cabe versar pois a noacutes estaacute velado Platatildeo trata
tanto de uma realidade apreensiacutevel quanto de uma incompreensiacutevel Sua questatildeo
todavia se processa a partir dos modos em que isso ocorre Parca eacute a compreensatildeo do
real sua conjectura alta o intelecto Ao nomeaacute-lo por razatildeo natildeo soacute utilizamos uma
palavra fortemente carregada de conceitos como determinamos que a excelecircncia do
conhecer daacute-se pela razatildeo e natildeo pela sabedoria ou pelo espiacuterito
A tarefa que se impocircs foi portanto conceber a ratio determinante do animal
homem na direccedilatildeo que pouco a pouco se revela no pensamento moderno A
essecircncia da razatildeo e isto significa da subjetividade natildeo eacute o mero pensamento
ou entendimento A essecircncia da razatildeo eacute a vontade Pois eacute na vontade
apreendida como o que se quer a si mesmo que se completa o colocar-se-
diante-de-si-mesmo do homem a subjetividade (HEIDEGGER 1998 paacuteg
235)
65
Semelhantemente ocorre com a traduccedilatildeo de λόγος por raciociacutenio Que bandeira
quer se defender em qual interpretaccedilatildeo do original claacutessico ela se fia Por que natildeo fazer
como o pensador Carneiro Leatildeo no fragmento 50 de Heraacuteclito (1991 paacuteg 71) e
simplesmente natildeo traduzir deixando a criteacuterio do leitor o estudo do grego antigo Outra
possibilidade eacute a total adequaccedilatildeo do termo ao sentido de essecircncia como acontece em ldquoNo
princiacutepio era o Verbo []rdquo (BIacuteBLIA Joatildeo 1 1) A histoacuteria dessa interpretaccedilatildeo de λόγος
marca o caminho que o Ocidente percorreu ateacute seu destino enquanto raciociacutenio passando
pela Vulgata ldquoIn principio erat Verbum []rdquo (BIacuteBLIA Ioannes 1 1)46 que por sua vez
adveacutem de ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος []rdquo (BIacuteBLIA Ιωαννην 1 1)47
Quaisquer desses posicionamentos escondem (e revelam) o sentido fundamental
da questatildeo do ser em cada dizer e nomear fundando pelo limite dito uma presenccedila no
real Enquanto a apropriaccedilatildeo de λόγος por Verbo ou Palavra como em Lutero ldquoIm Anfang
war das Wortrdquo (BIacuteBLIA Johannes 1 1)48 reapresenta sua concepccedilatildeo essencialista nos
paracircmetros da metafiacutesica do periacuteodo claacutessico ateacute os dias de hoje a manutenccedilatildeo do verbete
grego elitiza e convida o leitor a retornar ao movimento primordial da palavra
atualizando-a reversamente ou seja vai-se agraves origens em busca do que vigora
Conhecemos a definiccedilatildeo grega na formulaccedilatildeo posterior de homo est animal
rationale o homem eacute o animal racional Do λόγος a ratio da ratio a razatildeo O
elemento caracteriacutestico da capacidade racional eacute o pensamento Como animal
racional o homem eacute o animal pensante [] Podemos dizer que a definiccedilatildeo
referida eacute a determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem Nela o homem
que se encontra sob o domiacutenio da metafiacutesica exprime a sua essecircncia
(HEIDEGGER 1998 paacuteg 234)
Um detalhe Heidegger se refere agrave expressatildeo grega ἄνθρωπος ζῷον λόγος ἔχον
remetendo-se a Aristoacuteteles Contudo natildeo haacute em sua obra essa citaccedilatildeo ipsis litteris O mais
provaacutevel eacute que ela seja uma corruptela de ldquoοὐθὲν γάρ ὡς φαμέν μάτην ἡ φύσις ποιεῖ
λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴωνrdquo (ARISTOacuteTELES 1957 1253a)49 algo como
ldquoPois a natureza [φύσις] como noacutes declaramos natildeo faz nada sem propoacutesito e soacute o homem
46 Disponiacutevel em lt httpswwwbibliaonlinecombrtnvjo1gt Acesso em 07 jul 2017 47 Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle53gt
Acesso em 07 jul 2017 48 Disponiacutevel em lthttpswwwbibliaonlinecombrluther-1545jo1gt Acesso em 07 jul 2017 49 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100573Abook3D13A
section3D1253agt Acesso em 08 jul 2017
66
dos animais possui [ἔχει] discurso [λόγον]rdquo (ARISTOacuteTELES 1944 1253a)50 conforme
sugere Andrew Glynn (2015)51
Sutileza que faz toda a diferenccedila pois nesse trecho podemos aferir que a φύσις
enquanto real eacute quem possibilita o homem centrando a questatildeo natildeo na subjetividade
mas deslocando-a agrave apropriaccedilatildeo da essecircncia Apropriar-se porque embora o homem
ldquotenhardquo o λόγος ele deve mantecirc-lo seguraacute-lo nas proacuteprias matildeos ateacute habitaacute-lo vesti-lo
engravidar-se dele todos esses satildeo os sentidos do verbo grego (LIDDELL SCOTT 1940
Ἔχω)52 e natildeo abarcam a compreensatildeo de possuir apenas como quem controla a posse
material de um objeto possuir eacute ser possuiacutedo pela posse
Assim o que temos satildeo termos da Antiguidade que datildeo certa origem cronoloacutegica
a conceituaccedilotildees atuais e exatamente por isso natildeo devem ser igualados em significacircncia
Para natildeo estagnar em uma problemaacutetica historiograacutefica mais proveitoso para este
percurso que pretendemos aqui eacute decerto aceitar o desafio de pensar a oposiccedilatildeo
estabelecida em Platatildeo Ele tenta fundamentar a distinccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel a tal
ponto que chega a ser excludente um pelo outro Enquanto o intelecto trabalha com a
destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a fim de encontrar a verdade embasada justificada logicamente
a sensaccedilatildeo redundantemente apenas sente um bastar da proacutepria vivecircncia Eacute a partir desse
viver experienciado que estaacute a verdade dos sentidos
A Razatildeo eacute a forccedila que liberta dos preconceitos e do mito das opiniotildees
enraizadas mas falsas das aparecircncias e consente estabelecer um criteacuterio
universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos Do outro
lado como guia propriamente humano a Razatildeo eacute a forccedila a qual consente que
o homem se liberte dos apetites que tem em comum com os animais
submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida Esta eacute a duacuteplice
funccedilatildeo que foi atribuiacuteda agrave Razatildeo desde os primoacuterdios da filosofia ocidental
(ABBAGNANO 1970 paacuteg 792 ndash grifos no original)
50 For nature as we declare does nothing without purpose and man alone of the animals possesses speech
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Aristot+Pol+11253aampfromdoc=Perseus3Atext3A1
999010058gt Acesso em 08 jul 2017 51 Disponiacutevel em lthttpskalountoswordpresscom20150427what-is-the-human-part-one-rational-
animal-or-zoon-logon-echongt Acesso em 08 jul 2017 52 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)2F
xw1gt Acesso em 08 jul 2017
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Uma oposiccedilatildeo radical mas que natildeo ocorre bruscamente Haacute etapas intermediaacuterias
entre os extremos que constituem essa segregaccedilatildeo essencial para Platatildeo Discute-se sobre
διάνοιαν forma declinada de διάνοια cujo sentido perpassa διά-νοια o que estaacute entre
(διά) a inteligecircncia (νοῦν) e a opiniatildeo (δόξης) ldquopois considere entendimento como algo
intermediaacuterio entre opiniatildeo e razatildeordquo (PLATAtildeO 1969a 511d ndash traduccedilatildeo livre)53 Logo
διάνοια aqui significa entendimento compreensatildeo mas fundamentalmente quer dizer o
lugar que natildeo eacute jaacute opiniatildeo mas que tambeacutem natildeo alcanccedilou a inteligecircncia Ainda natildeo ao
menos Estaacute em contato com o intelecto vislumbra-o sem tecirc-lo compreende-o agrave medida
que a δόξα enquanto local de predominacircncia das sensaccedilotildees eacute rejeitada
Esse eacute o conhecimento que ocorre ldquona geometria e nas ciecircncias afins [ἀδελφαῖς
τέχναις]rdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 312) Ao declarar indiretamente que somente ao filoacutesofo
como aquele que estaacute em relaccedilatildeo de profunda intimidade com o νοῦς cabe pensar os
princiacutepios e aos ldquocientistasrdquo eacute forccedilado ldquoinvestigar a partir de hipoacuteteses sem poder
caminhar para o princiacutepio mas para a conclusatildeordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311) ele faz
uma distinccedilatildeo importante O filoacutesofo marca uma ruptura que caracteriza sua forma de
pensar e que vai de encontro a outros importantes pensadores por aproximar a ciecircncia da
filosofia embora discernindo ambas entre si
Temos assim como base a aritmeacutetica que lsquofacilita a passagem da proacutepria alma
da mutabilidade agrave verdade e agrave essecircnciarsquo (Livro VII 525c) a seguir o espaccedilo a
duas dimensotildees ou geometria plana em terceiro lugar o espaccedilo a trecircs
dimensotildees por meio da estereometria a astronomia estuda os corpos soacutelidos
em movimento e a harmonia o som que eles entatildeo produzem Trata-se
portanto de um ensino essencialmente formativo Todas estas ciecircncias tecircm por
missatildeo preparar o espiacuterito para atingir o plano mais elevado a dialeacutectica cujo
fim eacute o conhecimento do Bem (Livro VII 333b-e) (PEREIRA 1987 paacuteg
XXXI)
Conveacutem reforccedilar que tanto teacutecnica quanto ciecircncia adequam-se ao contexto
somente se considerarmos que uma mesma terminologia pode tratar de assuntos distintos
Isso porque ao nos referirmos agrave ciecircncia noacutes homens modernos temos o haacutebito de
imaginar doutores de jalecos brancos e sentenccedilas de verdade inquestionaacutevel
Costumamos ao falar de teacutecnica pensar o modo de fazer algo agrave medida que detemos os
53 [hellip] because you regard understanding as something intermediate between opinion and reason
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 16 de mai 2017
68
meios a partir dos quais algo se faz Em outros termos para noacutes ter uma teacutecnica eacute
sinocircnimo de ter o controle cognosciacutevel sobre a produccedilatildeo de alguma coisa
Quanto maior for o controle aparentemente mais controle eacute desejado dando-se a
impressatildeo de evoluccedilatildeo e desenvolvimento Teacutecnica e tecnologia hoje se imiscuem e uma
ciecircncia de ponta indica tecnologia mais avanccedilada mesmo que problemas elementares
estejam esperando soluccedilatildeo Nesse meio tempo a teacutecnica mais simples torna-se obsoleta
a despeito de sua eficaacutecia em prol das novas tecnologias Se antes a teacutecnica nunca
houvera prometido a soluccedilatildeo do problema apenas delegando a si o papel de ferramenta
facilitadora a teacutecnica moderna promete mundos e fundos a cura dos mais terriacuteveis males
aquele uacuteltimo gadget e update para manter a roda dos desejos sempre a girar
Em contrapartida uma regiatildeo se desenvolve na exploraccedilatildeo de fornecer carvatildeo
e mineacuterios O subsolo passa a se desencobrir como reservatoacuterio de carvatildeo o
chatildeo como jazidas de mineacuterio Era diferente o campo que o camponecircs outrora
lavrava quando lavrar ainda significava cuidar e tratar O trabalho camponecircs
natildeo provoca e desafia o solo agriacutecola
Em contraste explora-se uma aacuterea da terra a fornecer carvatildeo e mineacuterios A
terra se des-encobre neste caso depoacutesito de carvatildeo e o solo jazida de minerais
Era outro o lavradio que o lavrador dispunha outrora quando dis-por ainda
significava lavrar isto eacute cultivar e proteger A lavra do lavrador natildeo desafiava
o lavradio Na semeadura apenas confiava a semente agraves forccedilas do crescimento
encobrindo-a para seu desenvolvimento Hoje em dia uma outra posiccedilatildeo
tambeacutem absorveu a lavra do campo a saber a posiccedilatildeo que dis-potildee da natureza
E dela dis-potildee no sentido de uma exploraccedilatildeo A agricultura tornou-se induacutestria
motorizada de alimentaccedilatildeo Dis-potildee-se o ar a fornecer azoto o solo a fornecer
mineacuterio como por exemplo uracircnio o uracircnio a fornecer energia atocircmica esta
pode entatildeo ser desintegrada para a destruiccedilatildeo da guerra ou para fins paciacuteficos
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 19 ndash grifos no original)
Natildeo podemos ignorar que ainda natildeo se trata da teacutecnica como a conhecemos hoje
e consequentemente da ciecircncia moderna senatildeo por uma questatildeo cronoloacutegica por
ontologicamente a concepccedilatildeo generalizante do homem e sua loacutegica natildeo estarem em pleno
vigor Cabe lembrar que tanto o mito quanto a sua transmissatildeo eram tidos como naturais
entre todos e quiccedilaacute seja esse o grande embate de Soacutecrates ndash a maiecircutica nunca foi para
convencer Agatatildeo ou Trasiacutemaco para um fim qualquer mas a toda πoacuteλις pelo fim digno
do periacuteodo de influecircncia homeacuterica
Podemos supor que como P Shorey (1968 p 248) e F M Cornford
(PLATAtildeO 1969b p 321) que Platatildeo se viu na necessidade de se defender
contra a celeuma levantada pelas afirmaccedilotildees sobre o tema [a condenaccedilatildeo da
poesia] feitas naqueles mesmos livros [II e III] Mas a importacircncia da poesia
69
na vida grega justifica a expansatildeo dada a este ataque Embora desde os finais
do seacutec VI aC a escrita estivesse divulgada e desde o seacutec V houvesse um
comeacutercio de livros apreciaacutevel (PEREIRA 1998 p 18-19) a verdade eacute que era
a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos quer pelos actores
dramaacuteticos) o principal meio de educaccedilatildeo e veiacuteculo de conhecimentos Esta
transmissatildeo intersubjetiva do saber eacute um aspecto caracteriacutestico e fundamental
da cultura grega bem visiacutevel aliaacutes nos proacuteprios diaacutelogos de Platatildeo E natildeo
esquecemos que mesmo para extensas narrativas em prosa como eram as
Histoacuterias de Heroacutedoto natildeo estava excluiacuteda a praacutetica da recitaccedilatildeo perante um
grande auditoacuterio (PEREIRA 1987 paacuteg XXXV)
Em outras palavras para Platatildeo os fins imediatos dados pela aparecircncia e
sensaccedilotildees natildeo seriam concernentes agrave filosofia estivessem eles envolvidos com pequenos
problemas do cotidiano ou com grandes obras de poliacutetica e de construccedilatildeo civil mas
apenas os princiacutepios geradores de todos os problemas Enquanto as demais disciplinas
respondem agrave pergunta por si (o que eacute a poliacutetica O que eacute construccedilatildeo civil) por suas accedilotildees
e finalidades praacuteticas (p ex a poliacutetica faz construccedilatildeo civil serve para) a filosofia
transforma a proacutepria pergunta existencial como seu caraacuteter fundamental almejando natildeo
necessariamente a um fim outro senatildeo o de se perguntar pelo ser em tudo ldquoo que eacuterdquo
Esse tipo de entendimento sobre a filosofia influencia o Ocidente ateacute eacutepocas mais
recentes Por exemplo em Kant (1992 paacuteg 41) podemos notar certa afinidade com o
exposto haja vista nomear filosofia como ciecircncia (Wissenschaft)
A filosofia eacute pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos
conhecimentos racionais a partir dos conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico
dessa ciecircncia De acordo com o conceito mundano ela eacute a ciecircncia das
finalidades uacuteltimas da razatildeo humana Esse conceito altivo confere dignidade agrave
filosofia isto eacute um valor absoluto E realmente tambeacutem eacute o uacutenico
conhecimento que soacute tem valor intriacutenseco e aquilo que vem primeiro conferir
valor a todos os demais conhecimentos (KANT 1992 paacuteg 41)
Eacute possiacutevel encarar sua referecircncia agraves finalidades uacuteltimas (letzten Zwecken) no
conceito mundano como que reafirmando em alguma medida o percurso platocircnico no
Ocidente Isso porque embora as ideias de fim e princiacutepio aparentem ser diametralmente
opostas nos dois casos domina a dinacircmica metafiacutesica e essencialista por tratarem de
conceitos absolutos ldquo[] ao passo que na outra parte a que conduz ao princiacutepio
absolutordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311)
Por outro lado pensadores como Heidegger se propuseram a aproximar mais a
filosofia agrave arte e em contrapartida a fazer uma criacutetica ferrenha agrave ciecircncia Dessa forma eacute
rompida a tradiccedilatildeo que limitava e congregava toda uma compreensatildeo de realidade acerca
70
da ciecircncia e da filosofia Satildeo outros meacutetodos buscam-se outras influecircncias e geram-se
confusotildees plenamente aceitaacuteveis ao se dispor a tais leituras ldquoConhecemos eacute claro muita
coisa sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e poesia Natildeo sabemos poreacutem do diaacutelogo dos poetas
e dos pensadores que lsquomoram proacuteximos nas montanhas mais separadasrsquo [nahe wohnen
auf getrennsten Bergen]rdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51)
Enquanto a διάνοια platocircnica faz a ponte cognosciacutevel entre inteligecircncia e opiniatildeo
para Heidegger haacute certa distacircncia instransponiacutevel entre filosofia e poesia contudo isso
as define como iacutentimas ao abismo esse limite cerceador e constituidor de constantes
questionamentos e desafios Para tanto o pensador traz o poema em sua tensatildeo com o
pensar ldquodepois de um verso do hino Patmos de Houmllderlin ele [Heidegger] descreve a
relaccedilatildeo entre pensamento e poesia que lsquoperto vivem nas mais separadas montanhasrsquo com
a imagem do cimo do tempordquo (KIMMERLE 1995 paacutegs 77-78 ndash traduccedilatildeo livre)
Conveacutem pois conferir um trecho maior sua primeira estrofe a fim de discutir com mais
propriedade a imagem-questatildeo colocada
Patmos54
Estaacute proacuteximo
E difiacutecil de agarrar o deus
Onde contudo haacute perigo cresce
O que salva tambeacutem
Agraves escuras vivem
As aacuteguias e destemidas partem
As filhas dos Alpes sobre o abismo
Em singelas feitas pontes
Por isso juntas laacute estatildeo em torno
Do cimo do tempo e as mais amadas
Perto vivem esmorecendo nas
Mais separadas montanhas
Entatildeo daacute pura aacutegua
Oacute asas daacute-nos os mais apurados sentidos
Para atravessar e regressar (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre)55
54 Pequena ilha grega no Egeu Meridional Local onde o apoacutestolo Joatildeo foi exilado e teria recebido a
revelaccedilatildeo para escrever o Evangelho (SMITH PatrsquoMos 1901) Disponiacutevel em
lthttpwwwstudylightorgdictionariessbdppatmoshtmlgt Acesso em 27 mai 2017 55 Nah ist Und schwer zu fassen der Gott Wo aber Gefahr ist waumlchst Das Rettende auch Im Finstern
wohnen Die Adler und furchtlos gehn Die Soumlhne der Alpen uumlber den Abgrund weg Auf leichtgebaueten
Bruumlcken Drum da gehaumluft sind rings Die Gipfel der Zeit und die Liebsten Nah wohnen ermattend auf
Getrenntesten Bergen So gib unschuldig Wasser O Fittiche gib uns treuesten Sinns Hinuumlberzugehn
und wiederzukehren Disponiacutevel em lthttpgutenbergspiegeldebuchfriedrich-h-262132gt Acesso em
27 mai 2017
71
Νοῦς eacute a superaccedilatildeo de διάνοια e portanto superior a δόξα e a αἴσθησις ndash que se
relaciona com a arte (daiacute a palavra esteacutetica) Para Platatildeo a poesia as sensaccedilotildees e suas
representaccedilotildees estatildeo intimamente ligadas ao que haacute de mais abjeto satildeo uma espeacutecie ldquode
veneno intelectual e inimiga da verdaderdquo (HAVELOCK 1996b paacuteg 20) Tudo que elas
representam deve ser evitado para que suas maacutes influecircncias natildeo desvirtuem os homens
De acordo com o caminho do que haacute de mais nobre e belo aos olhos da filosofia conforme
Livro X ldquoDe modo que natildeo devemos deixar-nos arrebatar por honrarias riquezas nem
poder algum nem mesmo pela poesia descurando a justiccedila e as outras virtudesrdquo
(PLATAtildeO 1987 paacuteg 474)
A ceacutelebre expulsatildeo dos poetas nada mais eacute do que a sequecircncia loacutegica Natildeo nos
surpreende quando Platatildeo (1987 paacuteg 473) fala que ldquoaqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao
lembrarmos de novo a poesia por justificadamente excluirmos da cidade uma arte dessa
espeacutecierdquo se nos ativermos ao empenho de sistematizaccedilatildeo e adequaccedilatildeo que fundamenta
essa verdade Esta soacute tem validade pelo intelecto e natildeo soacute pode mas deve ignorar as
sensaccedilotildees A revoluccedilatildeo circunscrita aqui diz respeito a uma concepccedilatildeo de ser e estar no
mundo anterior retroacutegrada que precisa ceder espaccedilo abrir matildeo de sua presenccedila para se
reconhecer aparecircncia imaginaccedilatildeo perdendo seu estatuto de seriedade Assim no
decorrer de milecircnios acaba por tornar-se entretenimento isto eacute tudo o que natildeo for por
essa nova loacutegica simplesmente natildeo eacute
Fica imediatamente evidente que um tiacutetulo como a Repuacuteblica natildeo pode nos
preparar para o surgimento nesta obra de um ataque tatildeo frontal agrave essecircncia da
literatura grega Se a discussatildeo segue um plano e se a investida vinda de onde
vem constitui uma parte essencial daquele plano entatildeo o objetivo do tratado
como um todo natildeo pode ser contido dentro dos limites a que denominamos
teoria poliacutetica (HAVELOCK 1996b paacuteg 20)
Para Heidegger poesia e filosofia estatildeo no ldquocimo do tempordquo Natildeo se trata aqui de
trocar arte por ciecircncia mas de reconhecer o vigor da palavra poeacutetica destratada pela
histoacuteria Seu desterro platocircnico natildeo faz jus ao voo da aacuteguia empreendido para ter com sua
irmatilde de pensamento O abismo marca o intransponiacutevel a ponte e a travessia o diaacutelogo e
o regresso e o perigo definem a identidade desta relaccedilatildeo de proximidade e distacircncia na
qual convivem filosofia e poesia
72
221 Ciecircncia e intelecto
Todavia cabe antes uma ressalva pois haacute uma incongruecircncia entre passagens da
Repuacuteblica Vejamos ldquocomo anteriormente chamar agrave primeira divisatildeo ciecircncia agrave segunda
entendimento agrave terceira crenccedila e agrave quarta conjectura ou pensamento pictoacuterico ndash e agraves duas
uacuteltimas ambas opiniatildeo e agraves duas primeiras intelectordquo (PLATAtildeO 1969a 533e-534a ndash
traduccedilatildeo livre)56 conforme o original ldquoἀρκέσει οὖν [] τὴν μὲν πρώτην μοῖραν ἐπιστήμην
καλεῖν δευτέραν δὲ διάνοιαν τρίτην δὲ πίστιν καὶ εἰκασίαν τετάρτην καὶ συναμφότερα μὲν
ταῦτα δόξαν νόησιν δὲ περὶ οὐσίανrdquo (PLATAtildeO 1903 533ε-534α)57 Em 511d Platatildeo
descreve o cume do conhecimento como sendo νοῦς e em 533e ἐπιστήμην sendo esta
subdivisatildeo de νοῦς
Mais importante do que exigir clareza absoluta dos textos antigos eacute empreender o
caminho de pensamento que por vezes seraacute duacutebio Ἐπιστήμην eacute a forma declinada de
ἐπιστήμη que significa entre outros sentidos conhecimento conhecimento cientiacutefico e
faz oposiccedilatildeo agrave δόξα (LIDDELL SCOTT 1940 Ἐπιστήμη)58 Por sua vez δόξαν eacute a forma
declinada de δόξα significando opiniatildeo sim mas tambeacutem expectativa julgamento
noccedilatildeo reputaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Δόξα)59
Haacute pois dois campos semacircnticos aproximados um sujeito agrave especulaccedilatildeo
possibilidade de certeza ou ateacute achismo outro sujeito agrave comprovaccedilatildeo teoacuterica
argumentaccedilatildeo loacutegica e fundamentaccedilatildeo da certeza Desse modo leva-se a crer que Platatildeo
deveria estar se referindo a νοῦς e διάνοια como ambas sendo ἐπιστήμη ndash e natildeo o contraacuterio
ndash que por conseguinte se opunha agraves outras duas δόξα
56 as before to call the first division science the second understanding the third belief and the fourth
conjecture or picture-thoughtmdashand the last two collectively opinion and the first two intellection
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D73A
section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 57 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D73A
section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 58 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)pisth
2Fmhgt Acesso em 28 mai 2017 59 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddo2
Fca5Egt Acesso em 28 mai 2017
73
Outro aspecto problemaacutetico eacute igualar ἐπιστήμη agrave ciecircncia pois vimos que Platatildeo
distingue ciecircncia de intelecto Decerto em diversos contextos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel
entretanto especificamente nesse causa confusotildees Talvez uma possibilidade fosse
simplesmente considerar a palavra por ldquoconhecimentordquo em oposiccedilatildeo agrave ldquoopiniatildeordquo
Entendemos contudo tratar-se de uma ambiguidade jaacute estabelecida na tradiccedilatildeo
filosoacutefica e por respeito agrave fonte do texto em inglecircs optou-se por manter ldquociecircnciardquo
Eacute muito frequente a traduccedilatildeo dessa [ἐπιστήμη] palavra por lsquociecircnciarsquo remetendo-
se assim de modo impliacutecito mas tambeacutem impreciso e apressadamente
aproximado agrave ciecircncia moderna Em seu germe mais interior que soacute vem agrave tona
no encaminhamento da histoacuteria moderna essa ciecircncia eacute de essecircncia teacutecnica
[] O fundamento e o acircmbito essencial da teacutecnica moderna eacute essa vontade [de
ser senhor da totalidade do mundo no modo do ordenamento] que em toda
intenccedilatildeo e apreensatildeo em tudo o que se quer e alcanccedila sempre quer somente a
si mesma e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-
querer-a-si (HEIDEGGER 1998 paacutegs 204-205)
23 Crenccedila e conjectura
Entramos agora no domiacutenio da δόξα Se para falarmos de ἐπιστήμη e νοῦς tivemos
de ter cautela tambeacutem este acircmbito eacute traiccediloeiro Sobre o que tratamos quando nos
referimos a δόξα Vejamos um exemplo o hino Patmos comeccedila com os seguintes versos
ldquoEstaacute proacuteximo E difiacutecil de agarrar o deusrdquo (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre) A
referecircncia agrave divindade eacute clara proacutepria inclusive do Romantismo e essencial ao poema
Ela diz algo a respeito de uma postura diversa que privilegia o que antes voluntariamente
se velava na histoacuteria do Ocidente
Eacute como se o poeta cuja influecircncia claacutessica eacute notoacuteria resolvesse aludir agrave musa que
laacute se encontrava e se desencontrava A aproximaccedilatildeo do sagrado ratifica o contexto das
sensaccedilotildees do que precisa ser experienciado agrave medida que se torna menos preciso e
calculaacutevel Em contraste com o filoacutesofo que exclui a πoacuteλις do verso e jaacute que os poemas
coparticipam do domiacutenio do sensiacutevel retira o homem das sensaccedilotildees e seus crenccedilas
Houmllderlin refaz a ponte singela que aproxima em sua dificuldade essas duas aacuteguias as
quais Heidegger propositalmente identifica por poesia e filosofia
74
Este eacute o domiacutenio ao qual relega Platatildeo a δόξα o de ser contraponto de νοῦς Se
este se apresentava como superior aquele eacute o inferior das sensaccedilotildees que tocam a ψυχῇ
mas que por isso estaacute em meio ao comum e ao geral ao normalmente aceito e
imediatamente sentido Assim como o anterior superior tambeacutem eacute subdividido
Como terceiro estaacutegio de influecircncia na alma temos em Platatildeo a πίστιν forma
declinada de πίστις A traduccedilatildeo portuguesa comentada da Repuacuteblica de 1987 assim como
a ediccedilatildeo brasileira de 2000 opta por ldquofeacuterdquo Para evitar o sincretismo a escolha pela
palavra ldquocrenccedilardquo parece ser mais aconselhaacutevel indo ao encontro da ediccedilatildeo em liacutengua
inglesa Outras definiccedilotildees tais quais ldquoconfianccedila persuasatildeo honestidade garantia e ateacute
creacuteditordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Πίστις)60 versam em torno da palavra
Dessa forma por que considerar crenccedila como de menor importacircncia para a
filosofia Essa eacute uma duacutevida honesta mas talvez a pergunta inicial possa ser reformulada
para saber sobre o quecirc do crer quer dizer o que se acredita aqui que difere do credo da
etapa anterior Ora a δόξα eacute o acircmbito da αἴσθησις logo se fia nos sentidos Confia-se
no que se vecirc no que pode ser tocado de modo que seria preciso fazer a experiecircncia com
as coisas mais do que sobre as coisas Contudo para Platatildeo apenas fazer uma experiecircncia
praacutetica com as coisas natildeo eacute garantia de acesso a elas pois somente pelo intelecto se
achegaria aonde natildeo se pode ver como se natildeo ver as coisas mas a ideia das coisas fosse
realmente vecirc-las
Se noacutes limitarmos estritamente DC [segmento da Figura 1 referente a ζῷα etc]
a ὁρατά πίστις precisa ser entendida como um estado da mente que acredita
apenas nas coisas palpaacuteveis (ἐναργῆ) e visiacuteveis (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ
φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510 A)61 lsquoverrsquo como noacutes ainda dizemos
lsquopara crerrsquo Mas Platatildeo jaacute falou de AC [segmento da Figura 1 referente a
εἰκόνες e ζῷα etc] como δοξαστόν62 (nota 510 A) logo que πίστις natildeo deve
ser confinada aos objetos da visatildeo (ADAM 1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)63
60 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpi2F
stisgt Acesso em 29 mai 2017 61 [] a que nos abrange a noacutes seres vivos e a todas as plantas e toda a espeacutecie de artefactos (PLATAtildeO
1987 paacuteg 311) 62 [hellip] Acaso consentirias em aceitar que o visiacutevel se divide no que eacute verdadeiro e no que natildeo o eacute e que tal
como a opiniatildeo [δοξαστόν] estaacute para o saber assim estaacute a imagem para o modelo (PLATAtildeO 1987 paacuteg
311) 63 If we strictly limit DC to ὁρατά πίστις must be understood as the state of mind which believes only in
visible palpable (ἐναργῆ) things (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510
A) lsquoseeingrsquo as we still say lsquois believingrsquo But Plato has already spoken of AC as δοξαστόν (510 A note)
so that πίστις should not be confined to the objects of sight
75
Figura 1 ndash As quatro influecircncias
Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929
Em mateacuteria de conhecimento πίστις estaacute na parte inferior por principalmente natildeo
aceitar o convencimento pelo conceito mormente julga pelo sensiacutevel a realidade Dessa
forma as respostas que algueacutem pode procurar e oferecer natildeo seriam apenas loacutegicas mas
tambeacutem emotivas e situacionais Aqui faz-se uma distinccedilatildeo importante pois abre um
precedente agrave compreensatildeo das coisas natildeo pelo que elas satildeo mas por suas categorias
Platatildeo refere-se a πίστις como uma imagem que convence mas natildeo vence
independentemente de como e o que for retratado nela Simplesmente por ser retrataacutevel
ela jaacute abre matildeo de certa inteligibilidade e por isso estaacute fadada agrave imperfeiccedilatildeo das
experiecircncias concretas
Quer isto dizer que o que a coisa eacute o seu Was-sein ou o seu ser eacute dado natildeo na
sua pura e simples aparecircncia sensiacutevel e sempre particular mas no seu lsquoaspectorsquo
(εἶδος) tal que soacute uma visatildeo supra-sensiacutevel do ente o pode captar ndash e que soacute eacute
ele proacuteprio acessiacutevel como poderia mostrar uma nova anaacutelise senatildeo por meio
das lsquocateroriasrsquo (κατηγορiacuteα) que decidem das possibilidades de ser desse ente
(ZARADER 1998 paacuteg 210)
Jaacute Aristoacuteteles (2005 paacuteg 95-96) desenvolve diversa e detalhadamente esse tema
ao classificar a retoacuterica como ldquoa capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso
com o fim de persuadir [πιθανόν] Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra
arte pois cada uma das outras apenas eacute instrutiva e persuasiva [πειστική64] nas aacutereas de
sua competecircnciardquo Aludindo ao caraacuteter fronteiriccedilo do convencimento ele divide sua obra
em trecircs livros que discorrem sobre λόγος πάθος e ἔθος da persuasatildeo percepccedilatildeo triacuteplice a
64 Forma tardia e declinada de πιστικός (LIDDELL SCOTT 1940 Πιστικός) Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpistiko
2Fs2gt Acesso em 30 mai 2017
76
partir da qual ele compreende o tema Em outras palavras eis o entendimento de que a
crenccedila eacute um convencer por argumentaccedilatildeo loacutegica assim como pelas emoccedilotildees e pelo
contexto em que ocorre
Se Platatildeo colocou πίστις num acircmbito eminentemente opinativo por conseguinte
oposto ao epistemoloacutegico Aristoacuteteles tambeacutem concorda que a retoacuterica natildeo eacute uma ciecircncia
e como tal tem qualidades proacuteprias Embora ambas possuam uma teacutecnica a retoacuterica
apenas se aproxima do verdadeiro trabalhando com probabilidades e possibilidades
provaacuteveis Enquanto isso para os dois filoacutesofos a ciecircncia se constitui por verdades
universais ldquoEacute igualmente insensato aceitar conclusotildees meramente provaacuteveis de um
matemaacutetico e demandar demonstraccedilatildeo precisa de um oradorrdquo (ARISTOacuteTELES 1934 ndash
traduccedilatildeo livre)65 conforme o original ldquoΠαραπλήσιον γὰρ φαίνεται μαθηματικοῦ τε
πιθανολογοῦντος ἀποδέχεσθαι καὶ ῥητορικὸν ἀποδείξεις ἀπαιτεῖνrdquo (ARISTOacuteTELES
1894)66
Agora se crenccedila pressupotildee um convencimento por mais que ele natildeo fosse
dialeticamente adequado haacute aiacute um jogo tensional no qual existe uma possibilidade de
questionamento Quem pode ser convencido deve possuir os subsiacutedios para o
convencimento precisa haver alguma duacutevida a ser respondida ou certezas passiacuteveis de
contra-argumentaccedilotildees O que eacute totalmente dado como certo pronto estaacute sem necessidade
de acabamento
Imagina homens numa morada subterracircnea [Figura 2] [] desde a infacircncia []
de pernas e pescoccedilo acorrentados [segmento 119886119887 ] [] a luz chega-lhes de uma
fogueira acesa numa colina [] entre o fogo e os prisioneiros passa uma
estrada ascendente [segmento 119890119891 ] Imagina que ao longo dessa estrada estaacute
construiacutedo um pequeno muro [segmento 119892ℎ ] []
[] Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam
objetos de toda espeacutecie []
[] Dessa forma tais homens [os acorrentados] natildeo atribuiratildeo realidade senatildeo
agraves sombras dos objetos fabricados (PLATAtildeO 2000 paacutegs 225-226)
65 It is equally unreasonable to accept merely probable conclusions from a mathematician and to demand
strict demonstration from an orator Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100543Abekker20page
3D1094b3Abekker20line3D20gt Acesso em 01 jun 2017 66 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker20page
3D1094b3Abekker20line3D25gt Acesso em 01 jun 2017
77
Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna
Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929
Quando natildeo haacute questotildees soacute respostas quando natildeo haacute um conceito a ser
reproduzido e nem sua reproduccedilatildeo apenas um vestiacutegio de algo que dificilmente pode ser
caracterizado pela ousadia da resposta nem pela inquietude da pergunta laacute dominam as
sombras Natildeo pode haver convencimento onde soacute haacute convicccedilatildeo ldquoE se o arrancarem agrave
forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem
antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de
tais violecircncias mdash Com toda a certezardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226)
Eis que por fim analisaremos a palavra εἰκασίαν forma declinada de εἰκασία
como pensamento pictoacuterico imaginaccedilatildeo conjectura representaccedilatildeo suposiccedilatildeo etc
(LIDDELL SCOTT 1940 Εἰκασία)67 Esse eacute o estaacutegio mais distante do conhecimento
Domiacutenio da praacutetica e das sensaccedilotildees a aprendizagem se daria pela via empiacuterica e natildeo
67 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dei)kasi
2Fagt Acesso em 20 mai 2017
78
atraveacutes de formulaccedilotildees inteligiacuteveis Sabe-se o que se fez ou o que se viu do contraacuterio natildeo
existe Haacute somente o puro e simples saber ou o achar que se sabe pelo menos
Achismos agrave parte haacute de se convir que nunca se natildeo sabe de nada Esse
desmerecimento das aparecircncias e das opiniotildees parte de um Platatildeo de fora da caverna sem
possibilidade de retorno a ela Decerto que na Repuacuteblica ele volta mas natildeo como antes
ldquoSe um homem nessas condiccedilotildees descesse de novo para o seu antigo posto natildeo teria os
olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Solrdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg
318) E como natildeo teria Do contato com a ideia platocircnica ateacute o contato com as demais
pessoas ldquoacorrentadasrdquo passaram-se dois milecircnios e o filoacutesofo ainda natildeo reestabeleceu
plenamente sua visatildeo
A filosofia sofre desse estigma que ela mesma criou o de ser inacessiacutevel aos
muitos Na alegoria da caverna Platatildeo supotildee tanto os acorrentados como ldquoos curados da
sua ignoracircnciardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226) Relata seus percursos de saiacuteda e retorno
mas nada diz desse primeiro despertar Eacute possiacutevel ensinar teacutecnicas de memorizaccedilatildeo de
argumentaccedilatildeo de convencimento mas como ensinar a pensar Eacute possiacutevel ensinar
teacutecnicas de como fazer poesia muacutesica mas como algueacutem vira poeta muacutesico ou no nosso
caso filoacutesofo
Na instacircncia de nossas experiecircncias cotidianas e da tradiccedilatildeo acabamos por
reproduzir muitas aprendizagens e compreender muitos ensinamentos
Independentemente do juiacutezo em torno deles o saber acontece Buscar o saber se for esse
mesmo o caminho empreendido natildeo passa ldquoda parte que nos cabe deste latifuacutendiordquo
Aquele que busca o saber pode aprender ou natildeo aquele que natildeo busca pode aprender ou
natildeo Como proceder Qual caminho seguir Assim deve-se descer agrave caverna natildeo se deve
descer ou natildeo se deve nem mesmo sair dela ldquoEntatildeo aonde noacutes vamos mdash Sempre para
casardquo (NOVALIS 1982 ndash traduccedilatildeo livre)68
Por vezes aquele conhecimento mais insignificante pode ser explorado pelo
intelecto Quiccedilaacute aquele conhecimento mais insignificante natildeo deve ser explorado pelo
intelecto mas simplesmente deve-se aceitaacute-lo do mesmo modo como eacute preciso aceitar
muitas verdades sem as quais natildeo seria possiacutevel viver se cada chatildeo fosse uma questatildeo
natildeo dariacuteamos um passo sequer Nem por isso tal postura precisa ser tratada por
68 raquoWo gehn wir denn hinlaquo raquoImmer nach Hauselaquo Disponiacutevel em
lthttpgutenbergspiegeldebuchheinrich-von-ofterdingen-523524gt Acesso em 03 mai 2017
79
ignoracircncia nem a inacessibilidade de muitos deve ser igualada ao ofiacutecio de poucos
Alguns satildeo filoacutesofos assim como alguns satildeo camponeses e embora agraves vezes
circunstacircncias avessas agrave vontade forcem que muitos se tornem camponeses
provavelmente soacute alguns tambeacutem teriam a vocaccedilatildeo para o campo
Para Platatildeo tende-se a crer que a vocaccedilatildeo para a filosofia eacute natildeo saber Afinal ele
relaciona os quatro estaacutegios de afetaccedilatildeo da alma em proporccedilatildeo isto eacute em analogia ou
melhor em ἀνὰ λογόν forma declinada de ἀνὰλόγος (ora escrita junta ora separada no
texto original) aquilo que estaacute em relaccedilatildeo de correspondecircncia com o λόγος (LIDDELL
SCOTT 1940 Ἀνὰλόγος)69 Daiacute εἰκασία ser o domiacutenio absoluto das certezas ldquoA traduccedilatildeo
lsquoconjecturarsquo leva a equiacutevocos pois conjectura implica duacutevida consciente ou hesitaccedilatildeo e
duacutevida eacute estranha para εἰκασία no sentido de Platatildeo Contudo ele pode ter pretendido
sugerir que tal estado mental natildeo fosse em realidade melhor do que conjecturardquo (ADAM
1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)70 Tudo eacute puro aceitamento
Do ponto de vista meramente de ὁρατά o a ser visto o visiacutevel (LIDDELL
SCOTT 1940 Ὁρατός)71 o estaacutegio inicial se daacute nas sombras Entretanto o caminho de
apreensatildeo do conhecimento por Platatildeo tambeacutem eacute um percurso de questionamento Na
alegoria da caverna εἰκασία trata de apreender o mundo ao redor a partir somente do que
vemos dele Jaacute em πίστις abre-se matildeo de algumas certezas num contexto natildeo mais tatildeo
uniformizado pela penumbra A interpretaccedilatildeo cristatilde vai traduzi-la por fides temos pois
a feacute e seus misteacuterios enquanto desdobramento do mundo Seja por crenccedila ou por mera
suspeita amorfa dos conceitos a realidade natildeo se apresenta cheia de certezas como antes
No estaacutegio superior encontra-se διάνοια o vigorar das questotildees ἀδελφαῖς τέχναις
afins agrave teacutecnica Aqui a realidade natildeo eacute apenas as coisas os seres vivos e suas
representaccedilotildees mas o modo como essas manifestaccedilotildees ocorrem Em outras palavras os
procedimentos pelos quais a realidade estaacute subjugada fazem inclusive com que ela possa
69 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)nalo
gi2Fagt Acesso em 03 jun 2017 70 The translation lsquoconjecturersquo is misleading for conjecture implies conscious doubt or hesitation and
doubt is foreign to εἰκασία in Platos sense Plato may however have intended to suggest that such a state
of mind is in reality no better than conjecture Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A
section3D511Egt Acesso em 04 jun 2017 71 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(rato
2Fsgt Acesso em 04 jun 2017
80
ser manipulada e controlada por definiccedilotildees universais embora sem transcender das
finalidades imediatas
Cabe ressaltar que em εἰκασία e πίστις as manifestaccedilotildees satildeo tidas por
apresentaccedilotildees ou seja elas se mostram assim como satildeo e satildeo assim como se mostram
compreendidas por meio da experimentaccedilatildeo concreta com as coisas e sem a exigecircncia do
intermeacutedio conceitual por isso a compreensatildeo sensiacutevel da realidade Jaacute em διάνοια e νοῦς
haacute certa convicccedilatildeo de que as manifestaccedilotildees satildeo representaccedilotildees do plano universal e ideal
logo imperfeitas e passiacuteveis de questionamentos daiacute sua inteligibilidade e seu caraacuteter
superior para a filosofia platocircnica
Por fim νοῦς eacute o saber mais elevado e com mais questionamentos
Paradoxalmente a maior compreensatildeo de si e do que haacute ao redor eacute o estaacutegio de maior
duacutevida a ponto de Soacutecrates o mais saacutebio para a pitonisa e personagem principal dessa
filosofia chegar ao cuacutemulo de soacute saber uma coisa ndash que nada sabe Esse eacute o saber
fundamental que envolto em sombras os homens natildeo podem sequer imaginar ateacute
derradeiramente se verem retornando agrave caverna com a compreensatildeo de que a luz eacute soacute
mais um aspecto menos sombrio das trevas como se ser fosse soacute uma passagem para natildeo
ser
Entatildeo pus-me a considerar de mim para mim que eu sou mais saacutebio do que
esse homem pois que ao contraacuterio nenhum de noacutes dois sabe nada de belo e
de bom mas aquele homem acredita saber alguma cousa sem sabecirc-la
enquanto eu como natildeo sei nada tambeacutem estou certo de natildeo saber (PLATAtildeO
1949 paacuteg 17)
24 Filosofia e opiniatildeo
Seja ou natildeo seja a filosofia a resposta para nossos problemas ela certamente se
apresenta como uma das possibilidades para um ensino contraacuterio agrave proposta
tradicionalmente imposta Mas ateacute ela mesma tem sua histoacuteria e maneiras proacuteprias de ser
Seu modus operandi responde agrave medida que se distancia em caraacuteter voluntaacuterio de um
saber praacutetico simples sem as lisuras da Academia nem a pretensatildeo de semelhante esmero
racional Poreacutem haacute outras formas de cuidar do pensamento que natildeo pelo intelecto
81
A intenccedilatildeo natildeo eacute trocar seis por meia duacutezia desqualificando o empenho seacuterio de
sistematizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo mas a partir do momento em que se questiona o preacute-
estabelecido conveacutem ao menos sugerir uma alternativa E tanto o rompimento quanto o
outro caminho natildeo satildeo aleatoacuterios Se a tradiccedilatildeo natildeo consegue conceber bem que
determinadas camadas sociais estejam aptas ao pensamento eacute praticamente peremptoacuterio
rever essa forma de compreender a realidade por exemplo no caso do ensino de filosofia
a partir de uma perspectiva poeacutetica
Entatildeo eacute possiacutevel certo questionamento advindo de eg crianccedilas mas natildeo apenas
de pobres de miseraacuteveis de pessoas de baixa escolaridade de culturas tidas como
exoacuteticas etc Todavia jaacute sendo a filosofia excludente por toda sua histoacuteria ela proacutepria
convida a um repensar sua atividade a fim de que possamos contemplar o natildeo
arbitrariamente velado Natildeo por puro moralismo haja vista certa desconfianccedila salutar sim
pelos caminhos muito pisados em nossos tempos midiaacuteticos de controle de massa
Duas estradas divergiam num bosque em setembro
E lamentando natildeo poder seguir em ambas as vias
E sendo o uacutenico viajante durante muito tempo me lembro
olhei para uma tatildeo longe quanto eu conseguia
ateacute onde ela dobrava na descida e sumia
Entatildeo peguei a outra parecia boa e vasta
e fosse talvez a mais atraente
pois estava coberta de grama precisando ser gasta
embora aqueles que passaram na frente
tivessem gasto ambas quase igualmente
E ambas que aquela manhatilde igualmente fez
cobertas por folhas pegada alguma a manchar
Oh deixei a primeira para outra vez
Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar
duvidei se iria algum dia voltar
Devo estar contando isso com a alma cortada
Em algum lugar haacute uma distacircncia de tempo imensa
divergiam em um bosque duas estradas
e eu escolhi a menos viajada
e esta escolha fez toda a diferenccedila (FROST 1916 paacuteg 9 ndash traduccedilatildeo de Ceacutesar
Ramos)72
72 Two roads diverged in a yellow wood And sorry I could not travel both And be one traveler long I
stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth Then took the other
as just as fair And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear Though
as for that the passing there Had worn them really about the same And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black Oh I kept the first for another day Yet knowing how way leads on
to way I doubted if I should ever come back I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and
82
Nem decerto por acreditar que todos podem fazer tudo eacute que todos podem ser
filoacutesofos Natildeo natildeo podem assim como todos natildeo podem ser jogadores de futebol o que
natildeo se trata de uma problemaacutetica de meacuterito Naturalmente que o esforccedilo e as condiccedilotildees
favoraacuteveis do sistema vatildeo influenciar para se alcanccedilar tal e tal objetivo Contudo haacute de
se levar em conta tambeacutem a aptidatildeo caracteriacutestica pouco precisaacutevel supostamente inata
das pessoas para determinadas atividades Aleacutem disso tudo o simples fato de que para
cada escolha pressupotildee-se necessariamente a exclusatildeo de tantas outras jaacute eacute forte indiacutecio
de que nem todos chegam a fazer filosofia
Por outro lado natildeo eacute disso que se propotildee a falar neste trabalho A filosofia do
mesmo modo que muitos outros ofiacutecios pode (quiccedilaacute deve) ser um empenho de poucos
mas enquanto possibilidade fundamental de recolhimento dos questionamentos natildeo
conveacutem que ela (quiccedilaacute todos os outros ofiacutecios) seja reconhecida por um caraacuteter excludente
de muitos como se somente os ldquoescolhidosrdquo pudessem assim pensar O penhor de alguns
natildeo deve ser confundido com a segregaccedilatildeo dos demais
Claro que tal exclusatildeo natildeo se processa tatildeo agraves claras No mais das vezes ela vem
com a sutileza fria da navalha ao destituir de valor uma colocaccedilatildeo legiacutetima poreacutem oriunda
de uma fonte pouco estimada ou impressotildees e suposiccedilotildees sem um embasamento teoacuterico
canocircnico Ateacute puacuteblicos inteiros podem ser ignorados por natildeo gozarem de prestiacutegio
intelectual como no caso das crianccedilas que quando fazem um comentaacuterio ldquofilosoacuteficordquo
coloca-se aspas nele ou em sequecircncia faz-se uma interjeiccedilatildeo qualquer de espanto e
admiraccedilatildeo adorno comum sobre atitudes inesperadas
Um reconhecimento que resvala pelo preacute-conceito de se crer que desse mato natildeo
sairia coelho mas espantosamente aqui estaacute ele o leporiacutedeo Noacutes julgamos agrave revelia e
surpreendemo-nos quando o juiacutezo natildeo daacute conta do real Estes ldquoohrdquo e ldquoahrdquo natildeo possuem
a mesma atenccedilatildeo demandada aos comentadores oficiais mas sim alternam entre o bibelocirc
e o gracejo respondendo natildeo ao pensamento doado pelos sentidos mas pela alegoria
hierarquizante e excludente criada pelo intelecto
ages hence Two roads diverged in a wood and Imdash I took the one less traveled by And that has made
all the difference Traduccedilatildeo disponiacutevel em lthttpmunhoblogspotcombr201105robert-frost-poeta-
americano-in-roadhtmlgt Acesso em 10 jun 2017
83
Desde sua raiz etimoloacutegica a infacircncia parece evocar um estado de minoria ou
de incapacidade de dependecircncia ou de fraqueza de imperfeiccedilatildeo ou mesmo de
selvageria imagens todas as quais transferidas para nossos discursos
educacionais que em sua maioria compartilham a ideia de que a crianccedila natildeo eacute
nada mais do que um presente sem presenccedila [grifo no original] um estado
preparatoacuterio e provisoacuterio um tempo sem direito proacuteprio pois toda educaccedilatildeo eacute
uma instruccedilatildeo das crianccedilas natildeo para elas mesmas (pelo que satildeo) mas assim
pelo que seratildeo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 11 ndash traduccedilatildeo livre)73
Se ldquoa filosofia como ateacute aqui a entendi e vivi eacute a vida voluntaacuteria no meio do gelo
e nas altas montanhas ndash a procura de tudo o que eacute estranho e problemaacutetico na existecircnciardquo
(NIETZSCHE 2008 paacuteg 8) isso natildeo quer dizer colocar-se numa torre de marfim numa
transcendecircncia mundana em prol das questotildees Indica contudo um caminhar singular a
despeito da seguranccedila e do conforto coletivos sem a princiacutepio opor-se a eles Ademais o
comportamento voluntarioso (freiwillige) pressupotildee uma adesatildeo agraves questotildees ditas
filosoacuteficas a partir da liberdade pela vontade que eacute entendida aqui como a possibilidade
de escolha entre ser ou natildeo filoacutesofo Eacute certo que podemos exercer nossos desejos nisso
ou naquilo mas concernidos em nossas proacuteprias limitaccedilotildees caso contraacuterio retornariacuteamos
agrave esparrela do querer eacute poder Portanto quanto a isso faz-se uma ressalva
As questotildees natildeo satildeo posses Natildeo estatildeo agrave mercecirc de algum grupo para que possam
ser desenvolvidas em conceitos ldquoComo a palavra querer tambeacutem as palavras questatildeo
questionar e questionamento vecircm do latim quaerere Quaerere significa empenhar-se
na busca e na procura do que natildeo se tem por jaacute se ter e para se vir a terrdquo (LEAtildeO 1977
paacuteg 44) Elas natildeo servem para dar voz a minorias nem exaltar a maioria O que se faz
com as questotildees natildeo satildeo as questotildees satildeo seus encaminhamentos suas respostas suas
soluccedilotildees sua limitaccedilatildeo entre as demais questotildees Elas mesmas satildeo apenas possibilidades
de pensamento agraves quais a filosofia atenta e corresponde agrave sua maneira questionar
enquanto a harmonia e sintoma articuladores com aquilo que o pensamento tem a pensar
(HEIDEGGER 2003 paacuteg 135)
Nessa dimensatildeo natildeo tendo as questotildees dono tambeacutem natildeo teratildeo seus tratadores
seus cuidadores seus pensadores Melhor dizendo se cabe agrave filosofia a lida com as
73 Desde su misma raiacutez etimoloacutegica la infancia parece evocar un estado de minoriacutea o de incapacidad de
dependencia o de debilidad de imperfeccioacuten o incluso de salvajismo imaacutegenes todas ellas que se han
trasladado a nuestros discursos pedagoacutegicos los cuales en su mayoriacutea comparten la idea de que el nintildeo
no es maacutes que un presente sin presencia un estado preparatorio y provisional un tiempo sin derecho
propio pues toda educacioacuten es una instruccioacuten de los nintildeos no por ellos mismos (por lo que son) sino por
lo que seraacuten
84
questotildees elas natildeo se restringem exclusivamente ao apreendido pelo intelecto Natildeo sendo
posse do saber tradicional conveacutem averiguar o trespassar delas pelos sentidos pela
opiniatildeo pelo simples conviver com elas Desse modo a resposta pela filosofia natildeo se
apresenta jaacute dada em algum grande mestre mas tambeacutem exige o escrutiacutenio nas mais
variadas manifestaccedilotildees inclusive laacute onde normalmente eacute vedado o interesse conceitual
no uso corrente sem prestiacutegio sem muito raciociacutenio puro empirismo e achismo Encarar
a questatildeo eacute lidar com sua multiplicidade
O que eacute filosofia Veja-se por exemplo seu sentido querendo dizer ldquomodo de
pensarrdquo ldquoNada afeta sua filosofia de boecircmio inveteradordquo (FERREIRA 2004 Filosofia)
Neste contexto o termo se aproxima a ldquoprinciacutepiordquo fio condutor de determinada maneira
de agir pensar e ser mesmo num registro mais popular Daiacute vem a notoacuteria expressatildeo
ldquofilosofia de vida visatildeo ou enfoque filosoacutefico sobre a natureza o propoacutesito da existecircncia
ou o modo como se deve viverrdquo (HOUAISS 2009a Filosofia)
Parece claro que os casos supracitados se referem a uma resposta objetiva com
preceitos e meacutetodos de accedilatildeo como etiquetas sociais posiccedilotildees poliacuteticas e posturas eacuteticas
Por esse aspecto o ensino de filosofia pode ser justificado sem muita dificuldade pois
estariacuteamos no domiacutenio da transmissatildeo de valores ou quando muito num
pseudoquestionamento que oculta uma certeza
Eis como o uso corriqueiro enxerga a filosofia uma integridade dogmaacutetica
Naturalmente que quaisquer manejos de palavras estatildeo sujeitos a seriedades e a
leviandades Decerto natildeo eacute muito usado pelos filoacutesofos profissionais acostumados com
historiografias e reflexotildees abstratas entrementes estaacute na boca do povo instruiacutedo no
portuguecircs falado Uma filosofia de vida enquanto insistecircncia de uma crenccedila inclusive
remete agrave proacutepria histoacuteria da disciplina quando Soacutecrates resoluto aceita sua pena
Embora os homens natildeo o percebam eacute possiacutevel que todos os que se dedicam
verdadeiramente agrave Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem
mortos Sendo isso um fato seria absurdo natildeo fazendo outra coisa o filoacutesofo
toda a vida ao chegar esse momento insurgir-se contra o que ele mesmo pedira
com tal empenho e em poacutes do que sempre se afanara (PLATAtildeO 2017a)
Essa profissatildeo de feacute que Soacutecrates realiza particulariza o filoacutesofo como um ser para
a morte Ao mesmo tempo identifica-o por seu aspecto fundamentalmente gregaacuterio cuja
dedicaccedilatildeo profissional se estabelece mediante uma questatildeo comum a todos os homens o
85
finamento Portanto ainda que o termo filosofia em filosofia de vida natildeo seja o sentido
canocircnico ele reflete parte importante dessa loacutegica nem sempre clara mas profundamente
coerente de convivecircncia com as questotildees e seu pensamento
A filosofia que se distancia do uso exiacutemio do raciociacutenio mas se manteacutem atenta ao
questionar natildeo trai seu princiacutepio do contraacuterio habita-o novamente retificando e
ratificando seu aspecto mais genuiacuteno sua busca questionadora e fundadora Ela passa por
uma compreensatildeo legiacutetima e concreta de uma entrega agraves questotildees comparaacutevel por
exemplo a um padeiro ciente de sua dignidade e inclinado dia apoacutes dia a zelar pelo seu
patildeo natildeo importando quatildeo cedo precise acordar Para ele suas ideias sua teacutecnica e sua
realidade coordenam e consagram valor a suas accedilotildees que por sua vez se apresentam como
oferta a quem se dispor agrave padaria ainda que por ser a mais proacutexima
Quando no fundo da noite de inverno uma tormenta de neve brame
debatendo-se em torno do abrigo escurece e cobre tudo eacute a hora propiacutecia da
filosofia O questionamento tem entatildeo de deixar-se fazer simples e essencial
A elaboraccedilatildeo de cada pensamento natildeo pode ser senatildeo aacuterdua e severa O esforccedilo
de formar as palavras se identifica com a resistecircncia que os abetos oferecem
de peacute agrave tormenta
O trabalho da filosofia natildeo corre por fora no campo extra-vagante Conserva
uma relaccedilatildeo de intimidade com o trabalho dos camponeses (HEIDEGGER
1977a paacuteg 324)
25 Diaacutelogo e filosofia
No entanto das partes anteriores faz-se presente um dos maiores argumentos
contra uma resposta filosoacutefica de que a filosofia natildeo responde a coisa alguma Isso
porque demos exemplos como sendo descrita pelo sistema racional e loacutegico mas tambeacutem
a identificamos com o labor quieto e simples do camponecircs Qual a ponte entre um e outro
Haacute uma relaccedilatildeo ou trata-se apenas de diversidade de opiniotildees
Quanto a isso fala a voz da tradiccedilatildeo tradicional e seu aspecto transmissor e
controlador nem por isso menos honesta Esperar uma resposta definitiva pode ser
frustrante mas fugir agrave responsabilidade de propor um caminhar natildeo deve ser encarado
apenas como prudecircncia A falta da ousadia de pensamento e o receio constante de natildeo
tomar decisotildees eacute uma fronteira entre o cuidado e a cobardia De modo semelhante a Heitor
86
encarando seu destino funesto assim a resposta se ousa a responder fadada ao equiacutevoco
pela incapacidade de apreensatildeo totalizante do real
Haacute muito tempo decerto Zeus grande e seu filho frecheiro
determinaram que as coisas assim se passassem pois eles
sempre beneacutevolos soiacuteam salvar-me ora o Fado me alcanccedila
Que pelo menos obscuro natildeo venha a morrer inativo
hei de fazer algo digno que chegue ao porvir exaltado (HOMERO 2015 paacuteg
457)74
Diante da inexoraacutevel imprecisatildeo da resposta soacute nos resta a dignidade de responder
agrave questatildeo como pudermos Desse modo foram expostas na pretensatildeo de diaacutelogo diversas
acepccedilotildees do que seja filosofia ainda que algumas delas natildeo estivessem em sintonia com
este percurso de pensamento O cerne problemaacutetico estaacute em a partir do diverso que se
apresenta confluir tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo enquanto identidade e diferenccedila a fim de chegar a
uma resposta que corresponda agrave ldquodinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircnciardquo (LEAtildeO
2010 paacuteg 212) ou seja que decirc conta da anguacutestia da pergunta que eacute simultaneamente
tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo
Afinal soacute se pergunta porque natildeo se sabe algo ndash a criaccedilatildeo por vir ndash mas se natildeo
soubeacutessemos nada natildeo haveria como perguntar ndash o respaldo da tradiccedilatildeo De maneira
semelhante eacute orquestrado o jogo das respostas nunca eacute posto algo completamente novo
nem se reproduz algo exatamente igual ldquoTodavia antes mesmo de explorar a resposta
que aiacute eacute dada importa medir o caraacutecter especiacutefico da questatildeo Tornar-se-aacute entatildeo patente
que esta clivagem questatildeo-resposta eacute ela mesma provisoacuteria e que uma justa medida da
questatildeo encerra jaacute em si o essencial da respostardquo (ZARADER 1998 paacuteg 237) Sejam os
posicionamentos mais ou menos afins com seu modo de pensar almeja-se aqui ao diaacutelogo
entre as partes
Dialogar natildeo eacute aceitar tudo o que vem do outro nem soacute aceitar o que mais se
aproxima teoricamente de noacutes mas eacute lidar com a tensatildeo entre o estranho e o conhecido
a fim de propriamente responder Dar propriedade agrave resposta como o que adentra um
percurso singular em confronto com a tradiccedilatildeo sem ao mesmo tempo abrir matildeo dela
Eis o motivo de pensar a filosofia como resposta um caminho que compara logo traz agrave
identidade sem igualar Fazem parte de toda comparaccedilatildeo na verdade quaisquer dois
74 Livro XXII linhas 301-304
87
elementos que satildeo aproximados e colocados um agrave disposiccedilatildeo do outro identificam-se
aproximadamente colocados frente a frente satildeo tidos por semelhantes mesmo que ainda
diferentes
Esse detalhe demarca uma forma de guiar o pensamento e se distingue
radicalmente da definiccedilatildeo na qual a filosofia eacute uma resposta acabada soluccedilatildeo encontraacutevel
categoria reprodutiacutevel Tampouco devia se furtar a responder aos anseios das pessoas e
da sociedade como se fosse algo fora de sua alccedilada Ela natildeo estaacute agrave mercecirc da resposta
nem aqueacutem nem aleacutem Se a filosofia se propotildee a algo eacute a este diaacutelogo entre permanecircncia
e mudanccedila
Natildeo se pode estabelecer todo relacionamento numa posiccedilatildeo a natildeo ser
aceitando a multiplicidade de posiccedilotildees Na multiplicidade vocecirc se coloca
assume uma posiccedilatildeo Sempre haacute o outro o diferente tanto o outro do outro
quanto o outro de si mesmo em cada posiccedilatildeo O outro eacute a diferenccedila do proacuteprio
movimento de constituir uma diferenccedila uma posiccedilatildeo Toda posiccedilatildeo se manteacutem
num processo de diferenciaccedilatildeo e jaacute eacute em si mesmo um outro e traz consigo a
dinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 212)
Ao longo do tempo a filosofia vem dando respostas atraacutes de respostas num
movimento incessante embora com seus contratempos Nem por isso os posicionamentos
devem ser encarados hierarquicamente anulando o anterior em prol do vindouro A
filosofia natildeo evolui Muito menos o estudo dos textos claacutessicos precisa acontecer para
que sejam decorados transformando a tradiccedilatildeo numa coisa estanque e sem vida
literalmente fruto apenas de um passado morto feito por falecidos filoacutesofos A filosofia
natildeo eacute mero relato de conceitos e categorias
Uma das dificuldades em lidar com ela encarando-a por ciecircncia eacute a natildeo
progressatildeo dos diferentes posicionamentos Hegel eacute um Kant superado Aristoacuteteles um
Platatildeo melhorado Embora os questionamentos possam ser desdobrados o empenho de
cada um desses grandes autores assim como o geacutermen inquiridor dos incipientes
discentes tem caracteriacutesticas proacuteprias e propriedade filosoacutefica quando se atecircm agrave questatildeo
que eacute sempre geradora de novas questotildees Daiacute seu caraacuteter dialogal Natildeo eacute possiacutevel sem a
diferenccedila natildeo eacute possiacutevel sem a identidade e isso natildeo quer dizer igualdade
O pequeno pensador natildeo se equivaleria agrave tradiccedilatildeo Honestamente falando ele natildeo
tem a mesma importacircncia histoacuterica nem sequer deve ter a mesma densidade no
questionar Todavia na singularidade do seu questionamento haacute ali agrave espreita o natildeo
88
pensado A experiecircncia que o caminhar do caminho proporciona revela uma existecircncia
sensiacutevel compreensiacutevel agrave medida que se experiencia e eacute dificilmente transmissiacutevel pois
arduamente conceituaacutevel
Afinal ningueacutem nunca comeu fruta alguma Fruta natildeo tem gosto nem cor nem
forma Sabemos da fruta apenas conceitualmente do relato do que seja uma fruta seu
sabor seu cheiro Come-se entretanto lsquoestarsquo banana lsquoestarsquo maccedilatilde lsquoestarsquo manga e como
tal elas jamais poderatildeo ser comidas novamente Esta sim eacute saboreada e infelizmente (ou
natildeo) soacute por quem caacute come ldquonatildeo se pode entrar duas vezes no mesmo riordquo (HERAacuteCLITO
1991 paacuteg 83)75 Pode-se contudo convidar a realizar quem queira a experiecircncia ediacutevel
com outra banana Em diaacutelogo gustativo nota-se que bananas jaacute foram comidas mas
nunca lsquoestarsquo senatildeo aqui nem estaria e por isso sabe-se e natildeo se sabe seu sabor Ela eacute
uacutenica no bananal propriamente proacutexima e diferente ldquono mesmo rio entramos e natildeo
entramos somos e natildeo somosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)76
O diaacutelogo tem que partir do proacuteprio do contraacuterio ele estaria fadado ao vozerio
reprodutivo sem qualquer compromisso consigo e com o outro (que eacute um consigo) Ele
natildeo tem que dizer tudo nem poderia natildeo dizer nada natildeo diz necessariamente o que deve
ser dito (deve ser para quem) nem se omite a dizer o requisitado Ambas as atitudes satildeo
partes da vontade dos interlocutores O diaacutelogo do proacuteprio apenas diz ou seja sua accedilatildeo eacute
medida pela sua possibilidade de accedilatildeo nada aleacutem nada aqueacutem
O sucesso dessa realizaccedilatildeo dessa perfeiccedilatildeo por sua vez soacute eacute possiacutevel com a
instauraccedilatildeo de um fator que assegure a sua consecuccedilatildeo a sua realizaccedilatildeo Se
por um lado esse fator pode ser entendido a partir da realizaccedilatildeo da citaccedilatildeo
acima [navegar eacute preciso viver natildeo eacute preciso]77 como a manutenccedilatildeo do
mesmo se impotildee que pensemos o que vem a ser esse mesmo O mesmo natildeo eacute
a mera realizaccedilatildeo e sim a condiccedilatildeo de possibilidade para que essa realizaccedilatildeo
se realize (JARDIM 2005 paacuteg 45)
Este proacuteprio dita a correspondecircncia com tradiccedilatildeo e ensino As condiccedilotildees de sua
manifestaccedilatildeo as quais perpassam pelas demandas situacionais pela histoacuteria pelos gostos
pessoais etc fazem parte do grande pacote que eacute a resposta E haacute ainda a vigiar o
75 ldquoποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82) 76 ldquoποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμενrdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 70) 77 Πλεῖν ἀνάγκη ζῆν οὐκ ἀνάγκη
89
inominaacutevel onde a matildeo humana nunca alcanccedila Como a resposta lida com esse vazio
Como dizer e agir perante o que natildeo se tem como responder O pensador diz que ldquonatildeo eacute
para falar [λέγειν] e agir dormindordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 79)78 e em um outro
fragmento ele se refere agrave morte como sendo ldquotudo que vemos acordados sono o que
vemos adormecidosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 63)79 Talvez isso indique que estamos
fadados ao funesto ao que natildeo diz respeito agrave nossa vontade se queremos de fato viver
Por outro lado temos a vivecircncia adormecida Dormitando dirigimo-nos agrave vida
segura ou agrave impressatildeo de seguranccedila e dormimos a fim de que nada aconteccedila como se
debaixo das cobertas o monstro natildeo viesse nos pegar Nesse sentido o falar e o agir do
sono ignorando os ensinamentos do pensador satildeo o compromisso com a penumbra do
estado de sonolecircncia com o que chega sem nos afetar sem fazermos a experiecircncia
apenas um sonho nebuloso e fugaz
Trabalhando pois sobre o oacutebvio (mas nem por isso desprezaacutevel) natildeo eacute possiacutevel
dialogar dormindo e λέγειν infinitivo do verbo de mesma raiz de λόγος natildeo nos deixa
escapar desse sentido dialoacutegico Na resposta da filosofia para a tradiccedilatildeo se funda ao
menos a atenccedilatildeo do desperto Um responder que dialoga com o proacuteprio de cada um e
com aquilo comum a todos noacutes isto eacute a morte
Como se daacute o diaacutelogo na morte Esse eacute o tipo de colocaccedilatildeo que faz do filoacutesofo
algueacutem de pouco acesso Para uma pergunta absurda justifica-se com o espanto afinal
ningueacutem fala nada depois de morto como poderia entatildeo haver diaacutelogo Em se tratando
de Heraacuteclito talvez seja apenas uma idiossincrasia de pensador seu estilo de lidar com
as questotildees conforme se compreendia em De finibus bonorum et malorum Livro II
Capiacutetulo V paraacutegrafo 15 ldquoQuod duobus modis sine reprensione fit si aut de industria
facias ut Heraclitus lsquocognomento qui σκοτεινός perhibeturrsquo quia lsquode natura nimis
obscure memoravitrsquordquo (CIacuteCERO 1914 paacuteg 94)80 a saber ldquoO qual pode ser feito em dois
casos sem repreensatildeo se se procede intencionalmente como em Heraacuteclito que
78 ldquoκαὶ ὃτι οὐ δεῖ lsquoὥσπερ καθεύδοντας ποιεῖν καὶ λέγεινrsquordquo (HERAacuteCLITO apud ANTONINUS 1916 paacuteg
92) Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreaminernetdli20151834032015183403Marcus-Aurelius-
Antoninuspagen121mode2upgt Acesso em 06 ago 2017 79 ldquoθάνατός ἐστιν ὁκόσα ἐγερθέντες ὁρέομεν ὁκόσα δὲ εὕδοντες ὕπνοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 62) 80 Conforme nota da ediccedilatildeo de 1914 desta obra a citaccedilatildeo eacute provavelmente de Luciacutelio
90
lsquocognominado Obscuro haviarsquo pois lsquoniacutemio obscura memorava sua filosofiarsquordquo (CIacuteCERO
1960 paacuteg 87 ndash traduccedilatildeo livre)81
Ainda que a questatildeo da morte seja tratada por diversos setores de nossa sociedade
desde o acadecircmico e cientiacutefico ateacute o religioso se estabelece no mais das vezes um
diaacutelogo com mas fundamentalmente sobre a morte afinal ldquono decorrer dos uacuteltimos
seacuteculos pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciecircncia coletiva
sua onipresenccedila e sua forccedila de evocaccedilatildeordquo (BENJAMIN 1987 paacuteg 207) Heraacuteclito (1991
paacuteg 63) em seu fragmento 21 revestindo-se da alcunha da obscuridade propotildee um
diaacutelogo na morte ou a partir da morte Eacute estabelecido um desatino como se fosse possiacutevel
falar com a morte ou atraveacutes dela sem perecer Por outro lado eacute sugerido que realmente
se vive para e na morte Como isso eacute possiacutevel
Falar dormindo natildeo seria pois mais factiacutevel A psicanaacutelise por exemplo efetua
toda uma estrutura de conhecimento sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos Muitas religiotildees
tomam o sono por transe estado de consciecircncia alterada e ponte para as verdades ocultas
agrave vigiacutelia Uma vida guiada pelo sono se adequaria melhor agrave compreensatildeo geral do que
uma pela morte Imaginar um diaacutelogo com o sono eacute bem mais criacutevel do que o paradoxo
posto pelo pensador preacute-socraacutetico soacute reforccedilando o paradigma obscuro tanto dele quanto
da filosofia em geral
Era bem verdade que numerosos versos dos livros sagrados sobretudo dos
upanixades do Sama-Veda referiam-se a esse quecirc derradeiro mais iacutentimo Que
versos maravilhosos lsquoTua alma eacute o mundo inteirorsquo ndash rezava um deles e estava
escrito que o homem durante o sono o sono profundo entrava no proacuteprio
acircmago e habitava o Aacutetman82 Sabedoria milagrosa residia nesses poemas []
Mas onde se achariam os bracircmanes onde os sacerdotes os saacutebios ou os ascetas
que lograssem natildeo somente conhecer senatildeo tambeacutem viver essa profunda
sabedoria Onde estaria o homem perito que fosse capaz de realizar aquele
passe de maacutegica que transportasse a familiaridade com o Aacutetman desde o sono
para o estado de vigiacutelia para a vida de todos os momentos e a demonstrasse
por atos e palavras (HESSE 2003 paacuteg 12)
Entre os diferentes modos da fala o que estaacute em jogo aqui eacute como se portar diante
de λέγειν Apresenta-se enquanto colocaccedilatildeo primordial a ausculta da unidade de λόγου
81 ldquoDas kann in zwei Faumlllen geschehen ohne Anstoszlig zu erregen wenn man entweder absichtlich so
verfaumlhrt wie Heraklit der den Beinamen bdquoder Dunkleldquo erhielt weil er uumlber die Gesetzmaumlssigkeit der Natur
gar zu dunkel berichteterdquo 82 Do sacircnscrito atma essecircncia sopro alma Na filosofia hindu significa o proacuteprio ou a alma Sua origem
remete ao proto-indoeuropeu etmen sopro conforme The Online Etymology Dictionary Disponiacutevel em
lthttpwwwetymonlinecomindexphpterm=atmangt Acesso em 02 ago 2017
91
conforme Hipoacutelito em Refutaccedilatildeo de todas as heresias IX 9 1 ao citar Heraacuteclito (apud
KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 193) ldquoDando ouvidos natildeo a mim mas ao
Logos eacute avisado concordar em que todas as coisas satildeo umardquo Ainda que se estiveacutessemos
mortos ou dormindo tudo natildeo passaria de uma manifestaccedilatildeo do λόγος daiacute o pensador
natildeo estar visando a princiacutepio sua clareza imediata mas a concordacircncia nesse domiacutenio
ontoloacutegico no qual tudo eacute um ldquoO mesmo eacute vivo e morto vivendo-morrendo a vigiacutelia e o
sono tanto novo como velho pois estes se alterando satildeo aqueles e aqueles se modificando
satildeo estesrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 83)83
Nesse sentido tanto o que vemos acordados quanto o que vemos adormecidos
ldquodariardquo no mesmo tudo seria um ndash apenas natildeo damos conta disso Natildeo prestamos atenccedilatildeo
agrave unidade e nos debatemos entre este ou aquele caminho entre ser algo ou parecer ser
algo entre o inteligiacutevel ou o sensiacutevel entre morrer ou dormir Segue um trecho do
soliloacutequio do personagem Hamlet Ato II Cena I insigne caso do dilema de morrer e
dormir
Ser ou natildeo ser Eis a questatildeo Que eacute mais
nobre para a alma suportar os dardos
e arremessos do fado sempre adverso
ou armar-se contra um mar de desventuras
e dar-lhes fim tentando resistir-lhes
Morrer dormir mais nada Imaginar
que um sono potildee remate aos sofrimentos
do coraccedilatildeo e aos golpes infinitos
que constituem a natural heranccedila
da carne eacute soluccedilatildeo para almejar-se
Morrer dormir dormir Talvez sonhar (SHAKESPEARE 2011 paacuteg 70)
Natildeo obstante o filoacutesofo se esmera por um sentido e desaconselha o outro o limite
posto eacute fundamental Diz de sua filosofia apresentando como mais conveniente para o
entendimento dela seguir pela morte do que pelo sono Limitando respondendo aderindo
a uma posiccedilatildeo esse pensamento define sem encerrar ou seja sem fechar por resolvida a
questatildeo do uno pois entre um ou outro haacute um e outro Morrer e dormir estatildeo em tensatildeo
perpeacutetua mesmo na adesatildeo de uma por outra ldquoO homem toca a luz na noite quando com
83 ldquoταὐτὸ ζῶν καὶ τεθνηκὸς καὶ ἐγρηγορὸς καὶ καθεῦδον καὶ νέον καὶ γηραιόνmiddot τάδε γὰρ μεταπεσόντα ἐκεῖνά
ἐστι κἀκεῖνα πάλιν μεταπεσόντα ταῦταrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82)
92
visatildeo extinta estaacute morto para si mas vivendo toca o morto quando com visatildeo extinta
dorme na vigiacutelia toca o adormecidordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 65)84
Heraacuteclito em sua filosofia abraccedilou o paradoxo da linguagem no qual ele concebe
como possiacutevel a morte em sintonia com a vida e de modo semelhante o sono com a
vigiacutelia ldquoDe todas as coisas a guerra eacute pai de todas as coisas eacute senhor a uns mostrou
desses a outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 73)85 Πόλεμος a guerra a polecircmica sentidos todos que abarcam a tensatildeo inerente
e paradoxal que natildeo resume tudo nem cessa tudo pelo contraacuterio manteacutem acesa a disputa
em tudo Natildeo eacute uma questatildeo de escolha permanecer a dormir ou despertar para a vida
que tambeacutem natildeo aparece com negaccedilatildeo da morte Trata-se concomitantemente de viver
morrendo e de adentrar demoradamente a morte enquanto se vive A morte natildeo eacute uma
maldiccedilatildeo como se pretende pintar mas traccedilo distintivo dos mortais
Morte aqui eacute plenitude de realizaccedilatildeo do homem sua grande saiacuteda de si ndash ex-
istecircncia assim como uma saiacuteda em si dentro do proacuteprio que o define A busca natildeo eacute
incansaacutevel ao contraacuterio ela se plenifica quando cansamos pois eacute nosso destino tanto
correr atraacutes quanto deixar ir A humanidade vive partindo de laacute para caacute a decidir e a
inventar de mal a pior e desta para melhor tal atitude leva-a a criar e a ansiar pela criaccedilatildeo
mas como ela natildeo bastaraacute leva-o tambeacutem a se insatisfazer pelo criado e em sequecircncia
a produzir mais Daiacute a exaustatildeo buscamos por algo que nunca se basta Uma hora cansa
Uma hora para Partir em uacuteltima instacircncia eacute morrer
Heraacuteclito relega morte e sono agrave experiecircncia do ver Em grego o substantivo nesse
caso diz objetivamente do aspecto ou aparecircncia de uma coisa ou pessoa seus contornos
da apariccedilatildeo de algo e subjetivamente do ato de ver dignidade posiccedilatildeo (LIDDELL
SCOTT 1940 Ὄψις) Esse modo de encarar a visatildeo natildeo foca exclusivamente no que o
homem vecirc ou pode ser visto por ele mas chama atenccedilatildeo ao que se dispotildee agrave vista
manifesta-se aos olhos dos mortais e dos imortais Faz-se presenccedila mas nem por isso
torna-se presente a todos
Com a extinccedilatildeo da visatildeo morte e sono se aproximam como se ao cerrar os olhos
das muacuteltiplas atenccedilotildees fosse mais propiacutecio a ausculta do λόγος Depois de um dia
84 ldquoἄνθρωπος ἐν εὐφρόνῃ φάος ἅπτεται ἑωυτῷ ἀποσβεσθεὶς ὄψεις ζῶν δὲ ἅπτεται τεθνεῶτος εὕδων
ἐγρηγορὼς ἅπτεται εὕδοντοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 64) 85 ldquoπόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς
μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρουςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 72)
93
exaustivo o sono ateacute que seria muito bem-vindo Em contrapartida pela experienciaccedilatildeo
do visiacutevel o homem heracliacutetico precisa decidir Satildeo as escolhas impostas pelo proacuteprio
viver e para isso natildeo deve estar dormindo mas ir ao encontro do λόγος na morte esse
embate vivo e contiacutenuo Deve-se como quem tem uma obrigaccedilatildeo natildeo com a moral
vigente mas com o que impele agrave plenitude de sua constituiccedilatildeo Οὐ δεῖ natildeo eacute para natildeo se
deve conforme fragmento 73 falar e agir a dormir Οὐ eacute adveacuterbio de negaccedilatildeo e δεῖ
(LIDDELL SCOTT 1940)86 verbo que joga com os sentidos de precisar necessitar
querer sobremaneira etc Nossa obrigaccedilatildeo eacute com a escuta do Um natildeo de um pensador de
uma sumidade ou de um conjunto delas no tempo embora natildeo seja possiacutevel se
desvencilhar totalmente disso
Morte e vida morte e sono satildeo o conflito vigorando ldquoo contraacuterio em tensatildeo eacute
convergente da divergecircncia dos contraacuterios a mais bela harmoniardquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 61)87 Claro que no livre caminho das escolhas qualquer posiccedilatildeo passa por
imposiccedilatildeo e a fala de um cala a voz do outro Tomar uma escolha dentro da loacutegica do
certo e do errado visa a cessaccedilatildeo do combate Trata-se caacute da harmonia natildeo da anulaccedilatildeo
da diferenccedila Por mais responsaacuteveis que desejemos ser com os homens apenas podemos
convidaacute-los ensinar propondo encaminhamentos caso contraacuterio seria impor nossa
vontade dizer como se faz prescrever e doutrinar
O perigo de qualquer ajuda estaacute em acreditar que um sujeito deteacutem a resposta
definitiva e simultaneamente que outrem eacute incapaz de alcanccedilaacute-la Quando estender a
matildeo Mesmo se houvesse um empenho para tornar o que eacute pequeno e simples aos nossos
olhos em grandioso natildeo eacute possiacutevel ignorar a singularidade da pequenez pois cada
responder tem seu quinhatildeo de equiacutevoco e para cada soluccedilatildeo uma pretensatildeo de verdade
Perante os conflitos a oposiccedilatildeo ou a treacutegua busca a cessaccedilatildeo do embate num campo de
batalha um quer derrotar o outro ateacute que natildeo haja batalha ou entatildeo fazem-se as pazes
volta-se ao lar pois a batalha findou Haacute a situaccedilatildeo conflitante e sua resoluccedilatildeo haacute a causa
e a consequecircncia mas ldquonatildeo compreendem como concorda o que de si difere harmonia
de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)88 isto
86 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei3
Dgt Acesso em 26 set 2017 87 ldquoτὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίηνrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 60) 88 ldquoοὐ ξυνιᾶσιν ὅκως διαφερόμενον ἑωυτῷ συμφέρεταιmiddot παλίντονος ἁρμονίη ὅκωσπερ τόξου καὶ λύρηςrdquo
(HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 70)
94
eacute natildeo se opor natildeo se igualar mas manter a tensatildeo Aqui tomar uma decisatildeo dever fazer
isso ou aquilo eacute soacute mais um modo de caminhar no caminho
Apenas por ser dual que pode haver a presunccedilatildeo da unidade do real Embora o um
seja o princiacutepio gerador que conflagra a aproximaccedilatildeo das distacircncias conforme fragmento
50 isso soacute eacute possiacutevel porque aparentemente nem tudo eacute proacuteximo Do um como princiacutepio
ao dois como unidade natildeo eacute soacute um belo tiacutetulo mas faz referecircncia direta agrave discussatildeo
ontoloacutegica em torno do λόγος heracliacutetico Por haver tensatildeo haacute a possibilidade de
complemento mantendo assim uma oposiccedilatildeo que de fato se opotildee ou seja natildeo anseia
pelo teacutermino de sua posiccedilatildeo oposta Nessa realidade ambivalente a decisatildeo proferida
sussurra a incapacidade de perda da singularidade dos contraacuterios no um Por isso seja
qual for o caminho morrer ou dormir este natildeo se soma com o aquele na unidade aquele
natildeo se sintetiza com este morrer eacute dormir e natildeo eacute dormir na unidade do ciacuterculo
Simultaneamente dizer que ldquotudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71) eacute o modo mais
simples no qual pulsa o vigor originaacuterio do pensamento de dizer que tudo natildeo eacute um
[] uma paisagem que se apresenta sempre atraveacutes de dois binocircmios um o
mais secreto e escondido que faz brotar dentro de si mesmo um outro que se
revela que se faz visiacutevel Eacute como se esses pensadores [Heraacuteclito e Parmecircnides]
dissessem que toda coisa tudo aquilo que eacute natildeo estaacute nunca sozinha no sentido
de algo encerrado em si mesmo mas sempre o eacute junto a uma outra coisa em
sintonia com a alteridade com a qual a um soacute tempo se relaciona e se opotildee
constituindo com ela uma unidade (MICHELAZZO 1999 paacuteg 85)
Tudo eacute tatildeo singular quanto dual e plural e por isso ἓν πάντα εἶναι eacute paradoxal
necessariamente Nem poderia ser diferente afinal supondo que tudo fosse um apenas
com o rigor matemaacutetico de 1 ne 2 e o universo cessasse de possibilidades e de tudo restasse
somente um lsquouacutenica cadeirarsquo Ou lsquouacutenica canetarsquo ateacute mesmo lsquouacutenico homemrsquo Ningueacutem
haveria de sentar-se naquela ou nenhum poema seria escrito com esta Qualquer
possibilidade de vida seria sem sentido Da mesma forma se tudo natildeo fosse um se natildeo
houvesse essa relaccedilatildeo entre minus entre as coisas entre as pessoas entre os instantes do tempo
minus qualquer transitoriedade cessaria natildeo haveria enigmas nem caminhos para a cadeira
ser sentada a caneta virar poema e o homem morrer
Morte natildeo eacute e eacute vida vigiacutelia natildeo eacute e eacute sono assim como o uno eacute e natildeo eacute uno O
que eacute o uno No momento em que nos atemos ao momento o mesmo natildeo eacute mais o mesmo
e outro momento eacute apenas para jaacute natildeo ser outro momento Por que natildeo medir a unidade
95
se ao fim ela permaneceraacute unidade Como medir o que natildeo pode ser medido mdash
Medindo por mais impreciso que possa ser Se se faraacute crenccedila na verdade dessa mediccedilatildeo
satildeo outros quinhentos
96
3 Pensando a Linguagem
O homem fala O λόγος tambeacutem fala Tudo fala Em meio ao vozerio dos seres
nem sempre eacute possiacutevel ouvir a proacutepria voz Mesmo sem sua audiccedilatildeo o carro anda o barco
zarpa e a vida segue surda Sem o cuidado promovido pelo ouvido o diaacutelogo dos seres
cessa e batem-se cabeccedilas na multiplicidade amorfa que natildeo se sabe unidade
Natildeo agrave toa almejou-se sair da caverna como uma compreensatildeo de resgate de uma
ausculta no caso das ideias em meio agrave rede de sombras A filosofia ao longo de sua
histoacuteria tem se preocupado em diversos momentos com o que constitui e daacute sentido aos
seres Pergunta-se pela essecircncia a tradiccedilatildeo responde com a aacutegua em Tales com o fogo
em Heraacuteclito mas tambeacutem com εἶδος com Deus com ratio etc
De tudo que a filosofia fez ou faz ainda hoje laacute estaacute ora encoberta ora mais direta
a pergunta pelo que eacute Na introduccedilatildeo de ldquoWas ist Metaphysikrdquo de 1949 Heidegger
(1955 paacuteg 35) vai nos colocar diante da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoDas Seiende das in der
Weise der Existenz ist ist der Mensch Der Mensch allein existiertrdquo Em versatildeo brasileira
de Os pensadores Ernildo Stein traduziu a sentenccedila como ldquoo ente que eacute ao modo da
existecircncia eacute o homem Somente o homem existerdquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 59) Aqui
nos dispomos a ela como uma duacutevida eacute possiacutevel que somente o homem exista Quase
sem dificuldades pode-se protestar pelo absurdo ensejado na asserccedilatildeo heideggeriana
Afinal a seu lado haacute um bicho este ser estaacute no mundo tambeacutem Ele respira come
e interage com os demais seres Ele natildeo existe Para negar que natildeo soacute o homem existe
precisariacuteamos perguntar o que eacute existecircncia e em seguida de que modo o homem eacute e os
demais seres natildeo satildeo Naturalmente soacute o homem existir natildeo nega que o homem eacute nem
que os demais seres satildeo O que estamos tentando fazer eacute responder agrave escuta do ser do
homem na medida em que o ser do homem eacute como o ser do homem pode ser ndash e somente
ele pode ser
Natildeo se pressupotildee que soacute o homem possa ser Tudo eacute Entretanto a pergunta pelo
ser ganha contornos diferentes se atentarmos ao modo como se eacute ou seja como tornar-se
a si mesmo como apropriar-se do que eacute proacuteprio No livre caminho das escolhas qualquer
posiccedilatildeo poderia passar por imposiccedilatildeo e calar a voz do outro por isso a importacircncia de se
atentar aos modos de ser
97
Opta-se por isso ou aquilo daacute-se respostas a esmo sem o devido cuidado Tais
consideraccedilotildees a respeito das escolhas passa pela vontade (sou algo porque quero) e em
sequecircncia pela exclusatildeo (vocecirc natildeo eacute algo porque eu natildeo quero) O homem fala sob
pressatildeo Ele precisa responder agraves exigecircncias do cotidiano e prover de soluccedilotildees a lousa
Por esse vieacutes suas escolhas pressionadas acabam por gerar opressatildeo tanto de si quanto
dos demais Quem estaacute oprimido necessita exprimir-se e ao ser natildeo seria diferente
O ser precisaria ser exprimido precisaria se exteriorizar isto eacute existir Por sua
vez o ser seria uma interioridade opressora da existecircncia Nesse sentido ser e existir
fariam praticamente oposiccedilatildeo De um lado o ser exigindo sua expressatildeo a ponto de forccedilar
uma existecircncia e do outro o natildeo ser cuja inexistecircncia estaria agrave mercecirc do que eacute
Da oposiccedilatildeo busca-se a cessaccedilatildeo dos conflitos numa sociedade que esqueceu o
paradoxo de ser e natildeo ser Haacute a situaccedilatildeo conflitante e o depois haacute a causa e o depois Daiacute
encarar a pergunta pela essecircncia por algo de resoluto ou a fala do homem sem a tensatildeo
dos contraacuterios externando sua voz agraves demais falas Natildeo A pergunta pela fala natildeo cala
natildeo precisa calar
Tendo em vista o dito soacute o homem eacute ao modo da existecircncia natildeo conclui que os
demais seres natildeo satildeo nem que natildeo existem somente que natildeo existem como o homem
existe Em outras palavras os demais seres natildeo ldquoexistemrdquo porque o homem existe E de
fato os demais seres natildeo existem na sentenccedila heideggeriana mas ainda assim se
atentarmos para o natildeo dito no dito devemos dizer natildeo ao fato de o homem existir na
causalidade referencial dos demais seres natildeo existirem
Assim a existecircncia natildeo nega algo aos outros seres mas afirma uma singularidade
no homem Nesse caso a afirmaccedilatildeo eacute escuta agrave fala do ser Agrave medida da fala do λόγος o
homem escuta Ser e λόγος natildeo se confundem em significado pelo contraacuterio se
complementam em sentidos no paradoxo da linguagem um servindo de morada ao outro
(HEIDEGGER 1947 paacuteg 5) Agrave medida dessa escuta o homem decide e responde ldquono
dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala
perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 12)
O passarinho eacute o homem escuta o canto do passarinho A aacutervore eacute o homem vecirc
se ela caiu ou natildeo se fez barulho ou natildeo ou seja a escuta proacutepria agrave fala do ser nomeia agrave
medida que pode nomear na correspondecircncia das limitaccedilotildees da escuta Cantar e cair satildeo
somente disposiccedilotildees da fala do homem para compreender o ser do paacutessaro e da aacutervore
98
Retoacuterica 1
Cantam os paacutessaros cantam
Sem saber o que cantam
Toda sua compreensatildeo eacute sua garganta (PAZ 1989 p 19 ndash traduccedilatildeo livre)89
Chamar de existecircncia o modo proacuteprio de o homem escutar a fala do ser natildeo nega
que os demais seres tenham um modo proacuteprio de escuta e fala nem esgota o ser do homem
na existecircncia O entendimento da fala humana natildeo se consuma no grito ela interpreta diz
o oacutebvio repete a diferenccedila e cala Jaacute o paacutessaro a planta e as pedras satildeo exclusivamente
Exclusivo natildeo porque natildeo possam corresponder ao ser mas porque o homem que
corresponde ao ser do homem natildeo pode deixar de ouvir-se Em outras palavras a
existecircncia eacute a correspondecircncia agrave fala do ser agrave medida do homem Nesse sentido tudo que
eacute para o homem existe tambeacutem para o homem quer dizer soacute pode ser interpretado
compreendido assimilado dissecado estudado e experienciado agrave medida humana e agrave
escuta da fala do ser ao homem Daiacute a margem sempre errada no encontro das existecircncias
Equivocadas estatildeo sempre a se ouvir Existir natildeo eacute ser Existir eacute uma possibilidade Ser eacute
o possiacutevel
De maneira semelhante quando a filosofia se pergunta por como ser filosofia ela
natildeo anula suas variadas respostas assim como a de outras faculdades do pensamento
sobre ela mas diz do modo proacuteprio de dizer atenta ao que eacute ldquopensar desde a linguagem
significa alcanccedilar de tal modo a fala da linguagem que essa fala aconteccedila como o que
concede e garante uma morada para a essecircncia para o modo de ser dos mortaisrdquo
(HEIDEGGER 2003 paacuteg 10) A fala do homem eacute uma concessatildeo da fala do λόγος
Quanto mais atento formos agrave escuta da fala do λόγος mais habitaremos nela
O λόγος estaacute presente nas falas mas natildeo se consome nelas se encontra nas
decisotildees nossas de cada dia mas natildeo se esgota ali O esgotamento faz parte pois a escuta
atenta demanda certo tardamento demora na morada da linguagem tardanccedila que nem
sempre dispomos Normalmente cremos nas falas imediatas porque precisamos de
respostas imediatas por exemplo o dinheiro para a mensalidade do plano de sauacutede Tanta
correria que natildeo haacute tempo nem para perceber a questatildeo que permanece inconclusa e
89 Retoacuterica 1 Cantan los paacutejaros cantan sin saber lo que cantan todo su entendimiento es su garganta
99
doadora de sentidos por exemplo o que eacute cuidar por que o cuidado se desdobra na
instituiccedilatildeo meacutedica e por aiacute vai
A esse papel delongado na fala dos homens em ressonacircncia agrave do λόγος prestam-
se personagens especiacuteficas ldquoA linguagem eacute a casa do ser Nessa habitaccedilatildeo mora o
homem Poetas e pensadores satildeo seus vigiasrdquo (HEIDEGGER 1947 paacuteg 5 ndash traduccedilatildeo
livre)90 Significa dizer que haacute uma disposiccedilatildeo de tempo proacutepria que se distancia da hora
funcional para parar e para criar uma temporalidade memoraacutevel para movimentar
sentidos de uma coisa qualquer um cuidado com as coisas para operar a partir delas
interpretando experienciando tornando-as de fato obra
Uma unidade que natildeo eacute lsquocoisarsquo mas lsquoobrarsquo ndash quer dizer antes de tudo combate
Porque o mundo aspira sempre a dominar a terra a terra aspira sempre a reter
o mundo Deixar o mundo ser mundo e a terra ser terra eacute portanto mantecirc-los
no seu afrontamento vivo afrontamento que eacute o uacutenico a permitir-lhes ser cada
um para si e ser um para o outro Instigadora do combate do mundo e da terra
a obra eacute o espaccedilo de realizaccedilatildeo da unidade (ZARADER 1998 paacuteg 252)
Nesse sentido pode parecer ateacute que poetas e pensadores podem se ausentar por
completo da ordem das coisas e das exigecircncias mundanas Natildeo natildeo podem como
tambeacutem natildeo pode o motorista fugir agrave conduccedilatildeo do veiacuteculo e a sentinela ao posto sem
colocar em risco sua obra Portanto tambeacutem os poetas e pensadores natildeo podem se
ausentar do cuidado ao λόγος Natildeo por escolherem ser poetas e pensadores e por isso
precisarem cuidar do λόγος mas sim porque a escuta do λόγος vige neles que haacute poesia e
pensamento Por a questatildeo urgir primordialmente que a possibilidade de responder
acontece
A correspondecircncia agrave fala do λόγος eacute proacutepria de cada um assim como sua ausculta
Defronte de semelhantes contratempos as pessoas reagem diferentemente conforme
Metafiacutesica Livro IV Capiacutetulo 2 Seccedilatildeo 1003a Linha 33 ldquoτὸ δὲ ὂν λέγεται μὲν πολλαχῶςrdquo
(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 130) a saber ldquoo ser se diz em muacuteltiplos significadosrdquo
(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 131) Se o dito eacute pois diverso tambeacutem seraacute nossa
interpretaccedilatildeo Eacute o caso da lesma que pode ser apreendida pelo livro de biologia ou
enojada pela dissecaccedilatildeo da crianccedila curiosa E pode ser cantada de verso em prosa segue
90 Die Sprache ist das Haus des Seins In ihrer Behausung wohnt der Mensch Die Denkenden und
Dichtenden sind die Waumlchter dieser Behausung
100
de vento em popa os desdobramentos do λόγος do uno divisiacutevel cujas partes se mostram
distintamente a noacutes
De cajado
rutilante
eremita
do profundo
vai a lesma
cada instante
recriando
nosso mundo (LEGRENDE 2011 paacuteg 57)
No modo moderno de lidar com o embate do uno surge a decisatildeo da vontade
Decide-se pela vida decide-se pelo sono e por vezes pela morte Esquecida a dualidade
opta-se por um ou por outro Nada fora do comum jaacute que nem sempre estamos cientes agrave
ausculta do λόγος Conscientes ou natildeo haacute o uno e perpetramos sua rede de manifestaccedilotildees
sem o saber sem passar pela nossa vontade E mesmo quando cientes natildeo basta querer
para poder Natildeo eacute apenas por gostarmos de dirigir que podemos pegar do carro e sair por
aiacute tem toda uma teacutecnica e empenho envolvidos no processo Natildeo eacute porque estudamos
arduamente as lesmas e sabemos as respostas para todas as nossas perguntas que estamos
perante agrave duacutevida genuiacutena de pensamento vai a lesma de cajado rutilante eremita do
profundo cada instante ela recria ou natildeo nosso mundo como diria Legrende (2011 57)
Todos colaboramos tendo em vista um fim comum uns consciente e
deliberadamente outros sem o saber como Heraacuteclito [fragmento 75] (penso
eu) diz daqueles que dormem que satildeo obreiros e colaboradores das coisas que
se fazem no mundo Mas os homens cooperam de diferentes maneiras mesmo
aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir pois o universo necessita ateacute
desses homens Resta-te perceber entre que espeacutecie de obreiros estaacutes aquele
que governa o universo faraacute certamente uso adequado de ti e te receberaacute entre
os que jaacute colaboram e os que se dispotildeem a colaborar Mas natildeo ocupes um lugar
como o verso mediacuteocre e ridiacuteculo na trageacutedia de que fala Criacutesipo91 (MARCO
AUREacuteLIO 1967 paacuteg 97)
Por isso que nem o poeacutetico-filosoacutefico nem o teacutecnico-funcional estatildeo agrave medida do
λόγος aqueacutem ou aleacutem entre si Se ao inveacutes de fazer um poema decidiacutessemos medir o
tamanho de uma coluna de maacutermore esta mediccedilatildeo natildeo calaria necessariamente a
91 Criacutesipo foi um conhecido estoico grego Esta passagem se refere ao fragmente 1181 da ediccedilatildeo de von
Arnim conforme nota do original
101
desmedida do Coliseu seus diversos tamanhos a medir e a natildeo medir A medida que mede
o tamanho pelos nuacutemeros da matemaacutetica eacute mais um modo de ouvir a fala do λόγος Ainda
que definitivamente natildeo seja o λόγος em sua totalidade
Daiacute a dificuldade da metafiacutesica nos moldes dicotocircmicos de νοῦς e δόξα ao se
deparar com Heraacuteclito O Obscuro natildeo estaacute claro por natildeo se articular tradicionalmente
ou seja dentro de certos preceitos de oposiccedilotildees e argumentaccedilotildees esperadas inclusive
logicamente esperadas A desculpa de que sua escrita nos foi relegada fragmentada natildeo
convence jaacute que tantos outros escritos antigos estatildeo em fragmentos aleacutem do que a
alcunha adveacutem de uma eacutepoca na qual eacute concebiacutevel que alguns dizeres do pensador
estivessem ateacute em outras dimensotildees
Σκοτεινός natildeo eacute devido somente ao seu modo de se manifestar mas tambeacutem a
como seus interlocutores o podiam compreender Sua obscuridade faz jus agrave parcela de
confusatildeo de natildeo compreensatildeo e de tensatildeo do seu pensamento a fim de que o λόγος
retenha seu misteacuterio aquele natildeo dito em todo dizer como eacute fruto do excesso de
luminosidade na concatenaccedilatildeo das ideais com as quais seus leitores estariam
acostumados Essa medida torna-se problemaacutetica quando roga para si o que o λόγος eacute em
sua totalidade natildeo permitindo assim outras manifestaccedilotildees Como se impossiacutevel fosse o
ponto fora da curva
31 Linguagem e limite
Natildeo eacute de agora a questatildeo de como a filosofia se compreende E jaacute que a proacutepria
natildeo estaacute agrave parte do mundo compreender-se eacute em alguma medida compreender o mundo
Do mesmo modo o mundo encara a filosofia com as garras afiadas com que apanha tudo
o que encontra deixando pouco espaccedilo para brechas ou pontas soltas ldquoa incerteza sempre
foi uma fonte suprema de medordquo (BAUMAN 2010 paacuteg 25) Por natildeo se restringir a um
tempo especiacutefico esse incocircmodo aparece nos preacute-socraacuteticos e atravessa as eras
inquietando os homens
Se vale mais a pena morrer do que sonhar Isso certamente soa como algo senatildeo
impossiacutevel difiacutecil de decidir pois natildeo eacute uma pergunta funcional A permanecircncia em
102
estado de vigiacutelia daacute o tom da resposta heracliacutetica na mesma medida em que destoa do
status quo que deseja transformar o caminho filosoacutefico num passo a passo Assim segue
a pergunta conforme paraacutegrafo 309 de Philosophische Untersuchungen ldquoWas ist dein
Ziel in der Philosophie mdash Der Fliege den Ausweg aus dem Fliegenglas zeigenrdquo isto eacute
ldquoQual eacute seu objetivo na filosofia mdash Mostrar agrave mosca a saiacuteda do mosqueirordquo
(WITTGENSTEIN 1971 paacuteg 131 ndash traduccedilatildeo livre) a indicar outro caminho aleacutem do
aparente uacutenico jeito que nesse caso seria o fim do inseto
Ao mostrar ensina-se um caminho diz-se o que a mosca pode fazer aleacutem de se
debater frustrantemente Natildeo que ela faraacute o dito Tambeacutem natildeo haacute garantias de sucesso
pela simples audiccedilatildeo nem pela execuccedilatildeo Zeigen convida anuncia solenemente o que
antes era dado como certo a fim de que a atenccedilatildeo devida possa ser despendida
Etimologicamente esse verbo tem a raiz indo-germacircnica dįk- (KLUGE 1899 paacuteg 433
GRIMM GRIMM 1971 Zeigen)92 a mesma de ensinar em inglecircs (DICTIONARY
Teach)93 mostrar em grego (LIDDELL SCOTT 1940 Δείκνυμι)94 e dico dizer em latim
(GLARE 1968 paacuteg 537)
Haacute muito que mostrar algo eacute apenas ldquo1 oferecer agrave vistardquo (HOUAISS 2009a
Mostrar) dizer eacute ldquo1 expor atraveacutes de palavrasrdquo (HOUAISS 2009a Dizer) e ensinar eacute ldquo1
repassar ensinamentos sobre algo doutrinarrdquo (HOUAISS 2009a Ensinar) O domiacutenio da
funcionalidade preza pela presteza e reprodutibilidade logo tende-se ao uso mecacircnico das
palavras esvaziadas de significaccedilatildeo para o manejo ordinaacuterio com elas Isto equivale
agravequilo este siacutembolo sonoro representa tal gesto ou aquele objeto e por aiacute vai
Ainda a respeito dos sentidos de zeigen cabe detalhar um pouco sua relaccedilatildeo com
o verbo latino dico primeira pessoa do singular do presente dos verbos cujos infinitivos
satildeo dicare e dicere Ambos significam dizer mas com certos sentidos mais
pormenorizados em um verbete do que no outro Sobre as diferenccedilas entre eles
92 Disponiacutevel em lthttpwoerterbuchnetzdecgi-
binWBNetzwbgui_pysigle=DWBamplemid=GZ03301ampmode=Vernetzungamphitlist=amppatternlist=ampmain
mode=gt Acesso em 05 ago 2017 93 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowseteachs=tgt Acesso em 05 ago 2017 94 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei2
Fknumigt Acesso em 05 ago 2017
103
encontramos em dicare referecircncias a ldquodedicar devotar consagrarrdquo e em dicere ldquofazer um
juramento votar dar evidecircnciardquo (GLARE 1968 paacuteg 537)95
Embora o uso de dicare mantenha um tom cerimonioso em alguns contextos por
tratar da sagraccedilatildeo e da dedicaccedilatildeo a um deus a uma figura incontestadamente de
importacircncia dicere daacute seu testemunho pelo dizer ldquoComo orare dico tem um caraacuteter
solene e teacutecnico eacute um termo da liacutengua da religiatildeo e do direitordquo (ERNOUT MEILLET
2001 paacuteg 172 ndash traduccedilatildeo livre)96 Um mostrar que se diz Os sentidos dos dois vocaacutebulos
confluem entre si atraveacutes da voz que traz agrave tona o sagrado seja na evocaccedilatildeo da divindade
seja na presenccedila da verdade Um dizer que mostra faz evocar trazer agrave palavra o vigor do
sagrado ldquoA raiz indo-europeia wekw- [de evocar voz] indicava a emissatildeo de voz com
todas as forccedilas religiosas e juriacutedicas que delas resultamrdquo (ERNOUT MEILLET 2001
paacuteg 754 ndash traduccedilatildeo de Manuel Antocircnio de Castro)97
Concomitantemente a abstraccedilatildeo da realidade em conceitos na ψυχῇ platocircnica
conforme seccedilatildeo 511d da Repuacuteblica tem se demonstrado eficiente em se tratando do
empobrecimento da experiecircncia sensiacutevel Permitindo entre outras coisas postergar o
trato com as palavras isto eacute sabendo o significante e o significado basta aplicaacute-los
quando for mais conveniente O visiacutevel eacute limitado existindo apenas ateacute onde nossos olhos
alcanccedilam poreacutem o invisiacutevel as ideias abstratas independem de um objeto especiacutefico
pelo contraacuterio podem ser aplicadas a qualquer coisa Semelhantemente as palavras
sofreram um enfraquecimento de sua caracteriacutestica de evocaccedilatildeo de trazer agrave presenccedila na
nomeaccedilatildeo para serem compreendidas na loacutegica significante e significado Assim o que
algo significa pode ser reproduzido dicionarizado definido e arbitrariamente somente
relaciona-se com a coisa em questatildeo A experiecircncia oral concreta eacute limitada e irrelevante
natildeo se distinguindo em linhas gerais uma da outra
O mostrar agrave mosca natildeo pode esperar pois eacute uma experiecircncia radical Nem por isso
estaacute em sujeiccedilatildeo agrave pressa do ponteiro Diz conceitualmente o significado do significante
mas tambeacutem marca a ferro e fogo o bicho com o ensinamento de sua finitude Ratifica a
95 ldquo2 To dedicate devoterdquo e ldquo6 to make a oath to vote to give evidencerdquo respectivamente 96 Comme orare dico a un caractegravere solennel et technique crsquoest un terme de la langue de la religion et du
droit 97 La racine wekw- eacutetait en indo-europeacuteen celle qui indiquait leacutemission de la voix avec toutes les forces
religieuses et juridiques qui en reacutesultent
104
situaccedilatildeo limiacutetrofe da mosca em contato com o mosqueiro e alerta-a para uma condiccedilatildeo
aleacutem do vidro reconfigurando seus limites delimitando e deslimitando
Somente porque o filoacutesofo estaacute sempre a jogar com a linguagem que ele pode fazer
filosofia Por estar em concordacircncia com a fala da linguagem ele traccedila tanto um paralelo
com a tradiccedilatildeo quanto reconhece seus pontos sensiacuteveis e dignos de questionamento Por
estar em discordacircncia com a fala da linguagem o filoacutesofo pode responder a ela
cuidadosamente habitando seus limites e radicalmente atuando para sua criaccedilatildeo e
consequentemente destruiccedilatildeo ldquo56 Os limites da minha liacutengua [grifo no original]
significam os limites do meu mundordquo (WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 148 ndash traduccedilatildeo
livre)98
Logo ele eacute aquele que mostra a saiacuteda Quatildeo tentador natildeo eacute encarar essa assertiva
por salvaccedilatildeo De fato sair do mosqueiro salvaria a mosca Aleacutem do mais a palavra
Ausweg abarca os significados de remeacutedio e alternativa (LANGENSCHEIDT 2001 paacuteg
692) e o que seria mais curativo do que um bom remeacutedio durante o estado de
enfermidade A cura processada pode ser encarada dessa forma como a soluccedilatildeo do
problema se o problema fosse passiacutevel de cura Trata-se aqui de uma problemaacutetica
filosoacutefica na qual o alvo a meta ou objetivo das Ziel tal como pular a proacutepria sombra eacute
sair do frasco feito para que vocecirc natildeo saia dele
Eacute propor solucionar o insoluacutevel sair do caminho sem saiacuteda Ainda assim toda
partida chega a algum lugar logo para cada Ausweg podemos supor um Weg um
caminho Nesse sentido a proposta de Wittgenstein natildeo se mostra mais eficaz para
remediar o irremediaacutevel do que quaisquer outras atitudes mesmo assim eacute um caminho e
uma resposta Eacute uma assunccedilatildeo de que ele o pensador estaacute comprometido com o cuidado
entre a sanidade e o insano que salienta sua decisatildeo e o separa por um fio de dar murro
em ponta de faca ou de saber que o sucesso natildeo eacute a uacutenica soluccedilatildeo mas que o caminhar
natildeo eacute soacute possiacutevel mas nosso dever com o caminho
A saiacuteda estabelece um limite Ateacute entatildeo sem outro caminho ainda que aparente
natildeo haacute diferenciaccedilatildeo natildeo haacute chances de se diversificar para a mosca que caiu presa no
mosqueiro e por isso se fundiu nele Mosqueiro e mosca eram uma coisa soacute O mosqueiro
98 56 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt
105
era o mundo da mosca Na identificaccedilatildeo que mostra algo que pode acontecer uma
alternativa ocorre a cisatildeo do mundo
Mosqueiro e mosca se separam na exposiccedilatildeo da saiacuteda Assim como o umbral
marca o limite entre os cocircmodos e as cercanias da casa delimitam a propriedade assim o
caminho para fora reafirma o compromisso com o caminho de dentro Toda chegada parte
de algum lugar Mosqueiro pois toma seu lugar enquanto proveniente da mosca Natildeo faz
sentido mosqueiro sem mosca mas o contraacuterio natildeo eacute verdade a mosca natildeo eacute mosqueiro
natildeo se encerra nele natildeo necessariamente
Para haver Fliegenglas eacute imprescindiacutevel der Fliege se assim natildeo for se trataria de
somente mais um Glas soacute mais um vidrino recipiente sem nenhuma relevacircncia para a
mosca senatildeo eventuais resquiacutecios meliacutefluos Da mesma forma Glas demarca a qualidade
de natildeo mosca de Fliegenglas reafirmando tratar-se de duas entidades a mosca e o vidro
de pegar moscas Duas realidades separadas pelo limite apresentado pelo filoacutesofo
O mosqueiro eacute e natildeo eacute a mosca A proacutepria palavra jaacute diz a mosca mas
diferentemente fundando outra forma da mosca ser mosca Natildeo haacute limite sem o entorno
Sua circunvizinhanccedila se apresenta na saiacuteda eacute o reconhecimento da linha ao redor do
ciacuterculo O limite se confunde com sua transgressatildeo refazendo a ponte entre o que somos
e natildeo somos Essa eacute a meta do filoacutesofo reafirmar o abismo pelo salto Natildeo por tendecircncias
suicidas mas por ter sapiecircncia de que o abismo natildeo seria nada sem a possibilidade da
queda assim como cair natildeo seria possiacutevel sem o caminhar
O inuacutetil
Disse Hui Tzu a Chuang Tzu
mdash Todo o seu ensinamento estaacute baseado no que natildeo tem utilidade
Replicou-lhe Chuang Tzu
mdash Se vocecirc natildeo aprecia o que natildeo tem utilidade
Natildeo pode comeccedilar a falar sobre o que eacute uacutetil
Por exemplo a terra eacute larga e vasta
Mas de toda a sua extensatildeo o homem utiliza
Apenas poucas polegadas
Sobre as quais se manteacutem de peacute
Suponhamos agora que vocecirc tire
Tudo o que ele realmente natildeo usa
De modo que ao redor de seus peacutes
Um golfo se abra
E ele fica de peacute no vazio
Sem nada de soacutelido
Com exceccedilatildeo do que se encontra bem debaixo de cada peacute
Por quanto tempo poderaacute utilizar o que estaacute usando
106
Disse Hui Tzu
mdash Cessaria de servir a qualquer finalidade
Concluiu Chuang Tzu
mdash Isto prova
A absoluta necessidade
De que lsquonatildeo tem utilidadersquo (MERTON 1984 paacuteg 194-195)
Para isso ele se achega agrave beira do despenhadeiro para arriscar um salto Esta eacute sua
correspondecircncia ao abismo agrave questatildeo cuja profundidade natildeo se esgota mas se adentra
em cada resposta Natildeo eacute um saltar de cabeccedila no vazio sem sentido nem aterrar a
profundura para jamais sermos tragados por ela e fazecirc-la planiacutecie segura para um
pensamento raso
A resposta filosoacutefica agrave mosca natildeo pretende solucionar a problemaacutetica do frasco
diretamente Em vez disso coloca novamente a questatildeo instituindo a limitaccedilatildeo entre a
mosca e o vidro Mostrar a saiacuteda natildeo desfaz o mosqueiro como a porta natildeo desfaz a casa
mas convida a lidar com o limite como algo que natildeo precisa ser seguido agrave risca tambeacutem
somos aleacutem dele nem arriscado sempre ao extremo tambeacutem somos aqueacutem dele pois o
ciacuterculo se define tanto pelo que estaacute dentro como pelo que estaacute fora
32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem
Responder natildeo eacute um papel exclusivo da filosofia Eacute tanto uma palavra como uma
atitude muito comum Nas perguntas das provas haacute um espaccedilo destinado para isso Na
duacutevida de quanto custa o patildeozinho naquela outra padaria no momento apoacutes uma saudaccedilatildeo
e no fechar das matildeos depois de levado o soco acontece ali uma resposta agraves interpelaccedilotildees
da vida
Cria-se a expectativa do quadrado da hipotenusa que se iguala agrave soma dos
quadrados dos catetos na lacuna preenchida no teste do valor monetaacuterio do quilo mais ou
menos barato do que o da bodega da esquina do olaacute e do olho roxo Somos ensinados a
isso Embora as reaccedilotildees variem no tempo e no espaccedilo de modo geral estamos sempre no
aguardo de um posicionamento que nos tire da suspensatildeo da questatildeo
107
Todo o processo comunicativo eacute baseado em correspondecircncias Em remetentes e
destinataacuterios em dar agrave mensagem o recebido para na via de matildeo dupla da prosa moderna
devolver a missiva em seguida Se se pergunta espera-se com isso um termo o desenlace
pelo qual fomos formados a crer e compreender
Quando muito natildeo cabe a noacutes mas aos outros dar as respostas que aguardamos
Ao professor cabe responder o aluno com a soluccedilatildeo do problema ao atendente o
comprador com o preccedilo do patildeo ao amigo o irmatildeo com a atenccedilatildeo devida e ao rival a noacutes
com a violecircncia por vezes merecida Em nossa sociedade se a interrogaccedilatildeo eacute parcialmente
livre o travessatildeo costuma ser destinado a setores a profissionais e a especialistas no
assunto
Tudo tem seu lugar nas engrenagens da maacutequina a pergunta e a resposta natildeo
fogem a isso Responder passa a ser encarado como uma postura formal Como natildeo ser
seduzido pela crenccedila da oficialidade se tradicionalmente tem sido assim A mais antiga
universidade europeia em funcionamento data de 1088 e antes disso a Academia de
Platatildeo foi fundada no ano de 387 antes de Cristo isto significa dizer que haacute tempos o
Ocidente tem se empenhado a reter a produccedilatildeo do saber em determinadas instituiccedilotildees em
detrimentos de outras circunstacircncias e localidades
A partir do momento em que o conhecimento foi compartimentado retirado de
sua experiecircncia imediata e empossado no poacutedio das categorias especializadas fica cada
vez mais difiacutecil natildeo considerar as respostas oficiais para dizer o que as coisas satildeo Mal
comparando seria perguntar ao padeiro sobre o teorema de Pitaacutegoras Que se faccedila notar
natildeo eacute que o padeiro saiba ou natildeo saiba pouco importa pois ele natildeo deteacutem o saber oficial
a respeito dessa problemaacutetica isto eacute ele natildeo estaacute autorizado a responder oficialmente
Autorizaccedilatildeo dada pela tradiccedilatildeo Neste caso a tradiccedilatildeo tradicional encastela nas
instituiccedilotildees formais de ensino nos oacutergatildeos governamentais nas fundaccedilotildees emissoras de
diplomas e registros os atestes da veracidade das respostas Nossa sociedade distorceu a
seu bel-prazer a compreensatildeo mitoloacutegica de Pandora e Prometeu erigindo
estabelecimentos que concentram as verdades perante as opiniotildees e as experiecircncias
concretas dos indiviacuteduos e ateacute de grupos
Isto significa que esses locais e as pessoas que respaldam essas localidades satildeo
capazes de nos prover das respostas que necessitariacuteamos para manter as engrenagens
sociais em funcionamento Desse modo natildeo precisariacuteamos mais lidar diretamente com
108
os dilemas que jogam com nossos limites por mais simploacuterios ou essenciais que eles
possam ser As respostas vecircm prontas basta apenas acessaacute-las
A Pandora original foi enviada agrave Terra com uma caixa que continha todos os
males de coisas boas continha soacute a esperanccedila O homem primitivo vivia neste
mundo de esperanccedila Confiava na magnanimidade da natureza nos benefiacutecios
dos deuses e nos instintos de sua tribo para sobreviver Os gregos claacutessicos
comeccedilaram a substituir a esperanccedila pelas expectativas Em sua versatildeo do mito
de Pandora ela havia soltado tanto os males quanto os bens Lembravam-se
dela sobretudo pelos males que havia soltado E esqueceram que a lsquodoadora de
tudorsquo era tambeacutem a guardiatilde da esperanccedila
Os gregos contavam a histoacuteria de dois irmatildeos Prometeu e Epimeteu Prometeu
sempre admoestava Epimeteu para que deixasse Pandora em paz Mas este
acabou casando-se com ela No grego claacutessico o nome Epimeteu que significa
lsquoolhar para traacutesrsquo foi traduzido por lsquoboborsquo ou lsquoestuacutepidorsquo [] Os homens
planejaram instituiccedilotildees com que pretendiam fazer frente aos males
disseminados Conscientizaram-se de seu poder de modelar o mundo e fazecirc-lo
produzir serviccedilos que eles mesmos aprenderam a esperar Queriam que suas
proacuteprias necessidades e as futuras demandas de seus filhos fossem modeladas
por seus artefatos Tornaram-se legisladores arquitetos autores idealizadores
de constituiccedilotildees cidades e obras de arte que servissem de exemplo para seus
descendentes O homem primitivo confiava na participaccedilatildeo miacutetica dos ritos
sagrados para iniciar pessoas na doutrina da sociedade [] (ILLICH 1973
paacutegs 115-116)
Ora mas como as repostas poderiam vir prontas se fazemos perguntas Isso natildeo
pressupotildee uma duacutevida Naturalmente que sim mas ateacute para perguntar eacute indispensaacutevel
saber algo Natildeo eacute possiacutevel perguntar sobre o que natildeo temos como perguntar a respeito
Por mais tautoloacutegico que essa uacuteltima assertiva possa soar ela remete ao conhecimento do
ser a perambular o natildeo ser
Como acessar o natildeo ser Acessamos o ser agrave medida que ele se revela a noacutes Seja
nas questotildees como em suas respostas precisamos estar nas cercanias do ser para que haja
compreensatildeo Quando natildeo o habitamos em alguma instacircncia ou seja quando natildeo somos
simplesmente as coisas acontecem e natildeo temos a possibilidade de darmos conta disso
A luz das estrelas perguntou ao Natildeo-Ser mdash Mestre voacutes existis ou natildeo
Como a luz das estrelas natildeo obtivesse qualquer resposta dispocircs-se a vigiar o
Natildeo-Ser Esperou para ver se o Natildeo-Ser aparecia
Manteve seu olhar fixo no profundo Vaacutecuo esperando para tentar ver uma
sombra do Natildeo-Ser
Olhou durante todo o dia e nada viu Ouvia mas natildeo escutava nada Tentava
pegar mas nada pegava
Entatildeo a luz das estrelas exclamou finalmente mdash Eacute isto
mdash Este eacute o mais distante Quem poderaacute alcanccedilaacute-lo
Posso compreender a ausecircncia do Ser
Mas quem pode compreender a ausecircncia do Nada
109
Se agora acima de tudo o Natildeo-Ser eacute
Quem seraacute capaz de compreendecirc-lo (MERTON 1984 paacuteg 161)
Quantas coisas acontecem diante de nossos olhos neste exato momento sem que
percebamos Incontaacuteveis Mesmo aquelas que percebemos ainda eacute uma percentagem
iacutenfima do que poderia ter sido e o que poderia natildeo eacute assim como o que jamais poderaacute
ser tambeacutem natildeo eacute O natildeo ser natildeo estaacute presente o ser o ainda natildeo presente e o que acontece
eacute o ser sendo presenccedila simultaneamente presente e a presentificar-se independentemente
do que tenhamos a dizer sobre ou se tomamos ciecircncia dele
Nesse sentido nem o ser nem o natildeo ser eacute Do contraacuterio seria um ente acessado
por completo apreendido agrave nossa imagem e semelhanccedila ou seja natildeo estariacuteamos de fato
compreendendo o ser mas dizendo o que o ser deveria ser de nosso ponto de vista Isso
eacute tatildeo grave e presente que se construiu todo o aparato conceitual para dar respostas com
as quais jaacute estamos acostumados e no mais que conveacutem aos interesses Significa que
acessamos o ser e o devassamos o natildeo ser eacute o ser eacute tudo eacute ente tudo eacute o que jaacute foi dado
respondemos apenas a noacutes mesmos as nossas perguntas cujo misteacuterio natildeo passa de uma
farsa sem trageacutedia
Como gecircnio construtivo o homem se eleva nessa medida muito acima da
abelha esta constroacutei com cera que recolhe da natureza ele com a mateacuteria
muito mais tecircnue dos conceitos que antes tem de fabricar a partir de si mesmo
Ele eacute aqui muito admiraacutevel ndash mas soacute que natildeo por seu impulso agrave verdade ao
conhecimento puro das coisas Quando algueacutem esconde uma coisa atraacutes de um
arbusto vai procuraacute-la ali mesmo e a encontra natildeo haacute muito que gabar nesse
procurar e encontrar e eacute assim que se passa com o procurar e encontrar da
lsquoverdadersquo no interior do distrito da razatildeo Se forjo a definiccedilatildeo de animal
mamiacutefero e em seguida declaro depois de inspecionar um camelo lsquoVejam um
animal mamiacuteferorsquo com isso decerto uma verdade eacute trazida agrave luz mas ela eacute de
valor limitado quero dizer eacute cabalmente antropomoacuterfica e natildeo conteacutem um
uacutenico ponto que seja lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido sem
levar em conta o homem (NIETZSCHE 2009 paacuteg 537)
A iniciaccedilatildeo agrave realidade deixa de ser miacutetica e composta de rituais sacros para ser
fruto da educaccedilatildeo e das leis Eacute a passagem do concreto para o abstrato da experiecircncia
sensiacutevel para a inteligiacutevel O controle social chega a atingir as demandas por necessidades
isto eacute se o homem pode produzir algo ele deve poder produzir a necessidade daquela
produccedilatildeo Se o homem pode dar respostas ele deve poder produzir as perguntas que se
adequem agraves respostas agraves quais ele estaacute preparado
110
Por mais que tentemos fugir os mitos de Siacutesifo e de Tacircntalo insistem em bater na
nossa cara Condenados a empurrar uma pedra ateacute o cimo da montanha e a passar fome e
sede respectivamente essa dinacircmica de um esforccedilo interminaacutevel se desdobra
modernamente em crescentes e insaciaacuteveis demandas por necessidades Eis um paradoxo
social pois ao criar uma realidade de instrumentos os homens que ldquoquanto mais podem
comprar mais decepccedilotildees tecircm que engolirrdquo (ILLICH 1973 paacuteg 178) se
instrumentalizam tornando-se refeacutens da proacutepria criaccedilatildeo
Se algum dia natildeo foi assim se nos primoacuterdios o homem era governado pelos fatos
pelas necessidades baacutesicas e pelo destino arremedo do sagrado atualmente natildeo eacute essa a
maneira das coisas serem experienciadas Ao longo de seacuteculos desenvolveu-se a
confianccedila nas instituiccedilotildees humanas como bastiotildees do controle e doadoras da seguranccedila e
com o tempo o equiliacutebrio entre confiar na natureza e confiar em sua proacutepria criaccedilatildeo foi
abalado O homem atual esqueceu-se de sua tragicidade e elevou ao extremo sua
dependecircncia institucional Cego nessa confianccedila natildeo vecirc as contradiccedilotildees do processo
Essas estruturas satildeo auto e antropofaacutegicas a saber
Uma sociedade comprometida com a institucionalizaccedilatildeo dos valores identifica
a produccedilatildeo de bens e serviccedilos com a demanda pelos mesmos A educaccedilatildeo que
nos faz necessitar do produto estaacute incluiacuteda no preccedilo do produto A escola eacute a
agecircncia publicitaacuteria que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela
eacute (ILLICH 1973 paacuteg 178)
33 O limite da resposta
Do pondo de vista da educaccedilatildeo tradicional a importacircncia da transmissatildeo da
seleccedilatildeo e da reproduccedilatildeo de um conteuacutedo parece evidente Daiacute crer que satildeo as instituiccedilotildees
a educaccedilatildeo oficial que transmite os valores natildeo mais o mito natildeo mais os deuses (embora
o sagrado modernamente possa ser apreendido pelas instituiccedilotildees) Por outro lado na
construccedilatildeo de um pensamento criacutetico tambeacutem encontramos a crenccedila num controle a ser
transmitido ainda que justificado ideologicamente Por mais que se argumente que os
conteuacutedos transmitidos satildeo vitais para a sobrevivecircncia ou que os mesmos perpassam pela
111
responsabilidade dos envolvidos neste processo isto eacute os educadores os educados e o
mundo trata-se no mais das vezes do que pode ser apreensiacutevel pelo saber
A educaccedilatildeo eacute o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para
assumirmos a responsabilidade por ele [] eacute tambeacutem onde decidimos se
amamos nossas crianccedilas o bastante para natildeo expulsaacute-las de nosso mundo e
abandonaacute-las a seus proacuteprios recursos e tampouco arrancar de suas matildeos a
oportunidade de empreender alguma coisa nova [] preparando-as [] para a
tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT 1972 paacuteg 247)
Tomar uma decisatildeo eacute uma resposta A educaccedilatildeo pelas vias da tradiccedilatildeo decide
respostas aos pais agrave sociedade e agrave questatildeo colocada Esse tem sido o papel do ensino Por
mais que se decida pelo cuidado ou pela ousadia essas correspondecircncias podem vir pelas
vias da apreensatildeo dando indiacutecios de preparaccedilatildeo e margens agrave transmissatildeo Com isso
modela-se sentidos agrave existecircncia
A marca que o ensino deixa na carne desse mundo comum nem sempre eacute visiacutevel
a olho nu mas isso natildeo quer dizer que ela natildeo esteja exercendo sua influecircncia Em outras
palavras o que se identifica na vontade de preparaccedilatildeo eacute a necessidade de uma resposta
que valide a transmissatildeo Se a resposta natildeo for adequada se natildeo partir de uma decisatildeo
modelar a saber que pode ser usada como modelo agraves demais ela eacute excluiacuteda enquanto
verdade Torna-se ficccedilatildeo invencionice parvoiacutece de filoacutesofo que natildeo diz coisa com coisa
mdash Por conseguinte oacute Glaacuteucon quando encontrares encomiastas de Homero a
dizerem que esse poeta foi educador da Greacutecia99 e que eacute digno de se tomar por
modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humana para aprender com
ele a regular toda a nossa vida deves beijaacute-los e saudaacute-los como sendo as
melhores pessoas que eacute possiacutevel e concordar com eles em que Homero eacute o
maior dos poetas e o primeiro dos tragedioacutegrafos mas reconhecer que quanto
a poesia somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encoacutemios aos
varotildees honesto e nada mais Se poreacutem acolheres a Musa apraziacutevel na liacuterica ou
na epopeia governaratildeo a tua cidade o prazer e a dor em lugar da lei e do
princiacutepio que a comunidade considere em todas as circunstacircncias o melhor
mdash Exactamente
mdash Aqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao lembrarmos de novo a poesia por
justificadamente excluirmos da cidade uma arte desta espeacutecie (PLATAtildeO
1987 paacutegs 472-473)
Ironicamente o julgamento que Platatildeo fez agrave poesia de base homeacuterica no passado
se assemelha muito com a criacutetica agrave filosofia nos tempos atuais Significa dizer que a
99 Conforme nota da citaccedilatildeo a mais antiga prova dessa asserccedilatildeo diz respeito ao Fragmento 10 de
Xenoacutefanes ldquoUma vez que desde iniacutecio todos aprenderam por Homerordquo
112
pergunta que Soacutecrates faz agrave Homero ldquodiz-nos que cidade foi graccedilas a ti melhor
administradardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 456) compreende natildeo soacute o vigor do que se tem a
dizer a partir de sua relevacircncia uacutetil quanto ignora a inutilidade de toda utilidade A
imprescindibilidade de fazer algo com essa resposta tornando-a eficaz a nossos
problemas passa por cima do fato de que Platatildeo inclusive utilizou-se da poesia Sua
escrita dialoacutegica as referecircncias miacuteticas o fizeram fruto de sua proacutepria criacutetica
Na mesma linha de pensamento sarcaacutestica tambeacutem as instituiccedilotildees por mais
controladoras que sejam natildeo conseguem se livrar completamente da filosofia Quer dizer
o pensamento que se tenta abarcar nunca se esgota de todo Haacute brechas e veredas nem
tudo Nem tudo pode ser encontrado logo nem tudo estaacute perdido Eacute a isso que nos
referimos quando tratamos filosofia como resposta Natildeo eacute um responder a algo
definitivamente mas um postar-se a
Natildeo que a questatildeo do ser natildeo esteja presente Natildeo eacute possiacutevel natildeo estar a falar do
ser do contraacuterio estariacuteamos a falar de quecirc Do natildeo ser Aiacute ele seria ser natildeo Digamos
tratar-se pois de um modo distinto do que eacute ser a saber natildeo enquanto essecircncia
preocupada em identificar as qualidades imutaacuteveis mas com a presenccedila do que eacute mutaacutevel
e do que permanece Apregoa-se que pensar a essecircncia limita e dicotomiza sem perceber
que a identidade esvaziada da questatildeo do ser estaacute mais preocupada em classificar e
adequar do que propriamente em tornar-se presenccedila
Mas eacute tambeacutem uma questatildeo quem eacute quem Natildeo eacute lsquoO que eacute quemrsquo ndash natildeo eacute
uma questatildeo de essecircncia mas de identidade (como quando perguntamos diante
da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos mas natildeo os
seus rostos lsquoQuem eacute quemrsquo ndash Este eacute Kant Aquele eacute Heidegger E este outro
ao lado dele) (NANCY 1991 paacuteg 7 ‒ grifo no original)
Ateacute mesmo faz sentido lidar com as respostas agraves questotildees no modo da identidade
natildeo da essecircncia Podemos crer no que vemos com mais facilidade do que o que natildeo vemos
a princiacutepio Eacute mais faacutecil achar que detemos o controle do que podemos identificar ao
contraacuterio o ser natildeo eacute identificaacutevel embora possa ser aprendido ateacute certo ponto pelas
caracteriacutesticas de um ente poreacutem nunca por inteiro Quem eacute quem eacute questatildeo ndash assim como
para que como quando quanto etc ndash agrave medida que pressupotildeem a possibilidade do
questionamento isto eacute a pergunta pelo ser em todo perguntar o que eacute quem O que eacute
ser O que eacute quem eacute quem
113
Quando a tradiccedilatildeo pela accedilatildeo das estruturas de poder diz o que o ser eacute ou natildeo eacute
ela responde categoricamente agrave questatildeo Natildeo importa o quatildeo bem fundamentada uma
resposta possa ser se ela decide por um caminho ela se arrisca por ele Naturalmente que
estaacute em jogo aqui diversas concepccedilotildees de existecircncia Heidegger por exemplo reconhece
tanto Existenz existecircncia quanto Dasein presenccedila traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante
Schuback Em Dasein se espera resgatar pela palavra o caraacuteter de acontecimento do ser
mesmo aquele manifesto onticamente enquanto existecircncia se adequa mais agrave concepccedilatildeo
tradicional do termo no qual a relaccedilatildeo de ser soacute eacute possiacutevel pela existecircncia ldquoperceberemos
que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da lsquocoisa que existersquo
e de seu modo de existecircnciardquo (JARDIM 1995 paacuteg 15) Dessa forma pensamos que
existir natildeo deixa de ser uma resposta dada pelo ser portanto existir como estar em
identidade com o ser que por isso pode ser pensado Em outras palavras o ser que natildeo
pode ser pensado natildeo eacute no sentido de natildeo existir
εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
Os uacutenicos caminhos da investigaccedilatildeo em que importa pensar Um (aquilo) que
eacute e que (lhe) eacute impossiacutevel natildeo ser eacute a via da Persuasatildeo (por ser companheira
da Verdade) o outro (aquilo) que natildeo eacute e que forccediloso se torna que natildeo exista
esse te declaro eu que eacute uma vereda totalmente indiscerniacutevel pois natildeo poderaacutes
conhecer o que natildeo eacute ndash tal natildeo eacute possiacutevel ndash nem exprimi-lo por palavras
(PARMEcircNIDES apud KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 255)
O que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacute Uma definiccedilatildeo aparentemente simples e que
possibilita a pergunta pela identidade que responde ao certo ou errado Ou isso ou aquilo
traz agrave tona a questatildeo por meio da acomodaccedilatildeo loacutegica Por que natildeo isso e aquilo Quem
disse que tinha de ser cocircmodo que tinha de ser coerente Agraves vezes ao controle foge ateacute a
fuga e precisamos lidar com o sim e o natildeo com o limite que tanto abre possibilidades
quanto encerra-as
Numa hipoacutetese absurda suponha-se que pudeacutessemos expor todas as
possibilidades numa fotografia A pergunta pela identificaccedilatildeo estaria interessada em saber
ldquoqual eacute qualrdquo ldquoquem eacute quemrdquo ou ldquocomo eacute quemrdquo qual caminho tomar quem devo
114
escolher como proceder diante destas escolhas Mal comparando essa eacute a postura da
vontade de controle da resposta que assegura e da mensagem que transmite
De modo decircitico apontariacuteamos esta ou aquela chance de ser na expectativa de
fazer prevalecer nossos desejos Na urgecircncia por uma resposta que atenda nossas
necessidades o proacuteprio ldquoo que eacuterdquo em cada perguntar passa despercebido ndash p ex o que eacute
como o que eacute proceder o que eacute estar diante de o que eacute escolher Questionamentos que agrave
primeira vista natildeo levam a lugar algum e que natildeo precisam ser feitas a todo momento
caso contraacuterio natildeo seria possiacutevel a miacutenima conversa
Se natildeo se confia no chatildeo natildeo eacute possiacutevel sequer dar um passo Alguma crenccedila
alguma confianccedila eacute forccedilosa ainda assim estatildeo presentes em toda resposta certeira
infindas questotildees sem soluccedilotildees apenas encaminhamentos Para cada ser que eacute haacute certo
limite tensional que o define tambeacutem como natildeo ser como indecifraacutevel ou a decifrar no
desdobrar e no responder
A questatildeo da identidade torna-se pois a questatildeo da representaccedilatildeo quando
ignoramos essa parte velada no desvelamento da questatildeo Se na muacutesica natildeo soubeacutessemos
como o arranjo foi composto ainda assim ele deixaria de soar No momento em que
perguntar pela identidade pretende prescindir agrave pergunta pelo ser jmmperguntar pelo
ldquoquemrdquo ldquocomordquo ldquopor quecircrdquo apresenta-se como a medida do real e tudo o que diferir
seraacute de menor importacircncia
Representamos quando a medida de algo se daacute pelo que ele faz produz sua
finalidade a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta em detrimento do que
eacute Basicamente significa dizer que toda existecircncia funcional acontece na representaccedilatildeo
Entatildeo quando se eacute de fato quando o ser eacute presente Tornar-se presenccedila depende da coisa
que existe isto eacute ldquopermite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de
tornar-se presenccedila sem ter que explicar lsquoo quersquo existia antes que lsquoelersquo se tornasse
presenccedilardquo (BIESTA 2013 paacuteg 67 ‒ grifo no original) Poreacutem tornar-se presenccedila natildeo eacute a
coisa que existe natildeo se esgota nela
Para aleacutem do que achamos que as coisas sejam do que acreditamos que queremos
haacute o que natildeo sabiacuteamos que queriacuteamos Aquela outra forma de ser da qual natildeo tiacutenhamos a
menor noccedilatildeo Natildeo se trata de humildade de pensamento ou de postura prudente perante agrave
vida acontece que tornar-se presenccedila tambeacutem natildeo depende da coisa que existe Desse
modo a questatildeo ontoloacutegica natildeo perde sua relevacircncia pois ela diz respeito agrave
115
multiplicidade inerente a cada vontade desejo e existecircncia Ela estaacute presente embora natildeo
se faccedila presenccedila a rigor Eis que se esbarra no tatildeo afamado ser Em outras palavras eacute
pensar o que eacute esses muitos que acontecem τὸ ὂν λέγεται πολλαχῶς eacute a possibilidade de
como produzir do oacutebvio do funcional do uacutetil ou simplesmente o fundamento limitador
e constituidor
34 A resposta do limite
Natildeo tem muito jeito Para sair da mesmice das soluccedilotildees simploacuterias e da resposta
pronta eacute mister esforccedilo A tradiccedilatildeo jaacute estaacute dada As instituiccedilotildees jaacute estatildeo postas A mosca
jaacute estaacute presa no mosqueiro Quando isso tudo natildeo for o bastante esse eacute o momento do
pensamento Para isso que enveredamos por estradas tortuosas e por vezes escolhemos
o caminho desdenhado que assombra entre os arbustos
A saber a resposta e o responder nos mostram muito dessa circunstacircncia na qual
nos instamos Podem indicar tanto uma afinidade com a perpetuaccedilatildeo quanto o empenho
de transformaccedilatildeo tanto se referem ao lugar de fala quanto a quem ou a que se fala Enfim
cada resposta corresponde a uma perspectiva e se relaciona a uma postura de estar no
mundo
Responder ao mundo eacute como estamos no mundo Daiacute se deriva que o mundo
enquanto local de habitaccedilatildeo dos seres se configura pelas nossas respostas ao longo do
tempo Natildeo apenas pois nem tudo o que acontece tem nossa assinatura mas eacute inegaacutevel o
impacto que uma resposta bem dada pode causar em um ambiente propiacutecio Nesse
sentido responder ao mundo eacute responder o mundo ldquoO mundo eacute tudo o que ocorrerdquo
(WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 30 ndash traduccedilatildeo livre) conforme o original ldquoDie Welt ist
alles was der Fall istrdquo Por estarmos no mundo que o respondemos por sermos o mundo
que ele ocorre e nos ocorre em significaccedilotildees
Logo o cuidado com as respostas passa por um cuidado com o mundo Como
cuidar ao responder Cada qual cuida e eacute cuidado pelo empenho do cuidar Isso natildeo deve
ser confundido com zelo no entanto natildeo se afasta de todo Trata-se no mais de que para
realmente cuidar de algo habitamos aquilo a tal ponto que nos constitua Ao responder o
mundo respondemos ao mundo a partir do que somos do mundo
116
Somos na presenccedila do mundo e natildeo em sua posse Queremos que as coisas
aconteccedilam e por vezes controlamos seu fazimento Soacute por vezes mesmo pois a margem
das possibilidades eacute o local da habitaccedilatildeo dos seres nunca completamente imerso nunca
inexoravelmente excluiacutedo Em seu limiar o respondemos e o habitamos e por estar na
borda vislumbramos sua geraccedilatildeo tanto quanto seu falimento o entorno que o define e
definha Daiacute a necessidade de cuidado como quem cuida da terra vir a ser planta
Somente sendo um pouco vegetal somente sendo um pouco camponecircs
Esse cuidado eacute nosso dizer nosso responder Como os dizeres que datildeo diversos
relatos sobre a mesma coisa cada um corresponde como pode Vai o meacutedico e daacute uma
resposta medicinal a um problema de sauacutede vai o advogado e revela a lei que justificou
determinada accedilatildeo vai o professor e se compromete com a educaccedilatildeo de nossos filhos em
nossa ausecircncia Vai tudo isso sem necessariamente retornar agrave proacutepria urgecircncia de
respostas A quem cabe cuidar do responder ldquoO pensador diz o ser O poeta nomeia o
sagradordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) ou seja ldquoDer Denker sagt das Sein Der
Dichter nennt das Heiligerdquo (HEIDEGGER 1955 paacuteg 51)
Natildeo natildeo cabe soacute ao pensador cuidar do responder O mundo eacute responsabilidade
de todos pois todos satildeo fundamentados pelo mundo que somos Ele deixa sua marca na
carne assim como demarcamos o solo com as criaccedilotildees e existecircncia Existe-se e eacute-se de
muitas maneiras Medica-se advoga-se leciona-se Se o pensador estaacute incumbido de
alguma accedilatildeo talvez esteja de agir enquanto ποιεῖν e dizer enquanto λέγειν atentamente
conforme fragmento 73 de Heraacuteclito Isto eacute o pensador eacute aquele imerso no cuidado de
ser e estar no mundo de ser porque estaacute no mundo de ser do mundo que ele eacute
Diz-se o ser responde-o Essa resposta eacute e estaacute no mundo Natildeo encerra a
totalidade mas cerca a possibilidade O limite do responder do pensador diz das cercanias
do ser que possibilita e daacute sentido a todo o resto Por isso ele versa sobre inutilidades
Natildeo porque sejam despreziacuteveis suas colocaccedilotildees mas por natildeo terem a preocupaccedilatildeo
imediata das necessidades e daiacute serem apreciadas com dificuldade Natildeo eacute correta mas eacute
verdadeira natildeo eacute precisa mas duacutebia natildeo eacute contraditoacuteria mas paradoxal Sonolecircncia e
vigiacutelia morte e vida ser e natildeo ser estatildeo no dito do pensador e falam do mundo que nos
encontramos corresponde agraves respostas individuais e tenta conectaacute-las agrave coletividade e
permanecircncia da questatildeo O ser se diz diversamente e cabe ao pensador mostrar como
quem indica o que estaacute acontecendo e ningueacutem tem mais tempo para dar por isso
117
Eacute interessante notar como essa questatildeo temporal eacute vital para compreender o
pensador e todos que se comprometam unicamente com o imediatismo Alguns autores
inclusive resgatam o sentido etimoloacutegico da palavra escola para pensar o tempo algo
como ldquolazer descanso tranquilidaderdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σχολή ndash traduccedilatildeo
livre)100 Essa noccedilatildeo implica em conceber que se tudo for para alguma coisa estaremos
sujeitos agraves respostas dadas agraves pressas Uma linha reta e contiacutenua de causa e consequecircncias
uacuteteis quase que num estado constante e iminente subjugaccedilatildeo do outro na guerra com o
tempo Nesse domiacutenio decide-se limitando para poupar futuros questionamentos assim
basta aplicar e seguir adiante sempre adiante em evoluccedilatildeo sem fim
De fato eu queria aprofundar a criacutetica (no sentido de Kant) da razatildeo erudita
ateacute ao ponto em que os questionamentos deixam em geral intocado e tentar
explicitar os pressupostos inscritos na situaccedilatildeo de skholegrave tempo livre e
liberado das urgecircncias do mundo que torna possiacutevel uma relaccedilatildeo livre e
liberada com tais urgecircncias e com o proacuteprio mundo (BOURDIEU 2001 paacuteg
9)
Embora a tradiccedilatildeo escolar tenha se esforccedilado por desvincular o tempo dessa
perspectiva ldquoescola ndash como tempo livre na qual o mundo eacute compartilhado e crianccedilas ou
jovens tecircm a experiecircncia de serem capazes de comeccedilar ndash precisa ser criadardquo
(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 113 ndash traduccedilatildeo livre)101 essa atitude foi
frustrada pela sua mesma origem Isso porque o proacuteprio ato de pensar necessita de uma
medida de quietude alguma viela na rodovia da exatidatildeo para a reflexatildeo criacutetica enfim
para reafirmar o compromisso com o caminho trilhado
Conveacutem ressaltar que natildeo se refere a encastelar-se na torre de marfim da erudiccedilatildeo
dos eleitos Eacute patente que haveraacute teacutecnica conhecimentos teoacutericos e praacuteticos que
dependeratildeo do empenho de seus executores mas principalmente eacute uma questatildeo de
postura Dispor-se perante o ser para ouvi-lo e assim dizecirc-lo em resposta nomeaacute-lo em
concordacircncia soacute eacute possiacutevel na confianccedila em abrir matildeo da seguranccedila da mensagem do
tempo que urge por uma resposta objetiva e pragmaacutetica ou seja ldquose a sociedade eacute para
100 Leisure rest ease Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dsxolh
2Fgt Acesso em 30 ago 2017 101 School ndash as free time in which the world is shared and children or young people have the experience of
being able to begin ndash must be created
118
ser renovada precisa se libertar e aceitar o risco de confiar a responsabilidade pela sua
renovaccedilatildeo a figuras ndash professores ndash isentas da obrigaccedilatildeo de produzir resultadosrdquo
(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 129)102
Natildeo somente os professores mas eacute dever de todos empenharem-se vez por outra
no penhor de pensar o haacutebito Seraacute que eu devo comer isso sempre fazer isso sempre ser
assim sempre Certamente que eacute quase impossiacutevel ensinar algueacutem a pensar sem
doutrinar Fazer com que se pense autonomamente Decerto eacute um ato de ousadia Agora
natildeo daacute para saber o que eacute possiacutevel sem arriscar abraccedilando o ilimitado o limitado e o
limitaacutevel em seu limiar agrave beira de ser e natildeo ser
Ao pensador cabe dizer o ser Seu compromisso eacute com a questatildeo isto eacute pensar o
haacutebito do pensamento Sua decisatildeo eacute pelo risco Diferente de um soldado cuja proacutepria
vida estaacute em jogo diferente de um meacutedico cuja vida do paciente estaacute em suas matildeos o
pensador segue sempre pela encruzilhada Seus caminhos pactuam com o sagrado e o
profano com o inuacutetil e por incriacutevel que parece com a extrema necessidade de natildeo
permitir a desgraccedila do pensamento Qualquer coisa por coisa qualquer lugares comuns
opiniotildees fechadas respostas banais natildeo
O pensador fundamentalmente pensa Em seu dizer o ser se manifesta e a
existecircncia jaacute conhecida e gasta renova seu sentido A tradiccedilatildeo eacute ainda a mesma mas
tambeacutem natildeo eacute cria-se ousa-se criar crecirc que cria e eacute essa crenccedila que o motiva Esforccedilar-
se por um pensamento digno de ser pensado eacute o miacutenimo e o maacuteximo que qualquer
pensador pode crer
35 Dois lados da mesma moeda
351 A resposta que natildeo soluciona
102 If society is to be renewed it must free itself and hazard to entrust responsibility for this renewal to
figures ndash teachers ndash exempted from the obligation to produce results
119
Uma resposta que natildeo se fie apenas nas soluccedilotildees soacute por serem as tradicionais mas
que decirc tempo ao tempo de ldquorepor recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009a Resposta)
a questatildeo da tradiccedilatildeo O dizer do pensador natildeo repete o ser natildeo leva o ser agravequeles que
natildeo tecircm acesso a ele Natildeo soacute eacute leviano achar isso como natildeo condiz com o caraacuteter
inegociaacutevel do que eacute O ser natildeo barganha nem o dito troca favores por benesses natildeo
compra natildeo vende fiduacutecias
Dizer como quem daacute uma resposta colocando novamente o ser isto eacute responde e
diz o que jaacute estaacute posto ratificando-o presentificando-o manifestando-o em sua
singularidade o que se eacute em diaacutelogo com sua multiplicidade o que se pode ser A
resposta natildeo vem atender agraves preces pela resoluccedilatildeo novamente aqui se coloca o que a
princiacutepio natildeo se cala a questatildeo Numa dialeacutetica ocircntica o pensador diz o ser agrave medida que
ele se cala para ouvir a fala do ser que natildeo se restringe aos discursos agraves palavras de
ordem aos comandos mas desde isso tudo laacute tambeacutem se pronuncia o canto o hino a
ladainha o carpido ou seja o rito
Dizer como quem responde Eacute interessante notar que a palavra resposta natildeo eacute
substantivo derivado de responder A histoacuteria da liacutengua uniu duas palavras distintas num
uso muito semelhante Essa origem entretanto daacute uma pequena amostra da plurivalecircncia
da linguagem Resposta nos remete ao latim reposita ou reposta particiacutepio passado
feminino de repono (GLARE 1968 paacutegs 1620-1621) prefixaccedilatildeo de pono pela partiacutecula
re- que indica retrocesso e oposiccedilatildeo mas tambeacutem repeticcedilatildeo e reforccedilo (HOUAISS
2009b)
Por sua vez pono eacute uma corruptela de po- + sino gt pozno prefixaccedilatildeo pela
partiacutecula aspectual indicando que a accedilatildeo atingiu seu fim (ERNOUT MEILLET 2001
paacuteg 520) Essa eacute uma diferenciaccedilatildeo conhecida nossa Por exemplo em inglecircs temos os
verbos to lay e to lie por deitado e estar deitado respectivamente (DICTIONARY
Lay)103 e em alematildeo stellen e stehen pocircr e estar de peacute (LANGENSCHEIDT 2001 paacutegs
1082-1083)
Seja por meio gramatical seja lexical o significado dos verbos eacute o mesmo o que
muda eacute como a accedilatildeo verbal se processa Nas situaccedilotildees acima todas se referem a estar
cuja diferenccedila ocorre entre colocar algo em determinado estado para laacute permanecer e
103 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowselays=tgt Acesso em 02 set 2017
120
estar em certo estado e aqui permanecer Concomitantemente sino se afina com deixar
algo ou algueacutem sozinho deixar ir deixar uma coisa intocada permitir que algo aconteccedila
(GLARE 1968 paacuteg 1770) ficando a cargo de pono e seu particiacutepio situs o sentido mais
fiacutesico da palavra (ERNOUT MEILLET 2001 paacuteg 628) Em portuguecircs vamos ter as
palavras situaccedilatildeo posiccedilatildeo assento siacutetio etc todas se apresentando como o que jaacute foi
colocado ou sempre assim esteve e laacute fica ou se almeja esse fim Sino pois eacute o estado de
solidatildeo e permanecircncia em que algo eacute deixado constituindo assim uma localidade
A solitude emocional eacute uma solidatildeo espacial Estar soacute natildeo como um ato de
desespero ou anguacutestia pesarosa e negativa mas parte essencial da constituiccedilatildeo dos seres
Estar como parte integrante de ser espaccedilo determinado no tempo espacialidade soacute por
sua singularidade que define e se define perante as demais solidotildees Desse modo eacute
estabelecida a relaccedilatildeo com a palavra resposta Sinere eacute posicionar-se em solitude situs
sua posiccedilatildeo no tempo e no ser ponene enquanto pocircr em uma posiccedilatildeo ir ao encontro do
cerco de existecircncia que delimita e funda uma localidade no mundo e por fim reponere
como o reposicionamento dessa localidade movimento que a ratifica e daacute vigor agrave posiccedilatildeo
situada
A questatildeo eacute Por isso ela estaacute posta e ao nos postarmos diante dela a fim de
adentrarmos sua localidade recolocamo-la agrave medida que podemos agrave medida que
podemos habitar sua habitaccedilatildeo Resposta aleacutem de soluccedilatildeo para os problemas tambeacutem eacute
ao tomarmos aquele desvio do oacutebvio e do imediato recolocaccedilatildeo da questatildeo Para isso eacute
fundamental alguma liberdade com o tempo e certa dose de rompimento da temporalidade
vigente
Contemporaneamente tem-se um conceito que abarca tal ruptura como uma
profanaccedilatildeo Pensando nisso temporalmente temos um tempo que se desprende dos
dispositivos que dizem como a temporalidade deve ser ldquoSe consagrar (sacrare) era o
termo que designava a saiacuteda das coisas da esfera do direito humano profanar por sua
vez significava restituiacute-las ao livre uso dos homensrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg 65) Os
usos da hora dos minutos e dos segundos satildeo problematizados a saber desvinculados do
sentido usual o que ele chama de sagrado para pode adquirir uma nova experimentaccedilatildeo
tornar-se puacuteblica mais uma vez ldquoProfanar natildeo significa simplesmente abolir e cancelar
as separaccedilotildees mas fazer delas um uso novo a brincar com elasrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg
75)
121
Por outro lado essa aparente crenccedila no sagrado natildeo deixa de estar vinculada agrave
proacutepria noccedilatildeo que temos do tempo Diz-se gastar perder tempo para dar uma resposta
que fuja do esperado Desperdiccedila-o ao tentar refazer os passos como se caminhar natildeo
fosse jaacute outro caminho igualmente dotado de verdade A sacralidade estanque nos remete
ao dogma e deixa de lado o maravilhamento e assombro que o mito e o rito nos acometem
Ou seja suspende-se a noccedilatildeo das horas e insere-nos numa nova temporalidade numa
nova localidade por jogar com o que somos e natildeo somos
Assim tambeacutem o profano natildeo eacute tatildeo fluido assim pois natildeo haacute nada mais comum
em tempos de crise como a vontade de seguranccedila o dia a dia os costumes dos mais
variados haacutebitos agrave nossa casa tudo isso comum a noacutes sem a deferecircncia sacra com o calo
do uso corrente e que assim como o sagrado nos define e delimita Nesse sentido nem
tanto o tempo necessita urgentemente perder sacralidade assim como natildeo precisa perder
mundanidade Haacute de se pensar uma alternativa que congregue o paradoxo das nossas
experiecircncias
Os filoacutelogos natildeo cansam de ficar surpreendidos com o duacuteplice e contraditoacuterio
significado que o verbo profanare parece ter em latim por um lado tornar
profano por outro ndash em acepccedilatildeo atestada soacute em poucos casos ndash sacrificar
Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulaacuterio do sagrado
como tal adjetivo sacer com um contrassenso que Freud jaacute havia percebido
significaria tanto lsquoaugusto consagrado aos deusesrsquo como lsquomaldito excluiacutedo
da comunidadersquo A ambiguidade que aqui estaacute em jogo natildeo deve apenas a um
equiacutevoco mas eacute por assim dizer constitutiva da operaccedilatildeo profanatoacuteria (ou
daquela inversa da consagraccedilatildeo) Enquanto se referem a um mesmo objeto
que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano tais operaccedilotildees
devem prestar contas cada vez a algo parecido com um resiacuteduo de
profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente
em todo objeto profanado (AGAMBEN 2007 paacuteg 68)
352 Temor sagrado
Eacute paradoxal essa relaccedilatildeo entre sagrado e profano entre a retidatildeo das soluccedilotildees e o
entroncamento da coisa colocada novamente em resposta Isso porque a linguagem eacute um
paradoxo lar de absurdos de certezas dos homens e da verdade Ela responde a nossos
anseios temporais e nos tira as palavras no momento crucial Ao tentar dar uma resposta
no tempo estamos agrave mercecirc dele e de sua idiossincrasia A fim de compreender melhor
122
como se processa essa dinacircmica de responder na e agrave temporalidade conveacutem delongar-se
em sua instacircncia sagrada e profana
Acima Agamben se refere a Freud Num de seus artigos intitulado Totem e tabu
o psicanalista reflete sobre um importante conceito de tabu Ele comeccedila referindo-se agrave
origem polineacutesia do termo cujo significado versa ldquoem dois sentidos contraacuterios Para noacutes
significa por um lado lsquosagradorsquo lsquoconsagradorsquo e por outro lsquomisteriosorsquo lsquoperigosorsquo
lsquoproibidorsquo lsquoimpurorsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 16) Ideias semelhantes podem ser vistas neste
dicionaacuterio de maori refazendo o percurso histoacuterico da palavra ldquoser sagrado proibido
restrito afastado sobre a proteccedilatildeo de atua [os deuses e os ancentrais]rdquo (MOORFIELD
Tapu ndash traduccedilatildeo livre)104
As significaccedilotildees de tabu que utilizamos hoje se afastam do universo miacutetico e se
aproximam do moral No dicionaacuterio podemos encontrar seis entradas a primeira refere-
se agrave instituiccedilatildeo religiosa conferindo sacralidade a seres objetos ou lugares
concomitantemente proibindo qualquer contato com eles sob pena de castigo divino
Todas as demais entradas trazem a ideia de proibiccedilatildeo ora interdiccedilatildeo religiosa ora
cultural ou imposta por costume social ou como medida protetora Vejamos alguns
exemplos ldquoEm Samoa distribuiacutea-se todo o pescado pelo chatildeo e ele era lavado em aacutegua
doce para livraacute-lo do taburdquo ldquoBeltrano eacute uma pessoa que vive presa a tabusrdquo e ldquoOs tabus
convencionais da era vitorianardquo (HOUAISS 2009a Tabu)
Essa concepccedilatildeo ratifica as restriccedilotildees imposta agrave educaccedilatildeo pelos pais pela
sociedade e pelos educadores a fim de zelar pela estrutura vigente temendo por seus
filhos do sistema Tambeacutem reforccedila o sentido de separaccedilatildeo do tempo produtivo
controlaacutevel daquele que se perde em filosofias em tentativa e erro e na experienciaccedilatildeo
demorada do mundo Enfim perdemos a proteccedilatildeo das divindades e de nosso passado a
saber do sagrado que nos definia pela tradiccedilatildeo e deixamos o lugar vago entrada e saiacuteda
de novas ideologias que ao piscar dos olhos envelhecem em sua utilidade
[] o caacutelculo demonstra toda a eficiecircncia natildeo perde tempo com a espera do
inesperado onde natildeo haacute tempo a perder com interpretaccedilotildees onde natildeo
interferem as transferecircncias da anguacutestia [] a utilizaccedilatildeo dos modelos de
identificaccedilatildeo no universo dos fatos inventa espiacuteritos e por muito tempo o ceacuteu
foi povoado de seres metafiacutesicos como colonialismo capitalismo
imperialismo comunismo (LEAtildeO 1977 paacuteg 67)
104 Be sacred prohibited restricted set apart forbidden under atua protection Disponiacutevel em
lthttpmaoridictionaryconzword7504gt Acesso em 04 set 2017
123
Para cada situaccedilatildeo um limite apropriado tanto aqueles louvaacuteveis a serem
almejados quanto os despreziacuteveis a serem execrados e propriamente a esses uacuteltimos
chamariacuteamos de tabus Determinados assuntos natildeo devem ser mencionados Na exceccedilatildeo
das exceccedilotildees quando se precisar tocar no assunto que o toque seja delicado pois eacute toacutepico
sensiacutevel ou que seja riacutespido pois eacute passiacutevel de reprovaccedilatildeo Em ambas as circunstacircncias
preza-se pela brevidade discursiva jaacute que natildeo se deve falar de tal coisa chamariz de mau-
agouro
Com o tempo aprende-se a ignorar aquilo a que natildeo conseguimos dar a devida
atenccedilatildeo ateacute que se cria o haacutebito a tradiccedilatildeo da seguranccedila e do conforto Ao natildeo mencionaacute-
lo natildeo o tornamos presenccedila mas ele o sagrado e o profano estatildeo presentes queremos
isso ou natildeo Deixamos subentendida a pujanccedila posta pelo tema e tememos pelos
descontroles que dali possam se originar num ambiente controlado A existecircncia dos tabus
da tradiccedilatildeo surge concomitantemente agrave tradiccedilatildeo dos tabus mantenedores de um status
quo
Para responder o que eacute o tabu precisaremos pensaacute-lo Um problema com isso estaacute
pois no empecilho moral que eacute pensar sobre um tabu No geral evita-se dispor a respeito
de tal tema em falar sobre ele quanto mais com ou a partir dele Eacute difiacutecil dizer jaacute que no
dito somos convidados a secirc-lo para pensaacute-lo quando o pensamos aproximamo-nos tanto
dele que por fim incorremos em delito ou seja incorremos no proacuteprio tabu ldquolsquoA violaccedilatildeo
de um tabu transforma o proacuteprio transgressor em tabu ()rsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 17)
Esse encontro nos deixa desconfortaacuteveis moralmente estranhos ateacute que natildeo nos
reconhecemos no que nos transformamos
Dizer o ser tem seu risco e muitas vezes o tabu eacute o que natildeo queremos ser Aquilo
que natildeo queremos que seja Ainda que haja uma relativizaccedilatildeo imensa entre certo ou
errado algumas posturas estatildeo tatildeo enraizadas que tendemos a apenas passaacute-las adiante
erigindo praticamente uma cultura do bem e uma do mal daquilo que compreendemos
como mau e bom Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais
ambientes para coibir e incentivar tal e tal comportamento a ponto de se achar terriacutevel
pensar o contraacuterio
124
Os homens105 que incorrem em tabu satildeo estes que se transitam no limiar de uma
existecircncia seja social seja individual A ambivalecircncia na qual habitam torna-os notaacuteveis
negativa ou positivamente isto eacute perceptiacuteveis em meio agrave gama das mesmas decisotildees Da
notabilidade surgem as ponderaccedilotildees reprovaccedilotildees condenaccedilotildees exaltaccedilotildees a saber os
demais passam a responder a eles Acaba que por requisitarem respostas as pessoas natildeo
soacute correspondem como de algum modo satildeo respondidas por esse tabu Ou por partir de
um monstro ou por se originar de um heroacutei o tabu enquanto um misteacuterio parcialmente
acessado revela uma resposta que tanto inspira atitudes como pode servir de modelo de
comportamento No caso essa concepccedilatildeo moralizaria o tabu trabalhando por meio de
paradigmas para preservar um modus operandi um know how de como se pensar o real
[] qualquer um que faz o que eacute proibido isto eacute que viola o tabu se torna ele
proacuteprio tabu Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar natildeo somente
a uma pessoa que fez o que eacute proibido como tambeacutem a pessoas em estados
especiacuteficos aos proacuteprios estados bem como objetos impessoais Qual pode
ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condiccedilotildees
diferentes Soacute pode ser uma coisa a qualidade de excitar a ambivalecircncia dos
homens e de tentaacute-los a transgredir a proibiccedilatildeo
Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa
qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo por que se lhe deve
permitir fazer o que eacute proibido a outros Assim ele eacute verdadeiramente
contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitaccedilatildeo e por esse
motivo ele proacuteprio deve ser evitado (FREUD 2006 paacuteg 25)
Os limites nossa constituiccedilatildeo satildeo tanto sagrados quanto profanos E permeando
as duas instacircncias no limiar habita o ocultamento Natildeo sabemos nossa limitaccedilatildeo ateacute
sermos tentados por ela e arriscarmo-nos em sua borda Quando na interpretaccedilatildeo de
Freud das ideias de Wundt ele disse que ldquoEsse poder [tabu] estaacute ligado a todos os
indiviacuteduos especiais [] a todos os estados excepcionais [] e a todas as coisas
misteriosas como a doenccedila e a morte o que estaacute associado a elas atraveacutes do seu poder de
infecccedilatildeo ou contaacutegiordquo (FREUD 2006 paacuteg 18) e que ldquoAssim os rapazes satildeo tabu em
suas cerimocircnias de iniciaccedilatildeo as mulheres durante a menstruaccedilatildeo e imediatamente apoacutes
o parto assim como os receacutem-nascidos as pessoas enfermas e acima de tudo os mortosrdquo
(FREUD 2006 paacuteg 19) ele nos convida a pensar essa caracteriacutestica de convivecircncia com
o que natildeo sabemos este democircnio incontrolaacutevel e portanto temiacutevel
105 Cabe ressalvar que para os povos antigos da polineacutesia o tabu natildeo eacute uma condiccedilatildeo exclusivamente
humana mas tambeacutem eacute ligado a animais manifestaccedilotildees do clima frutas aacutervores etc
125
Simultaneamente tabu eacute o sagrado algo sempre presente Pelo menos era para
muitos povos antigos que experienciavam a tradiccedilatildeo como a presenccedila da ancestralidade
ou seja eles mesmos seus avoacutes seu passado e seu fundamento Por eles os deuses se
afirmavam como a primeira ascendecircncia genealoacutegica seu parente mais antigo isto eacute o
que funda uma famiacutelia consequentemente um povo Os maoris tecircm na palavra atua o
duplo sentido de deus e ancestral deixando transparecer um passado ativo respondente
nas pessoas e palco ainda de acontecimentos o que difere radicalmente do tempo
estanque e portador de mensagens estanques com o qual estamos acostumados a lidar
contemporaneamente
1 (substantivo) antepassado com influecircncia contiacutenua deus democircnio ser
sobrenatural deidade fantasma objeto de fruto de supersticcedilatildeo ser estranho ndash
embora muitas vezes traduzido como lsquodeusrsquo e agora tambeacutem usado para o Deus
cristatildeo isso eacute um equiacutevoco do significado real Muitos maori traccedilam sua
ancestralidade a partir de atua em sua whakapapa [genealogia (MOORFIELD
Whakapapa)106 literalmente lsquoo fundamento que acontece (MOORFIELD
Whaka107 Papa108)] e satildeo considerados ancestrais com influecircncia em
determinados domiacutenios Estes atua tambeacutem eram uma forma de racionalizar e
perceber o mundo Normalmente invisiacutevel atua pode ter representaccedilotildees
visiacuteveis (MOORFIELD Atua ndash traduccedilatildeo livre)109
353 O que responde o sagrado
Cada resposta cada ensinamento cada aprendizagem estaacute vinculada a uma
tradiccedilatildeo mas cada pessoa objeto animal ou seja ente eacute em si jaacute uma tradiccedilatildeo Somos
106 Disponiacutevel em
lthttpmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakapapaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017 107 Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakaampsearc
h=gt Acesso em 06 set 2017 108 Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=papaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017 109 1 (noun) ancestor with continuing influence god demon supernatural being deity ghost object of
superstitious regard strange being - although often translated as ldquogodrdquo and now also used for the
Christian God this is a misconception of the real meaning Many Māori trace their ancestry from atua in
their whakapapa and they are regarded as ancestors with influence over particular domains These atua
also were a way of rationalising and perceiving the world Normally invisible atua may have visible
representations Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=atuaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017
126
o que pode haver de mais tradicional de noacutes mesmos isso porque nos desdobramos numa
histoacuteria presente que se atualiza no mundo a partir das possiblidades de ser sua
ancestralidade sacra Nesse sentido podemos aqui traccedilar um paralelo com a educaccedilatildeo
como apropriar-se do que eacute proacuteprio o que jaacute somos o que fomos mas ainda vige e o que
seremos pela ousadia de dar um passo adiante criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Dessa forma eacute
possiacutevel compreender de que trata o sagrado sem por isso abrir matildeo de seu caraacuteter de
misteacuterio perene
Contudo natildeo eacute assim que o sagrado se manifesta contemporaneamente mas sob
a eacutegide da religiatildeo e da descrenccedila enquanto portador de inverdades De um modo geral
principalmente no Ocidente a atualidade natildeo crecirc no sagrado como por exemplo na
ciecircncia na miacutedia e na ciecircncia O proacuteprio termo tabu que ldquodenota tudordquo (FREUD 2006
paacuteg 16) permite um outro Qual o outro de tudo mdash Nada Para Freud (2006 paacuteg 16)
o inverso de tabu eacute noa que diz do que eacute comum ordinaacuterio e geralmente acessiacutevel Essa
concepccedilatildeo daacute a entender que somos ordinaacuterios e extraordinaacuterios ao mesmo tempo
1 (partiacutecula) apenas simplesmente ateacute ao acaso ociosamente
infrutiferamente em vatildeo assim que - uma partiacutecula que segue imediatamente
apoacutes a palavra a que se relaciona Indica uma ausecircncia de limitaccedilotildees ou
condiccedilotildees
2 (estativo) estar livre das influecircncias de tapu ordinaacuterio sem restriccedilotildees
vaacutecuo oco (MOORFIELD Noa ndash traduccedilatildeo livre)110
Dizer tabu de tudo estaacute para dizer sagrado de tudo dessa sacralidade profana e
misteriosa Em toda localidade haacute um deus dormindo Do simples da pedra que a crianccedila
brinca agraves grandes obras da humanidade o tempo sagrado natildeo suspende o tempo comum
ao contraacuterio chama atenccedilatildeo agrave fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada
acontece A correria da obrigaccedilatildeo tende a achar que algumas coisas natildeo estatildeo dignas dela
criando juiacutezos de valor certo ou errada da verdade das manifestaccedilotildees
Paralelamente ao dizer do pensador o artista nomeia (HEIDEGGER 1955 paacuteg
51) Dos ruiacutedos faz-se muacutesica das cores pintura ldquopensamento e linguagem satildeo para o
artista instrumentos de uma arte Viacutecio e virtude satildeo para o artista materiais para uma
110 1 (particle) only just merely quite until at random idly fruitlessly in vain as soon as - a particle
following immediately after the word it relates to Denotes an absence of limitations or conditions
2 (stative) be free from the extensions of tapu ordinary unrestricted void Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=noaampsearch=
gt Acesso em 07 set 2017
127
arterdquo (WILDE 1981 paacuteg 7) O poeta nomeia o sagrado Nomear norteia o nume O norte
do sagrado conduz agrave consagraccedilatildeo do mundo e agrave autosagraccedilatildeo no sentido de auscultar no
ordinaacuterio o extraordinaacuterio em repouso Uma resposta se forma deforma a realidade antes
sem nome sem senso de direccedilatildeo ao divino Nomear cerceia nas cercanias entoa o limite
fundador do nome o ancestral ainda presente
O tabu eacute o limite que vigora desde sempre fundamento que delimita Conviacutevio
diaacuterio de todos os homens mas mateacuteria-prima aos poetas e pensadores De modo que o
incorrer em tabu ou ocasiona em decadecircncia e posterior destruiccedilatildeo ou alarga os limites
desvelando o velado A parede da morada do ser eacute rompida ou a casa cai ou ganha-se
uma nova sala e um heroacutei ou um monstro arrombador de portas O sagrado inicia o que o
tabu limita ambos datildeo sentido ao mundo O comeccedilo eacute labiriacutentico que ldquopode se configurar
abertura significa espaccedilo-temporalidade que possa permitir e reunir tudordquo (JARDIM
2000 paacuteg 420)
O limite precisa obrar precisa fazer sentido tem que ser concreto para o limitado
Natildeo eacute arbitraacuterio ele eacute dado pelo real em suas diversas circunstacircncias A arbitrariedade do
limite confecciona barreiras invisiacuteveis gerando colocaccedilotildees muito honestas como quem
traccedilaraacute as barreiras e como mantecirc-las quais os modelos a serem seguidos e evitados para
manter a barreira invisiacutevel O limite eacute necessariamente uma barreira visiacutevel ou melhor
uma localidade que encerra as possibilidades do ser A partir da definiccedilatildeo heideggeriana
do fim no caso da Filosofia fica expliacutecito o finito enquanto a plenitude natildeo mero
esgotamento e enclausuramento do possiacutevel
O antigo significado de nossa palavra lsquofimrsquo (Ende) eacute o mesmo que o da palavra
ldquolugarrdquo (Ort) lsquode um fim a outrorsquo quer dizer lsquode um lugar a outrorsquo O fim da
Filosofia eacute o lugar eacute aquilo e em que se reuacutene o todo de sua histoacuteria em sua
extrema possibilidade Fim como acabamento quer dizer esta reuniatildeo
(HEIDEGGER 1979d paacuteg 72)
Agora como saber se ao quebrar a parede a casa permaneceraacute Soacute agrave medida de
como respondemos agraves questotildees saberemos o que sobraraacute de noacutes Natildeo eacute algo soacute para
poetas e pensadores decerto mas eles estatildeo sempre proacuteximos indicando os limites
provocando-os contando a histoacuteria de seus desbravadores
Sobre o que cabe a cada um haacute um relato de cultura antiga dos maori que dizia
que o chefe da tribo natildeo soprava o fogo com a boca para natildeo transmitir o sagrado agrave carne
128
cozida e matar quem a comesse transformando em chefe quem chefe natildeo era (FREUD
2006 paacuteg 22) Claro que isso tambeacutem poderia ocasionar num novo chefe Isto conflita
com a concepccedilatildeo de Freud de os homens se sentirem tentados Dentro desta loacutegica do
controle ele soacute pode ver como tentaccedilatildeo o que os antigos viam como presenccedila (qualquer
um que incorre em tabu eacute tabu) Tabu natildeo eacute apenas um exemplo para ser evitado e
adorado Quem eacute rei sempre foi rei Quem seraacute rei sempre foi rei Outro que tentasse ser
rei alargaria seu ser para aleacutem de seu proacuteprio ocasionando no fim para aleacutem da finitude
cegueira paralisia ou morte
Se consigo comer a carne em tabu do liacuteder se consigo encontrar o Graal ou tirar
a espada da pedra natildeo importa pois soacute consigo na medida em que jaacute sou a possibilidade
de tirar a espada da pedra Trata-se de destino natildeo de vontade Trata-se de apropriar-se
do que eacute proacuteprio natildeo de tentar ser algo que natildeo somos Trata-se de achar o que natildeo
podemos perder natildeo de possuir o que jamais podemos ter
Respondemos como quem casa ser e ente linguagem e liacutengua sagrado e profano
Concerne arriscar a medida ao diaacutelogo e agrave tensatildeo que se faz presenccedila Isso nos remete agrave
etimologia de responder como assegurar novamente seu compromisso com a questatildeo
Distinto de resposta responder vem do latim respondeo cujo significado se assemelha
muito ao sentido moderno da palavra (HOUAISS 2009a Responder)
Todavia vimos que haacute muito mais nas repostas do que crecirc nossa vatilde filosofia E jaacute
em latim podiacuteamos encontrar o verbo que acompanhado de re descambou em responder
Esse verbo nos falava de outra postura perante o mundo mas conhecida nossa ldquo1
Comprometer-se noivar 4 Prometer ou afirmar solenemente dar a palavra sobre dar
uma garantia derdquo (GLARE 1968 paacuteg 1809 ndash traduccedilatildeo livre)111 Do particiacutepio passado
de spondeo sponsus temos em portuguecircs esposo esposa e esponsais A relaccedilatildeo entre
casamento e responder daacute-se no compromisso firmado no sagrado reacutedeas cavalo e
cavaleiro da carruagem dos seres Em concoacuterdia entre o limite e o ilimitado esposamos
na localidade onde habita a questatildeo e ratificamos nosso compromisso com ela
Ainda que nem todo homem seja poeta ou pensador todos estatildeo sujeitos ao
questionamento Todos em alguma medida reafirmam seu compromisso com o
111 1 To give a pledge or under taking 4 To promise or asserts solemnly give onersquos word about give a
assurance of
129
questionar O sagrado natildeo eacute posse de ningueacutem sua natureza eacute tatildeo extraordinaacuteria quanto
gregaacuteria e fundadora dos limites
[] Eacute deus desconhecido
Ele aparece como ceacuteu Acredito mais
que sejam assim Eacute a medida dos homens
Cheio de meacuteritos mas poeticamente
o homem habita esta terra [] (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacutegs
256-257 ndash traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo)112
Num paralelo mitoloacutegico Iacutecaro natildeo se satisfaz em sair do labirinto mas leva-o
aonde quer que vaacute (JARDIM 2000 paacuteg 424) Natildeo eacute uma decisatildeo sua natildeo eacute uma
adequaccedilatildeo a um modelo Sua proacutepria praacutetica define quem ele eacute uma decisatildeo do real Sua
desmedida incorrer em tabu eacute a proacutepria condiccedilatildeo heroica e monstruosa seu fim sua
plenitude
Em sua correspondente grega spondeo aparece como σπένδω com um sentido
parecido com um sentido digamos mais concreto Em vez de circunscrever o
compromisso ele diz do ato que o precede ldquofazer uma oferenda liacutequida (porque antes de
beber o vinho uma porccedilatildeo foi derramada na mesa no coraccedilatildeo ou no altar) [] fazer
libaccedilotildeesrdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σπένδω ndash traduccedilatildeo livre)113 aquele gole para o
santo que a cultura popular tanto conhece
Seja pela muacutesica na meacutetrica espondeu seja pelo vinho cor de sangue vertido agrave
terra respondemos em mutiratildeo o que o mito evocava em palavra e rito A cada resposta
em compromisso ratificado com a localidade mais solitaacuteria responde-se com a bagagem
da tradiccedilatildeo e com a parte que nos cabe nosso proacuteprio Assim o tabu concerne a palavra
que nos forma e enforma apropriaccedilatildeo nomeada pelo poeta dito pelo pensador o sagrado
que eacute sendo Neste sentido poeacutetico e mitologicamente o homem habita pois em casa que
eacute tabu as coisas tecircm memoacuteria a fala que natildeo cessa em lembranccedila mas permanece a dizer
no tempo
112 [] Ist unbekannt Gott Ist er offenbarwie der Himmel Dieses Glaubrsquoich eher Der Mensch Maas
istrsquos Voll Verdienst doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde [] 113 make a drink-offering (because before drinking wine a portion was poured on the table hearth or altar)
[hellip] make libations Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dspe2
Fndwgt Acesso em 08 set 2017
130
O mito que eacute tabu nomeia o sagrado agrave medida que se escuta a fala do tempo O
que eacute o sagrado senatildeo o proacuteprio do tempo a presenccedila do presente uma teoria fundamental
do real mdash O fundamento da casa o que origina e permite a permanecircncia do originaacuterio
na plenitude da habitaccedilatildeo Trazer para extraordinaacuterio a fala do comum esquecido e ao
banal o maravilhoso que natildeo se escuta eis talvez um belo sentido para um ensino poeacutetico
131
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Natildeo basta definir poeacutetica para falar de uma educaccedilatildeo poeacutetica Quando se firmou
o compromisso de discutir sobre o ensino e a filosofia optou-se por uma discussatildeo que
se desse de modo poeacutetico tornando uma fala sobre algo um dito em conjunto com alguma
coisa Promoveu-se pois um diaacutelogo com as disciplinas em questatildeo poeticamente Nesse
vieacutes a mera definiccedilatildeo fugiria da perspectiva esteacutetico-filosoacutefica e estaria aqueacutem do ofiacutecio
de reunir no ato de ensinar o dizer do filoacutesofo e o nomear do poeta
ldquoPoeticamente o homem habitardquo (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacuteg
257) eacute quase um lema versa o leme deste barco Natildeo se trata de reconceituar o ensino eacute
preciso voltar a ensinar pela primeira vez natildeo se trata de fazer histoacuteria da filosofia apenas
mas de tambeacutem filosofar sua histoacuteria transgredindo a mensagem da tradiccedilatildeo ao mesmo
tempo em que se presta a ela a devida homenagem Habitar de modo poeacutetico eacute natildeo deixar
as linhas do pensamento serem declamadas prosaicamente
Fiz de mim o que natildeo soube
E o que podia fazer de mim natildeo o fiz
O dominoacute que vesti era errado
Conheceram-me logo por quem natildeo era e natildeo desmenti e perdi-me
Quando quis tirar a maacutescara
Estava pegada agrave cara
Quando a tirei e me vi ao espelho
Jaacute tinha envelhecido
Estava becircbado jaacute natildeo sabia vestir o dominoacute que natildeo tinha tirado
Deitei fora a maacutescara e dormi no vestiaacuterio
Como um catildeo tolerado pela gerecircncia
Por ser inofensivo
E vou escrever esta histoacuteria para provar que sou sublime (PESSOA 1997 paacuteg
124)
Naturalmente que estamos cheios de viacutecios Cheios de costumes acostumados e
encostados no haacutebito de se ensinar algo e de como encarar a filosofia Essa forma de
ensino na qual nos encontramos tem se mostrado desgastada e passiacutevel de incisivas
criacuteticas no que concerne a formar cidadatildeos pessoas mais humanas e em uacuteltima instacircncia
mais felizes Isso tudo eacute um ponto de interrogaccedilatildeo quanto agrave eficiecircncia Entretanto no que
diz respeito ao consumismo e agrave adesatildeo a uma loacutegica de mercado desenvolvimentista e
tecnocrata a educaccedilatildeo contemporacircnea de modo geral apresenta-se muito eficaz
132
Como uma maacutescara que se confunde com rosto os homens estatildeo agrave deriva em sua
existecircncia sem mais se perguntarem sobre si mesmos encarando tal postura como
improdutiva Vale mais a pena um conhecimento uacutetil e uma vida mansa mas segura
deter o controle do que arriscar novos caminhos Ainda que se decirc a entender o contraacuterio
a aparente sandice dessa uacuteltima assertiva natildeo ignora as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas e os altos
investimentos em infraestrutura que ocorrem em alguns setores da economia em algumas
partes do mundo poreacutem chama atenccedilatildeo agrave inovaccedilatildeo do novo natildeo da mesmice Novas
tecnologias natildeo necessariamente satildeo outras tecnologias no mais das vezes eacute a mesma
loacutegica impositiva que submete o λόγος dos demais discursos agrave vontade da teacutecnica
Navegar natildeo eacute mais preciso viver sim Viver como quem segue o fluxo da mareacute
e se adequa ao sobe e desce das ondas a fim de que o barco natildeo vire Vital mas natildeo
essencial Os homens precisam da utilidade urgem por seguranccedila por mais que tenham
que abrir matildeo de certa liberdade Eacute pois mister viver em nenhum momento se propocircs
aqui algo diferente disso que se ignorassem as condiccedilotildees baacutesicas para a vida para o
ensino e para o pensamento
Acontece que natildeo soacute de patildeo vive o homem Natildeo eacute possiacutevel que a medida das coisas
seja apenas o para quecirc elas servem Pobre das baratas Elas natildeo prestam logo podem ser
eliminadas A filosofia hoje natildeo serve para nada ou pouco logo vamos dar cabo dela
ou deixar soacute a rabiola para ser lembrada quase nunca no aacutelbum de fotografias da histoacuteria
Tal foacutermula poderia ser empregada com outros animais dos quais jaacute achamos que
exploramos tudo mas tambeacutem ideologias praacuteticas povos culturas faixas etaacuterias e por
aiacute vai
Por esse motivo o que permanece no fluxo das mudanccedilas eacute a pergunta que norteia
o primeiro capiacutetulo deste trabalho Faz parte do tempo inovar e definhar e natildeo caberaacute a
noacutes decidir sobre isso No entanto o que tange o possiacutevel haacute de ser ousado A serventia
de uns eacute a inutilidade de outros e a verdade de outrora foi esquecida Algumas contudo
cortam profundo na memoacuteria e sentidos vigem A tradiccedilatildeo se funda na ranhura do tempo
que ainda sangra
Ou porque natildeo tem cura ou por entalharmos o corpo mnemocircnico com
conhecimentos a ferida aberta da tradiccedilatildeo eacute nossa identidade no tempo e espaccedilo Nosso
modo de pensar agir e sentir nossas preferecircncias e desgostos nossos temores e louvores
nossos discursos e linguagem satildeo frutos de algo que foi passado de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo
133
Normalmente natildeo temos em mente que quando vemos uma fotografia antiga um livro
empoeirado ou um conceito anacrocircnico satildeo nossos pais e avoacutes surrando verdades
Vocecirc eacute o herdeiro
Filhos satildeo os herdeiros
pois pais morrem
Filhos ficam e floram
Vocecirc eacute o herdeiro (RILKE 2012 paacuteg 66 ndash traduccedilatildeo livre)114
Somos e natildeo somos o que fomos e seremos aquele diz respeito agrave tradiccedilatildeo este ao
ensino Tanto um quanto o outro estatildeo intrinsecamente relacionados de maneira que
estudar um tem jaacute imiscuiacutedo o estudo do outro Isto significa que perguntar-se pelo ensino
eacute responder pela tradiccedilatildeo e repensar a tradiccedilatildeo propotildee olhar o ato de ensino com a visatildeo
inquiridora que sabe e natildeo sabe
Compreende-se por ensino o que se apreende por tradiccedilatildeo Um ensino mecacircnico
precisa de uma tradiccedilatildeo tecnocrata da mesma forma que reconhecer no dito o eco poeacutetico
eacute natildeo encarar a educaccedilatildeo restrita agrave transmissatildeo do conhecimento nem somente palco de
avaliaccedilotildees e encenaccedilotildees de aprendizagens Refere-se agrave dignidade dos caminhares no
caminho por mais tortos que possam ser Eacute um dar-se ao risco Natildeo vale a pena para
passar na prova natildeo vale a pena para apertar o parafuso nem operar o paciente Eacute digno
sem ser aplicaacutevel aproveitaacutevel sem o aval aproveitador da norma Eacute da tradiccedilatildeo mas
ainda natildeo eacute tradicional
Mar Portuguez
Oacute mar salgado quanto do teu sal
Satildeo lagrimas de Portugal
Por te cruzarmos quantas matildees choraram
Quantos filhos em vatildeo resaram
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso oacute mar
Valeu a pena Tudo vale a pena
Se a alma natildeo eacute pequena
Quem quer passar aleacutem do Bojador
Tem que passar aleacutem da dor
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu
Mas nelle eacute que espelhou o ceacuteu (PESSOA 1934 p 64)
114 Du bist der Erbe Soumlhne sind die Erben denn Vaumlter sterben Soumlhne stehn und bluumlhn Du bist der
Erbe
134
O desbravamento pode ser feito de diversas maneiras Haacute quem pegasse da direccedilatildeo
e saiacutesse oceano afora Em sala de aula uma das formas de descobrir eacute sem duacutevidas por
meio do desdobramento de um pensamento questionador Perguntar agraves e ser perguntado
pelas questotildees que nos interpelam
Natildeo eacute qualquer caminhar mas o filosoacutefico Natildeo soacute por estar escancarado no
tiacutetulo mas principalmente pelo proacuteprio estigma da filosofia que ela foi inquirida para dar
prosseguimento ao incocircmodo deixado pela tradiccedilatildeo e pelo ensino Sob as alcunhas de
confusa e abstrata ela permanece ainda um bastiatildeo de criaccedilatildeo e de pensamento frente agraves
demandas por soluccedilotildees objetivas e praacuteticas Relegada ao curriacuteculo escolar e agrave caacutetedra
acadecircmica ela natildeo eacute a mesma da aacutegora claacutessica decerto Em tempos digitais e impessoais
como o nosso a filosofia surge sendo uma vaacutelvula de escape no miacutenimo Seu potencial eacute
do tamanho de seu desafio dar sentido ao insensiacutevel dar agrave tradiccedilatildeo o pensamento devido
e ao ensino o cuidado esperado
Contudo a filosofia natildeo estaacute agrave parte do mundo logo tambeacutem tem caracteriacutesticas
dele inclusive aquelas que a princiacutepio se dispotildee a problematizar Por esse motivo
conveacutem se perguntar pelo ser da filosofia A matildee de todas as ciecircncias tornou-se parte do
conhecimento cientiacutefico como isso foi possiacutevel Tida por obra de eleitos enclausurados
numa torre de marfim sem relevacircncia social e a sobreviver de um prestiacutegio decadente de
eras devassadas o ldquoamor ao saberrdquo padece por seacuteculos de erudiccedilatildeo metafiacutesica de
categorizaccedilotildees e hierarquizaccedilotildees e em uacuteltima instacircncia por ter sido uma das responsaacuteveis
por suplantar a verdade mito-poeacutetica em prol da razatildeo
Agrave exceccedilatildeo do excesso a filosofia come o que plantou Sua origem em Platatildeo tem
traccedilos transgressores e perversos ao mesmo tempo podendo ter influenciado seus
praticantes a exercer uma segregaccedilatildeo ideoloacutegica Somente quem saiacutesse da caverna das
opiniotildees dos pensamentos ditos rasos e sensiacuteveis da δόξα e adentrasse o νοῦς a
contraparte ideal da existecircncia seria digno dela Com isso poetas pensamentos do
subsolo revelaccedilotildees miacutesticas e tudo o que natildeo se adequasse ao raciociacutenio loacutegico-formal
foram postos em escanteio e perderam seu teor de verdade para assumir contornos
ficcionais pitorescos quando natildeo falaciosos
A proposiccedilatildeo de questionar a filosofia desenrola-se pois num filosofar outro
Concebe um pensamento que reconhece no ser algo de fluido de paradoxal e de dialoacutegico
A fim de tentar abarcar o mundo com as matildeos mesmo suas camadas aparentemente
135
contraditoacuterias esse risco do pensar responde aos mais diversos incocircmodos Do sono agrave
vigiacutelia quanto da morte agrave vida sem os opor sem os solucionar dispotildee-se a aceitar o
equiacutevoco inerente assim como quem anda sobre ovos
Olhar para frente e para traacutes Ao enveredar pela tradiccedilatildeo ouvem-se muitas vozes
a dizer e nomear isto que se apresenta no tempo Ateacute o pensamento pode ser pensado A
questatildeo entretanto natildeo eacute algo de nebuloso e eteacutereo entre cem e sem sentidos Ela situa o
ser no espaccedilo com suas respostas e perpetua a sagraccedilatildeo da linguagem ao ser respondida
Hipoteticamente se a filosofia estaacute restrita aos filoacutesofos o pensamento eacute de todos e de
ningueacutem O caminhar singular de cada um ao lidar com as questotildees resgata o cuidado
primordial das civilizaccedilotildees receacutem-nascidas cujo mundo se mostrava pela primeira vez e
precisava ter um nome
A palavra
Prodiacutegio distante e louco
Minha margem agrave sua eacute pouco
Aguardei ateacute a parda Parca
E encontrei o nome em sua marca ndash
Eu pude atecirc-lo com teso
Para brilhar e luzir preso
Ansiei por bom vindouro
Com fraacutegil e raro tesouro
Toda via Ela me dizia
mdash Nada haacute aqui e a terra eacute vazia
Eis que escorre entre meus dedos
E agrave paacutetria dou enganos ledos
Triste entatildeo soube abdicar
mdash Secirc sem palavra vaacutecuo e ar (GEORGE apud HEIDEGGER 2003 p 124 ndash
traduccedilatildeo livre)115
Uma postura proacutepria perante a tradiccedilatildeo da filosofia engendra um trato proacuteprio com
o modo de se pensar A morte natildeo cabe nos dicionaacuterios temos que fazer a experiecircncia de
115 Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die
graue norn Den namen fand in ihrem born ndash Drauf konnt ichs greifen dicht und stark Nun bluumlht und
glaumlnzt es durch die mark Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie
suchte lang und gab mir kund bdquoSo schlaumlft hier nichts auf tiefem grundldquo Worauf es meiner hand entrann
Und nie mein land den schatz gewann So lernt ich traurig den verzicht Kein ding sei wo das wort
gebricht
136
morrermos um pouco para saber o ser que se mostra no falecimento Tampouco se daacute a
linguagem por encerrada nos livros didaacuteticos da histoacuteria Natildeo satildeo os verbetes que ganham
novas entradas mas o mundo que brota significados antes ignorados O ofiacutecio da postura
poeacutetica e pensadora no mundo eacute encontrar as palavras que faccedilam jus ao descobrimento
do mesmo local onde habitamos e somos habitados constante e incessantemente Essa eacute
a proposta esse eacute o desafio isto eacute um convite a um ensino poeacutetico
137
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APEcircNDICE
TREcircS EXPERIEcircNCIAS POEacuteTICO-FILOSOacuteFICAS
Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira
Produto didaacutetico apresentado ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal
de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca
CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre
Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto
Rio de Janeiro
Outubro de 2017
151
RESUMO
Trecircs experiecircncias poeacutetico-filosoacuteficas
Apresentaccedilatildeo planejamento desenvolvimento e criacutetica de trecircs experiecircncias de
filosofia com uma perspectiva poeacutetica Elas foram pensadas para serem feitas a princiacutepio
com crianccedilas num ambiente de sala de aula Num primeiro movimento eacute exposta parte
de um filme paroacutedia de Frankenstein e discute-se sobre as limitaccedilotildees de nossa vontade
Num segundo movimento discute-se o que eacute ser perguntando a crianccedilas sobre o exerciacutecio
de ser crianccedila Num terceiro movimento realizado tanto com crianccedilas quanto com jovens
em pares uma pessoa eacute vendada e requisitada a guiar a outra pessoa discutindo-se com
isso nosso apego ao controle a relaccedilatildeo de confianccedila estabelecida aceitaccedilatildeo do equiacutevoco
Por fim eacute patente a existecircncia singular que cada crianccedila jovem e ateacute adulto possuem
Suas capacidades inventivas questionadoras aleacutem e aqueacutem dos preconceitos ou do
demasiado zelo com eles Nesse sentido arriscar-se e aceitar o provaacutevel tropeccedilo
apresenta-se como caracteriacutestica essencial neste caminhar
Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem
152
ABSTRACT
Three poetic-philosophical experiences
Presentation planning development and critic of three experiences of philosophy
with a poetic perspective They were designed to be done at first with children in a
classroom environment In a first movement part of a film Frankensteinrsquos parody is
exposed and the limitations of our will are discussed In a second movement it is
discussed what is to be asking children about the exercise of being a child In a third
movement carried out both with children and with young people in pairs a person is
blindfolded and asked to lead the other person discussing with this our attachment to
control the relationship of trust the acceptance of misunderstanding Finally it is clear
the unique existence that each child young and even adult have Their inventive
questioning abilities beyond prejudices or over-zeal with them In this sense risking and
accepting the probable stumbling is presented as an essential characteristic in this walk
Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language
153
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
Figura 1 ndash Calvin e Haroldo 165
Figura 2 ndash A morte 166
154
SUMAacuteRIO
Apresentaccedilatildeo 155
Quando a vida nos diz natildeo 157
Objetivo geral 157
Objetivo especiacutefico 157
Proposta para a atividade 158
Fluxograma 160
Relato da experiecircncia 161
Reflexatildeo com a experiecircncia 169
Exerciacutecios de ser crianccedila 171
Objetivo geral 171
Objetivo especiacutefico 171
Proposta para a atividade 171
Fluxograma 174
Relato da experiecircncia 174
Reflexatildeo com a experiecircncia 177
A cegueira da visatildeo 178
Objetivo geral 178
Objetivo especiacutefico 178
Proposta para a atividade 178
Fluxograma 180
Relato da experiecircncia 180
Reflexatildeo com a experiecircncia 183
Consideraccedilotildees finais 186
Referecircncias 188
155
Apresentaccedilatildeo
A volta da filosofia para as salas de aula alcanccedilou as seacuteries iniciais do
Fundamental Ainda um movimento isolado acontece em alguns locais do Brasil e mais
especificamente no Rio de Janeiro Em Duque de Caxias na Escola Municipal Joaquim
da Silva Peccedilanha juntamente com o Projeto de Extensatildeo Em Caxias a filosofia en-caixa
do Nuacutecleo de Estudos Filosoacuteficos da Infacircncia do PropedUerj coordenado pelo professor
Walter Kohan onde este trabalho foi apresentado o ensino de filosofia com crianccedilas tem
se mostrado como resposta116 agrave carecircncia reflexiva e questionadora jaacute em tenra idade
diante do mundo
O iniacutecio do projeto data de 2007 e desde entatildeo tem gerado um importante papel
na divulgaccedilatildeo e solidificaccedilatildeo da filosofia com crianccedilas Durante esses anos podemos
contar com o apoio da Secretaria de Educaccedilatildeo de Duque de Caxias da Faperj aleacutem da
direccedilatildeo das escolas seus professores e pesquisadores e alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-
graduaccedilatildeo Minha participaccedilatildeo eacute recente Inicia-se em 2013 quando comecei a frequentar
os grupos de discussatildeo Do segundo semestre de 2013 ateacute 2015 atuei diretamente na
escola Joaquim da Silva Peccedilanha coordenando e participando das experiecircncias
filosoacuteficas
Inicialmente o desenvolvimento destas atividades foram pensadas para estarem
sujeitas agrave brevidade de uns tempos de aula e voltadas para crianccedilas entre 8 e 11 anos
Entretanto conveacutem natildeo soacute ater-se ao desdobramento do tema mas a outros elementos
que possam convidar a pensar sobre o assunto ainda que indiretamente natildeo se
restringindo a faixas etaacuterias A questatildeo natildeo tem idade Ou seja o planejamento estaraacute
sempre aqueacutem da execuccedilatildeo e das nuances de cada contexto servindo apenas como guia
dentre uma multiplicidade de caminhos Conveacutem ressaltar que todos os responsaacuteveis
pelas crianccedilas estavam cientes das atividades propostas e que poderiam ser realizadas
filmagens fotografias e que os nomes de seus filhos poderiam ser expostos
116 O significado desta palavra aqui natildeo se restringe agrave dar uma soluccedilatildeo mas vista sua tradiccedilatildeo como ldquorepor
recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009 Resposta) promovendo a cada responder um recolocar-se
naquilo que nos instiga Nesse sentido ao inveacutes de encarar uma resposta como o que encerra a questatildeo
passa-se a lidar com ela por aquilo que apresenta novas possibilidades renovando e inovando
156
Ainda antes de dar iniacutecio propriamente eacute preciso sugerir que isto aqui natildeo se
refere ao primeiro contato com a turma nem ao uacuteltimo O pensamento natildeo comeccedila aqui
nem somos o suprassumo do saber por estarmos a fazer tais e tais atividades Mais vital
eacute a forma como a chamada experiecircncia filosoacutefica se organiza diferentemente de uma aula
tradicional propondo natildeo soacute ideias estranhas agrave uma disciplina usual como tambeacutem uma
praacutetica proacutepria e singular
A fim de que a atividade se desenvolva conveacutem que algum eacutethos comum se
estabeleccedila Tambeacutem sugerimos fortemente que a participaccedilatildeo de todos seja incentivada
mas natildeo exigida caso o aluno natildeo queira sem demanda por conhecimentos preacute-
estabelecidos com base no certo ou errado Dessa maneira dirimindo o iacutempeto por
reproduzir conceitos (para uma avaliaccedilatildeo por exemplo) ao estabelecer um espaccedilo de
conhecimento muacutetuo em que as estranhezas quanto agraves pessoas agrave forma de aula ou ao tipo
de tema sejam ao menos toleradas Isso porque em geral o aluno espera estar sujeito a
ameaccedilas de reprovaccedilatildeo consequentemente desqualificaccedilatildeo no que diz respeito a seu
meacuterito na resposta ou confia demasiadamente na autoridade do professor ou na voz da
turma como apelo demagoacutegico Embora seja improvaacutevel desfazer todas as falaacutecias
comuns do dia a dia educacional pelo menos o questionamento acerca delas precisa estar
em voga enquanto fundamento para erigir este trabalho
Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a
realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da
lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de
pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de filosofia como
um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das
experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que
natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas
157
Quando a vida nos diz natildeo
Objetivo geral
A partir de dinacircmicas filmes e trechos de livros pretende-se construir
conjuntamente com as crianccedilas uma postura questionadora diante do mundo
perguntando-se pelos porquecircs de determinados haacutebitos e trazendo agrave tona grandes temas
filosoacuteficos como a verdade a vontade e ateacute a morte atraveacutes da proacutepria realidade e
experiecircncias comuns da idade
Objetivo especiacutefico
Propotildee-se apresentar um trecho do filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton
Uma paroacutedia em animaccedilatildeo de Frankenstein com cerca de 20 minutos de duraccedilatildeo que
conta a relaccedilatildeo de um garoto com seu cachorro bruscamente interrompida por um
acidente fatal e a posterior reanimaccedilatildeo do cadaacutever Com isso apresentamos a relaccedilatildeo do
homem com a morte isto eacute a negaccedilatildeo do homem em morrer concomitante agrave sua vontade
de controlar a vida
Uma analogia mais simples e direta menos terriacutevel com dramas psicoloacutegicos de
um menino afeito a ciecircncias que perdeu seu amigo de estimaccedilatildeo e tenta recuperaacute-lo Esse
deslocamento do palco dos questionamentos do claacutessico literaacuterio para o curta metragem
de animaccedilatildeo pretende a empatia dos alunos abrindo um canal importante para o
desdobramento filosoacutefico apropriado
158
Proposta para a atividade
Com as estruturas baacutesicas para a apresentaccedilatildeo de filmes propomos dois tempos
de 45 minutos diluiacutedos em duas semanas nos quais os primeiros 10 minutos seriam para
trazer a disposiccedilatildeo da turma para a atividade Sabe-se laacute o que mais ocorreu se um recreio
agitado ou se uma aula monoacutetona Esse eacute o momento de perceber se a atividade deve
prosseguir ou se seraacute preciso deixaacute-la para outro momento a fim de trabalhar um
questionamento pujante Uma sugestatildeo eacute utilizar os proacuteprios afazeres burocraacuteticos ou
estruturais como proecircmio Por exemplo a arrumaccedilatildeo das carteiras em roda ou uma
simples chamada pode servir de chamariz para esse instante
Dando sequecircncia agrave introduccedilatildeo agora cabe apresentar o tema o que natildeo precisa
ser feito secamente Recapitulando questiona-se a ideia do homem pelo homem como
um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser diagnosticada e curada o humano torna-
se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma infinidade de predicativos que validam
o sujeito homem Pergunta-se entatildeo se nossa ideia de homem passa a ser o homem
Como introduccedilatildeo solicitaria que cada um pensasse brevemente numa palavra
conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado na pergunta ldquoO que eacute
lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo Nada mais do que 5 minutos Em seguida um de cada vez seria
requisitado a pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito poreacutem
sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido Caso a turma seja mais tiacutemida uma possibilidade
eacute comeccedilar com vocecirc mesmo aiacute sim desenvolvendo brevemente o motivo
Independentemente de como a turma corresponder a participaccedilatildeo do professor faz parte
de uma posiccedilatildeo dialeacutetica a diferenccedila estaacute na importacircncia que eacute devotada a ele Espera-se
que 10 minutos sejam o suficiente para tal Independentemente do comportamento da
turma como a fala eacute livre e incentivada a tendecircncia agraves vozes simultacircneas eacute grande Por
isso introduzimos o que chamamos de a ldquobola da vezrdquo uma bolinha que ditava quem
detinha a palavra para falar pedia-se a bola bastando levantar a matildeo
O segundo momento refere-se agrave suspensatildeo dos porquecircs Solicite que os alunos
pensem se manifestem mas natildeo digam seus motivos Isto daacute ensejo a um proacuteximo estaacutegio
da experiecircncia filosoacutefica aleacutem de interromper o fluxo esperado haja vista que teremos
os mais diversos exemplos mantendo a atenccedilatildeo por meio da curiosidade e ansiedade
159
Ao teacutermino do momento inicial estaacute na hora da exibiccedilatildeo do curta Conveacutem
chamar atenccedilatildeo de que o mesmo eacute um desdobrar do assunto anterior Tambeacutem eacute
interessante notar as expressotildees conversas e impressotildees da turma durante a exibiccedilatildeo
embora natildeo ache aconselhaacutevel deter-se por demais nisso com o risco de cair em
psicologias comportamentais caso natildeo seja sua aacuterea de domiacutenio
Passados 45 minutos do iniacutecio da atividade eacute feita uma rodada geneacuterica sobre as
opiniotildees Se gostaram e por que se o filme correspondeu agrave palavra-som-gesto de cada
um se houve empatia com a personagem etc Dependendo da turma os minutos finais
podem transcorrer sem muitos problemas Poreacutem caso haja poucas falas cabe ao
professor dar sua breve contribuiccedilatildeo explorando as privaccedilotildees de se querer algo e de poder
esse algo enquanto abre caminho para o fim da aula
Encerrando o primeiro dia seria solicitado que pensassem na pergunta ldquoO que eacute
lsquosimrsquo para vocecircrdquo cujas respostas agora escritas deveriam ser trazidas no encontro
seguinte A pergunta pela afirmaccedilatildeo sofre duas influecircncias imediatas o anterior ldquonatildeordquo e
os dizeres do filme sobre o assunto Isso deve movimentar as opiniotildees Ainda que os
alunos natildeo cumpram a tarefa o esforccedilo para se dispor a inquirir sobre a temaacutetica foi feito
pois tanto as perguntas como o Frankenwenie insistem nas referecircncias da vontade do
homem com a realidade reforccedilando o argumento
Na semana seguinte os primeiros 10 minutos se assemelhariam aos do uacuteltimo
encontro Os 15 minutos seguintes retomariam as respostas escritas ou natildeo a respeito do
ldquosimrdquo se se correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do
ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme responderia ao ldquonatildeordquo
e ao ldquosimrdquo Nesse momento os exemplos da induccedilatildeo satildeo revistos confirmados
descartados adaptam-se aos novos posicionamentos dando unidade agrave atividade Um
tempo tambeacutem utilizado para ambientar os alunos na discussatildeo Por fim cabe uma
interpretaccedilatildeo sua sobre como a personagem lida com a morte e o porquecirc o que parte e o
que permanece assunto desenvolvido no tema Quanto a isso conveacutem uma breve
explanaccedilatildeo
A explanaccedilatildeo deve alcanccedilar de 10 a 15 minutos Eacute o momento de assumir a
responsabilidade de ter levantado o toacutepico e de fato participar do diaacutelogo Sem respostas
prontas mas com sua opiniatildeo sincera embasada e digna de ser exposta O caminho jaacute foi
traccedilado natildeo se chegaraacute ao fim mas eacute preciso caminhar Pela explanaccedilatildeo se reforccedila a ideia
160
de que natildeo haacute soluccedilotildees faacuteceis mas que nos eacute requisitado pensar e se posicionar por mais
breve por mais incerto que seja buscando o provaacutevel que supomos ser
Nos minutos finais propotildee-se que todos escrevam num papel uma frase afirmativa
ou interrogativa um verso ou um desenho algo para dizer a esse menino retratado no
filme Quem assim desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez O epiacutelogo almeja
essa proximidade quase iacutentima entre cada aluno e a personagem jaacute que ambos teriam
vivenciado situaccedilotildees semelhantes Ratifica o concreto dos pensamentos e sentimentos
expostos no filme em comunhatildeo com o que foi pensado e sentido pelos expectadores
Como a personagem natildeo responde ao recadinho revela-se mais uma vez o caraacuteter sem
resposta da argumentaccedilatildeo sem desmotivar a accedilatildeo perante ao que natildeo dispomos de
controle Aproveite para aconselhar fortemente a quem natildeo assistiu ao filme por completo
que assim o faccedila
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar o tema e solicitar que cada um pensasse brevemente numa
palavra conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado
na pergunta ldquoO que eacute lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo ndash 5 minutos
3 Pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito
poreacutem sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido ndash 10 minutos
4 Exibir o curta ndash 25 minutos
5 Pensar e escrever ldquoO que eacute lsquosimrsquo para vocecircrdquo ndash para casa
6 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
7 Retomar as respostas escritas ou natildeo a respeito do ldquosimrdquo se se
correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do
ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme
responderia ao ldquonatildeordquo e ao ldquosimrdquo ndash 15 minutos
161
8 Expor um comentaacuterio participando do diaacutelogo ndash 10 a 15 minutos
9 Escrever num papel uma frase afirmativa ou interrogativa um verso ou
um desenho algo para dizer a esse menino retratado no filme Quem assim
desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez ndash minutos finais
Relato da experiecircncia
Terminado o breve desenho animado perguntamos o que acharam do filme se
gostaram o que gostaram e a maioria dos alunos respondeu afirmativamente Sem
demora a conversa ganhou espaccedilo nos silecircncios iniciais ora longos ora breves a
depender da turma
Primeiramente o que apareceu nas opiniotildees gerais foi a relaccedilatildeo do menino com o
cachorro Em duas turmas disseram que o fato de terem ressuscitado o cachorro foi uma
coisa boa no filme Na turma 502 a Katlem natildeo fala diretamente de ressuscitar mas a
relaccedilatildeo menino e cachorro se apresenta como siacutentese de uma possiacutevel oposiccedilatildeo agrave morte
pois juntos eles enfrentam a separaccedilatildeo e o fim e no filme saem vitoriosos Seria a morte
uma inimiga a ser subjugada ldquoQuando o menino arremessou a bola e a bola foi laacute pra
cima eu achei que o cachorro gostava muito do Vitor [nome do garoto do filme] e ele
gostava muito dele e ele natildeo merecia morrerrdquo
Estabeleceu-se a correspondecircncia do presente o que aparentemente temos e a
morte o que aparentemente natildeo temos o controle fronteira tecircnue guiada pelas aparecircncias
Na turma 501 depois das impressotildees iniciais decidimos ser mais diretos e caminhar no
limite mencionado Perguntamos ldquoO Luiz [um aluno] disse que o bicho mesmo morto se
mexe [] A morte natildeo passa uma ideia lsquoparadarsquo Como se mexer se estaacute mortordquo
ldquondash Por causa do choquerdquo Notamos que muitas pessoas responderam e ainda
tentaram detalhar os processos teacutecnicos Algumas ateacute como o Miqueias achavam que o
principal no filme era a experiecircncia cientiacutefica justificada nos comentaacuterios a respeito de
quantos volts tem um raio (o Luiz falou o valor com tanta certeza que todo mundo
acreditou) referecircncia agravequele ldquoaparelho que eu vi num filmerdquo (a referecircncia a filmes a
162
novelas e agrave tevecirc foi bem recorrente) aquele de ldquodar choque no peitordquo (desfibrilador) mas
ldquosoacute daacute para recuperar quando a pessoa morre naquele instanterdquo disse Luan
Nesse momento a turma estava bem envolvida na discussatildeo com vaacuterios querendo
contribuir A ldquobola da vezrdquo exerceu um papel norteador importante pois eacute um siacutembolo
uma lembranccedila de que algueacutem deseja falar e algueacutem deseja ouvir Quando muita gente
quer a bola combinamos com a turma de ir passando para o lado de matildeo em matildeo assim
todos teriam o direito de falar se quisessem
Desse modo o Luiz (sim novamente ele um dos nossos maiores participantes)
teve sua reacuteplica na pergunta sobre a morte parada ldquotipo assim cortar o rabo de um lagarto
[] ele solta o rabo que fica se mexendo e consegue fugirrdquo A morte em movimento para
que houvesse vida O rabo foi morto podemos supor pela lagartixa para que ela mesma
pudesse viver
A morte se mexe a morte estaacute parada a morte acontece Afinal ldquopor que ateacute hoje
o ser humano natildeo faz isso [ressuscitar] com todos os mortosrdquo perguntou o Max Eu
respondi que o cachorro era especial para a crianccedila do filme afinal nem todo mundo as
pessoas gostariam que voltasse (seguido de alguns risos) Jaacute o Wallace achou que foi
porque o corpo foi costurado
Objetividade era a palavra de ordem De fato o filme dava um destaque agrave
experiecircncia laboratorial nada mais justo que os 501 focassem na questatildeo teacutecnica As
colocaccedilotildees que eram feitas tinham um procedimento meacutedico por traacutes ou um detalhe mais
praacutetico e mais importante quase nenhuma referecircncia a qualquer emoccedilatildeo ou sobrenatural
foi feita Souza e Pereira (1998) vatildeo compreender o entendimento moderno do conceito
de ciecircncia como um modo da verdade entendida por certeza na qual a explicaccedilatildeo do real
se sobrepotildee ao proacuteprio real suas outras manifestaccedilotildees e misteacuterios insoluacuteveis
Ao final da atividade deste primeiro dia fizemos um trabalho mnemocircnico a fim
de reforccedilar o discutido para o proacuteximo encontro Cada pessoa iria fazer uma pergunta ou
dizer uma palavra que sintetizasse seus pensamentos emoccedilotildees a respeito do que tinha
acabado de acontecer Nesta ocasiatildeo notamos um lado mais sentimental juntamente com
o objetivocientiacutefico Questionava-se onde ficava a alma nesse processo de ressuscitar ou
soacute a palavra tristeza tivemos ateacute uma pergunta teoloacutegica de se deus natildeo devolver a alma
como ficaria o corpo
163
Esse teor menos material estaacute mais presente em todos os demais encontros Com
os 502 por exemplo cujo envolvimento nas discussotildees ocorreu mais depressa que na
501 logo nas primeiras colocaccedilotildees surgiu a tristeza o desmerecimento pelo ocorrido
Pareceu que ressuscitar natildeo supriu a urgecircncia de vida cabendo o luto Lembremos essa
turma era aquela que jaacute discutira em alguma medida a morte
Tristemente abatido impotecircncia diante do que natildeo controlamos por melhores que
sejam nossos aparelhos Na falta de esperanccedilas com o que contamos Quando nos
remetemos ao filme na hora que o garoto termina a experiecircncia para reviver o cachorro
a princiacutepio ela natildeo daacute resultados Sobre o corpo imoacutevel o pequeno cientista se debruccedila e
uma laacutegrima escorre de seu rosto Para a Eduarda Letiacutecia e outros tantos esse foi o fator
decisivo para que o cachorro pudesse ressuscitar
Mas seraacute o benedito essa turma natildeo vecirc o oacutebvio A ciecircncia teve seu papel soacute que
o choro funcionou melhor de acordo com a Luiza Para a Isabelle nem se tratou de fato
de aguinha dos olhos mas do amor e a Beth117 sintetizou ao dizer que ldquona ciecircncia natildeo haacute
tanto amor quanto na laacutegrimardquo Elas terem pensado essa relaccedilatildeo lanccedilou-me para o seacuteculo
XX Para a reprodutibilidade da teacutecnica para a questatildeo da teacutecnica e outros tantos ensaios
e pensamentos que se referiam ao homem esquecendo sua humanidade e agrave maacutequina
com seu sentido de ferramenta esvaziado para que tudo ao redor se mova em torno dela
Todavia essa natildeo eacute a idade em jogo naquele ambiente Provavelmente essas
crianccedilas nunca leram Benjamin nem Heidegger mas elas podem sim terem
experienciado as criacuteticas ao mundo ldquode devir-crianccedila ou de devir-infantil que eacute uma
forma de estar no mundo associada natildeo aos anos que se tem mas agrave experiecircncia de vida
que se afirmardquo (KOHAN 2012 paacuteg 43)
Ao considerar a emergecircncia de possibilidades no devir torna-se esperado
associaccedilotildees nunca antes imaginadas O Alex identificou a morte pelo olfato Ou talvez
tenha sido uma metaacutefora quando remeteu ao cheiro da morte afinal era soacute um filme Um
pouco antes do cachorro ser atropelado e vir a falecer aquela iminecircncia exalava uma
essecircncia prenuacutencio traacutegico Quando a crianccedila do filme vai ao cemiteacuterio eacute assustador ele
podia se machucar natildeo eacute Alex
117 Nome fictiacutecio devido agrave ausecircncia do nome real nas gravaccedilotildees
164
O aroma puacutetrido e a decomposiccedilatildeo dos corpos isso tambeacutem eacute o cheiro da morte
e natildeo eacute agradaacutevel Muitos outros na sala tambeacutem tiveram receio com o cemiteacuterio mas
natildeo a Katlem ela disse que o amor a teria dado coragem Aqui temos um velho embate
gerador de heroacuteis covardes e sensatos Entrar ou natildeo entrar no cemiteacuterio precisa ser agrave
noite Sentir o cheiro da morte e ainda assim ir agrave sua direccedilatildeo (talvez o cachorro natildeo tenha
sentido mesmo com seu focinho canino) eacute se aventurar na morte pelo Vitor da 502
E com a morte natildeo se brinca Pois para a Julia se aventurar era brincar mas o
pobre catildeo natildeo sabia do perigo que o aguardava nem que haacute brinquedos que natildeo perdoam
Julia mdash A morte tava presente laacute e quando ele foi voltar [] ele morreu
Vanise mdash A morte fica perto da pessoa
Julia mdash Eu acho que sim no momento certo
Isis mdash Eu vou tentar responder o cheiro da morte para mim foi que o
cheiro da morte deixou um rastro quando vocecirc faz uma comida vocecirc sente um
cheiro deixou um rastro
Isis mdash O rastro deixa uma pista o cheiro de que o carro ia vir A morte era o
carro
Andreacute Lira (2012) defende que a presenccedila da morte eacute algo que natildeo vivemos em
seu interior Sempre exterior quiccedilaacute ao redor a rigor soacute podemos falar sobre jaacute que
ningueacutem morreu e depois escreveu ou discursa proveniente dela embora julguemos poder
sentir sua proximidade Ser novo para morrer e a condenaccedilatildeo ao natildeo conhecimento vatildeo
influir diretamente no comportamento estrangeiro em relaccedilatildeo ao tema
Tanto a aluna Isabelle quanto a professora regente Adriana mais uma vez nos
mostrando a fluidez da questatildeo entre as idades sofreram pela falta de respostas Disse
aquela ldquoNatildeo sei se a morte taacute perto de mim mas eu natildeo quero estar perto dela Sou nova
demais para morrer [] Tenho medo porque natildeo conheccedilo o que vai ter depoisrdquo A Irandy
confessou que tambeacutem tinha medo por natildeo conhecer Ora se vocecirc natildeo conhece porque
supor que eacute ruim e principalmente que deve ser temido
165
Figura 3 ndash Calvin e Haroldo
Fonte DEPOSITODOCALVIN 2005
Um problema corrente do trabalho foi o tempo Quando a discussatildeo pegava fogo
tiacutenhamos que encerrar o encontro para receber a proacutexima turma O cheiro o rastro a
aventura a brincadeira O medo Um dos maiores motivos que me motivou a realizar um
trabalho desses foi o fato de que a morte eacute temida Quis aproveitar que o assunto surgiu
da turma 502 e contrapor com sua ausecircncia na 501 Antes contudo comentemos como
na turma 402 se desenvolveu o confronto com o diferente
Primeiro ponto como havia dito muitos disseram que a ressuscitaccedilatildeo foi o aacutepice
do filme A Tamiris ateacute disse que se fosse possiacutevel iria fazer o mesmo com a avoacute Agora
para ressuscitaacute-la de acordo com o filme teria de haver uma aproximaccedilatildeo com um lado
sombrio indigesto com o cemiteacuterio caveiras e corpos feacutetidos e em decomposiccedilatildeo
Eca e outras interjeiccedilotildees e caretas eram ouvidas durante a animaccedilatildeo O sentimento
de nojo foi instigado teria a Tamiris encarado a morte no corpo imoacutevel da avoacute com
repulsa O Mateus acredita que natildeo com um certo desdeacutem como se sentir nojo fosse
algo hipoacutecrita ldquoeu acho que fede mas queria fazer uma pergunta e uma pessoa que eles
amam muito vatildeo falar que eacute nojenta que eacute isso ou aquilordquo
Poxa Mateus mas natildeo eacute muito normal ver sangue saindo ou bichinhos comendo
a pessoa mesmo que seja da nossa famiacutelia neacute Mas a gente vai tentar se segurar porque
eacute uma pessoa proacutexima pelas ideias e algumas palavras de Fernando Sim concordo natildeo
eacute habitual separamos a morte da vida Evitamos por medo ou por nojo enxergar a morte
acontecendo ao nosso redor em noacutes mesmos Por esse vieacutes tornamos estranho o que nos
eacute proacuteximo e familiar
166
Figura 4 ndash A morte
Fonte O PATO A MORTE E A TULIPA 2009
mdash Vocecirc veio me buscar agora mdash Estou perto desde que vocecirc nasceu por via
das duacutevidas [] Eacute a tarefa da proacutepria vida cuidar do acidente e tambeacutem da
gripe e de todas as outras coisas que ocorrem a vocecircs patos118 Eu soacute digo uma
coisa raposa (ERLBRUCH 2009 paacutegs 4-7)
Ateacute o prezado momento do texto tratamos basicamente das primeiras aulas Para
natildeo depender unicamente da memoacuteria os colegas e eu bolamos uma atividade
Trouxemos duas reacuteplicas de cracircnios um mais realista tirando os olhos vermelhos e
brilhantes outro mais escurecido de porcelana e com um buraco na cabeccedila (para colocar
velas aromaacuteticas)
As caveiras passavam de matildeo em matildeo seguidas da admiraccedilatildeo pela turma 501 a
mais objetiva e espanto pela 502 a mais emotiva A turma 402 viveu a experiecircncia mas
natildeo chegamos a desenvolvecirc-la Houve ainda quem colocasse a foto de uma das cabeccedilas
como foto de fundo do celular Na hora falhamos por natildeo perguntarmos a causa da
admiraccedilatildeo aos alunos mas acertamos em perguntar do espanto
A turma 501 riu fez piada disse que era feia cheirou a caveira bateu nela se
aproximou como pocircde Natildeo que tivessem medo se mostraram curiosos mas natildeo
animados Perguntaram se era de verdade o Miqueias ateacute questionou a relevacircncia por
natildeo ser cabeccedila de cachorro De bebecirc natildeo era natildeo tinha moleira disse o Viniacutecius
118 Essa eacute a uacuteltima imagem do livro O pato a morte e a tulipa Entatildeo por que um coelho e natildeo um pato
Entendo que a histoacuteria se passa com um pato mas poderia ter acontecido com um coelho ou com uma
pessoa Cada um tem sua raposa e a morte acompanha a todos
167
Enquanto a turma 502 soacute queria fazer festa com a caveira a turma 501 se intrigou
Natildeo acredito na mera coincidecircncia de que exatamente na que teve as discussotildees mais
focadas na explicaccedilatildeo objetiva tenha se interessado mais em entender a aquele objeto
enquanto a turma da laacutegrima e do amor queria mais brincar Um estudo incipiente que
vislumbra uma diferenccedila com o lidar despreocupado ou natildeo
A ciecircncia e o que denominei emoccedilatildeo determinam as duas grandes linhas de
compreensatildeo da morte mas haacute uma terceira presente em todas e de maior presenccedila nos
uacuteltimos encontros a religiatildeo O conforto que a teacutecnica natildeo explicava e a esperanccedila que
faltava na presenccedila da morte preluacutedio de ausecircncia era oferecido pelo acalanto da
imortalidade A alma impereciacutevel o deus misericordioso que protege os bons e estaacute acima
da morte
Por exemplo na turma 501 o Washington disse que o cracircnio natildeo poderia
ressuscitar porque natildeo tinha corpo O Luiz nos lembrou natildeo poderia porque natildeo tinha
alma primeiro Deus precisaria devolver a alma ao corpo A vida estava na alma a carne
apenas a guarda Problematizamos ldquoSe a morte eacute uma questatildeo da alma porque mexer
com o corpordquo Seraacute que o embrulho precisa estar agrave altura do presente
Na 502 minha turma das emoccedilotildees deu para explicar tintim por tintim como se
processava a vida apoacutes a morte Mais seguros do que diziam afirmavam e sabiam Havia
menos tristeza entre os alunos naquele dia Assim falou a Julia ldquoQuando a gente morre
a gente natildeo sabe o que acontece Pode vir algum anjo [] quando vocecirc taacute dentro de um
caixatildeo vocecirc natildeo volta mais O espiacuterito fica laacute dormindo mas quando Jesus voltar ele
sobe Eu tenho certezardquo
Depois de uma concordacircncia geral a Julia continuou a relatar a existecircncia de trecircs
ceacuteus O primeiro seria o ceacuteu das nuvens e da chuva o segundo o ceacuteu do inimigo assim
ela disse e o terceiro seria o local de Deus Alguma mente brilhante entre risos e
jocosidade que infelizmente natildeo registramos o nome se pronunciou a respeito de 25
ceacuteus
Outras pessoas tambeacutem se pronunciaram sobre os trecircs ceacuteus uma delas propocircs ateacute
um desafio ldquoEstaacute na Biacuteblia qualquer uma catoacutelica evangeacutelica pode procurarrdquo (no
estado em que se encontravam as discussotildees todos queriam falar ao mesmo tempo a
turma estava agitada e os nomes natildeo tiveram seus aacuteudios registrados) Foi um espanto
168
entre os demais colegas e eu principalmente porque tiacutenhamos estudiosos de religiatildeo entre
noacutes e eles contestavam a veracidade daquelas informaccedilotildees
Em plena efusatildeo de opiniotildees um grupo estava distraiacutedo conversando Um dos
membros rindo falou ldquoAh gente parem de falar de morte parece macumbardquo poucos
prestaram atenccedilatildeo todavia pelo menos outras duas vezes ela repetiu se o que estaacutevamos
fazendo era macumba e se laacute era roda de macumba Fiquei feliz pelo material de pesquisa
mas entristecido pela opiniatildeo nitidamente preconceituosa
ldquoPor que falar de morterdquo ela perguntou na roda final de perguntas Eu perguntei
ldquopor que natildeo falar de morterdquo Pela religiatildeo eacute ofensivo ou desrespeitoso ao Senhor falar
de morte Somente as outras religiotildees falam sobre o tema (Isso para natildeo perguntar por
que natildeo falar de outras religiotildees)
Pude perceber que aquele grupo de pessoas estudantes de Caxias do quarto e
quinto ano fundamental tinha a realidade religiosa muito marcante em seus dias (pelo
menos duas alunas tinham parentes pastores) Tanto adultos quanto crianccedilas estatildeo
sujeitos agrave reprodutibilidade das opiniotildees Souza e Pereira (1998) defendem que o tempo
moderno estaacute regulado pela produtividade logo quanto mais raacutepido melhor Dessa
maneira entendo que o discurso religioso funciona tambeacutem nessa loacutegica e deseja se
afirmar com destreza e propriedade
A morte passa a ser um braccedilo da religiosidade pois essa consegue com primor o
que nenhuma outra verdade faz Suas soluccedilotildees datildeo por encerrada a questatildeo que natildeo
convive mais em misteacuterio A repeticcedilatildeo se processa a fala a liacutengua uacutenica do puacutelpito
Portanto somos conduzidos a pensar que a crianccedila eacute um pequeno adulto
Se a modernidade tem esse pensamento e a contemporaneidade faz uso sim dele
tambeacutem inventamos o soacute A crianccedila cresce em idade e reproduz o adulto que ela sempre
foi mas ela natildeo eacute soacute um adulto tambeacutem deteacutem singularidade Todo este trabalho mostra
o quatildeo originaacuterias eram suas posiccedilotildees reflexotildees e sentimentos caminhando
conjuntamente com a pretensatildeo de ser sobre ela
Se a crianccedila natildeo eacute soacute um pequeno adulto talvez o adulto tambeacutem seja uma crianccedila
grande embora natildeo soacute Se o adulto precisa se transmitir agrave crianccedila que ele se permita natildeo
esquececirc-la em si O cerne aqui se refere agravequela fluidez das idades de como a morte estaacute
presente a todos Por fim quando cerrarmos os olhos no sono das eras tenhamos a
169
serenidade da noite tranquila e nos lembremos por quaisquer meios que jaacute falamos da
morte e ela natildeo eacute uma estranha seja bem-vinda
Entonces recordar la infancia significa quizaacute preparar un mundo comuacuten [grifes
do autor] en el que el hecho de ser nintildeos no sea sinoacutenimo de imperfeccioacuten y
marginalidad ni donde devenir adultos tenga el sentido de una infancia
traicionada Aprender a concluir tratando de estar siempre a la altura de la
dignidad de esa despedida (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 16)
Reflexatildeo com a experiecircncia
Afinal aqui se trata de um homem por mais novo e diverso que seja com origem
Isto significa que ele estaacute num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos
e por fim sua forma de ser Esse eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita
alfabeacutetica119 a filosofia e a induacutestria
Nenhuma dessas revoluccedilotildees teacutecnicas chegaram sem cobrar um preccedilo pois cada
invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se para cada obra jaacute era preciso estar disposto a obrar
Eacute importante ratificar que o processo de transformaccedilatildeo da realidade natildeo eacute exclusivo do
homem ocidental mas talvez seja dessas caracteriacutesticas que nos unem a todos Nesse
sentido humanizar eacute proacuteprio do homem A questatildeo eacute que tipo de humanizaccedilatildeo eacute esta a
ocidental
Esse eacute o homem que vive a ilusatildeo Esse eacute o homem que vem perdendo seu contato
mais imediato e concreto com as coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que
nada mais eacute do que o desdobramento do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo das
coisas Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que
as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as
coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos
compreendecirc-las
119 Haacute um embate na Academia sobre a invenccedilatildeo da escrita alfabeacutetica A ideia neste trabalho natildeo eacute se
perder ldquona busca do primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica
fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo (HAVELOCK 1996
paacuteg 15)
170
A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana das coisas
mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa a ser nossa
possibilidade de ver as coisas Jaacute dizia o poeta que o universo natildeo seria uma ideia minha
mas sim minha ideia de universo eacute que seria uma ideia minha (PESSOA 2006 paacuteg 51)
Logo o que compreende eacute aquele que prende junto a si A ilusatildeo de poder
compreender tudo se faz principalmente por se tratar do caraacuteter ilusoacuterio com que nos
relacionamos com as coisas Natildeo lidamos mais com as singularidades preferimos seus
nuacutemeros estatiacutesticas o sabor de uma banana ou maccedilatilde cedem lugar ao conjunto das frutas
quantitativamente sem gosto A morte natildeo eacute mais uma manifestaccedilatildeo do real tanto quanto
respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser superado basta termos mais
conhecimentos a respeito
Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como
tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de
novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma
forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia
murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos
171
Exerciacutecios de ser crianccedila
Objetivo geral
Incentivar a autorreflexatildeo e o questionamento do senso comum tanto de si quanto
dos demais
Objetivo especiacutefico
A partir de poemas do livro Exerciacutecios de ser crianccedila de Manoel de Barros os
alunos satildeo convidados a pensar o que chamamos de crianccedila isto eacute eles mesmos Outro
desdobramento estaacute em como eacute possiacutevel algueacutem que natildeo seria crianccedila fazer esse
exerciacutecio por exemplo os professores e o autor Um terceiro encaminhamento diz
respeito ao contato com o texto literaacuterio e a relaccedilatildeo com a linguagem poeacutetica
Proposta para a atividade
Pensada para um grupo de crianccedilas entre 9 e 10 anos O mestre instigador apoacutes
ter se ambientado com a turma apresenta uns poemas do livro mencionado Conforme os
recursos da instituiccedilatildeo isso seraacute feito da forma que for mais adequada como uma
exposiccedilatildeo com os poemas em cartolinas (isso poderia ter sido uma atividade preacutevia entre
os alunos) expocirc-los no datashow e ler alguns com a turma ou mesmo ler direto no livro
para eles mas eacute importante que eles tenham como reler o poema No caso optamos por
uma mistura de cartolinas e exemplares do livro dividimos em grupos de cinco e eles
deveriam fazer um comentaacuterio a respeito Segue um dos poemas do livro citado
172
Exerciacutecios de ser crianccedila
No aeroporto o menino perguntou
mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho
O pai ficou torto e natildeo respondeu
O menino perguntou de novo
mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho triste
A matildee teve ternuras e pensou
Seraacute que os absurdos natildeo satildeo as maiores virtudes
da poesia
Seraacute que os despropoacutesitos natildeo satildeo mais carregados
de poesia do que o bom senso
Ao sair do sufoco o pai refletiu
Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com
as crianccedilas
E ficou sendo (BARROS 2010 paacuteg 469)
Um fator relevante para a dinacircmica aqui executada eacute a participaccedilatildeo do professor
ou coordenador na atividade Isto quer dizer sentar em grupo debruccedilar-se sobre um
poema e engendrar um comentaacuterio Natildeo para se sobressair nem engabelando um
simulacro participativo qualquer mas simplesmente ler e interpretar como todos os
outros Satildeo poemas curtos e simples embora profundos Algo em torno de 5 a 10 minutos
para a leitura e discussatildeo Pode ser que em algum momento o professor precise agir por
exemplo se a turma se dispersar em falatoacuterio excessivamente alto Natildeo tem jeito eacute
preciso intervir poreacutem tente natildeo deixar de fazer parte da atividade com a turma
Na hora dos comentaacuterios tudo vai depender das perguntas suscitadas Cada grupo
deveraacute apresentar seu poema para a turma A seguir alguns exemplos caso a turma tenha
dificuldade como se exercita ser crianccedila Ou assertivamente ser crianccedila eacute um exerciacutecio
logo natildeo se eacute crianccedila sem praticar ser crianccedila Ainda a relaccedilatildeo autor e obra foi
problematizada no sentido de compreender como um senhor de idade referindo-se a
Manoel de Barros conseguia ser crianccedila ou se ele se exercitava para natildeo engordar a
crianccedila interior dele e natildeo ter mais focirclegos para brincar (com as palavras)
O menino que carregava aacutegua na peneira
Eu tenho um livro sobre aacuteguas e meninos
Gostei mais de um menino que carregava aacutegua na peneira
A matildee disse que carregar aacutegua na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele
para mostrar aos irmatildeos
A matildee disse que era o mesmo que catar espinhos na aacutegua
O mesmo que criar peixes no bolso
O menino era ligado em despropoacutesitos
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos
173
A matildee reparou que o menino gostava mais do vazio do
que do cheio
Falava que os vazios satildeo maiores e ateacute infinitos
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar aacutegua na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que
carregar aacutegua na peneira
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviccedila
monge ou mendigo ao mesmo tempo
O menino aprendeu a usar as palavras
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras
E comeccedilou a fazer peraltagens
Foi capaz de interromper o voo de um paacutessaro botando
Ponto no final na frase
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela
O menino fazia prodiacutegios
Ateacute fez uma pedra dar flor
A matildee reparava o menino com ternura
A matildee falou Meu filho vocecirc vai ser poeta
Vocecirc vai carregar aacutegua na peneira a vida toda
Vocecirc vai encher os vazios com as suas peraltagens
E algumas pessoas vatildeo te amar por seus despropoacutesitos (BARROS 2010 paacutegs
469-470)
Outra possibilidade de realizaccedilatildeo eacute passar o mesmo poema a todos O que eacute
indicado a turmas muito tiacutemidas ou com dificuldade de abertura ao tipo de atividade
Nesse caso um poema maior eacute preferiacutevel para transcorrer com os comentaacuterios Uma dica
eacute nunca subestimar o oacutebvio Perguntas do tipo como eacute possiacutevel carregar aacutegua na peneira
pode gerar discussotildees acaloradas Algumas crianccedilas vatildeo ateacute sugerir que jaacute carregaram
focando no ato concreto de levar uma peneira agrave agua e retornar dela aos pingos A
linguagem pode ser encarada ao peacute da letra como tornar-se mais abstrata Seja uma ou
outra e ateacute ambas numa experiecircncia poeacutetico-filosoacutefica precisam ser encaradas como
manifestaccedilotildees de verdade e desdobradas em seus meandros Gotas de aacutegua na peneira
matam sede curta e servem aos despropoacutesitos do poeta brincalhatildeo
Apoacutes a exposiccedilatildeo de todos que assim desejem cabe agora dar corpo agrave profusatildeo
de ideias Muito provavelmente alguns dos comentaacuterios teratildeo a ver entre si eacute
aconselhaacutevel relacionaacute-los ldquoOlhem o que fulano disse eacute muito parecido com o que
sicrano falourdquo Outros se oporatildeo ldquoJaacute beltrano acredita que isso eacute o oposto agravequilo que
fulano disserdquo E ateacute haveraacute os confusos que merecem maiores detalhes Nesses casos
solicitar a recolocaccedilatildeo do problema eacute prudente e pode ensejar uma nova perspectiva para
a questatildeo
174
Com as observaccedilotildees mais ou menos reunidas agora eacute o momento de expor um
comentaacuterio sobre elas e sobre os poemas Ter algum esquema do que dizer eacute muito
importante para natildeo se perder e passar confianccedila aos alunos poreacutem dialogar com os
pontos de vista apresentados eacute vital do contraacuterio seria mais uma aula como outra
qualquer Cerca de 15 minutos entre a composiccedilatildeo das relaccedilotildees e a explanaccedilatildeo
Por fim peccedila que cada um tendo em vista o que foi discutido escreva o que eacute ser
crianccedila para ela e se desejar leia em voz alta e comente para a turma Como nem o livro
nem talvez as cartolinas os alunos poderatildeo ter para si ao escrever o que eacute ser crianccedilas
eles tecircm a oportunidade de se expressarem e poderatildeo guardar o escrito para futuros
possiacuteveis pensamentos
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar poemas e solicitar que cada um ou cada grupo faccedilam
comentaacuterios a respeito ndash 10 minutos
3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e expor um comentaacuterio participando do
diaacutelogo ndash 15 minutos
4 Escrever e expor o que eacute ser crianccedila ndash 10 minutos
Relato da experiecircncia
Abaixo segue a transcriccedilatildeo de uma atividade realizada em meados de 2014 por
mim e Vanise Dutra na Escola Municipal Joaquim da Silva Peccedilanha Tendo havido um
encontro de ambientaccedilatildeo na semana anterior desta experiecircncia os alunos tinham sido
levados ao paacutetio para brincar e como dever de casa eles deveriam escrever sobre o que
era ser crianccedila para eles
175
Vanise mdash Entatildeo gente Olha soacute Vocecircs lembram o que a gente fez na semana
passada
Fernando mdash A gente brincou laacute fora A gente treinou nesse exerciacutecio de ser
crianccedila A gente tentou treinar aiacute A gente brincou Fez atividade laacute fora Foi
muito divertido
Vanise mdash Foi
Fernando mdash Ateacute a tia Janaiacutena brincou que eu vi (Risos)
Professora mdash Que Janaiacutena Eacute Alessandra
Fernando mdash Eacute Alessandra Eu esqueci Eacute que eu vi Janaiacutena no caderno
Vanise mdash E como que foi esse exerciacutecio Esse exerciacutecio laacute fora de ser crianccedila
Vocecircs acham que tem alguma relaccedilatildeo com o exerciacutecio que a gente fez laacute fora
de ser crianccedila com o exerciacutecio de escrever
Fernando mdash Eu acho que sim porque uma das coisas de ser crianccedila neacute
coisas que as crianccedilas fazem no exerciacutecio de ser crianccedila eacute brincar e nesse dia a
gente brincou muito Entatildeo acho que sim que tem alguma coisa a ver
Notemos que propositalmente pomos as crianccedilas para brincar a fim de que a
resposta agrave pergunta de ser crianccedila orbite pelos lugares comuns de brincadeira e jogo O
proacuteprio Manoel de Barros vai jogar com essa ideia Com a introduccedilatildeo dos poemas
brincadeira e o jogo alargam sentidos de modo que adultos podem brincar e brincadeira
de crianccedila natildeo precisa ser bola ou gude mas palavras recolocando a questatildeo de ser
crianccedila como ser adulto ou ser velho sob outra perspectiva
Vanise mdash E o que a gente fez aqui dentro Tem relaccedilatildeo
Fernando mdash Tambeacutem Eacute uma brincadeira que a faz a gente imaginar coisas e
pensar mais Crianccedila natildeo soacute brinca tambeacutem tem aquelas coisas que tem que
pensar coisas de escola coisas de trabalho natildeo Vaacuterias coisas que a gente
pensa aqui a gente brinca na mente brinca com a mente vai pensar de vaacuterias
formas
Vanise mdash Ouviram isso que o Fernando falou Que a gente que crianccedila natildeo
soacute brinca mas que crianccedila tambeacutem pensa
Andreacute mdash Eacute deixa eu fazer uma pergunta Escrever tambeacutem pode ser uma
brincadeira
Camili mdash Que escrever eacute um exerciacutecio de ser crianccedila Eu acho que pode ser
uma brincadeira
Vanise mdash Por quecirc
Camili mdash Ah natildeo sei Porque a gente se diverte com algumas coisas
escrevendo
Willian mdash Pode porque a gente gosta de desenhar
Gustavo mdash Respondendo agrave pergunta do Andreacute se escrever eacute exerciacutecio de ser
crianccedila Eu acho que sim porque tem muitas pessoas que jogam adedanha ali
no papel e eacute divertido
Interessante notar a inversatildeo que eacute feita Natildeo eacute brincar que tem que ser divertido
mas se traz diversatildeo eacute por ser uma brincadeira Nesse vieacutes coisas como escrever (que se
iguala no contexto a desenhar) e pensar podem ser luacutedicas e apraziacuteveis
176
Fernando mdash Queria soacute lembrar que exerciacutecio de ser crianccedila natildeo eacute soacute o brincar
O exerciacutecio de ser crianccedila eacute a gente se divertir Por isso que os adultos eles
tambeacutem fazem o exerciacutecio de ser crianccedila Porque muitas vezes vamos dizer
assim saem com os amigos aiacute se divertem riem acho que soacute o fato de rir jaacute
eacute um exerciacutecio de ser crianccedila porque vocecirc estaacute se divertindo Vocecirc estaacute
trazendo aquela felicidade de volta assim Natildeo que vocecirc seja triste mas vocecirc
estaacute trazendo aquela felicidade Soacute o fato de vocecirc rir vocecirc jaacute tem uma ideia do
exerciacutecio de ser crianccedila Que crianccedila natildeo vamos dizer que eacute boba mas em
todo momento faz uma piada ri essas coisas
Vanise mdash Vocecircs estatildeo ouvindo isso gente que ele estaacute falando Natildeo eacute soacute de
brincar segundo o Fernando que tem a ver com o exerciacutecio de ser crianccedila
Joatildeo mdash Eu quero responder a pergunta da Vitoacuteria
Vanise mdash Qual eacute a brincadeira que vocecirc mais gosta
Joatildeo mdash Eu natildeo sou muito de brincar mdash Joatildeo fala com um tom seacuterio mdash Meu
negoacutecio eacute mais negoacutecio de instrumento essas coisas Meu pai tambeacutem eacute
muacutesico Aiacute aos domingos eu vou pra casa dele e a gente fica laacute tocando
instrumento Eu em casa quase natildeo brinco Soacute mexo no computador e depois
fico tocando bateria
Vanise mdash E vem caacute Tu acha que isso eacute o quecirc Que isso eacute um exerciacutecio de ser
crianccedila que natildeo eacute Que eacute brincar que natildeo eacute brincar Quando vocecirc estaacute laacute com
o teu pai
Joatildeo mdash Pra mim eacute tia Da mesma maneira eu brincando com meus amigos
na rua eu me divirto Eu com meu pai brin tocando instrumento eu tambeacutem
me divirto Eu tocando na igreja eu me divirto Pra mim eacute tia
A muacutesica aparece aqui como algo de crianccedila Novamente uma inversatildeo que vem
bem a calhar Natildeo seria o exerciacutecio de ser crianccedila que definiria a crianccedila mas jaacute sendo
crianccedila sua existecircncia eacute um exerciacutecio por si soacute Isso eacute uacutetil para romper paradigmas de que
brincadeiras satildeo coisas apenas de crianccedila Tambeacutem adultos podem brincar assim como
crianccedilas podem exercitar-se agrave medida que tocam um instrumento
Natildeo eacute sinocircnimo de besteira Ela natildeo eacute boba Seu pensamento e sua diversatildeo natildeo
necessitam recair sempre nos mesmos lugares e da mesma forma Joatildeo se diverte com seu
pai e ambos partilham da muacutesica enquanto morada Nem o pai volta a ser crianccedila nem o
filho vira adulto eles instauram um tempo cronologicamente enfraquecido sem idades
precisaacuteveis Tocando um com o outro exercem uma relaccedilatildeo familiar proacutepria e envolvente
somente possiacutevel por quem se dispotildee a experienciar o instante Natildeo eacute uma questatildeo de
vontade vale dizer mas de entrega
177
Reflexatildeo com a experiecircncia
Nem sempre eacute faacutecil dar cabo do que temos em mente Tudo se torna mais
complicado se nosso ponto de partida pretende natildeo determinar caminhos preacutevios ou
meacutetodos verdadeiros apenas e fundamentalmente oferecer sugestotildees Trata-se pois de
propor um convite para caminhar agravequeles que desejam inspiraccedilatildeo para novas ideias
diaacutelogo entre o seu e este modo de fazer ou ateacute mesmo um pontapeacute inicial
Quaisquer que sejam as circunstacircncias eacute vital se colocar agrave disposiccedilatildeo de pensar e
escutar as questotildees aqui apresentadas e a maneira como elas satildeo tratadas sem
preconceitos ou diligecircncias desnecessaacuterias Isso porque do contraacuterio corre-se o risco de
deixar cair por terra uma possibilidade construtiva de conhecimento para incorrer em
meras prescriccedilotildees ou em criacuteticas assaz severas sem o merecido cuidado ndash natildeo com o texto
muito menos com o autor ou o professor mas com o pensamento Pensar sempre inspira
cuidados
178
A cegueira da visatildeo
Objetivo geral
Promover uma atividade que aguce a atenccedilatildeo a outros sentidos aleacutem de levantar
questionamentos sobre a confianccedila no que natildeo temos controle
Objetivo especiacutefico
Em pares um participante seraacute vendado e o outro natildeo O que estaacute vendado deveraacute
guiar pelo espaccedilo aquele que pode ver Essa eacute uma versatildeo da tradicional experiecircncia de
se vendar para deixar ser guiado por outro a fim de exercitar a confianccedila Poreacutem aqui o
desafio toma tons mais radicais para ambos quem natildeo vecirc precisa se empenhar para
confiar nos demais sentidos e arcar com a responsabilidade por si e por outrem ainda que
suas possibilidades estejam limitadas quem vecirc precisa se esforccedilar para natildeo assumir o
papel que natildeo eacute dele ou seja de guiar e assim aceitar os erros e equiacutevocos do guia
Proposta para a atividade
Tatildeo simples quanto complexa a depender de seu modo de execuccedilatildeo De material
didaacutetico apenas fitas de um tecido qualquer para cobrir os olhos O tempo de execuccedilatildeo
pode variar bastante mas entre 5 a 10 minutos costumam ser suficientes Ratificamos
que para cada nova dinacircmica conveacutem a realizaccedilatildeo da ambientaccedilatildeo conforme descrita
em ldquoQuando a vida nos diz natildeordquo
Originalmente ldquoA cegueira da visatildeordquo foi pensada para uma turma de 20 25 alunos
entre 8 e 11 anos mas fazecirc-la com uma turma inteira eacute bem trabalhoso Entatildeo para uma
179
turma menor ou talvez sortear alguns alunos seja mais pertinente Por outro lado eles
podem realizar a experiecircncia por eles mesmos com facilidade bastando um coleguinha
ou irmatildeo Outro ponto positivo estaacute no fato de que este exerciacutecio funciona bem para
idades mais avanccediladas conforme seraacute relatado adiante
Primeiramente eacute exposto aos possiacuteveis participantes o que se pretende fazer Dois
em dois um vendado e o outro natildeo O que natildeo enxerga deveraacute guiar aquele que enxerga
Quem guia deve estar ciente de sua responsabilidade e tentar executaacute-la da melhor forma
possiacutevel Quem eacute guiado deve refrear o iacutempeto corretor e deixar-se levar confiando no
guia A princiacutepio tudo parece uma brincadeira mas urgimos cuidado de quem guia Uma
digressatildeo breve sobre a confianccedila e sobretudo confiar como natildeo deter o controle pela
visatildeo vem a calhar Apoacutes entregar as faixas a cada dupla
Na experiecircncia propriamente dita deixe a dupla ambientar-se e em seguida pode-
se sugerir pequenas tarefas ou se o espaccedilo for amplo que ousem exploraacute-lo O importante
eacute haver deslocamento e o medo inicial caminhar em tensatildeo com a confianccedila
Diferentemente das outras atividades natildeo eacute aconselhaacutevel participar desta pois aleacutem dos
comandos eacute necessaacuterio estar em alerta e julgar quais riscos e satildeo convenientes e podem
vir a contribuir com a discussatildeo
Ao teacutermino eacute feita uma rodada das primeiras impressotildees e assim como em
ldquoExerciacutecios de ser crianccedilardquo eacute importante criar relaccedilotildees entre os diversos comentaacuterios
dando clareza e possibilitando uma discussatildeo mais profiacutecua Como jaacute houve uma
explanaccedilatildeo anterior tome cuidado para natildeo monopolizar a atividade com sua fala e ao
inveacutes motive e instigue as observaccedilotildees dos participantes e dos expectadores Cerca de 15
minutos deve ser o suficiente Relembrando que caso a discussatildeo esteja fluida pode ser
mais interessante adiar a proacutexima etapa da atividade para se aprofundar na atual
Por fim inverta os papeacuteis nas duplas e convide-os a se pocircr no lugar do outro Com
mais tempo ou turmas menores esta etapa pode vir logo em seguida da primeira
experiecircncia com a venda Isso tende a contribuir em muito com a discussatildeo
180
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar a atividade expor um comentaacuterio e entregar as faixas ndash 15
minutos
3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e instigar observaccedilotildees ndash 15 minutos
4 Inverter os papeacuteis nas duplas ndash 5 minutos
Relato da experiecircncia
Tendo feita a explanaccedilatildeo que natildeo necessariamente deve seguir essa
argumentaccedilatildeo eacute hora de prosseguir com a experiecircncia Lembrando que o intuito natildeo foi
ministrar uma aula (embora nada impeccedila) somente foi uma provocaccedilatildeo para suscitar mais
duacutevidas do que entendimentos claros O importante eacute questionar o domiacutenio do controle
pela visatildeo
Um detalhe importante Por vezes o tempo iraacute se perder num ponto inesperado
Como natildeo haacute um rigor curricular nem avaliativo forte cabe ao professor medir se vale a
pena ou natildeo interromper Ateacute o momento foram contabilizados 16 minutos e 33
segundos
Dando seguimento trazemos a transcriccedilatildeo comentada da experiecircncia feita com
duas jovens Thayrine e Patriacutecia que se propuseram a realizaacute-la e concordaram em ter
suas falas aqui colocadas
Andreacute mdash Bom fizemos questionamentos muito interessantes Agora gostaria
de propor uma atividade para que corporifiquemos o que acabamos de discutir
Se eu pudesse resumir tudo em uma questatildeo ela seria ldquoNatildeo se trata de confiar
na visatildeo dos outros tambeacutem nem de confiar demais em si mesmo enquanto
subjetividade enquanto um eu mas talvez uma confianccedila no conviterdquo Tendo
isso em mente eu gostaria de convidar a uma de vocecircs para que fosse vendada
(podemos trocar depois) e que a pessoa com a venda guiasse a outra
181
Neste momento Patriacutecia se prontifica a ser vendada o que gera protestos de
Thayrine Natildeo que ela quisesse a venda para si mas por achar que Patriacutecia conhecia mais
o local do que ela e por isso teria uma noccedilatildeo espacial muito boa Natildeo se apresentou
como algo tatildeo importante assim o conhecimento preacutevio pois mesmo que ela conhecesse
bem o espaccedilo eacute um entendimento baseado na visatildeo Somente o movimentar-se com os
olhos cerrados jaacute eacute o suficiente para arremessaacute-la a um ambiente novo semelhante a
visitar uma paisagem qualquer que somente haviacuteamos visto por foto Colocada a venda
retomamos a atividade
Andreacute mdash Pois bem vocecirc que jaacute conhece este ambiente haacute anos estaacute insegura
para caminhar Vocecirc estaacute acostumada com ele pelos seus olhos mas o instante
eacute cego Por outro lado Thayrine vecirc ambas fazem parte do mundo que eacute uma
moradia mas de forma diferente e vocecirc tem a responsabilidade dos anos
[refiro-me agrave Patriacutecia que era mais velha] Na morada vocecirc sabe onde estatildeo os
pratos e talheres onde o papel higiecircnico fica guardado quando acaba no
banheiro em qual garrafa se bebe ou natildeo pelo gargalo mas e agora
Patriacutecia guie Thayrine pelos cocircmodos Thayrine mesmo que vocecirc possa
enxergar permita que Patriacutecia a conduza por esta bagunccedila adentro Se vocecircs
forem dar de cara na parede aproveitem e sintam o cheiro dela Se um copo
quebrar aproveitem a visatildeo do belo buquecirc de cacos de vidro e o som do
estrondo
A princiacutepio ela foi deixada sem mais orientaccedilotildees poreacutem ao longo da experiecircncia
optou-se por designar pequenas funccedilotildees a serem desempenhadas A falta de um propoacutesito
imediato aumenta a desorientaccedilatildeo o que contribuiacutea para um deslocamento reduzido As
duas comeccedilaram a caminhar sem rumo mas com as pequenas missotildees apanhar um objeto
ou ir ateacute certo canto da sala a exigecircncia e o envolvimento delas foi maior Patriacutecia estava
descalccedila ela tateou a parede e se dirigiu para o corredor que liga os cocircmodos
Patriacutecia mdash Isso mesmo Thayrine deixe eu topar com o peacute ou bater com a
cabeccedila
Thayrine mdash Que medo
Andreacute mdash Patriacutecia Thayrine estaacute com sede vocecirc poderia pegar um copo
drsquoaacutegua para ela
Havia uma garrafa grande de vidro que quase foi derrubada assim que Patriacutecia se
pocircs a procurar um copo para servir aacutegua Em seguida foram solicitadas outras duas
tarefas e depois retornamos para o local de iniacutecio e recomeccedilarmos com Thayrine a guiar
Determinou-se outras duas tarefas diferentes das anteriores apenas a do copo drsquoaacutegua se
182
repetiu a pedido de Patriacutecia Esta parte da atividade contabilizou 11 minutos e 10
segundos
Foi iniciada a etapa da confrontaccedilatildeo entre o que haviacuteamos discutido na explanaccedilatildeo
e a praacutetica que acabamos de fazer Conveacutem perceber que nem sempre os rumos da
discussatildeo satildeo os mesmos jaacute traccedilados a exemplo aqui ela descambou para a situaccedilatildeo
professor-aluno em sala de aula Eacute importante costurar com esse conhecimento insurgente
e espontacircneo Inclusive debates anteriores podem servir de base na construccedilatildeo da
explanaccedilatildeo da atividade seguinte
Andreacute mdash O que vocecircs acharam da experiecircncia
Patriacutecia mdash Eu gostei bastante
Thayrine mdash Eu tambeacutem mas me senti um pouco perdida no iniacutecio
Andreacute mdash E o que vocecircs gostaram
Patriacutecia mdash O fato de ter de fazer as coisas sem enxergar conjuntamente com
a funccedilatildeo de guia
Andreacute mdash Vocecirc sentiu que guiou ou recebeu algum sinal advindo dos olhos
dela
Patriacutecia mdash Natildeo ela pousou suavemente a matildeo na minha e assim foi a
experiecircncia toda
Andreacute mdash Quando vocecirc foi conduzida sentiu que a reciacuteproca foi verdadeira
Patriacutecia mdash Sim natildeo tivemos problema quanto a isso
Andreacute mdash Vocecircs acham que teria alguma diferenccedila se estivessem sozinhas
Thayrine mdash Eu sou muito individualista natildeo estava pensando muito na
Patriacutecia mdash Estava mais preocupada em me localizar
Andreacute mdash Mas vocecirc estava a guiaacute-la natildeo
Thayrine mdash Ainda assim me preocupava mais comigo afinal ela podia
enxergar natildeo havia como quebrar ou esbarrar em algo
Andreacute mdash Quanto a vocecirc Patriacutecia
Patriacutecia mdash Eu tambeacutem natildeo me preocupei muito com ela mas suponho que se
estivesse sozinha a experiecircncia natildeo seria tatildeo prazerosa
Thayrine mdash Para quem estaacute vendo eacute muito interessante estar bem proacuteximo e
poder vivenciar todos os descaminhos que a outra pessoa percorre
Andreacute mdash A meu ver o aacutepice da experiecircncia foi quando Patriacutecia quase
derrubou a garrafa e vocecirc nada fez para impedir Eacute a ideia do convite permitir-
se seguir os descaminhos de outrem Quem enxerga deteacutem um conhecimento
distinto e junto com ele um poder pois natildeo se trata de uma experiecircncia de
conhecer pelo contraacuterio ela convida a abrir matildeo momentaneamente do que jaacute
sabemos para experimentar algo novo
Patriacutecia mdash Bem se eu soubesse que havia uma garrafa ali certamente teria
desviado
Andreacute mdash Ao mesmo tempo natildeo eacute como se fosse um mundo completamente
proibido Tem-se acesso a ele soacute que por uma via diversa da qual se estaacute
habituado Haacute aromas tipos de superfiacutecie ruiacutedos etc
Andreacute mdash Agora pensando um pouco na discussatildeo do iniacutecio a partir dessa
experiecircncia vocecircs conseguem relacionar com o que haviacuteamos conversado
Thayrine mdash Eu acho que sim por essa questatildeo de o homem abandonar uma
necessidade de controlar o conhecimento para algueacutem e deixar que a pessoa se
vire mas foi bem mais libertaacuterio nesse sentido Quando eu a guiei natildeo teve
nenhuma interferecircncia no que eu estava fazendo Ela realmente me deixou
fazer tudo Se no caso eu fizesse o papel de aluno
183
Andreacute mdash Um momento A meu ver se eu tomasse essa experiecircncia como uma
alegoria da sala de aula o professor seria o cego Natildeo eacute ele quem estaacute
conduzindo
Patriacutecia mdash Eu pensei o contraacuterio ao que vocecirc estaacute dizendo porque de certa
forma apesar de ele estar guiando eacute como se ele natildeo tivesse conhecimento
natildeo
Andreacute mdash Pode ser o guia tem um conhecimento assim como o guiado soacute
satildeo diferentes Interessante que mesmo eu orientando vocecircs para natildeo
interferirem por vezes sua visatildeo de guiada natildeo consegue se ausentar Isso faz
parte eacute uma tensatildeo na verdade entre controle e descontrole Nem um nem
outro mas ambos Esse eacute o desafio
Thayrine mdash Deixe-me ver se eu entendi A pessoa que estaacute enxergando abre
matildeo do seu conhecimento para deixar que o outro assuma Ou seja quem
enxerga tenta guiar de alguma forma
Patriacutecia mdash Eu concordo com ela
Andreacute mdash Difiacutecil natildeo guiar Estamos habituados a isso Tambeacutem tem o fato de
por mais que possa haver um esforccedilo de pacificaccedilatildeo eacute muito difiacutecil nos
anularmos totalmente Creio que natildeo eacute possiacutevel jamais saber todo o ministeacuterio
Pois bem muito bom poreacutem a hora urge alguma consideraccedilatildeo final
Patriacutecia mdash Gostaria de ressaltar que concordo com Thayrine O aluno vendado
eacute de certa forma o professor guiado justamente porque a pessoa que estaacute
sendo guiada abre matildeo de seu conhecimento para se permitir ser guiada pelo
outro Na verdade o outro mostra a vocecirc as necessidades dele para que vocecirc
possa em alguma medida interferir Natildeo incisiva mas participativamente
Thayrine mdash Tem outra questatildeo que parte do pressuposto de que vocecirc sabe
tem algum conhecimento que aquela pessoa natildeo tem O que estaacute vendo de
algum modo tem um conhecimento que o outro natildeo tem mas deixando-se
guiar percebe que a outra pessoa tambeacutem tem um conhecimento diferente do
seu Ah Eu estava sentindo as coisas de outra forma diferente de Patriacutecia eu
tinha que tocar em tudo eacute diferente
Patriacutecia mdash Eacute outra forma de vivenciar de encontrar o mesmo caminho soacute que
por outras vias
Neste ponto encerramos a atividade Interessante perceber como a questatildeo do
controle e descontrole tomou rumos proacuteprios Numa situaccedilatildeo com outras pessoas a
discussatildeo certamente seria distinta O bate-papo final durou 9 minutos e 6 segundos Ao
todo foram cerca de 45 minutos
Reflexatildeo com a experiecircncia
De todos os cinco sentidos a visatildeo talvez seja o mais exaltado em nossa sociedade
Afirmaccedilatildeo que pode ser verificada de muitas maneiras uma delas se refere agrave luz Ela que
eacute possibilidade de visatildeo nos eacute apresentada como algo fundamental tanto pela via sacra
quanto pela sinoniacutemia com razatildeo Em Gecircnesis Capiacutetulo 1 Versiacuteculo 3 (BIacuteBLIA 1962)
184
temos a famosa passagem ldquoFiat luxrdquo na qual a divindade faz com que haja luz em
detrimento das trevas e a partir desse ato haacute vida De modo semelhante ldquoa racionalidade
eacute vista como a essecircncia e o destino do ser humanordquo (BIESTA 2013 paacuteg 31) no seacuteculo
XVIII conhecido tambeacutem como Seacuteculo das Luzes
Esta sociedade que vecirc acaba se definindo entre os limites do alcance de sua visatildeo
E a luz ora pelos deuses ora pela razatildeo possibilita que se possa ver isto eacute definir
Quando Heidegger (2008 paacuteg 41) se refere agrave ciecircncia (intimamente relacionada com a
razatildeo) como a ldquoteoria do realrdquo ele dialoga diretamente com o homem que vecirc e que precisa
ver para ser homem
O homem que vecirc se habituou com a visatildeo ele entende o mundo a sua volta por
esse sentido Um haacutebito que lhe trouxe conforto e seguranccedila A ciecircncia com sua exatidatildeo
traz seguranccedila Nesse vieacutes a teoria do real apresenta reminiscecircncias do sentido do verbo
grego theoreacutein contemplar perceber observar mas tambeacutem consultar um oraacuteculo
(LIDDELL SCOTT 1940) A luz da razatildeo permite que o homem veja o real assim como
o oraacuteculo permitia que o homem soubesse o desiacutegnio dos deuses
Natildeo podia o homem grego ter acesso ao desiacutegnio dos deuses senatildeo pelo oraacuteculo
Natildeo pode o homem atual ter acesso a seu mundo senatildeo pela luz da razatildeo Biesta (2013)
reconhece que o problema do homem racional (ou humanismo) eacute sua normatizaccedilatildeo do
que significa ser humano e consequentemente como compreender seu mundo Para entatildeo
corresponder a essa questatildeo o autor vai propor repensar o que entendemos por homem
Todavia em vez de perguntar pelo que eacute o homem a pergunta agora interroga a respeito
de onde o homem se torna presenccedila
Uma mudanccedila nada banal de como lidar com a questatildeo Enquanto a primeira
remete a si ao homem que (se) vecirc a segunda remete ao outro ao lugar no qual o homem
que vecirc se encontra uma pergunta pelo ser a outra pela presenccedila Sutilmente a questatildeo
engendra outra perspectiva de se dispor a perguntar pelo ser que tambeacutem eacute ser da
presenccedila e pela presenccedila do ser Trata-se de enfoque afinal ambas as perguntas satildeo feitas
pelo homem atual a saber noacutes mesmos
Perguntar pela presenccedila tambeacutem pergunta pelo ser mas tentando resgatar o que
haacute de mais concreto e mais perto embora nem sempre acessiacutevel deste ser Quando se
pergunta pela presenccedila assume-se que a essecircncia estaacute aqui independentemente do que
se acredita que ela seja ou poderia ser Se algueacutem pergunta eacute porque quer saber algo mas
185
a pergunta pela presenccedila natildeo comporta a seguranccedila de uma definiccedilatildeo propotildee o convite
da visita agrave presenccedila do outro
Por visita novamente o professor Biesta (2013) nos esclarece uma importante
distinccedilatildeo entre empatia turismo e visita A empatia e o turismo eacute uma adequaccedilatildeo de
sujeitos a outros sujeitos A visita por outro lado tenta manter as distacircncias entre cada
parte envolvida em um lugar comum Desta forma eacute assumido o desafio de amar o
proacuteximo como o proacuteximo que ele eacute ao inveacutes de como noacutes mesmos impondo ao outro
nossa forma de ver o mundo
O que podemos fazer sem luz Danccedilar eacute uma possibilidade O danccedilarino que olha
para os proacuteprios peacutes natildeo estaacute a danccedilar pois estaacute ocupado a olhar para os peacutes O deus que
danccedila (NIETZSCHE 1981) nunca sequer os viu ele confia no chatildeo e no ritmo
Naturalmente esta confianccedila natildeo vem sem risco Noacutes mortais mais do que os deuses
estamos sujeitos agrave violecircncia do mundo queremos possuir o diferente para nos
salvaguardar do que nos desafia irrita perturba (BIESTA 2013) e mata
Logo natildeo ver ou abrir matildeo da visatildeo natildeo pode ser resolvido num mero acender
ou apagar das lamparinas Eacute abraccedilar uma realidade com espinhos e perceber que nem tudo
poderaacute ser calculado e muito menos medido pela sua funcionalidade O homem que natildeo
valoriza a inutilidade vecirc a danccedila unicamente como adequaccedilatildeo aos passos coreograacuteficos
ele natildeo tem tempo para perder tempo para suspender o tempo fabril (MASSCHELEIN
2010) e experienciar a brevidade do mundo para arriscar e provar e natildeo gostar e
recomeccedilar de outra maneira Natildeo eacute capricho do cego danccedilar sem ver Assim como natildeo
devemos encarar a suspensatildeo da visatildeo como excentricidade mas sim por uma visita
(BIESTA 2013) a lidar com um mundo que natildeo conhecemos nem podemos conhecer
186
Consideraccedilotildees finais
Em linhas gerais tentamos relacionar entre si trecircs questotildees principais com o
intuito de habitar o terreno das praacuteticas mais adiante o que eacute tradiccedilatildeo o que eacute filosofia e
o que eacute linguagem Naturalmente que haacute uma infinidade de respostas Ratificando a accedilatildeo
de convidar seguem alguns encaminhamentos possiacuteveis que iratildeo ajudar na compreensatildeo
deste trabalho
A tradiccedilatildeo e o ensino andam juntos Este transmite a mensagem que aquele deixou
ao longo dos anos Concomitantemente aprendemos a crer na tradiccedilatildeo e em sua
transmissibilidade O modo como encaramos um natildeo se distancia muito do jeito que
lidamos com o outro a tal ponto que o ensino da tradiccedilatildeo se confunde com a tradiccedilatildeo do
ensino Nesse sentido natildeo eacute de se espantar que partir para estranhos rumos e diferentes
rotas gere algum abalo na maneira tradicional de ver as coisas Numa perspectiva mais
ampla somos e natildeo somos nossos pais assim como nossos filhos estatildeo destinados a ser
e natildeo ser agrave nossa imagem e semelhanccedila Nem a mensagem a ser transmitida costuma ser
assimilada de forma tatildeo inoacutecua sem alguma coisa de maacutecula e invencionice Por esse
motivo certo descontrole eacute mais do que bem-vindo eacute essencial
Prosseguindo o desenvolvimento das questotildees com as quais buscamos
familiaridade e em se tratando de experiecircncias de base filosoacutefica eacute interessante se
perguntar pela tradiccedilatildeo da filosofia Normalmente conceituaccedilotildees complexas e a sisudez
em seu trato se afinam com a filosofia e em contrapartida uma postura poeacutetica ou menos
centrada no conceito tendem a atrair repulsa O que chamamos de filosofia nem sempre
teve entendimentos afins com os atuais Nomeaccedilatildeo que instigava ideologias distintas sob
semelhante alcunha Inclusive aquelas definiccedilotildees e anedotas filosoacuteficas passaram por
modificaccedilotildees e solidificaccedilotildees no imaginaacuterio do pensamento de tal modo que pensar
aqueacutem ou aleacutem delas torna-se um esforccedilo tremendo
Refazer os passos que nos pisaram pisam e pisamos eacute conveniente Desde a
segregaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel ateacute o estabelecimento do domiacutenio da razatildeo o
pensamento soube se definir Eacute preciso desaprender Se o poeta foi expulso e com ele o
modo de ser poeacutetico tambeacutem a filosofia natildeo se encontra em bons lenccediloacuteis Achincalhada
de sandice e coroada de matildee de todas as ciecircncias enquanto foi esquecida propositalmente
187
no asilo das irrelevacircncias pelos filhos ingratos a maneira de dizer filosoacutefica eacute esvaziada
de importacircncia e soacute um pensamento disposto a pensar-se isto eacute uma filosofia capaz de
se questionar filosoficamente pode ousar um espaccedilo em nossa sociedade do controle
Conclui-se portanto que natildeo existe nada como uma existecircncia sem sentido Todo
existir significa um jeito de ver sentir pensar enfim ser A criacutetica da tradiccedilatildeo e
consequentemente da tradiccedilatildeo do pensamento estaacute intimamente vinculada com a criacutetica
de como somos o que somos Em outras palavras eacute perguntar o que eacute o ser a partir de
como se eacute Como natildeo deixar nossas respostas virarem soluccedilotildees mas permitirem a
recolocaccedilatildeo da questatildeo Como dizer sem definir nomear sem classificar Natildeo haacute
resultados garantidos soacute o horizonte e o misteacuterio que tanto esconde e nega quanto mostra
e ensina ldquoQuem quer passar aleacutem do Bojador Tem que passar aleacutem da dorrdquo (PESSOA
1934 paacuteg 64)
188
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AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo a todos por terem vindo agradeccedilo agravequeles que natildeo puderam mas
gostariam de ter vindo e agradeccedilo por isto aqui minha Dissertaccedilatildeo Agradecer por uma
obra sua parece estranho e ao mesmo tempo natildeo digo isso soacute por educaccedilatildeo claro
tambeacutem por educaccedilatildeo por gentileza em reconhecer o delicado gesto do deslocamento e
da disponibilidade de tempo que me concedem Mas principalmente pelo fato de
enxergar neste trabalho vaacuterias vozes vaacuterias matildeos e uma assinatura apenas que natildeo daacute
conta da magnitude das contribuiccedilotildees em sua na confecccedilatildeo
Para quem eacute daacute aacuterea quase como um bordatildeo eacute comum ouvirmos agradecer eacute
pensar (HEIDEGGER 1977b paacuteg 330) Por que isso Qual a semelhanccedila entre os dois
verbos No caso o autor tinha sido homenageado com o tiacutetulo de cidadatildeo honoraacuteria de
sua cidade natal Aqui vocecircs me homenageiam assistindo agrave Defesa que haacute de conceder-
me o tiacutetulo de Mestre reafirmando o lugar no qual jaacute me encontro e moro haacute tempos
O que faccedilo natildeo eacute senatildeo reconhecer a minha e a nossa parte algo que natildeo acontece
automaticamente que natildeo cai na leviandade das palavras apressadas na correria que mal
tem tempo para os amigos e o pensamento O que faccedilo eacute pensar com e para vocecircs o
movimento de gratidatildeo doaccedilatildeo e gratuidade de parar e atentar e ousar dizer sem exigir
uma troca mas recebendo os frutos do empenho como quem aceita das matildeos familiares
um presente inesperado
Entre agradecer e pensar em portuguecircs carece o gracejo da semelhanccedila musical
do alematildeo Sim o alematildeo tem sua graccedila tambeacutem As palavras danken e denken significam
respectivamente agradecer e pensar mas por outro lado falta nelas o desafio o esforccedilo
de ligar esses dois sentidos aparentemente distantes Agradecemos o bom dia o aceno de
matildeo aquele ou este obseacutequio ao mesmo tempo em que somos capazes de esquecer o
porquecirc disso tudo E por vezes calamos e estamos profundamente gratos
Dizemos que pensamos nisso ou naquilo pensamos quando achamos que vamos
sair mais agrave tarde sem contar com a chuva Pensamos quando lembramos da tarefa de casa
tal estante a pregar tal moacutevel a mudar de lugar Pensamos quando calculamos as contas
que faltam pagar e quando raciocinamos que uma escola distante do lar pode ser a melhor
opccedilatildeo para nossos filhos Pensamos e somos capazes de nos esquecer no processo
acabamos pensando sempre para fora a resolver a supor mas nunca ou raras vezes a ser
e saber o que somos e o que nos motiva a continuar a pensar Isso porque
corriqueiramente pensamos sem agradecer e agradecemos sem pensar Quero natildeo faltar
com essa moeda a vocecircs com essa dupla face que se desdobra e se encara Moeda
amassada e dobrada sem valor no mercado mas muito importante para o mercado para
os homens para a cultura pensamento e agradecimento
Como eu havia dito esta tambeacutem eacute minha cidade meu lugar de conforto meu lar
e minhas ideias Vocecircs satildeo desde antes da escrita uma disposiccedilatildeo para pensar e um
pensamento disposto a agradecer o que muda depois da escrita Nada e tudo Hoje se
encerra um ciclo poreacutem ciacuterculo que eacute ciacuterculo nunca acaba Ele gira ele roda enquanto o
centro permanece e possibilita a circulaccedilatildeo assim como a circulaccedilatildeo daacute sentido ao centro
irradiador
O Misteacuterio mora
Girando na roda o homem danccedila e ignora
Mas o Misteacuterio mora no meio e memora (FROST 1942 paacuteg 71 ndash traduccedilatildeo
de Andreacute Borges e Thayrine Kleinsorgen)1
Ainda assim alguns talvez natildeo conheccedilam do que trata o mutiratildeo que conduziu ateacute
a Dissertaccedilatildeo Eis o percurso tradiccedilatildeo filosofia e linguagem Disso meu trabalho fala a
respeito A parte de vocecircs Bem vocecircs satildeo a tradiccedilatildeo que quer se perpetuar e o ensino
que se esforccedila para que isso aconteccedila Satildeo a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo e sua mensagem dando
possibilidade para a criaccedilatildeo de novas coisas novas operaccedilotildees novas dissertaccedilotildees
Enquanto processava essas informaccedilotildees fiz um percurso ateacute meus 20 anos para o
iniacutecio da faculdade de Letras continuei ateacute os 18 ainda na faculdade de Filosofia e natildeo
parei esbarrando em Platatildeo e em sua filosofia que convenhamos eacute ainda a nossa
filosofia Eacute e natildeo eacute De Platatildeo a Heraacuteclito dei a volta para chegar agrave poesia ao dizer poeacutetico
a uma poeacutetica que natildeo eacute papo de quem nunca trabalhou de verdade mas de quem trabalha
com a verdade em sua multiplicidade e concretude
Vocecircs estavam juntos sem o saber ou sabendo Foi uma conversa aqui uma ajuda
com uma traduccedilatildeo ali muitas negativas e ausecircncias Cada pedaccedilo de texto eacute um bordado
a vaacuterias matildeos um diaacutelogo cujas vozes eu ouvia e caacute estou a dividir com vocecircs minha
esquizofrenia salutar A sauacutede convulsionante desses uacuteltimos tempos deixa uma
1 The Secret sits We dance round in a ring and suppose But the Secret sits in the middle and knows
significante marca a ferro na histoacuteria da minha vida de modo que natildeo seria possiacutevel nem
que eu quisesse nem que eu fosse desonesto comigo mesmo prosseguir sem que se
tornasse notaacutevel a boiada agrave qual faccedilo parte
Pensa quem agradece logo porque agradeccedilo penso A travessia que fiz e faccedilo eacute
nossa e minha Ela eacute sempre de dois dois extremos duas margens Atravessar por outro
lado eacute algo solitariamente proacuteprio Ningueacutem pode atravessar por mim Podem sim me
ensinar podem me carregar mas quem atravessa sou eu Eu atravesso e sou atravessado
pela travessia que satildeo duas que somos noacutes e em alguma medida nenhum de noacutes A
terceira margem de um extremo eacute o local ao qual natildeo temos acesso mas fazemos parte
sem saber sem querer sem buscar Acham mesmo que eu esperava fazer o que fiz
Acham mesmo que algueacutem faz exatamente o que planejou O ponto de chegada nunca eacute
aquele da partida
A terceira margem embora natildeo exista como um local fiacutesico eacute de uma
espacialidade presente esse lugar que estamos quase chegando poreacutem nunca aportamos
de fato Sabe quando terminamos algo mas na verdade sabemos que daria para fazer
mais alguma coisinha mais uma pincelada de tinta mais uma frase soacute um minutinho a
mais Isso eacute porque sempre haacute o que fazer sempre haacute aonde chegar Esta Dissertaccedilatildeo natildeo
eacute um comeccedilo natildeo eacute certamente um fim ela eacute um encaminhamento uma possibilidade
ela estaacute sendo feita ainda e jaacute foi concluiacuteda tempos atraacutes em certo sentido
Ela existe para mim e independente de mim um convite a vocecircs e inegavelmente
um convite a mim Se eu agora a relesse toda faria outra Dissertaccedilatildeo completamente
diferente Natildeo por discordacircncia mas porque depois dela depois de vocecircs depois de tudo
que nos atravessa jamais daria para repetir e concordar em absoluto com o que estaacute aqui
Mesmo assim talvez ateacute pelo carinho que tenha pelos presentes foi um enorme prazer
escrever
Prazer e dor Nunca foi tatildeo difiacutecil olhar no espelho Como quem envelhece dez
anos em dez meses como uma necessidade boa mas um fardo obrigatoacuterio escrever eacute ter
de lidar com todos nossos monstros e heroacuteis Algo do medo das primeiras vezes sabe-
se laacute o que pode acontecer Aquela primeira vez que andamos sem nossos pais na rua
quando a responsabilidade precisa ser assumida ainda que seja para comprar algumas
balas Em cada decisatildeo uma monstruosidade estaacute agrave espreita e temos medo
Nas histoacuterias em quadrinhos em geral aparecem os heroacuteis que salvam o dia Na
histoacuteria contada nestas paacuteginas dissertativas heroacutei e monstro salvam-se um ao outro
Afinal haacute alguma proximidade entre eles Ambos desafiam os limites estabelecidos por
isso tecircm de lidar com a criaccedilatildeo esse mundo desbravado e com a tradiccedilatildeo aquilo a ser
testado ao extremo Monstro e heroacutei satildeo aspectos diferentes da mesma dobradura de
paacutegina O que seria do Superman sem o Lex Lutor para que aquele pudesse ser super O
que seria do inimigo sem o guerreiro para fazer frente Teriacuteamos que aceitaacute-lo passivos
passividade terminal doenccedila Natildeo o caminho proposto traz agrave tona toda a tensatildeo que
qualquer boa conversa deve ter duas vozes que se completam em uma
Nesse sentido heroacutei eacute soacute um desdobramento nosso Assim como o monstro
Aquilo que talvez ainda natildeo sejamos mais almejamos e repudiamos Aquela presenccedila
que nos incomoda e nos mostra tudo o que somos e podemos ser Cada um de vocecircs que
compotildee minha escrita forccedilou-me agrave beira do que sou tanto que esgarcei e estou tranquilo
Fiz o que pude agrave luz de tatildeo heroica e monstruosa visatildeo
Com o intuito de dar um exemplo vivo do que falo trago uma anedota Numa
mesa de restaurante certa vez falava e ouvia com um amigo Ele relatava sua histoacuteria e as
personagens principais nela Ora tinham vilotildees e mocinhos ora as mesmas figuras
desempenhavam papeis diferentes hoje elas permaneceram fazendo dele o que ele ainda
eacute Pude assistir a tudo e refletir quais seriam meus protagonistas O tempo trouxe alguns
rostos agrave memoacuteria outros ficaram esquecidos Suas influecircncias nem sempre seratildeo
lembradas por mim mas nem por isso elas deixaratildeo de estar presentes Natildeo paro de
aprender com meus mestres sem nome e aos que tenho como nomear tento deixar
subentendido para natildeo deixaacute-los vaidosos e envergonhados Silenciosamente contorno a
gigantesca daacutediva a enorme diacutevida cuidando para natildeo tropeccedilar nas palavras gratuitas e
nos elogios vazios Busco a homenagem precisa meliacuteflua e perspicaz sem a
obrigatoriedade de deixar claros os rastros da minha monumental gratidatildeo Ao misteacuterio
fique relegada toda a verdade De modo sorrateiro deixo duas pegadas para cada passo
reverberando feito corajosa lira os sons delicados de gatos no jardim entre assumpta
figueira e oliveiras ao largo da almeida do barco do desbravador
Tive sorte e por isso agradeccedilo Fui afortunado por compartilhar meus
pensamentos Aquele menino que viu o Peleacute jamais jogaraacute bola do mesmo jeito
Lembram-se quando ainda estavam inseguros ou quando acreditavam jaacute saber fazer algo
e viram um grande mestre reinventar a roda Seja vendo sua avoacute cozinhar sua matildee trocar
a frauda de seu receacutem-nascido ou soacute um amigo mais velho a dividir suas histoacuterias
heroicamente o diaacutelogo se estabelece e vocecirc acaba de ser atravessado por ele Soacute resta
reaprender a viver depois disso Obrigado
Dedico este texto em profundo agradecimento aos seguintes nomes presentes na
minha Defesa
Adriano Furtado Hugo Afonso Correia de Almeida
Alice Bentzen Assumpccedilatildeo Isabella Daemon
Amanda Falconi Jessica Natarelli
Ana Cristina Gelape Julia Hortecircncia Carvalho Nascimento
Antonio Jardim Maria Lucia de Oliveira da Purificaccedilatildeo Marinho Pereira
Baacuterbara Martins Pedro Trajano Cardoso
Caio Cruz Priscila Loureiro
Denilson Marinho Pereira Rafael Barbosa
Diogo Santos Rodrigo Marques de Carvalho
Eduardo Gatto Thayrine Kleinsorgen de Almeida Cruz
Felipe Forain Marques Viniacutecius de Figueiredo Barbosa
Giovanna Giffoni
E agraves presenccedilas ausentes que contribuiacuteram para este trabalho
Allan Charles Marcus Caetano
Andreacute Viniacutecius Lira Costa Marcus Erbas
Andreacuteia Pedroso Mariana Borges de Oliveira
Carla Rodriguez Mariana Rodrigues
Daniel Forain Nicole de Oliveira
Edna Oliacutempia Patriacutecia Trajano Cardoso
Edson de Almeida Ramos Rafael Lemos
Felipe Copque Rodrigo Wentzel
Fernanda Fonseca Silvia Herkenhoff Carijoacute
Fernando Sampaio Taynaacute Rosa
Flaacutevio Chame Thiago Pereira
Gabriel Torres Vanise Dutra
Gabriela Borges de Oliveira Walter Kohan
Guiomar Borges Yasmin Motta
Ivana Machado Demais profissionais que me auxiliaram
Liacutevia Egger Demais professores que me formaram
Luiacutes Antocircnio Borges de Oliveira Demais amigos que me constituiacuteram
Manuel Antocircnio de Castro Demais familiares que me possibilitaram
EPIacuteGRAFE
Aacutervore genealoacutegica
A mais frondosa aacutervore da cidade
Eacute a aacutervore que jaz no cemiteacuterio
Seu viccedilo traz de longe uma saudade
Que a bruma envolve toda em misteacuterio
A seiva lembra sangue escurecido
Sangue que me sangra jaacute esquecido
Do pai do pai do pai (um fruto antigo)
Que crava suas raiacutezes laacute em Vigo
Comer a carne doce recolhida nesse horto
Eacute devorar um violado corpo (morto morto morto)
Que restou de um ancestral
Thayrine Kleinsorgen
RESUMO
O ensino de filosofia a partir de uma perspectiva poeacutetica
Questionamento acerca da concepccedilatildeo de filosofia que resgate sua afinidade
originaacuteria com a poesia a fim de que se compunha um ensino galgado na criaccedilatildeo ao inveacutes
da reproduccedilatildeo Por ser uma disciplina estigmatizada de obscura de inuacutetil e de pouco
importante numa compreensatildeo praacutetica e objetiva natildeo eacute de se espantar que isso influencie
diretamente seu ensino logo conveacutem se perguntar sobre nossa ideia de tradiccedilatildeo e
consequentemente da possibilidade ou natildeo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo pelo ensino
Naturalmente que a proacutepria tradiccedilatildeo da filosofia natildeo poderia ser deixada de lado Aleacutem
do mais eacute possiacutevel constatar que parte do caraacuteter segregante com a qual a filosofia eacute
relacionada tem um fundamento em sua histoacuteria com a separaccedilatildeo do poeta e da cidade e
da realidade sensiacutevel e inteligiacutevel Portanto recriar a ponte partida entre pensamento e
poesia significa tanto ousar uma nova postura diante da realidade quanto retomar sentidos
adormecidos na linguagem cotidiana Por fim fica patente que determinadas amarras
estatildeo presas demais para abrirmos matildeo mas outras nem tanto e ambas fazem parte do
que nos constitui Ou seja aceitar nossos limites enquanto o que nos fundamenta e daacute
sentido e natildeo apenas um cerceamento mas uma resposta que tanto define algo quanto
recoloca a questatildeo fundadora numa perspectiva singular torna-se postura essencial para
uma poeacutetico-filosofia
Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem
ABSTRACT
The teaching of philosophy from a poetic perspective
Questioning about the conception of philosophy that rescues its original affinity
with poetry in order to teach based in creation rather than reproduction Because it is a
discipline that is stigmatized as obscure useless and unimportant in a practical and
objective understanding itrsquos not surprising that this directly influences its teaching so
one has to ask about our idea of tradition and consequently the possibility of
transmission of tradition through teaching Of course the very tradition of philosophy
could not be left aside Moreover it can be seen that part of the segregating character
which philosophy is related has a foundation in its history with the separation of the poet
and the city and the sensible and intelligible reality Therefore re-creating the bridge
between thought and poetry means both to dare a new attitude towards reality and to
return to the dormant senses in everyday language Finally it becomes clear that certain
moorings are too fastened to give up but others not so much and both are part of what
constitutes us That is to accept our limits as what gives us meaning and not only a
restriction but an answer that both defines something and replaces the founding question
in a singular perspective becomes an essential posture for a poetic-philosophy
Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
Figura 1 ndash As quatro influecircncias 75
Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna 77
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 15 1 Pensando a Educaccedilatildeo 20 11 O ensino decide por dizer 20 111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc 22
112 Um saber que rasga 26 113 Natildeo ensinar e a ciecircncia 33 114 O jogo do poeta e da infacircncia 38 12 A tradiccedilatildeo 40 121 Quando o poeacutetico repousa esquecido 42
122 A ideia e o ser 43
123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo 46
124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo 49 125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo 52 126 Os mutirotildees do homem 55 2 Pensando a Filosofia 57
21 A filosofia como resposta 57 22 Filosofia inteligecircncia e entendimento 60
221 Ciecircncia e intelecto 72 23 Crenccedila e conjectura 73 24 Filosofia e opiniatildeo 80
25 Diaacutelogo e filosofia 85 3 Pensando a Linguagem 96
31 Linguagem e limite 101
32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem 106
33 O limite da resposta 110 34 A resposta do limite 115 35 Dois lados da mesma moeda 118 351 A resposta que natildeo soluciona 118
352 Temor sagrado 121 353 O que responde o sagrado 125 Consideraccedilotildees Finais 131 Referecircncias 137 Apecircndice 150
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Introduccedilatildeo
Pensar uma educaccedilatildeo para aleacutem do controle eacute um desafio Os perigos satildeo os mais
diversos pois somos criados na mesma tradiccedilatildeo que agora pretendemos criticar
Diferente de outros temas ndash mais abstratos ou distantes historicamente ndash este apresenta
claro como o sol nossa relaccedilatildeo intriacutenseca com ele Somos filhos netos e pais de um
modelo educacional que compreende como fundamental a transmissatildeo de um
conhecimento das antigas para as novas geraccedilotildees
E qual natildeo seria o papel da educaccedilatildeo senatildeo este o de transmitir saberes valores
o de fornecer proteccedilatildeo e preparaccedilatildeo para uma realidade cada vez mais exigente e
competitiva A responsabilidade que a sociedade coloca e cobra da escola e
consequentemente dos professores se justifica por essas mesmas razotildees Por que entatildeo
natildeo seria um desserviccedilo questionar esse esquema que legitima os fundamentos da proacutepria
noccedilatildeo contemporacircnea de vida conjunta
Somos crias desse sistema e por isso aprendemos sempre a perguntar pela
funcionalidade das coisas o para quecirc serve isso ou aquilo evidentemente com a
educaccedilatildeo natildeo seria diferente Eacute nesse sentido principalmente que se torna desafiante
pensar a educaccedilatildeo movimento de des-afiar desfiar desafianccedilar de natildeo manter a
fidelidade com o desafiado (HOUAISS 2009a Desafiar) ou seja fazer o corte
delimitador entre o que somos e o natildeo ser Em outras palavras o desafio de pensar a
educaccedilatildeo caminha pelos limites que entrecortam os porquecircs de ensinar e aprender o que
ocasiona esses porquecircs e como podemos corresponder a eles
Eis que aceitando o convite do desafio da educaccedilatildeo deparamo-nos com o
seguinte impasse eacute possiacutevel abrir matildeo do controle Falar dos limites natildeo eacute a princiacutepio
o mesmo que falar da posse controladora Seacuteculos de metafiacutesica tecircm-nos confundido
quanto a isso e facilmente assumimos que controlar algo eacute limitaacute-lo como se nossa
vontade fosse decisiva para validar ou natildeo a sua existecircncia
Controla-se para dar sentidos O que estaacute dentro da cerca eacute nosso o que estaacute fora
eacute natildeo nosso outra coisa que estaacute sempre a rivalizar com as cercanias do que existe meu
mundo nosso mundo o mundo ocidental A esta forma de controle especiacutefica do
Ocidente chama-se ciecircncia ldquoa teoria do realrdquo (HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Um modo
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peculiar de dizer o que algo eacute conferindo-lhe existecircncia cientiacutefica a partir da descriccedilatildeo
de suas partes de nuacutemeros que a representem matematicamente de utilidade na maacutequina
mantenedora da seduccedilatildeo da crenccedila pelo controle etc
Assim os limites da φύσις do real tornam-se os limites no real na φύσις como
cessaccedilatildeo do fluxo de acontecimentos em prol da seguranccedila da estatiacutestica 99 precisa
margem beirando o inalcanccedilaacutevel 0 Questionando junto com Fernando Pessoa (2006 paacuteg
62) o que eacute o zero na realidade Assim a ciecircncia eacute a seguranccedila de um pensamento uacutetil
capaz de servir a propoacutesitos dos mais diversos que depois seraacute colocado agrave disposiccedilatildeo
para por precauccedilatildeo posterior usufruto
Natildeo se admira que a educaccedilatildeo de algo possa ser transmitida pois acredita-se na
confecccedilatildeo de uma mensagem que atravessa de preferecircncia incoacutelume de um remetente a
um destinataacuterio Quer dizer que natildeo haacute mensagens Que nada pode ser ensinado e
aprendido Seria relativizar demais a discussatildeo e caminhar atraacutes do proacuteprio rabo para no
fim alcanccedilar quando muito o comeccedilo improfiacutecuo Natildeo aqui se refere agrave crenccedila na
mensagem
Certa tolice certa inocecircncia que nos acompanha eacute a de que podemos fazer
qualquer coisa conforme a planejamos Ter esperanccedilas e fazer planos para a realizaccedilatildeo do
sonho aparece neste trabalho tatildeo proacutepria aos entes quanto suas falhas incessantes e ainda
assim ldquoentre fazer e natildeo fazerrdquo
O artista inconfessaacutevel
Fazer o que seja eacute inuacutetil
Natildeo fazer nada eacute inuacutetil
Mas entre fazer e natildeo fazer
mais vale o inuacutetil do fazer
Mas natildeo fazer para esquecer
que eacute inuacutetil nunca o esquecer
Mas fazer o inuacutetil sabendo
que ele eacute inuacutetil e bem sabendo
que eacute inuacutetil e que seu sentido
natildeo seraacute sequer pressentido
fazer porque ele eacute mais difiacutecil
do que natildeo fazer e dificil-
mente se poderaacute dizer
com mais desdeacutem ou entatildeo dizer
mais direto ao leitor Ningueacutem
que o feito o foi para ningueacutem (MELO NETO 1975 paacuteg 30)
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Natildeo haacute controle com o que se aprende Planejamos com cuidado uma aula
confiamos que nossos caacutelculos daratildeo certo mas em verdade natildeo importam quais os
dispositivos de controle utilizados todos estaratildeo sujeitos aos limites impostos pela
corrente de acontecimentos incertezas e impossibilidades a que chamamos real Natildeo agrave
toa a compreensatildeo mais tradicional de ensino estaacute calcada na ideia da transmissatildeo de um
conteuacutedo Nesse sentido questionar a extensatildeo de um controle eacute sim um risco ao
sustentaacuteculo da crenccedila na mensagem Isso passa por uma criacutetica da tradiccedilatildeo jaacute que ficaria
difiacutecil sem ela pois esta eacute nossa histoacuteria nosso modo de ver as coisas
Abrir matildeo do controle natildeo eacute abrir matildeo dos limites Que a questatildeo se torne pois
como agir diante do que se aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente
ele natildeo eacute Os limites satildeo tatildeo impostos pela tradiccedilatildeo quanto pelo saber atual Diga-se de
passagem tradiccedilatildeo e atualidade natildeo satildeo completamente distintas uma da outra
Numa outra concepccedilatildeo esquecida no uso mais habitual haacute a palavra poeacutetica que
brinca com os controles e alarga os limites Laacute jazem outros tempos outras liacutenguas que
aqui nos achegam como convites de pensamento Uma tradiccedilatildeo que eacute traditio uma
traditio que eacute traiccedilatildeo Perpetremos a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo enquanto mutiratildeo de todos pois
ontoloacutegica e etimologicamente todas as palavras se imiscuem e se dizem de modos
singulares
Ideias estranhas numa trajetoacuteria de conhecimento linear Entretanto quando nos
defrontamos com um saber que sabe porque vecirc e soacute vecirc porque sabe o que antes causava
estranheza pode suscitar sentido Compreensatildeo que natildeo se fia no controle mas que
delimita e por isso constitui uma existecircncia pela experiecircncia com algo
Um limite que marca sem controlar uma ideia que natildeo se restringe agrave sua
inteligibilidade mas que se apresenta como verdade que demarca uma manifestaccedilatildeo no
real Sem certo ou errado a priori apenas eacute Apenas natildeo como o que se esvai na
banalidade do sem importacircncia mas denso e simples como a dor de topar numa pedra
como se ela inanimada pudesse gritar caacute eu estou acolaacute tu
Ao aceitar o desafio que a educaccedilatildeo exige arrisca-se no estrangeiro do caminho
aquilo que natildeo conhecemos Postura essa conveniente se quisermos enveredar por
assuntos pouco visitados por exemplo a filosofia em tempos de crise do pensamento Isso
significa tratar de uma temaacutetica fora dos paradigmas sem os quais nos acostumamos a
fim de natildeo soacute educar de modo diverso mas concretamente diverso
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A filosofia jaacute possuiu uma conduta puacuteblica e sua praacutetica era indicada para entre
outras coisas uma vida feliz e um Estado profiacutecuo Atualmente contudo atende a
indiviacuteduos e suas curiosidades ou assombra a escrita destinada agrave gaveta de algum
acadecircmico Em meio agrave tecnocracia ela natildeo tem mais vias praacuteticas de atuaccedilatildeo ou pelo
menos essa eacute a compreensatildeo corrente Isso porque eacute difiacutecil precisar sua funccedilatildeo e
consequentemente duro eacute o ensino que natildeo se fia no para quecirc ensinar
Vale se for para a prova mas apenas para a prova Vale se for soacute por saber desses
somentes simploacuterios e ociosos de sentido Vale pelas vias da utilidade que sem ela nada
presta Afinal qual o ofiacutecio do filoacutesofo ou do poeta O que um pensador faz constroacutei ou
salva A imaterialidade da obra da filosofia eacute mal vista no mundo materialista Ainda por
cima desde seus tempos de gloacuteria ela escolheu por amizade determinados saberes pondo
de lado sua origem poeacutetico-mitoloacutegica como deixou expresso Platatildeo (1987 paacuteg 473) em
sua rixa com Homero o poeta por excelecircncia
Destrinchando a carne disciplinando o conhecimento o saber filosoacutefico platocircnico
hierarquizou a apreensatildeo que eacute feita da realidade e com isso criou uma das bases para o
controle da verdade que mais tarde chamaremos de ciecircncia Etapa por etapa o homem
poderia evoluir a comeccedilar pelo lodo (sic) das sombras no interior da caverna onde soacute haacute
conjecturas e nenhuma verossimilhanccedila como se a verdade precisasse de espelhos e natildeo
fosse ela mesma presenccedila concreta Em seguida de imagens turvas fizeram-se formas
mais niacutetidas quiccedilaacute cores e principalmente crenccedila Eis a verdade persuasiva ou
verossimilhanccedila na qual o criacutevel era o foco natildeo verdadeiro
Tudo achismo conforme a velha filosofia Achar algo eacute natildeo saber natildeo ter
credibilidade soacute ser opiniatildeo o que pertence aos muitos mas natildeo a mim ndash o filoacutesofo
Depois que aqueles homens cavernosos se desprenderam dos grilhotildees da parede sombria
o redor deixa de ser encarado como a verdade mas apenas como uma representaccedilatildeo da
verdade Mal comparando antes as coisas eram sentidas manifestadas e pressentidas
agora elas seriam compreendidas intelectualmente de modo que natildeo se faz necessaacuterio
vivenciar cada manifestaccedilatildeo singular para se ter uma ideia do que se queria representar
Esse eacute o espectro inteligiacutevel do real
Todavia sejamos francos aiacute tambeacutem haacute uma hierarquia Entre as opiniotildees e a
verdade haacute o conhecimento de afinidade teacutecnica As abstraccedilotildees a um fim espelham-se no
ideal modelar para aplicaacute-lo nas mais diversas ocasiotildees Em outras palavras a finalidade
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demonstra ainda certo apego ao sensiacutevel a um caso especiacutefico qualquer que deseja ser
solucionado Por isso que parte da tradiccedilatildeo reconhece nesse momento o geacutermen do
pensamento cientiacutefico
Ateacute que chegamos de fato agrave casa do filoacutesofo O topo da cadeia para o pensamento
de Platatildeo Quem deveria gerir os demais na cidade aquele mais distante do mundo das
manifestaccedilotildees Somos soacute representaccedilotildees da ideia natildeo manifestaacutevel O filoacutesofo traduziria
o ser representado e por isso deveria conduziria os homens
Sem perceber a filosofia se sabota Ao pronunciar-se aleacutem da arte inuacutetil a mesma
natildeo reconhece seu lado pouco praacutetico que demanda tempo tentativas e erros Com a
sedimentaccedilatildeo do domiacutenio da funcionalidade seu aprendizado torna-se estranho por natildeo
ser objetivo Por conseguinte ela eacute alijada do conviacutevio mundano juntamente com a
poesia que pela filosofia foi rejeitada Ambas estatildeo no canto da histoacuteria agrave margem da
ordem do dia Separadas elas foram banidas da πόλις e dificilmente juntas voltaratildeo agraves
graccedilas dela Tanto faz natildeo eacute o propoacutesito em vez disso busca-se reconhecer o vigor
originaacuterio tanto na filosofia quanto na poesia de dizer e nomear verdades
Em meio ao turbilhatildeo dos acontecimentos o silecircncio Um lugar onde a questatildeo
possa ser respondida sem a pressa de dar uma soluccedilatildeo mas com cuidado e esmero Sem
medo do erro mas tambeacutem com medo pois ele faz parte Natildeo haacute vida sem morte sagrado
sem temor nem sangue sem corte A tentativa de um ensino poeacutetico de filosofia natildeo eacute um
rabisco aleatoacuterio mas a alternativa possiacutevel de reconciliaccedilatildeo do que jaacute foi e em certa
medida estaacute inseparaacutevel
Nietzsche (1994 paacuteg 56) disse em uma ocasiatildeo muito proacutepria que soacute confiava no
que fosse escrito com sangue Jaacute se escreveu sulcando a pele de animais as cicatrizes
datam na carne um trauma do tempo e as tatuagens demarcam sentidos na ferida Todas
essas experiecircncias deixaram marcas imprimiram uma resposta num corpo de modo bem
concreto Assim se pretende uma filosofia poeacutetica uma tradiccedilatildeo poeacutetica e uma linguagem
poeacutetica que seja capaz de romper o limite instituiacutedo e assim engendrar novas limitaccedilotildees
abertura de possibilidades impingidas em ferro e fogo em controle e desafio em tradiccedilatildeo
e ensino em diaacutelogo paradoxal de limite e fundamento
20
1 Pensando a Educaccedilatildeo
11 O ensino decide por dizer
O ensino significa aqui estar na marca do pensamento Neste sentido este trabalho
natildeo trata de dizer como ou o que deve ser ensinado Ensinar natildeo se refere necessariamente
a o que aprender mas simplesmente a aprender A cada ensinamento algo eacute aprendido se
se faz o caminho do pensamento Enquanto o ensino convida a aprender ao convite se
corresponde como se pode ou seja a correspondecircncia ao ensino estaacute no acircmbito do que
natildeo temos controle
Natildeo haacute controle com o que se aprende Por mais elaborados que sejam os
esquemas e as metodologias nunca eacute garantido que determinado ensinamento seraacute
aprendido O ensino ndash enquanto crenccedila na apreensatildeo de um conteuacutedo isto eacute uma
concepccedilatildeo na qual se espera que algo seja compreendido logo aprendido e apreendido
pelo aluno ndash chama-se transmissatildeo do conhecimento
Para haver transmissatildeo eacute vital que algo possa ser transmitido como uma carta
inviolada entregue pelo carteiro diretamente do remetente ao destinataacuterio ou seja eacute
necessaacuterio que uma mensagem possa transitar preferencialmente incoacutelume de uma
pessoa para outra de uma geraccedilatildeo para outra Nesta perspectiva qualquer deslize a essa
mensagem qualquer sentido que fuja dos sentidos-modelo da mensagem que natildeo se
adeque agrave verdadeira mensagem estaacute incorreto e por isso seraacute evitado e ateacute mesmo
execrado pelos portadores da verdade enquanto transmissatildeo Assim tem sido ao longo da
histoacuteria para uma compreensatildeo mais tradicional da educaccedilatildeo com sutis mas sentidas
exceccedilotildees ateacute os dias atuais uma mensagem modelar e sua reproduccedilatildeo ditando o
significado de ensino
Somos seres que por milecircnios foram programados para concentrar-se em
determinadas possibilidades e obedecer a determinados princiacutepios Assim
fomos programados numa histoacuteria milenar a crer no progresso e a ter feacute no
poder da dominaccedilatildeo fomos programados para seguir modelos e obedecer a
paradigmas para cumprir ditados e aceitar tabus Numa palavra fomos
programados natildeo apenas para ter mas sobretudo para ser consciecircncia O
conteuacutedo que povoa nossa consciecircncia satildeo representaccedilotildees do que eacute do que
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foi e do que seraacute Satildeo representaccedilotildees do que pode ser do que vem a ser do que
deve ser Satildeo representaccedilotildees de crenccedilas e valores de anguacutestias e ansiedade de
dor e prazer de frustraccedilotildees e satisfaccedilotildees Satildeo representaccedilotildees de tudo Mas por
outro lado sempre em qualquer tempo em qualquer lugar ou condiccedilotildees os
homens natildeo satildeo apenas consciecircncia e representaccedilotildees (LEAtildeO 2003 paacuteg 18)
Quando abrimos matildeo da transmissatildeo abrimos matildeo do controle Contudo o
convite natildeo deixa de ser um juiacutezo Por exemplo quando chamamos algueacutem para uma
festa fazemos um convite Convidar natildeo eacute impor a presenccedila da pessoa mas demonstrar
sua importacircncia Tambeacutem acreditamos se convidamos com sinceridade que sua presenccedila
ali seraacute bem acolhida ainda que natildeo passe de uma suposiccedilatildeo podendo sua estadia naquele
evento festivo se revelar indesejada por uma ou ambas as partes envolvidas
A quem se predispotildee a ensinar conveacutem propor o convite Um juiacutezo cuidadoso
sobre o que como e a quem convidar mas que natildeo diz respeito a se e como o convite
seraacute aceito Julgar como quem toma uma decisatildeo como quem se avizinha da senda entre
dizer e natildeo dizer Uma decisatildeo natildeo pelo todo posto que natildeo se controla tudo mas acerca
de algo por aquele limite que marca e se arrisca na fronteira do dizer e do ensinar O
ensino decide por dizer O que ele diz
Eacute comum responder que praticamente tudo pode ser ensinado Ensina-se literatura
e filosofia como tambeacutem matemaacutetica fiacutesica e geografia O convite do ensino que
tambeacutem eacute uma decisatildeo remete a um conhecimento especiacutefico mas natildeo se restringe a ele
Ao decidir-se por ensinar algo leva-se em conta como proceder com esse ensinamento
ou seja sua metodologia traccedilam-se metas satildeo feitos planejamentos e promete-se aos
pais e agrave sociedade que aquele especiacutefico conteuacutedo seraacute transmitido
Todavia mesmo assim o ensino lida com imprevistos com o imprevisiacutevel
portanto a aprendizagem constantemente estaacute em tensatildeo entre o que achamos que eacute
possiacutevel transmitir e o que deixamos escapar agrave transmissatildeo seja por deslize seja por total
incapacidade de exercer qualquer saber ou conhecimento a respeito A pretensatildeo deste
trabalho eacute justamente lidar natildeo com a transmissatildeo mas com o ensino que estaacute sempre
condicionado ao natildeo ensinado ao natildeo ensinaacutevel ao natildeo dito em todo dizer
Ensinar diz e natildeo diz algo ensina e natildeo ensina alguma coisa demarcando um
saber em quem aprende O ensino aproxima um saber do aprendiz Ensinar en-sina in-
signum A palavra ensino eacute um substantivo formado por regressatildeo do verbo ensinar do
latim vulgar insigno ldquopocircr uma marca distinguir assinalarrdquo (HOUAISS 2009a) Por sua
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vez esse verbo latino proveacutem de sua forma erudita insignio ldquo1 Marcar com um traccedilo
caracteriacutestico meios de identidade 2 Marcar com aspas (em citaccedilotildees) 3 Adornar com
marcas honoriacuteficas 4 (transf) Tornar digno de nota ou notaacutevel marcar distinguirrdquo
(GLARE 1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)2
Literalmente ensino eacute se dispor agrave marca tanto demarcando uma caracteriacutestica em
algo ou algueacutem quanto a partir da marcaccedilatildeo fazer emergir essa distinccedilatildeo e diferenccedila
De modo menos literal marcar natildeo se refere a separar dos demais privando o que seja ndash
por estar marcado ndash de uma unidade agregadora refere-se contudo a identificar o que
ali se diz de modo singular em confluecircncia com outros dizeres
111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc
Assim faz-se um convite a pensar o ensino que distingue sem segregar Ensinar
sem se ater ao controle do conheciacutevel mas se esgueirando na fronteira neste rasgo
delimitador que daacute sentido ao sem sentido aos cem sentidos que a tudo iguala sem
distinccedilatildeo Distinguir sem segregar ocupa-se em natildeo esvaziar os modos proacuteprios de ser
em natildeo tornar cada ente distinto em peccedilas reproduziacuteveis para a sociedade Distinguir eacute
constituir a dignidade singular na dinacircmica do todo
A fim de esclarecer melhor a respeito da marca que jaz em todo ensino
debrucemo-nos um pouco mais sobre a palavra latina de modo a refazer as experiecircncias
de sentido que ela suscita Insignio eacute formada por regressatildeo da palavra insignitus ldquo1
Marcado com traccedilos caracteriacutesticos 2 Claramente definido ou caracterizado 3 Digno
de nota []rdquo (GLARE 1968 paacuteg 925 ndash traduccedilatildeo livre)3 cujo sentido ainda eacute bem
semelhante ao anteriormente descrito Esta palavra tem sua formaccedilatildeo atraveacutes da
composiccedilatildeo insigne + -itussup2
A palavra insigne eacute o neutro do adjetivo insignis que se junta a -itussup2 sufixo
formador de adjetivo que ldquoindica posse ou vestimentardquo (GLARE 1968 paacuteg 976 ndash
2 1 To mark with a characteristic feature means of identity 2 To mark with weals etc (in quots) 3 To
adorn with marks of honour 4 (transf) To make noteworthy or remarkable mark distinguish 3 1 Marked with distinctive features 2 Clearly defined or characterized 3 Noteworthy []
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traduccedilatildeo livre)4 Em insignis nota-se jaacute em suas primeiras entradas algo ainda natildeo
explorado quer dizer a distinccedilatildeo que traz agrave presenccedila por meio da visatildeo ldquo1 Claramente
visiacutevel ou reconheciacutevel 2 Facilmente apreensiacutevel 3 Notaacutevel em aparecircnciardquo (GLARE
1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)5
Na visatildeo da marca algo se faz facilmente presente distinccedilatildeo perceptiacutevel aos olhos
que passam No domiacutenio dos sentidos a visatildeo vige e a partir desta vigecircncia os contornos
que delimitam o que eacute digno de nota aparecem e definem o que eacute pela marca Na tradiccedilatildeo
do pensamento ocidental aparecendo em Platatildeo como um de seus conceitos
fundamentais a visatildeo exerce um papel crucial ldquoPlatatildeo chama esse perfil em que o
vigente mostra o que ele eacute de εἶδοςrdquo (HEIDEGGER 2002 paacuteg 45)
Εἶδος aparece diversas vezes na obra platocircnica e deu origem agrave palavra ideia em
portuguecircs que se tornou muito corriqueira hoje Em seu uso ordinaacuterio ter uma ideia se
assemelha ao aparecimento de uma imagem na mente do indiviacuteduo mas que remete a
uma representaccedilatildeo fora dela Todavia natildeo eacute esse o interesse aqui mas pretendemos sim
fazer o caminho de pensamento que a ideia (seja grega genericamente seja em Platatildeo)
nos convoca a percorrer No dicionaacuterio de grego εἶδος refere-se a ldquoaquilo que eacute visto
forma formatordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἶδος ndash traduccedilatildeo livre)6 do verbo εἴδω
ldquoseerdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἴδω)7 e οἶδα ldquoknowrdquo (LIDDELL SCOTT 1889
Οἶδα)8 respectivamente ver e saber
Essa eacute uma relaccedilatildeo peculiar uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc Agrave
primeira vista esse relacionamento entre ver e saber natildeo eacute muito claro basta pensarmos
que ver natildeo costuma ser o suficiente para justificar um saber Eacute preciso estudo foacutermulas
e um cabedal de teorias Ver tenderia a ser algo mais relacionado aos sentidos ao sensiacutevel
enquanto que saber estaria vinculado ao intelecto ao inteligiacutevel Seraacute possiacutevel
compreender esse mostrar que natildeo eacute incoacutelume que rasga seus contornos no real ao se
4 Denote possession or wearing 5 1 Clearly visible or recognizable 2 Easily apprehensible 3 Remarkable in appearance 6 That which is seen form shape Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999040057entry=ei)=dosgt Acesso em
27 set 2016 7 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3D233
0877ampredirect=truegt Acesso em 27 set 2016 8 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Doi)3
Ddagt Acesso em 27 set 2016
24
fazer apreensiacutevel facilmente apreensiacutevel Como um disciacutepulo que aprende vendo seu
mestre εἶδος monta um cenaacuterio cujo saber se constitui como tal no acircmbito da visatildeo A
experiecircncia de ver proporciona a princiacutepio um saber imediato sem intermeacutedios do que
natildeo estaacute ali na exigecircncia do olhar em referecircncia apenas agrave visatildeo e disposta a apreender
seu ensinamento concreto
Nenhum sentido iacutentimo nenhum aleacutem atraacutes para fora da proacutepria coisa Ser
uma coisa esta coisa eacute natildeo ser susceptiacutevel de outra interpretaccedilatildeo aleacutem desta
que ela necessariamente jaacute eacute para poder ser isso que eacute Assim neste sentido
toda coisa tudo eacute precisa ser singela franciscana superfiacutecie Sim os gregos
foram superficiais muito superficiais ndash por profundeza lsquoaus Tiefersquo (FOGEL
2007 paacuteg 48 ndash grifos no original)
O ver traz agrave tona outra forma de saber deste que natildeo se faz apenas na leitura e
dissertaccedilatildeo de um tema Precisaria ver para crer como Tomeacute sem a feacute do conceito mas
calcado no vigor da presenccedila que eacute a marca que a visatildeo deixa no ser Este saber ldquopraacuteticordquo
em que se aprende enquanto se faz e portanto viu-se algueacutem fazendo (seja outrem seja
a si proacuteprio como autocriacutetica) para entatildeo fazer estaacute limitado pelo seu campo de visatildeo
Aqui soacute se aprende o que o limite do ver permite aprender no entanto enquanto algo
estiver sendo visto isto eacute enquanto algo se apresentar agrave apreensatildeo limitada e permanecer
apresentando-se e sendo apreendido limitadamente os limites estaratildeo imersos em uma
multiplicidade de limitaccedilotildees
Crianccedila desconhecida e suja brincando agrave minha porta
Natildeo te pergunto se me trazes um recado dos siacutembolos
Acho-te graccedila por nunca te ter visto antes
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra crianccedila
Nem aqui vinhas
Brinca na poeira brinca
Aprecio a tua presenccedila soacute com os olhos
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhececirc-la
Porque conhecer eacute como nunca ter visto pela primeira vez
E nunca ter visto pela primeira vez eacute soacute ter ouvido contar
O modo como esta crianccedila estaacute suja eacute diferente do modo como as outras estatildeo
sujas
Brinca pegando numa pedra que te cabe na matildeo
Sabes que te cabe na matildeo
Qual eacute a filosofia que chega a uma certeza maior
Nenhuma e nenhuma pode vir brincar nunca agrave minha porta (PESSOA 2006
paacutegs 42-43)
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No poema ldquoapreciar a tua presenccedila soacute com os olhosrdquo se aproxima de ldquover uma
cousa sempre pela primeira vezrdquo assim como de ldquosabes que te cabe na matildeordquo Este ver
imediato traz o saber para as coisas para as experiecircncias concretas nas quais a marca que
distingue se torna a proacutepria distinccedilatildeo Conhecer por sua vez diz respeito agrave representaccedilatildeo
do saber pela visatildeo do conceito que pode ser transportado repetido natildeo necessitando da
presenccedila de expectadores A ldquocrianccedila desconhecidardquo natildeo conhece soacute sabe jaacute que
conhecer seria ldquoter ouvido contarrdquo Saber que a pedra cabe na matildeo natildeo eacute conhecer que a
pedra cabe na matildeo pois este pressupotildee um inventaacuterio de caracteriacutesticas opiniotildees de
geoacutelogos livros e mais livros sobre a pedra enquanto que aquele precisa pegar a pedra
nas matildeos ndash e isso eacute simples mas denso pleno sem se esgotar
O siacutembolo por definiccedilatildeo natildeo eacute a proacutepria coisa mas evocaccedilatildeo substituiccedilatildeo ou
representaccedilatildeo da coisa ausente Representar aqui significa estar no lugar de
ou passar por Sim substituir o ausente E a palavra da poesia a palavra
poeacutetica ie instauradora ou realizadora que por isso eacute a palavra essencial
esta estaacute subdizendo o poema natildeo eacute siacutembolo natildeo eacute representaccedilatildeo ou evocaccedilatildeo
da coisa ausente masa proacutepria coisa isto eacute a proacutepria presenccedila Portanto
palavra poeacutetica natildeo eacute recado mensagem aviso de nada O poeta natildeo eacute moleque
de recado Natildeo eacute instrumento mediaccedilatildeo ou intermediaccedilatildeo de nada A palavra
poeacutetica eacute a proacutepria coisa em sua plena plenificada presenccedila (FOGEL 2007
paacuteg 43 ndash grifos no original)
O ver que sabe natildeo eacute o ver com que lidamos com os olhos hodiernos Sempre com
pressa requisitamos ldquoter ouvido falarrdquo das coisas para confiar nelas para natildeo ter que
pensar a respeito isto eacute natildeo ldquoter visto pela primeira vezrdquo e essa confianccedila e esse
conhecimento datildeo a garantia da existecircncia A legitimidade do conhecimento se justifica
muito pela sua reprodutibilidade sua constacircncia e sua previsibilidade Gilvan Fogel
(2007) chama atenccedilatildeo ao que a palavra poeacutetica apresenta como outra possiblidade de
manifestaccedilatildeo como um apresentar concreto que soacute sabe por ter sido atravessado pela
experiecircncia proporcionada por este concreto sua visatildeo
No εἶδος que se mostra em cada insignis enquanto manifestaccedilatildeo poeacutetica encontra-
se a palavra essencial Eacute pois compreensiacutevel que seacuteculos de metafiacutesica tenham tratado
essecircncia como origem algo a ser buscado alcanccedilado por alguns iniciados ou eleitos
portanto distante exatamente da fala cotidiana O comentaacuterio supracitado do professor
Fogel diz de uma essecircncia sua compreensatildeo da brincadeira da crianccedila do poema como
sendo ldquoinstauradora e restauradorardquo Essa crianccedila do poema tanto quanto qualquer
26
crianccedila assim como qualquer coisa conquanto seja poeacutetica sempre seraacute instauradora e
restauradora agrave medida que natildeo ldquosubstituir o ausenterdquo mas se ativer agrave presenccedila Desse
modo natildeo eacute exclusividade dos poetas a essecircncia nem o cuidado para que ela natildeo seja
esquecida entre ruiacutedos de abstraccedilotildees e representaccedilotildees natildeo podendo ldquovir brincar nunca agrave
minha portardquo
112 Um saber que rasga
Para saber eacute preciso ver logo para ver eacute preciso saber este eacute o convite que εἶδος
faz ao ensino O que eacute saber neste contexto que natildeo se restringe ao conhecimento
Somente a palavra poeacutetica sabe como quem vecirc ou outros dizeres estatildeo inseridos nesta
dinacircmica Talvez a continuaccedilatildeo da etimologia da palavra ensino possa nos dar uma noccedilatildeo
acerca disso Insignis eacute formado por in-sup1 + signum + -issup1 no qual in-sup1 eacute um prefixo que
transfere seus sentidos de preposiccedilatildeo ao verbo agregando novas significaccedilotildees verbais ou
intensificando-as (GLARE 1968 paacuteg 858) Dentre esses sentidos destacam-se ldquolsquoem a
sobre superposiccedilatildeo aproximaccedilatildeo transformaccedilatildeorsquo de uma raiz i-e [indo-europeia] en
lsquono interior emrsquordquo (HOUAISS 2009b)
Ao nuacutecleo da raiz junta-se o sufixo formador de adjetivo -issup1 (GLARE 1968 paacuteg
970) e o nuacutecleo da palavra eacute signum Dele se originam quase todos os sentidos que foram
incorporados agraves demais formaccedilotildees chegando ateacute o portuguecircs com a palavra signo O
signum latino relaciona-se com a gama de significados da visatildeo ldquouma marca escrita a
impressatildeo de um siacutembolo ou um pouco de cera onde porta essa impressatildeo sinal visiacutevel
de uma presenccedila passadardquo do ensino ldquoalguma coisa percebida pela mente ou pelos
sentidos cuja inferecircncia pode ser desenhadardquo de uma marca ldquoemblema siacutembolo
estandarte uma escultura estaacutetua ou imagemrdquo e ateacute a ideia de movimento ldquogesto ou
movimento usado para designar um sentido manobra militarrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1759-
1760 ndash traduccedilatildeo livre) aparece dentro das possibilidades de compreensatildeo de signum
Qual deles diz respeito ao saber que vecirc principalmente ao saber da ldquopalavra
essencialrdquo (FOGEL 2007 paacuteg 43) da palavra poeacutetica mdash Todos se for considerada a
concretude dos sentidos Isto significa que a marca de cera eacute soacute a marca de cera sua
27
simplicidade natildeo eacute conhecida nem vulgar (PESSOA 2006 paacuteg 61) mas guarda dos
homens curiosos o enigma da carta Eacute compreensiacutevel contudo que um mero selo natildeo
seja fruto de enriquecedoras discussotildees filosoacuteficas Dizemos mero aqui referindo-nos ao
simples que eacute grande porque convida agrave experiecircncia singular ainda que banal com aquela
coisa ldquoO simples resguarda o enigma do que permanece e eacute granderdquo (HEIDEGGER
1983 paacuteg 39 ndash traduccedilatildeo livre)9
Outros sentidos entretanto natildeo satildeo tatildeo simples e imediatos o que natildeo deixa de
ser a perda de sua simplicidade Ao menos corriqueiramente concepccedilotildees como a de
emblema siacutembolo estandarte etc remetem a estacircncias fora do instante isto eacute
representam pela abstraccedilatildeo algo que deveria mas natildeo estaacute aqui A isto tanto o poeta
quanto o filoacutesofo supracitados combatem caso contraacuterio seria abrir matildeo da concretude
de cada momento em prol de um conceito estanque e pronto para ser aplicado
transmitido reproduzido e descartado Dicotomicamente falando assumindo o risco que
isso significa podemos aferir que o saber exige que a experiecircncia com a coisa seja feita
concretamente levando-se em conta as singularidades em questatildeo e as limitaccedilotildees que o
agora impotildee O conhecer por sua vez significa uma experiecircncia abstrata permitindo
categorias que facilitariam o trato por preacute-conceito criando-se assim o haacutebito o jaacute visto
e conhecido do fazer
Natildeo dicotomicamente falando tanto o conhecimento quanto o saber fazem parte
da experiecircncia com as coisas satildeo tatildeo intriacutensecos como necessaacuterios ldquoo desaparecimento
de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos
apoiaacutevamos de ordinaacuterio sem querer perceber que originariamente elas constituiacuteam
respostas a questotildeesrdquo (ARENDT 1972 paacuteg 223) cuja comunhatildeo define a existecircncia
humana seu modo de ser Se para cada passo fosse preciso uma reflexatildeo ningueacutem mais
andaria A tensatildeo se desfaz quando se perde no haacutebito a disposiccedilatildeo de questionar tudo se
transformando em conhecido ou conheciacutevel ou seja esquecendo-se de que o passo sim eacute
uma questatildeo a ser pensada que sob o chatildeo supostamente seguro jaz o que natildeo tem chatildeo
o abismo que andar eacute em si um risco agrave queda
O poeacutetico pois faz emergir o concreto da linguagem nas palavras Assim o
concreto manifesta torna presente o saber no que se vecirc Isto que manifesta o saber das
9 Das Einfache verwahrt das Raumltsel des Bleibenden und des Groszligen
28
coisas sem conhececirc-las encontramos sob o nome de aleacutetheia O concreto desse saber natildeo
eacute restrito ao poema escrito nem somente o poeta tem acesso a aleacutetheia agrave manifestaccedilatildeo
Na relaccedilatildeo com a verdade que se apresenta concretamente compreende-se que aleacutetheia eacute
sempre a mesma soacute que de modos diferenciados e eacute justamente isso que possibilita a
singularidade dos caminhos
Em Os trabalhos e os dias portanto Aleacutetheia eacute dupla eacute em primeiro lugar a
Aleacutetheia das Musas que o poeta profere em nome delas e que se manifesta no
discurso maacutegico-religioso articulado agrave memoacuteria poeacutetica em segundo lugar eacute
a Aleacutetheia que o labrador de Ascra possui lsquoVerdadersquo que dessa vez se define
explicitamente pelo lsquonatildeo esquecimentorsquo dos preceitos do poeta Entre as duas
natildeo haacute diferenccedila fundamental eacute a mesma Aleacutetheia vista sob dois aspectos ora
em sua relaccedilatildeo com o poeta ora em sua relaccedilatildeo com o lavrador que o ouve
Enquanto o primeiro a possui apenas em virtude do privileacutegio da funccedilatildeo
poeacutetica o segundo soacute pode ganhaacute-la agrave custa de um esforccedilo de memoacuteria O
camponecircs de Ascra soacute conhece a Aleacutetheia na ansiedade de uma memoacuteria
obsedada pelo esquecimento que pode repentinamente ensombrecer-lhe a
mente e privaacute-lo da lsquorevelaccedilatildeorsquo dos Trabalhos e os Dias (DETIENNE 2013
paacutegs 27-28)
Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi sinocircnimo de certeza isto
eacute mera oposiccedilatildeo entre certo e errado e tentativa de adequaccedilatildeo do errado ao certo Neste
sentido conveacutem observar que uma concepccedilatildeo de ldquoposserdquo da aleacutetheia natildeo se refere a ter a
propriedade de um conhecimento Nem o poeta nem o camponecircs poderiam possuir a
verdade pois ela natildeo era um conhecer ldquopossuiacutevelrdquo Somente quando o saber torna-se
capaz de ser possuiacutedo que ele se torna um conhecimento e um conhecimento inteligiacutevel
Isto porque o saber da verdade era dos deuses do real os poetas apenas se dispunham a
ouvi-lo e por conseguinte a cantaacute-lo como lhes era possiacutevel
O camponecircs por sua vez se detinha nas proximidades do trabalho do poeta ndash e a
isto talvez possamos chamar de posse ndash e dele ldquopode ganhaacute-la [aleacutetheia] agrave custa de um
esforccedilo de memoacuteriardquo (DETIENNE 2013 paacuteg 28) Da mesma forma ganhar aleacutetheia
confunde o leitor quanto a seu caraacuteter de natildeo posse Detienne assim como todos noacutes
estamos muito impregnados pela liacutengua da ciecircncia logo mesmo ao se referir ao que natildeo
eacute cientiacutefico fazemos ao modo da teacutecnica moderna Daiacute a importacircncia de ir aos
fundamentos da liacutengua que natildeo se trata de sua origem cronoloacutegica mas da aproximaccedilatildeo
agraves cercanias da linguagem ao que se diz inaudito no dito
Por este vieacutes alongando um pouco mais a etimologia de ensino chegamos a seco
+ -num a fim de que percebamos o tipo de saber que originou o ensino traduccedilatildeo de uma
29
experiecircncia concreta com a linguagem O Dicionaacuterio Oxford apresenta um significado
etimoloacutegico incerto da palavra signum (GLARE 1968 paacuteg 1759) formado com o sufixo
-num neutro de -nus ndash um formador de palavras adjetivas de numerais distributivos e
que tambeacutem funciona como alargamento do sentido (eg fortuna tribunus) (GLARE
1968 paacuteg 1207) ndash juntamente com o radical seco
1 Cortar com uma faca ou similar cortar 2 Cortar em pedaccedilos fatiar picar
recortar 3 Cortar uma porccedilatildeo de destacar (uma parte) por meio de corte
remover por corte 4 Fazer uma incisatildeo em cortar entalhar etc 5 Passar
atraveacutes de (aacutegua ar uma multidatildeo etc) em movimento raacutepido ou violento
fender um caminho atraveacutes de tambeacutem sulcar (a terra) em lavoura mineraccedilatildeo
etc 6 Formar ou abrir (uma trilha ou sim) por meio de corte (GLARE 1968
paacuteg 1717 ndash traduccedilatildeo livre)10
A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforccedilo com a consulta a Pokorny
(2007) Em ambos os casos a relaccedilatildeo entre seco e signum natildeo eacute segura enquanto origem
e originado mas parece haver concoacuterdia na proximidade de sentido entre ambos no que
se refere agrave marca agrave ldquoimpressatildeordquo que causa Correspondendo a uma interpretaccedilatildeo da
etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito se atendo a um aceno de pensamento
posso supor que a marca do signum eacute um corte seco que porta um saber agrave medida que
rasga criando assim um limite visiacutevel e concretamente experienciado Lidar com um
saber que rasga eacute fazer uma experiecircncia com o concreto da palavra causando sensaccedilotildees
sim mas tambeacutem e principalmente fazendo uma experiecircncia na e atraveacutes das fronteiras
da liacutengua Laacute onde nos aventuramos entre o que eacute e o natildeo ser onde o instante instaura
brevemente a verdade fugidia o concreto se diz somente enquanto experiecircncia deste
mesmo saber
sēk-2 ndash Significado em inglecircs tocut traduccedilatildeo para o alematildeo schneiden Latim
secō -āre lsquocortar podarrsquo segmen segmentum lsquoquebra secccedilatildeorsquo [] Latim
sīgnum neutro lsquomarca siacutembolo sinal indicaccedilatildeorsquo se originalmente lsquomarca
entalhadarsquo () [] Alto alematildeo antigo sega saga Europeu antigo sagu sage
(POKORNY 2007 paacuteg 2660 ndash traduccedilatildeo livre)11
10 1 To sever with a knife or similar cut 2 To cut in pieces slice chop cut up 3 To cut a portion from
to detach (a portion) by cutting cut off 4 To make an incision in cut gash etc 5 To pass through (water
air a crowd etc) in rapid or violent motion cleave a path through also to cut into (the earth) in
ploughing mining etc 6 To form or open up (a track or sim) by cutting 11 sēk-2 ndash English meaning to cut deutsche Uumlbersetzung ldquoschneidenrdquo Lat secō -āre ldquocut clip
abschneidenrdquo segmen segmentum ldquobreak sectionrdquo [hellip] Lat sīgnum n ldquomark token sign indicationrdquo
if originally ldquoeingeschnittene Markerdquo () [] OHG sega saga OE sagu sage
30
Este eacute pois o sentido de um saber que se encrusta na carne Nietzsche (1994 paacuteg
56) jaacute dizia que ldquode tudo o que se escreve aprecio somente o que algueacutem escreve com o
proacuteprio sangue [] Aquele que escreve em sangue e maacuteximas natildeo quer ser lido mas
aprendido de corrdquo Filosoficamente falando apreciar neste sentido natildeo se restringe agrave
opiniatildeo pessoal somente mas diz tambeacutem de uma entrega no que se faz
Ao afirmar uma oposiccedilatildeo entre ler e aprender de cor haacute um reconhecimento da
experiecircncia de um saber vivido na medida em que um conceitua e descreve e outro que
demarca um modo sanguinolento de ser Este sangrar traz ao ato a memoacuteria da verdade
seja como valor moral de vontade e de ldquoquererrdquo seja por simplesmente se dar de outra
forma natildeo dimensionaacutevel no falar sobre algo mas sim em dizer com algo Quem condiz
diz junto ou seja convoca agrave participaccedilatildeo sem ser arbitraacuterio convida a manifestar-se no
que se manifesta agrave medida da manifestaccedilatildeo que eacute o corte entre as possibilidades de cada
um e o impossiacutevel aquilo sobre o qual natildeo exercemos posse nem poder de possuir mas
que por isso nos delimita e constitui ldquoVai-se ao limiar sempre que se vai aos limites
[grifo no original]rdquo (NIETZSCHE 1967 ndash traduccedilatildeo livre)12
Heidegger (2003) tambeacutem a seu modo pensou este saber que corta No seu ensaio
A linguagem o pensador alematildeo interpreta o poema Uma tarde de inverno13
Na janela a neve cai
Prolongado soa o sino da tarde
Para muitos a mesa estaacute posta
E a casa bem servida
Alguns viandantes da erracircncia
Chegam ateacute a porta por veredas escuras
Da seiva bruta da terra
Surge dourada a aacutervore dos dons
O viandante chega quieto
A dor petrificou a soleira
Aiacute brilha em pura claridade
Patildeo e vinho sobre a mesa (TRAKL 2016 ndash traduccedilatildeo de Marcia Saacute de
Cavalcante Schuback)14
12 Man geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden geht 13 Ein Winterabend 14 Wenn der Schnee ans Fenster faumlllt Lang die Abendglocke laumlutet Vielen ist der Tisch bereitet Und
das Haus ist wohlbestellt Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden Golden
bluumlht der Baum der Gnaden Aus der Erde kuumlhlem Saft Wanderer tritt still herein Schmerz versteinerte
die Schwelle
Da erglaumlnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein
31
Pela obra literaacuteria eacute construiacuteda uma compreensatildeo filosoacutefica da dor natildeo restrita agrave
certa negatividade O verso central para tal pensamento eacute o seguinte ldquoSchmerz
versteinerte die Schwellerdquo ldquoA dor petrificou a soleirardquo A traduccedilatildeo para o portuguecircs leva
em conta a sonoridade e o jogo imageacutetico proacuteprios da liacutengua de destino sem faltar com
cuidado ao original O esforccedilo poeacutetico eacute visiacutevel contudo traduzir eacute tanto caminho como
descaminho de sentido parte do que caracteriza o poema em alematildeo se desdobra
singularmente em portuguecircs
O verso fala de dor Schmerz em correspondecircncia com a soleira Schwelle Como
o que doacutei Heidegger (2003 paacuteg 21) entende por ldquoA dor eacute a junta articuladora no
dilaceramento que corta e reuacutene Dor eacute a articulaccedilatildeo do rasgo do dilaceramento Dor eacute
soleira Ela daacute suporte ao entre ao meio dos dois que nela se separam A dor articula e
traccedila o rasgo da di-ferenccedila A dor eacute a proacutepria di-ferenccedilardquo Na mesma instacircncia ontoloacutegica
estatildeo a dor e a soleira a dor e a di-ferenccedila o que isso significa
Em alematildeo Schwelle tambeacutem diz do limite o limiar entre duas coisas como a
soleira eacute a fronteira que separa o dentro do fora da casa Enquanto separa instaura tanto
a casa quanto a rua como a natildeo casa ainda a casa que viraacute Sem soleira rua e casa natildeo
teriam suas singularidades mantidas suas di-ferenccedilas ldquoo termo lsquoa di-ferenccedilarsquo natildeo diz
uma categoria geneacuterica para vaacuterias espeacutecies de distinccedilotildees A di-ferenccedila aqui nomeada eacute
soacute uma Eacute uacutenicardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 19) Diferir natildeo eacute deixar misturar
categorizar mas fazer aparecerem os limites que definem e constituem eacute emergir a
unidade que se encontra no ldquoentrerdquo de uma e outra coisa
Dor e limite se fundem Ambos datildeo fundamento um ao outro no entre que os
diferencia O poema no original traz um jogo sonoro em que essa relaccedilatildeo correlata se
mostra novamente Tanto as palavras Schmertz e Schwelle comeccedilam com o mesmo som
sch- [ʃ] fricativo ou seja com quase nenhuma interrupccedilatildeo de ar seguidas de m- [m] e
w- [v] que embora diferentes ainda resguardam essa mesma caracteriacutestica de som
continuado Sonoramente dor e limite fluem abertamente Um introduzindo outro
terminando ndash origem e plenitude do verso pela dor e pela soleira respectivamente
Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta tem pois sua
quietude Afinal ldquoa dor petrificourdquo o limite a soleira para diante da dor Eacute marcada uma
pausa que natildeo faz do limite igual ao comeccedilo O instante que demarca o quieto da fluidez
32
constitui e distingue as diferenccedilas e identidades entre origem e fim enquanto plenitude
Em alematildeo o verbo versteinern tambeacutem comeccedila com o tipo de som fricativo v- [f] para
coincidir com o som anterior sch- [ʃ] todavia seguido pela oclusiva -t- [t] ou seja onde
haacute uma obstruccedilatildeo parcial da saiacuteda de ar
A construccedilatildeo sonora do verso eacute marcada por uma pausa entre dois sons contiacutenuos
Ali onde dor e limite se encontram haacute tanto multiplicidade de um quanto unidade de
vaacuterios ndash pausa e continuaccedilatildeo Versteinern proveacutem do substantivo Stein pedra uma pedra
que se interpotildee entre dois acontecimentos de mundo lembra-nos de ldquono meio do caminho
tinha uma pedrardquo (ANDRADE 2013 paacuteg 30) O verso tatildeo conhecido de Drummond
retoma em Georg Trakl a tensatildeo no embate causador de dor e de limite fundador Trazer
agrave quietude da pedra eacute dar sentido ontoloacutegico tanto ao limite quanto agrave dor
A linguagem fala Sua fala chama a diferenccedila a di-ferenccedila que des-apropria
mundo e coisa para a simplicidade de sua intimidade
A linguagem fala
O homem fala agrave medida que corresponde agrave linguagem Corresponder eacute escutar
Ele escuta agrave medida que pertence ao chamado da quietude (HEIDEGGER
2003 paacuteg 26)
Pelo ensino pois transita-se na marca Via de acesso que traduz uma experiecircncia
de des-conhecer se as reacutedeas da imposiccedilatildeo cedem lugar agrave fronteira do pensar Ali as
distacircncias se estreitam proximidades natildeo se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre
afinal ldquomestre natildeo eacute quem sempre ensina mas quem de repente aprenderdquo (ROSA 2006
paacuteg 213) Ensinar eacute estar na marca do pensamento em outras palavras eacute aprender a estar
no pensamento da marca a saber atento a que o limite demarcante seja assim como natildeo
seja O ensinamento sem aprendizagem eacute pobre de sentido restringe-se agrave mera
informaccedilatildeo de conteuacutedos pragmaacuteticos Radicalmente ensinar significa tambeacutem natildeo
ensinar agrave medida que daacute espaccedilo para que o outro (que tambeacutem sou eu) aprenda
Formar eacute deixar o outro aprender integrando no que ele eacute os limites do que
ele natildeo eacute [] Soacute quem realmente sabe aprender e somente na medida em que
o sabe pode realmente ensinar [] Ensinar exige e impotildee a ascese de
aprender a ascese de constantemente assumir tanto a ignoracircncia quanto o saber
do que jaacute se sabe Natildeo apenas aquele que jaacute sabe tudo natildeo pode nem aprender
nem ensinar Tambeacutem natildeo pode quem natildeo assumir o saber de sua ignoracircncia
quem natildeo reconhecer que sabe alguma coisa (LEAtildeO 1977 paacuteg 49)
33
113 Natildeo ensinar e a ciecircncia
Nesta dimensatildeo natildeo ensinar eacute uma prerrogativa O que natildeo quer dizer faltar com
as suas responsabilidades enquanto professor enquanto pais ou enquanto sociedade Natildeo
ensinar estaacute comumente relacionado com negligecircncia Isso tem pouco a ver com o
pensamento do ensino e mais com o que se espera de determinadas funccedilotildees e papeacuteis
sociais Natildeo ensinar se refere diversamente ao compromisso com seu desconhecimento
impossibilidade de que algo seja dito ndash pois natildeo se sabe ndash e tendo cuidado com o
conhecimento jaacute que mesmo no dito haacute o natildeo dito o natildeo controle do que seraacute
compreendido
Entretanto parece que nos atuais tempos esta eacute uma decisatildeo estranha de se tomar
Jaacute causa estranhamento natildeo ensinar sem optar por isso Ou seja natildeo detendo todas as
variaacuteveis e circunstacircncias falhamos ao passar um determinado conteuacutedo seja este teacutecnico
cultural ou moral Diferente eacute pois ldquoescolherrdquo natildeo ensinar Aceitar que faz parte do
processo o equiacutevoco a falta e o improviso Reconhecer a ponta solta o diacutegito errado o
ponto fora da curva e natildeo fazer nada a respeito
Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista na qual o ensino
serve aos propoacutesitos da aprendizagem Sistemas preacute-programados demandam o
cumprimento de tarefas Logo eacute conveniente a transmissatildeo do que fazer para o
desempenho esperado Natildeo soacute isso mais do que fazer adveacutem o como fazer cuja resposta
procura constantemente por um melhor desempenho produzir mais a menor custo ou
mais por menos tempo o que costuma coincidir
Este aspecto performaacutetico que se dedica a se superar ininterruptamente natildeo pode
permitir o natildeo ser Como num teatrinho de marionetes tudo estaacute sob controle ou acredita-
se que esteja Da filosofia agrave mesa de bar das salas de aula aos hospiacutecios nossa sociedade
se vecirc como peccedilas de um quebra-cabeccedila que pode ser solucionado Quem monta as peccedilas
eacute o homem quem diz que as peccedilas satildeo montaacuteveis eacute a ciecircncia pois ela eacute ldquoa teoria do realrdquo
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Aqui para pensar a palavra teoria referimo-nos tanto ao
sentido de ldquoconjunto de regras ou leis mais ou menos sistematizadas aplicadas a uma
aacuterea especiacuteficardquo (HOUAISS 2009a Teoria) quanto agrave etimologia a qual significaria accedilatildeo
34
de ver observar testemunhar ldquoenviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oraacuteculos
ou jogos ou coletivamente os proacuteprios θεωροί embaixada missatildeordquo (LIDDELL
SCOTT 1940 Θεωρία ndash traduccedilatildeo livre)15
Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por ldquoverrdquo ou ldquopocircr-se a observarrdquo
Ainda assim diferentes nomeares sugerem diversos modos de o proacuteprio compreender o
real ldquoo pensamento doacutecil agrave voz do ser procura encontrar-lhe a palavra atraveacutes da qual a
verdade do ser chegue agrave linguagemrdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) Neste sentido
observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo semacircntico de ver olhar entretanto
esse mesmo eacutetimo pode ser lido com acentuaccedilotildees diferentes θεά feminino de θεός
ldquodeusa divindaderdquo e ὤρα ldquocuidadordquo (LIDDELL SCOTT 1940 ndash traduccedilatildeo livre)16
Temos pois um convite Fomos convidados a ver tambeacutem em teoria a palavra θεωρία
como um cuidado sagrado o divino em todo cuidar ou ainda ldquoora foi como deusa que
ἀλήθεια apareceu ao pensador originaacuterio Parmecircnides [] Em sentido antigo isto eacute
originaacuterio mas de forma alguma antiquado a teoria eacute a visatildeo protetora da verdaderdquo
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 46 ndash grifos no original)17
O real para muitos povos antigos eram os proacuteprios deuses se manifestando Esta
era ldquosuardquo verdade ldquoseurdquo mundo Um possessivo que natildeo traduz da posse como estamos
habituados Natildeo havia a verdade de cada um embora todos fizessem uma experiecircncia
com a verdade singularmente Isto porque para os antigos a verdade era muacuteltipla e
diversa Diferentemente de nossa concepccedilatildeo atual de verdade regida pela ciecircncia pedras
15 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games or collectively the θεωροί themselves
embassy mission Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqewri
2Fagt Acesso em 13 out 2016 16 Cf Θέα Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqe2
Fa2gt Acesso em 14 set 2016
Cf Θεά Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqea2
F1gt Acesso em 14 set 2016
Cf Ὁράω Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(ra
2Fwgt Acesso em 14 set 2016
Cf Ὤρα Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dw)2
Fragt Acesso em 14 set 2016 17 Cf Ἀλήθεια Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)lh
2Fqeia Acesso em 14 set 2016
35
animais pessoas proacuteximas e inimigos eram a verdade pois a proacutepria presenccedila desses
seres constituiacutea sua veracidade ldquoprovardquo cabal da doaccedilatildeo de existecircncia de um deus A
verdade eacute sempre verdade dos deuses seja quem for que a proferir
Os indo-iranianos tecircm uma palavra comumente traduzida por Verdade Rta
Mas Rta eacute tambeacutem a prece lituacutergica o poder que garante o retorno das auroras
a ordem estabelecida pelo culto aos deuses o direito enfim um conjunto de
valores que estilhaccedilam nossa imagem da verdade (DETIENNE 2013 paacutegs
1-2)
Isso significa que a compreensatildeo de oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso natildeo era
possiacutevel visto que o que se manifesta seja bom ou ruim tem um sentido de ser que
remete ao sagrado Sendo atribuiacuteda ao artiacutefice divino a verdade jamais poderia ser
possuiacuteda no sentido de controlada apenas se convive em sua cercania natildeo havendo
possibilidade de cercaacute-la cerceando-a ao uso a bel-prazer Desse modo as diferenccedilas satildeo
apenas outras manifestaccedilotildees da mesma verdade sagrada Seu e sua satildeo possessivos que
natildeo indicam posse mas apropriaccedilatildeo eacute o ser no mundo em sua limitaccedilatildeo fundadora
Sua lsquoVerdadersquo eacute uma lsquoVerdadersquo assertoacuterica ningueacutem a contesta ningueacutem a
demonstra [] Aleacutetheia natildeo eacute a concordacircncia entre a proposiccedilatildeo e seu objeto
tampouco a concordacircncia de um juiacutezo com os outros juiacutezos natildeo se opotildee agrave
lsquomentirarsquo natildeo haacute lsquoverdadeirorsquo em face do lsquofalsorsquo A uacutenica oposiccedilatildeo
significativa eacute entre Aleacutetheia e Leacutethe
[]
Natildeo haacute de um lado Aleacutetheia (+) e do outro Leacutethe (-) mas entre esses dois polos
se desenvolve uma zona intermediaacuteria em que Aleacutetheia desliza para Leacutethe e
vice-versa A lsquonegatividadersquo portanto natildeo estaacute isolada apartada do Ser ela
orla a lsquoVerdadersquo eacute a sua sombra inseparaacutevel As duas potecircncias antiteacuteticas natildeo
satildeo pois contraditoacuterias mas tendem uma agrave outra o positivo tende ao negativo
que de certo modo o lsquonegarsquo mas sem o qual natildeo se sustenta (DETIENNE
2013 paacuteg 29 paacutegs 77-78 ndash grifos no original)
Para noacutes da modernidade real eacute o mundo que vemos ou podemos ver e controlar
cujo descobrimento torna-se sinocircnimo de confirmaccedilatildeo de uma teoria A compreensatildeo do
mundo se daacute agrave medida que o vemos e nossa visatildeo eacute guiada pela ciecircncia no sentido de
que damos existecircncia agrave realidade ao dispor cada peccedila em seu lugar A isto chamamos
conhecer categorizar o real agrave mercecirc do que podemos apreender dele Em contrapartida
o que natildeo podemos conceituar natildeo tem valor de existecircncia simplesmente natildeo eacute ldquorealrdquo eacute
ldquofictiacuteciordquo eacute ldquoimaginaccedilatildeordquo quer dizer natildeo eacute verdade mas mentira Ao aderir agrave concepccedilatildeo
36
de opostos subentende-se a ideia de norma padratildeo ndash haacute o que eacute e o que natildeo eacute distinccedilatildeo
claramente determinaacutevel quando coincidente correta quando divergente corrigiacutevel
A ontologia perde sentido em detrimento do que eacute claro evidente praacutetico
objetivo uacutetil enfim do que eacute capaz de levar a algum lugar ainda que esse
lugar possa natildeo ser exatamente o lugar mais desejaacutevel Natildeo importa O
importante eacute que seja algum lugar A questatildeo ontoloacutegica passa ao longo do
desenvolvimento da Cultura Ocidental a ser considerada perda de tempo
(JARDIM 1995 paacutegs 15-16)
Exige-se que se encaixe Como reconhecer o natildeo ensinar se natildeo se pode classificar
o que natildeo eacute Natildeo tem clareza falta utilidade no natildeo ser Qual a validade de natildeo ensinar
para um meacutedico um advogado Como natildeo ensinar a uma crianccedila tatildeo em tenra idade e
desprotegida ldquoPerdem-se no vazio consideraccedilotildees sobre o modo como se poderia levar
a agir sobre a vida cotidiana e puacuteblica de modo efetivo e uacutetil o pensamento ainda e apenas
metafiacutesicordquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 58) A pergunta aqui versa a respeito de uma
vontade mesmo que seja vontade de cuidar ainda assim eacute um desejo pelo ente antiteacutetico
ao ser circunstacircncia de realizaccedilatildeo do ser que foi que eacute ou que seraacute como se instacircncias
discerniacuteveis fossem
Busca-se uma postura de soluccedilatildeo de problemas resoluccedilatildeo de conflitos sem se dar
conta de que a tensatildeo eacute a proacutepria condiccedilatildeo de existecircncia no embate entre o nada e o ser
ldquoUm dos lugares fundamentais em que reina a indigecircncia da linguagem eacute a anguacutestia no
sentido do espanto no qual o abismo do nada dispotildee o homem O nada enquanto o outro
do ente eacute o veacuteu do ser No ser jaacute todo o destino do ente chegou originariamente agrave sua
plenituderdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) A questatildeo eacute como agir diante do que se
aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente ele natildeo eacute Chegar agrave
plenitude na origem se contradiz com a ideia da construccedilatildeo de um conhecimento que se
inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acuacutemulo de informaccedilotildees Isto porque natildeo nos
referimos agrave origem como comeccedilo muito menos agrave plenitude como fim aqui diz-se
respeito ao movimento Ir a algum lugar eacute sempre chegar de um lugar de modo que essa
concepccedilatildeo de saber eacute estar dentro da dinacircmica de partida e chegada de ser e estar do
nada e do ente de origem e de plenitude
Ora afirmamos que o natildeo ensinar imerso na senda do pensar nada diz respeito
ao descuido com o outro mas nesse embate entre ensinar um conteuacutedo e deixar o ensino
seguir seu curso de aprendizagem e vazio quanto mais se aceita como vital uma funccedilatildeo
maior seratildeo as garras do controle Seja por teorias sempre novas seja por soluccedilotildees agrave
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disposiccedilatildeo o importante eacute sanar quaisquer duacutevidas ter sempre algo a dizer e muito muito
a ensinar ldquoA carga ndash inevitavelmente ndash normativa do saber pedagoacutegico acaba muitas
vezes por bloquear a experiecircncia da infacircncia [grifo no original]rdquo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg
9 ndash traduccedilatildeo livre)18
Quem deteacutem o dizer dita as regras Diferentemente de impor a vontade por forccedila
fiacutesica controla-se o dizer que eacute o saber vigente dominante e aceito A palavra que sabe
que eacute cientiacutefica diz o que eacute exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocaacute-los
literal mas radicalmente ldquojaacute natildeo se trata de pocircr a morte em accedilatildeo no campo da soberania
mas de distribuir os vivos em um domiacutenio de valor e utilidaderdquo (FOUCAULT 1988 paacuteg
157)
Ocorre uma inversatildeo radical a ciecircncia diz o que eacute A ciecircncia deixa de ser uma
dentre tantas possibilidades passando a ser a deliberaccedilatildeo fundamental da existecircncia ldquoo
homem ndash um ente entre outros ndash faz lsquociecircnciarsquo Neste lsquofazerrsquo ocorre nada menos que a
irrupccedilatildeo de um ente chamado homem na totalidade do ente mas de tal maneira que na
e atraveacutes desta irrupccedilatildeo se descobre o ente naquilo que eacute em seu modo de serrdquo
(HEIDEGGER 1979c paacuteg 36) Os filhos desse mundo seratildeo crias cientiacuteficas homens
que veem no mundo somente um espelho de si Daiacute o predomiacutenio do indiviacuteduo da
vontade pois se tudo eacute um reflexo de noacutes mesmos basta esticar a matildeo e apanhar O que
natildeo nos serve natildeo eacute natildeo nos vemos logo desprezamos Ciumento eacute o deus-ciecircncia que
natildeo permite adoraccedilotildees alheias
A ciecircncia eacute a seguranccedila do pensamento isto eacute o que haacute de inofensivo sem ser
inocente Seguro pelas contas estaacute o proacuteprio pensar que se fia na loacutegica infaliacutevel ou na
estatiacutestica mais aceita por todos Quando o real eacute domado ele se torna conhecido a este
papel se presta a ciecircncia ldquoo pensamento calculador submete-se a si mesmo agrave ordem de
tudo dominar a partir da loacutegica de seu procedimentordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 50)
Nessas categorias se constitui a interpretaccedilatildeo do ser sem se perceber que satildeo as mesmas
categorias partes da possibilidade de categorizar A essa multiplicaccedilatildeo de chances
apreensotildees e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o caacutelculo e o encerra em seu
destino sua derradeira conta o incalculaacutevel em todo calcular
18 La carga ndash iquestinevitablemente ndash normativa del saber pedagoacutegico acaba muchas veces por bloquear la
experiencia de la infancia
38
114 O jogo do poeta e da infacircncia
Ainda que natildeo fuja ao controle ousamos ao ensino de Dispor-se a ensinar algo
natildeo eacute demeacuterito natildeo contradiz o caminho aqui percorrido natildeo deve ser evitado ao
contraacuterio constitui fundamentalmente o ato de ensinar Um ensino que se integra ao natildeo
ensino do mesmo ensinar Deste modo perguntar para que ensinar natildeo perde sua validade
apenas agora congrega na pergunta pela utilidade sua inutilidade
Natildeo seria conveniente tutelar o ensino a fim de guiar aos cuidados de
profissionais respeitados a educaccedilatildeo de nossos filhos Como vimos brevemente por mais
que quiseacutessemos nossa vontade estaacute aqueacutem das possibilidades de realizaccedilatildeo Por este
vieacutes podemos traccedilar duas concepccedilotildees de ensino uma que se sabe limitada e neste limite
funda seu ensinamento outra que pretende limitar pelo controle que se diz sabedora dos
caminhos e se torna tutora do que e como proceder Uma ousa a outra se assegura uma
cuida no risco a outra entende que cuidar eacute evitar arriscar-se
Supotildee-se estar vendo dois caminhantes diante de uma correnteza selvagem
que arrasta consigo pedregulhos diversos o primeiro atravessa-o com leveza
nos peacutes utilizando as pedras para impulsionar-se cada vez mais adiante
mesmo que estas afundem assim que ele as deixa O outro permanece agrave
margem desamparado ele precisa primeiro construir os fundamentos que iratildeo
suportar o sem passo pesado e prudente (NIETZSCHE 2013 paacuteg 41)
A criacutetica ao ensino acompanha uma criacutetica no ensino Radicalmente eacute questionar
as instituiccedilotildees seus conteuacutedos e o modo como compreendemos seus papeacuteis na sociedade
isso ao menos em alguma instacircncia do contraacuterio estariacuteamos renegando o caraacuteter dialoacutegico
do pensamento e do ensino aqui propostos
Noacutes todos viemos de uma concepccedilatildeo de ldquoescola paternalista destinada a educar
os governados os que iriam obedecer e fazer em oposiccedilatildeo aos que iriam mandar e
pensarrdquo (TEIXEIRA 1947 paacuteg 27) que nada mais eacute do que a escola do sistema de
controle da ciecircncia pela teacutecnica Nesse paternalismo escolar natildeo soacute o ensino eacute controlado
mas tambeacutem a instituiccedilatildeo e suas partes componentes inclusive seu puacuteblico-alvo ndash os
alunos Na compreensatildeo funcional estes satildeo partes do todo que ainda natildeo se sabem todo
39
logo eacute preciso adestrar a compor o sistema Construccedilatildeo essa interminaacutevel sempre a
necessitar de mais instrutores pois novos satildeo os mecanismos
Nossa sociedade do conhecimento ou da aprendizagem como se a denomina
com seu slogan do aprender a aprender e do aprender ao longo de toda vida eacute
neste sentido um tipo de processo que em sua alunizaccedilatildeo do aprendiz o
converte tambeacutem em um aprendiz eterno mas de outra iacutendole um aprendiz
nunca de todo emancipado um aprendiz que natildeo solta da matildeo de seus
educadores (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 14 ndash traduccedilatildeo livre)19
Eacute um cuidado com a peccedila talvez um cuidado com o ente destituiacutedo de essecircncia
em que a diferenccedila eacute combatida e entendida por desigualdade e identidade por igualdade
cujas melhores hipoacuteteses criacuteticas recaem sobre as relaccedilotildees de poder ndash nas quais ldquoo
contraacuterio da igualdade natildeo eacute a diferenccedila mas a desigualdade que eacute socialmente
construiacuteda sobretudo numa sociedade tatildeo marcada pela exploraccedilatildeo classistardquo
(BENEVIDES 1998 paacuteg 156 ndash grifos no original) ndash mas carecem de questionamentos
sobre os mesmos valores que compotildeem e fundam suas criacuteticas
A partir disso podemos concluir que [] a criacutetica do ponto de vista do trabalho
natildeo nos permite pensar o proacuteprio modo de produzir [] O socialismo seria
uma lsquoforma social de distribuiccedilatildeorsquo adequada agrave produccedilatildeo industrial o modo de
produccedilatildeo natildeo eacute criticado radicalmente pelo contraacuterio ele eacute o ponto referencial
para a construccedilatildeo da criacutetica (SILVA 2016 paacuteg 37)
Trocando em miuacutedos para se dizer o que o aluno deve ou natildeo receber como
educaccedilatildeo se se deve ensinar ou natildeo filosofia ou literatura eacute preciso se perguntar o que
satildeo filosofia e literatura Arriscar pensar (natildeo necessariamente determinar) o ser dos entes
para aiacute viver no risco desta decisatildeo ao ensinar
Um dos criacuteticos literaacuterios brasileiros mais tradicionais e influentes interpreta que
decidir pela literatura eacute aceitar que ldquonas nossas sociedades a literatura tem sido um
instrumento poderoso de instruccedilatildeo e educaccedilatildeo [] A literatura confirma e nega propotildee
e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemasrdquo (CANDIDO 1989 paacuteg 113) Decerto esta eacute uma posiccedilatildeo que merece
diversas ressalvas principalmente por se referir ao ato literaacuterio como um instrumento
19 Nuestra sociedad del conocimiento o del aprendizaje como se la denomina con su eslogan del aprender
a aprender y del aprender a lo largo de toda la vida es en este sentido una suerte de proceso que en su
alumnizacioacuten del aprendiz lo convierte tambieacuten en un aprendiz eterno pero de otra iacutendole un aprendiz
nunca del todo emancipado un aprendiz que no se acaba soltar de la mano de sus educadores
40
remetendo-o assim agrave loacutegica tecnicista de pocircr tudo a serviccedilo da ciecircncia Contudo
chamamos atenccedilatildeo agrave importacircncia ldquopoderosardquo que a literatura adquire jaacute na tradiccedilatildeo
Neste sentido lidar com literatura e ensino trata mais de estabelecer um diaacutelogo
entre ambos do que simplesmente de apanhar livros nas seccedilotildees luacutedicas da biblioteca e
levar para que os alunos os leiam Pode-se fazer isso mas natildeo eacute necessaacuterio como aqui
vemos O convite ao poeacutetico cabe a todas as idades e se em tenra idade estamos carentes
de conhecimento o saber enquanto marca de pensamento ndash experiecircncia concreta de
vislumbramento de dor de temor de alegria ou seja de realidade ndash se dispotildee a quem
quer que entre em contato com o poeacutetico que faccedila o caminho de pensar e ser o poeacutetico
O saber natildeo eacute apreendido mas sim experienciado e para isso natildeo haacute preacute-requisito de
idade ldquoo termo infantil denomina normalmente uma faixa etaacuteria [] Pode o fenocircmeno
literaacuterio submeter-se a e ser apreendido por um tal criteacuterio ou classificaccedilatildeo Eacute
problemaacuteticordquo (CASTRO 1994 paacuteg 132)
Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a
realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da
lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de
pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de literatura como
um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das
experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que
natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas
Amor oacutedio guerra paz permanecer e partir Haacute muito tempo que andam juntos
com a filosofia e a literatura Esta eacute a proposta de um ensino na marca do pensamento
que diz porque sabe e cala porque diz Ao decidir pelo convite do ensinar reconhecemos
ldquoum vir a ser e perecer um construir e destruir sem qualquer acreacutescimo moral numa
inocecircncia eternamente idecircntica neste mundo existe apenas no jogo do artista e da crianccedilardquo
(NIETZSCHE 2013 paacuteg 68) Estar na marca do pensamento eacute portanto jogar o jogo
do poeta e da infacircncia
12 A tradiccedilatildeo
41
Este jogo de ensino seja ele de literatura e de filosofia seja de qualquer outra
disciplina eacute marcado por uma tradiccedilatildeo Quando nos perguntamos o que como e a quem
ensinar estamos levando em conta querendo ou natildeo um percurso histoacuterico de
compreensatildeo do mundo em que vivemos De certa maneira a tradiccedilatildeo foi um caminho
na marca do pensamento que se estabeleceu canonicamente de modo que essa tomada de
atitude torna-se familiar e conhecida num determinado grupo
Simultaneamente ao criticar o ensino critica-se a tradiccedilatildeo do ensinar Em linhas
gerais tanto o ensino quanto a tradiccedilatildeo se confundem em significado Como mostra o
sentido aceito amplamente pela sociedade encontra-se na palavra tradiccedilatildeo os significados
de ldquoato ou efeito de transmitir ou entregar transferecircncia heranccedila cultural conjunto de
valores costume haacutebito conjunto de doutrinas essenciais reconhecidos e aceitos por sua
ortodoxia e autoridaderdquo (HOUAISS 2009a)
Contudo assim como o ensino tambeacutem a tradiccedilatildeo pode ser pensada diversa e
criticamente Aqui se dispotildee a pensar a tradiccedilatildeo da tradiccedilatildeo isto eacute a tradiccedilatildeo do que se
costuma compreender como o que seja tradiccedilatildeo No seu ensaio A crise na educaccedilatildeo
Hannah Arendt (1972 paacuteg 243) jaacute chamava atenccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e
educaccedilatildeo ao dizer ldquoa crise da autoridade na educaccedilatildeo guarda a mais estreita conexatildeo com
a crise da tradiccedilatildeo ou seja com a crise de nossa atitude face ao acircmbito do passadordquo Um
relacionamento que evoca tambeacutem a autoridade de que a tradiccedilatildeo dispunha e que
determina os modos de ser da educaccedilatildeo consequentemente do ensino
Neste sentido qual a relaccedilatildeo entre ensino tradiccedilatildeo e autoridade Seria a tradiccedilatildeo
o ensino da autoridade Concebendo tradiccedilatildeo como conjunto de valores heranccedila cultural
e transferecircncia pode-se supor daiacute uma autoridade dos conteuacutedos Se foi feito assim
faccedilamos assim Mais uma vez lidamos com a transmissatildeo de uma concepccedilatildeo de maneiras
de ver o real teorias e metodologias Uma tradiccedilatildeo tecnicista que transmite a autoridade
cientiacutefica pelo ensino determinando o que o real eacute a partir do que se acredita que ele deve
ser controlaacutevel e controlado Por esse vieacutes de tradiccedilatildeo a criaccedilatildeo cede espaccedilo agrave
reproduccedilatildeo e a ousadia ao zelo
Pertence agrave proacutepria natureza da condiccedilatildeo humana o fato de que cada geraccedilatildeo se
transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geraccedilatildeo
para um mundo novo soacute pode significar o desejo de arrancar das matildeos dos
receacutem-chegados sua proacutepria oportunidade face ao novo (ARENDT 1972 paacuteg
226)
42
121 Quando o poeacutetico repousa esquecido
Esta eacute a tradiccedilatildeo do homem ocidental o mesmo que vive a ilusatildeo de poder
compreender tudo a seu redor Um homem que busca suas origens Isto significa estar
num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos e por fim sua forma de
ser Este eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita alfabeacutetica a filosofia e a
induacutestria Vale ressaltar que haacute um embate na Academia sobre se a invenccedilatildeo da escrita
alfabeacutetica eacute ou natildeo eacute obra grega A ideia neste trabalho natildeo eacute se perder ldquona busca do
primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica
fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo
(HAVELOCK 1996a paacuteg 15) pois nenhuma dessas revoluccedilotildees chegaram sem cobrar
um preccedilo Cada invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se
Como a tradiccedilatildeo tradicional lida com a inventividade Ao longo dos seacuteculos
houve criaccedilotildees das mais variadas nunca se deixou de inventar e criar a despeito da
autoridade da tradiccedilatildeo Por outro lado talvez certo desconforto com o que se apresenta
seja mesmo necessaacuterio a fim de que haja um impulso pela criaccedilatildeo Inclusive eacute de se
suspeitar a coincidecircncia de que justo no seacuteculo no qual mais se inventaram coisas maior
foi a repulsa pela tradiccedilatildeo A pergunta agora se refaz como se daacute essa inventividade que
despreza o jaacute inventado a ponto de estar sempre agrave busca por uma novidade
O problema da educaccedilatildeo no mundo moderno estaacute no fato de por sua natureza
natildeo poder esta abrir matildeo nem da autoridade nem da tradiccedilatildeo e ser obrigada
apesar disso a caminhar em um mundo que natildeo eacute estruturado nem pela
autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradiccedilatildeo (ARENDT 1972 paacuteg
245-246)
Este eacute o homem que vive a ilusatildeo A criaccedilatildeo que renega a tradiccedilatildeo desprezando-
a se ilude por natildeo reconhecer que toda invenccedilatildeo jaacute faz parte da tradiccedilatildeo somente por ter
sido inventada A novidade soacute existe conceitualmente ou no instante imensuraacutevel pois a
partir do derradeiro momento da criaccedilatildeo o a fazer se torna feito particiacutepio passado
43
Estando a coisa posta somente a disposiccedilatildeo criativa perante a tradiccedilatildeo pode dar
movimento e sentidos ao ateacute entatildeo adormecido
Poreacutem o imaginaacuterio da ficccedilatildeo da literatura natildeo pode ser confundido com a
simples ilusatildeo promotora da coisificaccedilatildeo e da alienaccedilatildeo do homem pela
manipulaccedilatildeo de estereoacutetipos ideoloacutegicos O ilusoacuterio natildeo promove o descortinar
do sentido do ser do homem humanizando-o libertando-o Pelo contraacuterio o
seu modelo eacute uniforme e repetido jamais dando lugar agrave diferenccedila ao que ainda
natildeo se sabe ao desafio do perguntar (CASTRO 1994 paacuteg 135 ndash grifo no
original)
Este eacute o homem que vem perdendo seu contato mais imediato e concreto com as
coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que nada mais eacute do que o desdobramento
do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo Um homem teacutecnico um homem no qual o
poeacutetico repousa esquecido Sobre este periacuteodo da nossa histoacuteria impotildee-se uma tradiccedilatildeo
nos moldes da ciecircncia e da teacutecnica moderna que almeja sempre suplantar qualquer outra
tradiccedilatildeo que natildeo lhe diga respeito
O pensar poeacutetico eacute o pensar se manifestando realizaccedilatildeo concreta [] Sua
concretude adveacutem precisamente da ausecircncia de certeza e da vigecircncia de uma
dinacircmica O pensar eacute apresentado como o pensar que pensa realizando
diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulaccedilatildeo
de abstraccedilotildees como informaccedilotildees coligidas para se apresentarem no mais das
vezes como simulacro de alguma realizaccedilatildeo externa a esse mesmo pensar
(JARDIM 2005 paacuteg 33)
122 A ideia e o ser
Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que
as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as
coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos
compreendecirc-las A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana
das coisas mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa
a ser nossa possibilidade de vecirc-las Jaacute dizia Pessoa
O Universo natildeo eacute uma ideia minha
A minha ideia do Universo eacute que eacute uma ideia minha
44
A noite natildeo anoitece pelos meus olhos
A minha ideia da noite eacute que anoitece por meus olhos
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso (PESSOA 2006 paacuteg 51)
Nos versos do poeta na voz de seu heterocircnimo Alberto Caeiro ressoa como um
estrondo a dicotomia entre concreto e abstrato entre lidar com uma tradiccedilatildeo de
pensamento que se insere na emergecircncia das circunstacircncias na qual tudo tem um limite
no deslimite das possibilidades e compreender a instacircncia das coisas como algo
mensuraacutevel apreensiacutevel pelas ideias e conceitos em sua totalidade Isto eacute a crenccedila de que
a realidade pode ser conhecida genericamente apresentada num modelo que representa
todo o resto Desta forma jaacute tendo conhecido o molde basta adequaacute-la reproduzi-la Sem
que haja a necessidade de pensamento e criaccedilatildeo surge o costume de fazer
O calo eacute o haacutebito ndash o haacutebito cultural ndash e porque haacutebito automaacutetico mecacircnico
imediato esquema estiacutemulo-resposta embotador e gerador de apatia
indiferenccedila lassidatildeo Vecirc-se entatildeo como habitualmente se vecirc ou como todo
mundo vecirc Assim se sente assim se pensa Impera a atitude que uni-formiza
uni-dimensionaliza homo-geneiza e que eacute a vigecircncia do raso do plano da
planiacutecie ou seja a apatia ou a indiferenccedila do tudo igual do mediacuteocre
(FOGEL 2007 paacuteg 40 ndash grifos no original)
Natildeo soacute isso esta tradiccedilatildeo que se engendra no haacutebito tende a natildeo dar importacircncia
ao que natildeo tem utilidade isto eacute natildeo pode se adequar aos moldes da funcionalidade A
pergunta que se faz diante do desconhecido deixa de ser ldquoo que eacute istordquo para virar ldquopara
que serve istordquo Quando a resposta eacute positiva a realidade passa a vigorar pela sua funccedilatildeo
quando negativa eacute descartada ou deixada agrave mercecirc da indiferenccedila e do desdeacutem A respeito
do poema ldquoUma flor agrave margem do rio para ele era uma flor amarela e natildeo era mais nadardquo
(WORDSWORTH apud PESSOA 2006 paacuteg 61)20 diz Caeiro
Toda coisa que vemos devemos vecirc-la sempre pela primeira vez porque
realmente eacute a primeira vez que a vemos E entatildeo cada flor amarela eacute uma nova
flor amarela ainda que seja o que se chama a mesma de ontem A gente natildeo eacute
jaacute o mesmo nem a flor a mesma O proacuteprio amarelo natildeo pode ser jaacute o mesmo
Eacute pena a gente natildeo ter exatamente os olhos para saber isso por que entatildeo
eacuteramos todos felizes (PESSOA 2006 paacuteg 61)
20 A primrose by the riverrsquos brim A yellow primrose was to him And it was nothing more
45
Neste sentido compreende-se a tradiccedilatildeo como um conceito isto eacute ldquocomo a coisa
sempre jaacute vista sempre jaacute sabidardquo (FOGEL 2007 paacuteg 41 ndash grifos no original)
Compreende-se enquanto o que se prende junto a si A ilusatildeo de poder compreender tudo
se faz principalmente por se tratar desse caraacuteter conceitual e abstrato com que nos
relacionamos com as coisas Entatildeo quando o poeta chama atenccedilatildeo agrave diferenccedila entre
alguma coisa e a minha ideia sobre alguma coisa eacute como se ele convidasse a experienciar
a realidade para os limites que ela a cada vez nos impotildee ao inveacutes de impormos nossa
limitaccedilatildeo conceitual a ela
Diferente de ser dois homem e realidade o poema apresenta que ldquoo fulgor das
estrelas existe como se tivesse pesordquo (PESSOA 2006 paacuteg 51) ou seja sentimos a
realidade como a um semelhante o fulgor natildeo eacute substantivo abstrato mas o arremate que
nos causa maravilhamento espanto terror todas as sensaccedilotildees que por sua vez geram
reaccedilotildees prova de que natildeo estamos apaacuteticos perante o que eacute Tal estado de ser se
corresponde a uma multiplicidade de disposiccedilotildees natildeo se esgotando na funcionalidade
que o fulgor das estrelas poderia ter
A ideia de algo natildeo versa a respeito das singularidades e sim sobre o que seus
nuacutemeros e estatiacutesticas indicam Pode de fato o sabor de uma banana ou maccedilatilde ceder lugar
ao conjunto das frutas quantitativamente sem gosto Ateacute a morte natildeo eacute mais uma
manifestaccedilatildeo do real tanto quanto respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser
superado basta termos mais conhecimentos a respeito
mdash Se concebo o quecirc Uma coisa ter limites Pudera O que natildeo tem limites
natildeo existe Existir eacute haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser
limitada O que eacute que custa conceber que uma coisa eacute uma coisa e natildeo estaacute
sempre a ser uma outra coisa que estaacute mais adiante []
mdash Olhe Caeiro Considere os nuacutemeros Onde eacute que acabam os nuacutemeros
Tomemos qualquer nuacutemero ndash 34 por exemplo Para aleacutem dele temos 35 36
37 38 e assim sem poder parar Natildeo haacute nuacutemero grande que natildeo haja um
nuacutemero maior
mdash Mas isso satildeo soacute nuacutemeros ndash protestou o meu mestre Caeiro E depois
acrescentou olhando-me com uma formidaacutevel infacircncia
mdash O que eacute o 34 na Realidade (PESSOA 2006 paacuteg 62)
Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como
tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de
novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma
46
forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia
murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos
Tudo com o que se tem contato passa a ser o sem misteacuterio o sabido e o
compreendido ou a compreender Tudo pode ser acessado inclusive o proacuteprio homem O
homem pelo homem passa a ser um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser
diagnosticada e curada o humano torna-se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma
infinidade de predicativos que validam o sujeito homem Nossa ideia de homem passa a
ser o homem
123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo
Nossa ideia de tradiccedilatildeo natildeo eacute a tradiccedilatildeo Melhor dizendo atualmente vigora uma
concepccedilatildeo de tradiccedilatildeo que natildeo permaneceu a mesma no tempo o que significa que o
modo como o homem foi apreendido pela histoacuteria mudou Na proacutepria liacutengua encontramos
traccedilos de outra tradiccedilatildeo em sua etimologia formas diversas de ser no mundo Conveacutem
entretanto uma ressalva a busca aos sentidos anteriores quiccedilaacute originaacuterios nem sempre
tem a ver com um empenho gramatical ldquoEtimologia natildeo diz em primeiro lugar ciecircncia
linguiacutestica que investiga a identidade entre os radicais das palavras [] Em sentido
proacuteprio (aqui literal) etimologia diz logos do eacutetimo linguagem do proacuteprio comeccedilordquo
(SCHUBACK 1996 paacuteg 62) Em vez disso trata-se de estar atento ao aceno de
significaccedilotildees e de experiecircncias que as palavras portam cujo uso comunicativo da liacutengua
ignora ou desconhece
Etimologia tambeacutem eacute um dizer mas um dizer originaacuterio que emerge de uma
consentaneidade O radical eacutetymos significa legiacutetimo autecircntico verdadeiro
Etimologia natildeo eacute um dizer qualquer Eacute o dizer que remonta para o proacuteprio
processo de dizer que proveacutem da verdade do proacuteprio dizer e por isso se faz
legiacutetimo pelo vigor de sua proacutepria vigecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 104)
Tendo isso dito observa-se que a palavra tradiccedilatildeo se origina de traditio ndash
conforme se encontra em Houaiss (2009a Tradiccedilatildeo) Dicionaacuterio Michaelis (2015
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Tradiccedilatildeo)21 e Aulete e Valente (2016 Tradiccedilatildeo)22 ndash por via erudita conforme Ferreira
(2004 Tradiccedilatildeo) Por sua vez temos os seguintes sentidos etimoloacutegicos ldquoaccedilatildeo de dar
entrega transmissatildeo tradiccedilatildeo ensinordquo (HOUAISS 2009a) que aparentemente se
mantiveram com relativa estabilidade no uso contemporacircneo da liacutengua em se tratando do
significado mais abstrato da palavra sob o conceito de ir passando um conhecimento
adiante perpetuando um saber
Ao procurar num dicionaacuterio de latim confirma-se o significado de entrega
transmissatildeo e ensino natildeo se restringindo todavia ao abstrato do termo Considera-se
tambeacutem o transporte fiacutesico de objetos e de pessoas ldquo1 A entrega (de mercadorias bens
etc) rendiccedilatildeo (de pessoas territoacuterio etc) [] 2 A transmissatildeo de conhecimento ensino
b a entrega do conhecimento um item de conhecimento tradicional crenccedila etc)rdquo
(GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)23 Perdemos no habitual da liacutengua a tradiccedilatildeo
para o concreto Uma pessoa pode ser entregue agrave poliacutecia um terreno pode ser entregue ao
seu proprietaacuterio mas dificilmente chamariacuteamos isso de tradiccedilatildeo Logo a primeira entrada
do dicionaacuterio latino ficou esquecida Aqui seraacute tarefa do pensamento perscrutar o terreno
do esquecimento para fazer a experiecircncia de mundo calada na palavra
Prosseguindo traditio eacute constituiacuteda a partir da substantivaccedilatildeo do verbo trado com
o sufixo -tio (GLARE 1968 paacuteg 1956) equivalente ao nosso -ccedilatildeo Um verbo rico por
sinal com dez entradas no Oxford Dictionary A maioria satildeo nuances do sentido-base de
entregar por exemplo ldquo1 Entregar ou passar adiante (para uma pessoa) b dar (para uma
pessoa para segurar) transferir (para uma posiccedilatildeo) c entregar (ao funcionamento das
forccedilas naturais etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)24 Alguns sentidos jaacute
mais distantes referem-se a trado como ldquo7 Introduzir (uma pessoa a outra ndash traduccedilatildeo
livre)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956)25
21 Disponiacutevel em
lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=tradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16
set 2016 22 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16 set 2016 23 1 The handing over delivery (of goods possessions etc) surrender (of persons territory etc) [] 2
The transmission of knowledge teaching b the handing down of knowledge a item of traditional
knowledge belief etc) 24 1 To hand or pass over (to a person) b to hand over give (to a person to hold) to transfer (to a
position) c to deliver hand over (to the operation of natural forces etc) 25 7 To introduce (a person to another)
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Introduzir natildeo deixa de guardar certa semelhanccedila com entregar pois tambeacutem diz
de levar algueacutem ou algo de uma posiccedilatildeo a outra Todo esse translado natildeo eacute agrave toa uma vez
que a palavra trado jaacute remete a isso em sua formaccedilatildeo por meio do prefixo trans- com o
verbo do (GLARE 1968 paacuteg 1956) em que trans- nos diz de ldquo1 Do outro lado ou por
cima atraveacutes para o outro lado de [] Formas frequentemente tra- antes de consoantes
surdasrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1961 ndash traduccedilatildeo livre)26 A saber temos ainda no portuguecircs
falado o uso do trans- seja nesta forma como em transbordar e transportar seja na forma
tra- em tradiccedilatildeo traduzir ou ateacute numa outra variaacutevel como em trespassar (LIMA 1972
paacuteg 178) Isto significa que natildeo eacute nenhum espanto ter ainda que vagamente a noccedilatildeo de
passagem passar aleacutem de ao pensar ao pronunciar a palavra tradiccedilatildeo tra-diccedilatildeo
A outra parte dessa uacuteltima composiccedilatildeo eacute do o verbo dar em latim Este eacute um verbo
complexo Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos O
primeiro deles que aparece no latim eacute ldquo1 Conferir gratuitamente dar posse de fazer uma
doaccedilatildeo de dar b dar oferecer (aos deuses os mortos etc) c conceder (a posse legal a
utilizaccedilatildeo etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 566 ndash traduccedilatildeo livre)27
De fato na entrega algo eacute dado algo eacute oferecido garante-se que por um
deslocamento algo atravessa ateacute outra circunstacircncia Em todo trado haacute um do toda
entrega daacute Um dar que reforccedila a travessia do dado no seu prefixo Entregar como o que
ldquotransdaacuterdquo resguardando a importacircncia que a passagem tem para a entrega Levando isso
em conta o modo verbal que foca seu aspecto no movimento eacute o geruacutendio Tem-se pois
entregar trado enquanto um dar oferecendo Um dar que eacute dando E assim eacute feita a
entrega a tradiccedilatildeo como o ato que daacute e permanece neste movimento de doaccedilatildeo
Quem oferece introduz uma oferta Uma daacutediva que natildeo se materializa
simplesmente no seu destino como se seu objetivo fosse somente a finalidade mas que
faz uma trajetoacuteria da entrega ao recebimento E quanto agrave sua origem quanto agrave sua meta
Entrega enquanto tradiccedilatildeo atravessa e por isso eacute atravessada Isto eacute tradiccedilatildeo eacute um
atravessamento da entrega sempre se originando ldquoTudo o que acontece eacute sempre um
comeccedilordquo (RILKE 1976 paacuteg 52)
26 1 Across or over also through to the other side of [hellip] Forms freq tra- before voiced consonants 27 1 To confer gratuitously give possession of make a gift of give b to give offer (to the gods the dead
etc) c to grant (legal possession use etc)
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A partir do momento em que se chega ao alvo cessa a entrega para a tradiccedilatildeo
Por isso que tradiccedilatildeo enquanto tra-diccedilatildeo precisa estar em constante recebimento e oferta
Precisa passar adiante e desta forma estar em insistente diaacutelogo com a histoacuteria e sua
dinacircmica A mera reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo em outras palavras a tradiccedilatildeo da reproduccedilatildeo
natildeo reverbera na tensatildeo do ontem do hoje e do sempre Eacute dar sem a travessia sem os
percalccedilos do caminho Entre o que permanece no fluxo das mudanccedilas haacute uma tradiccedilatildeo
entre o que muda na constacircncia haacute uma tradiccedilatildeo e assim sua obra continua a fazer sentido
por mais diversas que sejam as eacutepocas as pessoas as circunstacircncias Num paralelo com
a obra de arte a tradiccedilatildeo exerce sua dinacircmica de maravilhamento e repulsa concessatildeo do
tracircnsito das experiecircncias de mundo
A unicidade da obra de arte eacute idecircntica agrave sua inserccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo
Sem duacutevida essa tradiccedilatildeo eacute algo de vivo de extraordinariamente variaacutevel
Uma antiga estaacutetua de Vecircnus por exemplo estava inscrita numa certa tradiccedilatildeo
entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradiccedilatildeo na
Idade Meacutedia quando os doutores da Igreja viam nela um iacutedolo malfazejo O
que era comum as duas tradiccedilotildees contudo era a unicidade da obra []
(BENJAMIN 1987 paacuteg 171)
124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo
A tradiccedilatildeo pois eacute um processo natildeo um produto Ou pelo menos assim seria para
os entendidos das etimologias conhecedores das liacutenguas claacutessicas estudiosos e
especialistas A quem eacute vedado o conhecimento distante estaacute a luz do saber Equivoca-
se quem se debruccedila sobre dicionaacuterios mais do que se dedica ao pensamento O caminho
aqui oferece questotildees natildeo soluccedilotildees
O que eacute a palavra sem a relaccedilatildeo com o que nomeia e o que nela vem agrave palavra
Deve-se sair correndo de toda etimologia vazia e acidental ela se torna
jogatina se o que se estaacute a nomear na palavra jaacute natildeo tiver sido anteriormente
pensado por caminhos longos e vagarosos e natildeo continuar a ser sempre de
novo pensado comprovado e sempre de novo provado em sua essecircncia de
palavra (HEIDEGGER 1998 paacuteg 207)
Por isso conveacutem enveredar-se tanto no mais recocircndito significado a fim de
auscultar seu sentido praticamente mudo na fala mais corriqueira bem como no
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aparentemente mais banal significado arcaico Desse modo reconhecemos que em toda
fala cotidiana haacute um canto antigo e inaudito Assim continuamos com a etimologia agora
pela via popular de traditio
Em Aulete e Valente (2016 Traiccedilatildeo)28 e Ferreira (2004 Traiccedilatildeo) encontra-se
outra via de acesso que natildeo a erudita ao portuguecircs brasileiro da palavra traditio a palavra
traiccedilatildeo Resumidamente tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo possuem exatamente a mesma origem latina
em traditio Ora traiccedilatildeo nos eacute apresentada pelos meios de comunicaccedilatildeo mais usados e
acessiacuteveis como uma ruptura da expectativa e da confianccedila sendo normalmente encarada
como uma maldade por nossa moral vigente ldquoQuebra de fidelidade prometida e
empenhada aleivosia deslealdade perfiacutediardquo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015
Traiccedilatildeo)29 Qual eacute a daacutediva entatildeo Onde estaacute a traditio na traiccedilatildeo
Bom e ruim satildeo paradigmas morais Quando se diz da traiccedilatildeo de outrem leva-se
em conta sua conduta perante o que se espera enquanto membro de uma sociedade Pela
traiccedilatildeo se fixou a negatividade do que eacute dado A tradiccedilatildeo maacute a tradiccedilatildeo perversa a daacutediva
rejeitada socialmente uma traiccedilatildeo Ora essa postura determiniacutestica natildeo considera o trans-
que tambeacutem haacute na traiccedilatildeo O absoluto que jaz aparentemente em toda traiccedilatildeo se revela
tatildeo variaacutevel assim como a relaccedilatildeo de infidelidade da esposa com o marido natildeo tem a
mesma perfiacutedia moral que a quebra da confianccedila pelo espiatildeo em defesa da paacutetria Esta
talvez nem maldade fosse mas digna de medalha por seus pares
Originalmente ndash assim eles decretam ndash as accedilotildees natildeo egoiacutestas foram louvadas e
consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas aqueles aos quais eram
uacuteteis mais tarde foi esquecida essa origem do louvor e as accedilotildees natildeo egoiacutestas
pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas foram
tambeacutem sentidas como boas ndash como se em si fossem algo bom (NIETZSCHE
1998 paacuteg 18)
Na dinacircmica do movimento o bom e o ruim se imiscuem Entatildeo trair pode ser
uma coisa boa justificaacutevel em algumas ocasiotildees assim como a tradiccedilatildeo Eacute importante
aqui natildeo confundirmos o caminho com o caminhar O caminho natildeo faz escolhas o
caminhar sim A traiccedilatildeo oferece daacute e entrega algo o modo como lidamos com essa oferta
eacute outra perspectiva Um caso social pessoal cultural Traiccedilatildeo natildeo eacute soacute mateacuteria de
tabloides pelo contraacuterio ela reconhece a tradiccedilatildeo e neste reconhecimento nega-a
28 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtraiC3A7C3A3ogt Acesso em 18 set 2016 29 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscaid=4bjp3gt Acesso em 18 set 2016
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oferecendo outra possibilidade de concepccedilatildeo do real cuja moral da tradiccedilatildeo ndash aquela
tradicional e comprometida com o produto a ser entregue natildeo com o processo ndash reprova
Em consonacircncia com a dinacircmica da travessia a traiccedilatildeo engendra o outro valor da tradiccedilatildeo
sua proacutepria instacircncia de desvio agrave qual a entrega enquanto doaccedilatildeo de possibilidades se
dispotildee
Contudo eacute compreensiacutevel a descrenccedila de que traiccedilatildeo seja algo que natildeo um
comportamento execraacutevel Afinal desde haacute muito a proximidade com uma semacircntica da
malignidade se adequa agrave palavra Os primeiros dicionaacuterios do portuguecircs jaacute apresentam
esse sentido e isto nos indica ao menos nos ciacuterculos intelectuais qual eacute a interpretaccedilatildeo
do termo que se arrasta na histoacuteria da liacutengua permeando nossa concepccedilatildeo de mundo
ldquoTraiccedilaotilde ndash perfiacutedia falta de fidelidade ao Principe ao amigo que se fiava de nogravesrdquo
(BLUTEAU 1728 paacuteg 237) ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia entrega da feacute quebra da fidelidade
prometidardquo (SILVA 1789 paacuteg 794) e ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia falta de fidelidaderdquo (PINTO
1832 paacuteg 1057)
A relaccedilatildeo entre perfiacutedia e traiccedilatildeo natildeo comeccedila neste momento nem se restringe ao
portuguecircs mostrando que outras liacutenguas detiveram semelhante compreensatildeo de mundo
ldquoO Italiano chama ao Traductor Traidor Traduttore Traditore mas o Traductor fiel natildeo
he Traidorrdquo (BLUTEAU 1728 paacuteg 234) Uma proximidade que se justificaria na
formaccedilatildeo na qual traduccedilatildeo deriva de trans- + -duco- + -tio Ambos os verbos trado e
traduco satildeo introduzidos pelo prefixo-ponte aceno para a travessia na sua forma tra-
Entre duco e do entre trazer e dar haacute sim muitos sentidos parecidos que se distanciam
com sutileza e se aproximam com cautela Na proposiccedilatildeo anterior o tradutor fiel traria o
sentido do verso enquanto que o traidor daacute sentido ao verso fugindo agrave fidelidade da
mensagem
Ora quantos ruiacutedos existem entre o que se diz e o que se quer dizer Quem haacute de
mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido Imersa em
narrativa a mensagem assume o rosto das variadas interpretaccedilotildees e ainda assim a
mensagem eacute apenas a interpretaccedilatildeo do real enquanto palavra obra gesto e natildeo o real
propriamente A unicidade da obra a que Benjamin (1987 paacuteg 171) se referia eacute o que
permite uma entrega a cada vez autecircntica de respostas sem esgotar a questatildeo que a arte
suscita Nessa dimensatildeo todo tradutor eacute em certa medida traidor ainda sem o querer
pois necessariamente ele falharaacute em entregar a mensagem na iacutentegra concomitantemente
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o tradutor eacute um ldquotraditorrdquo algueacutem que porta uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo e a passa
adiante em sua possibilidade de autenticidade
125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo
A traiccedilatildeo natildeo deixa de ser uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ou melhor
da falta agrave tradiccedilatildeo seja na figura de um rei enganado seja na de um amante infiel A
histoacuteria da liacutengua apenas serve para confirmar a desconfianccedila que a traiccedilatildeo engendra
Todavia o uacuteltimo seacuteculo tem revisto sua proacutepria compreensatildeo de relato histoacuterico o que
vem influenciando as mais diversas aacutereas inclusive a lexicografia
Os dicionaristas agora levam em conta natildeo apenas a norma culta escrita para
reconhecer uma entrada no dicionaacuterio ndash como nas primeiras publicaccedilotildees em liacutengua
vernacular ndash mas o uso corrente oral palavras chulas e ateacute palavras de uso apenas em
determinadas comunidades Essas populaccedilotildees algumas delas isoladas do conviacutevio com o
restante da civilizaccedilatildeo tiveram um desenvolvimento proacuteprio da liacutengua condizente com
sua experiecircncia de mundo
Nesse sentido algumas palavras para noacutes ndash que estamos acostumados com o
linguajar citadino que fomos atravessados por anos de teorias e praacuteticas cientiacuteficas jaacute
cristalizadas ndash podem soar estranhas pela maneira como usam aquelas comunidades
embora ambas tenham uma origem comum Isto eacute cada tradiccedilatildeo faz seu caminho e
resguarda interpretaccedilotildees singulares em diaacutelogos mais ou menos audiacuteveis no uso
corriqueiro das fontes propulsoras do nomear
No dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que
pela fala perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircncia Contudo na maior
parte das vezes e com frequecircncia o dito nos vem ao encontro como uma fala
que passou
Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz fariacuteamos bem em
encontrar um dito que se diz genuinamente e natildeo um dito qualquer escolhido
de qualquer modo Dizer genuinamente eacute dizer de tal maneira que a plenitude
do dizer proacutepria ao dito eacute por sua vez inaugural (HEIDEGGER 2003 paacuteg
12)
53
Nos grandes dicionaacuterios de portuguecircs brasileiro uma das entradas de traiccedilatildeo
destoa do sentido de perfiacutedia mais usual ao mesmo tempo em que se aproxima de uma
entrega e uma oferta ldquo4 Regionalismo Minas Gerais Mato Grosso Mato Grosso do Sul
Variedade de mutiratildeo em que o fazendeiro que tenciona auxiliar o vizinho chega agrave casa
deste de madrugada em companhia de trabalhadores e desperta-o ao som de cantosrdquo
(HOUAISS 2009a Traiccedilatildeo) ldquo5 MG MT MS Mutiratildeo em que os ajudantes chegam agrave
casa de quem vai ser ajudado de madrugada e acordam-no com cantosrdquo (AULETE
VALENTE 2016 Traiccedilatildeo) ldquo5 Bras MT Espeacutecie de mutiratildeo (q v) com a
particularidade de o fazendeiro que pretende auxiliar o vizinho chegar agrave casa deste alta
noite de surpresa em companhia dos trabalhadores acordando-o em geral ao som de
cantos [Cf nesta acepccedil suta (3) e estalada (5)]rdquo (FERREIRA 2004 Traiccedilatildeo)
6 REG (MG MS MT) ETNOL Ver suta acepccedilatildeo 3 3 REG (GO) ETNOL
Mutiratildeo prestado por amigos e vizinhos de um fazendeiro que chegam de
surpresa para realizar um serviccedilo urgente e quando concluiacutedo voltam para a
sede da fazenda para um jantar especial seguido de reza cantoria e danccedila
traiccedilatildeo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015 Suta)30
Como a traiccedilatildeo virou auxiacutelio Como de perfiacutedia a palavra traiccedilatildeo ganhou uma
conotaccedilatildeo praticamente oposta digna inclusive de comemoraccedilotildees A tal pergunta natildeo se
pode responder com certeza neste trabalho Em geral os regionalismos satildeo marcas
culturais como estruturas linguiacutesticas que se referem a determinadas comunidades e satildeo
leituras de mundo feitas por ou a respeito delas Apresentam uma singularidade no uso
seja na manutenccedilatildeo de sentidos seja na construccedilatildeo de novas relaccedilotildees entre palavra e
realidade de tal modo que um sentido antigo poderia tomar um caminho aparentemente
contraditoacuterio ao canocircnico e ainda assim dialogar com este no que haacute de originaacuterio em
ambos Em entrevista ao Diaacuterio de Lisboa Joatildeo Cabral de Melo Neto nos oferece sua
interpretaccedilatildeo do que seja o regionalismo e o regional
O regionalismo natildeo eacute uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de
problemas que estatildeo mais proacuteximos da pessoa que fala a dor do homem a
alegria suas lutas e as suas belezas etc [] Quando me bato pelo regionalismo
eacute para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os
30 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=sutagt Acesso em 20 set
2016
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homens O homem soacute eacute amplamente homem quando eacute regional (ATHAYDE
1998 paacuteg 85)
Tem-se pois a ajuda oferecida Uma comunidade na qual um de seus membros
receberia auxiacutelio de bom grado apresenta-se e se dispotildee ao trabalho conjunto Importante
notar que a vinda auxiliadora natildeo recai exclusivamente na realizaccedilatildeo do labor mas se
enfeita de muacutesica e danccedila um rito trabalhiacutestico Ela natildeo eacute imediata natildeo eacute objetiva em sua
funccedilatildeo mas se permite demorar no empenho de ajudar num tempo em que ajuda natildeo eacute
puro desempenho da tarefa Por sua vez o ajudado tambeacutem oferece algo comidas
agradecimentos e seu trabalho se junta aos demais na comunhatildeo criada para aquela
circunstacircncia especiacutefica
Neste caso a festa eacute tatildeo necessaacuteria quanto o trabalho Tanto que o serviccedilo natildeo visa
agrave remuneraccedilatildeo natildeo se busca a troca simboacutelica A voluntariedade estaacute na garantia de
persistecircncia desse tipo de relaccedilatildeo de comunidade que se ajuda pois cada um eacute tanto um
uacutenico quanto a unidade que caracteriza o comum Eu o ajudo no que me ajudo Na entrega
da ajuda que eacute uma traiccedilatildeo em particular eu perpetuo a tradiccedilatildeo daquela comunidade
Esta eacute a traiccedilatildeo que oferece ajuda mediante confraternizaccedilatildeo e agrave revelia de salaacuterio
Uma daacutediva que natildeo se fia unicamente no desfecho para o ato e que atravessa toda a accedilatildeo
desde sua requisiccedilatildeo de auxiacutelio ateacute sua promessa ambas veladas no desvelar daquela
comunidade A isto chamamos de outro nome quando nos reunimos para ajudar em
amizade e em prol de um uacutenico em unidade com os demais mutiratildeo
Para compreender a relaccedilatildeo regionalista com a palavra traiccedilatildeo conveacutem ouvir nela
o que aparece como sinocircnimo dicionarizado agrave palavra mutiratildeo Aqui sinocircnimo seraacute
tratado como um termo que indica a aproximaccedilatildeo entre as experiecircncias de mundo que as
palavras sugerem Logo prestar atenccedilatildeo ao que mutiratildeo se refere eacute atentar-se agravequilo que
a traiccedilatildeo pode vir a dizer a noacutes e diz agrave sua maneira aos que vivem naquelas comunidades
regionais
A palavra mutiratildeo se origina de potyrotilde pitibotilde popitibotilde e picorotilde (DICIONAacuteRIO
TUPI-GUARANI 2016 Mutiratildeo)31 Na liacutengua tupi ldquop t k quando precedidos por vogai
nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng [] b em siacutelaba aacutetona muda-se em m quando
precedido por vogal nasal ou nasalizadardquo (RODRIGUES 1953 paacuteg 123) Isso ocasiona
31 Disponiacutevel em lthttpwwwdicionariotupiguaranicombrdicionariomutiraogt Acesso em 21 set
2016
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a variaccedilatildeo motyrotilde que significa no idioma indiacutegena ldquo(v intr) ndash trabalhar em conjuntordquo
(NAVARRO 2013 paacuteg 405) Diferentemente de um grego ou latim o tupi eacute uma liacutengua
que nos chegou exclusivamente pela via oral assim uma mesma palavra pode ter vaacuterias
origens devido agraves incertezas que a envolvem Isso de nenhuma maneira precisa ser
encarado como um demeacuterito mas como desafio de lidar com o variado e o mesmo
simultaneamente
Um caminho de interpretaccedilatildeo possiacutevel para isto a que os indiacutegenas chamavam de
popitibotilde ou popytybotilde proveacutem da palavra popy que literalmente quer dizer ldquoponta cabo
extremidade (de qualquer coisa)rdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 394) haja vista sua
constituiccedilatildeo poacute ldquomatildeordquo (NAVARRO 2013 paacuteg 390) + py ldquopeacute patardquo (NAVARRO
2013 paacuteg 413) Vaacuterias satildeo as palavras geradas com esse radical por exemplo popyatatilde
e popyrsquoi ldquolsquoser forte de braccedilosrsquo [e] lsquodestreza de matildeosrsquordquo(NAVARRO 2013 paacuteg 394)
respectivamente Nesse sentido popytybotilde significa ldquo(etim ndash ajudar a matildeo) (v tr) ndash
ajudarrdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 395) Ajudar com as matildeos uma indicaccedilatildeo ao esforccedilo
no empenho do auxiacutelio como nos esforccedilamos em trabalhos manuais Auxiliar natildeo como
quem apoia ou aconselha mas como quem carrega o fardo alheio com as proacuteprias matildeos
fazendo-o seu por instantes
126 Os mutirotildees do homem
Embora a palavra seja de origem tupi outras tribos como os šerersquonte tinham
experiecircncias semelhantes agravequela referente a potyrotilde ldquoSe a capina foi demasiada para uma
famiacutelia o marido saiu para caccedilar preparou uma torta de carne a partir da caccedila e a serviu
para os companheiros que vieram assisti-lordquo (NIMUENDAJUacute 1942 paacuteg 33 ndash traduccedilatildeo
livre)32 Tambeacutem assim o portuguecircs compara em sinocircnimo emergecircncia do que se afina
nas diversas singularidades o mutiratildeo agrave traiccedilatildeo
Traiccedilatildeo que eacute tradiccedilatildeo ou seja mutiratildeo que eacute tradiccedilatildeo um atravessamento no
tempo de um trabalho conjunto em comunidade Neste desdobramento social daacute-se um
32 If the weeding was too much for one family the husband went hunting had a meat-pie made from the
kill and served it to fellow-members who came to assist him
56
trabalho pelas mesmas matildeos que recebem a festa que eacute o natildeo trabalho que eacute o desvio do
caminho da ajuda Desvio e via de trabalho fazem parte do mutiratildeo assim como fazem
da tradiccedilatildeo sua traiccedilatildeo sua outra via de acesso ao que eacute entregue
Aprender que a tradiccedilatildeo porta o descaminho da mensagem eacute aceitar a festa sem a
qual natildeo haacute mutiratildeo sem o mutiratildeo a obra natildeo anda Sem a traiccedilatildeo a histoacuteria se repete
sem invenccedilatildeo tradicionalmente se repete Justamente eacute pela educaccedilatildeo que nos deparamos
com o empenho de pensar o desempenho da traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo agrave medida que se educa
como quem traduz cuidando para que se deixe emergir na traduccedilatildeo o vigor da tradiccedilatildeo
isto eacute o que manteacutem a tradiccedilatildeo viva doadora de sentidos sejam eles arcaicos sejam
contemporacircneos instigadora de sentidos tanto conservadores quanto iconoclastas
Mas na mesa aquele menino Guirigoacute na senvergonhice inocente de sua pouca
geraccedilatildeo tinha adormecido completo antecipadamente e eu consenti que as
mulheres carregassem o coitadinho diabinho pesado como um de maioridade
e levassem para dormir sei laacute onde por entre colchatildeo e lenccedilol A vida inventa
A gente principia as coisas no natildeo saber por que e desde aiacute perde o poder de
continuaccedilatildeo ― porque a vida eacute mutiratildeo de todos por todos remexida e
temperada (ROSA 2016 paacuteg 316)
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2 Pensando a Filosofia
21 A filosofia como resposta
Seria pois a resposta para nossos problemas a filosofia Ao optar pelo estudo
dessa disciplina leva-se a crer que haacute certo indiacutecio da apoteose filosoacutefica como desenlace
Pretensotildees agrave parte questiona-se entre outras coisas se e como a filosofia se relaciona
com a tradiccedilatildeo e haja vista a relaccedilatildeo de ensino e tradiccedilatildeo como ela se relaciona com o
ensino
Para isso conveacutem uma seacuterie de outras perguntas Poreacutem um dilema eacute estabelecido
na hora de responder a elas eacute possiacutevel de fato dar uma resposta O que eacute isto aonde chega
meu questionamento A relaccedilatildeo de filosofia com o responder natildeo eacute a mais oacutebvia Isso
porque compreendecirc-la no acircmbito do perguntar tornou-se lugar-comum do filosofar cujas
respostas passam por fugidias para natildeo dizer pouco confiaacuteveis Essa falta de confianccedila
em suas soluccedilotildees aparece como uma de suas caracteriacutesticas fundamentais possibilitando
um questionamento incessante sem um compromisso expliacutecito de resoluccedilatildeo e nem de
compreensatildeo ldquoo fazer-se compreensiacutevel eacute o suiciacutedio da filosofiardquo (HEIDEGGER 1989
paacuteg 435 ndash traduccedilatildeo livre) 33
Natildeo que essa forma de conhecimento seja totalmente avessa a propor caminhos
afinal ldquoa exclusividade da criaccedilatildeo de conceitos assegura agrave filosofia uma funccedilatildeo []rdquo
(DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17) Natildeo encerrando na assertiva anterior a
problemaacutetica a dupla de intelectuais franceses ainda desmistifica diversas crenccedilas a
respeito da filosofia e ratifica seu papel uacutetil neste caso o de conceituar Dar nome ao
inominado enveredando pelo inominaacutevel
[] a grandeza da filosofia estaria justamente em natildeo servir para nada eacute um
coquetismo que natildeo tem graccedila nem mesmo para os jovens Em todo caso natildeo
tivemos jamais um problema concernente agrave morte da metafiacutesica ou agrave superaccedilatildeo
da filosofia satildeo disparates inuacuteteis e penosos Fala-se hoje da falecircncia dos
sistemas quando eacute apenas o conceito de sistema que mudou Se haacute lugar e
tempo para a criaccedilatildeo dos conceitos a essa operaccedilatildeo de criaccedilatildeo sempre se
33 Das Sichverstaumlndlichmachen ist der Selbstmord der Philosophie
58
chamaraacute filosofia ou natildeo se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um
outro nome (DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17)
Apregoa-se na citaccedilatildeo acima a serventia da filosofia Sua causa seria algo claro
e em contrapartida qualquer aporia seja em suas teorias (como o fim da metafiacutesica) seja
dela consigo proacutepria seu porquecirc de existir eacute faceirice de criadores de intrigas
desnecessaacuterias Em outras palavras nesse trecho um conceito eacute uma resposta As nuances
do que isso significa para Deleuze se desdobram e ldquo[] natildeo deixam margem para duacutevida
a filosofia natildeo eacute uma simples arte de inventar de produzir os conceitos ela eacute uma
disciplina rigorosa que tem como funccedilatildeo primordial a criaccedilatildeo de novos conceitosrdquo
(SCHOPKE 2004 paacuteg 131)
Este rigor aproxima a filosofia da ciecircncia (mas tambeacutem da arte) pois pressupotildee
uma teacutecnica e grande labor Os limites entre as faculdades se desfazem em alguns casos
acentuando ainda mais o compromisso com uma resposta a seus anseios ldquoa filosofia eacute
pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos conhecimentos racionais a partir dos
conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico dessa ciecircnciardquo (KANT 1992 paacuteg 41)
A funcionalidade justifica com facilidade o conhecimento Precisamos saber fazer
contas para o troco da padaria e para as construccedilotildees da engenharia precisamos do idioma
para a compreensatildeo escrita da sociedade precisamos disso para aquilo basicamente
tem-se uma foacutermula Basta substituir isso para se chegar agravequilo e vice-versa Entretanto
haacute um certo vazio quando a filosofia eacute a primeira variaacutevel da equaccedilatildeo pois ateacute para o
mais elementar (por exemplo no acircmbito escolar as notas e provas) nem para isso ela
serve
Para todo professor de Filosofia acostumado agrave lida no Ensino Meacutedio satildeo
bastante conhecidas as perguntas do tipo lsquopara que serve a Filosofiarsquo lsquoeacute
mesmo necessaacuteria esta disciplina ou ela eacute apenas para mostrar que este coleacutegio
tem mais disciplinas do que os outrosrsquo ou ainda lsquose Filosofia natildeo cai no
vestibular por que temos de estudaacute-larsquo Questotildees surgidas na maior parte das
vezes logo nos primeiros contatos do aluno com essa lsquonova realidadersquo
(BRASIL 2000 paacuteg 44)
O empenho nos estudos se confunde com a dificuldade de aceitaccedilatildeo da
importacircncia da filosofia Natildeo eacute agrave toa que seus praticantes os filoacutesofos satildeo ditos seres
questionadores repletos de duacutevidas natildeo de soluccedilotildees Inclusive a distacircncia da praacutetica
59
torna-a por vezes inalcanccedilaacutevel agravequeles que natildeo foram iniciados nos conceitos dessa
mateacuteria e por isso inapropriada ao contexto de Ensino Fundamental e Meacutedio
Entretanto natildeo foi assim que comeccedilamos este texto e natildeo se pretende dar
prosseguimento creditando a nefelibatas eruditos o papel do filoacutesofo muito menos tratar
a filosofia em meio a balbuacutecies sem sentido Existe tanto um apreensiacutevel por meio do
conceito quanto o embate entre o que ainda natildeo foi pensado e o impensaacutevel Somente no
percurso desses questionamentos pode-se ter mais clareza quanto a seu significado
Falemos mais concretamente A direccedilatildeo de um Estado pode bem dizer
precisamos agora a fim de realizar um plano quinquenal de fiacutesicos que
recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras naccedilotildees ou
necessitamos de meacutedicos que elaborem cientificamente um medicamento
efetivo contra a gripe [] Mas lsquoPrecisamos no momento de filoacutesofos quersquo
ndash sim o quecirc Agora soacute haacute uma possibilidade lsquo que desenvolvam
fundamentem e defendam a seguinte ideologiarsquo ndash soacute se pode falar assim com
a destruiccedilatildeo simultacircnea da filosofia (PIEPER 2014 paacuteg 19)
Propotildee-se aqui encarar a filosofia como a resposta que seja Para tanto a fim de
reconhececirc-la em suas idiossincrasias seraacute preciso aceitar que de fato parece um
contrassenso senatildeo maacute feacute da Histoacuteria colocar a filosofia no domiacutenio tanto das respostas
e da austera dedicaccedilatildeo quanto no do questionamento e do insoluacutevel Apenas apoacutes
debruccedilarmo-nos em seus sentidos do mais cotidiano ao canocircnico podemos ousar
responder ao que ela presta contas e quais relaccedilotildees esperar com tradiccedilatildeo e ensino ldquoIsso
eacute assim por ser o reconhecimento uma resposta Ele responde ao inacessiacutevel agrave medida que
o resguarda O pensamento compreende como resposta a uma relaccedilatildeo com um outro que
se mostra como velamento recusa como um adyton34rdquo (TRAWNY 2013 paacuteg 22)
34 ldquoSantuaacuterio secreto a que soacute tinham acesso os sacerdotes nos templos antigos da Greacuteciardquo (HOUAISS
Aacutedito 2009a) proveniente do grego ldquonatildeo deve ser adentradordquo (LIDDELL SCOTT Ἄδυτος 1940)
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)2F
dutosgt Acesso em 11 mai 2017
60
22 Filosofia inteligecircncia e entendimento
Ao longo de sua histoacuteria a filosofia tem assumido diversas acepccedilotildees o que eacute
determinante para compreender seu propoacutesito se eacute que haacute um Isso natildeo apenas em
variaccedilatildeo diacrocircnica de significados mas tambeacutem sincrocircnica ou seja nos registros atuais
da liacutengua Desde o uso diaacuterio da palavra ateacute os mais formais e teacutecnicos significados
encontramos conceituaccedilotildees ateacute contraditoacuterias do que seja filosofia
Naturalmente isso natildeo eacute um problema As contradiccedilotildees satildeo bem-vindas mas sem
que se caia na esparrela de aceitaacute-las esquecendo-se de fazer a devida criacutetica soacute porque a
princiacutepio tudo eacute vaacutelido Nem por outro lado fazer do filoacutesofo um inquisidor cuja missatildeo
eacute hierarquizar categorizando os diversos saberes Aleacutem disso histoacuteria discurso canocircnico
e opiniatildeo cotidiana natildeo satildeo coisas tatildeo diversas entre si e no mais das vezes se imiscuem
cada uma revelando um sentido que nos auxilia a pensar a questatildeo
Apesar disso no mais das vezes em sua trajetoacuteria a filosofia apregoa a si o ofiacutecio
de distanciar-se da opiniatildeo ou δόξα Quer dizer ao se questionar pelo significado
filosoacutefico a δόξα aparece como uma resposta equivocada Ora isso revela esse iacutempeto
que afasta os natildeo iniciados criando um estigma segregador na disciplina Na suposiccedilatildeo
de natildeo validar tudo na mesma medida promove-se a separaccedilatildeo em joio e trigo valorando
positiva ou negativamente as partes ldquoo meacutetodo da dialeacutectica eacute o uacutenico que procede por
meio da destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a caminho do autecircntico princiacutepio a fim de tornar seguro
seus resultados e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espeacutecie de lodo
baacuterbaro em que estaacute atoladardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 347)
A referecircncia agraves almas castigadas que jaziam no Hades atoladas no lodo (PLATAtildeO
2000 paacuteg 47) natildeo eacute leviana Por esse vieacutes da Repuacuteblica embora nela sejam considerados
outros modos de saber o meacutetodo dialeacutetico (que eacute o da filosofia) prepondera A filosofia
platocircnica se confunde com a proacutepria dialeacutetica sob a ressalva de que a ldquopalavra lsquodialeacuteticarsquo
natildeo designa nada com precisatildeo natildeo passa de uma miscelacircnea Ela abarca e potildee em
confusatildeo uma vasta gama de problemas de necessidades especulativas e de temas e
pensamentos heterogecircneosrdquo (RUYER 1961 paacuteg 1 ndash traduccedilatildeo de Thayrine
61
Kleinsorgen)35 haja vista todos os seus diaacutelogos nos quais Soacutecrates se apresenta sempre
perante os interlocutores a lidar com as diversas concepccedilotildees e com o princiacutepio agregador
delas
Para ele [Platatildeo] a Dialeacutetica eacute a teacutecnica da pesquisa associada que se efetua
atraveacutes da colaboraccedilatildeo de duas ou mais pessoas com o processo socraacutetico do
perguntar e responder A filosofia era de fato para Platatildeo natildeo uma tarefa
individual e privada mas obra de homens que lsquovivem juntamentersquo e lsquodiscutem
com benevolecircnciarsquo eacute a atividade proacutepria de lsquouma comunidade da educaccedilatildeo
livrersquo (Leis VII 344b) (ABBAGNANO 1970 paacuteg 252)
Desse modo a hierarquia de Platatildeo dos tipos de conhecimento justifica tanto o
iacutempeto filosoacutefico pela coerecircncia loacutegico-semacircntica quanto a repulsa histoacuterica dessa
disciplina pela opiniatildeo ou senso comum Isso ocorre seja pelo fato de ldquoabarcar num soacute
golpe de vista todas as ideias esparsas de um lado e do outro e fundi-las numa soacute ideia
geralrdquo (PLATAtildeO 2002 paacutegs 106-107) seja por ldquoseparar novamente a ideia geral nos
seus elementos nas suas articulaccedilotildees naturais sem todavia mutilar qualquer dos
elementos primitivos como faz um mau accedilougueirordquo (PLATAtildeO 2002 paacuteg 107)
definindo assim os modos de proceder com a dialeacutetica
lsquoSua interpretaccedilatildeo eacute deveras suficientersquo eu disse lsquoe agora respondendo a36
estas quatro partes assume-se estas quatro influecircncias ocorrendo na alma a
intelecto ou razatildeo para a mais alta a entendimento para a segunda atribui-se
a crenccedila para a terceira e para a uacuteltima o pensamento pictoacuterico ou a conjectura
e arranjaacute-las numa proporccedilatildeo considerando que elas participam no
esclarecimento e precisatildeo na mesma medida em que seus objetivos tomam
parte da verdade e da realidade (PLATAtildeO 1969a 511d-511e ndash traduccedilatildeo
livre)37
ἱκανώτατα ἦν δ᾽ ἐγώ ἀπεδέξω καί μοι ἐπὶ τοῖς τέτταρσι τμήμασι τέτταρα ταῦτα
παθήματα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενα λαβέ νόησιν μὲν ἐπὶ τῷ ἀνωτάτω διάνοιαν δὲ
ἐπὶ τῷ δευτέρῳ τῷ τρίτῳ δὲ πίστιν ἀπόδος καὶ τῷ τελευταίῳ εἰκασίαν καὶ τάξον
35 Le mot laquodialectiqueraquo ne deacutesigne rien de preacutecis nest quun fourre-tout Il couvre et met confusion toute
une vaste reacutegion de problegraveme de besoins speacuteculatifs de thegravemes de penseacutee heacuteteacuteroclites Disponiacutevel em
lthttpwwwjstororgstable40900578gt Acesso em 19 jul 2017 36 A preposiccedilatildeo ἐπί possibilita diversas traduccedilotildees conforme ldquofor [por ou para]rdquo e ldquocomrdquo vide o diaacutelogo
Goacutergias ldquofour branches of it for four kinds of affairsrdquo (PLATAtildeO 1967 463b) e ldquoquatro partes com quatro
campos diferentes de atividaderdquo (PLATAtildeO 2017b) 37 ldquoYour interpretation is quite sufficientrdquo I said ldquoand now answering to these four sections assume these
four affections occurring in the soul intellection or reason for the highest understanding for the second
assign belief to the third and to the last picture-thinking or conjecture and arrange them in a proportion
considering that they participate in clearness and precision in the same degree as their objects partake of
truth and realityrdquo Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017
62
αὐτὰ ἀνὰ λόγον ὥσπερ ἐφ᾽ οἷς ἐστιν ἀληθείας μετέχει οὕτω ταῦτα σαφηνείας
ἡγησάμενος μετέχειν (PLATAtildeO 1903 511δ-511ε)38
Aqui se apresenta um exemplo do caraacuteter categorizante da filosofia O auge da
influecircncia na alma (ψυχῇ) eacute o intelecto (νόησιν) Essa palavra grega eacute a forma declinada
de νόησις que ldquoeacute usada em seu sentido estrito de νοῦς natildeo apenas a faculdade de νοῦς
[] O exerciacutecio de νοῦς eacute corretamente falado como πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον
[influecircncias ocorrendo na alma] mas a faculdade em si mesma dificilmente poderia ser
assim descritardquo (ADAM 1902 ndash traduccedilatildeo livre)39
Essa eacute a inteligecircncia (LIDDELL SCOTT 1940 Νόησις)40 que faz oposiccedilatildeo agrave
percepccedilatildeo pelos sentidos agrave sensaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Αἴσθησις PLATAtildeO
1987 paacuteg 313)41 Somente o que fosse validado pelo intelecto seria de interesse da
filosofia o que eacute aprendido apenas pela experiecircncia com a proacutepria coisa teria consistecircncia
lodosa e seria menos confiaacutevel A razatildeo inspira seguranccedila pois pode ser comprovada e
medida (Cf ratio vide HOUAISS 2009a Razatildeo) As sensaccedilotildees podem ser
primeiramente sentidas depois descritas narradas cantadas e vividas mas dificilmente
satildeo precisas na convicccedilatildeo do caacutelculo ldquoAprende entatildeo o que quero dizer com o outro
segmento do inteligiacutevel daquele que o raciociacutenio atinge pelo poder da dialeacutectica [] sem
se servir em nada de qualquer dado sensiacutevel mas passando das ideias umas agraves outras e
terminando em ideiasrdquo (PLATAtildeO 1987 paacutegs 312-313)42
38 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017 39 Νόησιν is used in its strict sense of νοῦς in actual exercise not merely the faculty of νοῦς cf 508 E note
The exercise of νοῦς is correctly spoken of as a πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον but the faculty itself could
hardly be thus described Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A
section3D511Dgt Acesso em 20 mai 2017 40 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dno2
Fhsisgt Acesso em 17 mai 2017 41 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dai)2
Fsqhsisgt Acesso em 21 mai 2017 42 τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι
δυνάμει [hellip] αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος ἀλλ᾽ εἴδεσιν αὐτοῖς δι᾽ αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ
εἰς εἴδη Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A
section3D511bgt Acesso em 04 jul 2017
63
Uma ressalva contudo faz-se necessaacuteria a respeito das traduccedilotildees de νοῦς por
razatildeo Nas duas citaccedilotildees acima utiliza-se essa palavra e seus derivados no entanto a fim
de corresponder com o original grego conveacutem uma observaccedilatildeo acerca de certo
anacronismo do termo Isso porque estritamente falando o conceito de razatildeo como noacutes
o conhecemos hoje ainda natildeo tinha sido inventado
Claro que a rigor nenhuma palavra grega melhor dizendo nenhuma palavra no
tempo tem um sentido atual se ela mesma natildeo for atualizada Aleacutem disso natildeo eacute nada
incongruente a traduccedilatildeo de νοῦς por razatildeo Logo de que vale essa observaccedilatildeo
Exatamente pelo dito para tornar atual a palavra Significa fazer seu passado soar de
modo presente atento natildeo agrave fala pronunciada mas ao que nunca cessa de dizer a questatildeo
ldquoAuscultando natildeo a mim mas o Logos eacute saacutebio concordar que tudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO
1991 paacuteg 71)43
Inclusive esse pensador tambeacutem faraacute uso dessa palavra em seu fragmento 40 que
na traduccedilatildeo de Carneiro Leatildeo aparece como ldquomuito saber natildeo ensina sabedoria [νόον]
pois teria ensinado a Hesiacuteodo e Pitaacutegoras a Xenoacutefanes e Hecateurdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 69)44 Assim temos outro vieacutes de interpretaccedilatildeo mas que natildeo para por aiacute pois ao
longo da histoacuteria conforme as compreensotildees de realidade mudam tambeacutem a palavra diz
a quem a ouve coisas distintas ldquoSinto poreacutem nos meus membros outra lei que luta
contra a lei do meu espiacuterito [νοός] e me prende agrave lei do pecado que estaacute nos meus
membrosrdquo (BIacuteBLIA Romanos 7 23)45 Desse modo ratifica-se o caraacuteter profiacutecuo que a
palavra adquire geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo ao mesmo tempo em que endossa a confusatildeo de
qual sentido adotar neste ou naquele contexto
Contudo nem sempre haacute um compromisso com a palavra ou seja a
responsabilidade assumida para a traduccedilatildeo com a tradiccedilatildeo e sua respectiva traiccedilatildeo
Ocasiona-se entatildeo sua transformaccedilatildeo em invoacutelucro vocabular a serviccedilo da propagaccedilatildeo
de ideias Ueacute mas natildeo eacute disso que tratam os vocaacutebulos transposiccedilatildeo da realidade concreta
para o conceito abstrato E ainda que Bakhtin (2003 paacuteg 324) diga que ldquoa liacutengua a
43 ldquoοὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναιrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg
70) 44 ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκειmiddot Ἡδίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ
Ἑκαταῖονrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 68) 45 βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά
με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-
alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle557000179999gt Acesso em 3 jul 2017
64
palavra satildeo quase tudo na vida humanardquo isso passa longe do entendimento de que tudo eacute
qualquer coisa como se natildeo importasse o que usaacutessemos e todo dizer fosse igualmente
vaacutelido
Nesse sentido a sinoniacutemia entre intelecto e razatildeo conforme sugere a traduccedilatildeo de
Paul Shorey torna-se senatildeo equivocada ao menos digna de suspeita A razatildeo recebe uma
conceituaccedilatildeo bem especiacutefica no caminho do Ocidente demarcando por exemplo um vieacutes
sobre o sentido fundamental de interpretaccedilatildeo bem diferente do proposto pelas Escrituras
e pelo pensador brasileiro Daiacute a conveniecircncia em nos atentarmos a natildeo fazer das palavras
veiacuteculos de nossa vontade sob o risco de natildeo aceitarmos o convite do outro e soacute
estancarmos disciplinadamente estancarmos num monoacutelogo
Com a disciplina afirma-se um acircmbito de questotildees possiacuteveis que estabelece
direccedilotildees e caminhos dotados de certa validade O campo de objeto ocupado
pela disciplina fica confinado agrave disciplina As coisas de que trata a disciplina
soacute podem vir agrave palavra enquanto e agrave medida que a disciplina e seu aparato
metodoloacutegico permitem A disciplina e sua validade permanecem a instacircncia
paradigmaacutetica da possibilidade e do modo em que uma coisa se torna objeto
de uma ciecircncia ndash e um objeto apropriado para pesquisa As disciplinas em vigor
satildeo como uma peneira soacute admitindo aspectos bem determinados das coisas
Natildeo eacute tanto a coisa o seu fundamento e sua lsquoverdadersquo que decidem o que
pertence lsquoagrave coisarsquo mas sim a disciplina que confina a coisa enquanto objeto da
disciplina (HEIDEGGER 1998 paacuteg 240)
O perigo estaacute aiacute fazer do rigor de nossos desejos o real esquecendo-se do que eacute
ndash somos e natildeo somos Fazer do real apenas o eu ignora parte essencial de sua constituiccedilatildeo
aquele pedacinho sobre o qual natildeo nos cabe versar pois a noacutes estaacute velado Platatildeo trata
tanto de uma realidade apreensiacutevel quanto de uma incompreensiacutevel Sua questatildeo
todavia se processa a partir dos modos em que isso ocorre Parca eacute a compreensatildeo do
real sua conjectura alta o intelecto Ao nomeaacute-lo por razatildeo natildeo soacute utilizamos uma
palavra fortemente carregada de conceitos como determinamos que a excelecircncia do
conhecer daacute-se pela razatildeo e natildeo pela sabedoria ou pelo espiacuterito
A tarefa que se impocircs foi portanto conceber a ratio determinante do animal
homem na direccedilatildeo que pouco a pouco se revela no pensamento moderno A
essecircncia da razatildeo e isto significa da subjetividade natildeo eacute o mero pensamento
ou entendimento A essecircncia da razatildeo eacute a vontade Pois eacute na vontade
apreendida como o que se quer a si mesmo que se completa o colocar-se-
diante-de-si-mesmo do homem a subjetividade (HEIDEGGER 1998 paacuteg
235)
65
Semelhantemente ocorre com a traduccedilatildeo de λόγος por raciociacutenio Que bandeira
quer se defender em qual interpretaccedilatildeo do original claacutessico ela se fia Por que natildeo fazer
como o pensador Carneiro Leatildeo no fragmento 50 de Heraacuteclito (1991 paacuteg 71) e
simplesmente natildeo traduzir deixando a criteacuterio do leitor o estudo do grego antigo Outra
possibilidade eacute a total adequaccedilatildeo do termo ao sentido de essecircncia como acontece em ldquoNo
princiacutepio era o Verbo []rdquo (BIacuteBLIA Joatildeo 1 1) A histoacuteria dessa interpretaccedilatildeo de λόγος
marca o caminho que o Ocidente percorreu ateacute seu destino enquanto raciociacutenio passando
pela Vulgata ldquoIn principio erat Verbum []rdquo (BIacuteBLIA Ioannes 1 1)46 que por sua vez
adveacutem de ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος []rdquo (BIacuteBLIA Ιωαννην 1 1)47
Quaisquer desses posicionamentos escondem (e revelam) o sentido fundamental
da questatildeo do ser em cada dizer e nomear fundando pelo limite dito uma presenccedila no
real Enquanto a apropriaccedilatildeo de λόγος por Verbo ou Palavra como em Lutero ldquoIm Anfang
war das Wortrdquo (BIacuteBLIA Johannes 1 1)48 reapresenta sua concepccedilatildeo essencialista nos
paracircmetros da metafiacutesica do periacuteodo claacutessico ateacute os dias de hoje a manutenccedilatildeo do verbete
grego elitiza e convida o leitor a retornar ao movimento primordial da palavra
atualizando-a reversamente ou seja vai-se agraves origens em busca do que vigora
Conhecemos a definiccedilatildeo grega na formulaccedilatildeo posterior de homo est animal
rationale o homem eacute o animal racional Do λόγος a ratio da ratio a razatildeo O
elemento caracteriacutestico da capacidade racional eacute o pensamento Como animal
racional o homem eacute o animal pensante [] Podemos dizer que a definiccedilatildeo
referida eacute a determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem Nela o homem
que se encontra sob o domiacutenio da metafiacutesica exprime a sua essecircncia
(HEIDEGGER 1998 paacuteg 234)
Um detalhe Heidegger se refere agrave expressatildeo grega ἄνθρωπος ζῷον λόγος ἔχον
remetendo-se a Aristoacuteteles Contudo natildeo haacute em sua obra essa citaccedilatildeo ipsis litteris O mais
provaacutevel eacute que ela seja uma corruptela de ldquoοὐθὲν γάρ ὡς φαμέν μάτην ἡ φύσις ποιεῖ
λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴωνrdquo (ARISTOacuteTELES 1957 1253a)49 algo como
ldquoPois a natureza [φύσις] como noacutes declaramos natildeo faz nada sem propoacutesito e soacute o homem
46 Disponiacutevel em lt httpswwwbibliaonlinecombrtnvjo1gt Acesso em 07 jul 2017 47 Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle53gt
Acesso em 07 jul 2017 48 Disponiacutevel em lthttpswwwbibliaonlinecombrluther-1545jo1gt Acesso em 07 jul 2017 49 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100573Abook3D13A
section3D1253agt Acesso em 08 jul 2017
66
dos animais possui [ἔχει] discurso [λόγον]rdquo (ARISTOacuteTELES 1944 1253a)50 conforme
sugere Andrew Glynn (2015)51
Sutileza que faz toda a diferenccedila pois nesse trecho podemos aferir que a φύσις
enquanto real eacute quem possibilita o homem centrando a questatildeo natildeo na subjetividade
mas deslocando-a agrave apropriaccedilatildeo da essecircncia Apropriar-se porque embora o homem
ldquotenhardquo o λόγος ele deve mantecirc-lo seguraacute-lo nas proacuteprias matildeos ateacute habitaacute-lo vesti-lo
engravidar-se dele todos esses satildeo os sentidos do verbo grego (LIDDELL SCOTT 1940
Ἔχω)52 e natildeo abarcam a compreensatildeo de possuir apenas como quem controla a posse
material de um objeto possuir eacute ser possuiacutedo pela posse
Assim o que temos satildeo termos da Antiguidade que datildeo certa origem cronoloacutegica
a conceituaccedilotildees atuais e exatamente por isso natildeo devem ser igualados em significacircncia
Para natildeo estagnar em uma problemaacutetica historiograacutefica mais proveitoso para este
percurso que pretendemos aqui eacute decerto aceitar o desafio de pensar a oposiccedilatildeo
estabelecida em Platatildeo Ele tenta fundamentar a distinccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel a tal
ponto que chega a ser excludente um pelo outro Enquanto o intelecto trabalha com a
destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a fim de encontrar a verdade embasada justificada logicamente
a sensaccedilatildeo redundantemente apenas sente um bastar da proacutepria vivecircncia Eacute a partir desse
viver experienciado que estaacute a verdade dos sentidos
A Razatildeo eacute a forccedila que liberta dos preconceitos e do mito das opiniotildees
enraizadas mas falsas das aparecircncias e consente estabelecer um criteacuterio
universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos Do outro
lado como guia propriamente humano a Razatildeo eacute a forccedila a qual consente que
o homem se liberte dos apetites que tem em comum com os animais
submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida Esta eacute a duacuteplice
funccedilatildeo que foi atribuiacuteda agrave Razatildeo desde os primoacuterdios da filosofia ocidental
(ABBAGNANO 1970 paacuteg 792 ndash grifos no original)
50 For nature as we declare does nothing without purpose and man alone of the animals possesses speech
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Aristot+Pol+11253aampfromdoc=Perseus3Atext3A1
999010058gt Acesso em 08 jul 2017 51 Disponiacutevel em lthttpskalountoswordpresscom20150427what-is-the-human-part-one-rational-
animal-or-zoon-logon-echongt Acesso em 08 jul 2017 52 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)2F
xw1gt Acesso em 08 jul 2017
67
Uma oposiccedilatildeo radical mas que natildeo ocorre bruscamente Haacute etapas intermediaacuterias
entre os extremos que constituem essa segregaccedilatildeo essencial para Platatildeo Discute-se sobre
διάνοιαν forma declinada de διάνοια cujo sentido perpassa διά-νοια o que estaacute entre
(διά) a inteligecircncia (νοῦν) e a opiniatildeo (δόξης) ldquopois considere entendimento como algo
intermediaacuterio entre opiniatildeo e razatildeordquo (PLATAtildeO 1969a 511d ndash traduccedilatildeo livre)53 Logo
διάνοια aqui significa entendimento compreensatildeo mas fundamentalmente quer dizer o
lugar que natildeo eacute jaacute opiniatildeo mas que tambeacutem natildeo alcanccedilou a inteligecircncia Ainda natildeo ao
menos Estaacute em contato com o intelecto vislumbra-o sem tecirc-lo compreende-o agrave medida
que a δόξα enquanto local de predominacircncia das sensaccedilotildees eacute rejeitada
Esse eacute o conhecimento que ocorre ldquona geometria e nas ciecircncias afins [ἀδελφαῖς
τέχναις]rdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 312) Ao declarar indiretamente que somente ao filoacutesofo
como aquele que estaacute em relaccedilatildeo de profunda intimidade com o νοῦς cabe pensar os
princiacutepios e aos ldquocientistasrdquo eacute forccedilado ldquoinvestigar a partir de hipoacuteteses sem poder
caminhar para o princiacutepio mas para a conclusatildeordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311) ele faz
uma distinccedilatildeo importante O filoacutesofo marca uma ruptura que caracteriza sua forma de
pensar e que vai de encontro a outros importantes pensadores por aproximar a ciecircncia da
filosofia embora discernindo ambas entre si
Temos assim como base a aritmeacutetica que lsquofacilita a passagem da proacutepria alma
da mutabilidade agrave verdade e agrave essecircnciarsquo (Livro VII 525c) a seguir o espaccedilo a
duas dimensotildees ou geometria plana em terceiro lugar o espaccedilo a trecircs
dimensotildees por meio da estereometria a astronomia estuda os corpos soacutelidos
em movimento e a harmonia o som que eles entatildeo produzem Trata-se
portanto de um ensino essencialmente formativo Todas estas ciecircncias tecircm por
missatildeo preparar o espiacuterito para atingir o plano mais elevado a dialeacutectica cujo
fim eacute o conhecimento do Bem (Livro VII 333b-e) (PEREIRA 1987 paacuteg
XXXI)
Conveacutem reforccedilar que tanto teacutecnica quanto ciecircncia adequam-se ao contexto
somente se considerarmos que uma mesma terminologia pode tratar de assuntos distintos
Isso porque ao nos referirmos agrave ciecircncia noacutes homens modernos temos o haacutebito de
imaginar doutores de jalecos brancos e sentenccedilas de verdade inquestionaacutevel
Costumamos ao falar de teacutecnica pensar o modo de fazer algo agrave medida que detemos os
53 [hellip] because you regard understanding as something intermediate between opinion and reason
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 16 de mai 2017
68
meios a partir dos quais algo se faz Em outros termos para noacutes ter uma teacutecnica eacute
sinocircnimo de ter o controle cognosciacutevel sobre a produccedilatildeo de alguma coisa
Quanto maior for o controle aparentemente mais controle eacute desejado dando-se a
impressatildeo de evoluccedilatildeo e desenvolvimento Teacutecnica e tecnologia hoje se imiscuem e uma
ciecircncia de ponta indica tecnologia mais avanccedilada mesmo que problemas elementares
estejam esperando soluccedilatildeo Nesse meio tempo a teacutecnica mais simples torna-se obsoleta
a despeito de sua eficaacutecia em prol das novas tecnologias Se antes a teacutecnica nunca
houvera prometido a soluccedilatildeo do problema apenas delegando a si o papel de ferramenta
facilitadora a teacutecnica moderna promete mundos e fundos a cura dos mais terriacuteveis males
aquele uacuteltimo gadget e update para manter a roda dos desejos sempre a girar
Em contrapartida uma regiatildeo se desenvolve na exploraccedilatildeo de fornecer carvatildeo
e mineacuterios O subsolo passa a se desencobrir como reservatoacuterio de carvatildeo o
chatildeo como jazidas de mineacuterio Era diferente o campo que o camponecircs outrora
lavrava quando lavrar ainda significava cuidar e tratar O trabalho camponecircs
natildeo provoca e desafia o solo agriacutecola
Em contraste explora-se uma aacuterea da terra a fornecer carvatildeo e mineacuterios A
terra se des-encobre neste caso depoacutesito de carvatildeo e o solo jazida de minerais
Era outro o lavradio que o lavrador dispunha outrora quando dis-por ainda
significava lavrar isto eacute cultivar e proteger A lavra do lavrador natildeo desafiava
o lavradio Na semeadura apenas confiava a semente agraves forccedilas do crescimento
encobrindo-a para seu desenvolvimento Hoje em dia uma outra posiccedilatildeo
tambeacutem absorveu a lavra do campo a saber a posiccedilatildeo que dis-potildee da natureza
E dela dis-potildee no sentido de uma exploraccedilatildeo A agricultura tornou-se induacutestria
motorizada de alimentaccedilatildeo Dis-potildee-se o ar a fornecer azoto o solo a fornecer
mineacuterio como por exemplo uracircnio o uracircnio a fornecer energia atocircmica esta
pode entatildeo ser desintegrada para a destruiccedilatildeo da guerra ou para fins paciacuteficos
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 19 ndash grifos no original)
Natildeo podemos ignorar que ainda natildeo se trata da teacutecnica como a conhecemos hoje
e consequentemente da ciecircncia moderna senatildeo por uma questatildeo cronoloacutegica por
ontologicamente a concepccedilatildeo generalizante do homem e sua loacutegica natildeo estarem em pleno
vigor Cabe lembrar que tanto o mito quanto a sua transmissatildeo eram tidos como naturais
entre todos e quiccedilaacute seja esse o grande embate de Soacutecrates ndash a maiecircutica nunca foi para
convencer Agatatildeo ou Trasiacutemaco para um fim qualquer mas a toda πoacuteλις pelo fim digno
do periacuteodo de influecircncia homeacuterica
Podemos supor que como P Shorey (1968 p 248) e F M Cornford
(PLATAtildeO 1969b p 321) que Platatildeo se viu na necessidade de se defender
contra a celeuma levantada pelas afirmaccedilotildees sobre o tema [a condenaccedilatildeo da
poesia] feitas naqueles mesmos livros [II e III] Mas a importacircncia da poesia
69
na vida grega justifica a expansatildeo dada a este ataque Embora desde os finais
do seacutec VI aC a escrita estivesse divulgada e desde o seacutec V houvesse um
comeacutercio de livros apreciaacutevel (PEREIRA 1998 p 18-19) a verdade eacute que era
a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos quer pelos actores
dramaacuteticos) o principal meio de educaccedilatildeo e veiacuteculo de conhecimentos Esta
transmissatildeo intersubjetiva do saber eacute um aspecto caracteriacutestico e fundamental
da cultura grega bem visiacutevel aliaacutes nos proacuteprios diaacutelogos de Platatildeo E natildeo
esquecemos que mesmo para extensas narrativas em prosa como eram as
Histoacuterias de Heroacutedoto natildeo estava excluiacuteda a praacutetica da recitaccedilatildeo perante um
grande auditoacuterio (PEREIRA 1987 paacuteg XXXV)
Em outras palavras para Platatildeo os fins imediatos dados pela aparecircncia e
sensaccedilotildees natildeo seriam concernentes agrave filosofia estivessem eles envolvidos com pequenos
problemas do cotidiano ou com grandes obras de poliacutetica e de construccedilatildeo civil mas
apenas os princiacutepios geradores de todos os problemas Enquanto as demais disciplinas
respondem agrave pergunta por si (o que eacute a poliacutetica O que eacute construccedilatildeo civil) por suas accedilotildees
e finalidades praacuteticas (p ex a poliacutetica faz construccedilatildeo civil serve para) a filosofia
transforma a proacutepria pergunta existencial como seu caraacuteter fundamental almejando natildeo
necessariamente a um fim outro senatildeo o de se perguntar pelo ser em tudo ldquoo que eacuterdquo
Esse tipo de entendimento sobre a filosofia influencia o Ocidente ateacute eacutepocas mais
recentes Por exemplo em Kant (1992 paacuteg 41) podemos notar certa afinidade com o
exposto haja vista nomear filosofia como ciecircncia (Wissenschaft)
A filosofia eacute pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos
conhecimentos racionais a partir dos conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico
dessa ciecircncia De acordo com o conceito mundano ela eacute a ciecircncia das
finalidades uacuteltimas da razatildeo humana Esse conceito altivo confere dignidade agrave
filosofia isto eacute um valor absoluto E realmente tambeacutem eacute o uacutenico
conhecimento que soacute tem valor intriacutenseco e aquilo que vem primeiro conferir
valor a todos os demais conhecimentos (KANT 1992 paacuteg 41)
Eacute possiacutevel encarar sua referecircncia agraves finalidades uacuteltimas (letzten Zwecken) no
conceito mundano como que reafirmando em alguma medida o percurso platocircnico no
Ocidente Isso porque embora as ideias de fim e princiacutepio aparentem ser diametralmente
opostas nos dois casos domina a dinacircmica metafiacutesica e essencialista por tratarem de
conceitos absolutos ldquo[] ao passo que na outra parte a que conduz ao princiacutepio
absolutordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311)
Por outro lado pensadores como Heidegger se propuseram a aproximar mais a
filosofia agrave arte e em contrapartida a fazer uma criacutetica ferrenha agrave ciecircncia Dessa forma eacute
rompida a tradiccedilatildeo que limitava e congregava toda uma compreensatildeo de realidade acerca
70
da ciecircncia e da filosofia Satildeo outros meacutetodos buscam-se outras influecircncias e geram-se
confusotildees plenamente aceitaacuteveis ao se dispor a tais leituras ldquoConhecemos eacute claro muita
coisa sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e poesia Natildeo sabemos poreacutem do diaacutelogo dos poetas
e dos pensadores que lsquomoram proacuteximos nas montanhas mais separadasrsquo [nahe wohnen
auf getrennsten Bergen]rdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51)
Enquanto a διάνοια platocircnica faz a ponte cognosciacutevel entre inteligecircncia e opiniatildeo
para Heidegger haacute certa distacircncia instransponiacutevel entre filosofia e poesia contudo isso
as define como iacutentimas ao abismo esse limite cerceador e constituidor de constantes
questionamentos e desafios Para tanto o pensador traz o poema em sua tensatildeo com o
pensar ldquodepois de um verso do hino Patmos de Houmllderlin ele [Heidegger] descreve a
relaccedilatildeo entre pensamento e poesia que lsquoperto vivem nas mais separadas montanhasrsquo com
a imagem do cimo do tempordquo (KIMMERLE 1995 paacutegs 77-78 ndash traduccedilatildeo livre)
Conveacutem pois conferir um trecho maior sua primeira estrofe a fim de discutir com mais
propriedade a imagem-questatildeo colocada
Patmos54
Estaacute proacuteximo
E difiacutecil de agarrar o deus
Onde contudo haacute perigo cresce
O que salva tambeacutem
Agraves escuras vivem
As aacuteguias e destemidas partem
As filhas dos Alpes sobre o abismo
Em singelas feitas pontes
Por isso juntas laacute estatildeo em torno
Do cimo do tempo e as mais amadas
Perto vivem esmorecendo nas
Mais separadas montanhas
Entatildeo daacute pura aacutegua
Oacute asas daacute-nos os mais apurados sentidos
Para atravessar e regressar (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre)55
54 Pequena ilha grega no Egeu Meridional Local onde o apoacutestolo Joatildeo foi exilado e teria recebido a
revelaccedilatildeo para escrever o Evangelho (SMITH PatrsquoMos 1901) Disponiacutevel em
lthttpwwwstudylightorgdictionariessbdppatmoshtmlgt Acesso em 27 mai 2017 55 Nah ist Und schwer zu fassen der Gott Wo aber Gefahr ist waumlchst Das Rettende auch Im Finstern
wohnen Die Adler und furchtlos gehn Die Soumlhne der Alpen uumlber den Abgrund weg Auf leichtgebaueten
Bruumlcken Drum da gehaumluft sind rings Die Gipfel der Zeit und die Liebsten Nah wohnen ermattend auf
Getrenntesten Bergen So gib unschuldig Wasser O Fittiche gib uns treuesten Sinns Hinuumlberzugehn
und wiederzukehren Disponiacutevel em lthttpgutenbergspiegeldebuchfriedrich-h-262132gt Acesso em
27 mai 2017
71
Νοῦς eacute a superaccedilatildeo de διάνοια e portanto superior a δόξα e a αἴσθησις ndash que se
relaciona com a arte (daiacute a palavra esteacutetica) Para Platatildeo a poesia as sensaccedilotildees e suas
representaccedilotildees estatildeo intimamente ligadas ao que haacute de mais abjeto satildeo uma espeacutecie ldquode
veneno intelectual e inimiga da verdaderdquo (HAVELOCK 1996b paacuteg 20) Tudo que elas
representam deve ser evitado para que suas maacutes influecircncias natildeo desvirtuem os homens
De acordo com o caminho do que haacute de mais nobre e belo aos olhos da filosofia conforme
Livro X ldquoDe modo que natildeo devemos deixar-nos arrebatar por honrarias riquezas nem
poder algum nem mesmo pela poesia descurando a justiccedila e as outras virtudesrdquo
(PLATAtildeO 1987 paacuteg 474)
A ceacutelebre expulsatildeo dos poetas nada mais eacute do que a sequecircncia loacutegica Natildeo nos
surpreende quando Platatildeo (1987 paacuteg 473) fala que ldquoaqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao
lembrarmos de novo a poesia por justificadamente excluirmos da cidade uma arte dessa
espeacutecierdquo se nos ativermos ao empenho de sistematizaccedilatildeo e adequaccedilatildeo que fundamenta
essa verdade Esta soacute tem validade pelo intelecto e natildeo soacute pode mas deve ignorar as
sensaccedilotildees A revoluccedilatildeo circunscrita aqui diz respeito a uma concepccedilatildeo de ser e estar no
mundo anterior retroacutegrada que precisa ceder espaccedilo abrir matildeo de sua presenccedila para se
reconhecer aparecircncia imaginaccedilatildeo perdendo seu estatuto de seriedade Assim no
decorrer de milecircnios acaba por tornar-se entretenimento isto eacute tudo o que natildeo for por
essa nova loacutegica simplesmente natildeo eacute
Fica imediatamente evidente que um tiacutetulo como a Repuacuteblica natildeo pode nos
preparar para o surgimento nesta obra de um ataque tatildeo frontal agrave essecircncia da
literatura grega Se a discussatildeo segue um plano e se a investida vinda de onde
vem constitui uma parte essencial daquele plano entatildeo o objetivo do tratado
como um todo natildeo pode ser contido dentro dos limites a que denominamos
teoria poliacutetica (HAVELOCK 1996b paacuteg 20)
Para Heidegger poesia e filosofia estatildeo no ldquocimo do tempordquo Natildeo se trata aqui de
trocar arte por ciecircncia mas de reconhecer o vigor da palavra poeacutetica destratada pela
histoacuteria Seu desterro platocircnico natildeo faz jus ao voo da aacuteguia empreendido para ter com sua
irmatilde de pensamento O abismo marca o intransponiacutevel a ponte e a travessia o diaacutelogo e
o regresso e o perigo definem a identidade desta relaccedilatildeo de proximidade e distacircncia na
qual convivem filosofia e poesia
72
221 Ciecircncia e intelecto
Todavia cabe antes uma ressalva pois haacute uma incongruecircncia entre passagens da
Repuacuteblica Vejamos ldquocomo anteriormente chamar agrave primeira divisatildeo ciecircncia agrave segunda
entendimento agrave terceira crenccedila e agrave quarta conjectura ou pensamento pictoacuterico ndash e agraves duas
uacuteltimas ambas opiniatildeo e agraves duas primeiras intelectordquo (PLATAtildeO 1969a 533e-534a ndash
traduccedilatildeo livre)56 conforme o original ldquoἀρκέσει οὖν [] τὴν μὲν πρώτην μοῖραν ἐπιστήμην
καλεῖν δευτέραν δὲ διάνοιαν τρίτην δὲ πίστιν καὶ εἰκασίαν τετάρτην καὶ συναμφότερα μὲν
ταῦτα δόξαν νόησιν δὲ περὶ οὐσίανrdquo (PLATAtildeO 1903 533ε-534α)57 Em 511d Platatildeo
descreve o cume do conhecimento como sendo νοῦς e em 533e ἐπιστήμην sendo esta
subdivisatildeo de νοῦς
Mais importante do que exigir clareza absoluta dos textos antigos eacute empreender o
caminho de pensamento que por vezes seraacute duacutebio Ἐπιστήμην eacute a forma declinada de
ἐπιστήμη que significa entre outros sentidos conhecimento conhecimento cientiacutefico e
faz oposiccedilatildeo agrave δόξα (LIDDELL SCOTT 1940 Ἐπιστήμη)58 Por sua vez δόξαν eacute a forma
declinada de δόξα significando opiniatildeo sim mas tambeacutem expectativa julgamento
noccedilatildeo reputaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Δόξα)59
Haacute pois dois campos semacircnticos aproximados um sujeito agrave especulaccedilatildeo
possibilidade de certeza ou ateacute achismo outro sujeito agrave comprovaccedilatildeo teoacuterica
argumentaccedilatildeo loacutegica e fundamentaccedilatildeo da certeza Desse modo leva-se a crer que Platatildeo
deveria estar se referindo a νοῦς e διάνοια como ambas sendo ἐπιστήμη ndash e natildeo o contraacuterio
ndash que por conseguinte se opunha agraves outras duas δόξα
56 as before to call the first division science the second understanding the third belief and the fourth
conjecture or picture-thoughtmdashand the last two collectively opinion and the first two intellection
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D73A
section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 57 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D73A
section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 58 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)pisth
2Fmhgt Acesso em 28 mai 2017 59 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddo2
Fca5Egt Acesso em 28 mai 2017
73
Outro aspecto problemaacutetico eacute igualar ἐπιστήμη agrave ciecircncia pois vimos que Platatildeo
distingue ciecircncia de intelecto Decerto em diversos contextos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel
entretanto especificamente nesse causa confusotildees Talvez uma possibilidade fosse
simplesmente considerar a palavra por ldquoconhecimentordquo em oposiccedilatildeo agrave ldquoopiniatildeordquo
Entendemos contudo tratar-se de uma ambiguidade jaacute estabelecida na tradiccedilatildeo
filosoacutefica e por respeito agrave fonte do texto em inglecircs optou-se por manter ldquociecircnciardquo
Eacute muito frequente a traduccedilatildeo dessa [ἐπιστήμη] palavra por lsquociecircnciarsquo remetendo-
se assim de modo impliacutecito mas tambeacutem impreciso e apressadamente
aproximado agrave ciecircncia moderna Em seu germe mais interior que soacute vem agrave tona
no encaminhamento da histoacuteria moderna essa ciecircncia eacute de essecircncia teacutecnica
[] O fundamento e o acircmbito essencial da teacutecnica moderna eacute essa vontade [de
ser senhor da totalidade do mundo no modo do ordenamento] que em toda
intenccedilatildeo e apreensatildeo em tudo o que se quer e alcanccedila sempre quer somente a
si mesma e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-
querer-a-si (HEIDEGGER 1998 paacutegs 204-205)
23 Crenccedila e conjectura
Entramos agora no domiacutenio da δόξα Se para falarmos de ἐπιστήμη e νοῦς tivemos
de ter cautela tambeacutem este acircmbito eacute traiccediloeiro Sobre o que tratamos quando nos
referimos a δόξα Vejamos um exemplo o hino Patmos comeccedila com os seguintes versos
ldquoEstaacute proacuteximo E difiacutecil de agarrar o deusrdquo (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre) A
referecircncia agrave divindade eacute clara proacutepria inclusive do Romantismo e essencial ao poema
Ela diz algo a respeito de uma postura diversa que privilegia o que antes voluntariamente
se velava na histoacuteria do Ocidente
Eacute como se o poeta cuja influecircncia claacutessica eacute notoacuteria resolvesse aludir agrave musa que
laacute se encontrava e se desencontrava A aproximaccedilatildeo do sagrado ratifica o contexto das
sensaccedilotildees do que precisa ser experienciado agrave medida que se torna menos preciso e
calculaacutevel Em contraste com o filoacutesofo que exclui a πoacuteλις do verso e jaacute que os poemas
coparticipam do domiacutenio do sensiacutevel retira o homem das sensaccedilotildees e seus crenccedilas
Houmllderlin refaz a ponte singela que aproxima em sua dificuldade essas duas aacuteguias as
quais Heidegger propositalmente identifica por poesia e filosofia
74
Este eacute o domiacutenio ao qual relega Platatildeo a δόξα o de ser contraponto de νοῦς Se
este se apresentava como superior aquele eacute o inferior das sensaccedilotildees que tocam a ψυχῇ
mas que por isso estaacute em meio ao comum e ao geral ao normalmente aceito e
imediatamente sentido Assim como o anterior superior tambeacutem eacute subdividido
Como terceiro estaacutegio de influecircncia na alma temos em Platatildeo a πίστιν forma
declinada de πίστις A traduccedilatildeo portuguesa comentada da Repuacuteblica de 1987 assim como
a ediccedilatildeo brasileira de 2000 opta por ldquofeacuterdquo Para evitar o sincretismo a escolha pela
palavra ldquocrenccedilardquo parece ser mais aconselhaacutevel indo ao encontro da ediccedilatildeo em liacutengua
inglesa Outras definiccedilotildees tais quais ldquoconfianccedila persuasatildeo honestidade garantia e ateacute
creacuteditordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Πίστις)60 versam em torno da palavra
Dessa forma por que considerar crenccedila como de menor importacircncia para a
filosofia Essa eacute uma duacutevida honesta mas talvez a pergunta inicial possa ser reformulada
para saber sobre o quecirc do crer quer dizer o que se acredita aqui que difere do credo da
etapa anterior Ora a δόξα eacute o acircmbito da αἴσθησις logo se fia nos sentidos Confia-se
no que se vecirc no que pode ser tocado de modo que seria preciso fazer a experiecircncia com
as coisas mais do que sobre as coisas Contudo para Platatildeo apenas fazer uma experiecircncia
praacutetica com as coisas natildeo eacute garantia de acesso a elas pois somente pelo intelecto se
achegaria aonde natildeo se pode ver como se natildeo ver as coisas mas a ideia das coisas fosse
realmente vecirc-las
Se noacutes limitarmos estritamente DC [segmento da Figura 1 referente a ζῷα etc]
a ὁρατά πίστις precisa ser entendida como um estado da mente que acredita
apenas nas coisas palpaacuteveis (ἐναργῆ) e visiacuteveis (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ
φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510 A)61 lsquoverrsquo como noacutes ainda dizemos
lsquopara crerrsquo Mas Platatildeo jaacute falou de AC [segmento da Figura 1 referente a
εἰκόνες e ζῷα etc] como δοξαστόν62 (nota 510 A) logo que πίστις natildeo deve
ser confinada aos objetos da visatildeo (ADAM 1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)63
60 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpi2F
stisgt Acesso em 29 mai 2017 61 [] a que nos abrange a noacutes seres vivos e a todas as plantas e toda a espeacutecie de artefactos (PLATAtildeO
1987 paacuteg 311) 62 [hellip] Acaso consentirias em aceitar que o visiacutevel se divide no que eacute verdadeiro e no que natildeo o eacute e que tal
como a opiniatildeo [δοξαστόν] estaacute para o saber assim estaacute a imagem para o modelo (PLATAtildeO 1987 paacuteg
311) 63 If we strictly limit DC to ὁρατά πίστις must be understood as the state of mind which believes only in
visible palpable (ἐναργῆ) things (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510
A) lsquoseeingrsquo as we still say lsquois believingrsquo But Plato has already spoken of AC as δοξαστόν (510 A note)
so that πίστις should not be confined to the objects of sight
75
Figura 1 ndash As quatro influecircncias
Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929
Em mateacuteria de conhecimento πίστις estaacute na parte inferior por principalmente natildeo
aceitar o convencimento pelo conceito mormente julga pelo sensiacutevel a realidade Dessa
forma as respostas que algueacutem pode procurar e oferecer natildeo seriam apenas loacutegicas mas
tambeacutem emotivas e situacionais Aqui faz-se uma distinccedilatildeo importante pois abre um
precedente agrave compreensatildeo das coisas natildeo pelo que elas satildeo mas por suas categorias
Platatildeo refere-se a πίστις como uma imagem que convence mas natildeo vence
independentemente de como e o que for retratado nela Simplesmente por ser retrataacutevel
ela jaacute abre matildeo de certa inteligibilidade e por isso estaacute fadada agrave imperfeiccedilatildeo das
experiecircncias concretas
Quer isto dizer que o que a coisa eacute o seu Was-sein ou o seu ser eacute dado natildeo na
sua pura e simples aparecircncia sensiacutevel e sempre particular mas no seu lsquoaspectorsquo
(εἶδος) tal que soacute uma visatildeo supra-sensiacutevel do ente o pode captar ndash e que soacute eacute
ele proacuteprio acessiacutevel como poderia mostrar uma nova anaacutelise senatildeo por meio
das lsquocateroriasrsquo (κατηγορiacuteα) que decidem das possibilidades de ser desse ente
(ZARADER 1998 paacuteg 210)
Jaacute Aristoacuteteles (2005 paacuteg 95-96) desenvolve diversa e detalhadamente esse tema
ao classificar a retoacuterica como ldquoa capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso
com o fim de persuadir [πιθανόν] Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra
arte pois cada uma das outras apenas eacute instrutiva e persuasiva [πειστική64] nas aacutereas de
sua competecircnciardquo Aludindo ao caraacuteter fronteiriccedilo do convencimento ele divide sua obra
em trecircs livros que discorrem sobre λόγος πάθος e ἔθος da persuasatildeo percepccedilatildeo triacuteplice a
64 Forma tardia e declinada de πιστικός (LIDDELL SCOTT 1940 Πιστικός) Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpistiko
2Fs2gt Acesso em 30 mai 2017
76
partir da qual ele compreende o tema Em outras palavras eis o entendimento de que a
crenccedila eacute um convencer por argumentaccedilatildeo loacutegica assim como pelas emoccedilotildees e pelo
contexto em que ocorre
Se Platatildeo colocou πίστις num acircmbito eminentemente opinativo por conseguinte
oposto ao epistemoloacutegico Aristoacuteteles tambeacutem concorda que a retoacuterica natildeo eacute uma ciecircncia
e como tal tem qualidades proacuteprias Embora ambas possuam uma teacutecnica a retoacuterica
apenas se aproxima do verdadeiro trabalhando com probabilidades e possibilidades
provaacuteveis Enquanto isso para os dois filoacutesofos a ciecircncia se constitui por verdades
universais ldquoEacute igualmente insensato aceitar conclusotildees meramente provaacuteveis de um
matemaacutetico e demandar demonstraccedilatildeo precisa de um oradorrdquo (ARISTOacuteTELES 1934 ndash
traduccedilatildeo livre)65 conforme o original ldquoΠαραπλήσιον γὰρ φαίνεται μαθηματικοῦ τε
πιθανολογοῦντος ἀποδέχεσθαι καὶ ῥητορικὸν ἀποδείξεις ἀπαιτεῖνrdquo (ARISTOacuteTELES
1894)66
Agora se crenccedila pressupotildee um convencimento por mais que ele natildeo fosse
dialeticamente adequado haacute aiacute um jogo tensional no qual existe uma possibilidade de
questionamento Quem pode ser convencido deve possuir os subsiacutedios para o
convencimento precisa haver alguma duacutevida a ser respondida ou certezas passiacuteveis de
contra-argumentaccedilotildees O que eacute totalmente dado como certo pronto estaacute sem necessidade
de acabamento
Imagina homens numa morada subterracircnea [Figura 2] [] desde a infacircncia []
de pernas e pescoccedilo acorrentados [segmento 119886119887 ] [] a luz chega-lhes de uma
fogueira acesa numa colina [] entre o fogo e os prisioneiros passa uma
estrada ascendente [segmento 119890119891 ] Imagina que ao longo dessa estrada estaacute
construiacutedo um pequeno muro [segmento 119892ℎ ] []
[] Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam
objetos de toda espeacutecie []
[] Dessa forma tais homens [os acorrentados] natildeo atribuiratildeo realidade senatildeo
agraves sombras dos objetos fabricados (PLATAtildeO 2000 paacutegs 225-226)
65 It is equally unreasonable to accept merely probable conclusions from a mathematician and to demand
strict demonstration from an orator Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100543Abekker20page
3D1094b3Abekker20line3D20gt Acesso em 01 jun 2017 66 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker20page
3D1094b3Abekker20line3D25gt Acesso em 01 jun 2017
77
Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna
Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929
Quando natildeo haacute questotildees soacute respostas quando natildeo haacute um conceito a ser
reproduzido e nem sua reproduccedilatildeo apenas um vestiacutegio de algo que dificilmente pode ser
caracterizado pela ousadia da resposta nem pela inquietude da pergunta laacute dominam as
sombras Natildeo pode haver convencimento onde soacute haacute convicccedilatildeo ldquoE se o arrancarem agrave
forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem
antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de
tais violecircncias mdash Com toda a certezardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226)
Eis que por fim analisaremos a palavra εἰκασίαν forma declinada de εἰκασία
como pensamento pictoacuterico imaginaccedilatildeo conjectura representaccedilatildeo suposiccedilatildeo etc
(LIDDELL SCOTT 1940 Εἰκασία)67 Esse eacute o estaacutegio mais distante do conhecimento
Domiacutenio da praacutetica e das sensaccedilotildees a aprendizagem se daria pela via empiacuterica e natildeo
67 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dei)kasi
2Fagt Acesso em 20 mai 2017
78
atraveacutes de formulaccedilotildees inteligiacuteveis Sabe-se o que se fez ou o que se viu do contraacuterio natildeo
existe Haacute somente o puro e simples saber ou o achar que se sabe pelo menos
Achismos agrave parte haacute de se convir que nunca se natildeo sabe de nada Esse
desmerecimento das aparecircncias e das opiniotildees parte de um Platatildeo de fora da caverna sem
possibilidade de retorno a ela Decerto que na Repuacuteblica ele volta mas natildeo como antes
ldquoSe um homem nessas condiccedilotildees descesse de novo para o seu antigo posto natildeo teria os
olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Solrdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg
318) E como natildeo teria Do contato com a ideia platocircnica ateacute o contato com as demais
pessoas ldquoacorrentadasrdquo passaram-se dois milecircnios e o filoacutesofo ainda natildeo reestabeleceu
plenamente sua visatildeo
A filosofia sofre desse estigma que ela mesma criou o de ser inacessiacutevel aos
muitos Na alegoria da caverna Platatildeo supotildee tanto os acorrentados como ldquoos curados da
sua ignoracircnciardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226) Relata seus percursos de saiacuteda e retorno
mas nada diz desse primeiro despertar Eacute possiacutevel ensinar teacutecnicas de memorizaccedilatildeo de
argumentaccedilatildeo de convencimento mas como ensinar a pensar Eacute possiacutevel ensinar
teacutecnicas de como fazer poesia muacutesica mas como algueacutem vira poeta muacutesico ou no nosso
caso filoacutesofo
Na instacircncia de nossas experiecircncias cotidianas e da tradiccedilatildeo acabamos por
reproduzir muitas aprendizagens e compreender muitos ensinamentos
Independentemente do juiacutezo em torno deles o saber acontece Buscar o saber se for esse
mesmo o caminho empreendido natildeo passa ldquoda parte que nos cabe deste latifuacutendiordquo
Aquele que busca o saber pode aprender ou natildeo aquele que natildeo busca pode aprender ou
natildeo Como proceder Qual caminho seguir Assim deve-se descer agrave caverna natildeo se deve
descer ou natildeo se deve nem mesmo sair dela ldquoEntatildeo aonde noacutes vamos mdash Sempre para
casardquo (NOVALIS 1982 ndash traduccedilatildeo livre)68
Por vezes aquele conhecimento mais insignificante pode ser explorado pelo
intelecto Quiccedilaacute aquele conhecimento mais insignificante natildeo deve ser explorado pelo
intelecto mas simplesmente deve-se aceitaacute-lo do mesmo modo como eacute preciso aceitar
muitas verdades sem as quais natildeo seria possiacutevel viver se cada chatildeo fosse uma questatildeo
natildeo dariacuteamos um passo sequer Nem por isso tal postura precisa ser tratada por
68 raquoWo gehn wir denn hinlaquo raquoImmer nach Hauselaquo Disponiacutevel em
lthttpgutenbergspiegeldebuchheinrich-von-ofterdingen-523524gt Acesso em 03 mai 2017
79
ignoracircncia nem a inacessibilidade de muitos deve ser igualada ao ofiacutecio de poucos
Alguns satildeo filoacutesofos assim como alguns satildeo camponeses e embora agraves vezes
circunstacircncias avessas agrave vontade forcem que muitos se tornem camponeses
provavelmente soacute alguns tambeacutem teriam a vocaccedilatildeo para o campo
Para Platatildeo tende-se a crer que a vocaccedilatildeo para a filosofia eacute natildeo saber Afinal ele
relaciona os quatro estaacutegios de afetaccedilatildeo da alma em proporccedilatildeo isto eacute em analogia ou
melhor em ἀνὰ λογόν forma declinada de ἀνὰλόγος (ora escrita junta ora separada no
texto original) aquilo que estaacute em relaccedilatildeo de correspondecircncia com o λόγος (LIDDELL
SCOTT 1940 Ἀνὰλόγος)69 Daiacute εἰκασία ser o domiacutenio absoluto das certezas ldquoA traduccedilatildeo
lsquoconjecturarsquo leva a equiacutevocos pois conjectura implica duacutevida consciente ou hesitaccedilatildeo e
duacutevida eacute estranha para εἰκασία no sentido de Platatildeo Contudo ele pode ter pretendido
sugerir que tal estado mental natildeo fosse em realidade melhor do que conjecturardquo (ADAM
1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)70 Tudo eacute puro aceitamento
Do ponto de vista meramente de ὁρατά o a ser visto o visiacutevel (LIDDELL
SCOTT 1940 Ὁρατός)71 o estaacutegio inicial se daacute nas sombras Entretanto o caminho de
apreensatildeo do conhecimento por Platatildeo tambeacutem eacute um percurso de questionamento Na
alegoria da caverna εἰκασία trata de apreender o mundo ao redor a partir somente do que
vemos dele Jaacute em πίστις abre-se matildeo de algumas certezas num contexto natildeo mais tatildeo
uniformizado pela penumbra A interpretaccedilatildeo cristatilde vai traduzi-la por fides temos pois
a feacute e seus misteacuterios enquanto desdobramento do mundo Seja por crenccedila ou por mera
suspeita amorfa dos conceitos a realidade natildeo se apresenta cheia de certezas como antes
No estaacutegio superior encontra-se διάνοια o vigorar das questotildees ἀδελφαῖς τέχναις
afins agrave teacutecnica Aqui a realidade natildeo eacute apenas as coisas os seres vivos e suas
representaccedilotildees mas o modo como essas manifestaccedilotildees ocorrem Em outras palavras os
procedimentos pelos quais a realidade estaacute subjugada fazem inclusive com que ela possa
69 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)nalo
gi2Fagt Acesso em 03 jun 2017 70 The translation lsquoconjecturersquo is misleading for conjecture implies conscious doubt or hesitation and
doubt is foreign to εἰκασία in Platos sense Plato may however have intended to suggest that such a state
of mind is in reality no better than conjecture Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A
section3D511Egt Acesso em 04 jun 2017 71 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(rato
2Fsgt Acesso em 04 jun 2017
80
ser manipulada e controlada por definiccedilotildees universais embora sem transcender das
finalidades imediatas
Cabe ressaltar que em εἰκασία e πίστις as manifestaccedilotildees satildeo tidas por
apresentaccedilotildees ou seja elas se mostram assim como satildeo e satildeo assim como se mostram
compreendidas por meio da experimentaccedilatildeo concreta com as coisas e sem a exigecircncia do
intermeacutedio conceitual por isso a compreensatildeo sensiacutevel da realidade Jaacute em διάνοια e νοῦς
haacute certa convicccedilatildeo de que as manifestaccedilotildees satildeo representaccedilotildees do plano universal e ideal
logo imperfeitas e passiacuteveis de questionamentos daiacute sua inteligibilidade e seu caraacuteter
superior para a filosofia platocircnica
Por fim νοῦς eacute o saber mais elevado e com mais questionamentos
Paradoxalmente a maior compreensatildeo de si e do que haacute ao redor eacute o estaacutegio de maior
duacutevida a ponto de Soacutecrates o mais saacutebio para a pitonisa e personagem principal dessa
filosofia chegar ao cuacutemulo de soacute saber uma coisa ndash que nada sabe Esse eacute o saber
fundamental que envolto em sombras os homens natildeo podem sequer imaginar ateacute
derradeiramente se verem retornando agrave caverna com a compreensatildeo de que a luz eacute soacute
mais um aspecto menos sombrio das trevas como se ser fosse soacute uma passagem para natildeo
ser
Entatildeo pus-me a considerar de mim para mim que eu sou mais saacutebio do que
esse homem pois que ao contraacuterio nenhum de noacutes dois sabe nada de belo e
de bom mas aquele homem acredita saber alguma cousa sem sabecirc-la
enquanto eu como natildeo sei nada tambeacutem estou certo de natildeo saber (PLATAtildeO
1949 paacuteg 17)
24 Filosofia e opiniatildeo
Seja ou natildeo seja a filosofia a resposta para nossos problemas ela certamente se
apresenta como uma das possibilidades para um ensino contraacuterio agrave proposta
tradicionalmente imposta Mas ateacute ela mesma tem sua histoacuteria e maneiras proacuteprias de ser
Seu modus operandi responde agrave medida que se distancia em caraacuteter voluntaacuterio de um
saber praacutetico simples sem as lisuras da Academia nem a pretensatildeo de semelhante esmero
racional Poreacutem haacute outras formas de cuidar do pensamento que natildeo pelo intelecto
81
A intenccedilatildeo natildeo eacute trocar seis por meia duacutezia desqualificando o empenho seacuterio de
sistematizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo mas a partir do momento em que se questiona o preacute-
estabelecido conveacutem ao menos sugerir uma alternativa E tanto o rompimento quanto o
outro caminho natildeo satildeo aleatoacuterios Se a tradiccedilatildeo natildeo consegue conceber bem que
determinadas camadas sociais estejam aptas ao pensamento eacute praticamente peremptoacuterio
rever essa forma de compreender a realidade por exemplo no caso do ensino de filosofia
a partir de uma perspectiva poeacutetica
Entatildeo eacute possiacutevel certo questionamento advindo de eg crianccedilas mas natildeo apenas
de pobres de miseraacuteveis de pessoas de baixa escolaridade de culturas tidas como
exoacuteticas etc Todavia jaacute sendo a filosofia excludente por toda sua histoacuteria ela proacutepria
convida a um repensar sua atividade a fim de que possamos contemplar o natildeo
arbitrariamente velado Natildeo por puro moralismo haja vista certa desconfianccedila salutar sim
pelos caminhos muito pisados em nossos tempos midiaacuteticos de controle de massa
Duas estradas divergiam num bosque em setembro
E lamentando natildeo poder seguir em ambas as vias
E sendo o uacutenico viajante durante muito tempo me lembro
olhei para uma tatildeo longe quanto eu conseguia
ateacute onde ela dobrava na descida e sumia
Entatildeo peguei a outra parecia boa e vasta
e fosse talvez a mais atraente
pois estava coberta de grama precisando ser gasta
embora aqueles que passaram na frente
tivessem gasto ambas quase igualmente
E ambas que aquela manhatilde igualmente fez
cobertas por folhas pegada alguma a manchar
Oh deixei a primeira para outra vez
Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar
duvidei se iria algum dia voltar
Devo estar contando isso com a alma cortada
Em algum lugar haacute uma distacircncia de tempo imensa
divergiam em um bosque duas estradas
e eu escolhi a menos viajada
e esta escolha fez toda a diferenccedila (FROST 1916 paacuteg 9 ndash traduccedilatildeo de Ceacutesar
Ramos)72
72 Two roads diverged in a yellow wood And sorry I could not travel both And be one traveler long I
stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth Then took the other
as just as fair And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear Though
as for that the passing there Had worn them really about the same And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black Oh I kept the first for another day Yet knowing how way leads on
to way I doubted if I should ever come back I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and
82
Nem decerto por acreditar que todos podem fazer tudo eacute que todos podem ser
filoacutesofos Natildeo natildeo podem assim como todos natildeo podem ser jogadores de futebol o que
natildeo se trata de uma problemaacutetica de meacuterito Naturalmente que o esforccedilo e as condiccedilotildees
favoraacuteveis do sistema vatildeo influenciar para se alcanccedilar tal e tal objetivo Contudo haacute de
se levar em conta tambeacutem a aptidatildeo caracteriacutestica pouco precisaacutevel supostamente inata
das pessoas para determinadas atividades Aleacutem disso tudo o simples fato de que para
cada escolha pressupotildee-se necessariamente a exclusatildeo de tantas outras jaacute eacute forte indiacutecio
de que nem todos chegam a fazer filosofia
Por outro lado natildeo eacute disso que se propotildee a falar neste trabalho A filosofia do
mesmo modo que muitos outros ofiacutecios pode (quiccedilaacute deve) ser um empenho de poucos
mas enquanto possibilidade fundamental de recolhimento dos questionamentos natildeo
conveacutem que ela (quiccedilaacute todos os outros ofiacutecios) seja reconhecida por um caraacuteter excludente
de muitos como se somente os ldquoescolhidosrdquo pudessem assim pensar O penhor de alguns
natildeo deve ser confundido com a segregaccedilatildeo dos demais
Claro que tal exclusatildeo natildeo se processa tatildeo agraves claras No mais das vezes ela vem
com a sutileza fria da navalha ao destituir de valor uma colocaccedilatildeo legiacutetima poreacutem oriunda
de uma fonte pouco estimada ou impressotildees e suposiccedilotildees sem um embasamento teoacuterico
canocircnico Ateacute puacuteblicos inteiros podem ser ignorados por natildeo gozarem de prestiacutegio
intelectual como no caso das crianccedilas que quando fazem um comentaacuterio ldquofilosoacuteficordquo
coloca-se aspas nele ou em sequecircncia faz-se uma interjeiccedilatildeo qualquer de espanto e
admiraccedilatildeo adorno comum sobre atitudes inesperadas
Um reconhecimento que resvala pelo preacute-conceito de se crer que desse mato natildeo
sairia coelho mas espantosamente aqui estaacute ele o leporiacutedeo Noacutes julgamos agrave revelia e
surpreendemo-nos quando o juiacutezo natildeo daacute conta do real Estes ldquoohrdquo e ldquoahrdquo natildeo possuem
a mesma atenccedilatildeo demandada aos comentadores oficiais mas sim alternam entre o bibelocirc
e o gracejo respondendo natildeo ao pensamento doado pelos sentidos mas pela alegoria
hierarquizante e excludente criada pelo intelecto
ages hence Two roads diverged in a wood and Imdash I took the one less traveled by And that has made
all the difference Traduccedilatildeo disponiacutevel em lthttpmunhoblogspotcombr201105robert-frost-poeta-
americano-in-roadhtmlgt Acesso em 10 jun 2017
83
Desde sua raiz etimoloacutegica a infacircncia parece evocar um estado de minoria ou
de incapacidade de dependecircncia ou de fraqueza de imperfeiccedilatildeo ou mesmo de
selvageria imagens todas as quais transferidas para nossos discursos
educacionais que em sua maioria compartilham a ideia de que a crianccedila natildeo eacute
nada mais do que um presente sem presenccedila [grifo no original] um estado
preparatoacuterio e provisoacuterio um tempo sem direito proacuteprio pois toda educaccedilatildeo eacute
uma instruccedilatildeo das crianccedilas natildeo para elas mesmas (pelo que satildeo) mas assim
pelo que seratildeo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 11 ndash traduccedilatildeo livre)73
Se ldquoa filosofia como ateacute aqui a entendi e vivi eacute a vida voluntaacuteria no meio do gelo
e nas altas montanhas ndash a procura de tudo o que eacute estranho e problemaacutetico na existecircnciardquo
(NIETZSCHE 2008 paacuteg 8) isso natildeo quer dizer colocar-se numa torre de marfim numa
transcendecircncia mundana em prol das questotildees Indica contudo um caminhar singular a
despeito da seguranccedila e do conforto coletivos sem a princiacutepio opor-se a eles Ademais o
comportamento voluntarioso (freiwillige) pressupotildee uma adesatildeo agraves questotildees ditas
filosoacuteficas a partir da liberdade pela vontade que eacute entendida aqui como a possibilidade
de escolha entre ser ou natildeo filoacutesofo Eacute certo que podemos exercer nossos desejos nisso
ou naquilo mas concernidos em nossas proacuteprias limitaccedilotildees caso contraacuterio retornariacuteamos
agrave esparrela do querer eacute poder Portanto quanto a isso faz-se uma ressalva
As questotildees natildeo satildeo posses Natildeo estatildeo agrave mercecirc de algum grupo para que possam
ser desenvolvidas em conceitos ldquoComo a palavra querer tambeacutem as palavras questatildeo
questionar e questionamento vecircm do latim quaerere Quaerere significa empenhar-se
na busca e na procura do que natildeo se tem por jaacute se ter e para se vir a terrdquo (LEAtildeO 1977
paacuteg 44) Elas natildeo servem para dar voz a minorias nem exaltar a maioria O que se faz
com as questotildees natildeo satildeo as questotildees satildeo seus encaminhamentos suas respostas suas
soluccedilotildees sua limitaccedilatildeo entre as demais questotildees Elas mesmas satildeo apenas possibilidades
de pensamento agraves quais a filosofia atenta e corresponde agrave sua maneira questionar
enquanto a harmonia e sintoma articuladores com aquilo que o pensamento tem a pensar
(HEIDEGGER 2003 paacuteg 135)
Nessa dimensatildeo natildeo tendo as questotildees dono tambeacutem natildeo teratildeo seus tratadores
seus cuidadores seus pensadores Melhor dizendo se cabe agrave filosofia a lida com as
73 Desde su misma raiacutez etimoloacutegica la infancia parece evocar un estado de minoriacutea o de incapacidad de
dependencia o de debilidad de imperfeccioacuten o incluso de salvajismo imaacutegenes todas ellas que se han
trasladado a nuestros discursos pedagoacutegicos los cuales en su mayoriacutea comparten la idea de que el nintildeo
no es maacutes que un presente sin presencia un estado preparatorio y provisional un tiempo sin derecho
propio pues toda educacioacuten es una instruccioacuten de los nintildeos no por ellos mismos (por lo que son) sino por
lo que seraacuten
84
questotildees elas natildeo se restringem exclusivamente ao apreendido pelo intelecto Natildeo sendo
posse do saber tradicional conveacutem averiguar o trespassar delas pelos sentidos pela
opiniatildeo pelo simples conviver com elas Desse modo a resposta pela filosofia natildeo se
apresenta jaacute dada em algum grande mestre mas tambeacutem exige o escrutiacutenio nas mais
variadas manifestaccedilotildees inclusive laacute onde normalmente eacute vedado o interesse conceitual
no uso corrente sem prestiacutegio sem muito raciociacutenio puro empirismo e achismo Encarar
a questatildeo eacute lidar com sua multiplicidade
O que eacute filosofia Veja-se por exemplo seu sentido querendo dizer ldquomodo de
pensarrdquo ldquoNada afeta sua filosofia de boecircmio inveteradordquo (FERREIRA 2004 Filosofia)
Neste contexto o termo se aproxima a ldquoprinciacutepiordquo fio condutor de determinada maneira
de agir pensar e ser mesmo num registro mais popular Daiacute vem a notoacuteria expressatildeo
ldquofilosofia de vida visatildeo ou enfoque filosoacutefico sobre a natureza o propoacutesito da existecircncia
ou o modo como se deve viverrdquo (HOUAISS 2009a Filosofia)
Parece claro que os casos supracitados se referem a uma resposta objetiva com
preceitos e meacutetodos de accedilatildeo como etiquetas sociais posiccedilotildees poliacuteticas e posturas eacuteticas
Por esse aspecto o ensino de filosofia pode ser justificado sem muita dificuldade pois
estariacuteamos no domiacutenio da transmissatildeo de valores ou quando muito num
pseudoquestionamento que oculta uma certeza
Eis como o uso corriqueiro enxerga a filosofia uma integridade dogmaacutetica
Naturalmente que quaisquer manejos de palavras estatildeo sujeitos a seriedades e a
leviandades Decerto natildeo eacute muito usado pelos filoacutesofos profissionais acostumados com
historiografias e reflexotildees abstratas entrementes estaacute na boca do povo instruiacutedo no
portuguecircs falado Uma filosofia de vida enquanto insistecircncia de uma crenccedila inclusive
remete agrave proacutepria histoacuteria da disciplina quando Soacutecrates resoluto aceita sua pena
Embora os homens natildeo o percebam eacute possiacutevel que todos os que se dedicam
verdadeiramente agrave Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem
mortos Sendo isso um fato seria absurdo natildeo fazendo outra coisa o filoacutesofo
toda a vida ao chegar esse momento insurgir-se contra o que ele mesmo pedira
com tal empenho e em poacutes do que sempre se afanara (PLATAtildeO 2017a)
Essa profissatildeo de feacute que Soacutecrates realiza particulariza o filoacutesofo como um ser para
a morte Ao mesmo tempo identifica-o por seu aspecto fundamentalmente gregaacuterio cuja
dedicaccedilatildeo profissional se estabelece mediante uma questatildeo comum a todos os homens o
85
finamento Portanto ainda que o termo filosofia em filosofia de vida natildeo seja o sentido
canocircnico ele reflete parte importante dessa loacutegica nem sempre clara mas profundamente
coerente de convivecircncia com as questotildees e seu pensamento
A filosofia que se distancia do uso exiacutemio do raciociacutenio mas se manteacutem atenta ao
questionar natildeo trai seu princiacutepio do contraacuterio habita-o novamente retificando e
ratificando seu aspecto mais genuiacuteno sua busca questionadora e fundadora Ela passa por
uma compreensatildeo legiacutetima e concreta de uma entrega agraves questotildees comparaacutevel por
exemplo a um padeiro ciente de sua dignidade e inclinado dia apoacutes dia a zelar pelo seu
patildeo natildeo importando quatildeo cedo precise acordar Para ele suas ideias sua teacutecnica e sua
realidade coordenam e consagram valor a suas accedilotildees que por sua vez se apresentam como
oferta a quem se dispor agrave padaria ainda que por ser a mais proacutexima
Quando no fundo da noite de inverno uma tormenta de neve brame
debatendo-se em torno do abrigo escurece e cobre tudo eacute a hora propiacutecia da
filosofia O questionamento tem entatildeo de deixar-se fazer simples e essencial
A elaboraccedilatildeo de cada pensamento natildeo pode ser senatildeo aacuterdua e severa O esforccedilo
de formar as palavras se identifica com a resistecircncia que os abetos oferecem
de peacute agrave tormenta
O trabalho da filosofia natildeo corre por fora no campo extra-vagante Conserva
uma relaccedilatildeo de intimidade com o trabalho dos camponeses (HEIDEGGER
1977a paacuteg 324)
25 Diaacutelogo e filosofia
No entanto das partes anteriores faz-se presente um dos maiores argumentos
contra uma resposta filosoacutefica de que a filosofia natildeo responde a coisa alguma Isso
porque demos exemplos como sendo descrita pelo sistema racional e loacutegico mas tambeacutem
a identificamos com o labor quieto e simples do camponecircs Qual a ponte entre um e outro
Haacute uma relaccedilatildeo ou trata-se apenas de diversidade de opiniotildees
Quanto a isso fala a voz da tradiccedilatildeo tradicional e seu aspecto transmissor e
controlador nem por isso menos honesta Esperar uma resposta definitiva pode ser
frustrante mas fugir agrave responsabilidade de propor um caminhar natildeo deve ser encarado
apenas como prudecircncia A falta da ousadia de pensamento e o receio constante de natildeo
tomar decisotildees eacute uma fronteira entre o cuidado e a cobardia De modo semelhante a Heitor
86
encarando seu destino funesto assim a resposta se ousa a responder fadada ao equiacutevoco
pela incapacidade de apreensatildeo totalizante do real
Haacute muito tempo decerto Zeus grande e seu filho frecheiro
determinaram que as coisas assim se passassem pois eles
sempre beneacutevolos soiacuteam salvar-me ora o Fado me alcanccedila
Que pelo menos obscuro natildeo venha a morrer inativo
hei de fazer algo digno que chegue ao porvir exaltado (HOMERO 2015 paacuteg
457)74
Diante da inexoraacutevel imprecisatildeo da resposta soacute nos resta a dignidade de responder
agrave questatildeo como pudermos Desse modo foram expostas na pretensatildeo de diaacutelogo diversas
acepccedilotildees do que seja filosofia ainda que algumas delas natildeo estivessem em sintonia com
este percurso de pensamento O cerne problemaacutetico estaacute em a partir do diverso que se
apresenta confluir tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo enquanto identidade e diferenccedila a fim de chegar a
uma resposta que corresponda agrave ldquodinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircnciardquo (LEAtildeO
2010 paacuteg 212) ou seja que decirc conta da anguacutestia da pergunta que eacute simultaneamente
tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo
Afinal soacute se pergunta porque natildeo se sabe algo ndash a criaccedilatildeo por vir ndash mas se natildeo
soubeacutessemos nada natildeo haveria como perguntar ndash o respaldo da tradiccedilatildeo De maneira
semelhante eacute orquestrado o jogo das respostas nunca eacute posto algo completamente novo
nem se reproduz algo exatamente igual ldquoTodavia antes mesmo de explorar a resposta
que aiacute eacute dada importa medir o caraacutecter especiacutefico da questatildeo Tornar-se-aacute entatildeo patente
que esta clivagem questatildeo-resposta eacute ela mesma provisoacuteria e que uma justa medida da
questatildeo encerra jaacute em si o essencial da respostardquo (ZARADER 1998 paacuteg 237) Sejam os
posicionamentos mais ou menos afins com seu modo de pensar almeja-se aqui ao diaacutelogo
entre as partes
Dialogar natildeo eacute aceitar tudo o que vem do outro nem soacute aceitar o que mais se
aproxima teoricamente de noacutes mas eacute lidar com a tensatildeo entre o estranho e o conhecido
a fim de propriamente responder Dar propriedade agrave resposta como o que adentra um
percurso singular em confronto com a tradiccedilatildeo sem ao mesmo tempo abrir matildeo dela
Eis o motivo de pensar a filosofia como resposta um caminho que compara logo traz agrave
identidade sem igualar Fazem parte de toda comparaccedilatildeo na verdade quaisquer dois
74 Livro XXII linhas 301-304
87
elementos que satildeo aproximados e colocados um agrave disposiccedilatildeo do outro identificam-se
aproximadamente colocados frente a frente satildeo tidos por semelhantes mesmo que ainda
diferentes
Esse detalhe demarca uma forma de guiar o pensamento e se distingue
radicalmente da definiccedilatildeo na qual a filosofia eacute uma resposta acabada soluccedilatildeo encontraacutevel
categoria reprodutiacutevel Tampouco devia se furtar a responder aos anseios das pessoas e
da sociedade como se fosse algo fora de sua alccedilada Ela natildeo estaacute agrave mercecirc da resposta
nem aqueacutem nem aleacutem Se a filosofia se propotildee a algo eacute a este diaacutelogo entre permanecircncia
e mudanccedila
Natildeo se pode estabelecer todo relacionamento numa posiccedilatildeo a natildeo ser
aceitando a multiplicidade de posiccedilotildees Na multiplicidade vocecirc se coloca
assume uma posiccedilatildeo Sempre haacute o outro o diferente tanto o outro do outro
quanto o outro de si mesmo em cada posiccedilatildeo O outro eacute a diferenccedila do proacuteprio
movimento de constituir uma diferenccedila uma posiccedilatildeo Toda posiccedilatildeo se manteacutem
num processo de diferenciaccedilatildeo e jaacute eacute em si mesmo um outro e traz consigo a
dinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 212)
Ao longo do tempo a filosofia vem dando respostas atraacutes de respostas num
movimento incessante embora com seus contratempos Nem por isso os posicionamentos
devem ser encarados hierarquicamente anulando o anterior em prol do vindouro A
filosofia natildeo evolui Muito menos o estudo dos textos claacutessicos precisa acontecer para
que sejam decorados transformando a tradiccedilatildeo numa coisa estanque e sem vida
literalmente fruto apenas de um passado morto feito por falecidos filoacutesofos A filosofia
natildeo eacute mero relato de conceitos e categorias
Uma das dificuldades em lidar com ela encarando-a por ciecircncia eacute a natildeo
progressatildeo dos diferentes posicionamentos Hegel eacute um Kant superado Aristoacuteteles um
Platatildeo melhorado Embora os questionamentos possam ser desdobrados o empenho de
cada um desses grandes autores assim como o geacutermen inquiridor dos incipientes
discentes tem caracteriacutesticas proacuteprias e propriedade filosoacutefica quando se atecircm agrave questatildeo
que eacute sempre geradora de novas questotildees Daiacute seu caraacuteter dialogal Natildeo eacute possiacutevel sem a
diferenccedila natildeo eacute possiacutevel sem a identidade e isso natildeo quer dizer igualdade
O pequeno pensador natildeo se equivaleria agrave tradiccedilatildeo Honestamente falando ele natildeo
tem a mesma importacircncia histoacuterica nem sequer deve ter a mesma densidade no
questionar Todavia na singularidade do seu questionamento haacute ali agrave espreita o natildeo
88
pensado A experiecircncia que o caminhar do caminho proporciona revela uma existecircncia
sensiacutevel compreensiacutevel agrave medida que se experiencia e eacute dificilmente transmissiacutevel pois
arduamente conceituaacutevel
Afinal ningueacutem nunca comeu fruta alguma Fruta natildeo tem gosto nem cor nem
forma Sabemos da fruta apenas conceitualmente do relato do que seja uma fruta seu
sabor seu cheiro Come-se entretanto lsquoestarsquo banana lsquoestarsquo maccedilatilde lsquoestarsquo manga e como
tal elas jamais poderatildeo ser comidas novamente Esta sim eacute saboreada e infelizmente (ou
natildeo) soacute por quem caacute come ldquonatildeo se pode entrar duas vezes no mesmo riordquo (HERAacuteCLITO
1991 paacuteg 83)75 Pode-se contudo convidar a realizar quem queira a experiecircncia ediacutevel
com outra banana Em diaacutelogo gustativo nota-se que bananas jaacute foram comidas mas
nunca lsquoestarsquo senatildeo aqui nem estaria e por isso sabe-se e natildeo se sabe seu sabor Ela eacute
uacutenica no bananal propriamente proacutexima e diferente ldquono mesmo rio entramos e natildeo
entramos somos e natildeo somosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)76
O diaacutelogo tem que partir do proacuteprio do contraacuterio ele estaria fadado ao vozerio
reprodutivo sem qualquer compromisso consigo e com o outro (que eacute um consigo) Ele
natildeo tem que dizer tudo nem poderia natildeo dizer nada natildeo diz necessariamente o que deve
ser dito (deve ser para quem) nem se omite a dizer o requisitado Ambas as atitudes satildeo
partes da vontade dos interlocutores O diaacutelogo do proacuteprio apenas diz ou seja sua accedilatildeo eacute
medida pela sua possibilidade de accedilatildeo nada aleacutem nada aqueacutem
O sucesso dessa realizaccedilatildeo dessa perfeiccedilatildeo por sua vez soacute eacute possiacutevel com a
instauraccedilatildeo de um fator que assegure a sua consecuccedilatildeo a sua realizaccedilatildeo Se
por um lado esse fator pode ser entendido a partir da realizaccedilatildeo da citaccedilatildeo
acima [navegar eacute preciso viver natildeo eacute preciso]77 como a manutenccedilatildeo do
mesmo se impotildee que pensemos o que vem a ser esse mesmo O mesmo natildeo eacute
a mera realizaccedilatildeo e sim a condiccedilatildeo de possibilidade para que essa realizaccedilatildeo
se realize (JARDIM 2005 paacuteg 45)
Este proacuteprio dita a correspondecircncia com tradiccedilatildeo e ensino As condiccedilotildees de sua
manifestaccedilatildeo as quais perpassam pelas demandas situacionais pela histoacuteria pelos gostos
pessoais etc fazem parte do grande pacote que eacute a resposta E haacute ainda a vigiar o
75 ldquoποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82) 76 ldquoποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμενrdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 70) 77 Πλεῖν ἀνάγκη ζῆν οὐκ ἀνάγκη
89
inominaacutevel onde a matildeo humana nunca alcanccedila Como a resposta lida com esse vazio
Como dizer e agir perante o que natildeo se tem como responder O pensador diz que ldquonatildeo eacute
para falar [λέγειν] e agir dormindordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 79)78 e em um outro
fragmento ele se refere agrave morte como sendo ldquotudo que vemos acordados sono o que
vemos adormecidosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 63)79 Talvez isso indique que estamos
fadados ao funesto ao que natildeo diz respeito agrave nossa vontade se queremos de fato viver
Por outro lado temos a vivecircncia adormecida Dormitando dirigimo-nos agrave vida
segura ou agrave impressatildeo de seguranccedila e dormimos a fim de que nada aconteccedila como se
debaixo das cobertas o monstro natildeo viesse nos pegar Nesse sentido o falar e o agir do
sono ignorando os ensinamentos do pensador satildeo o compromisso com a penumbra do
estado de sonolecircncia com o que chega sem nos afetar sem fazermos a experiecircncia
apenas um sonho nebuloso e fugaz
Trabalhando pois sobre o oacutebvio (mas nem por isso desprezaacutevel) natildeo eacute possiacutevel
dialogar dormindo e λέγειν infinitivo do verbo de mesma raiz de λόγος natildeo nos deixa
escapar desse sentido dialoacutegico Na resposta da filosofia para a tradiccedilatildeo se funda ao
menos a atenccedilatildeo do desperto Um responder que dialoga com o proacuteprio de cada um e
com aquilo comum a todos noacutes isto eacute a morte
Como se daacute o diaacutelogo na morte Esse eacute o tipo de colocaccedilatildeo que faz do filoacutesofo
algueacutem de pouco acesso Para uma pergunta absurda justifica-se com o espanto afinal
ningueacutem fala nada depois de morto como poderia entatildeo haver diaacutelogo Em se tratando
de Heraacuteclito talvez seja apenas uma idiossincrasia de pensador seu estilo de lidar com
as questotildees conforme se compreendia em De finibus bonorum et malorum Livro II
Capiacutetulo V paraacutegrafo 15 ldquoQuod duobus modis sine reprensione fit si aut de industria
facias ut Heraclitus lsquocognomento qui σκοτεινός perhibeturrsquo quia lsquode natura nimis
obscure memoravitrsquordquo (CIacuteCERO 1914 paacuteg 94)80 a saber ldquoO qual pode ser feito em dois
casos sem repreensatildeo se se procede intencionalmente como em Heraacuteclito que
78 ldquoκαὶ ὃτι οὐ δεῖ lsquoὥσπερ καθεύδοντας ποιεῖν καὶ λέγεινrsquordquo (HERAacuteCLITO apud ANTONINUS 1916 paacuteg
92) Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreaminernetdli20151834032015183403Marcus-Aurelius-
Antoninuspagen121mode2upgt Acesso em 06 ago 2017 79 ldquoθάνατός ἐστιν ὁκόσα ἐγερθέντες ὁρέομεν ὁκόσα δὲ εὕδοντες ὕπνοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 62) 80 Conforme nota da ediccedilatildeo de 1914 desta obra a citaccedilatildeo eacute provavelmente de Luciacutelio
90
lsquocognominado Obscuro haviarsquo pois lsquoniacutemio obscura memorava sua filosofiarsquordquo (CIacuteCERO
1960 paacuteg 87 ndash traduccedilatildeo livre)81
Ainda que a questatildeo da morte seja tratada por diversos setores de nossa sociedade
desde o acadecircmico e cientiacutefico ateacute o religioso se estabelece no mais das vezes um
diaacutelogo com mas fundamentalmente sobre a morte afinal ldquono decorrer dos uacuteltimos
seacuteculos pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciecircncia coletiva
sua onipresenccedila e sua forccedila de evocaccedilatildeordquo (BENJAMIN 1987 paacuteg 207) Heraacuteclito (1991
paacuteg 63) em seu fragmento 21 revestindo-se da alcunha da obscuridade propotildee um
diaacutelogo na morte ou a partir da morte Eacute estabelecido um desatino como se fosse possiacutevel
falar com a morte ou atraveacutes dela sem perecer Por outro lado eacute sugerido que realmente
se vive para e na morte Como isso eacute possiacutevel
Falar dormindo natildeo seria pois mais factiacutevel A psicanaacutelise por exemplo efetua
toda uma estrutura de conhecimento sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos Muitas religiotildees
tomam o sono por transe estado de consciecircncia alterada e ponte para as verdades ocultas
agrave vigiacutelia Uma vida guiada pelo sono se adequaria melhor agrave compreensatildeo geral do que
uma pela morte Imaginar um diaacutelogo com o sono eacute bem mais criacutevel do que o paradoxo
posto pelo pensador preacute-socraacutetico soacute reforccedilando o paradigma obscuro tanto dele quanto
da filosofia em geral
Era bem verdade que numerosos versos dos livros sagrados sobretudo dos
upanixades do Sama-Veda referiam-se a esse quecirc derradeiro mais iacutentimo Que
versos maravilhosos lsquoTua alma eacute o mundo inteirorsquo ndash rezava um deles e estava
escrito que o homem durante o sono o sono profundo entrava no proacuteprio
acircmago e habitava o Aacutetman82 Sabedoria milagrosa residia nesses poemas []
Mas onde se achariam os bracircmanes onde os sacerdotes os saacutebios ou os ascetas
que lograssem natildeo somente conhecer senatildeo tambeacutem viver essa profunda
sabedoria Onde estaria o homem perito que fosse capaz de realizar aquele
passe de maacutegica que transportasse a familiaridade com o Aacutetman desde o sono
para o estado de vigiacutelia para a vida de todos os momentos e a demonstrasse
por atos e palavras (HESSE 2003 paacuteg 12)
Entre os diferentes modos da fala o que estaacute em jogo aqui eacute como se portar diante
de λέγειν Apresenta-se enquanto colocaccedilatildeo primordial a ausculta da unidade de λόγου
81 ldquoDas kann in zwei Faumlllen geschehen ohne Anstoszlig zu erregen wenn man entweder absichtlich so
verfaumlhrt wie Heraklit der den Beinamen bdquoder Dunkleldquo erhielt weil er uumlber die Gesetzmaumlssigkeit der Natur
gar zu dunkel berichteterdquo 82 Do sacircnscrito atma essecircncia sopro alma Na filosofia hindu significa o proacuteprio ou a alma Sua origem
remete ao proto-indoeuropeu etmen sopro conforme The Online Etymology Dictionary Disponiacutevel em
lthttpwwwetymonlinecomindexphpterm=atmangt Acesso em 02 ago 2017
91
conforme Hipoacutelito em Refutaccedilatildeo de todas as heresias IX 9 1 ao citar Heraacuteclito (apud
KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 193) ldquoDando ouvidos natildeo a mim mas ao
Logos eacute avisado concordar em que todas as coisas satildeo umardquo Ainda que se estiveacutessemos
mortos ou dormindo tudo natildeo passaria de uma manifestaccedilatildeo do λόγος daiacute o pensador
natildeo estar visando a princiacutepio sua clareza imediata mas a concordacircncia nesse domiacutenio
ontoloacutegico no qual tudo eacute um ldquoO mesmo eacute vivo e morto vivendo-morrendo a vigiacutelia e o
sono tanto novo como velho pois estes se alterando satildeo aqueles e aqueles se modificando
satildeo estesrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 83)83
Nesse sentido tanto o que vemos acordados quanto o que vemos adormecidos
ldquodariardquo no mesmo tudo seria um ndash apenas natildeo damos conta disso Natildeo prestamos atenccedilatildeo
agrave unidade e nos debatemos entre este ou aquele caminho entre ser algo ou parecer ser
algo entre o inteligiacutevel ou o sensiacutevel entre morrer ou dormir Segue um trecho do
soliloacutequio do personagem Hamlet Ato II Cena I insigne caso do dilema de morrer e
dormir
Ser ou natildeo ser Eis a questatildeo Que eacute mais
nobre para a alma suportar os dardos
e arremessos do fado sempre adverso
ou armar-se contra um mar de desventuras
e dar-lhes fim tentando resistir-lhes
Morrer dormir mais nada Imaginar
que um sono potildee remate aos sofrimentos
do coraccedilatildeo e aos golpes infinitos
que constituem a natural heranccedila
da carne eacute soluccedilatildeo para almejar-se
Morrer dormir dormir Talvez sonhar (SHAKESPEARE 2011 paacuteg 70)
Natildeo obstante o filoacutesofo se esmera por um sentido e desaconselha o outro o limite
posto eacute fundamental Diz de sua filosofia apresentando como mais conveniente para o
entendimento dela seguir pela morte do que pelo sono Limitando respondendo aderindo
a uma posiccedilatildeo esse pensamento define sem encerrar ou seja sem fechar por resolvida a
questatildeo do uno pois entre um ou outro haacute um e outro Morrer e dormir estatildeo em tensatildeo
perpeacutetua mesmo na adesatildeo de uma por outra ldquoO homem toca a luz na noite quando com
83 ldquoταὐτὸ ζῶν καὶ τεθνηκὸς καὶ ἐγρηγορὸς καὶ καθεῦδον καὶ νέον καὶ γηραιόνmiddot τάδε γὰρ μεταπεσόντα ἐκεῖνά
ἐστι κἀκεῖνα πάλιν μεταπεσόντα ταῦταrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82)
92
visatildeo extinta estaacute morto para si mas vivendo toca o morto quando com visatildeo extinta
dorme na vigiacutelia toca o adormecidordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 65)84
Heraacuteclito em sua filosofia abraccedilou o paradoxo da linguagem no qual ele concebe
como possiacutevel a morte em sintonia com a vida e de modo semelhante o sono com a
vigiacutelia ldquoDe todas as coisas a guerra eacute pai de todas as coisas eacute senhor a uns mostrou
desses a outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 73)85 Πόλεμος a guerra a polecircmica sentidos todos que abarcam a tensatildeo inerente
e paradoxal que natildeo resume tudo nem cessa tudo pelo contraacuterio manteacutem acesa a disputa
em tudo Natildeo eacute uma questatildeo de escolha permanecer a dormir ou despertar para a vida
que tambeacutem natildeo aparece com negaccedilatildeo da morte Trata-se concomitantemente de viver
morrendo e de adentrar demoradamente a morte enquanto se vive A morte natildeo eacute uma
maldiccedilatildeo como se pretende pintar mas traccedilo distintivo dos mortais
Morte aqui eacute plenitude de realizaccedilatildeo do homem sua grande saiacuteda de si ndash ex-
istecircncia assim como uma saiacuteda em si dentro do proacuteprio que o define A busca natildeo eacute
incansaacutevel ao contraacuterio ela se plenifica quando cansamos pois eacute nosso destino tanto
correr atraacutes quanto deixar ir A humanidade vive partindo de laacute para caacute a decidir e a
inventar de mal a pior e desta para melhor tal atitude leva-a a criar e a ansiar pela criaccedilatildeo
mas como ela natildeo bastaraacute leva-o tambeacutem a se insatisfazer pelo criado e em sequecircncia
a produzir mais Daiacute a exaustatildeo buscamos por algo que nunca se basta Uma hora cansa
Uma hora para Partir em uacuteltima instacircncia eacute morrer
Heraacuteclito relega morte e sono agrave experiecircncia do ver Em grego o substantivo nesse
caso diz objetivamente do aspecto ou aparecircncia de uma coisa ou pessoa seus contornos
da apariccedilatildeo de algo e subjetivamente do ato de ver dignidade posiccedilatildeo (LIDDELL
SCOTT 1940 Ὄψις) Esse modo de encarar a visatildeo natildeo foca exclusivamente no que o
homem vecirc ou pode ser visto por ele mas chama atenccedilatildeo ao que se dispotildee agrave vista
manifesta-se aos olhos dos mortais e dos imortais Faz-se presenccedila mas nem por isso
torna-se presente a todos
Com a extinccedilatildeo da visatildeo morte e sono se aproximam como se ao cerrar os olhos
das muacuteltiplas atenccedilotildees fosse mais propiacutecio a ausculta do λόγος Depois de um dia
84 ldquoἄνθρωπος ἐν εὐφρόνῃ φάος ἅπτεται ἑωυτῷ ἀποσβεσθεὶς ὄψεις ζῶν δὲ ἅπτεται τεθνεῶτος εὕδων
ἐγρηγορὼς ἅπτεται εὕδοντοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 64) 85 ldquoπόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς
μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρουςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 72)
93
exaustivo o sono ateacute que seria muito bem-vindo Em contrapartida pela experienciaccedilatildeo
do visiacutevel o homem heracliacutetico precisa decidir Satildeo as escolhas impostas pelo proacuteprio
viver e para isso natildeo deve estar dormindo mas ir ao encontro do λόγος na morte esse
embate vivo e contiacutenuo Deve-se como quem tem uma obrigaccedilatildeo natildeo com a moral
vigente mas com o que impele agrave plenitude de sua constituiccedilatildeo Οὐ δεῖ natildeo eacute para natildeo se
deve conforme fragmento 73 falar e agir a dormir Οὐ eacute adveacuterbio de negaccedilatildeo e δεῖ
(LIDDELL SCOTT 1940)86 verbo que joga com os sentidos de precisar necessitar
querer sobremaneira etc Nossa obrigaccedilatildeo eacute com a escuta do Um natildeo de um pensador de
uma sumidade ou de um conjunto delas no tempo embora natildeo seja possiacutevel se
desvencilhar totalmente disso
Morte e vida morte e sono satildeo o conflito vigorando ldquoo contraacuterio em tensatildeo eacute
convergente da divergecircncia dos contraacuterios a mais bela harmoniardquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 61)87 Claro que no livre caminho das escolhas qualquer posiccedilatildeo passa por
imposiccedilatildeo e a fala de um cala a voz do outro Tomar uma escolha dentro da loacutegica do
certo e do errado visa a cessaccedilatildeo do combate Trata-se caacute da harmonia natildeo da anulaccedilatildeo
da diferenccedila Por mais responsaacuteveis que desejemos ser com os homens apenas podemos
convidaacute-los ensinar propondo encaminhamentos caso contraacuterio seria impor nossa
vontade dizer como se faz prescrever e doutrinar
O perigo de qualquer ajuda estaacute em acreditar que um sujeito deteacutem a resposta
definitiva e simultaneamente que outrem eacute incapaz de alcanccedilaacute-la Quando estender a
matildeo Mesmo se houvesse um empenho para tornar o que eacute pequeno e simples aos nossos
olhos em grandioso natildeo eacute possiacutevel ignorar a singularidade da pequenez pois cada
responder tem seu quinhatildeo de equiacutevoco e para cada soluccedilatildeo uma pretensatildeo de verdade
Perante os conflitos a oposiccedilatildeo ou a treacutegua busca a cessaccedilatildeo do embate num campo de
batalha um quer derrotar o outro ateacute que natildeo haja batalha ou entatildeo fazem-se as pazes
volta-se ao lar pois a batalha findou Haacute a situaccedilatildeo conflitante e sua resoluccedilatildeo haacute a causa
e a consequecircncia mas ldquonatildeo compreendem como concorda o que de si difere harmonia
de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)88 isto
86 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei3
Dgt Acesso em 26 set 2017 87 ldquoτὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίηνrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 60) 88 ldquoοὐ ξυνιᾶσιν ὅκως διαφερόμενον ἑωυτῷ συμφέρεταιmiddot παλίντονος ἁρμονίη ὅκωσπερ τόξου καὶ λύρηςrdquo
(HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 70)
94
eacute natildeo se opor natildeo se igualar mas manter a tensatildeo Aqui tomar uma decisatildeo dever fazer
isso ou aquilo eacute soacute mais um modo de caminhar no caminho
Apenas por ser dual que pode haver a presunccedilatildeo da unidade do real Embora o um
seja o princiacutepio gerador que conflagra a aproximaccedilatildeo das distacircncias conforme fragmento
50 isso soacute eacute possiacutevel porque aparentemente nem tudo eacute proacuteximo Do um como princiacutepio
ao dois como unidade natildeo eacute soacute um belo tiacutetulo mas faz referecircncia direta agrave discussatildeo
ontoloacutegica em torno do λόγος heracliacutetico Por haver tensatildeo haacute a possibilidade de
complemento mantendo assim uma oposiccedilatildeo que de fato se opotildee ou seja natildeo anseia
pelo teacutermino de sua posiccedilatildeo oposta Nessa realidade ambivalente a decisatildeo proferida
sussurra a incapacidade de perda da singularidade dos contraacuterios no um Por isso seja
qual for o caminho morrer ou dormir este natildeo se soma com o aquele na unidade aquele
natildeo se sintetiza com este morrer eacute dormir e natildeo eacute dormir na unidade do ciacuterculo
Simultaneamente dizer que ldquotudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71) eacute o modo mais
simples no qual pulsa o vigor originaacuterio do pensamento de dizer que tudo natildeo eacute um
[] uma paisagem que se apresenta sempre atraveacutes de dois binocircmios um o
mais secreto e escondido que faz brotar dentro de si mesmo um outro que se
revela que se faz visiacutevel Eacute como se esses pensadores [Heraacuteclito e Parmecircnides]
dissessem que toda coisa tudo aquilo que eacute natildeo estaacute nunca sozinha no sentido
de algo encerrado em si mesmo mas sempre o eacute junto a uma outra coisa em
sintonia com a alteridade com a qual a um soacute tempo se relaciona e se opotildee
constituindo com ela uma unidade (MICHELAZZO 1999 paacuteg 85)
Tudo eacute tatildeo singular quanto dual e plural e por isso ἓν πάντα εἶναι eacute paradoxal
necessariamente Nem poderia ser diferente afinal supondo que tudo fosse um apenas
com o rigor matemaacutetico de 1 ne 2 e o universo cessasse de possibilidades e de tudo restasse
somente um lsquouacutenica cadeirarsquo Ou lsquouacutenica canetarsquo ateacute mesmo lsquouacutenico homemrsquo Ningueacutem
haveria de sentar-se naquela ou nenhum poema seria escrito com esta Qualquer
possibilidade de vida seria sem sentido Da mesma forma se tudo natildeo fosse um se natildeo
houvesse essa relaccedilatildeo entre minus entre as coisas entre as pessoas entre os instantes do tempo
minus qualquer transitoriedade cessaria natildeo haveria enigmas nem caminhos para a cadeira
ser sentada a caneta virar poema e o homem morrer
Morte natildeo eacute e eacute vida vigiacutelia natildeo eacute e eacute sono assim como o uno eacute e natildeo eacute uno O
que eacute o uno No momento em que nos atemos ao momento o mesmo natildeo eacute mais o mesmo
e outro momento eacute apenas para jaacute natildeo ser outro momento Por que natildeo medir a unidade
95
se ao fim ela permaneceraacute unidade Como medir o que natildeo pode ser medido mdash
Medindo por mais impreciso que possa ser Se se faraacute crenccedila na verdade dessa mediccedilatildeo
satildeo outros quinhentos
96
3 Pensando a Linguagem
O homem fala O λόγος tambeacutem fala Tudo fala Em meio ao vozerio dos seres
nem sempre eacute possiacutevel ouvir a proacutepria voz Mesmo sem sua audiccedilatildeo o carro anda o barco
zarpa e a vida segue surda Sem o cuidado promovido pelo ouvido o diaacutelogo dos seres
cessa e batem-se cabeccedilas na multiplicidade amorfa que natildeo se sabe unidade
Natildeo agrave toa almejou-se sair da caverna como uma compreensatildeo de resgate de uma
ausculta no caso das ideias em meio agrave rede de sombras A filosofia ao longo de sua
histoacuteria tem se preocupado em diversos momentos com o que constitui e daacute sentido aos
seres Pergunta-se pela essecircncia a tradiccedilatildeo responde com a aacutegua em Tales com o fogo
em Heraacuteclito mas tambeacutem com εἶδος com Deus com ratio etc
De tudo que a filosofia fez ou faz ainda hoje laacute estaacute ora encoberta ora mais direta
a pergunta pelo que eacute Na introduccedilatildeo de ldquoWas ist Metaphysikrdquo de 1949 Heidegger
(1955 paacuteg 35) vai nos colocar diante da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoDas Seiende das in der
Weise der Existenz ist ist der Mensch Der Mensch allein existiertrdquo Em versatildeo brasileira
de Os pensadores Ernildo Stein traduziu a sentenccedila como ldquoo ente que eacute ao modo da
existecircncia eacute o homem Somente o homem existerdquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 59) Aqui
nos dispomos a ela como uma duacutevida eacute possiacutevel que somente o homem exista Quase
sem dificuldades pode-se protestar pelo absurdo ensejado na asserccedilatildeo heideggeriana
Afinal a seu lado haacute um bicho este ser estaacute no mundo tambeacutem Ele respira come
e interage com os demais seres Ele natildeo existe Para negar que natildeo soacute o homem existe
precisariacuteamos perguntar o que eacute existecircncia e em seguida de que modo o homem eacute e os
demais seres natildeo satildeo Naturalmente soacute o homem existir natildeo nega que o homem eacute nem
que os demais seres satildeo O que estamos tentando fazer eacute responder agrave escuta do ser do
homem na medida em que o ser do homem eacute como o ser do homem pode ser ndash e somente
ele pode ser
Natildeo se pressupotildee que soacute o homem possa ser Tudo eacute Entretanto a pergunta pelo
ser ganha contornos diferentes se atentarmos ao modo como se eacute ou seja como tornar-se
a si mesmo como apropriar-se do que eacute proacuteprio No livre caminho das escolhas qualquer
posiccedilatildeo poderia passar por imposiccedilatildeo e calar a voz do outro por isso a importacircncia de se
atentar aos modos de ser
97
Opta-se por isso ou aquilo daacute-se respostas a esmo sem o devido cuidado Tais
consideraccedilotildees a respeito das escolhas passa pela vontade (sou algo porque quero) e em
sequecircncia pela exclusatildeo (vocecirc natildeo eacute algo porque eu natildeo quero) O homem fala sob
pressatildeo Ele precisa responder agraves exigecircncias do cotidiano e prover de soluccedilotildees a lousa
Por esse vieacutes suas escolhas pressionadas acabam por gerar opressatildeo tanto de si quanto
dos demais Quem estaacute oprimido necessita exprimir-se e ao ser natildeo seria diferente
O ser precisaria ser exprimido precisaria se exteriorizar isto eacute existir Por sua
vez o ser seria uma interioridade opressora da existecircncia Nesse sentido ser e existir
fariam praticamente oposiccedilatildeo De um lado o ser exigindo sua expressatildeo a ponto de forccedilar
uma existecircncia e do outro o natildeo ser cuja inexistecircncia estaria agrave mercecirc do que eacute
Da oposiccedilatildeo busca-se a cessaccedilatildeo dos conflitos numa sociedade que esqueceu o
paradoxo de ser e natildeo ser Haacute a situaccedilatildeo conflitante e o depois haacute a causa e o depois Daiacute
encarar a pergunta pela essecircncia por algo de resoluto ou a fala do homem sem a tensatildeo
dos contraacuterios externando sua voz agraves demais falas Natildeo A pergunta pela fala natildeo cala
natildeo precisa calar
Tendo em vista o dito soacute o homem eacute ao modo da existecircncia natildeo conclui que os
demais seres natildeo satildeo nem que natildeo existem somente que natildeo existem como o homem
existe Em outras palavras os demais seres natildeo ldquoexistemrdquo porque o homem existe E de
fato os demais seres natildeo existem na sentenccedila heideggeriana mas ainda assim se
atentarmos para o natildeo dito no dito devemos dizer natildeo ao fato de o homem existir na
causalidade referencial dos demais seres natildeo existirem
Assim a existecircncia natildeo nega algo aos outros seres mas afirma uma singularidade
no homem Nesse caso a afirmaccedilatildeo eacute escuta agrave fala do ser Agrave medida da fala do λόγος o
homem escuta Ser e λόγος natildeo se confundem em significado pelo contraacuterio se
complementam em sentidos no paradoxo da linguagem um servindo de morada ao outro
(HEIDEGGER 1947 paacuteg 5) Agrave medida dessa escuta o homem decide e responde ldquono
dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala
perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 12)
O passarinho eacute o homem escuta o canto do passarinho A aacutervore eacute o homem vecirc
se ela caiu ou natildeo se fez barulho ou natildeo ou seja a escuta proacutepria agrave fala do ser nomeia agrave
medida que pode nomear na correspondecircncia das limitaccedilotildees da escuta Cantar e cair satildeo
somente disposiccedilotildees da fala do homem para compreender o ser do paacutessaro e da aacutervore
98
Retoacuterica 1
Cantam os paacutessaros cantam
Sem saber o que cantam
Toda sua compreensatildeo eacute sua garganta (PAZ 1989 p 19 ndash traduccedilatildeo livre)89
Chamar de existecircncia o modo proacuteprio de o homem escutar a fala do ser natildeo nega
que os demais seres tenham um modo proacuteprio de escuta e fala nem esgota o ser do homem
na existecircncia O entendimento da fala humana natildeo se consuma no grito ela interpreta diz
o oacutebvio repete a diferenccedila e cala Jaacute o paacutessaro a planta e as pedras satildeo exclusivamente
Exclusivo natildeo porque natildeo possam corresponder ao ser mas porque o homem que
corresponde ao ser do homem natildeo pode deixar de ouvir-se Em outras palavras a
existecircncia eacute a correspondecircncia agrave fala do ser agrave medida do homem Nesse sentido tudo que
eacute para o homem existe tambeacutem para o homem quer dizer soacute pode ser interpretado
compreendido assimilado dissecado estudado e experienciado agrave medida humana e agrave
escuta da fala do ser ao homem Daiacute a margem sempre errada no encontro das existecircncias
Equivocadas estatildeo sempre a se ouvir Existir natildeo eacute ser Existir eacute uma possibilidade Ser eacute
o possiacutevel
De maneira semelhante quando a filosofia se pergunta por como ser filosofia ela
natildeo anula suas variadas respostas assim como a de outras faculdades do pensamento
sobre ela mas diz do modo proacuteprio de dizer atenta ao que eacute ldquopensar desde a linguagem
significa alcanccedilar de tal modo a fala da linguagem que essa fala aconteccedila como o que
concede e garante uma morada para a essecircncia para o modo de ser dos mortaisrdquo
(HEIDEGGER 2003 paacuteg 10) A fala do homem eacute uma concessatildeo da fala do λόγος
Quanto mais atento formos agrave escuta da fala do λόγος mais habitaremos nela
O λόγος estaacute presente nas falas mas natildeo se consome nelas se encontra nas
decisotildees nossas de cada dia mas natildeo se esgota ali O esgotamento faz parte pois a escuta
atenta demanda certo tardamento demora na morada da linguagem tardanccedila que nem
sempre dispomos Normalmente cremos nas falas imediatas porque precisamos de
respostas imediatas por exemplo o dinheiro para a mensalidade do plano de sauacutede Tanta
correria que natildeo haacute tempo nem para perceber a questatildeo que permanece inconclusa e
89 Retoacuterica 1 Cantan los paacutejaros cantan sin saber lo que cantan todo su entendimiento es su garganta
99
doadora de sentidos por exemplo o que eacute cuidar por que o cuidado se desdobra na
instituiccedilatildeo meacutedica e por aiacute vai
A esse papel delongado na fala dos homens em ressonacircncia agrave do λόγος prestam-
se personagens especiacuteficas ldquoA linguagem eacute a casa do ser Nessa habitaccedilatildeo mora o
homem Poetas e pensadores satildeo seus vigiasrdquo (HEIDEGGER 1947 paacuteg 5 ndash traduccedilatildeo
livre)90 Significa dizer que haacute uma disposiccedilatildeo de tempo proacutepria que se distancia da hora
funcional para parar e para criar uma temporalidade memoraacutevel para movimentar
sentidos de uma coisa qualquer um cuidado com as coisas para operar a partir delas
interpretando experienciando tornando-as de fato obra
Uma unidade que natildeo eacute lsquocoisarsquo mas lsquoobrarsquo ndash quer dizer antes de tudo combate
Porque o mundo aspira sempre a dominar a terra a terra aspira sempre a reter
o mundo Deixar o mundo ser mundo e a terra ser terra eacute portanto mantecirc-los
no seu afrontamento vivo afrontamento que eacute o uacutenico a permitir-lhes ser cada
um para si e ser um para o outro Instigadora do combate do mundo e da terra
a obra eacute o espaccedilo de realizaccedilatildeo da unidade (ZARADER 1998 paacuteg 252)
Nesse sentido pode parecer ateacute que poetas e pensadores podem se ausentar por
completo da ordem das coisas e das exigecircncias mundanas Natildeo natildeo podem como
tambeacutem natildeo pode o motorista fugir agrave conduccedilatildeo do veiacuteculo e a sentinela ao posto sem
colocar em risco sua obra Portanto tambeacutem os poetas e pensadores natildeo podem se
ausentar do cuidado ao λόγος Natildeo por escolherem ser poetas e pensadores e por isso
precisarem cuidar do λόγος mas sim porque a escuta do λόγος vige neles que haacute poesia e
pensamento Por a questatildeo urgir primordialmente que a possibilidade de responder
acontece
A correspondecircncia agrave fala do λόγος eacute proacutepria de cada um assim como sua ausculta
Defronte de semelhantes contratempos as pessoas reagem diferentemente conforme
Metafiacutesica Livro IV Capiacutetulo 2 Seccedilatildeo 1003a Linha 33 ldquoτὸ δὲ ὂν λέγεται μὲν πολλαχῶςrdquo
(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 130) a saber ldquoo ser se diz em muacuteltiplos significadosrdquo
(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 131) Se o dito eacute pois diverso tambeacutem seraacute nossa
interpretaccedilatildeo Eacute o caso da lesma que pode ser apreendida pelo livro de biologia ou
enojada pela dissecaccedilatildeo da crianccedila curiosa E pode ser cantada de verso em prosa segue
90 Die Sprache ist das Haus des Seins In ihrer Behausung wohnt der Mensch Die Denkenden und
Dichtenden sind die Waumlchter dieser Behausung
100
de vento em popa os desdobramentos do λόγος do uno divisiacutevel cujas partes se mostram
distintamente a noacutes
De cajado
rutilante
eremita
do profundo
vai a lesma
cada instante
recriando
nosso mundo (LEGRENDE 2011 paacuteg 57)
No modo moderno de lidar com o embate do uno surge a decisatildeo da vontade
Decide-se pela vida decide-se pelo sono e por vezes pela morte Esquecida a dualidade
opta-se por um ou por outro Nada fora do comum jaacute que nem sempre estamos cientes agrave
ausculta do λόγος Conscientes ou natildeo haacute o uno e perpetramos sua rede de manifestaccedilotildees
sem o saber sem passar pela nossa vontade E mesmo quando cientes natildeo basta querer
para poder Natildeo eacute apenas por gostarmos de dirigir que podemos pegar do carro e sair por
aiacute tem toda uma teacutecnica e empenho envolvidos no processo Natildeo eacute porque estudamos
arduamente as lesmas e sabemos as respostas para todas as nossas perguntas que estamos
perante agrave duacutevida genuiacutena de pensamento vai a lesma de cajado rutilante eremita do
profundo cada instante ela recria ou natildeo nosso mundo como diria Legrende (2011 57)
Todos colaboramos tendo em vista um fim comum uns consciente e
deliberadamente outros sem o saber como Heraacuteclito [fragmento 75] (penso
eu) diz daqueles que dormem que satildeo obreiros e colaboradores das coisas que
se fazem no mundo Mas os homens cooperam de diferentes maneiras mesmo
aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir pois o universo necessita ateacute
desses homens Resta-te perceber entre que espeacutecie de obreiros estaacutes aquele
que governa o universo faraacute certamente uso adequado de ti e te receberaacute entre
os que jaacute colaboram e os que se dispotildeem a colaborar Mas natildeo ocupes um lugar
como o verso mediacuteocre e ridiacuteculo na trageacutedia de que fala Criacutesipo91 (MARCO
AUREacuteLIO 1967 paacuteg 97)
Por isso que nem o poeacutetico-filosoacutefico nem o teacutecnico-funcional estatildeo agrave medida do
λόγος aqueacutem ou aleacutem entre si Se ao inveacutes de fazer um poema decidiacutessemos medir o
tamanho de uma coluna de maacutermore esta mediccedilatildeo natildeo calaria necessariamente a
91 Criacutesipo foi um conhecido estoico grego Esta passagem se refere ao fragmente 1181 da ediccedilatildeo de von
Arnim conforme nota do original
101
desmedida do Coliseu seus diversos tamanhos a medir e a natildeo medir A medida que mede
o tamanho pelos nuacutemeros da matemaacutetica eacute mais um modo de ouvir a fala do λόγος Ainda
que definitivamente natildeo seja o λόγος em sua totalidade
Daiacute a dificuldade da metafiacutesica nos moldes dicotocircmicos de νοῦς e δόξα ao se
deparar com Heraacuteclito O Obscuro natildeo estaacute claro por natildeo se articular tradicionalmente
ou seja dentro de certos preceitos de oposiccedilotildees e argumentaccedilotildees esperadas inclusive
logicamente esperadas A desculpa de que sua escrita nos foi relegada fragmentada natildeo
convence jaacute que tantos outros escritos antigos estatildeo em fragmentos aleacutem do que a
alcunha adveacutem de uma eacutepoca na qual eacute concebiacutevel que alguns dizeres do pensador
estivessem ateacute em outras dimensotildees
Σκοτεινός natildeo eacute devido somente ao seu modo de se manifestar mas tambeacutem a
como seus interlocutores o podiam compreender Sua obscuridade faz jus agrave parcela de
confusatildeo de natildeo compreensatildeo e de tensatildeo do seu pensamento a fim de que o λόγος
retenha seu misteacuterio aquele natildeo dito em todo dizer como eacute fruto do excesso de
luminosidade na concatenaccedilatildeo das ideais com as quais seus leitores estariam
acostumados Essa medida torna-se problemaacutetica quando roga para si o que o λόγος eacute em
sua totalidade natildeo permitindo assim outras manifestaccedilotildees Como se impossiacutevel fosse o
ponto fora da curva
31 Linguagem e limite
Natildeo eacute de agora a questatildeo de como a filosofia se compreende E jaacute que a proacutepria
natildeo estaacute agrave parte do mundo compreender-se eacute em alguma medida compreender o mundo
Do mesmo modo o mundo encara a filosofia com as garras afiadas com que apanha tudo
o que encontra deixando pouco espaccedilo para brechas ou pontas soltas ldquoa incerteza sempre
foi uma fonte suprema de medordquo (BAUMAN 2010 paacuteg 25) Por natildeo se restringir a um
tempo especiacutefico esse incocircmodo aparece nos preacute-socraacuteticos e atravessa as eras
inquietando os homens
Se vale mais a pena morrer do que sonhar Isso certamente soa como algo senatildeo
impossiacutevel difiacutecil de decidir pois natildeo eacute uma pergunta funcional A permanecircncia em
102
estado de vigiacutelia daacute o tom da resposta heracliacutetica na mesma medida em que destoa do
status quo que deseja transformar o caminho filosoacutefico num passo a passo Assim segue
a pergunta conforme paraacutegrafo 309 de Philosophische Untersuchungen ldquoWas ist dein
Ziel in der Philosophie mdash Der Fliege den Ausweg aus dem Fliegenglas zeigenrdquo isto eacute
ldquoQual eacute seu objetivo na filosofia mdash Mostrar agrave mosca a saiacuteda do mosqueirordquo
(WITTGENSTEIN 1971 paacuteg 131 ndash traduccedilatildeo livre) a indicar outro caminho aleacutem do
aparente uacutenico jeito que nesse caso seria o fim do inseto
Ao mostrar ensina-se um caminho diz-se o que a mosca pode fazer aleacutem de se
debater frustrantemente Natildeo que ela faraacute o dito Tambeacutem natildeo haacute garantias de sucesso
pela simples audiccedilatildeo nem pela execuccedilatildeo Zeigen convida anuncia solenemente o que
antes era dado como certo a fim de que a atenccedilatildeo devida possa ser despendida
Etimologicamente esse verbo tem a raiz indo-germacircnica dįk- (KLUGE 1899 paacuteg 433
GRIMM GRIMM 1971 Zeigen)92 a mesma de ensinar em inglecircs (DICTIONARY
Teach)93 mostrar em grego (LIDDELL SCOTT 1940 Δείκνυμι)94 e dico dizer em latim
(GLARE 1968 paacuteg 537)
Haacute muito que mostrar algo eacute apenas ldquo1 oferecer agrave vistardquo (HOUAISS 2009a
Mostrar) dizer eacute ldquo1 expor atraveacutes de palavrasrdquo (HOUAISS 2009a Dizer) e ensinar eacute ldquo1
repassar ensinamentos sobre algo doutrinarrdquo (HOUAISS 2009a Ensinar) O domiacutenio da
funcionalidade preza pela presteza e reprodutibilidade logo tende-se ao uso mecacircnico das
palavras esvaziadas de significaccedilatildeo para o manejo ordinaacuterio com elas Isto equivale
agravequilo este siacutembolo sonoro representa tal gesto ou aquele objeto e por aiacute vai
Ainda a respeito dos sentidos de zeigen cabe detalhar um pouco sua relaccedilatildeo com
o verbo latino dico primeira pessoa do singular do presente dos verbos cujos infinitivos
satildeo dicare e dicere Ambos significam dizer mas com certos sentidos mais
pormenorizados em um verbete do que no outro Sobre as diferenccedilas entre eles
92 Disponiacutevel em lthttpwoerterbuchnetzdecgi-
binWBNetzwbgui_pysigle=DWBamplemid=GZ03301ampmode=Vernetzungamphitlist=amppatternlist=ampmain
mode=gt Acesso em 05 ago 2017 93 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowseteachs=tgt Acesso em 05 ago 2017 94 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei2
Fknumigt Acesso em 05 ago 2017
103
encontramos em dicare referecircncias a ldquodedicar devotar consagrarrdquo e em dicere ldquofazer um
juramento votar dar evidecircnciardquo (GLARE 1968 paacuteg 537)95
Embora o uso de dicare mantenha um tom cerimonioso em alguns contextos por
tratar da sagraccedilatildeo e da dedicaccedilatildeo a um deus a uma figura incontestadamente de
importacircncia dicere daacute seu testemunho pelo dizer ldquoComo orare dico tem um caraacuteter
solene e teacutecnico eacute um termo da liacutengua da religiatildeo e do direitordquo (ERNOUT MEILLET
2001 paacuteg 172 ndash traduccedilatildeo livre)96 Um mostrar que se diz Os sentidos dos dois vocaacutebulos
confluem entre si atraveacutes da voz que traz agrave tona o sagrado seja na evocaccedilatildeo da divindade
seja na presenccedila da verdade Um dizer que mostra faz evocar trazer agrave palavra o vigor do
sagrado ldquoA raiz indo-europeia wekw- [de evocar voz] indicava a emissatildeo de voz com
todas as forccedilas religiosas e juriacutedicas que delas resultamrdquo (ERNOUT MEILLET 2001
paacuteg 754 ndash traduccedilatildeo de Manuel Antocircnio de Castro)97
Concomitantemente a abstraccedilatildeo da realidade em conceitos na ψυχῇ platocircnica
conforme seccedilatildeo 511d da Repuacuteblica tem se demonstrado eficiente em se tratando do
empobrecimento da experiecircncia sensiacutevel Permitindo entre outras coisas postergar o
trato com as palavras isto eacute sabendo o significante e o significado basta aplicaacute-los
quando for mais conveniente O visiacutevel eacute limitado existindo apenas ateacute onde nossos olhos
alcanccedilam poreacutem o invisiacutevel as ideias abstratas independem de um objeto especiacutefico
pelo contraacuterio podem ser aplicadas a qualquer coisa Semelhantemente as palavras
sofreram um enfraquecimento de sua caracteriacutestica de evocaccedilatildeo de trazer agrave presenccedila na
nomeaccedilatildeo para serem compreendidas na loacutegica significante e significado Assim o que
algo significa pode ser reproduzido dicionarizado definido e arbitrariamente somente
relaciona-se com a coisa em questatildeo A experiecircncia oral concreta eacute limitada e irrelevante
natildeo se distinguindo em linhas gerais uma da outra
O mostrar agrave mosca natildeo pode esperar pois eacute uma experiecircncia radical Nem por isso
estaacute em sujeiccedilatildeo agrave pressa do ponteiro Diz conceitualmente o significado do significante
mas tambeacutem marca a ferro e fogo o bicho com o ensinamento de sua finitude Ratifica a
95 ldquo2 To dedicate devoterdquo e ldquo6 to make a oath to vote to give evidencerdquo respectivamente 96 Comme orare dico a un caractegravere solennel et technique crsquoest un terme de la langue de la religion et du
droit 97 La racine wekw- eacutetait en indo-europeacuteen celle qui indiquait leacutemission de la voix avec toutes les forces
religieuses et juridiques qui en reacutesultent
104
situaccedilatildeo limiacutetrofe da mosca em contato com o mosqueiro e alerta-a para uma condiccedilatildeo
aleacutem do vidro reconfigurando seus limites delimitando e deslimitando
Somente porque o filoacutesofo estaacute sempre a jogar com a linguagem que ele pode fazer
filosofia Por estar em concordacircncia com a fala da linguagem ele traccedila tanto um paralelo
com a tradiccedilatildeo quanto reconhece seus pontos sensiacuteveis e dignos de questionamento Por
estar em discordacircncia com a fala da linguagem o filoacutesofo pode responder a ela
cuidadosamente habitando seus limites e radicalmente atuando para sua criaccedilatildeo e
consequentemente destruiccedilatildeo ldquo56 Os limites da minha liacutengua [grifo no original]
significam os limites do meu mundordquo (WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 148 ndash traduccedilatildeo
livre)98
Logo ele eacute aquele que mostra a saiacuteda Quatildeo tentador natildeo eacute encarar essa assertiva
por salvaccedilatildeo De fato sair do mosqueiro salvaria a mosca Aleacutem do mais a palavra
Ausweg abarca os significados de remeacutedio e alternativa (LANGENSCHEIDT 2001 paacuteg
692) e o que seria mais curativo do que um bom remeacutedio durante o estado de
enfermidade A cura processada pode ser encarada dessa forma como a soluccedilatildeo do
problema se o problema fosse passiacutevel de cura Trata-se aqui de uma problemaacutetica
filosoacutefica na qual o alvo a meta ou objetivo das Ziel tal como pular a proacutepria sombra eacute
sair do frasco feito para que vocecirc natildeo saia dele
Eacute propor solucionar o insoluacutevel sair do caminho sem saiacuteda Ainda assim toda
partida chega a algum lugar logo para cada Ausweg podemos supor um Weg um
caminho Nesse sentido a proposta de Wittgenstein natildeo se mostra mais eficaz para
remediar o irremediaacutevel do que quaisquer outras atitudes mesmo assim eacute um caminho e
uma resposta Eacute uma assunccedilatildeo de que ele o pensador estaacute comprometido com o cuidado
entre a sanidade e o insano que salienta sua decisatildeo e o separa por um fio de dar murro
em ponta de faca ou de saber que o sucesso natildeo eacute a uacutenica soluccedilatildeo mas que o caminhar
natildeo eacute soacute possiacutevel mas nosso dever com o caminho
A saiacuteda estabelece um limite Ateacute entatildeo sem outro caminho ainda que aparente
natildeo haacute diferenciaccedilatildeo natildeo haacute chances de se diversificar para a mosca que caiu presa no
mosqueiro e por isso se fundiu nele Mosqueiro e mosca eram uma coisa soacute O mosqueiro
98 56 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt
105
era o mundo da mosca Na identificaccedilatildeo que mostra algo que pode acontecer uma
alternativa ocorre a cisatildeo do mundo
Mosqueiro e mosca se separam na exposiccedilatildeo da saiacuteda Assim como o umbral
marca o limite entre os cocircmodos e as cercanias da casa delimitam a propriedade assim o
caminho para fora reafirma o compromisso com o caminho de dentro Toda chegada parte
de algum lugar Mosqueiro pois toma seu lugar enquanto proveniente da mosca Natildeo faz
sentido mosqueiro sem mosca mas o contraacuterio natildeo eacute verdade a mosca natildeo eacute mosqueiro
natildeo se encerra nele natildeo necessariamente
Para haver Fliegenglas eacute imprescindiacutevel der Fliege se assim natildeo for se trataria de
somente mais um Glas soacute mais um vidrino recipiente sem nenhuma relevacircncia para a
mosca senatildeo eventuais resquiacutecios meliacutefluos Da mesma forma Glas demarca a qualidade
de natildeo mosca de Fliegenglas reafirmando tratar-se de duas entidades a mosca e o vidro
de pegar moscas Duas realidades separadas pelo limite apresentado pelo filoacutesofo
O mosqueiro eacute e natildeo eacute a mosca A proacutepria palavra jaacute diz a mosca mas
diferentemente fundando outra forma da mosca ser mosca Natildeo haacute limite sem o entorno
Sua circunvizinhanccedila se apresenta na saiacuteda eacute o reconhecimento da linha ao redor do
ciacuterculo O limite se confunde com sua transgressatildeo refazendo a ponte entre o que somos
e natildeo somos Essa eacute a meta do filoacutesofo reafirmar o abismo pelo salto Natildeo por tendecircncias
suicidas mas por ter sapiecircncia de que o abismo natildeo seria nada sem a possibilidade da
queda assim como cair natildeo seria possiacutevel sem o caminhar
O inuacutetil
Disse Hui Tzu a Chuang Tzu
mdash Todo o seu ensinamento estaacute baseado no que natildeo tem utilidade
Replicou-lhe Chuang Tzu
mdash Se vocecirc natildeo aprecia o que natildeo tem utilidade
Natildeo pode comeccedilar a falar sobre o que eacute uacutetil
Por exemplo a terra eacute larga e vasta
Mas de toda a sua extensatildeo o homem utiliza
Apenas poucas polegadas
Sobre as quais se manteacutem de peacute
Suponhamos agora que vocecirc tire
Tudo o que ele realmente natildeo usa
De modo que ao redor de seus peacutes
Um golfo se abra
E ele fica de peacute no vazio
Sem nada de soacutelido
Com exceccedilatildeo do que se encontra bem debaixo de cada peacute
Por quanto tempo poderaacute utilizar o que estaacute usando
106
Disse Hui Tzu
mdash Cessaria de servir a qualquer finalidade
Concluiu Chuang Tzu
mdash Isto prova
A absoluta necessidade
De que lsquonatildeo tem utilidadersquo (MERTON 1984 paacuteg 194-195)
Para isso ele se achega agrave beira do despenhadeiro para arriscar um salto Esta eacute sua
correspondecircncia ao abismo agrave questatildeo cuja profundidade natildeo se esgota mas se adentra
em cada resposta Natildeo eacute um saltar de cabeccedila no vazio sem sentido nem aterrar a
profundura para jamais sermos tragados por ela e fazecirc-la planiacutecie segura para um
pensamento raso
A resposta filosoacutefica agrave mosca natildeo pretende solucionar a problemaacutetica do frasco
diretamente Em vez disso coloca novamente a questatildeo instituindo a limitaccedilatildeo entre a
mosca e o vidro Mostrar a saiacuteda natildeo desfaz o mosqueiro como a porta natildeo desfaz a casa
mas convida a lidar com o limite como algo que natildeo precisa ser seguido agrave risca tambeacutem
somos aleacutem dele nem arriscado sempre ao extremo tambeacutem somos aqueacutem dele pois o
ciacuterculo se define tanto pelo que estaacute dentro como pelo que estaacute fora
32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem
Responder natildeo eacute um papel exclusivo da filosofia Eacute tanto uma palavra como uma
atitude muito comum Nas perguntas das provas haacute um espaccedilo destinado para isso Na
duacutevida de quanto custa o patildeozinho naquela outra padaria no momento apoacutes uma saudaccedilatildeo
e no fechar das matildeos depois de levado o soco acontece ali uma resposta agraves interpelaccedilotildees
da vida
Cria-se a expectativa do quadrado da hipotenusa que se iguala agrave soma dos
quadrados dos catetos na lacuna preenchida no teste do valor monetaacuterio do quilo mais ou
menos barato do que o da bodega da esquina do olaacute e do olho roxo Somos ensinados a
isso Embora as reaccedilotildees variem no tempo e no espaccedilo de modo geral estamos sempre no
aguardo de um posicionamento que nos tire da suspensatildeo da questatildeo
107
Todo o processo comunicativo eacute baseado em correspondecircncias Em remetentes e
destinataacuterios em dar agrave mensagem o recebido para na via de matildeo dupla da prosa moderna
devolver a missiva em seguida Se se pergunta espera-se com isso um termo o desenlace
pelo qual fomos formados a crer e compreender
Quando muito natildeo cabe a noacutes mas aos outros dar as respostas que aguardamos
Ao professor cabe responder o aluno com a soluccedilatildeo do problema ao atendente o
comprador com o preccedilo do patildeo ao amigo o irmatildeo com a atenccedilatildeo devida e ao rival a noacutes
com a violecircncia por vezes merecida Em nossa sociedade se a interrogaccedilatildeo eacute parcialmente
livre o travessatildeo costuma ser destinado a setores a profissionais e a especialistas no
assunto
Tudo tem seu lugar nas engrenagens da maacutequina a pergunta e a resposta natildeo
fogem a isso Responder passa a ser encarado como uma postura formal Como natildeo ser
seduzido pela crenccedila da oficialidade se tradicionalmente tem sido assim A mais antiga
universidade europeia em funcionamento data de 1088 e antes disso a Academia de
Platatildeo foi fundada no ano de 387 antes de Cristo isto significa dizer que haacute tempos o
Ocidente tem se empenhado a reter a produccedilatildeo do saber em determinadas instituiccedilotildees em
detrimentos de outras circunstacircncias e localidades
A partir do momento em que o conhecimento foi compartimentado retirado de
sua experiecircncia imediata e empossado no poacutedio das categorias especializadas fica cada
vez mais difiacutecil natildeo considerar as respostas oficiais para dizer o que as coisas satildeo Mal
comparando seria perguntar ao padeiro sobre o teorema de Pitaacutegoras Que se faccedila notar
natildeo eacute que o padeiro saiba ou natildeo saiba pouco importa pois ele natildeo deteacutem o saber oficial
a respeito dessa problemaacutetica isto eacute ele natildeo estaacute autorizado a responder oficialmente
Autorizaccedilatildeo dada pela tradiccedilatildeo Neste caso a tradiccedilatildeo tradicional encastela nas
instituiccedilotildees formais de ensino nos oacutergatildeos governamentais nas fundaccedilotildees emissoras de
diplomas e registros os atestes da veracidade das respostas Nossa sociedade distorceu a
seu bel-prazer a compreensatildeo mitoloacutegica de Pandora e Prometeu erigindo
estabelecimentos que concentram as verdades perante as opiniotildees e as experiecircncias
concretas dos indiviacuteduos e ateacute de grupos
Isto significa que esses locais e as pessoas que respaldam essas localidades satildeo
capazes de nos prover das respostas que necessitariacuteamos para manter as engrenagens
sociais em funcionamento Desse modo natildeo precisariacuteamos mais lidar diretamente com
108
os dilemas que jogam com nossos limites por mais simploacuterios ou essenciais que eles
possam ser As respostas vecircm prontas basta apenas acessaacute-las
A Pandora original foi enviada agrave Terra com uma caixa que continha todos os
males de coisas boas continha soacute a esperanccedila O homem primitivo vivia neste
mundo de esperanccedila Confiava na magnanimidade da natureza nos benefiacutecios
dos deuses e nos instintos de sua tribo para sobreviver Os gregos claacutessicos
comeccedilaram a substituir a esperanccedila pelas expectativas Em sua versatildeo do mito
de Pandora ela havia soltado tanto os males quanto os bens Lembravam-se
dela sobretudo pelos males que havia soltado E esqueceram que a lsquodoadora de
tudorsquo era tambeacutem a guardiatilde da esperanccedila
Os gregos contavam a histoacuteria de dois irmatildeos Prometeu e Epimeteu Prometeu
sempre admoestava Epimeteu para que deixasse Pandora em paz Mas este
acabou casando-se com ela No grego claacutessico o nome Epimeteu que significa
lsquoolhar para traacutesrsquo foi traduzido por lsquoboborsquo ou lsquoestuacutepidorsquo [] Os homens
planejaram instituiccedilotildees com que pretendiam fazer frente aos males
disseminados Conscientizaram-se de seu poder de modelar o mundo e fazecirc-lo
produzir serviccedilos que eles mesmos aprenderam a esperar Queriam que suas
proacuteprias necessidades e as futuras demandas de seus filhos fossem modeladas
por seus artefatos Tornaram-se legisladores arquitetos autores idealizadores
de constituiccedilotildees cidades e obras de arte que servissem de exemplo para seus
descendentes O homem primitivo confiava na participaccedilatildeo miacutetica dos ritos
sagrados para iniciar pessoas na doutrina da sociedade [] (ILLICH 1973
paacutegs 115-116)
Ora mas como as repostas poderiam vir prontas se fazemos perguntas Isso natildeo
pressupotildee uma duacutevida Naturalmente que sim mas ateacute para perguntar eacute indispensaacutevel
saber algo Natildeo eacute possiacutevel perguntar sobre o que natildeo temos como perguntar a respeito
Por mais tautoloacutegico que essa uacuteltima assertiva possa soar ela remete ao conhecimento do
ser a perambular o natildeo ser
Como acessar o natildeo ser Acessamos o ser agrave medida que ele se revela a noacutes Seja
nas questotildees como em suas respostas precisamos estar nas cercanias do ser para que haja
compreensatildeo Quando natildeo o habitamos em alguma instacircncia ou seja quando natildeo somos
simplesmente as coisas acontecem e natildeo temos a possibilidade de darmos conta disso
A luz das estrelas perguntou ao Natildeo-Ser mdash Mestre voacutes existis ou natildeo
Como a luz das estrelas natildeo obtivesse qualquer resposta dispocircs-se a vigiar o
Natildeo-Ser Esperou para ver se o Natildeo-Ser aparecia
Manteve seu olhar fixo no profundo Vaacutecuo esperando para tentar ver uma
sombra do Natildeo-Ser
Olhou durante todo o dia e nada viu Ouvia mas natildeo escutava nada Tentava
pegar mas nada pegava
Entatildeo a luz das estrelas exclamou finalmente mdash Eacute isto
mdash Este eacute o mais distante Quem poderaacute alcanccedilaacute-lo
Posso compreender a ausecircncia do Ser
Mas quem pode compreender a ausecircncia do Nada
109
Se agora acima de tudo o Natildeo-Ser eacute
Quem seraacute capaz de compreendecirc-lo (MERTON 1984 paacuteg 161)
Quantas coisas acontecem diante de nossos olhos neste exato momento sem que
percebamos Incontaacuteveis Mesmo aquelas que percebemos ainda eacute uma percentagem
iacutenfima do que poderia ter sido e o que poderia natildeo eacute assim como o que jamais poderaacute
ser tambeacutem natildeo eacute O natildeo ser natildeo estaacute presente o ser o ainda natildeo presente e o que acontece
eacute o ser sendo presenccedila simultaneamente presente e a presentificar-se independentemente
do que tenhamos a dizer sobre ou se tomamos ciecircncia dele
Nesse sentido nem o ser nem o natildeo ser eacute Do contraacuterio seria um ente acessado
por completo apreendido agrave nossa imagem e semelhanccedila ou seja natildeo estariacuteamos de fato
compreendendo o ser mas dizendo o que o ser deveria ser de nosso ponto de vista Isso
eacute tatildeo grave e presente que se construiu todo o aparato conceitual para dar respostas com
as quais jaacute estamos acostumados e no mais que conveacutem aos interesses Significa que
acessamos o ser e o devassamos o natildeo ser eacute o ser eacute tudo eacute ente tudo eacute o que jaacute foi dado
respondemos apenas a noacutes mesmos as nossas perguntas cujo misteacuterio natildeo passa de uma
farsa sem trageacutedia
Como gecircnio construtivo o homem se eleva nessa medida muito acima da
abelha esta constroacutei com cera que recolhe da natureza ele com a mateacuteria
muito mais tecircnue dos conceitos que antes tem de fabricar a partir de si mesmo
Ele eacute aqui muito admiraacutevel ndash mas soacute que natildeo por seu impulso agrave verdade ao
conhecimento puro das coisas Quando algueacutem esconde uma coisa atraacutes de um
arbusto vai procuraacute-la ali mesmo e a encontra natildeo haacute muito que gabar nesse
procurar e encontrar e eacute assim que se passa com o procurar e encontrar da
lsquoverdadersquo no interior do distrito da razatildeo Se forjo a definiccedilatildeo de animal
mamiacutefero e em seguida declaro depois de inspecionar um camelo lsquoVejam um
animal mamiacuteferorsquo com isso decerto uma verdade eacute trazida agrave luz mas ela eacute de
valor limitado quero dizer eacute cabalmente antropomoacuterfica e natildeo conteacutem um
uacutenico ponto que seja lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido sem
levar em conta o homem (NIETZSCHE 2009 paacuteg 537)
A iniciaccedilatildeo agrave realidade deixa de ser miacutetica e composta de rituais sacros para ser
fruto da educaccedilatildeo e das leis Eacute a passagem do concreto para o abstrato da experiecircncia
sensiacutevel para a inteligiacutevel O controle social chega a atingir as demandas por necessidades
isto eacute se o homem pode produzir algo ele deve poder produzir a necessidade daquela
produccedilatildeo Se o homem pode dar respostas ele deve poder produzir as perguntas que se
adequem agraves respostas agraves quais ele estaacute preparado
110
Por mais que tentemos fugir os mitos de Siacutesifo e de Tacircntalo insistem em bater na
nossa cara Condenados a empurrar uma pedra ateacute o cimo da montanha e a passar fome e
sede respectivamente essa dinacircmica de um esforccedilo interminaacutevel se desdobra
modernamente em crescentes e insaciaacuteveis demandas por necessidades Eis um paradoxo
social pois ao criar uma realidade de instrumentos os homens que ldquoquanto mais podem
comprar mais decepccedilotildees tecircm que engolirrdquo (ILLICH 1973 paacuteg 178) se
instrumentalizam tornando-se refeacutens da proacutepria criaccedilatildeo
Se algum dia natildeo foi assim se nos primoacuterdios o homem era governado pelos fatos
pelas necessidades baacutesicas e pelo destino arremedo do sagrado atualmente natildeo eacute essa a
maneira das coisas serem experienciadas Ao longo de seacuteculos desenvolveu-se a
confianccedila nas instituiccedilotildees humanas como bastiotildees do controle e doadoras da seguranccedila e
com o tempo o equiliacutebrio entre confiar na natureza e confiar em sua proacutepria criaccedilatildeo foi
abalado O homem atual esqueceu-se de sua tragicidade e elevou ao extremo sua
dependecircncia institucional Cego nessa confianccedila natildeo vecirc as contradiccedilotildees do processo
Essas estruturas satildeo auto e antropofaacutegicas a saber
Uma sociedade comprometida com a institucionalizaccedilatildeo dos valores identifica
a produccedilatildeo de bens e serviccedilos com a demanda pelos mesmos A educaccedilatildeo que
nos faz necessitar do produto estaacute incluiacuteda no preccedilo do produto A escola eacute a
agecircncia publicitaacuteria que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela
eacute (ILLICH 1973 paacuteg 178)
33 O limite da resposta
Do pondo de vista da educaccedilatildeo tradicional a importacircncia da transmissatildeo da
seleccedilatildeo e da reproduccedilatildeo de um conteuacutedo parece evidente Daiacute crer que satildeo as instituiccedilotildees
a educaccedilatildeo oficial que transmite os valores natildeo mais o mito natildeo mais os deuses (embora
o sagrado modernamente possa ser apreendido pelas instituiccedilotildees) Por outro lado na
construccedilatildeo de um pensamento criacutetico tambeacutem encontramos a crenccedila num controle a ser
transmitido ainda que justificado ideologicamente Por mais que se argumente que os
conteuacutedos transmitidos satildeo vitais para a sobrevivecircncia ou que os mesmos perpassam pela
111
responsabilidade dos envolvidos neste processo isto eacute os educadores os educados e o
mundo trata-se no mais das vezes do que pode ser apreensiacutevel pelo saber
A educaccedilatildeo eacute o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para
assumirmos a responsabilidade por ele [] eacute tambeacutem onde decidimos se
amamos nossas crianccedilas o bastante para natildeo expulsaacute-las de nosso mundo e
abandonaacute-las a seus proacuteprios recursos e tampouco arrancar de suas matildeos a
oportunidade de empreender alguma coisa nova [] preparando-as [] para a
tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT 1972 paacuteg 247)
Tomar uma decisatildeo eacute uma resposta A educaccedilatildeo pelas vias da tradiccedilatildeo decide
respostas aos pais agrave sociedade e agrave questatildeo colocada Esse tem sido o papel do ensino Por
mais que se decida pelo cuidado ou pela ousadia essas correspondecircncias podem vir pelas
vias da apreensatildeo dando indiacutecios de preparaccedilatildeo e margens agrave transmissatildeo Com isso
modela-se sentidos agrave existecircncia
A marca que o ensino deixa na carne desse mundo comum nem sempre eacute visiacutevel
a olho nu mas isso natildeo quer dizer que ela natildeo esteja exercendo sua influecircncia Em outras
palavras o que se identifica na vontade de preparaccedilatildeo eacute a necessidade de uma resposta
que valide a transmissatildeo Se a resposta natildeo for adequada se natildeo partir de uma decisatildeo
modelar a saber que pode ser usada como modelo agraves demais ela eacute excluiacuteda enquanto
verdade Torna-se ficccedilatildeo invencionice parvoiacutece de filoacutesofo que natildeo diz coisa com coisa
mdash Por conseguinte oacute Glaacuteucon quando encontrares encomiastas de Homero a
dizerem que esse poeta foi educador da Greacutecia99 e que eacute digno de se tomar por
modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humana para aprender com
ele a regular toda a nossa vida deves beijaacute-los e saudaacute-los como sendo as
melhores pessoas que eacute possiacutevel e concordar com eles em que Homero eacute o
maior dos poetas e o primeiro dos tragedioacutegrafos mas reconhecer que quanto
a poesia somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encoacutemios aos
varotildees honesto e nada mais Se poreacutem acolheres a Musa apraziacutevel na liacuterica ou
na epopeia governaratildeo a tua cidade o prazer e a dor em lugar da lei e do
princiacutepio que a comunidade considere em todas as circunstacircncias o melhor
mdash Exactamente
mdash Aqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao lembrarmos de novo a poesia por
justificadamente excluirmos da cidade uma arte desta espeacutecie (PLATAtildeO
1987 paacutegs 472-473)
Ironicamente o julgamento que Platatildeo fez agrave poesia de base homeacuterica no passado
se assemelha muito com a criacutetica agrave filosofia nos tempos atuais Significa dizer que a
99 Conforme nota da citaccedilatildeo a mais antiga prova dessa asserccedilatildeo diz respeito ao Fragmento 10 de
Xenoacutefanes ldquoUma vez que desde iniacutecio todos aprenderam por Homerordquo
112
pergunta que Soacutecrates faz agrave Homero ldquodiz-nos que cidade foi graccedilas a ti melhor
administradardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 456) compreende natildeo soacute o vigor do que se tem a
dizer a partir de sua relevacircncia uacutetil quanto ignora a inutilidade de toda utilidade A
imprescindibilidade de fazer algo com essa resposta tornando-a eficaz a nossos
problemas passa por cima do fato de que Platatildeo inclusive utilizou-se da poesia Sua
escrita dialoacutegica as referecircncias miacuteticas o fizeram fruto de sua proacutepria criacutetica
Na mesma linha de pensamento sarcaacutestica tambeacutem as instituiccedilotildees por mais
controladoras que sejam natildeo conseguem se livrar completamente da filosofia Quer dizer
o pensamento que se tenta abarcar nunca se esgota de todo Haacute brechas e veredas nem
tudo Nem tudo pode ser encontrado logo nem tudo estaacute perdido Eacute a isso que nos
referimos quando tratamos filosofia como resposta Natildeo eacute um responder a algo
definitivamente mas um postar-se a
Natildeo que a questatildeo do ser natildeo esteja presente Natildeo eacute possiacutevel natildeo estar a falar do
ser do contraacuterio estariacuteamos a falar de quecirc Do natildeo ser Aiacute ele seria ser natildeo Digamos
tratar-se pois de um modo distinto do que eacute ser a saber natildeo enquanto essecircncia
preocupada em identificar as qualidades imutaacuteveis mas com a presenccedila do que eacute mutaacutevel
e do que permanece Apregoa-se que pensar a essecircncia limita e dicotomiza sem perceber
que a identidade esvaziada da questatildeo do ser estaacute mais preocupada em classificar e
adequar do que propriamente em tornar-se presenccedila
Mas eacute tambeacutem uma questatildeo quem eacute quem Natildeo eacute lsquoO que eacute quemrsquo ndash natildeo eacute
uma questatildeo de essecircncia mas de identidade (como quando perguntamos diante
da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos mas natildeo os
seus rostos lsquoQuem eacute quemrsquo ndash Este eacute Kant Aquele eacute Heidegger E este outro
ao lado dele) (NANCY 1991 paacuteg 7 ‒ grifo no original)
Ateacute mesmo faz sentido lidar com as respostas agraves questotildees no modo da identidade
natildeo da essecircncia Podemos crer no que vemos com mais facilidade do que o que natildeo vemos
a princiacutepio Eacute mais faacutecil achar que detemos o controle do que podemos identificar ao
contraacuterio o ser natildeo eacute identificaacutevel embora possa ser aprendido ateacute certo ponto pelas
caracteriacutesticas de um ente poreacutem nunca por inteiro Quem eacute quem eacute questatildeo ndash assim como
para que como quando quanto etc ndash agrave medida que pressupotildeem a possibilidade do
questionamento isto eacute a pergunta pelo ser em todo perguntar o que eacute quem O que eacute
ser O que eacute quem eacute quem
113
Quando a tradiccedilatildeo pela accedilatildeo das estruturas de poder diz o que o ser eacute ou natildeo eacute
ela responde categoricamente agrave questatildeo Natildeo importa o quatildeo bem fundamentada uma
resposta possa ser se ela decide por um caminho ela se arrisca por ele Naturalmente que
estaacute em jogo aqui diversas concepccedilotildees de existecircncia Heidegger por exemplo reconhece
tanto Existenz existecircncia quanto Dasein presenccedila traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante
Schuback Em Dasein se espera resgatar pela palavra o caraacuteter de acontecimento do ser
mesmo aquele manifesto onticamente enquanto existecircncia se adequa mais agrave concepccedilatildeo
tradicional do termo no qual a relaccedilatildeo de ser soacute eacute possiacutevel pela existecircncia ldquoperceberemos
que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da lsquocoisa que existersquo
e de seu modo de existecircnciardquo (JARDIM 1995 paacuteg 15) Dessa forma pensamos que
existir natildeo deixa de ser uma resposta dada pelo ser portanto existir como estar em
identidade com o ser que por isso pode ser pensado Em outras palavras o ser que natildeo
pode ser pensado natildeo eacute no sentido de natildeo existir
εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
Os uacutenicos caminhos da investigaccedilatildeo em que importa pensar Um (aquilo) que
eacute e que (lhe) eacute impossiacutevel natildeo ser eacute a via da Persuasatildeo (por ser companheira
da Verdade) o outro (aquilo) que natildeo eacute e que forccediloso se torna que natildeo exista
esse te declaro eu que eacute uma vereda totalmente indiscerniacutevel pois natildeo poderaacutes
conhecer o que natildeo eacute ndash tal natildeo eacute possiacutevel ndash nem exprimi-lo por palavras
(PARMEcircNIDES apud KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 255)
O que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacute Uma definiccedilatildeo aparentemente simples e que
possibilita a pergunta pela identidade que responde ao certo ou errado Ou isso ou aquilo
traz agrave tona a questatildeo por meio da acomodaccedilatildeo loacutegica Por que natildeo isso e aquilo Quem
disse que tinha de ser cocircmodo que tinha de ser coerente Agraves vezes ao controle foge ateacute a
fuga e precisamos lidar com o sim e o natildeo com o limite que tanto abre possibilidades
quanto encerra-as
Numa hipoacutetese absurda suponha-se que pudeacutessemos expor todas as
possibilidades numa fotografia A pergunta pela identificaccedilatildeo estaria interessada em saber
ldquoqual eacute qualrdquo ldquoquem eacute quemrdquo ou ldquocomo eacute quemrdquo qual caminho tomar quem devo
114
escolher como proceder diante destas escolhas Mal comparando essa eacute a postura da
vontade de controle da resposta que assegura e da mensagem que transmite
De modo decircitico apontariacuteamos esta ou aquela chance de ser na expectativa de
fazer prevalecer nossos desejos Na urgecircncia por uma resposta que atenda nossas
necessidades o proacuteprio ldquoo que eacuterdquo em cada perguntar passa despercebido ndash p ex o que eacute
como o que eacute proceder o que eacute estar diante de o que eacute escolher Questionamentos que agrave
primeira vista natildeo levam a lugar algum e que natildeo precisam ser feitas a todo momento
caso contraacuterio natildeo seria possiacutevel a miacutenima conversa
Se natildeo se confia no chatildeo natildeo eacute possiacutevel sequer dar um passo Alguma crenccedila
alguma confianccedila eacute forccedilosa ainda assim estatildeo presentes em toda resposta certeira
infindas questotildees sem soluccedilotildees apenas encaminhamentos Para cada ser que eacute haacute certo
limite tensional que o define tambeacutem como natildeo ser como indecifraacutevel ou a decifrar no
desdobrar e no responder
A questatildeo da identidade torna-se pois a questatildeo da representaccedilatildeo quando
ignoramos essa parte velada no desvelamento da questatildeo Se na muacutesica natildeo soubeacutessemos
como o arranjo foi composto ainda assim ele deixaria de soar No momento em que
perguntar pela identidade pretende prescindir agrave pergunta pelo ser jmmperguntar pelo
ldquoquemrdquo ldquocomordquo ldquopor quecircrdquo apresenta-se como a medida do real e tudo o que diferir
seraacute de menor importacircncia
Representamos quando a medida de algo se daacute pelo que ele faz produz sua
finalidade a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta em detrimento do que
eacute Basicamente significa dizer que toda existecircncia funcional acontece na representaccedilatildeo
Entatildeo quando se eacute de fato quando o ser eacute presente Tornar-se presenccedila depende da coisa
que existe isto eacute ldquopermite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de
tornar-se presenccedila sem ter que explicar lsquoo quersquo existia antes que lsquoelersquo se tornasse
presenccedilardquo (BIESTA 2013 paacuteg 67 ‒ grifo no original) Poreacutem tornar-se presenccedila natildeo eacute a
coisa que existe natildeo se esgota nela
Para aleacutem do que achamos que as coisas sejam do que acreditamos que queremos
haacute o que natildeo sabiacuteamos que queriacuteamos Aquela outra forma de ser da qual natildeo tiacutenhamos a
menor noccedilatildeo Natildeo se trata de humildade de pensamento ou de postura prudente perante agrave
vida acontece que tornar-se presenccedila tambeacutem natildeo depende da coisa que existe Desse
modo a questatildeo ontoloacutegica natildeo perde sua relevacircncia pois ela diz respeito agrave
115
multiplicidade inerente a cada vontade desejo e existecircncia Ela estaacute presente embora natildeo
se faccedila presenccedila a rigor Eis que se esbarra no tatildeo afamado ser Em outras palavras eacute
pensar o que eacute esses muitos que acontecem τὸ ὂν λέγεται πολλαχῶς eacute a possibilidade de
como produzir do oacutebvio do funcional do uacutetil ou simplesmente o fundamento limitador
e constituidor
34 A resposta do limite
Natildeo tem muito jeito Para sair da mesmice das soluccedilotildees simploacuterias e da resposta
pronta eacute mister esforccedilo A tradiccedilatildeo jaacute estaacute dada As instituiccedilotildees jaacute estatildeo postas A mosca
jaacute estaacute presa no mosqueiro Quando isso tudo natildeo for o bastante esse eacute o momento do
pensamento Para isso que enveredamos por estradas tortuosas e por vezes escolhemos
o caminho desdenhado que assombra entre os arbustos
A saber a resposta e o responder nos mostram muito dessa circunstacircncia na qual
nos instamos Podem indicar tanto uma afinidade com a perpetuaccedilatildeo quanto o empenho
de transformaccedilatildeo tanto se referem ao lugar de fala quanto a quem ou a que se fala Enfim
cada resposta corresponde a uma perspectiva e se relaciona a uma postura de estar no
mundo
Responder ao mundo eacute como estamos no mundo Daiacute se deriva que o mundo
enquanto local de habitaccedilatildeo dos seres se configura pelas nossas respostas ao longo do
tempo Natildeo apenas pois nem tudo o que acontece tem nossa assinatura mas eacute inegaacutevel o
impacto que uma resposta bem dada pode causar em um ambiente propiacutecio Nesse
sentido responder ao mundo eacute responder o mundo ldquoO mundo eacute tudo o que ocorrerdquo
(WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 30 ndash traduccedilatildeo livre) conforme o original ldquoDie Welt ist
alles was der Fall istrdquo Por estarmos no mundo que o respondemos por sermos o mundo
que ele ocorre e nos ocorre em significaccedilotildees
Logo o cuidado com as respostas passa por um cuidado com o mundo Como
cuidar ao responder Cada qual cuida e eacute cuidado pelo empenho do cuidar Isso natildeo deve
ser confundido com zelo no entanto natildeo se afasta de todo Trata-se no mais de que para
realmente cuidar de algo habitamos aquilo a tal ponto que nos constitua Ao responder o
mundo respondemos ao mundo a partir do que somos do mundo
116
Somos na presenccedila do mundo e natildeo em sua posse Queremos que as coisas
aconteccedilam e por vezes controlamos seu fazimento Soacute por vezes mesmo pois a margem
das possibilidades eacute o local da habitaccedilatildeo dos seres nunca completamente imerso nunca
inexoravelmente excluiacutedo Em seu limiar o respondemos e o habitamos e por estar na
borda vislumbramos sua geraccedilatildeo tanto quanto seu falimento o entorno que o define e
definha Daiacute a necessidade de cuidado como quem cuida da terra vir a ser planta
Somente sendo um pouco vegetal somente sendo um pouco camponecircs
Esse cuidado eacute nosso dizer nosso responder Como os dizeres que datildeo diversos
relatos sobre a mesma coisa cada um corresponde como pode Vai o meacutedico e daacute uma
resposta medicinal a um problema de sauacutede vai o advogado e revela a lei que justificou
determinada accedilatildeo vai o professor e se compromete com a educaccedilatildeo de nossos filhos em
nossa ausecircncia Vai tudo isso sem necessariamente retornar agrave proacutepria urgecircncia de
respostas A quem cabe cuidar do responder ldquoO pensador diz o ser O poeta nomeia o
sagradordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) ou seja ldquoDer Denker sagt das Sein Der
Dichter nennt das Heiligerdquo (HEIDEGGER 1955 paacuteg 51)
Natildeo natildeo cabe soacute ao pensador cuidar do responder O mundo eacute responsabilidade
de todos pois todos satildeo fundamentados pelo mundo que somos Ele deixa sua marca na
carne assim como demarcamos o solo com as criaccedilotildees e existecircncia Existe-se e eacute-se de
muitas maneiras Medica-se advoga-se leciona-se Se o pensador estaacute incumbido de
alguma accedilatildeo talvez esteja de agir enquanto ποιεῖν e dizer enquanto λέγειν atentamente
conforme fragmento 73 de Heraacuteclito Isto eacute o pensador eacute aquele imerso no cuidado de
ser e estar no mundo de ser porque estaacute no mundo de ser do mundo que ele eacute
Diz-se o ser responde-o Essa resposta eacute e estaacute no mundo Natildeo encerra a
totalidade mas cerca a possibilidade O limite do responder do pensador diz das cercanias
do ser que possibilita e daacute sentido a todo o resto Por isso ele versa sobre inutilidades
Natildeo porque sejam despreziacuteveis suas colocaccedilotildees mas por natildeo terem a preocupaccedilatildeo
imediata das necessidades e daiacute serem apreciadas com dificuldade Natildeo eacute correta mas eacute
verdadeira natildeo eacute precisa mas duacutebia natildeo eacute contraditoacuteria mas paradoxal Sonolecircncia e
vigiacutelia morte e vida ser e natildeo ser estatildeo no dito do pensador e falam do mundo que nos
encontramos corresponde agraves respostas individuais e tenta conectaacute-las agrave coletividade e
permanecircncia da questatildeo O ser se diz diversamente e cabe ao pensador mostrar como
quem indica o que estaacute acontecendo e ningueacutem tem mais tempo para dar por isso
117
Eacute interessante notar como essa questatildeo temporal eacute vital para compreender o
pensador e todos que se comprometam unicamente com o imediatismo Alguns autores
inclusive resgatam o sentido etimoloacutegico da palavra escola para pensar o tempo algo
como ldquolazer descanso tranquilidaderdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σχολή ndash traduccedilatildeo
livre)100 Essa noccedilatildeo implica em conceber que se tudo for para alguma coisa estaremos
sujeitos agraves respostas dadas agraves pressas Uma linha reta e contiacutenua de causa e consequecircncias
uacuteteis quase que num estado constante e iminente subjugaccedilatildeo do outro na guerra com o
tempo Nesse domiacutenio decide-se limitando para poupar futuros questionamentos assim
basta aplicar e seguir adiante sempre adiante em evoluccedilatildeo sem fim
De fato eu queria aprofundar a criacutetica (no sentido de Kant) da razatildeo erudita
ateacute ao ponto em que os questionamentos deixam em geral intocado e tentar
explicitar os pressupostos inscritos na situaccedilatildeo de skholegrave tempo livre e
liberado das urgecircncias do mundo que torna possiacutevel uma relaccedilatildeo livre e
liberada com tais urgecircncias e com o proacuteprio mundo (BOURDIEU 2001 paacuteg
9)
Embora a tradiccedilatildeo escolar tenha se esforccedilado por desvincular o tempo dessa
perspectiva ldquoescola ndash como tempo livre na qual o mundo eacute compartilhado e crianccedilas ou
jovens tecircm a experiecircncia de serem capazes de comeccedilar ndash precisa ser criadardquo
(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 113 ndash traduccedilatildeo livre)101 essa atitude foi
frustrada pela sua mesma origem Isso porque o proacuteprio ato de pensar necessita de uma
medida de quietude alguma viela na rodovia da exatidatildeo para a reflexatildeo criacutetica enfim
para reafirmar o compromisso com o caminho trilhado
Conveacutem ressaltar que natildeo se refere a encastelar-se na torre de marfim da erudiccedilatildeo
dos eleitos Eacute patente que haveraacute teacutecnica conhecimentos teoacutericos e praacuteticos que
dependeratildeo do empenho de seus executores mas principalmente eacute uma questatildeo de
postura Dispor-se perante o ser para ouvi-lo e assim dizecirc-lo em resposta nomeaacute-lo em
concordacircncia soacute eacute possiacutevel na confianccedila em abrir matildeo da seguranccedila da mensagem do
tempo que urge por uma resposta objetiva e pragmaacutetica ou seja ldquose a sociedade eacute para
100 Leisure rest ease Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dsxolh
2Fgt Acesso em 30 ago 2017 101 School ndash as free time in which the world is shared and children or young people have the experience of
being able to begin ndash must be created
118
ser renovada precisa se libertar e aceitar o risco de confiar a responsabilidade pela sua
renovaccedilatildeo a figuras ndash professores ndash isentas da obrigaccedilatildeo de produzir resultadosrdquo
(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 129)102
Natildeo somente os professores mas eacute dever de todos empenharem-se vez por outra
no penhor de pensar o haacutebito Seraacute que eu devo comer isso sempre fazer isso sempre ser
assim sempre Certamente que eacute quase impossiacutevel ensinar algueacutem a pensar sem
doutrinar Fazer com que se pense autonomamente Decerto eacute um ato de ousadia Agora
natildeo daacute para saber o que eacute possiacutevel sem arriscar abraccedilando o ilimitado o limitado e o
limitaacutevel em seu limiar agrave beira de ser e natildeo ser
Ao pensador cabe dizer o ser Seu compromisso eacute com a questatildeo isto eacute pensar o
haacutebito do pensamento Sua decisatildeo eacute pelo risco Diferente de um soldado cuja proacutepria
vida estaacute em jogo diferente de um meacutedico cuja vida do paciente estaacute em suas matildeos o
pensador segue sempre pela encruzilhada Seus caminhos pactuam com o sagrado e o
profano com o inuacutetil e por incriacutevel que parece com a extrema necessidade de natildeo
permitir a desgraccedila do pensamento Qualquer coisa por coisa qualquer lugares comuns
opiniotildees fechadas respostas banais natildeo
O pensador fundamentalmente pensa Em seu dizer o ser se manifesta e a
existecircncia jaacute conhecida e gasta renova seu sentido A tradiccedilatildeo eacute ainda a mesma mas
tambeacutem natildeo eacute cria-se ousa-se criar crecirc que cria e eacute essa crenccedila que o motiva Esforccedilar-
se por um pensamento digno de ser pensado eacute o miacutenimo e o maacuteximo que qualquer
pensador pode crer
35 Dois lados da mesma moeda
351 A resposta que natildeo soluciona
102 If society is to be renewed it must free itself and hazard to entrust responsibility for this renewal to
figures ndash teachers ndash exempted from the obligation to produce results
119
Uma resposta que natildeo se fie apenas nas soluccedilotildees soacute por serem as tradicionais mas
que decirc tempo ao tempo de ldquorepor recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009a Resposta)
a questatildeo da tradiccedilatildeo O dizer do pensador natildeo repete o ser natildeo leva o ser agravequeles que
natildeo tecircm acesso a ele Natildeo soacute eacute leviano achar isso como natildeo condiz com o caraacuteter
inegociaacutevel do que eacute O ser natildeo barganha nem o dito troca favores por benesses natildeo
compra natildeo vende fiduacutecias
Dizer como quem daacute uma resposta colocando novamente o ser isto eacute responde e
diz o que jaacute estaacute posto ratificando-o presentificando-o manifestando-o em sua
singularidade o que se eacute em diaacutelogo com sua multiplicidade o que se pode ser A
resposta natildeo vem atender agraves preces pela resoluccedilatildeo novamente aqui se coloca o que a
princiacutepio natildeo se cala a questatildeo Numa dialeacutetica ocircntica o pensador diz o ser agrave medida que
ele se cala para ouvir a fala do ser que natildeo se restringe aos discursos agraves palavras de
ordem aos comandos mas desde isso tudo laacute tambeacutem se pronuncia o canto o hino a
ladainha o carpido ou seja o rito
Dizer como quem responde Eacute interessante notar que a palavra resposta natildeo eacute
substantivo derivado de responder A histoacuteria da liacutengua uniu duas palavras distintas num
uso muito semelhante Essa origem entretanto daacute uma pequena amostra da plurivalecircncia
da linguagem Resposta nos remete ao latim reposita ou reposta particiacutepio passado
feminino de repono (GLARE 1968 paacutegs 1620-1621) prefixaccedilatildeo de pono pela partiacutecula
re- que indica retrocesso e oposiccedilatildeo mas tambeacutem repeticcedilatildeo e reforccedilo (HOUAISS
2009b)
Por sua vez pono eacute uma corruptela de po- + sino gt pozno prefixaccedilatildeo pela
partiacutecula aspectual indicando que a accedilatildeo atingiu seu fim (ERNOUT MEILLET 2001
paacuteg 520) Essa eacute uma diferenciaccedilatildeo conhecida nossa Por exemplo em inglecircs temos os
verbos to lay e to lie por deitado e estar deitado respectivamente (DICTIONARY
Lay)103 e em alematildeo stellen e stehen pocircr e estar de peacute (LANGENSCHEIDT 2001 paacutegs
1082-1083)
Seja por meio gramatical seja lexical o significado dos verbos eacute o mesmo o que
muda eacute como a accedilatildeo verbal se processa Nas situaccedilotildees acima todas se referem a estar
cuja diferenccedila ocorre entre colocar algo em determinado estado para laacute permanecer e
103 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowselays=tgt Acesso em 02 set 2017
120
estar em certo estado e aqui permanecer Concomitantemente sino se afina com deixar
algo ou algueacutem sozinho deixar ir deixar uma coisa intocada permitir que algo aconteccedila
(GLARE 1968 paacuteg 1770) ficando a cargo de pono e seu particiacutepio situs o sentido mais
fiacutesico da palavra (ERNOUT MEILLET 2001 paacuteg 628) Em portuguecircs vamos ter as
palavras situaccedilatildeo posiccedilatildeo assento siacutetio etc todas se apresentando como o que jaacute foi
colocado ou sempre assim esteve e laacute fica ou se almeja esse fim Sino pois eacute o estado de
solidatildeo e permanecircncia em que algo eacute deixado constituindo assim uma localidade
A solitude emocional eacute uma solidatildeo espacial Estar soacute natildeo como um ato de
desespero ou anguacutestia pesarosa e negativa mas parte essencial da constituiccedilatildeo dos seres
Estar como parte integrante de ser espaccedilo determinado no tempo espacialidade soacute por
sua singularidade que define e se define perante as demais solidotildees Desse modo eacute
estabelecida a relaccedilatildeo com a palavra resposta Sinere eacute posicionar-se em solitude situs
sua posiccedilatildeo no tempo e no ser ponene enquanto pocircr em uma posiccedilatildeo ir ao encontro do
cerco de existecircncia que delimita e funda uma localidade no mundo e por fim reponere
como o reposicionamento dessa localidade movimento que a ratifica e daacute vigor agrave posiccedilatildeo
situada
A questatildeo eacute Por isso ela estaacute posta e ao nos postarmos diante dela a fim de
adentrarmos sua localidade recolocamo-la agrave medida que podemos agrave medida que
podemos habitar sua habitaccedilatildeo Resposta aleacutem de soluccedilatildeo para os problemas tambeacutem eacute
ao tomarmos aquele desvio do oacutebvio e do imediato recolocaccedilatildeo da questatildeo Para isso eacute
fundamental alguma liberdade com o tempo e certa dose de rompimento da temporalidade
vigente
Contemporaneamente tem-se um conceito que abarca tal ruptura como uma
profanaccedilatildeo Pensando nisso temporalmente temos um tempo que se desprende dos
dispositivos que dizem como a temporalidade deve ser ldquoSe consagrar (sacrare) era o
termo que designava a saiacuteda das coisas da esfera do direito humano profanar por sua
vez significava restituiacute-las ao livre uso dos homensrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg 65) Os
usos da hora dos minutos e dos segundos satildeo problematizados a saber desvinculados do
sentido usual o que ele chama de sagrado para pode adquirir uma nova experimentaccedilatildeo
tornar-se puacuteblica mais uma vez ldquoProfanar natildeo significa simplesmente abolir e cancelar
as separaccedilotildees mas fazer delas um uso novo a brincar com elasrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg
75)
121
Por outro lado essa aparente crenccedila no sagrado natildeo deixa de estar vinculada agrave
proacutepria noccedilatildeo que temos do tempo Diz-se gastar perder tempo para dar uma resposta
que fuja do esperado Desperdiccedila-o ao tentar refazer os passos como se caminhar natildeo
fosse jaacute outro caminho igualmente dotado de verdade A sacralidade estanque nos remete
ao dogma e deixa de lado o maravilhamento e assombro que o mito e o rito nos acometem
Ou seja suspende-se a noccedilatildeo das horas e insere-nos numa nova temporalidade numa
nova localidade por jogar com o que somos e natildeo somos
Assim tambeacutem o profano natildeo eacute tatildeo fluido assim pois natildeo haacute nada mais comum
em tempos de crise como a vontade de seguranccedila o dia a dia os costumes dos mais
variados haacutebitos agrave nossa casa tudo isso comum a noacutes sem a deferecircncia sacra com o calo
do uso corrente e que assim como o sagrado nos define e delimita Nesse sentido nem
tanto o tempo necessita urgentemente perder sacralidade assim como natildeo precisa perder
mundanidade Haacute de se pensar uma alternativa que congregue o paradoxo das nossas
experiecircncias
Os filoacutelogos natildeo cansam de ficar surpreendidos com o duacuteplice e contraditoacuterio
significado que o verbo profanare parece ter em latim por um lado tornar
profano por outro ndash em acepccedilatildeo atestada soacute em poucos casos ndash sacrificar
Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulaacuterio do sagrado
como tal adjetivo sacer com um contrassenso que Freud jaacute havia percebido
significaria tanto lsquoaugusto consagrado aos deusesrsquo como lsquomaldito excluiacutedo
da comunidadersquo A ambiguidade que aqui estaacute em jogo natildeo deve apenas a um
equiacutevoco mas eacute por assim dizer constitutiva da operaccedilatildeo profanatoacuteria (ou
daquela inversa da consagraccedilatildeo) Enquanto se referem a um mesmo objeto
que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano tais operaccedilotildees
devem prestar contas cada vez a algo parecido com um resiacuteduo de
profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente
em todo objeto profanado (AGAMBEN 2007 paacuteg 68)
352 Temor sagrado
Eacute paradoxal essa relaccedilatildeo entre sagrado e profano entre a retidatildeo das soluccedilotildees e o
entroncamento da coisa colocada novamente em resposta Isso porque a linguagem eacute um
paradoxo lar de absurdos de certezas dos homens e da verdade Ela responde a nossos
anseios temporais e nos tira as palavras no momento crucial Ao tentar dar uma resposta
no tempo estamos agrave mercecirc dele e de sua idiossincrasia A fim de compreender melhor
122
como se processa essa dinacircmica de responder na e agrave temporalidade conveacutem delongar-se
em sua instacircncia sagrada e profana
Acima Agamben se refere a Freud Num de seus artigos intitulado Totem e tabu
o psicanalista reflete sobre um importante conceito de tabu Ele comeccedila referindo-se agrave
origem polineacutesia do termo cujo significado versa ldquoem dois sentidos contraacuterios Para noacutes
significa por um lado lsquosagradorsquo lsquoconsagradorsquo e por outro lsquomisteriosorsquo lsquoperigosorsquo
lsquoproibidorsquo lsquoimpurorsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 16) Ideias semelhantes podem ser vistas neste
dicionaacuterio de maori refazendo o percurso histoacuterico da palavra ldquoser sagrado proibido
restrito afastado sobre a proteccedilatildeo de atua [os deuses e os ancentrais]rdquo (MOORFIELD
Tapu ndash traduccedilatildeo livre)104
As significaccedilotildees de tabu que utilizamos hoje se afastam do universo miacutetico e se
aproximam do moral No dicionaacuterio podemos encontrar seis entradas a primeira refere-
se agrave instituiccedilatildeo religiosa conferindo sacralidade a seres objetos ou lugares
concomitantemente proibindo qualquer contato com eles sob pena de castigo divino
Todas as demais entradas trazem a ideia de proibiccedilatildeo ora interdiccedilatildeo religiosa ora
cultural ou imposta por costume social ou como medida protetora Vejamos alguns
exemplos ldquoEm Samoa distribuiacutea-se todo o pescado pelo chatildeo e ele era lavado em aacutegua
doce para livraacute-lo do taburdquo ldquoBeltrano eacute uma pessoa que vive presa a tabusrdquo e ldquoOs tabus
convencionais da era vitorianardquo (HOUAISS 2009a Tabu)
Essa concepccedilatildeo ratifica as restriccedilotildees imposta agrave educaccedilatildeo pelos pais pela
sociedade e pelos educadores a fim de zelar pela estrutura vigente temendo por seus
filhos do sistema Tambeacutem reforccedila o sentido de separaccedilatildeo do tempo produtivo
controlaacutevel daquele que se perde em filosofias em tentativa e erro e na experienciaccedilatildeo
demorada do mundo Enfim perdemos a proteccedilatildeo das divindades e de nosso passado a
saber do sagrado que nos definia pela tradiccedilatildeo e deixamos o lugar vago entrada e saiacuteda
de novas ideologias que ao piscar dos olhos envelhecem em sua utilidade
[] o caacutelculo demonstra toda a eficiecircncia natildeo perde tempo com a espera do
inesperado onde natildeo haacute tempo a perder com interpretaccedilotildees onde natildeo
interferem as transferecircncias da anguacutestia [] a utilizaccedilatildeo dos modelos de
identificaccedilatildeo no universo dos fatos inventa espiacuteritos e por muito tempo o ceacuteu
foi povoado de seres metafiacutesicos como colonialismo capitalismo
imperialismo comunismo (LEAtildeO 1977 paacuteg 67)
104 Be sacred prohibited restricted set apart forbidden under atua protection Disponiacutevel em
lthttpmaoridictionaryconzword7504gt Acesso em 04 set 2017
123
Para cada situaccedilatildeo um limite apropriado tanto aqueles louvaacuteveis a serem
almejados quanto os despreziacuteveis a serem execrados e propriamente a esses uacuteltimos
chamariacuteamos de tabus Determinados assuntos natildeo devem ser mencionados Na exceccedilatildeo
das exceccedilotildees quando se precisar tocar no assunto que o toque seja delicado pois eacute toacutepico
sensiacutevel ou que seja riacutespido pois eacute passiacutevel de reprovaccedilatildeo Em ambas as circunstacircncias
preza-se pela brevidade discursiva jaacute que natildeo se deve falar de tal coisa chamariz de mau-
agouro
Com o tempo aprende-se a ignorar aquilo a que natildeo conseguimos dar a devida
atenccedilatildeo ateacute que se cria o haacutebito a tradiccedilatildeo da seguranccedila e do conforto Ao natildeo mencionaacute-
lo natildeo o tornamos presenccedila mas ele o sagrado e o profano estatildeo presentes queremos
isso ou natildeo Deixamos subentendida a pujanccedila posta pelo tema e tememos pelos
descontroles que dali possam se originar num ambiente controlado A existecircncia dos tabus
da tradiccedilatildeo surge concomitantemente agrave tradiccedilatildeo dos tabus mantenedores de um status
quo
Para responder o que eacute o tabu precisaremos pensaacute-lo Um problema com isso estaacute
pois no empecilho moral que eacute pensar sobre um tabu No geral evita-se dispor a respeito
de tal tema em falar sobre ele quanto mais com ou a partir dele Eacute difiacutecil dizer jaacute que no
dito somos convidados a secirc-lo para pensaacute-lo quando o pensamos aproximamo-nos tanto
dele que por fim incorremos em delito ou seja incorremos no proacuteprio tabu ldquolsquoA violaccedilatildeo
de um tabu transforma o proacuteprio transgressor em tabu ()rsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 17)
Esse encontro nos deixa desconfortaacuteveis moralmente estranhos ateacute que natildeo nos
reconhecemos no que nos transformamos
Dizer o ser tem seu risco e muitas vezes o tabu eacute o que natildeo queremos ser Aquilo
que natildeo queremos que seja Ainda que haja uma relativizaccedilatildeo imensa entre certo ou
errado algumas posturas estatildeo tatildeo enraizadas que tendemos a apenas passaacute-las adiante
erigindo praticamente uma cultura do bem e uma do mal daquilo que compreendemos
como mau e bom Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais
ambientes para coibir e incentivar tal e tal comportamento a ponto de se achar terriacutevel
pensar o contraacuterio
124
Os homens105 que incorrem em tabu satildeo estes que se transitam no limiar de uma
existecircncia seja social seja individual A ambivalecircncia na qual habitam torna-os notaacuteveis
negativa ou positivamente isto eacute perceptiacuteveis em meio agrave gama das mesmas decisotildees Da
notabilidade surgem as ponderaccedilotildees reprovaccedilotildees condenaccedilotildees exaltaccedilotildees a saber os
demais passam a responder a eles Acaba que por requisitarem respostas as pessoas natildeo
soacute correspondem como de algum modo satildeo respondidas por esse tabu Ou por partir de
um monstro ou por se originar de um heroacutei o tabu enquanto um misteacuterio parcialmente
acessado revela uma resposta que tanto inspira atitudes como pode servir de modelo de
comportamento No caso essa concepccedilatildeo moralizaria o tabu trabalhando por meio de
paradigmas para preservar um modus operandi um know how de como se pensar o real
[] qualquer um que faz o que eacute proibido isto eacute que viola o tabu se torna ele
proacuteprio tabu Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar natildeo somente
a uma pessoa que fez o que eacute proibido como tambeacutem a pessoas em estados
especiacuteficos aos proacuteprios estados bem como objetos impessoais Qual pode
ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condiccedilotildees
diferentes Soacute pode ser uma coisa a qualidade de excitar a ambivalecircncia dos
homens e de tentaacute-los a transgredir a proibiccedilatildeo
Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa
qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo por que se lhe deve
permitir fazer o que eacute proibido a outros Assim ele eacute verdadeiramente
contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitaccedilatildeo e por esse
motivo ele proacuteprio deve ser evitado (FREUD 2006 paacuteg 25)
Os limites nossa constituiccedilatildeo satildeo tanto sagrados quanto profanos E permeando
as duas instacircncias no limiar habita o ocultamento Natildeo sabemos nossa limitaccedilatildeo ateacute
sermos tentados por ela e arriscarmo-nos em sua borda Quando na interpretaccedilatildeo de
Freud das ideias de Wundt ele disse que ldquoEsse poder [tabu] estaacute ligado a todos os
indiviacuteduos especiais [] a todos os estados excepcionais [] e a todas as coisas
misteriosas como a doenccedila e a morte o que estaacute associado a elas atraveacutes do seu poder de
infecccedilatildeo ou contaacutegiordquo (FREUD 2006 paacuteg 18) e que ldquoAssim os rapazes satildeo tabu em
suas cerimocircnias de iniciaccedilatildeo as mulheres durante a menstruaccedilatildeo e imediatamente apoacutes
o parto assim como os receacutem-nascidos as pessoas enfermas e acima de tudo os mortosrdquo
(FREUD 2006 paacuteg 19) ele nos convida a pensar essa caracteriacutestica de convivecircncia com
o que natildeo sabemos este democircnio incontrolaacutevel e portanto temiacutevel
105 Cabe ressalvar que para os povos antigos da polineacutesia o tabu natildeo eacute uma condiccedilatildeo exclusivamente
humana mas tambeacutem eacute ligado a animais manifestaccedilotildees do clima frutas aacutervores etc
125
Simultaneamente tabu eacute o sagrado algo sempre presente Pelo menos era para
muitos povos antigos que experienciavam a tradiccedilatildeo como a presenccedila da ancestralidade
ou seja eles mesmos seus avoacutes seu passado e seu fundamento Por eles os deuses se
afirmavam como a primeira ascendecircncia genealoacutegica seu parente mais antigo isto eacute o
que funda uma famiacutelia consequentemente um povo Os maoris tecircm na palavra atua o
duplo sentido de deus e ancestral deixando transparecer um passado ativo respondente
nas pessoas e palco ainda de acontecimentos o que difere radicalmente do tempo
estanque e portador de mensagens estanques com o qual estamos acostumados a lidar
contemporaneamente
1 (substantivo) antepassado com influecircncia contiacutenua deus democircnio ser
sobrenatural deidade fantasma objeto de fruto de supersticcedilatildeo ser estranho ndash
embora muitas vezes traduzido como lsquodeusrsquo e agora tambeacutem usado para o Deus
cristatildeo isso eacute um equiacutevoco do significado real Muitos maori traccedilam sua
ancestralidade a partir de atua em sua whakapapa [genealogia (MOORFIELD
Whakapapa)106 literalmente lsquoo fundamento que acontece (MOORFIELD
Whaka107 Papa108)] e satildeo considerados ancestrais com influecircncia em
determinados domiacutenios Estes atua tambeacutem eram uma forma de racionalizar e
perceber o mundo Normalmente invisiacutevel atua pode ter representaccedilotildees
visiacuteveis (MOORFIELD Atua ndash traduccedilatildeo livre)109
353 O que responde o sagrado
Cada resposta cada ensinamento cada aprendizagem estaacute vinculada a uma
tradiccedilatildeo mas cada pessoa objeto animal ou seja ente eacute em si jaacute uma tradiccedilatildeo Somos
106 Disponiacutevel em
lthttpmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakapapaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017 107 Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakaampsearc
h=gt Acesso em 06 set 2017 108 Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=papaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017 109 1 (noun) ancestor with continuing influence god demon supernatural being deity ghost object of
superstitious regard strange being - although often translated as ldquogodrdquo and now also used for the
Christian God this is a misconception of the real meaning Many Māori trace their ancestry from atua in
their whakapapa and they are regarded as ancestors with influence over particular domains These atua
also were a way of rationalising and perceiving the world Normally invisible atua may have visible
representations Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=atuaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017
126
o que pode haver de mais tradicional de noacutes mesmos isso porque nos desdobramos numa
histoacuteria presente que se atualiza no mundo a partir das possiblidades de ser sua
ancestralidade sacra Nesse sentido podemos aqui traccedilar um paralelo com a educaccedilatildeo
como apropriar-se do que eacute proacuteprio o que jaacute somos o que fomos mas ainda vige e o que
seremos pela ousadia de dar um passo adiante criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Dessa forma eacute
possiacutevel compreender de que trata o sagrado sem por isso abrir matildeo de seu caraacuteter de
misteacuterio perene
Contudo natildeo eacute assim que o sagrado se manifesta contemporaneamente mas sob
a eacutegide da religiatildeo e da descrenccedila enquanto portador de inverdades De um modo geral
principalmente no Ocidente a atualidade natildeo crecirc no sagrado como por exemplo na
ciecircncia na miacutedia e na ciecircncia O proacuteprio termo tabu que ldquodenota tudordquo (FREUD 2006
paacuteg 16) permite um outro Qual o outro de tudo mdash Nada Para Freud (2006 paacuteg 16)
o inverso de tabu eacute noa que diz do que eacute comum ordinaacuterio e geralmente acessiacutevel Essa
concepccedilatildeo daacute a entender que somos ordinaacuterios e extraordinaacuterios ao mesmo tempo
1 (partiacutecula) apenas simplesmente ateacute ao acaso ociosamente
infrutiferamente em vatildeo assim que - uma partiacutecula que segue imediatamente
apoacutes a palavra a que se relaciona Indica uma ausecircncia de limitaccedilotildees ou
condiccedilotildees
2 (estativo) estar livre das influecircncias de tapu ordinaacuterio sem restriccedilotildees
vaacutecuo oco (MOORFIELD Noa ndash traduccedilatildeo livre)110
Dizer tabu de tudo estaacute para dizer sagrado de tudo dessa sacralidade profana e
misteriosa Em toda localidade haacute um deus dormindo Do simples da pedra que a crianccedila
brinca agraves grandes obras da humanidade o tempo sagrado natildeo suspende o tempo comum
ao contraacuterio chama atenccedilatildeo agrave fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada
acontece A correria da obrigaccedilatildeo tende a achar que algumas coisas natildeo estatildeo dignas dela
criando juiacutezos de valor certo ou errada da verdade das manifestaccedilotildees
Paralelamente ao dizer do pensador o artista nomeia (HEIDEGGER 1955 paacuteg
51) Dos ruiacutedos faz-se muacutesica das cores pintura ldquopensamento e linguagem satildeo para o
artista instrumentos de uma arte Viacutecio e virtude satildeo para o artista materiais para uma
110 1 (particle) only just merely quite until at random idly fruitlessly in vain as soon as - a particle
following immediately after the word it relates to Denotes an absence of limitations or conditions
2 (stative) be free from the extensions of tapu ordinary unrestricted void Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=noaampsearch=
gt Acesso em 07 set 2017
127
arterdquo (WILDE 1981 paacuteg 7) O poeta nomeia o sagrado Nomear norteia o nume O norte
do sagrado conduz agrave consagraccedilatildeo do mundo e agrave autosagraccedilatildeo no sentido de auscultar no
ordinaacuterio o extraordinaacuterio em repouso Uma resposta se forma deforma a realidade antes
sem nome sem senso de direccedilatildeo ao divino Nomear cerceia nas cercanias entoa o limite
fundador do nome o ancestral ainda presente
O tabu eacute o limite que vigora desde sempre fundamento que delimita Conviacutevio
diaacuterio de todos os homens mas mateacuteria-prima aos poetas e pensadores De modo que o
incorrer em tabu ou ocasiona em decadecircncia e posterior destruiccedilatildeo ou alarga os limites
desvelando o velado A parede da morada do ser eacute rompida ou a casa cai ou ganha-se
uma nova sala e um heroacutei ou um monstro arrombador de portas O sagrado inicia o que o
tabu limita ambos datildeo sentido ao mundo O comeccedilo eacute labiriacutentico que ldquopode se configurar
abertura significa espaccedilo-temporalidade que possa permitir e reunir tudordquo (JARDIM
2000 paacuteg 420)
O limite precisa obrar precisa fazer sentido tem que ser concreto para o limitado
Natildeo eacute arbitraacuterio ele eacute dado pelo real em suas diversas circunstacircncias A arbitrariedade do
limite confecciona barreiras invisiacuteveis gerando colocaccedilotildees muito honestas como quem
traccedilaraacute as barreiras e como mantecirc-las quais os modelos a serem seguidos e evitados para
manter a barreira invisiacutevel O limite eacute necessariamente uma barreira visiacutevel ou melhor
uma localidade que encerra as possibilidades do ser A partir da definiccedilatildeo heideggeriana
do fim no caso da Filosofia fica expliacutecito o finito enquanto a plenitude natildeo mero
esgotamento e enclausuramento do possiacutevel
O antigo significado de nossa palavra lsquofimrsquo (Ende) eacute o mesmo que o da palavra
ldquolugarrdquo (Ort) lsquode um fim a outrorsquo quer dizer lsquode um lugar a outrorsquo O fim da
Filosofia eacute o lugar eacute aquilo e em que se reuacutene o todo de sua histoacuteria em sua
extrema possibilidade Fim como acabamento quer dizer esta reuniatildeo
(HEIDEGGER 1979d paacuteg 72)
Agora como saber se ao quebrar a parede a casa permaneceraacute Soacute agrave medida de
como respondemos agraves questotildees saberemos o que sobraraacute de noacutes Natildeo eacute algo soacute para
poetas e pensadores decerto mas eles estatildeo sempre proacuteximos indicando os limites
provocando-os contando a histoacuteria de seus desbravadores
Sobre o que cabe a cada um haacute um relato de cultura antiga dos maori que dizia
que o chefe da tribo natildeo soprava o fogo com a boca para natildeo transmitir o sagrado agrave carne
128
cozida e matar quem a comesse transformando em chefe quem chefe natildeo era (FREUD
2006 paacuteg 22) Claro que isso tambeacutem poderia ocasionar num novo chefe Isto conflita
com a concepccedilatildeo de Freud de os homens se sentirem tentados Dentro desta loacutegica do
controle ele soacute pode ver como tentaccedilatildeo o que os antigos viam como presenccedila (qualquer
um que incorre em tabu eacute tabu) Tabu natildeo eacute apenas um exemplo para ser evitado e
adorado Quem eacute rei sempre foi rei Quem seraacute rei sempre foi rei Outro que tentasse ser
rei alargaria seu ser para aleacutem de seu proacuteprio ocasionando no fim para aleacutem da finitude
cegueira paralisia ou morte
Se consigo comer a carne em tabu do liacuteder se consigo encontrar o Graal ou tirar
a espada da pedra natildeo importa pois soacute consigo na medida em que jaacute sou a possibilidade
de tirar a espada da pedra Trata-se de destino natildeo de vontade Trata-se de apropriar-se
do que eacute proacuteprio natildeo de tentar ser algo que natildeo somos Trata-se de achar o que natildeo
podemos perder natildeo de possuir o que jamais podemos ter
Respondemos como quem casa ser e ente linguagem e liacutengua sagrado e profano
Concerne arriscar a medida ao diaacutelogo e agrave tensatildeo que se faz presenccedila Isso nos remete agrave
etimologia de responder como assegurar novamente seu compromisso com a questatildeo
Distinto de resposta responder vem do latim respondeo cujo significado se assemelha
muito ao sentido moderno da palavra (HOUAISS 2009a Responder)
Todavia vimos que haacute muito mais nas repostas do que crecirc nossa vatilde filosofia E jaacute
em latim podiacuteamos encontrar o verbo que acompanhado de re descambou em responder
Esse verbo nos falava de outra postura perante o mundo mas conhecida nossa ldquo1
Comprometer-se noivar 4 Prometer ou afirmar solenemente dar a palavra sobre dar
uma garantia derdquo (GLARE 1968 paacuteg 1809 ndash traduccedilatildeo livre)111 Do particiacutepio passado
de spondeo sponsus temos em portuguecircs esposo esposa e esponsais A relaccedilatildeo entre
casamento e responder daacute-se no compromisso firmado no sagrado reacutedeas cavalo e
cavaleiro da carruagem dos seres Em concoacuterdia entre o limite e o ilimitado esposamos
na localidade onde habita a questatildeo e ratificamos nosso compromisso com ela
Ainda que nem todo homem seja poeta ou pensador todos estatildeo sujeitos ao
questionamento Todos em alguma medida reafirmam seu compromisso com o
111 1 To give a pledge or under taking 4 To promise or asserts solemnly give onersquos word about give a
assurance of
129
questionar O sagrado natildeo eacute posse de ningueacutem sua natureza eacute tatildeo extraordinaacuteria quanto
gregaacuteria e fundadora dos limites
[] Eacute deus desconhecido
Ele aparece como ceacuteu Acredito mais
que sejam assim Eacute a medida dos homens
Cheio de meacuteritos mas poeticamente
o homem habita esta terra [] (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacutegs
256-257 ndash traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo)112
Num paralelo mitoloacutegico Iacutecaro natildeo se satisfaz em sair do labirinto mas leva-o
aonde quer que vaacute (JARDIM 2000 paacuteg 424) Natildeo eacute uma decisatildeo sua natildeo eacute uma
adequaccedilatildeo a um modelo Sua proacutepria praacutetica define quem ele eacute uma decisatildeo do real Sua
desmedida incorrer em tabu eacute a proacutepria condiccedilatildeo heroica e monstruosa seu fim sua
plenitude
Em sua correspondente grega spondeo aparece como σπένδω com um sentido
parecido com um sentido digamos mais concreto Em vez de circunscrever o
compromisso ele diz do ato que o precede ldquofazer uma oferenda liacutequida (porque antes de
beber o vinho uma porccedilatildeo foi derramada na mesa no coraccedilatildeo ou no altar) [] fazer
libaccedilotildeesrdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σπένδω ndash traduccedilatildeo livre)113 aquele gole para o
santo que a cultura popular tanto conhece
Seja pela muacutesica na meacutetrica espondeu seja pelo vinho cor de sangue vertido agrave
terra respondemos em mutiratildeo o que o mito evocava em palavra e rito A cada resposta
em compromisso ratificado com a localidade mais solitaacuteria responde-se com a bagagem
da tradiccedilatildeo e com a parte que nos cabe nosso proacuteprio Assim o tabu concerne a palavra
que nos forma e enforma apropriaccedilatildeo nomeada pelo poeta dito pelo pensador o sagrado
que eacute sendo Neste sentido poeacutetico e mitologicamente o homem habita pois em casa que
eacute tabu as coisas tecircm memoacuteria a fala que natildeo cessa em lembranccedila mas permanece a dizer
no tempo
112 [] Ist unbekannt Gott Ist er offenbarwie der Himmel Dieses Glaubrsquoich eher Der Mensch Maas
istrsquos Voll Verdienst doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde [] 113 make a drink-offering (because before drinking wine a portion was poured on the table hearth or altar)
[hellip] make libations Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dspe2
Fndwgt Acesso em 08 set 2017
130
O mito que eacute tabu nomeia o sagrado agrave medida que se escuta a fala do tempo O
que eacute o sagrado senatildeo o proacuteprio do tempo a presenccedila do presente uma teoria fundamental
do real mdash O fundamento da casa o que origina e permite a permanecircncia do originaacuterio
na plenitude da habitaccedilatildeo Trazer para extraordinaacuterio a fala do comum esquecido e ao
banal o maravilhoso que natildeo se escuta eis talvez um belo sentido para um ensino poeacutetico
131
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Natildeo basta definir poeacutetica para falar de uma educaccedilatildeo poeacutetica Quando se firmou
o compromisso de discutir sobre o ensino e a filosofia optou-se por uma discussatildeo que
se desse de modo poeacutetico tornando uma fala sobre algo um dito em conjunto com alguma
coisa Promoveu-se pois um diaacutelogo com as disciplinas em questatildeo poeticamente Nesse
vieacutes a mera definiccedilatildeo fugiria da perspectiva esteacutetico-filosoacutefica e estaria aqueacutem do ofiacutecio
de reunir no ato de ensinar o dizer do filoacutesofo e o nomear do poeta
ldquoPoeticamente o homem habitardquo (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacuteg
257) eacute quase um lema versa o leme deste barco Natildeo se trata de reconceituar o ensino eacute
preciso voltar a ensinar pela primeira vez natildeo se trata de fazer histoacuteria da filosofia apenas
mas de tambeacutem filosofar sua histoacuteria transgredindo a mensagem da tradiccedilatildeo ao mesmo
tempo em que se presta a ela a devida homenagem Habitar de modo poeacutetico eacute natildeo deixar
as linhas do pensamento serem declamadas prosaicamente
Fiz de mim o que natildeo soube
E o que podia fazer de mim natildeo o fiz
O dominoacute que vesti era errado
Conheceram-me logo por quem natildeo era e natildeo desmenti e perdi-me
Quando quis tirar a maacutescara
Estava pegada agrave cara
Quando a tirei e me vi ao espelho
Jaacute tinha envelhecido
Estava becircbado jaacute natildeo sabia vestir o dominoacute que natildeo tinha tirado
Deitei fora a maacutescara e dormi no vestiaacuterio
Como um catildeo tolerado pela gerecircncia
Por ser inofensivo
E vou escrever esta histoacuteria para provar que sou sublime (PESSOA 1997 paacuteg
124)
Naturalmente que estamos cheios de viacutecios Cheios de costumes acostumados e
encostados no haacutebito de se ensinar algo e de como encarar a filosofia Essa forma de
ensino na qual nos encontramos tem se mostrado desgastada e passiacutevel de incisivas
criacuteticas no que concerne a formar cidadatildeos pessoas mais humanas e em uacuteltima instacircncia
mais felizes Isso tudo eacute um ponto de interrogaccedilatildeo quanto agrave eficiecircncia Entretanto no que
diz respeito ao consumismo e agrave adesatildeo a uma loacutegica de mercado desenvolvimentista e
tecnocrata a educaccedilatildeo contemporacircnea de modo geral apresenta-se muito eficaz
132
Como uma maacutescara que se confunde com rosto os homens estatildeo agrave deriva em sua
existecircncia sem mais se perguntarem sobre si mesmos encarando tal postura como
improdutiva Vale mais a pena um conhecimento uacutetil e uma vida mansa mas segura
deter o controle do que arriscar novos caminhos Ainda que se decirc a entender o contraacuterio
a aparente sandice dessa uacuteltima assertiva natildeo ignora as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas e os altos
investimentos em infraestrutura que ocorrem em alguns setores da economia em algumas
partes do mundo poreacutem chama atenccedilatildeo agrave inovaccedilatildeo do novo natildeo da mesmice Novas
tecnologias natildeo necessariamente satildeo outras tecnologias no mais das vezes eacute a mesma
loacutegica impositiva que submete o λόγος dos demais discursos agrave vontade da teacutecnica
Navegar natildeo eacute mais preciso viver sim Viver como quem segue o fluxo da mareacute
e se adequa ao sobe e desce das ondas a fim de que o barco natildeo vire Vital mas natildeo
essencial Os homens precisam da utilidade urgem por seguranccedila por mais que tenham
que abrir matildeo de certa liberdade Eacute pois mister viver em nenhum momento se propocircs
aqui algo diferente disso que se ignorassem as condiccedilotildees baacutesicas para a vida para o
ensino e para o pensamento
Acontece que natildeo soacute de patildeo vive o homem Natildeo eacute possiacutevel que a medida das coisas
seja apenas o para quecirc elas servem Pobre das baratas Elas natildeo prestam logo podem ser
eliminadas A filosofia hoje natildeo serve para nada ou pouco logo vamos dar cabo dela
ou deixar soacute a rabiola para ser lembrada quase nunca no aacutelbum de fotografias da histoacuteria
Tal foacutermula poderia ser empregada com outros animais dos quais jaacute achamos que
exploramos tudo mas tambeacutem ideologias praacuteticas povos culturas faixas etaacuterias e por
aiacute vai
Por esse motivo o que permanece no fluxo das mudanccedilas eacute a pergunta que norteia
o primeiro capiacutetulo deste trabalho Faz parte do tempo inovar e definhar e natildeo caberaacute a
noacutes decidir sobre isso No entanto o que tange o possiacutevel haacute de ser ousado A serventia
de uns eacute a inutilidade de outros e a verdade de outrora foi esquecida Algumas contudo
cortam profundo na memoacuteria e sentidos vigem A tradiccedilatildeo se funda na ranhura do tempo
que ainda sangra
Ou porque natildeo tem cura ou por entalharmos o corpo mnemocircnico com
conhecimentos a ferida aberta da tradiccedilatildeo eacute nossa identidade no tempo e espaccedilo Nosso
modo de pensar agir e sentir nossas preferecircncias e desgostos nossos temores e louvores
nossos discursos e linguagem satildeo frutos de algo que foi passado de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo
133
Normalmente natildeo temos em mente que quando vemos uma fotografia antiga um livro
empoeirado ou um conceito anacrocircnico satildeo nossos pais e avoacutes surrando verdades
Vocecirc eacute o herdeiro
Filhos satildeo os herdeiros
pois pais morrem
Filhos ficam e floram
Vocecirc eacute o herdeiro (RILKE 2012 paacuteg 66 ndash traduccedilatildeo livre)114
Somos e natildeo somos o que fomos e seremos aquele diz respeito agrave tradiccedilatildeo este ao
ensino Tanto um quanto o outro estatildeo intrinsecamente relacionados de maneira que
estudar um tem jaacute imiscuiacutedo o estudo do outro Isto significa que perguntar-se pelo ensino
eacute responder pela tradiccedilatildeo e repensar a tradiccedilatildeo propotildee olhar o ato de ensino com a visatildeo
inquiridora que sabe e natildeo sabe
Compreende-se por ensino o que se apreende por tradiccedilatildeo Um ensino mecacircnico
precisa de uma tradiccedilatildeo tecnocrata da mesma forma que reconhecer no dito o eco poeacutetico
eacute natildeo encarar a educaccedilatildeo restrita agrave transmissatildeo do conhecimento nem somente palco de
avaliaccedilotildees e encenaccedilotildees de aprendizagens Refere-se agrave dignidade dos caminhares no
caminho por mais tortos que possam ser Eacute um dar-se ao risco Natildeo vale a pena para
passar na prova natildeo vale a pena para apertar o parafuso nem operar o paciente Eacute digno
sem ser aplicaacutevel aproveitaacutevel sem o aval aproveitador da norma Eacute da tradiccedilatildeo mas
ainda natildeo eacute tradicional
Mar Portuguez
Oacute mar salgado quanto do teu sal
Satildeo lagrimas de Portugal
Por te cruzarmos quantas matildees choraram
Quantos filhos em vatildeo resaram
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso oacute mar
Valeu a pena Tudo vale a pena
Se a alma natildeo eacute pequena
Quem quer passar aleacutem do Bojador
Tem que passar aleacutem da dor
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu
Mas nelle eacute que espelhou o ceacuteu (PESSOA 1934 p 64)
114 Du bist der Erbe Soumlhne sind die Erben denn Vaumlter sterben Soumlhne stehn und bluumlhn Du bist der
Erbe
134
O desbravamento pode ser feito de diversas maneiras Haacute quem pegasse da direccedilatildeo
e saiacutesse oceano afora Em sala de aula uma das formas de descobrir eacute sem duacutevidas por
meio do desdobramento de um pensamento questionador Perguntar agraves e ser perguntado
pelas questotildees que nos interpelam
Natildeo eacute qualquer caminhar mas o filosoacutefico Natildeo soacute por estar escancarado no
tiacutetulo mas principalmente pelo proacuteprio estigma da filosofia que ela foi inquirida para dar
prosseguimento ao incocircmodo deixado pela tradiccedilatildeo e pelo ensino Sob as alcunhas de
confusa e abstrata ela permanece ainda um bastiatildeo de criaccedilatildeo e de pensamento frente agraves
demandas por soluccedilotildees objetivas e praacuteticas Relegada ao curriacuteculo escolar e agrave caacutetedra
acadecircmica ela natildeo eacute a mesma da aacutegora claacutessica decerto Em tempos digitais e impessoais
como o nosso a filosofia surge sendo uma vaacutelvula de escape no miacutenimo Seu potencial eacute
do tamanho de seu desafio dar sentido ao insensiacutevel dar agrave tradiccedilatildeo o pensamento devido
e ao ensino o cuidado esperado
Contudo a filosofia natildeo estaacute agrave parte do mundo logo tambeacutem tem caracteriacutesticas
dele inclusive aquelas que a princiacutepio se dispotildee a problematizar Por esse motivo
conveacutem se perguntar pelo ser da filosofia A matildee de todas as ciecircncias tornou-se parte do
conhecimento cientiacutefico como isso foi possiacutevel Tida por obra de eleitos enclausurados
numa torre de marfim sem relevacircncia social e a sobreviver de um prestiacutegio decadente de
eras devassadas o ldquoamor ao saberrdquo padece por seacuteculos de erudiccedilatildeo metafiacutesica de
categorizaccedilotildees e hierarquizaccedilotildees e em uacuteltima instacircncia por ter sido uma das responsaacuteveis
por suplantar a verdade mito-poeacutetica em prol da razatildeo
Agrave exceccedilatildeo do excesso a filosofia come o que plantou Sua origem em Platatildeo tem
traccedilos transgressores e perversos ao mesmo tempo podendo ter influenciado seus
praticantes a exercer uma segregaccedilatildeo ideoloacutegica Somente quem saiacutesse da caverna das
opiniotildees dos pensamentos ditos rasos e sensiacuteveis da δόξα e adentrasse o νοῦς a
contraparte ideal da existecircncia seria digno dela Com isso poetas pensamentos do
subsolo revelaccedilotildees miacutesticas e tudo o que natildeo se adequasse ao raciociacutenio loacutegico-formal
foram postos em escanteio e perderam seu teor de verdade para assumir contornos
ficcionais pitorescos quando natildeo falaciosos
A proposiccedilatildeo de questionar a filosofia desenrola-se pois num filosofar outro
Concebe um pensamento que reconhece no ser algo de fluido de paradoxal e de dialoacutegico
A fim de tentar abarcar o mundo com as matildeos mesmo suas camadas aparentemente
135
contraditoacuterias esse risco do pensar responde aos mais diversos incocircmodos Do sono agrave
vigiacutelia quanto da morte agrave vida sem os opor sem os solucionar dispotildee-se a aceitar o
equiacutevoco inerente assim como quem anda sobre ovos
Olhar para frente e para traacutes Ao enveredar pela tradiccedilatildeo ouvem-se muitas vozes
a dizer e nomear isto que se apresenta no tempo Ateacute o pensamento pode ser pensado A
questatildeo entretanto natildeo eacute algo de nebuloso e eteacutereo entre cem e sem sentidos Ela situa o
ser no espaccedilo com suas respostas e perpetua a sagraccedilatildeo da linguagem ao ser respondida
Hipoteticamente se a filosofia estaacute restrita aos filoacutesofos o pensamento eacute de todos e de
ningueacutem O caminhar singular de cada um ao lidar com as questotildees resgata o cuidado
primordial das civilizaccedilotildees receacutem-nascidas cujo mundo se mostrava pela primeira vez e
precisava ter um nome
A palavra
Prodiacutegio distante e louco
Minha margem agrave sua eacute pouco
Aguardei ateacute a parda Parca
E encontrei o nome em sua marca ndash
Eu pude atecirc-lo com teso
Para brilhar e luzir preso
Ansiei por bom vindouro
Com fraacutegil e raro tesouro
Toda via Ela me dizia
mdash Nada haacute aqui e a terra eacute vazia
Eis que escorre entre meus dedos
E agrave paacutetria dou enganos ledos
Triste entatildeo soube abdicar
mdash Secirc sem palavra vaacutecuo e ar (GEORGE apud HEIDEGGER 2003 p 124 ndash
traduccedilatildeo livre)115
Uma postura proacutepria perante a tradiccedilatildeo da filosofia engendra um trato proacuteprio com
o modo de se pensar A morte natildeo cabe nos dicionaacuterios temos que fazer a experiecircncia de
115 Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die
graue norn Den namen fand in ihrem born ndash Drauf konnt ichs greifen dicht und stark Nun bluumlht und
glaumlnzt es durch die mark Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie
suchte lang und gab mir kund bdquoSo schlaumlft hier nichts auf tiefem grundldquo Worauf es meiner hand entrann
Und nie mein land den schatz gewann So lernt ich traurig den verzicht Kein ding sei wo das wort
gebricht
136
morrermos um pouco para saber o ser que se mostra no falecimento Tampouco se daacute a
linguagem por encerrada nos livros didaacuteticos da histoacuteria Natildeo satildeo os verbetes que ganham
novas entradas mas o mundo que brota significados antes ignorados O ofiacutecio da postura
poeacutetica e pensadora no mundo eacute encontrar as palavras que faccedilam jus ao descobrimento
do mesmo local onde habitamos e somos habitados constante e incessantemente Essa eacute
a proposta esse eacute o desafio isto eacute um convite a um ensino poeacutetico
137
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APEcircNDICE
TREcircS EXPERIEcircNCIAS POEacuteTICO-FILOSOacuteFICAS
Andreacute Luiacutes Borges de Oliveira
Produto didaacutetico apresentado ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal
de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca
CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre
Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto
Rio de Janeiro
Outubro de 2017
151
RESUMO
Trecircs experiecircncias poeacutetico-filosoacuteficas
Apresentaccedilatildeo planejamento desenvolvimento e criacutetica de trecircs experiecircncias de
filosofia com uma perspectiva poeacutetica Elas foram pensadas para serem feitas a princiacutepio
com crianccedilas num ambiente de sala de aula Num primeiro movimento eacute exposta parte
de um filme paroacutedia de Frankenstein e discute-se sobre as limitaccedilotildees de nossa vontade
Num segundo movimento discute-se o que eacute ser perguntando a crianccedilas sobre o exerciacutecio
de ser crianccedila Num terceiro movimento realizado tanto com crianccedilas quanto com jovens
em pares uma pessoa eacute vendada e requisitada a guiar a outra pessoa discutindo-se com
isso nosso apego ao controle a relaccedilatildeo de confianccedila estabelecida aceitaccedilatildeo do equiacutevoco
Por fim eacute patente a existecircncia singular que cada crianccedila jovem e ateacute adulto possuem
Suas capacidades inventivas questionadoras aleacutem e aqueacutem dos preconceitos ou do
demasiado zelo com eles Nesse sentido arriscar-se e aceitar o provaacutevel tropeccedilo
apresenta-se como caracteriacutestica essencial neste caminhar
Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem
152
ABSTRACT
Three poetic-philosophical experiences
Presentation planning development and critic of three experiences of philosophy
with a poetic perspective They were designed to be done at first with children in a
classroom environment In a first movement part of a film Frankensteinrsquos parody is
exposed and the limitations of our will are discussed In a second movement it is
discussed what is to be asking children about the exercise of being a child In a third
movement carried out both with children and with young people in pairs a person is
blindfolded and asked to lead the other person discussing with this our attachment to
control the relationship of trust the acceptance of misunderstanding Finally it is clear
the unique existence that each child young and even adult have Their inventive
questioning abilities beyond prejudices or over-zeal with them In this sense risking and
accepting the probable stumbling is presented as an essential characteristic in this walk
Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language
153
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
Figura 1 ndash Calvin e Haroldo 165
Figura 2 ndash A morte 166
154
SUMAacuteRIO
Apresentaccedilatildeo 155
Quando a vida nos diz natildeo 157
Objetivo geral 157
Objetivo especiacutefico 157
Proposta para a atividade 158
Fluxograma 160
Relato da experiecircncia 161
Reflexatildeo com a experiecircncia 169
Exerciacutecios de ser crianccedila 171
Objetivo geral 171
Objetivo especiacutefico 171
Proposta para a atividade 171
Fluxograma 174
Relato da experiecircncia 174
Reflexatildeo com a experiecircncia 177
A cegueira da visatildeo 178
Objetivo geral 178
Objetivo especiacutefico 178
Proposta para a atividade 178
Fluxograma 180
Relato da experiecircncia 180
Reflexatildeo com a experiecircncia 183
Consideraccedilotildees finais 186
Referecircncias 188
155
Apresentaccedilatildeo
A volta da filosofia para as salas de aula alcanccedilou as seacuteries iniciais do
Fundamental Ainda um movimento isolado acontece em alguns locais do Brasil e mais
especificamente no Rio de Janeiro Em Duque de Caxias na Escola Municipal Joaquim
da Silva Peccedilanha juntamente com o Projeto de Extensatildeo Em Caxias a filosofia en-caixa
do Nuacutecleo de Estudos Filosoacuteficos da Infacircncia do PropedUerj coordenado pelo professor
Walter Kohan onde este trabalho foi apresentado o ensino de filosofia com crianccedilas tem
se mostrado como resposta116 agrave carecircncia reflexiva e questionadora jaacute em tenra idade
diante do mundo
O iniacutecio do projeto data de 2007 e desde entatildeo tem gerado um importante papel
na divulgaccedilatildeo e solidificaccedilatildeo da filosofia com crianccedilas Durante esses anos podemos
contar com o apoio da Secretaria de Educaccedilatildeo de Duque de Caxias da Faperj aleacutem da
direccedilatildeo das escolas seus professores e pesquisadores e alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-
graduaccedilatildeo Minha participaccedilatildeo eacute recente Inicia-se em 2013 quando comecei a frequentar
os grupos de discussatildeo Do segundo semestre de 2013 ateacute 2015 atuei diretamente na
escola Joaquim da Silva Peccedilanha coordenando e participando das experiecircncias
filosoacuteficas
Inicialmente o desenvolvimento destas atividades foram pensadas para estarem
sujeitas agrave brevidade de uns tempos de aula e voltadas para crianccedilas entre 8 e 11 anos
Entretanto conveacutem natildeo soacute ater-se ao desdobramento do tema mas a outros elementos
que possam convidar a pensar sobre o assunto ainda que indiretamente natildeo se
restringindo a faixas etaacuterias A questatildeo natildeo tem idade Ou seja o planejamento estaraacute
sempre aqueacutem da execuccedilatildeo e das nuances de cada contexto servindo apenas como guia
dentre uma multiplicidade de caminhos Conveacutem ressaltar que todos os responsaacuteveis
pelas crianccedilas estavam cientes das atividades propostas e que poderiam ser realizadas
filmagens fotografias e que os nomes de seus filhos poderiam ser expostos
116 O significado desta palavra aqui natildeo se restringe agrave dar uma soluccedilatildeo mas vista sua tradiccedilatildeo como ldquorepor
recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009 Resposta) promovendo a cada responder um recolocar-se
naquilo que nos instiga Nesse sentido ao inveacutes de encarar uma resposta como o que encerra a questatildeo
passa-se a lidar com ela por aquilo que apresenta novas possibilidades renovando e inovando
156
Ainda antes de dar iniacutecio propriamente eacute preciso sugerir que isto aqui natildeo se
refere ao primeiro contato com a turma nem ao uacuteltimo O pensamento natildeo comeccedila aqui
nem somos o suprassumo do saber por estarmos a fazer tais e tais atividades Mais vital
eacute a forma como a chamada experiecircncia filosoacutefica se organiza diferentemente de uma aula
tradicional propondo natildeo soacute ideias estranhas agrave uma disciplina usual como tambeacutem uma
praacutetica proacutepria e singular
A fim de que a atividade se desenvolva conveacutem que algum eacutethos comum se
estabeleccedila Tambeacutem sugerimos fortemente que a participaccedilatildeo de todos seja incentivada
mas natildeo exigida caso o aluno natildeo queira sem demanda por conhecimentos preacute-
estabelecidos com base no certo ou errado Dessa maneira dirimindo o iacutempeto por
reproduzir conceitos (para uma avaliaccedilatildeo por exemplo) ao estabelecer um espaccedilo de
conhecimento muacutetuo em que as estranhezas quanto agraves pessoas agrave forma de aula ou ao tipo
de tema sejam ao menos toleradas Isso porque em geral o aluno espera estar sujeito a
ameaccedilas de reprovaccedilatildeo consequentemente desqualificaccedilatildeo no que diz respeito a seu
meacuterito na resposta ou confia demasiadamente na autoridade do professor ou na voz da
turma como apelo demagoacutegico Embora seja improvaacutevel desfazer todas as falaacutecias
comuns do dia a dia educacional pelo menos o questionamento acerca delas precisa estar
em voga enquanto fundamento para erigir este trabalho
Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a
realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da
lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de
pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de filosofia como
um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das
experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que
natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas
157
Quando a vida nos diz natildeo
Objetivo geral
A partir de dinacircmicas filmes e trechos de livros pretende-se construir
conjuntamente com as crianccedilas uma postura questionadora diante do mundo
perguntando-se pelos porquecircs de determinados haacutebitos e trazendo agrave tona grandes temas
filosoacuteficos como a verdade a vontade e ateacute a morte atraveacutes da proacutepria realidade e
experiecircncias comuns da idade
Objetivo especiacutefico
Propotildee-se apresentar um trecho do filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton
Uma paroacutedia em animaccedilatildeo de Frankenstein com cerca de 20 minutos de duraccedilatildeo que
conta a relaccedilatildeo de um garoto com seu cachorro bruscamente interrompida por um
acidente fatal e a posterior reanimaccedilatildeo do cadaacutever Com isso apresentamos a relaccedilatildeo do
homem com a morte isto eacute a negaccedilatildeo do homem em morrer concomitante agrave sua vontade
de controlar a vida
Uma analogia mais simples e direta menos terriacutevel com dramas psicoloacutegicos de
um menino afeito a ciecircncias que perdeu seu amigo de estimaccedilatildeo e tenta recuperaacute-lo Esse
deslocamento do palco dos questionamentos do claacutessico literaacuterio para o curta metragem
de animaccedilatildeo pretende a empatia dos alunos abrindo um canal importante para o
desdobramento filosoacutefico apropriado
158
Proposta para a atividade
Com as estruturas baacutesicas para a apresentaccedilatildeo de filmes propomos dois tempos
de 45 minutos diluiacutedos em duas semanas nos quais os primeiros 10 minutos seriam para
trazer a disposiccedilatildeo da turma para a atividade Sabe-se laacute o que mais ocorreu se um recreio
agitado ou se uma aula monoacutetona Esse eacute o momento de perceber se a atividade deve
prosseguir ou se seraacute preciso deixaacute-la para outro momento a fim de trabalhar um
questionamento pujante Uma sugestatildeo eacute utilizar os proacuteprios afazeres burocraacuteticos ou
estruturais como proecircmio Por exemplo a arrumaccedilatildeo das carteiras em roda ou uma
simples chamada pode servir de chamariz para esse instante
Dando sequecircncia agrave introduccedilatildeo agora cabe apresentar o tema o que natildeo precisa
ser feito secamente Recapitulando questiona-se a ideia do homem pelo homem como
um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser diagnosticada e curada o humano torna-
se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma infinidade de predicativos que validam
o sujeito homem Pergunta-se entatildeo se nossa ideia de homem passa a ser o homem
Como introduccedilatildeo solicitaria que cada um pensasse brevemente numa palavra
conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado na pergunta ldquoO que eacute
lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo Nada mais do que 5 minutos Em seguida um de cada vez seria
requisitado a pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito poreacutem
sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido Caso a turma seja mais tiacutemida uma possibilidade
eacute comeccedilar com vocecirc mesmo aiacute sim desenvolvendo brevemente o motivo
Independentemente de como a turma corresponder a participaccedilatildeo do professor faz parte
de uma posiccedilatildeo dialeacutetica a diferenccedila estaacute na importacircncia que eacute devotada a ele Espera-se
que 10 minutos sejam o suficiente para tal Independentemente do comportamento da
turma como a fala eacute livre e incentivada a tendecircncia agraves vozes simultacircneas eacute grande Por
isso introduzimos o que chamamos de a ldquobola da vezrdquo uma bolinha que ditava quem
detinha a palavra para falar pedia-se a bola bastando levantar a matildeo
O segundo momento refere-se agrave suspensatildeo dos porquecircs Solicite que os alunos
pensem se manifestem mas natildeo digam seus motivos Isto daacute ensejo a um proacuteximo estaacutegio
da experiecircncia filosoacutefica aleacutem de interromper o fluxo esperado haja vista que teremos
os mais diversos exemplos mantendo a atenccedilatildeo por meio da curiosidade e ansiedade
159
Ao teacutermino do momento inicial estaacute na hora da exibiccedilatildeo do curta Conveacutem
chamar atenccedilatildeo de que o mesmo eacute um desdobrar do assunto anterior Tambeacutem eacute
interessante notar as expressotildees conversas e impressotildees da turma durante a exibiccedilatildeo
embora natildeo ache aconselhaacutevel deter-se por demais nisso com o risco de cair em
psicologias comportamentais caso natildeo seja sua aacuterea de domiacutenio
Passados 45 minutos do iniacutecio da atividade eacute feita uma rodada geneacuterica sobre as
opiniotildees Se gostaram e por que se o filme correspondeu agrave palavra-som-gesto de cada
um se houve empatia com a personagem etc Dependendo da turma os minutos finais
podem transcorrer sem muitos problemas Poreacutem caso haja poucas falas cabe ao
professor dar sua breve contribuiccedilatildeo explorando as privaccedilotildees de se querer algo e de poder
esse algo enquanto abre caminho para o fim da aula
Encerrando o primeiro dia seria solicitado que pensassem na pergunta ldquoO que eacute
lsquosimrsquo para vocecircrdquo cujas respostas agora escritas deveriam ser trazidas no encontro
seguinte A pergunta pela afirmaccedilatildeo sofre duas influecircncias imediatas o anterior ldquonatildeordquo e
os dizeres do filme sobre o assunto Isso deve movimentar as opiniotildees Ainda que os
alunos natildeo cumpram a tarefa o esforccedilo para se dispor a inquirir sobre a temaacutetica foi feito
pois tanto as perguntas como o Frankenwenie insistem nas referecircncias da vontade do
homem com a realidade reforccedilando o argumento
Na semana seguinte os primeiros 10 minutos se assemelhariam aos do uacuteltimo
encontro Os 15 minutos seguintes retomariam as respostas escritas ou natildeo a respeito do
ldquosimrdquo se se correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do
ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme responderia ao ldquonatildeordquo
e ao ldquosimrdquo Nesse momento os exemplos da induccedilatildeo satildeo revistos confirmados
descartados adaptam-se aos novos posicionamentos dando unidade agrave atividade Um
tempo tambeacutem utilizado para ambientar os alunos na discussatildeo Por fim cabe uma
interpretaccedilatildeo sua sobre como a personagem lida com a morte e o porquecirc o que parte e o
que permanece assunto desenvolvido no tema Quanto a isso conveacutem uma breve
explanaccedilatildeo
A explanaccedilatildeo deve alcanccedilar de 10 a 15 minutos Eacute o momento de assumir a
responsabilidade de ter levantado o toacutepico e de fato participar do diaacutelogo Sem respostas
prontas mas com sua opiniatildeo sincera embasada e digna de ser exposta O caminho jaacute foi
traccedilado natildeo se chegaraacute ao fim mas eacute preciso caminhar Pela explanaccedilatildeo se reforccedila a ideia
160
de que natildeo haacute soluccedilotildees faacuteceis mas que nos eacute requisitado pensar e se posicionar por mais
breve por mais incerto que seja buscando o provaacutevel que supomos ser
Nos minutos finais propotildee-se que todos escrevam num papel uma frase afirmativa
ou interrogativa um verso ou um desenho algo para dizer a esse menino retratado no
filme Quem assim desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez O epiacutelogo almeja
essa proximidade quase iacutentima entre cada aluno e a personagem jaacute que ambos teriam
vivenciado situaccedilotildees semelhantes Ratifica o concreto dos pensamentos e sentimentos
expostos no filme em comunhatildeo com o que foi pensado e sentido pelos expectadores
Como a personagem natildeo responde ao recadinho revela-se mais uma vez o caraacuteter sem
resposta da argumentaccedilatildeo sem desmotivar a accedilatildeo perante ao que natildeo dispomos de
controle Aproveite para aconselhar fortemente a quem natildeo assistiu ao filme por completo
que assim o faccedila
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar o tema e solicitar que cada um pensasse brevemente numa
palavra conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado
na pergunta ldquoO que eacute lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo ndash 5 minutos
3 Pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito
poreacutem sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido ndash 10 minutos
4 Exibir o curta ndash 25 minutos
5 Pensar e escrever ldquoO que eacute lsquosimrsquo para vocecircrdquo ndash para casa
6 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
7 Retomar as respostas escritas ou natildeo a respeito do ldquosimrdquo se se
correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do
ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme
responderia ao ldquonatildeordquo e ao ldquosimrdquo ndash 15 minutos
161
8 Expor um comentaacuterio participando do diaacutelogo ndash 10 a 15 minutos
9 Escrever num papel uma frase afirmativa ou interrogativa um verso ou
um desenho algo para dizer a esse menino retratado no filme Quem assim
desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez ndash minutos finais
Relato da experiecircncia
Terminado o breve desenho animado perguntamos o que acharam do filme se
gostaram o que gostaram e a maioria dos alunos respondeu afirmativamente Sem
demora a conversa ganhou espaccedilo nos silecircncios iniciais ora longos ora breves a
depender da turma
Primeiramente o que apareceu nas opiniotildees gerais foi a relaccedilatildeo do menino com o
cachorro Em duas turmas disseram que o fato de terem ressuscitado o cachorro foi uma
coisa boa no filme Na turma 502 a Katlem natildeo fala diretamente de ressuscitar mas a
relaccedilatildeo menino e cachorro se apresenta como siacutentese de uma possiacutevel oposiccedilatildeo agrave morte
pois juntos eles enfrentam a separaccedilatildeo e o fim e no filme saem vitoriosos Seria a morte
uma inimiga a ser subjugada ldquoQuando o menino arremessou a bola e a bola foi laacute pra
cima eu achei que o cachorro gostava muito do Vitor [nome do garoto do filme] e ele
gostava muito dele e ele natildeo merecia morrerrdquo
Estabeleceu-se a correspondecircncia do presente o que aparentemente temos e a
morte o que aparentemente natildeo temos o controle fronteira tecircnue guiada pelas aparecircncias
Na turma 501 depois das impressotildees iniciais decidimos ser mais diretos e caminhar no
limite mencionado Perguntamos ldquoO Luiz [um aluno] disse que o bicho mesmo morto se
mexe [] A morte natildeo passa uma ideia lsquoparadarsquo Como se mexer se estaacute mortordquo
ldquondash Por causa do choquerdquo Notamos que muitas pessoas responderam e ainda
tentaram detalhar os processos teacutecnicos Algumas ateacute como o Miqueias achavam que o
principal no filme era a experiecircncia cientiacutefica justificada nos comentaacuterios a respeito de
quantos volts tem um raio (o Luiz falou o valor com tanta certeza que todo mundo
acreditou) referecircncia agravequele ldquoaparelho que eu vi num filmerdquo (a referecircncia a filmes a
162
novelas e agrave tevecirc foi bem recorrente) aquele de ldquodar choque no peitordquo (desfibrilador) mas
ldquosoacute daacute para recuperar quando a pessoa morre naquele instanterdquo disse Luan
Nesse momento a turma estava bem envolvida na discussatildeo com vaacuterios querendo
contribuir A ldquobola da vezrdquo exerceu um papel norteador importante pois eacute um siacutembolo
uma lembranccedila de que algueacutem deseja falar e algueacutem deseja ouvir Quando muita gente
quer a bola combinamos com a turma de ir passando para o lado de matildeo em matildeo assim
todos teriam o direito de falar se quisessem
Desse modo o Luiz (sim novamente ele um dos nossos maiores participantes)
teve sua reacuteplica na pergunta sobre a morte parada ldquotipo assim cortar o rabo de um lagarto
[] ele solta o rabo que fica se mexendo e consegue fugirrdquo A morte em movimento para
que houvesse vida O rabo foi morto podemos supor pela lagartixa para que ela mesma
pudesse viver
A morte se mexe a morte estaacute parada a morte acontece Afinal ldquopor que ateacute hoje
o ser humano natildeo faz isso [ressuscitar] com todos os mortosrdquo perguntou o Max Eu
respondi que o cachorro era especial para a crianccedila do filme afinal nem todo mundo as
pessoas gostariam que voltasse (seguido de alguns risos) Jaacute o Wallace achou que foi
porque o corpo foi costurado
Objetividade era a palavra de ordem De fato o filme dava um destaque agrave
experiecircncia laboratorial nada mais justo que os 501 focassem na questatildeo teacutecnica As
colocaccedilotildees que eram feitas tinham um procedimento meacutedico por traacutes ou um detalhe mais
praacutetico e mais importante quase nenhuma referecircncia a qualquer emoccedilatildeo ou sobrenatural
foi feita Souza e Pereira (1998) vatildeo compreender o entendimento moderno do conceito
de ciecircncia como um modo da verdade entendida por certeza na qual a explicaccedilatildeo do real
se sobrepotildee ao proacuteprio real suas outras manifestaccedilotildees e misteacuterios insoluacuteveis
Ao final da atividade deste primeiro dia fizemos um trabalho mnemocircnico a fim
de reforccedilar o discutido para o proacuteximo encontro Cada pessoa iria fazer uma pergunta ou
dizer uma palavra que sintetizasse seus pensamentos emoccedilotildees a respeito do que tinha
acabado de acontecer Nesta ocasiatildeo notamos um lado mais sentimental juntamente com
o objetivocientiacutefico Questionava-se onde ficava a alma nesse processo de ressuscitar ou
soacute a palavra tristeza tivemos ateacute uma pergunta teoloacutegica de se deus natildeo devolver a alma
como ficaria o corpo
163
Esse teor menos material estaacute mais presente em todos os demais encontros Com
os 502 por exemplo cujo envolvimento nas discussotildees ocorreu mais depressa que na
501 logo nas primeiras colocaccedilotildees surgiu a tristeza o desmerecimento pelo ocorrido
Pareceu que ressuscitar natildeo supriu a urgecircncia de vida cabendo o luto Lembremos essa
turma era aquela que jaacute discutira em alguma medida a morte
Tristemente abatido impotecircncia diante do que natildeo controlamos por melhores que
sejam nossos aparelhos Na falta de esperanccedilas com o que contamos Quando nos
remetemos ao filme na hora que o garoto termina a experiecircncia para reviver o cachorro
a princiacutepio ela natildeo daacute resultados Sobre o corpo imoacutevel o pequeno cientista se debruccedila e
uma laacutegrima escorre de seu rosto Para a Eduarda Letiacutecia e outros tantos esse foi o fator
decisivo para que o cachorro pudesse ressuscitar
Mas seraacute o benedito essa turma natildeo vecirc o oacutebvio A ciecircncia teve seu papel soacute que
o choro funcionou melhor de acordo com a Luiza Para a Isabelle nem se tratou de fato
de aguinha dos olhos mas do amor e a Beth117 sintetizou ao dizer que ldquona ciecircncia natildeo haacute
tanto amor quanto na laacutegrimardquo Elas terem pensado essa relaccedilatildeo lanccedilou-me para o seacuteculo
XX Para a reprodutibilidade da teacutecnica para a questatildeo da teacutecnica e outros tantos ensaios
e pensamentos que se referiam ao homem esquecendo sua humanidade e agrave maacutequina
com seu sentido de ferramenta esvaziado para que tudo ao redor se mova em torno dela
Todavia essa natildeo eacute a idade em jogo naquele ambiente Provavelmente essas
crianccedilas nunca leram Benjamin nem Heidegger mas elas podem sim terem
experienciado as criacuteticas ao mundo ldquode devir-crianccedila ou de devir-infantil que eacute uma
forma de estar no mundo associada natildeo aos anos que se tem mas agrave experiecircncia de vida
que se afirmardquo (KOHAN 2012 paacuteg 43)
Ao considerar a emergecircncia de possibilidades no devir torna-se esperado
associaccedilotildees nunca antes imaginadas O Alex identificou a morte pelo olfato Ou talvez
tenha sido uma metaacutefora quando remeteu ao cheiro da morte afinal era soacute um filme Um
pouco antes do cachorro ser atropelado e vir a falecer aquela iminecircncia exalava uma
essecircncia prenuacutencio traacutegico Quando a crianccedila do filme vai ao cemiteacuterio eacute assustador ele
podia se machucar natildeo eacute Alex
117 Nome fictiacutecio devido agrave ausecircncia do nome real nas gravaccedilotildees
164
O aroma puacutetrido e a decomposiccedilatildeo dos corpos isso tambeacutem eacute o cheiro da morte
e natildeo eacute agradaacutevel Muitos outros na sala tambeacutem tiveram receio com o cemiteacuterio mas
natildeo a Katlem ela disse que o amor a teria dado coragem Aqui temos um velho embate
gerador de heroacuteis covardes e sensatos Entrar ou natildeo entrar no cemiteacuterio precisa ser agrave
noite Sentir o cheiro da morte e ainda assim ir agrave sua direccedilatildeo (talvez o cachorro natildeo tenha
sentido mesmo com seu focinho canino) eacute se aventurar na morte pelo Vitor da 502
E com a morte natildeo se brinca Pois para a Julia se aventurar era brincar mas o
pobre catildeo natildeo sabia do perigo que o aguardava nem que haacute brinquedos que natildeo perdoam
Julia mdash A morte tava presente laacute e quando ele foi voltar [] ele morreu
Vanise mdash A morte fica perto da pessoa
Julia mdash Eu acho que sim no momento certo
Isis mdash Eu vou tentar responder o cheiro da morte para mim foi que o
cheiro da morte deixou um rastro quando vocecirc faz uma comida vocecirc sente um
cheiro deixou um rastro
Isis mdash O rastro deixa uma pista o cheiro de que o carro ia vir A morte era o
carro
Andreacute Lira (2012) defende que a presenccedila da morte eacute algo que natildeo vivemos em
seu interior Sempre exterior quiccedilaacute ao redor a rigor soacute podemos falar sobre jaacute que
ningueacutem morreu e depois escreveu ou discursa proveniente dela embora julguemos poder
sentir sua proximidade Ser novo para morrer e a condenaccedilatildeo ao natildeo conhecimento vatildeo
influir diretamente no comportamento estrangeiro em relaccedilatildeo ao tema
Tanto a aluna Isabelle quanto a professora regente Adriana mais uma vez nos
mostrando a fluidez da questatildeo entre as idades sofreram pela falta de respostas Disse
aquela ldquoNatildeo sei se a morte taacute perto de mim mas eu natildeo quero estar perto dela Sou nova
demais para morrer [] Tenho medo porque natildeo conheccedilo o que vai ter depoisrdquo A Irandy
confessou que tambeacutem tinha medo por natildeo conhecer Ora se vocecirc natildeo conhece porque
supor que eacute ruim e principalmente que deve ser temido
165
Figura 3 ndash Calvin e Haroldo
Fonte DEPOSITODOCALVIN 2005
Um problema corrente do trabalho foi o tempo Quando a discussatildeo pegava fogo
tiacutenhamos que encerrar o encontro para receber a proacutexima turma O cheiro o rastro a
aventura a brincadeira O medo Um dos maiores motivos que me motivou a realizar um
trabalho desses foi o fato de que a morte eacute temida Quis aproveitar que o assunto surgiu
da turma 502 e contrapor com sua ausecircncia na 501 Antes contudo comentemos como
na turma 402 se desenvolveu o confronto com o diferente
Primeiro ponto como havia dito muitos disseram que a ressuscitaccedilatildeo foi o aacutepice
do filme A Tamiris ateacute disse que se fosse possiacutevel iria fazer o mesmo com a avoacute Agora
para ressuscitaacute-la de acordo com o filme teria de haver uma aproximaccedilatildeo com um lado
sombrio indigesto com o cemiteacuterio caveiras e corpos feacutetidos e em decomposiccedilatildeo
Eca e outras interjeiccedilotildees e caretas eram ouvidas durante a animaccedilatildeo O sentimento
de nojo foi instigado teria a Tamiris encarado a morte no corpo imoacutevel da avoacute com
repulsa O Mateus acredita que natildeo com um certo desdeacutem como se sentir nojo fosse
algo hipoacutecrita ldquoeu acho que fede mas queria fazer uma pergunta e uma pessoa que eles
amam muito vatildeo falar que eacute nojenta que eacute isso ou aquilordquo
Poxa Mateus mas natildeo eacute muito normal ver sangue saindo ou bichinhos comendo
a pessoa mesmo que seja da nossa famiacutelia neacute Mas a gente vai tentar se segurar porque
eacute uma pessoa proacutexima pelas ideias e algumas palavras de Fernando Sim concordo natildeo
eacute habitual separamos a morte da vida Evitamos por medo ou por nojo enxergar a morte
acontecendo ao nosso redor em noacutes mesmos Por esse vieacutes tornamos estranho o que nos
eacute proacuteximo e familiar
166
Figura 4 ndash A morte
Fonte O PATO A MORTE E A TULIPA 2009
mdash Vocecirc veio me buscar agora mdash Estou perto desde que vocecirc nasceu por via
das duacutevidas [] Eacute a tarefa da proacutepria vida cuidar do acidente e tambeacutem da
gripe e de todas as outras coisas que ocorrem a vocecircs patos118 Eu soacute digo uma
coisa raposa (ERLBRUCH 2009 paacutegs 4-7)
Ateacute o prezado momento do texto tratamos basicamente das primeiras aulas Para
natildeo depender unicamente da memoacuteria os colegas e eu bolamos uma atividade
Trouxemos duas reacuteplicas de cracircnios um mais realista tirando os olhos vermelhos e
brilhantes outro mais escurecido de porcelana e com um buraco na cabeccedila (para colocar
velas aromaacuteticas)
As caveiras passavam de matildeo em matildeo seguidas da admiraccedilatildeo pela turma 501 a
mais objetiva e espanto pela 502 a mais emotiva A turma 402 viveu a experiecircncia mas
natildeo chegamos a desenvolvecirc-la Houve ainda quem colocasse a foto de uma das cabeccedilas
como foto de fundo do celular Na hora falhamos por natildeo perguntarmos a causa da
admiraccedilatildeo aos alunos mas acertamos em perguntar do espanto
A turma 501 riu fez piada disse que era feia cheirou a caveira bateu nela se
aproximou como pocircde Natildeo que tivessem medo se mostraram curiosos mas natildeo
animados Perguntaram se era de verdade o Miqueias ateacute questionou a relevacircncia por
natildeo ser cabeccedila de cachorro De bebecirc natildeo era natildeo tinha moleira disse o Viniacutecius
118 Essa eacute a uacuteltima imagem do livro O pato a morte e a tulipa Entatildeo por que um coelho e natildeo um pato
Entendo que a histoacuteria se passa com um pato mas poderia ter acontecido com um coelho ou com uma
pessoa Cada um tem sua raposa e a morte acompanha a todos
167
Enquanto a turma 502 soacute queria fazer festa com a caveira a turma 501 se intrigou
Natildeo acredito na mera coincidecircncia de que exatamente na que teve as discussotildees mais
focadas na explicaccedilatildeo objetiva tenha se interessado mais em entender a aquele objeto
enquanto a turma da laacutegrima e do amor queria mais brincar Um estudo incipiente que
vislumbra uma diferenccedila com o lidar despreocupado ou natildeo
A ciecircncia e o que denominei emoccedilatildeo determinam as duas grandes linhas de
compreensatildeo da morte mas haacute uma terceira presente em todas e de maior presenccedila nos
uacuteltimos encontros a religiatildeo O conforto que a teacutecnica natildeo explicava e a esperanccedila que
faltava na presenccedila da morte preluacutedio de ausecircncia era oferecido pelo acalanto da
imortalidade A alma impereciacutevel o deus misericordioso que protege os bons e estaacute acima
da morte
Por exemplo na turma 501 o Washington disse que o cracircnio natildeo poderia
ressuscitar porque natildeo tinha corpo O Luiz nos lembrou natildeo poderia porque natildeo tinha
alma primeiro Deus precisaria devolver a alma ao corpo A vida estava na alma a carne
apenas a guarda Problematizamos ldquoSe a morte eacute uma questatildeo da alma porque mexer
com o corpordquo Seraacute que o embrulho precisa estar agrave altura do presente
Na 502 minha turma das emoccedilotildees deu para explicar tintim por tintim como se
processava a vida apoacutes a morte Mais seguros do que diziam afirmavam e sabiam Havia
menos tristeza entre os alunos naquele dia Assim falou a Julia ldquoQuando a gente morre
a gente natildeo sabe o que acontece Pode vir algum anjo [] quando vocecirc taacute dentro de um
caixatildeo vocecirc natildeo volta mais O espiacuterito fica laacute dormindo mas quando Jesus voltar ele
sobe Eu tenho certezardquo
Depois de uma concordacircncia geral a Julia continuou a relatar a existecircncia de trecircs
ceacuteus O primeiro seria o ceacuteu das nuvens e da chuva o segundo o ceacuteu do inimigo assim
ela disse e o terceiro seria o local de Deus Alguma mente brilhante entre risos e
jocosidade que infelizmente natildeo registramos o nome se pronunciou a respeito de 25
ceacuteus
Outras pessoas tambeacutem se pronunciaram sobre os trecircs ceacuteus uma delas propocircs ateacute
um desafio ldquoEstaacute na Biacuteblia qualquer uma catoacutelica evangeacutelica pode procurarrdquo (no
estado em que se encontravam as discussotildees todos queriam falar ao mesmo tempo a
turma estava agitada e os nomes natildeo tiveram seus aacuteudios registrados) Foi um espanto
168
entre os demais colegas e eu principalmente porque tiacutenhamos estudiosos de religiatildeo entre
noacutes e eles contestavam a veracidade daquelas informaccedilotildees
Em plena efusatildeo de opiniotildees um grupo estava distraiacutedo conversando Um dos
membros rindo falou ldquoAh gente parem de falar de morte parece macumbardquo poucos
prestaram atenccedilatildeo todavia pelo menos outras duas vezes ela repetiu se o que estaacutevamos
fazendo era macumba e se laacute era roda de macumba Fiquei feliz pelo material de pesquisa
mas entristecido pela opiniatildeo nitidamente preconceituosa
ldquoPor que falar de morterdquo ela perguntou na roda final de perguntas Eu perguntei
ldquopor que natildeo falar de morterdquo Pela religiatildeo eacute ofensivo ou desrespeitoso ao Senhor falar
de morte Somente as outras religiotildees falam sobre o tema (Isso para natildeo perguntar por
que natildeo falar de outras religiotildees)
Pude perceber que aquele grupo de pessoas estudantes de Caxias do quarto e
quinto ano fundamental tinha a realidade religiosa muito marcante em seus dias (pelo
menos duas alunas tinham parentes pastores) Tanto adultos quanto crianccedilas estatildeo
sujeitos agrave reprodutibilidade das opiniotildees Souza e Pereira (1998) defendem que o tempo
moderno estaacute regulado pela produtividade logo quanto mais raacutepido melhor Dessa
maneira entendo que o discurso religioso funciona tambeacutem nessa loacutegica e deseja se
afirmar com destreza e propriedade
A morte passa a ser um braccedilo da religiosidade pois essa consegue com primor o
que nenhuma outra verdade faz Suas soluccedilotildees datildeo por encerrada a questatildeo que natildeo
convive mais em misteacuterio A repeticcedilatildeo se processa a fala a liacutengua uacutenica do puacutelpito
Portanto somos conduzidos a pensar que a crianccedila eacute um pequeno adulto
Se a modernidade tem esse pensamento e a contemporaneidade faz uso sim dele
tambeacutem inventamos o soacute A crianccedila cresce em idade e reproduz o adulto que ela sempre
foi mas ela natildeo eacute soacute um adulto tambeacutem deteacutem singularidade Todo este trabalho mostra
o quatildeo originaacuterias eram suas posiccedilotildees reflexotildees e sentimentos caminhando
conjuntamente com a pretensatildeo de ser sobre ela
Se a crianccedila natildeo eacute soacute um pequeno adulto talvez o adulto tambeacutem seja uma crianccedila
grande embora natildeo soacute Se o adulto precisa se transmitir agrave crianccedila que ele se permita natildeo
esquececirc-la em si O cerne aqui se refere agravequela fluidez das idades de como a morte estaacute
presente a todos Por fim quando cerrarmos os olhos no sono das eras tenhamos a
169
serenidade da noite tranquila e nos lembremos por quaisquer meios que jaacute falamos da
morte e ela natildeo eacute uma estranha seja bem-vinda
Entonces recordar la infancia significa quizaacute preparar un mundo comuacuten [grifes
do autor] en el que el hecho de ser nintildeos no sea sinoacutenimo de imperfeccioacuten y
marginalidad ni donde devenir adultos tenga el sentido de una infancia
traicionada Aprender a concluir tratando de estar siempre a la altura de la
dignidad de esa despedida (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 16)
Reflexatildeo com a experiecircncia
Afinal aqui se trata de um homem por mais novo e diverso que seja com origem
Isto significa que ele estaacute num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos
e por fim sua forma de ser Esse eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita
alfabeacutetica119 a filosofia e a induacutestria
Nenhuma dessas revoluccedilotildees teacutecnicas chegaram sem cobrar um preccedilo pois cada
invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se para cada obra jaacute era preciso estar disposto a obrar
Eacute importante ratificar que o processo de transformaccedilatildeo da realidade natildeo eacute exclusivo do
homem ocidental mas talvez seja dessas caracteriacutesticas que nos unem a todos Nesse
sentido humanizar eacute proacuteprio do homem A questatildeo eacute que tipo de humanizaccedilatildeo eacute esta a
ocidental
Esse eacute o homem que vive a ilusatildeo Esse eacute o homem que vem perdendo seu contato
mais imediato e concreto com as coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que
nada mais eacute do que o desdobramento do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo das
coisas Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que
as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as
coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos
compreendecirc-las
119 Haacute um embate na Academia sobre a invenccedilatildeo da escrita alfabeacutetica A ideia neste trabalho natildeo eacute se
perder ldquona busca do primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica
fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo (HAVELOCK 1996
paacuteg 15)
170
A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana das coisas
mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa a ser nossa
possibilidade de ver as coisas Jaacute dizia o poeta que o universo natildeo seria uma ideia minha
mas sim minha ideia de universo eacute que seria uma ideia minha (PESSOA 2006 paacuteg 51)
Logo o que compreende eacute aquele que prende junto a si A ilusatildeo de poder
compreender tudo se faz principalmente por se tratar do caraacuteter ilusoacuterio com que nos
relacionamos com as coisas Natildeo lidamos mais com as singularidades preferimos seus
nuacutemeros estatiacutesticas o sabor de uma banana ou maccedilatilde cedem lugar ao conjunto das frutas
quantitativamente sem gosto A morte natildeo eacute mais uma manifestaccedilatildeo do real tanto quanto
respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser superado basta termos mais
conhecimentos a respeito
Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como
tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de
novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma
forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia
murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos
171
Exerciacutecios de ser crianccedila
Objetivo geral
Incentivar a autorreflexatildeo e o questionamento do senso comum tanto de si quanto
dos demais
Objetivo especiacutefico
A partir de poemas do livro Exerciacutecios de ser crianccedila de Manoel de Barros os
alunos satildeo convidados a pensar o que chamamos de crianccedila isto eacute eles mesmos Outro
desdobramento estaacute em como eacute possiacutevel algueacutem que natildeo seria crianccedila fazer esse
exerciacutecio por exemplo os professores e o autor Um terceiro encaminhamento diz
respeito ao contato com o texto literaacuterio e a relaccedilatildeo com a linguagem poeacutetica
Proposta para a atividade
Pensada para um grupo de crianccedilas entre 9 e 10 anos O mestre instigador apoacutes
ter se ambientado com a turma apresenta uns poemas do livro mencionado Conforme os
recursos da instituiccedilatildeo isso seraacute feito da forma que for mais adequada como uma
exposiccedilatildeo com os poemas em cartolinas (isso poderia ter sido uma atividade preacutevia entre
os alunos) expocirc-los no datashow e ler alguns com a turma ou mesmo ler direto no livro
para eles mas eacute importante que eles tenham como reler o poema No caso optamos por
uma mistura de cartolinas e exemplares do livro dividimos em grupos de cinco e eles
deveriam fazer um comentaacuterio a respeito Segue um dos poemas do livro citado
172
Exerciacutecios de ser crianccedila
No aeroporto o menino perguntou
mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho
O pai ficou torto e natildeo respondeu
O menino perguntou de novo
mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho triste
A matildee teve ternuras e pensou
Seraacute que os absurdos natildeo satildeo as maiores virtudes
da poesia
Seraacute que os despropoacutesitos natildeo satildeo mais carregados
de poesia do que o bom senso
Ao sair do sufoco o pai refletiu
Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com
as crianccedilas
E ficou sendo (BARROS 2010 paacuteg 469)
Um fator relevante para a dinacircmica aqui executada eacute a participaccedilatildeo do professor
ou coordenador na atividade Isto quer dizer sentar em grupo debruccedilar-se sobre um
poema e engendrar um comentaacuterio Natildeo para se sobressair nem engabelando um
simulacro participativo qualquer mas simplesmente ler e interpretar como todos os
outros Satildeo poemas curtos e simples embora profundos Algo em torno de 5 a 10 minutos
para a leitura e discussatildeo Pode ser que em algum momento o professor precise agir por
exemplo se a turma se dispersar em falatoacuterio excessivamente alto Natildeo tem jeito eacute
preciso intervir poreacutem tente natildeo deixar de fazer parte da atividade com a turma
Na hora dos comentaacuterios tudo vai depender das perguntas suscitadas Cada grupo
deveraacute apresentar seu poema para a turma A seguir alguns exemplos caso a turma tenha
dificuldade como se exercita ser crianccedila Ou assertivamente ser crianccedila eacute um exerciacutecio
logo natildeo se eacute crianccedila sem praticar ser crianccedila Ainda a relaccedilatildeo autor e obra foi
problematizada no sentido de compreender como um senhor de idade referindo-se a
Manoel de Barros conseguia ser crianccedila ou se ele se exercitava para natildeo engordar a
crianccedila interior dele e natildeo ter mais focirclegos para brincar (com as palavras)
O menino que carregava aacutegua na peneira
Eu tenho um livro sobre aacuteguas e meninos
Gostei mais de um menino que carregava aacutegua na peneira
A matildee disse que carregar aacutegua na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele
para mostrar aos irmatildeos
A matildee disse que era o mesmo que catar espinhos na aacutegua
O mesmo que criar peixes no bolso
O menino era ligado em despropoacutesitos
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos
173
A matildee reparou que o menino gostava mais do vazio do
que do cheio
Falava que os vazios satildeo maiores e ateacute infinitos
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar aacutegua na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que
carregar aacutegua na peneira
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviccedila
monge ou mendigo ao mesmo tempo
O menino aprendeu a usar as palavras
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras
E comeccedilou a fazer peraltagens
Foi capaz de interromper o voo de um paacutessaro botando
Ponto no final na frase
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela
O menino fazia prodiacutegios
Ateacute fez uma pedra dar flor
A matildee reparava o menino com ternura
A matildee falou Meu filho vocecirc vai ser poeta
Vocecirc vai carregar aacutegua na peneira a vida toda
Vocecirc vai encher os vazios com as suas peraltagens
E algumas pessoas vatildeo te amar por seus despropoacutesitos (BARROS 2010 paacutegs
469-470)
Outra possibilidade de realizaccedilatildeo eacute passar o mesmo poema a todos O que eacute
indicado a turmas muito tiacutemidas ou com dificuldade de abertura ao tipo de atividade
Nesse caso um poema maior eacute preferiacutevel para transcorrer com os comentaacuterios Uma dica
eacute nunca subestimar o oacutebvio Perguntas do tipo como eacute possiacutevel carregar aacutegua na peneira
pode gerar discussotildees acaloradas Algumas crianccedilas vatildeo ateacute sugerir que jaacute carregaram
focando no ato concreto de levar uma peneira agrave agua e retornar dela aos pingos A
linguagem pode ser encarada ao peacute da letra como tornar-se mais abstrata Seja uma ou
outra e ateacute ambas numa experiecircncia poeacutetico-filosoacutefica precisam ser encaradas como
manifestaccedilotildees de verdade e desdobradas em seus meandros Gotas de aacutegua na peneira
matam sede curta e servem aos despropoacutesitos do poeta brincalhatildeo
Apoacutes a exposiccedilatildeo de todos que assim desejem cabe agora dar corpo agrave profusatildeo
de ideias Muito provavelmente alguns dos comentaacuterios teratildeo a ver entre si eacute
aconselhaacutevel relacionaacute-los ldquoOlhem o que fulano disse eacute muito parecido com o que
sicrano falourdquo Outros se oporatildeo ldquoJaacute beltrano acredita que isso eacute o oposto agravequilo que
fulano disserdquo E ateacute haveraacute os confusos que merecem maiores detalhes Nesses casos
solicitar a recolocaccedilatildeo do problema eacute prudente e pode ensejar uma nova perspectiva para
a questatildeo
174
Com as observaccedilotildees mais ou menos reunidas agora eacute o momento de expor um
comentaacuterio sobre elas e sobre os poemas Ter algum esquema do que dizer eacute muito
importante para natildeo se perder e passar confianccedila aos alunos poreacutem dialogar com os
pontos de vista apresentados eacute vital do contraacuterio seria mais uma aula como outra
qualquer Cerca de 15 minutos entre a composiccedilatildeo das relaccedilotildees e a explanaccedilatildeo
Por fim peccedila que cada um tendo em vista o que foi discutido escreva o que eacute ser
crianccedila para ela e se desejar leia em voz alta e comente para a turma Como nem o livro
nem talvez as cartolinas os alunos poderatildeo ter para si ao escrever o que eacute ser crianccedilas
eles tecircm a oportunidade de se expressarem e poderatildeo guardar o escrito para futuros
possiacuteveis pensamentos
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar poemas e solicitar que cada um ou cada grupo faccedilam
comentaacuterios a respeito ndash 10 minutos
3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e expor um comentaacuterio participando do
diaacutelogo ndash 15 minutos
4 Escrever e expor o que eacute ser crianccedila ndash 10 minutos
Relato da experiecircncia
Abaixo segue a transcriccedilatildeo de uma atividade realizada em meados de 2014 por
mim e Vanise Dutra na Escola Municipal Joaquim da Silva Peccedilanha Tendo havido um
encontro de ambientaccedilatildeo na semana anterior desta experiecircncia os alunos tinham sido
levados ao paacutetio para brincar e como dever de casa eles deveriam escrever sobre o que
era ser crianccedila para eles
175
Vanise mdash Entatildeo gente Olha soacute Vocecircs lembram o que a gente fez na semana
passada
Fernando mdash A gente brincou laacute fora A gente treinou nesse exerciacutecio de ser
crianccedila A gente tentou treinar aiacute A gente brincou Fez atividade laacute fora Foi
muito divertido
Vanise mdash Foi
Fernando mdash Ateacute a tia Janaiacutena brincou que eu vi (Risos)
Professora mdash Que Janaiacutena Eacute Alessandra
Fernando mdash Eacute Alessandra Eu esqueci Eacute que eu vi Janaiacutena no caderno
Vanise mdash E como que foi esse exerciacutecio Esse exerciacutecio laacute fora de ser crianccedila
Vocecircs acham que tem alguma relaccedilatildeo com o exerciacutecio que a gente fez laacute fora
de ser crianccedila com o exerciacutecio de escrever
Fernando mdash Eu acho que sim porque uma das coisas de ser crianccedila neacute
coisas que as crianccedilas fazem no exerciacutecio de ser crianccedila eacute brincar e nesse dia a
gente brincou muito Entatildeo acho que sim que tem alguma coisa a ver
Notemos que propositalmente pomos as crianccedilas para brincar a fim de que a
resposta agrave pergunta de ser crianccedila orbite pelos lugares comuns de brincadeira e jogo O
proacuteprio Manoel de Barros vai jogar com essa ideia Com a introduccedilatildeo dos poemas
brincadeira e o jogo alargam sentidos de modo que adultos podem brincar e brincadeira
de crianccedila natildeo precisa ser bola ou gude mas palavras recolocando a questatildeo de ser
crianccedila como ser adulto ou ser velho sob outra perspectiva
Vanise mdash E o que a gente fez aqui dentro Tem relaccedilatildeo
Fernando mdash Tambeacutem Eacute uma brincadeira que a faz a gente imaginar coisas e
pensar mais Crianccedila natildeo soacute brinca tambeacutem tem aquelas coisas que tem que
pensar coisas de escola coisas de trabalho natildeo Vaacuterias coisas que a gente
pensa aqui a gente brinca na mente brinca com a mente vai pensar de vaacuterias
formas
Vanise mdash Ouviram isso que o Fernando falou Que a gente que crianccedila natildeo
soacute brinca mas que crianccedila tambeacutem pensa
Andreacute mdash Eacute deixa eu fazer uma pergunta Escrever tambeacutem pode ser uma
brincadeira
Camili mdash Que escrever eacute um exerciacutecio de ser crianccedila Eu acho que pode ser
uma brincadeira
Vanise mdash Por quecirc
Camili mdash Ah natildeo sei Porque a gente se diverte com algumas coisas
escrevendo
Willian mdash Pode porque a gente gosta de desenhar
Gustavo mdash Respondendo agrave pergunta do Andreacute se escrever eacute exerciacutecio de ser
crianccedila Eu acho que sim porque tem muitas pessoas que jogam adedanha ali
no papel e eacute divertido
Interessante notar a inversatildeo que eacute feita Natildeo eacute brincar que tem que ser divertido
mas se traz diversatildeo eacute por ser uma brincadeira Nesse vieacutes coisas como escrever (que se
iguala no contexto a desenhar) e pensar podem ser luacutedicas e apraziacuteveis
176
Fernando mdash Queria soacute lembrar que exerciacutecio de ser crianccedila natildeo eacute soacute o brincar
O exerciacutecio de ser crianccedila eacute a gente se divertir Por isso que os adultos eles
tambeacutem fazem o exerciacutecio de ser crianccedila Porque muitas vezes vamos dizer
assim saem com os amigos aiacute se divertem riem acho que soacute o fato de rir jaacute
eacute um exerciacutecio de ser crianccedila porque vocecirc estaacute se divertindo Vocecirc estaacute
trazendo aquela felicidade de volta assim Natildeo que vocecirc seja triste mas vocecirc
estaacute trazendo aquela felicidade Soacute o fato de vocecirc rir vocecirc jaacute tem uma ideia do
exerciacutecio de ser crianccedila Que crianccedila natildeo vamos dizer que eacute boba mas em
todo momento faz uma piada ri essas coisas
Vanise mdash Vocecircs estatildeo ouvindo isso gente que ele estaacute falando Natildeo eacute soacute de
brincar segundo o Fernando que tem a ver com o exerciacutecio de ser crianccedila
Joatildeo mdash Eu quero responder a pergunta da Vitoacuteria
Vanise mdash Qual eacute a brincadeira que vocecirc mais gosta
Joatildeo mdash Eu natildeo sou muito de brincar mdash Joatildeo fala com um tom seacuterio mdash Meu
negoacutecio eacute mais negoacutecio de instrumento essas coisas Meu pai tambeacutem eacute
muacutesico Aiacute aos domingos eu vou pra casa dele e a gente fica laacute tocando
instrumento Eu em casa quase natildeo brinco Soacute mexo no computador e depois
fico tocando bateria
Vanise mdash E vem caacute Tu acha que isso eacute o quecirc Que isso eacute um exerciacutecio de ser
crianccedila que natildeo eacute Que eacute brincar que natildeo eacute brincar Quando vocecirc estaacute laacute com
o teu pai
Joatildeo mdash Pra mim eacute tia Da mesma maneira eu brincando com meus amigos
na rua eu me divirto Eu com meu pai brin tocando instrumento eu tambeacutem
me divirto Eu tocando na igreja eu me divirto Pra mim eacute tia
A muacutesica aparece aqui como algo de crianccedila Novamente uma inversatildeo que vem
bem a calhar Natildeo seria o exerciacutecio de ser crianccedila que definiria a crianccedila mas jaacute sendo
crianccedila sua existecircncia eacute um exerciacutecio por si soacute Isso eacute uacutetil para romper paradigmas de que
brincadeiras satildeo coisas apenas de crianccedila Tambeacutem adultos podem brincar assim como
crianccedilas podem exercitar-se agrave medida que tocam um instrumento
Natildeo eacute sinocircnimo de besteira Ela natildeo eacute boba Seu pensamento e sua diversatildeo natildeo
necessitam recair sempre nos mesmos lugares e da mesma forma Joatildeo se diverte com seu
pai e ambos partilham da muacutesica enquanto morada Nem o pai volta a ser crianccedila nem o
filho vira adulto eles instauram um tempo cronologicamente enfraquecido sem idades
precisaacuteveis Tocando um com o outro exercem uma relaccedilatildeo familiar proacutepria e envolvente
somente possiacutevel por quem se dispotildee a experienciar o instante Natildeo eacute uma questatildeo de
vontade vale dizer mas de entrega
177
Reflexatildeo com a experiecircncia
Nem sempre eacute faacutecil dar cabo do que temos em mente Tudo se torna mais
complicado se nosso ponto de partida pretende natildeo determinar caminhos preacutevios ou
meacutetodos verdadeiros apenas e fundamentalmente oferecer sugestotildees Trata-se pois de
propor um convite para caminhar agravequeles que desejam inspiraccedilatildeo para novas ideias
diaacutelogo entre o seu e este modo de fazer ou ateacute mesmo um pontapeacute inicial
Quaisquer que sejam as circunstacircncias eacute vital se colocar agrave disposiccedilatildeo de pensar e
escutar as questotildees aqui apresentadas e a maneira como elas satildeo tratadas sem
preconceitos ou diligecircncias desnecessaacuterias Isso porque do contraacuterio corre-se o risco de
deixar cair por terra uma possibilidade construtiva de conhecimento para incorrer em
meras prescriccedilotildees ou em criacuteticas assaz severas sem o merecido cuidado ndash natildeo com o texto
muito menos com o autor ou o professor mas com o pensamento Pensar sempre inspira
cuidados
178
A cegueira da visatildeo
Objetivo geral
Promover uma atividade que aguce a atenccedilatildeo a outros sentidos aleacutem de levantar
questionamentos sobre a confianccedila no que natildeo temos controle
Objetivo especiacutefico
Em pares um participante seraacute vendado e o outro natildeo O que estaacute vendado deveraacute
guiar pelo espaccedilo aquele que pode ver Essa eacute uma versatildeo da tradicional experiecircncia de
se vendar para deixar ser guiado por outro a fim de exercitar a confianccedila Poreacutem aqui o
desafio toma tons mais radicais para ambos quem natildeo vecirc precisa se empenhar para
confiar nos demais sentidos e arcar com a responsabilidade por si e por outrem ainda que
suas possibilidades estejam limitadas quem vecirc precisa se esforccedilar para natildeo assumir o
papel que natildeo eacute dele ou seja de guiar e assim aceitar os erros e equiacutevocos do guia
Proposta para a atividade
Tatildeo simples quanto complexa a depender de seu modo de execuccedilatildeo De material
didaacutetico apenas fitas de um tecido qualquer para cobrir os olhos O tempo de execuccedilatildeo
pode variar bastante mas entre 5 a 10 minutos costumam ser suficientes Ratificamos
que para cada nova dinacircmica conveacutem a realizaccedilatildeo da ambientaccedilatildeo conforme descrita
em ldquoQuando a vida nos diz natildeordquo
Originalmente ldquoA cegueira da visatildeordquo foi pensada para uma turma de 20 25 alunos
entre 8 e 11 anos mas fazecirc-la com uma turma inteira eacute bem trabalhoso Entatildeo para uma
179
turma menor ou talvez sortear alguns alunos seja mais pertinente Por outro lado eles
podem realizar a experiecircncia por eles mesmos com facilidade bastando um coleguinha
ou irmatildeo Outro ponto positivo estaacute no fato de que este exerciacutecio funciona bem para
idades mais avanccediladas conforme seraacute relatado adiante
Primeiramente eacute exposto aos possiacuteveis participantes o que se pretende fazer Dois
em dois um vendado e o outro natildeo O que natildeo enxerga deveraacute guiar aquele que enxerga
Quem guia deve estar ciente de sua responsabilidade e tentar executaacute-la da melhor forma
possiacutevel Quem eacute guiado deve refrear o iacutempeto corretor e deixar-se levar confiando no
guia A princiacutepio tudo parece uma brincadeira mas urgimos cuidado de quem guia Uma
digressatildeo breve sobre a confianccedila e sobretudo confiar como natildeo deter o controle pela
visatildeo vem a calhar Apoacutes entregar as faixas a cada dupla
Na experiecircncia propriamente dita deixe a dupla ambientar-se e em seguida pode-
se sugerir pequenas tarefas ou se o espaccedilo for amplo que ousem exploraacute-lo O importante
eacute haver deslocamento e o medo inicial caminhar em tensatildeo com a confianccedila
Diferentemente das outras atividades natildeo eacute aconselhaacutevel participar desta pois aleacutem dos
comandos eacute necessaacuterio estar em alerta e julgar quais riscos e satildeo convenientes e podem
vir a contribuir com a discussatildeo
Ao teacutermino eacute feita uma rodada das primeiras impressotildees e assim como em
ldquoExerciacutecios de ser crianccedilardquo eacute importante criar relaccedilotildees entre os diversos comentaacuterios
dando clareza e possibilitando uma discussatildeo mais profiacutecua Como jaacute houve uma
explanaccedilatildeo anterior tome cuidado para natildeo monopolizar a atividade com sua fala e ao
inveacutes motive e instigue as observaccedilotildees dos participantes e dos expectadores Cerca de 15
minutos deve ser o suficiente Relembrando que caso a discussatildeo esteja fluida pode ser
mais interessante adiar a proacutexima etapa da atividade para se aprofundar na atual
Por fim inverta os papeacuteis nas duplas e convide-os a se pocircr no lugar do outro Com
mais tempo ou turmas menores esta etapa pode vir logo em seguida da primeira
experiecircncia com a venda Isso tende a contribuir em muito com a discussatildeo
180
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar a atividade expor um comentaacuterio e entregar as faixas ndash 15
minutos
3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e instigar observaccedilotildees ndash 15 minutos
4 Inverter os papeacuteis nas duplas ndash 5 minutos
Relato da experiecircncia
Tendo feita a explanaccedilatildeo que natildeo necessariamente deve seguir essa
argumentaccedilatildeo eacute hora de prosseguir com a experiecircncia Lembrando que o intuito natildeo foi
ministrar uma aula (embora nada impeccedila) somente foi uma provocaccedilatildeo para suscitar mais
duacutevidas do que entendimentos claros O importante eacute questionar o domiacutenio do controle
pela visatildeo
Um detalhe importante Por vezes o tempo iraacute se perder num ponto inesperado
Como natildeo haacute um rigor curricular nem avaliativo forte cabe ao professor medir se vale a
pena ou natildeo interromper Ateacute o momento foram contabilizados 16 minutos e 33
segundos
Dando seguimento trazemos a transcriccedilatildeo comentada da experiecircncia feita com
duas jovens Thayrine e Patriacutecia que se propuseram a realizaacute-la e concordaram em ter
suas falas aqui colocadas
Andreacute mdash Bom fizemos questionamentos muito interessantes Agora gostaria
de propor uma atividade para que corporifiquemos o que acabamos de discutir
Se eu pudesse resumir tudo em uma questatildeo ela seria ldquoNatildeo se trata de confiar
na visatildeo dos outros tambeacutem nem de confiar demais em si mesmo enquanto
subjetividade enquanto um eu mas talvez uma confianccedila no conviterdquo Tendo
isso em mente eu gostaria de convidar a uma de vocecircs para que fosse vendada
(podemos trocar depois) e que a pessoa com a venda guiasse a outra
181
Neste momento Patriacutecia se prontifica a ser vendada o que gera protestos de
Thayrine Natildeo que ela quisesse a venda para si mas por achar que Patriacutecia conhecia mais
o local do que ela e por isso teria uma noccedilatildeo espacial muito boa Natildeo se apresentou
como algo tatildeo importante assim o conhecimento preacutevio pois mesmo que ela conhecesse
bem o espaccedilo eacute um entendimento baseado na visatildeo Somente o movimentar-se com os
olhos cerrados jaacute eacute o suficiente para arremessaacute-la a um ambiente novo semelhante a
visitar uma paisagem qualquer que somente haviacuteamos visto por foto Colocada a venda
retomamos a atividade
Andreacute mdash Pois bem vocecirc que jaacute conhece este ambiente haacute anos estaacute insegura
para caminhar Vocecirc estaacute acostumada com ele pelos seus olhos mas o instante
eacute cego Por outro lado Thayrine vecirc ambas fazem parte do mundo que eacute uma
moradia mas de forma diferente e vocecirc tem a responsabilidade dos anos
[refiro-me agrave Patriacutecia que era mais velha] Na morada vocecirc sabe onde estatildeo os
pratos e talheres onde o papel higiecircnico fica guardado quando acaba no
banheiro em qual garrafa se bebe ou natildeo pelo gargalo mas e agora
Patriacutecia guie Thayrine pelos cocircmodos Thayrine mesmo que vocecirc possa
enxergar permita que Patriacutecia a conduza por esta bagunccedila adentro Se vocecircs
forem dar de cara na parede aproveitem e sintam o cheiro dela Se um copo
quebrar aproveitem a visatildeo do belo buquecirc de cacos de vidro e o som do
estrondo
A princiacutepio ela foi deixada sem mais orientaccedilotildees poreacutem ao longo da experiecircncia
optou-se por designar pequenas funccedilotildees a serem desempenhadas A falta de um propoacutesito
imediato aumenta a desorientaccedilatildeo o que contribuiacutea para um deslocamento reduzido As
duas comeccedilaram a caminhar sem rumo mas com as pequenas missotildees apanhar um objeto
ou ir ateacute certo canto da sala a exigecircncia e o envolvimento delas foi maior Patriacutecia estava
descalccedila ela tateou a parede e se dirigiu para o corredor que liga os cocircmodos
Patriacutecia mdash Isso mesmo Thayrine deixe eu topar com o peacute ou bater com a
cabeccedila
Thayrine mdash Que medo
Andreacute mdash Patriacutecia Thayrine estaacute com sede vocecirc poderia pegar um copo
drsquoaacutegua para ela
Havia uma garrafa grande de vidro que quase foi derrubada assim que Patriacutecia se
pocircs a procurar um copo para servir aacutegua Em seguida foram solicitadas outras duas
tarefas e depois retornamos para o local de iniacutecio e recomeccedilarmos com Thayrine a guiar
Determinou-se outras duas tarefas diferentes das anteriores apenas a do copo drsquoaacutegua se
182
repetiu a pedido de Patriacutecia Esta parte da atividade contabilizou 11 minutos e 10
segundos
Foi iniciada a etapa da confrontaccedilatildeo entre o que haviacuteamos discutido na explanaccedilatildeo
e a praacutetica que acabamos de fazer Conveacutem perceber que nem sempre os rumos da
discussatildeo satildeo os mesmos jaacute traccedilados a exemplo aqui ela descambou para a situaccedilatildeo
professor-aluno em sala de aula Eacute importante costurar com esse conhecimento insurgente
e espontacircneo Inclusive debates anteriores podem servir de base na construccedilatildeo da
explanaccedilatildeo da atividade seguinte
Andreacute mdash O que vocecircs acharam da experiecircncia
Patriacutecia mdash Eu gostei bastante
Thayrine mdash Eu tambeacutem mas me senti um pouco perdida no iniacutecio
Andreacute mdash E o que vocecircs gostaram
Patriacutecia mdash O fato de ter de fazer as coisas sem enxergar conjuntamente com
a funccedilatildeo de guia
Andreacute mdash Vocecirc sentiu que guiou ou recebeu algum sinal advindo dos olhos
dela
Patriacutecia mdash Natildeo ela pousou suavemente a matildeo na minha e assim foi a
experiecircncia toda
Andreacute mdash Quando vocecirc foi conduzida sentiu que a reciacuteproca foi verdadeira
Patriacutecia mdash Sim natildeo tivemos problema quanto a isso
Andreacute mdash Vocecircs acham que teria alguma diferenccedila se estivessem sozinhas
Thayrine mdash Eu sou muito individualista natildeo estava pensando muito na
Patriacutecia mdash Estava mais preocupada em me localizar
Andreacute mdash Mas vocecirc estava a guiaacute-la natildeo
Thayrine mdash Ainda assim me preocupava mais comigo afinal ela podia
enxergar natildeo havia como quebrar ou esbarrar em algo
Andreacute mdash Quanto a vocecirc Patriacutecia
Patriacutecia mdash Eu tambeacutem natildeo me preocupei muito com ela mas suponho que se
estivesse sozinha a experiecircncia natildeo seria tatildeo prazerosa
Thayrine mdash Para quem estaacute vendo eacute muito interessante estar bem proacuteximo e
poder vivenciar todos os descaminhos que a outra pessoa percorre
Andreacute mdash A meu ver o aacutepice da experiecircncia foi quando Patriacutecia quase
derrubou a garrafa e vocecirc nada fez para impedir Eacute a ideia do convite permitir-
se seguir os descaminhos de outrem Quem enxerga deteacutem um conhecimento
distinto e junto com ele um poder pois natildeo se trata de uma experiecircncia de
conhecer pelo contraacuterio ela convida a abrir matildeo momentaneamente do que jaacute
sabemos para experimentar algo novo
Patriacutecia mdash Bem se eu soubesse que havia uma garrafa ali certamente teria
desviado
Andreacute mdash Ao mesmo tempo natildeo eacute como se fosse um mundo completamente
proibido Tem-se acesso a ele soacute que por uma via diversa da qual se estaacute
habituado Haacute aromas tipos de superfiacutecie ruiacutedos etc
Andreacute mdash Agora pensando um pouco na discussatildeo do iniacutecio a partir dessa
experiecircncia vocecircs conseguem relacionar com o que haviacuteamos conversado
Thayrine mdash Eu acho que sim por essa questatildeo de o homem abandonar uma
necessidade de controlar o conhecimento para algueacutem e deixar que a pessoa se
vire mas foi bem mais libertaacuterio nesse sentido Quando eu a guiei natildeo teve
nenhuma interferecircncia no que eu estava fazendo Ela realmente me deixou
fazer tudo Se no caso eu fizesse o papel de aluno
183
Andreacute mdash Um momento A meu ver se eu tomasse essa experiecircncia como uma
alegoria da sala de aula o professor seria o cego Natildeo eacute ele quem estaacute
conduzindo
Patriacutecia mdash Eu pensei o contraacuterio ao que vocecirc estaacute dizendo porque de certa
forma apesar de ele estar guiando eacute como se ele natildeo tivesse conhecimento
natildeo
Andreacute mdash Pode ser o guia tem um conhecimento assim como o guiado soacute
satildeo diferentes Interessante que mesmo eu orientando vocecircs para natildeo
interferirem por vezes sua visatildeo de guiada natildeo consegue se ausentar Isso faz
parte eacute uma tensatildeo na verdade entre controle e descontrole Nem um nem
outro mas ambos Esse eacute o desafio
Thayrine mdash Deixe-me ver se eu entendi A pessoa que estaacute enxergando abre
matildeo do seu conhecimento para deixar que o outro assuma Ou seja quem
enxerga tenta guiar de alguma forma
Patriacutecia mdash Eu concordo com ela
Andreacute mdash Difiacutecil natildeo guiar Estamos habituados a isso Tambeacutem tem o fato de
por mais que possa haver um esforccedilo de pacificaccedilatildeo eacute muito difiacutecil nos
anularmos totalmente Creio que natildeo eacute possiacutevel jamais saber todo o ministeacuterio
Pois bem muito bom poreacutem a hora urge alguma consideraccedilatildeo final
Patriacutecia mdash Gostaria de ressaltar que concordo com Thayrine O aluno vendado
eacute de certa forma o professor guiado justamente porque a pessoa que estaacute
sendo guiada abre matildeo de seu conhecimento para se permitir ser guiada pelo
outro Na verdade o outro mostra a vocecirc as necessidades dele para que vocecirc
possa em alguma medida interferir Natildeo incisiva mas participativamente
Thayrine mdash Tem outra questatildeo que parte do pressuposto de que vocecirc sabe
tem algum conhecimento que aquela pessoa natildeo tem O que estaacute vendo de
algum modo tem um conhecimento que o outro natildeo tem mas deixando-se
guiar percebe que a outra pessoa tambeacutem tem um conhecimento diferente do
seu Ah Eu estava sentindo as coisas de outra forma diferente de Patriacutecia eu
tinha que tocar em tudo eacute diferente
Patriacutecia mdash Eacute outra forma de vivenciar de encontrar o mesmo caminho soacute que
por outras vias
Neste ponto encerramos a atividade Interessante perceber como a questatildeo do
controle e descontrole tomou rumos proacuteprios Numa situaccedilatildeo com outras pessoas a
discussatildeo certamente seria distinta O bate-papo final durou 9 minutos e 6 segundos Ao
todo foram cerca de 45 minutos
Reflexatildeo com a experiecircncia
De todos os cinco sentidos a visatildeo talvez seja o mais exaltado em nossa sociedade
Afirmaccedilatildeo que pode ser verificada de muitas maneiras uma delas se refere agrave luz Ela que
eacute possibilidade de visatildeo nos eacute apresentada como algo fundamental tanto pela via sacra
quanto pela sinoniacutemia com razatildeo Em Gecircnesis Capiacutetulo 1 Versiacuteculo 3 (BIacuteBLIA 1962)
184
temos a famosa passagem ldquoFiat luxrdquo na qual a divindade faz com que haja luz em
detrimento das trevas e a partir desse ato haacute vida De modo semelhante ldquoa racionalidade
eacute vista como a essecircncia e o destino do ser humanordquo (BIESTA 2013 paacuteg 31) no seacuteculo
XVIII conhecido tambeacutem como Seacuteculo das Luzes
Esta sociedade que vecirc acaba se definindo entre os limites do alcance de sua visatildeo
E a luz ora pelos deuses ora pela razatildeo possibilita que se possa ver isto eacute definir
Quando Heidegger (2008 paacuteg 41) se refere agrave ciecircncia (intimamente relacionada com a
razatildeo) como a ldquoteoria do realrdquo ele dialoga diretamente com o homem que vecirc e que precisa
ver para ser homem
O homem que vecirc se habituou com a visatildeo ele entende o mundo a sua volta por
esse sentido Um haacutebito que lhe trouxe conforto e seguranccedila A ciecircncia com sua exatidatildeo
traz seguranccedila Nesse vieacutes a teoria do real apresenta reminiscecircncias do sentido do verbo
grego theoreacutein contemplar perceber observar mas tambeacutem consultar um oraacuteculo
(LIDDELL SCOTT 1940) A luz da razatildeo permite que o homem veja o real assim como
o oraacuteculo permitia que o homem soubesse o desiacutegnio dos deuses
Natildeo podia o homem grego ter acesso ao desiacutegnio dos deuses senatildeo pelo oraacuteculo
Natildeo pode o homem atual ter acesso a seu mundo senatildeo pela luz da razatildeo Biesta (2013)
reconhece que o problema do homem racional (ou humanismo) eacute sua normatizaccedilatildeo do
que significa ser humano e consequentemente como compreender seu mundo Para entatildeo
corresponder a essa questatildeo o autor vai propor repensar o que entendemos por homem
Todavia em vez de perguntar pelo que eacute o homem a pergunta agora interroga a respeito
de onde o homem se torna presenccedila
Uma mudanccedila nada banal de como lidar com a questatildeo Enquanto a primeira
remete a si ao homem que (se) vecirc a segunda remete ao outro ao lugar no qual o homem
que vecirc se encontra uma pergunta pelo ser a outra pela presenccedila Sutilmente a questatildeo
engendra outra perspectiva de se dispor a perguntar pelo ser que tambeacutem eacute ser da
presenccedila e pela presenccedila do ser Trata-se de enfoque afinal ambas as perguntas satildeo feitas
pelo homem atual a saber noacutes mesmos
Perguntar pela presenccedila tambeacutem pergunta pelo ser mas tentando resgatar o que
haacute de mais concreto e mais perto embora nem sempre acessiacutevel deste ser Quando se
pergunta pela presenccedila assume-se que a essecircncia estaacute aqui independentemente do que
se acredita que ela seja ou poderia ser Se algueacutem pergunta eacute porque quer saber algo mas
185
a pergunta pela presenccedila natildeo comporta a seguranccedila de uma definiccedilatildeo propotildee o convite
da visita agrave presenccedila do outro
Por visita novamente o professor Biesta (2013) nos esclarece uma importante
distinccedilatildeo entre empatia turismo e visita A empatia e o turismo eacute uma adequaccedilatildeo de
sujeitos a outros sujeitos A visita por outro lado tenta manter as distacircncias entre cada
parte envolvida em um lugar comum Desta forma eacute assumido o desafio de amar o
proacuteximo como o proacuteximo que ele eacute ao inveacutes de como noacutes mesmos impondo ao outro
nossa forma de ver o mundo
O que podemos fazer sem luz Danccedilar eacute uma possibilidade O danccedilarino que olha
para os proacuteprios peacutes natildeo estaacute a danccedilar pois estaacute ocupado a olhar para os peacutes O deus que
danccedila (NIETZSCHE 1981) nunca sequer os viu ele confia no chatildeo e no ritmo
Naturalmente esta confianccedila natildeo vem sem risco Noacutes mortais mais do que os deuses
estamos sujeitos agrave violecircncia do mundo queremos possuir o diferente para nos
salvaguardar do que nos desafia irrita perturba (BIESTA 2013) e mata
Logo natildeo ver ou abrir matildeo da visatildeo natildeo pode ser resolvido num mero acender
ou apagar das lamparinas Eacute abraccedilar uma realidade com espinhos e perceber que nem tudo
poderaacute ser calculado e muito menos medido pela sua funcionalidade O homem que natildeo
valoriza a inutilidade vecirc a danccedila unicamente como adequaccedilatildeo aos passos coreograacuteficos
ele natildeo tem tempo para perder tempo para suspender o tempo fabril (MASSCHELEIN
2010) e experienciar a brevidade do mundo para arriscar e provar e natildeo gostar e
recomeccedilar de outra maneira Natildeo eacute capricho do cego danccedilar sem ver Assim como natildeo
devemos encarar a suspensatildeo da visatildeo como excentricidade mas sim por uma visita
(BIESTA 2013) a lidar com um mundo que natildeo conhecemos nem podemos conhecer
186
Consideraccedilotildees finais
Em linhas gerais tentamos relacionar entre si trecircs questotildees principais com o
intuito de habitar o terreno das praacuteticas mais adiante o que eacute tradiccedilatildeo o que eacute filosofia e
o que eacute linguagem Naturalmente que haacute uma infinidade de respostas Ratificando a accedilatildeo
de convidar seguem alguns encaminhamentos possiacuteveis que iratildeo ajudar na compreensatildeo
deste trabalho
A tradiccedilatildeo e o ensino andam juntos Este transmite a mensagem que aquele deixou
ao longo dos anos Concomitantemente aprendemos a crer na tradiccedilatildeo e em sua
transmissibilidade O modo como encaramos um natildeo se distancia muito do jeito que
lidamos com o outro a tal ponto que o ensino da tradiccedilatildeo se confunde com a tradiccedilatildeo do
ensino Nesse sentido natildeo eacute de se espantar que partir para estranhos rumos e diferentes
rotas gere algum abalo na maneira tradicional de ver as coisas Numa perspectiva mais
ampla somos e natildeo somos nossos pais assim como nossos filhos estatildeo destinados a ser
e natildeo ser agrave nossa imagem e semelhanccedila Nem a mensagem a ser transmitida costuma ser
assimilada de forma tatildeo inoacutecua sem alguma coisa de maacutecula e invencionice Por esse
motivo certo descontrole eacute mais do que bem-vindo eacute essencial
Prosseguindo o desenvolvimento das questotildees com as quais buscamos
familiaridade e em se tratando de experiecircncias de base filosoacutefica eacute interessante se
perguntar pela tradiccedilatildeo da filosofia Normalmente conceituaccedilotildees complexas e a sisudez
em seu trato se afinam com a filosofia e em contrapartida uma postura poeacutetica ou menos
centrada no conceito tendem a atrair repulsa O que chamamos de filosofia nem sempre
teve entendimentos afins com os atuais Nomeaccedilatildeo que instigava ideologias distintas sob
semelhante alcunha Inclusive aquelas definiccedilotildees e anedotas filosoacuteficas passaram por
modificaccedilotildees e solidificaccedilotildees no imaginaacuterio do pensamento de tal modo que pensar
aqueacutem ou aleacutem delas torna-se um esforccedilo tremendo
Refazer os passos que nos pisaram pisam e pisamos eacute conveniente Desde a
segregaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel ateacute o estabelecimento do domiacutenio da razatildeo o
pensamento soube se definir Eacute preciso desaprender Se o poeta foi expulso e com ele o
modo de ser poeacutetico tambeacutem a filosofia natildeo se encontra em bons lenccediloacuteis Achincalhada
de sandice e coroada de matildee de todas as ciecircncias enquanto foi esquecida propositalmente
187
no asilo das irrelevacircncias pelos filhos ingratos a maneira de dizer filosoacutefica eacute esvaziada
de importacircncia e soacute um pensamento disposto a pensar-se isto eacute uma filosofia capaz de
se questionar filosoficamente pode ousar um espaccedilo em nossa sociedade do controle
Conclui-se portanto que natildeo existe nada como uma existecircncia sem sentido Todo
existir significa um jeito de ver sentir pensar enfim ser A criacutetica da tradiccedilatildeo e
consequentemente da tradiccedilatildeo do pensamento estaacute intimamente vinculada com a criacutetica
de como somos o que somos Em outras palavras eacute perguntar o que eacute o ser a partir de
como se eacute Como natildeo deixar nossas respostas virarem soluccedilotildees mas permitirem a
recolocaccedilatildeo da questatildeo Como dizer sem definir nomear sem classificar Natildeo haacute
resultados garantidos soacute o horizonte e o misteacuterio que tanto esconde e nega quanto mostra
e ensina ldquoQuem quer passar aleacutem do Bojador Tem que passar aleacutem da dorrdquo (PESSOA
1934 paacuteg 64)
188
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e saber o que somos e o que nos motiva a continuar a pensar Isso porque
corriqueiramente pensamos sem agradecer e agradecemos sem pensar Quero natildeo faltar
com essa moeda a vocecircs com essa dupla face que se desdobra e se encara Moeda
amassada e dobrada sem valor no mercado mas muito importante para o mercado para
os homens para a cultura pensamento e agradecimento
Como eu havia dito esta tambeacutem eacute minha cidade meu lugar de conforto meu lar
e minhas ideias Vocecircs satildeo desde antes da escrita uma disposiccedilatildeo para pensar e um
pensamento disposto a agradecer o que muda depois da escrita Nada e tudo Hoje se
encerra um ciclo poreacutem ciacuterculo que eacute ciacuterculo nunca acaba Ele gira ele roda enquanto o
centro permanece e possibilita a circulaccedilatildeo assim como a circulaccedilatildeo daacute sentido ao centro
irradiador
O Misteacuterio mora
Girando na roda o homem danccedila e ignora
Mas o Misteacuterio mora no meio e memora (FROST 1942 paacuteg 71 ndash traduccedilatildeo
de Andreacute Borges e Thayrine Kleinsorgen)1
Ainda assim alguns talvez natildeo conheccedilam do que trata o mutiratildeo que conduziu ateacute
a Dissertaccedilatildeo Eis o percurso tradiccedilatildeo filosofia e linguagem Disso meu trabalho fala a
respeito A parte de vocecircs Bem vocecircs satildeo a tradiccedilatildeo que quer se perpetuar e o ensino
que se esforccedila para que isso aconteccedila Satildeo a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo e sua mensagem dando
possibilidade para a criaccedilatildeo de novas coisas novas operaccedilotildees novas dissertaccedilotildees
Enquanto processava essas informaccedilotildees fiz um percurso ateacute meus 20 anos para o
iniacutecio da faculdade de Letras continuei ateacute os 18 ainda na faculdade de Filosofia e natildeo
parei esbarrando em Platatildeo e em sua filosofia que convenhamos eacute ainda a nossa
filosofia Eacute e natildeo eacute De Platatildeo a Heraacuteclito dei a volta para chegar agrave poesia ao dizer poeacutetico
a uma poeacutetica que natildeo eacute papo de quem nunca trabalhou de verdade mas de quem trabalha
com a verdade em sua multiplicidade e concretude
Vocecircs estavam juntos sem o saber ou sabendo Foi uma conversa aqui uma ajuda
com uma traduccedilatildeo ali muitas negativas e ausecircncias Cada pedaccedilo de texto eacute um bordado
a vaacuterias matildeos um diaacutelogo cujas vozes eu ouvia e caacute estou a dividir com vocecircs minha
esquizofrenia salutar A sauacutede convulsionante desses uacuteltimos tempos deixa uma
1 The Secret sits We dance round in a ring and suppose But the Secret sits in the middle and knows
significante marca a ferro na histoacuteria da minha vida de modo que natildeo seria possiacutevel nem
que eu quisesse nem que eu fosse desonesto comigo mesmo prosseguir sem que se
tornasse notaacutevel a boiada agrave qual faccedilo parte
Pensa quem agradece logo porque agradeccedilo penso A travessia que fiz e faccedilo eacute
nossa e minha Ela eacute sempre de dois dois extremos duas margens Atravessar por outro
lado eacute algo solitariamente proacuteprio Ningueacutem pode atravessar por mim Podem sim me
ensinar podem me carregar mas quem atravessa sou eu Eu atravesso e sou atravessado
pela travessia que satildeo duas que somos noacutes e em alguma medida nenhum de noacutes A
terceira margem de um extremo eacute o local ao qual natildeo temos acesso mas fazemos parte
sem saber sem querer sem buscar Acham mesmo que eu esperava fazer o que fiz
Acham mesmo que algueacutem faz exatamente o que planejou O ponto de chegada nunca eacute
aquele da partida
A terceira margem embora natildeo exista como um local fiacutesico eacute de uma
espacialidade presente esse lugar que estamos quase chegando poreacutem nunca aportamos
de fato Sabe quando terminamos algo mas na verdade sabemos que daria para fazer
mais alguma coisinha mais uma pincelada de tinta mais uma frase soacute um minutinho a
mais Isso eacute porque sempre haacute o que fazer sempre haacute aonde chegar Esta Dissertaccedilatildeo natildeo
eacute um comeccedilo natildeo eacute certamente um fim ela eacute um encaminhamento uma possibilidade
ela estaacute sendo feita ainda e jaacute foi concluiacuteda tempos atraacutes em certo sentido
Ela existe para mim e independente de mim um convite a vocecircs e inegavelmente
um convite a mim Se eu agora a relesse toda faria outra Dissertaccedilatildeo completamente
diferente Natildeo por discordacircncia mas porque depois dela depois de vocecircs depois de tudo
que nos atravessa jamais daria para repetir e concordar em absoluto com o que estaacute aqui
Mesmo assim talvez ateacute pelo carinho que tenha pelos presentes foi um enorme prazer
escrever
Prazer e dor Nunca foi tatildeo difiacutecil olhar no espelho Como quem envelhece dez
anos em dez meses como uma necessidade boa mas um fardo obrigatoacuterio escrever eacute ter
de lidar com todos nossos monstros e heroacuteis Algo do medo das primeiras vezes sabe-
se laacute o que pode acontecer Aquela primeira vez que andamos sem nossos pais na rua
quando a responsabilidade precisa ser assumida ainda que seja para comprar algumas
balas Em cada decisatildeo uma monstruosidade estaacute agrave espreita e temos medo
Nas histoacuterias em quadrinhos em geral aparecem os heroacuteis que salvam o dia Na
histoacuteria contada nestas paacuteginas dissertativas heroacutei e monstro salvam-se um ao outro
Afinal haacute alguma proximidade entre eles Ambos desafiam os limites estabelecidos por
isso tecircm de lidar com a criaccedilatildeo esse mundo desbravado e com a tradiccedilatildeo aquilo a ser
testado ao extremo Monstro e heroacutei satildeo aspectos diferentes da mesma dobradura de
paacutegina O que seria do Superman sem o Lex Lutor para que aquele pudesse ser super O
que seria do inimigo sem o guerreiro para fazer frente Teriacuteamos que aceitaacute-lo passivos
passividade terminal doenccedila Natildeo o caminho proposto traz agrave tona toda a tensatildeo que
qualquer boa conversa deve ter duas vozes que se completam em uma
Nesse sentido heroacutei eacute soacute um desdobramento nosso Assim como o monstro
Aquilo que talvez ainda natildeo sejamos mais almejamos e repudiamos Aquela presenccedila
que nos incomoda e nos mostra tudo o que somos e podemos ser Cada um de vocecircs que
compotildee minha escrita forccedilou-me agrave beira do que sou tanto que esgarcei e estou tranquilo
Fiz o que pude agrave luz de tatildeo heroica e monstruosa visatildeo
Com o intuito de dar um exemplo vivo do que falo trago uma anedota Numa
mesa de restaurante certa vez falava e ouvia com um amigo Ele relatava sua histoacuteria e as
personagens principais nela Ora tinham vilotildees e mocinhos ora as mesmas figuras
desempenhavam papeis diferentes hoje elas permaneceram fazendo dele o que ele ainda
eacute Pude assistir a tudo e refletir quais seriam meus protagonistas O tempo trouxe alguns
rostos agrave memoacuteria outros ficaram esquecidos Suas influecircncias nem sempre seratildeo
lembradas por mim mas nem por isso elas deixaratildeo de estar presentes Natildeo paro de
aprender com meus mestres sem nome e aos que tenho como nomear tento deixar
subentendido para natildeo deixaacute-los vaidosos e envergonhados Silenciosamente contorno a
gigantesca daacutediva a enorme diacutevida cuidando para natildeo tropeccedilar nas palavras gratuitas e
nos elogios vazios Busco a homenagem precisa meliacuteflua e perspicaz sem a
obrigatoriedade de deixar claros os rastros da minha monumental gratidatildeo Ao misteacuterio
fique relegada toda a verdade De modo sorrateiro deixo duas pegadas para cada passo
reverberando feito corajosa lira os sons delicados de gatos no jardim entre assumpta
figueira e oliveiras ao largo da almeida do barco do desbravador
Tive sorte e por isso agradeccedilo Fui afortunado por compartilhar meus
pensamentos Aquele menino que viu o Peleacute jamais jogaraacute bola do mesmo jeito
Lembram-se quando ainda estavam inseguros ou quando acreditavam jaacute saber fazer algo
e viram um grande mestre reinventar a roda Seja vendo sua avoacute cozinhar sua matildee trocar
a frauda de seu receacutem-nascido ou soacute um amigo mais velho a dividir suas histoacuterias
heroicamente o diaacutelogo se estabelece e vocecirc acaba de ser atravessado por ele Soacute resta
reaprender a viver depois disso Obrigado
Dedico este texto em profundo agradecimento aos seguintes nomes presentes na
minha Defesa
Adriano Furtado Hugo Afonso Correia de Almeida
Alice Bentzen Assumpccedilatildeo Isabella Daemon
Amanda Falconi Jessica Natarelli
Ana Cristina Gelape Julia Hortecircncia Carvalho Nascimento
Antonio Jardim Maria Lucia de Oliveira da Purificaccedilatildeo Marinho Pereira
Baacuterbara Martins Pedro Trajano Cardoso
Caio Cruz Priscila Loureiro
Denilson Marinho Pereira Rafael Barbosa
Diogo Santos Rodrigo Marques de Carvalho
Eduardo Gatto Thayrine Kleinsorgen de Almeida Cruz
Felipe Forain Marques Viniacutecius de Figueiredo Barbosa
Giovanna Giffoni
E agraves presenccedilas ausentes que contribuiacuteram para este trabalho
Allan Charles Marcus Caetano
Andreacute Viniacutecius Lira Costa Marcus Erbas
Andreacuteia Pedroso Mariana Borges de Oliveira
Carla Rodriguez Mariana Rodrigues
Daniel Forain Nicole de Oliveira
Edna Oliacutempia Patriacutecia Trajano Cardoso
Edson de Almeida Ramos Rafael Lemos
Felipe Copque Rodrigo Wentzel
Fernanda Fonseca Silvia Herkenhoff Carijoacute
Fernando Sampaio Taynaacute Rosa
Flaacutevio Chame Thiago Pereira
Gabriel Torres Vanise Dutra
Gabriela Borges de Oliveira Walter Kohan
Guiomar Borges Yasmin Motta
Ivana Machado Demais profissionais que me auxiliaram
Liacutevia Egger Demais professores que me formaram
Luiacutes Antocircnio Borges de Oliveira Demais amigos que me constituiacuteram
Manuel Antocircnio de Castro Demais familiares que me possibilitaram
EPIacuteGRAFE
Aacutervore genealoacutegica
A mais frondosa aacutervore da cidade
Eacute a aacutervore que jaz no cemiteacuterio
Seu viccedilo traz de longe uma saudade
Que a bruma envolve toda em misteacuterio
A seiva lembra sangue escurecido
Sangue que me sangra jaacute esquecido
Do pai do pai do pai (um fruto antigo)
Que crava suas raiacutezes laacute em Vigo
Comer a carne doce recolhida nesse horto
Eacute devorar um violado corpo (morto morto morto)
Que restou de um ancestral
Thayrine Kleinsorgen
RESUMO
O ensino de filosofia a partir de uma perspectiva poeacutetica
Questionamento acerca da concepccedilatildeo de filosofia que resgate sua afinidade
originaacuteria com a poesia a fim de que se compunha um ensino galgado na criaccedilatildeo ao inveacutes
da reproduccedilatildeo Por ser uma disciplina estigmatizada de obscura de inuacutetil e de pouco
importante numa compreensatildeo praacutetica e objetiva natildeo eacute de se espantar que isso influencie
diretamente seu ensino logo conveacutem se perguntar sobre nossa ideia de tradiccedilatildeo e
consequentemente da possibilidade ou natildeo de transmissatildeo da tradiccedilatildeo pelo ensino
Naturalmente que a proacutepria tradiccedilatildeo da filosofia natildeo poderia ser deixada de lado Aleacutem
do mais eacute possiacutevel constatar que parte do caraacuteter segregante com a qual a filosofia eacute
relacionada tem um fundamento em sua histoacuteria com a separaccedilatildeo do poeta e da cidade e
da realidade sensiacutevel e inteligiacutevel Portanto recriar a ponte partida entre pensamento e
poesia significa tanto ousar uma nova postura diante da realidade quanto retomar sentidos
adormecidos na linguagem cotidiana Por fim fica patente que determinadas amarras
estatildeo presas demais para abrirmos matildeo mas outras nem tanto e ambas fazem parte do
que nos constitui Ou seja aceitar nossos limites enquanto o que nos fundamenta e daacute
sentido e natildeo apenas um cerceamento mas uma resposta que tanto define algo quanto
recoloca a questatildeo fundadora numa perspectiva singular torna-se postura essencial para
uma poeacutetico-filosofia
Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem
ABSTRACT
The teaching of philosophy from a poetic perspective
Questioning about the conception of philosophy that rescues its original affinity
with poetry in order to teach based in creation rather than reproduction Because it is a
discipline that is stigmatized as obscure useless and unimportant in a practical and
objective understanding itrsquos not surprising that this directly influences its teaching so
one has to ask about our idea of tradition and consequently the possibility of
transmission of tradition through teaching Of course the very tradition of philosophy
could not be left aside Moreover it can be seen that part of the segregating character
which philosophy is related has a foundation in its history with the separation of the poet
and the city and the sensible and intelligible reality Therefore re-creating the bridge
between thought and poetry means both to dare a new attitude towards reality and to
return to the dormant senses in everyday language Finally it becomes clear that certain
moorings are too fastened to give up but others not so much and both are part of what
constitutes us That is to accept our limits as what gives us meaning and not only a
restriction but an answer that both defines something and replaces the founding question
in a singular perspective becomes an essential posture for a poetic-philosophy
Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
Figura 1 ndash As quatro influecircncias 75
Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna 77
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 15 1 Pensando a Educaccedilatildeo 20 11 O ensino decide por dizer 20 111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc 22
112 Um saber que rasga 26 113 Natildeo ensinar e a ciecircncia 33 114 O jogo do poeta e da infacircncia 38 12 A tradiccedilatildeo 40 121 Quando o poeacutetico repousa esquecido 42
122 A ideia e o ser 43
123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo 46
124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo 49 125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo 52 126 Os mutirotildees do homem 55 2 Pensando a Filosofia 57
21 A filosofia como resposta 57 22 Filosofia inteligecircncia e entendimento 60
221 Ciecircncia e intelecto 72 23 Crenccedila e conjectura 73 24 Filosofia e opiniatildeo 80
25 Diaacutelogo e filosofia 85 3 Pensando a Linguagem 96
31 Linguagem e limite 101
32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem 106
33 O limite da resposta 110 34 A resposta do limite 115 35 Dois lados da mesma moeda 118 351 A resposta que natildeo soluciona 118
352 Temor sagrado 121 353 O que responde o sagrado 125 Consideraccedilotildees Finais 131 Referecircncias 137 Apecircndice 150
15
Introduccedilatildeo
Pensar uma educaccedilatildeo para aleacutem do controle eacute um desafio Os perigos satildeo os mais
diversos pois somos criados na mesma tradiccedilatildeo que agora pretendemos criticar
Diferente de outros temas ndash mais abstratos ou distantes historicamente ndash este apresenta
claro como o sol nossa relaccedilatildeo intriacutenseca com ele Somos filhos netos e pais de um
modelo educacional que compreende como fundamental a transmissatildeo de um
conhecimento das antigas para as novas geraccedilotildees
E qual natildeo seria o papel da educaccedilatildeo senatildeo este o de transmitir saberes valores
o de fornecer proteccedilatildeo e preparaccedilatildeo para uma realidade cada vez mais exigente e
competitiva A responsabilidade que a sociedade coloca e cobra da escola e
consequentemente dos professores se justifica por essas mesmas razotildees Por que entatildeo
natildeo seria um desserviccedilo questionar esse esquema que legitima os fundamentos da proacutepria
noccedilatildeo contemporacircnea de vida conjunta
Somos crias desse sistema e por isso aprendemos sempre a perguntar pela
funcionalidade das coisas o para quecirc serve isso ou aquilo evidentemente com a
educaccedilatildeo natildeo seria diferente Eacute nesse sentido principalmente que se torna desafiante
pensar a educaccedilatildeo movimento de des-afiar desfiar desafianccedilar de natildeo manter a
fidelidade com o desafiado (HOUAISS 2009a Desafiar) ou seja fazer o corte
delimitador entre o que somos e o natildeo ser Em outras palavras o desafio de pensar a
educaccedilatildeo caminha pelos limites que entrecortam os porquecircs de ensinar e aprender o que
ocasiona esses porquecircs e como podemos corresponder a eles
Eis que aceitando o convite do desafio da educaccedilatildeo deparamo-nos com o
seguinte impasse eacute possiacutevel abrir matildeo do controle Falar dos limites natildeo eacute a princiacutepio
o mesmo que falar da posse controladora Seacuteculos de metafiacutesica tecircm-nos confundido
quanto a isso e facilmente assumimos que controlar algo eacute limitaacute-lo como se nossa
vontade fosse decisiva para validar ou natildeo a sua existecircncia
Controla-se para dar sentidos O que estaacute dentro da cerca eacute nosso o que estaacute fora
eacute natildeo nosso outra coisa que estaacute sempre a rivalizar com as cercanias do que existe meu
mundo nosso mundo o mundo ocidental A esta forma de controle especiacutefica do
Ocidente chama-se ciecircncia ldquoa teoria do realrdquo (HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Um modo
16
peculiar de dizer o que algo eacute conferindo-lhe existecircncia cientiacutefica a partir da descriccedilatildeo
de suas partes de nuacutemeros que a representem matematicamente de utilidade na maacutequina
mantenedora da seduccedilatildeo da crenccedila pelo controle etc
Assim os limites da φύσις do real tornam-se os limites no real na φύσις como
cessaccedilatildeo do fluxo de acontecimentos em prol da seguranccedila da estatiacutestica 99 precisa
margem beirando o inalcanccedilaacutevel 0 Questionando junto com Fernando Pessoa (2006 paacuteg
62) o que eacute o zero na realidade Assim a ciecircncia eacute a seguranccedila de um pensamento uacutetil
capaz de servir a propoacutesitos dos mais diversos que depois seraacute colocado agrave disposiccedilatildeo
para por precauccedilatildeo posterior usufruto
Natildeo se admira que a educaccedilatildeo de algo possa ser transmitida pois acredita-se na
confecccedilatildeo de uma mensagem que atravessa de preferecircncia incoacutelume de um remetente a
um destinataacuterio Quer dizer que natildeo haacute mensagens Que nada pode ser ensinado e
aprendido Seria relativizar demais a discussatildeo e caminhar atraacutes do proacuteprio rabo para no
fim alcanccedilar quando muito o comeccedilo improfiacutecuo Natildeo aqui se refere agrave crenccedila na
mensagem
Certa tolice certa inocecircncia que nos acompanha eacute a de que podemos fazer
qualquer coisa conforme a planejamos Ter esperanccedilas e fazer planos para a realizaccedilatildeo do
sonho aparece neste trabalho tatildeo proacutepria aos entes quanto suas falhas incessantes e ainda
assim ldquoentre fazer e natildeo fazerrdquo
O artista inconfessaacutevel
Fazer o que seja eacute inuacutetil
Natildeo fazer nada eacute inuacutetil
Mas entre fazer e natildeo fazer
mais vale o inuacutetil do fazer
Mas natildeo fazer para esquecer
que eacute inuacutetil nunca o esquecer
Mas fazer o inuacutetil sabendo
que ele eacute inuacutetil e bem sabendo
que eacute inuacutetil e que seu sentido
natildeo seraacute sequer pressentido
fazer porque ele eacute mais difiacutecil
do que natildeo fazer e dificil-
mente se poderaacute dizer
com mais desdeacutem ou entatildeo dizer
mais direto ao leitor Ningueacutem
que o feito o foi para ningueacutem (MELO NETO 1975 paacuteg 30)
17
Natildeo haacute controle com o que se aprende Planejamos com cuidado uma aula
confiamos que nossos caacutelculos daratildeo certo mas em verdade natildeo importam quais os
dispositivos de controle utilizados todos estaratildeo sujeitos aos limites impostos pela
corrente de acontecimentos incertezas e impossibilidades a que chamamos real Natildeo agrave
toa a compreensatildeo mais tradicional de ensino estaacute calcada na ideia da transmissatildeo de um
conteuacutedo Nesse sentido questionar a extensatildeo de um controle eacute sim um risco ao
sustentaacuteculo da crenccedila na mensagem Isso passa por uma criacutetica da tradiccedilatildeo jaacute que ficaria
difiacutecil sem ela pois esta eacute nossa histoacuteria nosso modo de ver as coisas
Abrir matildeo do controle natildeo eacute abrir matildeo dos limites Que a questatildeo se torne pois
como agir diante do que se aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente
ele natildeo eacute Os limites satildeo tatildeo impostos pela tradiccedilatildeo quanto pelo saber atual Diga-se de
passagem tradiccedilatildeo e atualidade natildeo satildeo completamente distintas uma da outra
Numa outra concepccedilatildeo esquecida no uso mais habitual haacute a palavra poeacutetica que
brinca com os controles e alarga os limites Laacute jazem outros tempos outras liacutenguas que
aqui nos achegam como convites de pensamento Uma tradiccedilatildeo que eacute traditio uma
traditio que eacute traiccedilatildeo Perpetremos a traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo enquanto mutiratildeo de todos pois
ontoloacutegica e etimologicamente todas as palavras se imiscuem e se dizem de modos
singulares
Ideias estranhas numa trajetoacuteria de conhecimento linear Entretanto quando nos
defrontamos com um saber que sabe porque vecirc e soacute vecirc porque sabe o que antes causava
estranheza pode suscitar sentido Compreensatildeo que natildeo se fia no controle mas que
delimita e por isso constitui uma existecircncia pela experiecircncia com algo
Um limite que marca sem controlar uma ideia que natildeo se restringe agrave sua
inteligibilidade mas que se apresenta como verdade que demarca uma manifestaccedilatildeo no
real Sem certo ou errado a priori apenas eacute Apenas natildeo como o que se esvai na
banalidade do sem importacircncia mas denso e simples como a dor de topar numa pedra
como se ela inanimada pudesse gritar caacute eu estou acolaacute tu
Ao aceitar o desafio que a educaccedilatildeo exige arrisca-se no estrangeiro do caminho
aquilo que natildeo conhecemos Postura essa conveniente se quisermos enveredar por
assuntos pouco visitados por exemplo a filosofia em tempos de crise do pensamento Isso
significa tratar de uma temaacutetica fora dos paradigmas sem os quais nos acostumamos a
fim de natildeo soacute educar de modo diverso mas concretamente diverso
18
A filosofia jaacute possuiu uma conduta puacuteblica e sua praacutetica era indicada para entre
outras coisas uma vida feliz e um Estado profiacutecuo Atualmente contudo atende a
indiviacuteduos e suas curiosidades ou assombra a escrita destinada agrave gaveta de algum
acadecircmico Em meio agrave tecnocracia ela natildeo tem mais vias praacuteticas de atuaccedilatildeo ou pelo
menos essa eacute a compreensatildeo corrente Isso porque eacute difiacutecil precisar sua funccedilatildeo e
consequentemente duro eacute o ensino que natildeo se fia no para quecirc ensinar
Vale se for para a prova mas apenas para a prova Vale se for soacute por saber desses
somentes simploacuterios e ociosos de sentido Vale pelas vias da utilidade que sem ela nada
presta Afinal qual o ofiacutecio do filoacutesofo ou do poeta O que um pensador faz constroacutei ou
salva A imaterialidade da obra da filosofia eacute mal vista no mundo materialista Ainda por
cima desde seus tempos de gloacuteria ela escolheu por amizade determinados saberes pondo
de lado sua origem poeacutetico-mitoloacutegica como deixou expresso Platatildeo (1987 paacuteg 473) em
sua rixa com Homero o poeta por excelecircncia
Destrinchando a carne disciplinando o conhecimento o saber filosoacutefico platocircnico
hierarquizou a apreensatildeo que eacute feita da realidade e com isso criou uma das bases para o
controle da verdade que mais tarde chamaremos de ciecircncia Etapa por etapa o homem
poderia evoluir a comeccedilar pelo lodo (sic) das sombras no interior da caverna onde soacute haacute
conjecturas e nenhuma verossimilhanccedila como se a verdade precisasse de espelhos e natildeo
fosse ela mesma presenccedila concreta Em seguida de imagens turvas fizeram-se formas
mais niacutetidas quiccedilaacute cores e principalmente crenccedila Eis a verdade persuasiva ou
verossimilhanccedila na qual o criacutevel era o foco natildeo verdadeiro
Tudo achismo conforme a velha filosofia Achar algo eacute natildeo saber natildeo ter
credibilidade soacute ser opiniatildeo o que pertence aos muitos mas natildeo a mim ndash o filoacutesofo
Depois que aqueles homens cavernosos se desprenderam dos grilhotildees da parede sombria
o redor deixa de ser encarado como a verdade mas apenas como uma representaccedilatildeo da
verdade Mal comparando antes as coisas eram sentidas manifestadas e pressentidas
agora elas seriam compreendidas intelectualmente de modo que natildeo se faz necessaacuterio
vivenciar cada manifestaccedilatildeo singular para se ter uma ideia do que se queria representar
Esse eacute o espectro inteligiacutevel do real
Todavia sejamos francos aiacute tambeacutem haacute uma hierarquia Entre as opiniotildees e a
verdade haacute o conhecimento de afinidade teacutecnica As abstraccedilotildees a um fim espelham-se no
ideal modelar para aplicaacute-lo nas mais diversas ocasiotildees Em outras palavras a finalidade
19
demonstra ainda certo apego ao sensiacutevel a um caso especiacutefico qualquer que deseja ser
solucionado Por isso que parte da tradiccedilatildeo reconhece nesse momento o geacutermen do
pensamento cientiacutefico
Ateacute que chegamos de fato agrave casa do filoacutesofo O topo da cadeia para o pensamento
de Platatildeo Quem deveria gerir os demais na cidade aquele mais distante do mundo das
manifestaccedilotildees Somos soacute representaccedilotildees da ideia natildeo manifestaacutevel O filoacutesofo traduziria
o ser representado e por isso deveria conduziria os homens
Sem perceber a filosofia se sabota Ao pronunciar-se aleacutem da arte inuacutetil a mesma
natildeo reconhece seu lado pouco praacutetico que demanda tempo tentativas e erros Com a
sedimentaccedilatildeo do domiacutenio da funcionalidade seu aprendizado torna-se estranho por natildeo
ser objetivo Por conseguinte ela eacute alijada do conviacutevio mundano juntamente com a
poesia que pela filosofia foi rejeitada Ambas estatildeo no canto da histoacuteria agrave margem da
ordem do dia Separadas elas foram banidas da πόλις e dificilmente juntas voltaratildeo agraves
graccedilas dela Tanto faz natildeo eacute o propoacutesito em vez disso busca-se reconhecer o vigor
originaacuterio tanto na filosofia quanto na poesia de dizer e nomear verdades
Em meio ao turbilhatildeo dos acontecimentos o silecircncio Um lugar onde a questatildeo
possa ser respondida sem a pressa de dar uma soluccedilatildeo mas com cuidado e esmero Sem
medo do erro mas tambeacutem com medo pois ele faz parte Natildeo haacute vida sem morte sagrado
sem temor nem sangue sem corte A tentativa de um ensino poeacutetico de filosofia natildeo eacute um
rabisco aleatoacuterio mas a alternativa possiacutevel de reconciliaccedilatildeo do que jaacute foi e em certa
medida estaacute inseparaacutevel
Nietzsche (1994 paacuteg 56) disse em uma ocasiatildeo muito proacutepria que soacute confiava no
que fosse escrito com sangue Jaacute se escreveu sulcando a pele de animais as cicatrizes
datam na carne um trauma do tempo e as tatuagens demarcam sentidos na ferida Todas
essas experiecircncias deixaram marcas imprimiram uma resposta num corpo de modo bem
concreto Assim se pretende uma filosofia poeacutetica uma tradiccedilatildeo poeacutetica e uma linguagem
poeacutetica que seja capaz de romper o limite instituiacutedo e assim engendrar novas limitaccedilotildees
abertura de possibilidades impingidas em ferro e fogo em controle e desafio em tradiccedilatildeo
e ensino em diaacutelogo paradoxal de limite e fundamento
20
1 Pensando a Educaccedilatildeo
11 O ensino decide por dizer
O ensino significa aqui estar na marca do pensamento Neste sentido este trabalho
natildeo trata de dizer como ou o que deve ser ensinado Ensinar natildeo se refere necessariamente
a o que aprender mas simplesmente a aprender A cada ensinamento algo eacute aprendido se
se faz o caminho do pensamento Enquanto o ensino convida a aprender ao convite se
corresponde como se pode ou seja a correspondecircncia ao ensino estaacute no acircmbito do que
natildeo temos controle
Natildeo haacute controle com o que se aprende Por mais elaborados que sejam os
esquemas e as metodologias nunca eacute garantido que determinado ensinamento seraacute
aprendido O ensino ndash enquanto crenccedila na apreensatildeo de um conteuacutedo isto eacute uma
concepccedilatildeo na qual se espera que algo seja compreendido logo aprendido e apreendido
pelo aluno ndash chama-se transmissatildeo do conhecimento
Para haver transmissatildeo eacute vital que algo possa ser transmitido como uma carta
inviolada entregue pelo carteiro diretamente do remetente ao destinataacuterio ou seja eacute
necessaacuterio que uma mensagem possa transitar preferencialmente incoacutelume de uma
pessoa para outra de uma geraccedilatildeo para outra Nesta perspectiva qualquer deslize a essa
mensagem qualquer sentido que fuja dos sentidos-modelo da mensagem que natildeo se
adeque agrave verdadeira mensagem estaacute incorreto e por isso seraacute evitado e ateacute mesmo
execrado pelos portadores da verdade enquanto transmissatildeo Assim tem sido ao longo da
histoacuteria para uma compreensatildeo mais tradicional da educaccedilatildeo com sutis mas sentidas
exceccedilotildees ateacute os dias atuais uma mensagem modelar e sua reproduccedilatildeo ditando o
significado de ensino
Somos seres que por milecircnios foram programados para concentrar-se em
determinadas possibilidades e obedecer a determinados princiacutepios Assim
fomos programados numa histoacuteria milenar a crer no progresso e a ter feacute no
poder da dominaccedilatildeo fomos programados para seguir modelos e obedecer a
paradigmas para cumprir ditados e aceitar tabus Numa palavra fomos
programados natildeo apenas para ter mas sobretudo para ser consciecircncia O
conteuacutedo que povoa nossa consciecircncia satildeo representaccedilotildees do que eacute do que
21
foi e do que seraacute Satildeo representaccedilotildees do que pode ser do que vem a ser do que
deve ser Satildeo representaccedilotildees de crenccedilas e valores de anguacutestias e ansiedade de
dor e prazer de frustraccedilotildees e satisfaccedilotildees Satildeo representaccedilotildees de tudo Mas por
outro lado sempre em qualquer tempo em qualquer lugar ou condiccedilotildees os
homens natildeo satildeo apenas consciecircncia e representaccedilotildees (LEAtildeO 2003 paacuteg 18)
Quando abrimos matildeo da transmissatildeo abrimos matildeo do controle Contudo o
convite natildeo deixa de ser um juiacutezo Por exemplo quando chamamos algueacutem para uma
festa fazemos um convite Convidar natildeo eacute impor a presenccedila da pessoa mas demonstrar
sua importacircncia Tambeacutem acreditamos se convidamos com sinceridade que sua presenccedila
ali seraacute bem acolhida ainda que natildeo passe de uma suposiccedilatildeo podendo sua estadia naquele
evento festivo se revelar indesejada por uma ou ambas as partes envolvidas
A quem se predispotildee a ensinar conveacutem propor o convite Um juiacutezo cuidadoso
sobre o que como e a quem convidar mas que natildeo diz respeito a se e como o convite
seraacute aceito Julgar como quem toma uma decisatildeo como quem se avizinha da senda entre
dizer e natildeo dizer Uma decisatildeo natildeo pelo todo posto que natildeo se controla tudo mas acerca
de algo por aquele limite que marca e se arrisca na fronteira do dizer e do ensinar O
ensino decide por dizer O que ele diz
Eacute comum responder que praticamente tudo pode ser ensinado Ensina-se literatura
e filosofia como tambeacutem matemaacutetica fiacutesica e geografia O convite do ensino que
tambeacutem eacute uma decisatildeo remete a um conhecimento especiacutefico mas natildeo se restringe a ele
Ao decidir-se por ensinar algo leva-se em conta como proceder com esse ensinamento
ou seja sua metodologia traccedilam-se metas satildeo feitos planejamentos e promete-se aos
pais e agrave sociedade que aquele especiacutefico conteuacutedo seraacute transmitido
Todavia mesmo assim o ensino lida com imprevistos com o imprevisiacutevel
portanto a aprendizagem constantemente estaacute em tensatildeo entre o que achamos que eacute
possiacutevel transmitir e o que deixamos escapar agrave transmissatildeo seja por deslize seja por total
incapacidade de exercer qualquer saber ou conhecimento a respeito A pretensatildeo deste
trabalho eacute justamente lidar natildeo com a transmissatildeo mas com o ensino que estaacute sempre
condicionado ao natildeo ensinado ao natildeo ensinaacutevel ao natildeo dito em todo dizer
Ensinar diz e natildeo diz algo ensina e natildeo ensina alguma coisa demarcando um
saber em quem aprende O ensino aproxima um saber do aprendiz Ensinar en-sina in-
signum A palavra ensino eacute um substantivo formado por regressatildeo do verbo ensinar do
latim vulgar insigno ldquopocircr uma marca distinguir assinalarrdquo (HOUAISS 2009a) Por sua
22
vez esse verbo latino proveacutem de sua forma erudita insignio ldquo1 Marcar com um traccedilo
caracteriacutestico meios de identidade 2 Marcar com aspas (em citaccedilotildees) 3 Adornar com
marcas honoriacuteficas 4 (transf) Tornar digno de nota ou notaacutevel marcar distinguirrdquo
(GLARE 1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)2
Literalmente ensino eacute se dispor agrave marca tanto demarcando uma caracteriacutestica em
algo ou algueacutem quanto a partir da marcaccedilatildeo fazer emergir essa distinccedilatildeo e diferenccedila
De modo menos literal marcar natildeo se refere a separar dos demais privando o que seja ndash
por estar marcado ndash de uma unidade agregadora refere-se contudo a identificar o que
ali se diz de modo singular em confluecircncia com outros dizeres
111 Uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc
Assim faz-se um convite a pensar o ensino que distingue sem segregar Ensinar
sem se ater ao controle do conheciacutevel mas se esgueirando na fronteira neste rasgo
delimitador que daacute sentido ao sem sentido aos cem sentidos que a tudo iguala sem
distinccedilatildeo Distinguir sem segregar ocupa-se em natildeo esvaziar os modos proacuteprios de ser
em natildeo tornar cada ente distinto em peccedilas reproduziacuteveis para a sociedade Distinguir eacute
constituir a dignidade singular na dinacircmica do todo
A fim de esclarecer melhor a respeito da marca que jaz em todo ensino
debrucemo-nos um pouco mais sobre a palavra latina de modo a refazer as experiecircncias
de sentido que ela suscita Insignio eacute formada por regressatildeo da palavra insignitus ldquo1
Marcado com traccedilos caracteriacutesticos 2 Claramente definido ou caracterizado 3 Digno
de nota []rdquo (GLARE 1968 paacuteg 925 ndash traduccedilatildeo livre)3 cujo sentido ainda eacute bem
semelhante ao anteriormente descrito Esta palavra tem sua formaccedilatildeo atraveacutes da
composiccedilatildeo insigne + -itussup2
A palavra insigne eacute o neutro do adjetivo insignis que se junta a -itussup2 sufixo
formador de adjetivo que ldquoindica posse ou vestimentardquo (GLARE 1968 paacuteg 976 ndash
2 1 To mark with a characteristic feature means of identity 2 To mark with weals etc (in quots) 3 To
adorn with marks of honour 4 (transf) To make noteworthy or remarkable mark distinguish 3 1 Marked with distinctive features 2 Clearly defined or characterized 3 Noteworthy []
23
traduccedilatildeo livre)4 Em insignis nota-se jaacute em suas primeiras entradas algo ainda natildeo
explorado quer dizer a distinccedilatildeo que traz agrave presenccedila por meio da visatildeo ldquo1 Claramente
visiacutevel ou reconheciacutevel 2 Facilmente apreensiacutevel 3 Notaacutevel em aparecircnciardquo (GLARE
1968 paacuteg 924 ndash traduccedilatildeo livre)5
Na visatildeo da marca algo se faz facilmente presente distinccedilatildeo perceptiacutevel aos olhos
que passam No domiacutenio dos sentidos a visatildeo vige e a partir desta vigecircncia os contornos
que delimitam o que eacute digno de nota aparecem e definem o que eacute pela marca Na tradiccedilatildeo
do pensamento ocidental aparecendo em Platatildeo como um de seus conceitos
fundamentais a visatildeo exerce um papel crucial ldquoPlatatildeo chama esse perfil em que o
vigente mostra o que ele eacute de εἶδοςrdquo (HEIDEGGER 2002 paacuteg 45)
Εἶδος aparece diversas vezes na obra platocircnica e deu origem agrave palavra ideia em
portuguecircs que se tornou muito corriqueira hoje Em seu uso ordinaacuterio ter uma ideia se
assemelha ao aparecimento de uma imagem na mente do indiviacuteduo mas que remete a
uma representaccedilatildeo fora dela Todavia natildeo eacute esse o interesse aqui mas pretendemos sim
fazer o caminho de pensamento que a ideia (seja grega genericamente seja em Platatildeo)
nos convoca a percorrer No dicionaacuterio de grego εἶδος refere-se a ldquoaquilo que eacute visto
forma formatordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἶδος ndash traduccedilatildeo livre)6 do verbo εἴδω
ldquoseerdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Εἴδω)7 e οἶδα ldquoknowrdquo (LIDDELL SCOTT 1889
Οἶδα)8 respectivamente ver e saber
Essa eacute uma relaccedilatildeo peculiar uma visatildeo que sabe uma sabedoria que vecirc Agrave
primeira vista esse relacionamento entre ver e saber natildeo eacute muito claro basta pensarmos
que ver natildeo costuma ser o suficiente para justificar um saber Eacute preciso estudo foacutermulas
e um cabedal de teorias Ver tenderia a ser algo mais relacionado aos sentidos ao sensiacutevel
enquanto que saber estaria vinculado ao intelecto ao inteligiacutevel Seraacute possiacutevel
compreender esse mostrar que natildeo eacute incoacutelume que rasga seus contornos no real ao se
4 Denote possession or wearing 5 1 Clearly visible or recognizable 2 Easily apprehensible 3 Remarkable in appearance 6 That which is seen form shape Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999040057entry=ei)=dosgt Acesso em
27 set 2016 7 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3D233
0877ampredirect=truegt Acesso em 27 set 2016 8 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400583Aentry3Doi)3
Ddagt Acesso em 27 set 2016
24
fazer apreensiacutevel facilmente apreensiacutevel Como um disciacutepulo que aprende vendo seu
mestre εἶδος monta um cenaacuterio cujo saber se constitui como tal no acircmbito da visatildeo A
experiecircncia de ver proporciona a princiacutepio um saber imediato sem intermeacutedios do que
natildeo estaacute ali na exigecircncia do olhar em referecircncia apenas agrave visatildeo e disposta a apreender
seu ensinamento concreto
Nenhum sentido iacutentimo nenhum aleacutem atraacutes para fora da proacutepria coisa Ser
uma coisa esta coisa eacute natildeo ser susceptiacutevel de outra interpretaccedilatildeo aleacutem desta
que ela necessariamente jaacute eacute para poder ser isso que eacute Assim neste sentido
toda coisa tudo eacute precisa ser singela franciscana superfiacutecie Sim os gregos
foram superficiais muito superficiais ndash por profundeza lsquoaus Tiefersquo (FOGEL
2007 paacuteg 48 ndash grifos no original)
O ver traz agrave tona outra forma de saber deste que natildeo se faz apenas na leitura e
dissertaccedilatildeo de um tema Precisaria ver para crer como Tomeacute sem a feacute do conceito mas
calcado no vigor da presenccedila que eacute a marca que a visatildeo deixa no ser Este saber ldquopraacuteticordquo
em que se aprende enquanto se faz e portanto viu-se algueacutem fazendo (seja outrem seja
a si proacuteprio como autocriacutetica) para entatildeo fazer estaacute limitado pelo seu campo de visatildeo
Aqui soacute se aprende o que o limite do ver permite aprender no entanto enquanto algo
estiver sendo visto isto eacute enquanto algo se apresentar agrave apreensatildeo limitada e permanecer
apresentando-se e sendo apreendido limitadamente os limites estaratildeo imersos em uma
multiplicidade de limitaccedilotildees
Crianccedila desconhecida e suja brincando agrave minha porta
Natildeo te pergunto se me trazes um recado dos siacutembolos
Acho-te graccedila por nunca te ter visto antes
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra crianccedila
Nem aqui vinhas
Brinca na poeira brinca
Aprecio a tua presenccedila soacute com os olhos
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhececirc-la
Porque conhecer eacute como nunca ter visto pela primeira vez
E nunca ter visto pela primeira vez eacute soacute ter ouvido contar
O modo como esta crianccedila estaacute suja eacute diferente do modo como as outras estatildeo
sujas
Brinca pegando numa pedra que te cabe na matildeo
Sabes que te cabe na matildeo
Qual eacute a filosofia que chega a uma certeza maior
Nenhuma e nenhuma pode vir brincar nunca agrave minha porta (PESSOA 2006
paacutegs 42-43)
25
No poema ldquoapreciar a tua presenccedila soacute com os olhosrdquo se aproxima de ldquover uma
cousa sempre pela primeira vezrdquo assim como de ldquosabes que te cabe na matildeordquo Este ver
imediato traz o saber para as coisas para as experiecircncias concretas nas quais a marca que
distingue se torna a proacutepria distinccedilatildeo Conhecer por sua vez diz respeito agrave representaccedilatildeo
do saber pela visatildeo do conceito que pode ser transportado repetido natildeo necessitando da
presenccedila de expectadores A ldquocrianccedila desconhecidardquo natildeo conhece soacute sabe jaacute que
conhecer seria ldquoter ouvido contarrdquo Saber que a pedra cabe na matildeo natildeo eacute conhecer que a
pedra cabe na matildeo pois este pressupotildee um inventaacuterio de caracteriacutesticas opiniotildees de
geoacutelogos livros e mais livros sobre a pedra enquanto que aquele precisa pegar a pedra
nas matildeos ndash e isso eacute simples mas denso pleno sem se esgotar
O siacutembolo por definiccedilatildeo natildeo eacute a proacutepria coisa mas evocaccedilatildeo substituiccedilatildeo ou
representaccedilatildeo da coisa ausente Representar aqui significa estar no lugar de
ou passar por Sim substituir o ausente E a palavra da poesia a palavra
poeacutetica ie instauradora ou realizadora que por isso eacute a palavra essencial
esta estaacute subdizendo o poema natildeo eacute siacutembolo natildeo eacute representaccedilatildeo ou evocaccedilatildeo
da coisa ausente masa proacutepria coisa isto eacute a proacutepria presenccedila Portanto
palavra poeacutetica natildeo eacute recado mensagem aviso de nada O poeta natildeo eacute moleque
de recado Natildeo eacute instrumento mediaccedilatildeo ou intermediaccedilatildeo de nada A palavra
poeacutetica eacute a proacutepria coisa em sua plena plenificada presenccedila (FOGEL 2007
paacuteg 43 ndash grifos no original)
O ver que sabe natildeo eacute o ver com que lidamos com os olhos hodiernos Sempre com
pressa requisitamos ldquoter ouvido falarrdquo das coisas para confiar nelas para natildeo ter que
pensar a respeito isto eacute natildeo ldquoter visto pela primeira vezrdquo e essa confianccedila e esse
conhecimento datildeo a garantia da existecircncia A legitimidade do conhecimento se justifica
muito pela sua reprodutibilidade sua constacircncia e sua previsibilidade Gilvan Fogel
(2007) chama atenccedilatildeo ao que a palavra poeacutetica apresenta como outra possiblidade de
manifestaccedilatildeo como um apresentar concreto que soacute sabe por ter sido atravessado pela
experiecircncia proporcionada por este concreto sua visatildeo
No εἶδος que se mostra em cada insignis enquanto manifestaccedilatildeo poeacutetica encontra-
se a palavra essencial Eacute pois compreensiacutevel que seacuteculos de metafiacutesica tenham tratado
essecircncia como origem algo a ser buscado alcanccedilado por alguns iniciados ou eleitos
portanto distante exatamente da fala cotidiana O comentaacuterio supracitado do professor
Fogel diz de uma essecircncia sua compreensatildeo da brincadeira da crianccedila do poema como
sendo ldquoinstauradora e restauradorardquo Essa crianccedila do poema tanto quanto qualquer
26
crianccedila assim como qualquer coisa conquanto seja poeacutetica sempre seraacute instauradora e
restauradora agrave medida que natildeo ldquosubstituir o ausenterdquo mas se ativer agrave presenccedila Desse
modo natildeo eacute exclusividade dos poetas a essecircncia nem o cuidado para que ela natildeo seja
esquecida entre ruiacutedos de abstraccedilotildees e representaccedilotildees natildeo podendo ldquovir brincar nunca agrave
minha portardquo
112 Um saber que rasga
Para saber eacute preciso ver logo para ver eacute preciso saber este eacute o convite que εἶδος
faz ao ensino O que eacute saber neste contexto que natildeo se restringe ao conhecimento
Somente a palavra poeacutetica sabe como quem vecirc ou outros dizeres estatildeo inseridos nesta
dinacircmica Talvez a continuaccedilatildeo da etimologia da palavra ensino possa nos dar uma noccedilatildeo
acerca disso Insignis eacute formado por in-sup1 + signum + -issup1 no qual in-sup1 eacute um prefixo que
transfere seus sentidos de preposiccedilatildeo ao verbo agregando novas significaccedilotildees verbais ou
intensificando-as (GLARE 1968 paacuteg 858) Dentre esses sentidos destacam-se ldquolsquoem a
sobre superposiccedilatildeo aproximaccedilatildeo transformaccedilatildeorsquo de uma raiz i-e [indo-europeia] en
lsquono interior emrsquordquo (HOUAISS 2009b)
Ao nuacutecleo da raiz junta-se o sufixo formador de adjetivo -issup1 (GLARE 1968 paacuteg
970) e o nuacutecleo da palavra eacute signum Dele se originam quase todos os sentidos que foram
incorporados agraves demais formaccedilotildees chegando ateacute o portuguecircs com a palavra signo O
signum latino relaciona-se com a gama de significados da visatildeo ldquouma marca escrita a
impressatildeo de um siacutembolo ou um pouco de cera onde porta essa impressatildeo sinal visiacutevel
de uma presenccedila passadardquo do ensino ldquoalguma coisa percebida pela mente ou pelos
sentidos cuja inferecircncia pode ser desenhadardquo de uma marca ldquoemblema siacutembolo
estandarte uma escultura estaacutetua ou imagemrdquo e ateacute a ideia de movimento ldquogesto ou
movimento usado para designar um sentido manobra militarrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1759-
1760 ndash traduccedilatildeo livre) aparece dentro das possibilidades de compreensatildeo de signum
Qual deles diz respeito ao saber que vecirc principalmente ao saber da ldquopalavra
essencialrdquo (FOGEL 2007 paacuteg 43) da palavra poeacutetica mdash Todos se for considerada a
concretude dos sentidos Isto significa que a marca de cera eacute soacute a marca de cera sua
27
simplicidade natildeo eacute conhecida nem vulgar (PESSOA 2006 paacuteg 61) mas guarda dos
homens curiosos o enigma da carta Eacute compreensiacutevel contudo que um mero selo natildeo
seja fruto de enriquecedoras discussotildees filosoacuteficas Dizemos mero aqui referindo-nos ao
simples que eacute grande porque convida agrave experiecircncia singular ainda que banal com aquela
coisa ldquoO simples resguarda o enigma do que permanece e eacute granderdquo (HEIDEGGER
1983 paacuteg 39 ndash traduccedilatildeo livre)9
Outros sentidos entretanto natildeo satildeo tatildeo simples e imediatos o que natildeo deixa de
ser a perda de sua simplicidade Ao menos corriqueiramente concepccedilotildees como a de
emblema siacutembolo estandarte etc remetem a estacircncias fora do instante isto eacute
representam pela abstraccedilatildeo algo que deveria mas natildeo estaacute aqui A isto tanto o poeta
quanto o filoacutesofo supracitados combatem caso contraacuterio seria abrir matildeo da concretude
de cada momento em prol de um conceito estanque e pronto para ser aplicado
transmitido reproduzido e descartado Dicotomicamente falando assumindo o risco que
isso significa podemos aferir que o saber exige que a experiecircncia com a coisa seja feita
concretamente levando-se em conta as singularidades em questatildeo e as limitaccedilotildees que o
agora impotildee O conhecer por sua vez significa uma experiecircncia abstrata permitindo
categorias que facilitariam o trato por preacute-conceito criando-se assim o haacutebito o jaacute visto
e conhecido do fazer
Natildeo dicotomicamente falando tanto o conhecimento quanto o saber fazem parte
da experiecircncia com as coisas satildeo tatildeo intriacutensecos como necessaacuterios ldquoo desaparecimento
de preconceitos significa simplesmente que perdemos as respostas em que nos
apoiaacutevamos de ordinaacuterio sem querer perceber que originariamente elas constituiacuteam
respostas a questotildeesrdquo (ARENDT 1972 paacuteg 223) cuja comunhatildeo define a existecircncia
humana seu modo de ser Se para cada passo fosse preciso uma reflexatildeo ningueacutem mais
andaria A tensatildeo se desfaz quando se perde no haacutebito a disposiccedilatildeo de questionar tudo se
transformando em conhecido ou conheciacutevel ou seja esquecendo-se de que o passo sim eacute
uma questatildeo a ser pensada que sob o chatildeo supostamente seguro jaz o que natildeo tem chatildeo
o abismo que andar eacute em si um risco agrave queda
O poeacutetico pois faz emergir o concreto da linguagem nas palavras Assim o
concreto manifesta torna presente o saber no que se vecirc Isto que manifesta o saber das
9 Das Einfache verwahrt das Raumltsel des Bleibenden und des Groszligen
28
coisas sem conhececirc-las encontramos sob o nome de aleacutetheia O concreto desse saber natildeo
eacute restrito ao poema escrito nem somente o poeta tem acesso a aleacutetheia agrave manifestaccedilatildeo
Na relaccedilatildeo com a verdade que se apresenta concretamente compreende-se que aleacutetheia eacute
sempre a mesma soacute que de modos diferenciados e eacute justamente isso que possibilita a
singularidade dos caminhos
Em Os trabalhos e os dias portanto Aleacutetheia eacute dupla eacute em primeiro lugar a
Aleacutetheia das Musas que o poeta profere em nome delas e que se manifesta no
discurso maacutegico-religioso articulado agrave memoacuteria poeacutetica em segundo lugar eacute
a Aleacutetheia que o labrador de Ascra possui lsquoVerdadersquo que dessa vez se define
explicitamente pelo lsquonatildeo esquecimentorsquo dos preceitos do poeta Entre as duas
natildeo haacute diferenccedila fundamental eacute a mesma Aleacutetheia vista sob dois aspectos ora
em sua relaccedilatildeo com o poeta ora em sua relaccedilatildeo com o lavrador que o ouve
Enquanto o primeiro a possui apenas em virtude do privileacutegio da funccedilatildeo
poeacutetica o segundo soacute pode ganhaacute-la agrave custa de um esforccedilo de memoacuteria O
camponecircs de Ascra soacute conhece a Aleacutetheia na ansiedade de uma memoacuteria
obsedada pelo esquecimento que pode repentinamente ensombrecer-lhe a
mente e privaacute-lo da lsquorevelaccedilatildeorsquo dos Trabalhos e os Dias (DETIENNE 2013
paacutegs 27-28)
Podemos ver em Detienne que nem sempre verdade foi sinocircnimo de certeza isto
eacute mera oposiccedilatildeo entre certo e errado e tentativa de adequaccedilatildeo do errado ao certo Neste
sentido conveacutem observar que uma concepccedilatildeo de ldquoposserdquo da aleacutetheia natildeo se refere a ter a
propriedade de um conhecimento Nem o poeta nem o camponecircs poderiam possuir a
verdade pois ela natildeo era um conhecer ldquopossuiacutevelrdquo Somente quando o saber torna-se
capaz de ser possuiacutedo que ele se torna um conhecimento e um conhecimento inteligiacutevel
Isto porque o saber da verdade era dos deuses do real os poetas apenas se dispunham a
ouvi-lo e por conseguinte a cantaacute-lo como lhes era possiacutevel
O camponecircs por sua vez se detinha nas proximidades do trabalho do poeta ndash e a
isto talvez possamos chamar de posse ndash e dele ldquopode ganhaacute-la [aleacutetheia] agrave custa de um
esforccedilo de memoacuteriardquo (DETIENNE 2013 paacuteg 28) Da mesma forma ganhar aleacutetheia
confunde o leitor quanto a seu caraacuteter de natildeo posse Detienne assim como todos noacutes
estamos muito impregnados pela liacutengua da ciecircncia logo mesmo ao se referir ao que natildeo
eacute cientiacutefico fazemos ao modo da teacutecnica moderna Daiacute a importacircncia de ir aos
fundamentos da liacutengua que natildeo se trata de sua origem cronoloacutegica mas da aproximaccedilatildeo
agraves cercanias da linguagem ao que se diz inaudito no dito
Por este vieacutes alongando um pouco mais a etimologia de ensino chegamos a seco
+ -num a fim de que percebamos o tipo de saber que originou o ensino traduccedilatildeo de uma
29
experiecircncia concreta com a linguagem O Dicionaacuterio Oxford apresenta um significado
etimoloacutegico incerto da palavra signum (GLARE 1968 paacuteg 1759) formado com o sufixo
-num neutro de -nus ndash um formador de palavras adjetivas de numerais distributivos e
que tambeacutem funciona como alargamento do sentido (eg fortuna tribunus) (GLARE
1968 paacuteg 1207) ndash juntamente com o radical seco
1 Cortar com uma faca ou similar cortar 2 Cortar em pedaccedilos fatiar picar
recortar 3 Cortar uma porccedilatildeo de destacar (uma parte) por meio de corte
remover por corte 4 Fazer uma incisatildeo em cortar entalhar etc 5 Passar
atraveacutes de (aacutegua ar uma multidatildeo etc) em movimento raacutepido ou violento
fender um caminho atraveacutes de tambeacutem sulcar (a terra) em lavoura mineraccedilatildeo
etc 6 Formar ou abrir (uma trilha ou sim) por meio de corte (GLARE 1968
paacuteg 1717 ndash traduccedilatildeo livre)10
A incerteza que o Oxford coloca recebe mais um reforccedilo com a consulta a Pokorny
(2007) Em ambos os casos a relaccedilatildeo entre seco e signum natildeo eacute segura enquanto origem
e originado mas parece haver concoacuterdia na proximidade de sentido entre ambos no que
se refere agrave marca agrave ldquoimpressatildeordquo que causa Correspondendo a uma interpretaccedilatildeo da
etimologia interessada em ouvir o inaudito no dito se atendo a um aceno de pensamento
posso supor que a marca do signum eacute um corte seco que porta um saber agrave medida que
rasga criando assim um limite visiacutevel e concretamente experienciado Lidar com um
saber que rasga eacute fazer uma experiecircncia com o concreto da palavra causando sensaccedilotildees
sim mas tambeacutem e principalmente fazendo uma experiecircncia na e atraveacutes das fronteiras
da liacutengua Laacute onde nos aventuramos entre o que eacute e o natildeo ser onde o instante instaura
brevemente a verdade fugidia o concreto se diz somente enquanto experiecircncia deste
mesmo saber
sēk-2 ndash Significado em inglecircs tocut traduccedilatildeo para o alematildeo schneiden Latim
secō -āre lsquocortar podarrsquo segmen segmentum lsquoquebra secccedilatildeorsquo [] Latim
sīgnum neutro lsquomarca siacutembolo sinal indicaccedilatildeorsquo se originalmente lsquomarca
entalhadarsquo () [] Alto alematildeo antigo sega saga Europeu antigo sagu sage
(POKORNY 2007 paacuteg 2660 ndash traduccedilatildeo livre)11
10 1 To sever with a knife or similar cut 2 To cut in pieces slice chop cut up 3 To cut a portion from
to detach (a portion) by cutting cut off 4 To make an incision in cut gash etc 5 To pass through (water
air a crowd etc) in rapid or violent motion cleave a path through also to cut into (the earth) in
ploughing mining etc 6 To form or open up (a track or sim) by cutting 11 sēk-2 ndash English meaning to cut deutsche Uumlbersetzung ldquoschneidenrdquo Lat secō -āre ldquocut clip
abschneidenrdquo segmen segmentum ldquobreak sectionrdquo [hellip] Lat sīgnum n ldquomark token sign indicationrdquo
if originally ldquoeingeschnittene Markerdquo () [] OHG sega saga OE sagu sage
30
Este eacute pois o sentido de um saber que se encrusta na carne Nietzsche (1994 paacuteg
56) jaacute dizia que ldquode tudo o que se escreve aprecio somente o que algueacutem escreve com o
proacuteprio sangue [] Aquele que escreve em sangue e maacuteximas natildeo quer ser lido mas
aprendido de corrdquo Filosoficamente falando apreciar neste sentido natildeo se restringe agrave
opiniatildeo pessoal somente mas diz tambeacutem de uma entrega no que se faz
Ao afirmar uma oposiccedilatildeo entre ler e aprender de cor haacute um reconhecimento da
experiecircncia de um saber vivido na medida em que um conceitua e descreve e outro que
demarca um modo sanguinolento de ser Este sangrar traz ao ato a memoacuteria da verdade
seja como valor moral de vontade e de ldquoquererrdquo seja por simplesmente se dar de outra
forma natildeo dimensionaacutevel no falar sobre algo mas sim em dizer com algo Quem condiz
diz junto ou seja convoca agrave participaccedilatildeo sem ser arbitraacuterio convida a manifestar-se no
que se manifesta agrave medida da manifestaccedilatildeo que eacute o corte entre as possibilidades de cada
um e o impossiacutevel aquilo sobre o qual natildeo exercemos posse nem poder de possuir mas
que por isso nos delimita e constitui ldquoVai-se ao limiar sempre que se vai aos limites
[grifo no original]rdquo (NIETZSCHE 1967 ndash traduccedilatildeo livre)12
Heidegger (2003) tambeacutem a seu modo pensou este saber que corta No seu ensaio
A linguagem o pensador alematildeo interpreta o poema Uma tarde de inverno13
Na janela a neve cai
Prolongado soa o sino da tarde
Para muitos a mesa estaacute posta
E a casa bem servida
Alguns viandantes da erracircncia
Chegam ateacute a porta por veredas escuras
Da seiva bruta da terra
Surge dourada a aacutervore dos dons
O viandante chega quieto
A dor petrificou a soleira
Aiacute brilha em pura claridade
Patildeo e vinho sobre a mesa (TRAKL 2016 ndash traduccedilatildeo de Marcia Saacute de
Cavalcante Schuback)14
12 Man geht zu Grunde wenn man immer zu den Gruumlnden geht 13 Ein Winterabend 14 Wenn der Schnee ans Fenster faumlllt Lang die Abendglocke laumlutet Vielen ist der Tisch bereitet Und
das Haus ist wohlbestellt Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden Golden
bluumlht der Baum der Gnaden Aus der Erde kuumlhlem Saft Wanderer tritt still herein Schmerz versteinerte
die Schwelle
Da erglaumlnzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein
31
Pela obra literaacuteria eacute construiacuteda uma compreensatildeo filosoacutefica da dor natildeo restrita agrave
certa negatividade O verso central para tal pensamento eacute o seguinte ldquoSchmerz
versteinerte die Schwellerdquo ldquoA dor petrificou a soleirardquo A traduccedilatildeo para o portuguecircs leva
em conta a sonoridade e o jogo imageacutetico proacuteprios da liacutengua de destino sem faltar com
cuidado ao original O esforccedilo poeacutetico eacute visiacutevel contudo traduzir eacute tanto caminho como
descaminho de sentido parte do que caracteriza o poema em alematildeo se desdobra
singularmente em portuguecircs
O verso fala de dor Schmerz em correspondecircncia com a soleira Schwelle Como
o que doacutei Heidegger (2003 paacuteg 21) entende por ldquoA dor eacute a junta articuladora no
dilaceramento que corta e reuacutene Dor eacute a articulaccedilatildeo do rasgo do dilaceramento Dor eacute
soleira Ela daacute suporte ao entre ao meio dos dois que nela se separam A dor articula e
traccedila o rasgo da di-ferenccedila A dor eacute a proacutepria di-ferenccedilardquo Na mesma instacircncia ontoloacutegica
estatildeo a dor e a soleira a dor e a di-ferenccedila o que isso significa
Em alematildeo Schwelle tambeacutem diz do limite o limiar entre duas coisas como a
soleira eacute a fronteira que separa o dentro do fora da casa Enquanto separa instaura tanto
a casa quanto a rua como a natildeo casa ainda a casa que viraacute Sem soleira rua e casa natildeo
teriam suas singularidades mantidas suas di-ferenccedilas ldquoo termo lsquoa di-ferenccedilarsquo natildeo diz
uma categoria geneacuterica para vaacuterias espeacutecies de distinccedilotildees A di-ferenccedila aqui nomeada eacute
soacute uma Eacute uacutenicardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 19) Diferir natildeo eacute deixar misturar
categorizar mas fazer aparecerem os limites que definem e constituem eacute emergir a
unidade que se encontra no ldquoentrerdquo de uma e outra coisa
Dor e limite se fundem Ambos datildeo fundamento um ao outro no entre que os
diferencia O poema no original traz um jogo sonoro em que essa relaccedilatildeo correlata se
mostra novamente Tanto as palavras Schmertz e Schwelle comeccedilam com o mesmo som
sch- [ʃ] fricativo ou seja com quase nenhuma interrupccedilatildeo de ar seguidas de m- [m] e
w- [v] que embora diferentes ainda resguardam essa mesma caracteriacutestica de som
continuado Sonoramente dor e limite fluem abertamente Um introduzindo outro
terminando ndash origem e plenitude do verso pela dor e pela soleira respectivamente
Essa corrente de ar praticamente ininterrupta como janela aberta tem pois sua
quietude Afinal ldquoa dor petrificourdquo o limite a soleira para diante da dor Eacute marcada uma
pausa que natildeo faz do limite igual ao comeccedilo O instante que demarca o quieto da fluidez
32
constitui e distingue as diferenccedilas e identidades entre origem e fim enquanto plenitude
Em alematildeo o verbo versteinern tambeacutem comeccedila com o tipo de som fricativo v- [f] para
coincidir com o som anterior sch- [ʃ] todavia seguido pela oclusiva -t- [t] ou seja onde
haacute uma obstruccedilatildeo parcial da saiacuteda de ar
A construccedilatildeo sonora do verso eacute marcada por uma pausa entre dois sons contiacutenuos
Ali onde dor e limite se encontram haacute tanto multiplicidade de um quanto unidade de
vaacuterios ndash pausa e continuaccedilatildeo Versteinern proveacutem do substantivo Stein pedra uma pedra
que se interpotildee entre dois acontecimentos de mundo lembra-nos de ldquono meio do caminho
tinha uma pedrardquo (ANDRADE 2013 paacuteg 30) O verso tatildeo conhecido de Drummond
retoma em Georg Trakl a tensatildeo no embate causador de dor e de limite fundador Trazer
agrave quietude da pedra eacute dar sentido ontoloacutegico tanto ao limite quanto agrave dor
A linguagem fala Sua fala chama a diferenccedila a di-ferenccedila que des-apropria
mundo e coisa para a simplicidade de sua intimidade
A linguagem fala
O homem fala agrave medida que corresponde agrave linguagem Corresponder eacute escutar
Ele escuta agrave medida que pertence ao chamado da quietude (HEIDEGGER
2003 paacuteg 26)
Pelo ensino pois transita-se na marca Via de acesso que traduz uma experiecircncia
de des-conhecer se as reacutedeas da imposiccedilatildeo cedem lugar agrave fronteira do pensar Ali as
distacircncias se estreitam proximidades natildeo se tocam mais e o aprendiz se torna o mestre
afinal ldquomestre natildeo eacute quem sempre ensina mas quem de repente aprenderdquo (ROSA 2006
paacuteg 213) Ensinar eacute estar na marca do pensamento em outras palavras eacute aprender a estar
no pensamento da marca a saber atento a que o limite demarcante seja assim como natildeo
seja O ensinamento sem aprendizagem eacute pobre de sentido restringe-se agrave mera
informaccedilatildeo de conteuacutedos pragmaacuteticos Radicalmente ensinar significa tambeacutem natildeo
ensinar agrave medida que daacute espaccedilo para que o outro (que tambeacutem sou eu) aprenda
Formar eacute deixar o outro aprender integrando no que ele eacute os limites do que
ele natildeo eacute [] Soacute quem realmente sabe aprender e somente na medida em que
o sabe pode realmente ensinar [] Ensinar exige e impotildee a ascese de
aprender a ascese de constantemente assumir tanto a ignoracircncia quanto o saber
do que jaacute se sabe Natildeo apenas aquele que jaacute sabe tudo natildeo pode nem aprender
nem ensinar Tambeacutem natildeo pode quem natildeo assumir o saber de sua ignoracircncia
quem natildeo reconhecer que sabe alguma coisa (LEAtildeO 1977 paacuteg 49)
33
113 Natildeo ensinar e a ciecircncia
Nesta dimensatildeo natildeo ensinar eacute uma prerrogativa O que natildeo quer dizer faltar com
as suas responsabilidades enquanto professor enquanto pais ou enquanto sociedade Natildeo
ensinar estaacute comumente relacionado com negligecircncia Isso tem pouco a ver com o
pensamento do ensino e mais com o que se espera de determinadas funccedilotildees e papeacuteis
sociais Natildeo ensinar se refere diversamente ao compromisso com seu desconhecimento
impossibilidade de que algo seja dito ndash pois natildeo se sabe ndash e tendo cuidado com o
conhecimento jaacute que mesmo no dito haacute o natildeo dito o natildeo controle do que seraacute
compreendido
Entretanto parece que nos atuais tempos esta eacute uma decisatildeo estranha de se tomar
Jaacute causa estranhamento natildeo ensinar sem optar por isso Ou seja natildeo detendo todas as
variaacuteveis e circunstacircncias falhamos ao passar um determinado conteuacutedo seja este teacutecnico
cultural ou moral Diferente eacute pois ldquoescolherrdquo natildeo ensinar Aceitar que faz parte do
processo o equiacutevoco a falta e o improviso Reconhecer a ponta solta o diacutegito errado o
ponto fora da curva e natildeo fazer nada a respeito
Um estranhamento que condiz com uma sociedade tecnicista na qual o ensino
serve aos propoacutesitos da aprendizagem Sistemas preacute-programados demandam o
cumprimento de tarefas Logo eacute conveniente a transmissatildeo do que fazer para o
desempenho esperado Natildeo soacute isso mais do que fazer adveacutem o como fazer cuja resposta
procura constantemente por um melhor desempenho produzir mais a menor custo ou
mais por menos tempo o que costuma coincidir
Este aspecto performaacutetico que se dedica a se superar ininterruptamente natildeo pode
permitir o natildeo ser Como num teatrinho de marionetes tudo estaacute sob controle ou acredita-
se que esteja Da filosofia agrave mesa de bar das salas de aula aos hospiacutecios nossa sociedade
se vecirc como peccedilas de um quebra-cabeccedila que pode ser solucionado Quem monta as peccedilas
eacute o homem quem diz que as peccedilas satildeo montaacuteveis eacute a ciecircncia pois ela eacute ldquoa teoria do realrdquo
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 40) Aqui para pensar a palavra teoria referimo-nos tanto ao
sentido de ldquoconjunto de regras ou leis mais ou menos sistematizadas aplicadas a uma
aacuterea especiacuteficardquo (HOUAISS 2009a Teoria) quanto agrave etimologia a qual significaria accedilatildeo
34
de ver observar testemunhar ldquoenviando θεωροί ou embaixadores de Estado aos oraacuteculos
ou jogos ou coletivamente os proacuteprios θεωροί embaixada missatildeordquo (LIDDELL
SCOTT 1940 Θεωρία ndash traduccedilatildeo livre)15
Diversas palavras gregas podem ser traduzidas por ldquoverrdquo ou ldquopocircr-se a observarrdquo
Ainda assim diferentes nomeares sugerem diversos modos de o proacuteprio compreender o
real ldquoo pensamento doacutecil agrave voz do ser procura encontrar-lhe a palavra atraveacutes da qual a
verdade do ser chegue agrave linguagemrdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) Neste sentido
observa-se nas palavras gregas θέα e ὁράω o campo semacircntico de ver olhar entretanto
esse mesmo eacutetimo pode ser lido com acentuaccedilotildees diferentes θεά feminino de θεός
ldquodeusa divindaderdquo e ὤρα ldquocuidadordquo (LIDDELL SCOTT 1940 ndash traduccedilatildeo livre)16
Temos pois um convite Fomos convidados a ver tambeacutem em teoria a palavra θεωρία
como um cuidado sagrado o divino em todo cuidar ou ainda ldquoora foi como deusa que
ἀλήθεια apareceu ao pensador originaacuterio Parmecircnides [] Em sentido antigo isto eacute
originaacuterio mas de forma alguma antiquado a teoria eacute a visatildeo protetora da verdaderdquo
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 46 ndash grifos no original)17
O real para muitos povos antigos eram os proacuteprios deuses se manifestando Esta
era ldquosuardquo verdade ldquoseurdquo mundo Um possessivo que natildeo traduz da posse como estamos
habituados Natildeo havia a verdade de cada um embora todos fizessem uma experiecircncia
com a verdade singularmente Isto porque para os antigos a verdade era muacuteltipla e
diversa Diferentemente de nossa concepccedilatildeo atual de verdade regida pela ciecircncia pedras
15 Sending of θεωροί or state-ambassadors to the oracles or games or collectively the θεωροί themselves
embassy mission Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqewri
2Fagt Acesso em 13 out 2016 16 Cf Θέα Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqe2
Fa2gt Acesso em 14 set 2016
Cf Θεά Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dqea2
F1gt Acesso em 14 set 2016
Cf Ὁράω Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(ra
2Fwgt Acesso em 14 set 2016
Cf Ὤρα Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dw)2
Fragt Acesso em 14 set 2016 17 Cf Ἀλήθεια Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)lh
2Fqeia Acesso em 14 set 2016
35
animais pessoas proacuteximas e inimigos eram a verdade pois a proacutepria presenccedila desses
seres constituiacutea sua veracidade ldquoprovardquo cabal da doaccedilatildeo de existecircncia de um deus A
verdade eacute sempre verdade dos deuses seja quem for que a proferir
Os indo-iranianos tecircm uma palavra comumente traduzida por Verdade Rta
Mas Rta eacute tambeacutem a prece lituacutergica o poder que garante o retorno das auroras
a ordem estabelecida pelo culto aos deuses o direito enfim um conjunto de
valores que estilhaccedilam nossa imagem da verdade (DETIENNE 2013 paacutegs
1-2)
Isso significa que a compreensatildeo de oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso natildeo era
possiacutevel visto que o que se manifesta seja bom ou ruim tem um sentido de ser que
remete ao sagrado Sendo atribuiacuteda ao artiacutefice divino a verdade jamais poderia ser
possuiacuteda no sentido de controlada apenas se convive em sua cercania natildeo havendo
possibilidade de cercaacute-la cerceando-a ao uso a bel-prazer Desse modo as diferenccedilas satildeo
apenas outras manifestaccedilotildees da mesma verdade sagrada Seu e sua satildeo possessivos que
natildeo indicam posse mas apropriaccedilatildeo eacute o ser no mundo em sua limitaccedilatildeo fundadora
Sua lsquoVerdadersquo eacute uma lsquoVerdadersquo assertoacuterica ningueacutem a contesta ningueacutem a
demonstra [] Aleacutetheia natildeo eacute a concordacircncia entre a proposiccedilatildeo e seu objeto
tampouco a concordacircncia de um juiacutezo com os outros juiacutezos natildeo se opotildee agrave
lsquomentirarsquo natildeo haacute lsquoverdadeirorsquo em face do lsquofalsorsquo A uacutenica oposiccedilatildeo
significativa eacute entre Aleacutetheia e Leacutethe
[]
Natildeo haacute de um lado Aleacutetheia (+) e do outro Leacutethe (-) mas entre esses dois polos
se desenvolve uma zona intermediaacuteria em que Aleacutetheia desliza para Leacutethe e
vice-versa A lsquonegatividadersquo portanto natildeo estaacute isolada apartada do Ser ela
orla a lsquoVerdadersquo eacute a sua sombra inseparaacutevel As duas potecircncias antiteacuteticas natildeo
satildeo pois contraditoacuterias mas tendem uma agrave outra o positivo tende ao negativo
que de certo modo o lsquonegarsquo mas sem o qual natildeo se sustenta (DETIENNE
2013 paacuteg 29 paacutegs 77-78 ndash grifos no original)
Para noacutes da modernidade real eacute o mundo que vemos ou podemos ver e controlar
cujo descobrimento torna-se sinocircnimo de confirmaccedilatildeo de uma teoria A compreensatildeo do
mundo se daacute agrave medida que o vemos e nossa visatildeo eacute guiada pela ciecircncia no sentido de
que damos existecircncia agrave realidade ao dispor cada peccedila em seu lugar A isto chamamos
conhecer categorizar o real agrave mercecirc do que podemos apreender dele Em contrapartida
o que natildeo podemos conceituar natildeo tem valor de existecircncia simplesmente natildeo eacute ldquorealrdquo eacute
ldquofictiacuteciordquo eacute ldquoimaginaccedilatildeordquo quer dizer natildeo eacute verdade mas mentira Ao aderir agrave concepccedilatildeo
36
de opostos subentende-se a ideia de norma padratildeo ndash haacute o que eacute e o que natildeo eacute distinccedilatildeo
claramente determinaacutevel quando coincidente correta quando divergente corrigiacutevel
A ontologia perde sentido em detrimento do que eacute claro evidente praacutetico
objetivo uacutetil enfim do que eacute capaz de levar a algum lugar ainda que esse
lugar possa natildeo ser exatamente o lugar mais desejaacutevel Natildeo importa O
importante eacute que seja algum lugar A questatildeo ontoloacutegica passa ao longo do
desenvolvimento da Cultura Ocidental a ser considerada perda de tempo
(JARDIM 1995 paacutegs 15-16)
Exige-se que se encaixe Como reconhecer o natildeo ensinar se natildeo se pode classificar
o que natildeo eacute Natildeo tem clareza falta utilidade no natildeo ser Qual a validade de natildeo ensinar
para um meacutedico um advogado Como natildeo ensinar a uma crianccedila tatildeo em tenra idade e
desprotegida ldquoPerdem-se no vazio consideraccedilotildees sobre o modo como se poderia levar
a agir sobre a vida cotidiana e puacuteblica de modo efetivo e uacutetil o pensamento ainda e apenas
metafiacutesicordquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 58) A pergunta aqui versa a respeito de uma
vontade mesmo que seja vontade de cuidar ainda assim eacute um desejo pelo ente antiteacutetico
ao ser circunstacircncia de realizaccedilatildeo do ser que foi que eacute ou que seraacute como se instacircncias
discerniacuteveis fossem
Busca-se uma postura de soluccedilatildeo de problemas resoluccedilatildeo de conflitos sem se dar
conta de que a tensatildeo eacute a proacutepria condiccedilatildeo de existecircncia no embate entre o nada e o ser
ldquoUm dos lugares fundamentais em que reina a indigecircncia da linguagem eacute a anguacutestia no
sentido do espanto no qual o abismo do nada dispotildee o homem O nada enquanto o outro
do ente eacute o veacuteu do ser No ser jaacute todo o destino do ente chegou originariamente agrave sua
plenituderdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) A questatildeo eacute como agir diante do que se
aquieta como o ente chega a ser se antes e fundamentalmente ele natildeo eacute Chegar agrave
plenitude na origem se contradiz com a ideia da construccedilatildeo de um conhecimento que se
inicia insipiente e finaliza-se douto pelo acuacutemulo de informaccedilotildees Isto porque natildeo nos
referimos agrave origem como comeccedilo muito menos agrave plenitude como fim aqui diz-se
respeito ao movimento Ir a algum lugar eacute sempre chegar de um lugar de modo que essa
concepccedilatildeo de saber eacute estar dentro da dinacircmica de partida e chegada de ser e estar do
nada e do ente de origem e de plenitude
Ora afirmamos que o natildeo ensinar imerso na senda do pensar nada diz respeito
ao descuido com o outro mas nesse embate entre ensinar um conteuacutedo e deixar o ensino
seguir seu curso de aprendizagem e vazio quanto mais se aceita como vital uma funccedilatildeo
maior seratildeo as garras do controle Seja por teorias sempre novas seja por soluccedilotildees agrave
37
disposiccedilatildeo o importante eacute sanar quaisquer duacutevidas ter sempre algo a dizer e muito muito
a ensinar ldquoA carga ndash inevitavelmente ndash normativa do saber pedagoacutegico acaba muitas
vezes por bloquear a experiecircncia da infacircncia [grifo no original]rdquo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg
9 ndash traduccedilatildeo livre)18
Quem deteacutem o dizer dita as regras Diferentemente de impor a vontade por forccedila
fiacutesica controla-se o dizer que eacute o saber vigente dominante e aceito A palavra que sabe
que eacute cientiacutefica diz o que eacute exercendo um controle dos corpos sem ao menos tocaacute-los
literal mas radicalmente ldquojaacute natildeo se trata de pocircr a morte em accedilatildeo no campo da soberania
mas de distribuir os vivos em um domiacutenio de valor e utilidaderdquo (FOUCAULT 1988 paacuteg
157)
Ocorre uma inversatildeo radical a ciecircncia diz o que eacute A ciecircncia deixa de ser uma
dentre tantas possibilidades passando a ser a deliberaccedilatildeo fundamental da existecircncia ldquoo
homem ndash um ente entre outros ndash faz lsquociecircnciarsquo Neste lsquofazerrsquo ocorre nada menos que a
irrupccedilatildeo de um ente chamado homem na totalidade do ente mas de tal maneira que na
e atraveacutes desta irrupccedilatildeo se descobre o ente naquilo que eacute em seu modo de serrdquo
(HEIDEGGER 1979c paacuteg 36) Os filhos desse mundo seratildeo crias cientiacuteficas homens
que veem no mundo somente um espelho de si Daiacute o predomiacutenio do indiviacuteduo da
vontade pois se tudo eacute um reflexo de noacutes mesmos basta esticar a matildeo e apanhar O que
natildeo nos serve natildeo eacute natildeo nos vemos logo desprezamos Ciumento eacute o deus-ciecircncia que
natildeo permite adoraccedilotildees alheias
A ciecircncia eacute a seguranccedila do pensamento isto eacute o que haacute de inofensivo sem ser
inocente Seguro pelas contas estaacute o proacuteprio pensar que se fia na loacutegica infaliacutevel ou na
estatiacutestica mais aceita por todos Quando o real eacute domado ele se torna conhecido a este
papel se presta a ciecircncia ldquoo pensamento calculador submete-se a si mesmo agrave ordem de
tudo dominar a partir da loacutegica de seu procedimentordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 50)
Nessas categorias se constitui a interpretaccedilatildeo do ser sem se perceber que satildeo as mesmas
categorias partes da possibilidade de categorizar A essa multiplicaccedilatildeo de chances
apreensotildees e aprendizagem nomeia-se pelo que origina o caacutelculo e o encerra em seu
destino sua derradeira conta o incalculaacutevel em todo calcular
18 La carga ndash iquestinevitablemente ndash normativa del saber pedagoacutegico acaba muchas veces por bloquear la
experiencia de la infancia
38
114 O jogo do poeta e da infacircncia
Ainda que natildeo fuja ao controle ousamos ao ensino de Dispor-se a ensinar algo
natildeo eacute demeacuterito natildeo contradiz o caminho aqui percorrido natildeo deve ser evitado ao
contraacuterio constitui fundamentalmente o ato de ensinar Um ensino que se integra ao natildeo
ensino do mesmo ensinar Deste modo perguntar para que ensinar natildeo perde sua validade
apenas agora congrega na pergunta pela utilidade sua inutilidade
Natildeo seria conveniente tutelar o ensino a fim de guiar aos cuidados de
profissionais respeitados a educaccedilatildeo de nossos filhos Como vimos brevemente por mais
que quiseacutessemos nossa vontade estaacute aqueacutem das possibilidades de realizaccedilatildeo Por este
vieacutes podemos traccedilar duas concepccedilotildees de ensino uma que se sabe limitada e neste limite
funda seu ensinamento outra que pretende limitar pelo controle que se diz sabedora dos
caminhos e se torna tutora do que e como proceder Uma ousa a outra se assegura uma
cuida no risco a outra entende que cuidar eacute evitar arriscar-se
Supotildee-se estar vendo dois caminhantes diante de uma correnteza selvagem
que arrasta consigo pedregulhos diversos o primeiro atravessa-o com leveza
nos peacutes utilizando as pedras para impulsionar-se cada vez mais adiante
mesmo que estas afundem assim que ele as deixa O outro permanece agrave
margem desamparado ele precisa primeiro construir os fundamentos que iratildeo
suportar o sem passo pesado e prudente (NIETZSCHE 2013 paacuteg 41)
A criacutetica ao ensino acompanha uma criacutetica no ensino Radicalmente eacute questionar
as instituiccedilotildees seus conteuacutedos e o modo como compreendemos seus papeacuteis na sociedade
isso ao menos em alguma instacircncia do contraacuterio estariacuteamos renegando o caraacuteter dialoacutegico
do pensamento e do ensino aqui propostos
Noacutes todos viemos de uma concepccedilatildeo de ldquoescola paternalista destinada a educar
os governados os que iriam obedecer e fazer em oposiccedilatildeo aos que iriam mandar e
pensarrdquo (TEIXEIRA 1947 paacuteg 27) que nada mais eacute do que a escola do sistema de
controle da ciecircncia pela teacutecnica Nesse paternalismo escolar natildeo soacute o ensino eacute controlado
mas tambeacutem a instituiccedilatildeo e suas partes componentes inclusive seu puacuteblico-alvo ndash os
alunos Na compreensatildeo funcional estes satildeo partes do todo que ainda natildeo se sabem todo
39
logo eacute preciso adestrar a compor o sistema Construccedilatildeo essa interminaacutevel sempre a
necessitar de mais instrutores pois novos satildeo os mecanismos
Nossa sociedade do conhecimento ou da aprendizagem como se a denomina
com seu slogan do aprender a aprender e do aprender ao longo de toda vida eacute
neste sentido um tipo de processo que em sua alunizaccedilatildeo do aprendiz o
converte tambeacutem em um aprendiz eterno mas de outra iacutendole um aprendiz
nunca de todo emancipado um aprendiz que natildeo solta da matildeo de seus
educadores (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 14 ndash traduccedilatildeo livre)19
Eacute um cuidado com a peccedila talvez um cuidado com o ente destituiacutedo de essecircncia
em que a diferenccedila eacute combatida e entendida por desigualdade e identidade por igualdade
cujas melhores hipoacuteteses criacuteticas recaem sobre as relaccedilotildees de poder ndash nas quais ldquoo
contraacuterio da igualdade natildeo eacute a diferenccedila mas a desigualdade que eacute socialmente
construiacuteda sobretudo numa sociedade tatildeo marcada pela exploraccedilatildeo classistardquo
(BENEVIDES 1998 paacuteg 156 ndash grifos no original) ndash mas carecem de questionamentos
sobre os mesmos valores que compotildeem e fundam suas criacuteticas
A partir disso podemos concluir que [] a criacutetica do ponto de vista do trabalho
natildeo nos permite pensar o proacuteprio modo de produzir [] O socialismo seria
uma lsquoforma social de distribuiccedilatildeorsquo adequada agrave produccedilatildeo industrial o modo de
produccedilatildeo natildeo eacute criticado radicalmente pelo contraacuterio ele eacute o ponto referencial
para a construccedilatildeo da criacutetica (SILVA 2016 paacuteg 37)
Trocando em miuacutedos para se dizer o que o aluno deve ou natildeo receber como
educaccedilatildeo se se deve ensinar ou natildeo filosofia ou literatura eacute preciso se perguntar o que
satildeo filosofia e literatura Arriscar pensar (natildeo necessariamente determinar) o ser dos entes
para aiacute viver no risco desta decisatildeo ao ensinar
Um dos criacuteticos literaacuterios brasileiros mais tradicionais e influentes interpreta que
decidir pela literatura eacute aceitar que ldquonas nossas sociedades a literatura tem sido um
instrumento poderoso de instruccedilatildeo e educaccedilatildeo [] A literatura confirma e nega propotildee
e denuncia apoia e combate fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os
problemasrdquo (CANDIDO 1989 paacuteg 113) Decerto esta eacute uma posiccedilatildeo que merece
diversas ressalvas principalmente por se referir ao ato literaacuterio como um instrumento
19 Nuestra sociedad del conocimiento o del aprendizaje como se la denomina con su eslogan del aprender
a aprender y del aprender a lo largo de toda la vida es en este sentido una suerte de proceso que en su
alumnizacioacuten del aprendiz lo convierte tambieacuten en un aprendiz eterno pero de otra iacutendole un aprendiz
nunca del todo emancipado un aprendiz que no se acaba soltar de la mano de sus educadores
40
remetendo-o assim agrave loacutegica tecnicista de pocircr tudo a serviccedilo da ciecircncia Contudo
chamamos atenccedilatildeo agrave importacircncia ldquopoderosardquo que a literatura adquire jaacute na tradiccedilatildeo
Neste sentido lidar com literatura e ensino trata mais de estabelecer um diaacutelogo
entre ambos do que simplesmente de apanhar livros nas seccedilotildees luacutedicas da biblioteca e
levar para que os alunos os leiam Pode-se fazer isso mas natildeo eacute necessaacuterio como aqui
vemos O convite ao poeacutetico cabe a todas as idades e se em tenra idade estamos carentes
de conhecimento o saber enquanto marca de pensamento ndash experiecircncia concreta de
vislumbramento de dor de temor de alegria ou seja de realidade ndash se dispotildee a quem
quer que entre em contato com o poeacutetico que faccedila o caminho de pensar e ser o poeacutetico
O saber natildeo eacute apreendido mas sim experienciado e para isso natildeo haacute preacute-requisito de
idade ldquoo termo infantil denomina normalmente uma faixa etaacuteria [] Pode o fenocircmeno
literaacuterio submeter-se a e ser apreendido por um tal criteacuterio ou classificaccedilatildeo Eacute
problemaacuteticordquo (CASTRO 1994 paacuteg 132)
Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a
realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da
lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de
pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de literatura como
um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das
experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que
natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas
Amor oacutedio guerra paz permanecer e partir Haacute muito tempo que andam juntos
com a filosofia e a literatura Esta eacute a proposta de um ensino na marca do pensamento
que diz porque sabe e cala porque diz Ao decidir pelo convite do ensinar reconhecemos
ldquoum vir a ser e perecer um construir e destruir sem qualquer acreacutescimo moral numa
inocecircncia eternamente idecircntica neste mundo existe apenas no jogo do artista e da crianccedilardquo
(NIETZSCHE 2013 paacuteg 68) Estar na marca do pensamento eacute portanto jogar o jogo
do poeta e da infacircncia
12 A tradiccedilatildeo
41
Este jogo de ensino seja ele de literatura e de filosofia seja de qualquer outra
disciplina eacute marcado por uma tradiccedilatildeo Quando nos perguntamos o que como e a quem
ensinar estamos levando em conta querendo ou natildeo um percurso histoacuterico de
compreensatildeo do mundo em que vivemos De certa maneira a tradiccedilatildeo foi um caminho
na marca do pensamento que se estabeleceu canonicamente de modo que essa tomada de
atitude torna-se familiar e conhecida num determinado grupo
Simultaneamente ao criticar o ensino critica-se a tradiccedilatildeo do ensinar Em linhas
gerais tanto o ensino quanto a tradiccedilatildeo se confundem em significado Como mostra o
sentido aceito amplamente pela sociedade encontra-se na palavra tradiccedilatildeo os significados
de ldquoato ou efeito de transmitir ou entregar transferecircncia heranccedila cultural conjunto de
valores costume haacutebito conjunto de doutrinas essenciais reconhecidos e aceitos por sua
ortodoxia e autoridaderdquo (HOUAISS 2009a)
Contudo assim como o ensino tambeacutem a tradiccedilatildeo pode ser pensada diversa e
criticamente Aqui se dispotildee a pensar a tradiccedilatildeo da tradiccedilatildeo isto eacute a tradiccedilatildeo do que se
costuma compreender como o que seja tradiccedilatildeo No seu ensaio A crise na educaccedilatildeo
Hannah Arendt (1972 paacuteg 243) jaacute chamava atenccedilatildeo quanto agrave relaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e
educaccedilatildeo ao dizer ldquoa crise da autoridade na educaccedilatildeo guarda a mais estreita conexatildeo com
a crise da tradiccedilatildeo ou seja com a crise de nossa atitude face ao acircmbito do passadordquo Um
relacionamento que evoca tambeacutem a autoridade de que a tradiccedilatildeo dispunha e que
determina os modos de ser da educaccedilatildeo consequentemente do ensino
Neste sentido qual a relaccedilatildeo entre ensino tradiccedilatildeo e autoridade Seria a tradiccedilatildeo
o ensino da autoridade Concebendo tradiccedilatildeo como conjunto de valores heranccedila cultural
e transferecircncia pode-se supor daiacute uma autoridade dos conteuacutedos Se foi feito assim
faccedilamos assim Mais uma vez lidamos com a transmissatildeo de uma concepccedilatildeo de maneiras
de ver o real teorias e metodologias Uma tradiccedilatildeo tecnicista que transmite a autoridade
cientiacutefica pelo ensino determinando o que o real eacute a partir do que se acredita que ele deve
ser controlaacutevel e controlado Por esse vieacutes de tradiccedilatildeo a criaccedilatildeo cede espaccedilo agrave
reproduccedilatildeo e a ousadia ao zelo
Pertence agrave proacutepria natureza da condiccedilatildeo humana o fato de que cada geraccedilatildeo se
transforma em um mundo antigo de tal modo que preparar uma nova geraccedilatildeo
para um mundo novo soacute pode significar o desejo de arrancar das matildeos dos
receacutem-chegados sua proacutepria oportunidade face ao novo (ARENDT 1972 paacuteg
226)
42
121 Quando o poeacutetico repousa esquecido
Esta eacute a tradiccedilatildeo do homem ocidental o mesmo que vive a ilusatildeo de poder
compreender tudo a seu redor Um homem que busca suas origens Isto significa estar
num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos e por fim sua forma de
ser Este eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita alfabeacutetica a filosofia e a
induacutestria Vale ressaltar que haacute um embate na Academia sobre se a invenccedilatildeo da escrita
alfabeacutetica eacute ou natildeo eacute obra grega A ideia neste trabalho natildeo eacute se perder ldquona busca do
primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica
fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo
(HAVELOCK 1996a paacuteg 15) pois nenhuma dessas revoluccedilotildees chegaram sem cobrar
um preccedilo Cada invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se
Como a tradiccedilatildeo tradicional lida com a inventividade Ao longo dos seacuteculos
houve criaccedilotildees das mais variadas nunca se deixou de inventar e criar a despeito da
autoridade da tradiccedilatildeo Por outro lado talvez certo desconforto com o que se apresenta
seja mesmo necessaacuterio a fim de que haja um impulso pela criaccedilatildeo Inclusive eacute de se
suspeitar a coincidecircncia de que justo no seacuteculo no qual mais se inventaram coisas maior
foi a repulsa pela tradiccedilatildeo A pergunta agora se refaz como se daacute essa inventividade que
despreza o jaacute inventado a ponto de estar sempre agrave busca por uma novidade
O problema da educaccedilatildeo no mundo moderno estaacute no fato de por sua natureza
natildeo poder esta abrir matildeo nem da autoridade nem da tradiccedilatildeo e ser obrigada
apesar disso a caminhar em um mundo que natildeo eacute estruturado nem pela
autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradiccedilatildeo (ARENDT 1972 paacuteg
245-246)
Este eacute o homem que vive a ilusatildeo A criaccedilatildeo que renega a tradiccedilatildeo desprezando-
a se ilude por natildeo reconhecer que toda invenccedilatildeo jaacute faz parte da tradiccedilatildeo somente por ter
sido inventada A novidade soacute existe conceitualmente ou no instante imensuraacutevel pois a
partir do derradeiro momento da criaccedilatildeo o a fazer se torna feito particiacutepio passado
43
Estando a coisa posta somente a disposiccedilatildeo criativa perante a tradiccedilatildeo pode dar
movimento e sentidos ao ateacute entatildeo adormecido
Poreacutem o imaginaacuterio da ficccedilatildeo da literatura natildeo pode ser confundido com a
simples ilusatildeo promotora da coisificaccedilatildeo e da alienaccedilatildeo do homem pela
manipulaccedilatildeo de estereoacutetipos ideoloacutegicos O ilusoacuterio natildeo promove o descortinar
do sentido do ser do homem humanizando-o libertando-o Pelo contraacuterio o
seu modelo eacute uniforme e repetido jamais dando lugar agrave diferenccedila ao que ainda
natildeo se sabe ao desafio do perguntar (CASTRO 1994 paacuteg 135 ndash grifo no
original)
Este eacute o homem que vem perdendo seu contato mais imediato e concreto com as
coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que nada mais eacute do que o desdobramento
do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo Um homem teacutecnico um homem no qual o
poeacutetico repousa esquecido Sobre este periacuteodo da nossa histoacuteria impotildee-se uma tradiccedilatildeo
nos moldes da ciecircncia e da teacutecnica moderna que almeja sempre suplantar qualquer outra
tradiccedilatildeo que natildeo lhe diga respeito
O pensar poeacutetico eacute o pensar se manifestando realizaccedilatildeo concreta [] Sua
concretude adveacutem precisamente da ausecircncia de certeza e da vigecircncia de uma
dinacircmica O pensar eacute apresentado como o pensar que pensa realizando
diferentemente de uma modalidade de pensar que se realiza como cumulaccedilatildeo
de abstraccedilotildees como informaccedilotildees coligidas para se apresentarem no mais das
vezes como simulacro de alguma realizaccedilatildeo externa a esse mesmo pensar
(JARDIM 2005 paacuteg 33)
122 A ideia e o ser
Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que
as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as
coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos
compreendecirc-las A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana
das coisas mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa
a ser nossa possibilidade de vecirc-las Jaacute dizia Pessoa
O Universo natildeo eacute uma ideia minha
A minha ideia do Universo eacute que eacute uma ideia minha
44
A noite natildeo anoitece pelos meus olhos
A minha ideia da noite eacute que anoitece por meus olhos
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso (PESSOA 2006 paacuteg 51)
Nos versos do poeta na voz de seu heterocircnimo Alberto Caeiro ressoa como um
estrondo a dicotomia entre concreto e abstrato entre lidar com uma tradiccedilatildeo de
pensamento que se insere na emergecircncia das circunstacircncias na qual tudo tem um limite
no deslimite das possibilidades e compreender a instacircncia das coisas como algo
mensuraacutevel apreensiacutevel pelas ideias e conceitos em sua totalidade Isto eacute a crenccedila de que
a realidade pode ser conhecida genericamente apresentada num modelo que representa
todo o resto Desta forma jaacute tendo conhecido o molde basta adequaacute-la reproduzi-la Sem
que haja a necessidade de pensamento e criaccedilatildeo surge o costume de fazer
O calo eacute o haacutebito ndash o haacutebito cultural ndash e porque haacutebito automaacutetico mecacircnico
imediato esquema estiacutemulo-resposta embotador e gerador de apatia
indiferenccedila lassidatildeo Vecirc-se entatildeo como habitualmente se vecirc ou como todo
mundo vecirc Assim se sente assim se pensa Impera a atitude que uni-formiza
uni-dimensionaliza homo-geneiza e que eacute a vigecircncia do raso do plano da
planiacutecie ou seja a apatia ou a indiferenccedila do tudo igual do mediacuteocre
(FOGEL 2007 paacuteg 40 ndash grifos no original)
Natildeo soacute isso esta tradiccedilatildeo que se engendra no haacutebito tende a natildeo dar importacircncia
ao que natildeo tem utilidade isto eacute natildeo pode se adequar aos moldes da funcionalidade A
pergunta que se faz diante do desconhecido deixa de ser ldquoo que eacute istordquo para virar ldquopara
que serve istordquo Quando a resposta eacute positiva a realidade passa a vigorar pela sua funccedilatildeo
quando negativa eacute descartada ou deixada agrave mercecirc da indiferenccedila e do desdeacutem A respeito
do poema ldquoUma flor agrave margem do rio para ele era uma flor amarela e natildeo era mais nadardquo
(WORDSWORTH apud PESSOA 2006 paacuteg 61)20 diz Caeiro
Toda coisa que vemos devemos vecirc-la sempre pela primeira vez porque
realmente eacute a primeira vez que a vemos E entatildeo cada flor amarela eacute uma nova
flor amarela ainda que seja o que se chama a mesma de ontem A gente natildeo eacute
jaacute o mesmo nem a flor a mesma O proacuteprio amarelo natildeo pode ser jaacute o mesmo
Eacute pena a gente natildeo ter exatamente os olhos para saber isso por que entatildeo
eacuteramos todos felizes (PESSOA 2006 paacuteg 61)
20 A primrose by the riverrsquos brim A yellow primrose was to him And it was nothing more
45
Neste sentido compreende-se a tradiccedilatildeo como um conceito isto eacute ldquocomo a coisa
sempre jaacute vista sempre jaacute sabidardquo (FOGEL 2007 paacuteg 41 ndash grifos no original)
Compreende-se enquanto o que se prende junto a si A ilusatildeo de poder compreender tudo
se faz principalmente por se tratar desse caraacuteter conceitual e abstrato com que nos
relacionamos com as coisas Entatildeo quando o poeta chama atenccedilatildeo agrave diferenccedila entre
alguma coisa e a minha ideia sobre alguma coisa eacute como se ele convidasse a experienciar
a realidade para os limites que ela a cada vez nos impotildee ao inveacutes de impormos nossa
limitaccedilatildeo conceitual a ela
Diferente de ser dois homem e realidade o poema apresenta que ldquoo fulgor das
estrelas existe como se tivesse pesordquo (PESSOA 2006 paacuteg 51) ou seja sentimos a
realidade como a um semelhante o fulgor natildeo eacute substantivo abstrato mas o arremate que
nos causa maravilhamento espanto terror todas as sensaccedilotildees que por sua vez geram
reaccedilotildees prova de que natildeo estamos apaacuteticos perante o que eacute Tal estado de ser se
corresponde a uma multiplicidade de disposiccedilotildees natildeo se esgotando na funcionalidade
que o fulgor das estrelas poderia ter
A ideia de algo natildeo versa a respeito das singularidades e sim sobre o que seus
nuacutemeros e estatiacutesticas indicam Pode de fato o sabor de uma banana ou maccedilatilde ceder lugar
ao conjunto das frutas quantitativamente sem gosto Ateacute a morte natildeo eacute mais uma
manifestaccedilatildeo do real tanto quanto respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser
superado basta termos mais conhecimentos a respeito
mdash Se concebo o quecirc Uma coisa ter limites Pudera O que natildeo tem limites
natildeo existe Existir eacute haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser
limitada O que eacute que custa conceber que uma coisa eacute uma coisa e natildeo estaacute
sempre a ser uma outra coisa que estaacute mais adiante []
mdash Olhe Caeiro Considere os nuacutemeros Onde eacute que acabam os nuacutemeros
Tomemos qualquer nuacutemero ndash 34 por exemplo Para aleacutem dele temos 35 36
37 38 e assim sem poder parar Natildeo haacute nuacutemero grande que natildeo haja um
nuacutemero maior
mdash Mas isso satildeo soacute nuacutemeros ndash protestou o meu mestre Caeiro E depois
acrescentou olhando-me com uma formidaacutevel infacircncia
mdash O que eacute o 34 na Realidade (PESSOA 2006 paacuteg 62)
Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como
tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de
novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma
46
forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia
murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos
Tudo com o que se tem contato passa a ser o sem misteacuterio o sabido e o
compreendido ou a compreender Tudo pode ser acessado inclusive o proacuteprio homem O
homem pelo homem passa a ser um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser
diagnosticada e curada o humano torna-se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma
infinidade de predicativos que validam o sujeito homem Nossa ideia de homem passa a
ser o homem
123 As tradiccedilotildees da tradiccedilatildeo
Nossa ideia de tradiccedilatildeo natildeo eacute a tradiccedilatildeo Melhor dizendo atualmente vigora uma
concepccedilatildeo de tradiccedilatildeo que natildeo permaneceu a mesma no tempo o que significa que o
modo como o homem foi apreendido pela histoacuteria mudou Na proacutepria liacutengua encontramos
traccedilos de outra tradiccedilatildeo em sua etimologia formas diversas de ser no mundo Conveacutem
entretanto uma ressalva a busca aos sentidos anteriores quiccedilaacute originaacuterios nem sempre
tem a ver com um empenho gramatical ldquoEtimologia natildeo diz em primeiro lugar ciecircncia
linguiacutestica que investiga a identidade entre os radicais das palavras [] Em sentido
proacuteprio (aqui literal) etimologia diz logos do eacutetimo linguagem do proacuteprio comeccedilordquo
(SCHUBACK 1996 paacuteg 62) Em vez disso trata-se de estar atento ao aceno de
significaccedilotildees e de experiecircncias que as palavras portam cujo uso comunicativo da liacutengua
ignora ou desconhece
Etimologia tambeacutem eacute um dizer mas um dizer originaacuterio que emerge de uma
consentaneidade O radical eacutetymos significa legiacutetimo autecircntico verdadeiro
Etimologia natildeo eacute um dizer qualquer Eacute o dizer que remonta para o proacuteprio
processo de dizer que proveacutem da verdade do proacuteprio dizer e por isso se faz
legiacutetimo pelo vigor de sua proacutepria vigecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 104)
Tendo isso dito observa-se que a palavra tradiccedilatildeo se origina de traditio ndash
conforme se encontra em Houaiss (2009a Tradiccedilatildeo) Dicionaacuterio Michaelis (2015
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Tradiccedilatildeo)21 e Aulete e Valente (2016 Tradiccedilatildeo)22 ndash por via erudita conforme Ferreira
(2004 Tradiccedilatildeo) Por sua vez temos os seguintes sentidos etimoloacutegicos ldquoaccedilatildeo de dar
entrega transmissatildeo tradiccedilatildeo ensinordquo (HOUAISS 2009a) que aparentemente se
mantiveram com relativa estabilidade no uso contemporacircneo da liacutengua em se tratando do
significado mais abstrato da palavra sob o conceito de ir passando um conhecimento
adiante perpetuando um saber
Ao procurar num dicionaacuterio de latim confirma-se o significado de entrega
transmissatildeo e ensino natildeo se restringindo todavia ao abstrato do termo Considera-se
tambeacutem o transporte fiacutesico de objetos e de pessoas ldquo1 A entrega (de mercadorias bens
etc) rendiccedilatildeo (de pessoas territoacuterio etc) [] 2 A transmissatildeo de conhecimento ensino
b a entrega do conhecimento um item de conhecimento tradicional crenccedila etc)rdquo
(GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)23 Perdemos no habitual da liacutengua a tradiccedilatildeo
para o concreto Uma pessoa pode ser entregue agrave poliacutecia um terreno pode ser entregue ao
seu proprietaacuterio mas dificilmente chamariacuteamos isso de tradiccedilatildeo Logo a primeira entrada
do dicionaacuterio latino ficou esquecida Aqui seraacute tarefa do pensamento perscrutar o terreno
do esquecimento para fazer a experiecircncia de mundo calada na palavra
Prosseguindo traditio eacute constituiacuteda a partir da substantivaccedilatildeo do verbo trado com
o sufixo -tio (GLARE 1968 paacuteg 1956) equivalente ao nosso -ccedilatildeo Um verbo rico por
sinal com dez entradas no Oxford Dictionary A maioria satildeo nuances do sentido-base de
entregar por exemplo ldquo1 Entregar ou passar adiante (para uma pessoa) b dar (para uma
pessoa para segurar) transferir (para uma posiccedilatildeo) c entregar (ao funcionamento das
forccedilas naturais etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956 ndash traduccedilatildeo livre)24 Alguns sentidos jaacute
mais distantes referem-se a trado como ldquo7 Introduzir (uma pessoa a outra ndash traduccedilatildeo
livre)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 1956)25
21 Disponiacutevel em
lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=tradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16
set 2016 22 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtradiC3A7C3A3ogt Acesso em 16 set 2016 23 1 The handing over delivery (of goods possessions etc) surrender (of persons territory etc) [] 2
The transmission of knowledge teaching b the handing down of knowledge a item of traditional
knowledge belief etc) 24 1 To hand or pass over (to a person) b to hand over give (to a person to hold) to transfer (to a
position) c to deliver hand over (to the operation of natural forces etc) 25 7 To introduce (a person to another)
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Introduzir natildeo deixa de guardar certa semelhanccedila com entregar pois tambeacutem diz
de levar algueacutem ou algo de uma posiccedilatildeo a outra Todo esse translado natildeo eacute agrave toa uma vez
que a palavra trado jaacute remete a isso em sua formaccedilatildeo por meio do prefixo trans- com o
verbo do (GLARE 1968 paacuteg 1956) em que trans- nos diz de ldquo1 Do outro lado ou por
cima atraveacutes para o outro lado de [] Formas frequentemente tra- antes de consoantes
surdasrdquo (GLARE 1968 paacuteg 1961 ndash traduccedilatildeo livre)26 A saber temos ainda no portuguecircs
falado o uso do trans- seja nesta forma como em transbordar e transportar seja na forma
tra- em tradiccedilatildeo traduzir ou ateacute numa outra variaacutevel como em trespassar (LIMA 1972
paacuteg 178) Isto significa que natildeo eacute nenhum espanto ter ainda que vagamente a noccedilatildeo de
passagem passar aleacutem de ao pensar ao pronunciar a palavra tradiccedilatildeo tra-diccedilatildeo
A outra parte dessa uacuteltima composiccedilatildeo eacute do o verbo dar em latim Este eacute um verbo
complexo Seu radical curto revela uma multiplicidade dos mais variados sentidos O
primeiro deles que aparece no latim eacute ldquo1 Conferir gratuitamente dar posse de fazer uma
doaccedilatildeo de dar b dar oferecer (aos deuses os mortos etc) c conceder (a posse legal a
utilizaccedilatildeo etc)rdquo (GLARE 1968 paacuteg 566 ndash traduccedilatildeo livre)27
De fato na entrega algo eacute dado algo eacute oferecido garante-se que por um
deslocamento algo atravessa ateacute outra circunstacircncia Em todo trado haacute um do toda
entrega daacute Um dar que reforccedila a travessia do dado no seu prefixo Entregar como o que
ldquotransdaacuterdquo resguardando a importacircncia que a passagem tem para a entrega Levando isso
em conta o modo verbal que foca seu aspecto no movimento eacute o geruacutendio Tem-se pois
entregar trado enquanto um dar oferecendo Um dar que eacute dando E assim eacute feita a
entrega a tradiccedilatildeo como o ato que daacute e permanece neste movimento de doaccedilatildeo
Quem oferece introduz uma oferta Uma daacutediva que natildeo se materializa
simplesmente no seu destino como se seu objetivo fosse somente a finalidade mas que
faz uma trajetoacuteria da entrega ao recebimento E quanto agrave sua origem quanto agrave sua meta
Entrega enquanto tradiccedilatildeo atravessa e por isso eacute atravessada Isto eacute tradiccedilatildeo eacute um
atravessamento da entrega sempre se originando ldquoTudo o que acontece eacute sempre um
comeccedilordquo (RILKE 1976 paacuteg 52)
26 1 Across or over also through to the other side of [hellip] Forms freq tra- before voiced consonants 27 1 To confer gratuitously give possession of make a gift of give b to give offer (to the gods the dead
etc) c to grant (legal possession use etc)
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A partir do momento em que se chega ao alvo cessa a entrega para a tradiccedilatildeo
Por isso que tradiccedilatildeo enquanto tra-diccedilatildeo precisa estar em constante recebimento e oferta
Precisa passar adiante e desta forma estar em insistente diaacutelogo com a histoacuteria e sua
dinacircmica A mera reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo em outras palavras a tradiccedilatildeo da reproduccedilatildeo
natildeo reverbera na tensatildeo do ontem do hoje e do sempre Eacute dar sem a travessia sem os
percalccedilos do caminho Entre o que permanece no fluxo das mudanccedilas haacute uma tradiccedilatildeo
entre o que muda na constacircncia haacute uma tradiccedilatildeo e assim sua obra continua a fazer sentido
por mais diversas que sejam as eacutepocas as pessoas as circunstacircncias Num paralelo com
a obra de arte a tradiccedilatildeo exerce sua dinacircmica de maravilhamento e repulsa concessatildeo do
tracircnsito das experiecircncias de mundo
A unicidade da obra de arte eacute idecircntica agrave sua inserccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo
Sem duacutevida essa tradiccedilatildeo eacute algo de vivo de extraordinariamente variaacutevel
Uma antiga estaacutetua de Vecircnus por exemplo estava inscrita numa certa tradiccedilatildeo
entre os gregos que faziam dela um objeto de culto e em outra tradiccedilatildeo na
Idade Meacutedia quando os doutores da Igreja viam nela um iacutedolo malfazejo O
que era comum as duas tradiccedilotildees contudo era a unicidade da obra []
(BENJAMIN 1987 paacuteg 171)
124 Tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo
A tradiccedilatildeo pois eacute um processo natildeo um produto Ou pelo menos assim seria para
os entendidos das etimologias conhecedores das liacutenguas claacutessicas estudiosos e
especialistas A quem eacute vedado o conhecimento distante estaacute a luz do saber Equivoca-
se quem se debruccedila sobre dicionaacuterios mais do que se dedica ao pensamento O caminho
aqui oferece questotildees natildeo soluccedilotildees
O que eacute a palavra sem a relaccedilatildeo com o que nomeia e o que nela vem agrave palavra
Deve-se sair correndo de toda etimologia vazia e acidental ela se torna
jogatina se o que se estaacute a nomear na palavra jaacute natildeo tiver sido anteriormente
pensado por caminhos longos e vagarosos e natildeo continuar a ser sempre de
novo pensado comprovado e sempre de novo provado em sua essecircncia de
palavra (HEIDEGGER 1998 paacuteg 207)
Por isso conveacutem enveredar-se tanto no mais recocircndito significado a fim de
auscultar seu sentido praticamente mudo na fala mais corriqueira bem como no
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aparentemente mais banal significado arcaico Desse modo reconhecemos que em toda
fala cotidiana haacute um canto antigo e inaudito Assim continuamos com a etimologia agora
pela via popular de traditio
Em Aulete e Valente (2016 Traiccedilatildeo)28 e Ferreira (2004 Traiccedilatildeo) encontra-se
outra via de acesso que natildeo a erudita ao portuguecircs brasileiro da palavra traditio a palavra
traiccedilatildeo Resumidamente tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo possuem exatamente a mesma origem latina
em traditio Ora traiccedilatildeo nos eacute apresentada pelos meios de comunicaccedilatildeo mais usados e
acessiacuteveis como uma ruptura da expectativa e da confianccedila sendo normalmente encarada
como uma maldade por nossa moral vigente ldquoQuebra de fidelidade prometida e
empenhada aleivosia deslealdade perfiacutediardquo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015
Traiccedilatildeo)29 Qual eacute a daacutediva entatildeo Onde estaacute a traditio na traiccedilatildeo
Bom e ruim satildeo paradigmas morais Quando se diz da traiccedilatildeo de outrem leva-se
em conta sua conduta perante o que se espera enquanto membro de uma sociedade Pela
traiccedilatildeo se fixou a negatividade do que eacute dado A tradiccedilatildeo maacute a tradiccedilatildeo perversa a daacutediva
rejeitada socialmente uma traiccedilatildeo Ora essa postura determiniacutestica natildeo considera o trans-
que tambeacutem haacute na traiccedilatildeo O absoluto que jaz aparentemente em toda traiccedilatildeo se revela
tatildeo variaacutevel assim como a relaccedilatildeo de infidelidade da esposa com o marido natildeo tem a
mesma perfiacutedia moral que a quebra da confianccedila pelo espiatildeo em defesa da paacutetria Esta
talvez nem maldade fosse mas digna de medalha por seus pares
Originalmente ndash assim eles decretam ndash as accedilotildees natildeo egoiacutestas foram louvadas e
consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas aqueles aos quais eram
uacuteteis mais tarde foi esquecida essa origem do louvor e as accedilotildees natildeo egoiacutestas
pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas foram
tambeacutem sentidas como boas ndash como se em si fossem algo bom (NIETZSCHE
1998 paacuteg 18)
Na dinacircmica do movimento o bom e o ruim se imiscuem Entatildeo trair pode ser
uma coisa boa justificaacutevel em algumas ocasiotildees assim como a tradiccedilatildeo Eacute importante
aqui natildeo confundirmos o caminho com o caminhar O caminho natildeo faz escolhas o
caminhar sim A traiccedilatildeo oferece daacute e entrega algo o modo como lidamos com essa oferta
eacute outra perspectiva Um caso social pessoal cultural Traiccedilatildeo natildeo eacute soacute mateacuteria de
tabloides pelo contraacuterio ela reconhece a tradiccedilatildeo e neste reconhecimento nega-a
28 Disponiacutevel em lthttpwwwauletecombrtraiC3A7C3A3ogt Acesso em 18 set 2016 29 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscaid=4bjp3gt Acesso em 18 set 2016
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oferecendo outra possibilidade de concepccedilatildeo do real cuja moral da tradiccedilatildeo ndash aquela
tradicional e comprometida com o produto a ser entregue natildeo com o processo ndash reprova
Em consonacircncia com a dinacircmica da travessia a traiccedilatildeo engendra o outro valor da tradiccedilatildeo
sua proacutepria instacircncia de desvio agrave qual a entrega enquanto doaccedilatildeo de possibilidades se
dispotildee
Contudo eacute compreensiacutevel a descrenccedila de que traiccedilatildeo seja algo que natildeo um
comportamento execraacutevel Afinal desde haacute muito a proximidade com uma semacircntica da
malignidade se adequa agrave palavra Os primeiros dicionaacuterios do portuguecircs jaacute apresentam
esse sentido e isto nos indica ao menos nos ciacuterculos intelectuais qual eacute a interpretaccedilatildeo
do termo que se arrasta na histoacuteria da liacutengua permeando nossa concepccedilatildeo de mundo
ldquoTraiccedilaotilde ndash perfiacutedia falta de fidelidade ao Principe ao amigo que se fiava de nogravesrdquo
(BLUTEAU 1728 paacuteg 237) ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia entrega da feacute quebra da fidelidade
prometidardquo (SILVA 1789 paacuteg 794) e ldquoTraiccedilatildeo ndash perfidia falta de fidelidaderdquo (PINTO
1832 paacuteg 1057)
A relaccedilatildeo entre perfiacutedia e traiccedilatildeo natildeo comeccedila neste momento nem se restringe ao
portuguecircs mostrando que outras liacutenguas detiveram semelhante compreensatildeo de mundo
ldquoO Italiano chama ao Traductor Traidor Traduttore Traditore mas o Traductor fiel natildeo
he Traidorrdquo (BLUTEAU 1728 paacuteg 234) Uma proximidade que se justificaria na
formaccedilatildeo na qual traduccedilatildeo deriva de trans- + -duco- + -tio Ambos os verbos trado e
traduco satildeo introduzidos pelo prefixo-ponte aceno para a travessia na sua forma tra-
Entre duco e do entre trazer e dar haacute sim muitos sentidos parecidos que se distanciam
com sutileza e se aproximam com cautela Na proposiccedilatildeo anterior o tradutor fiel traria o
sentido do verso enquanto que o traidor daacute sentido ao verso fugindo agrave fidelidade da
mensagem
Ora quantos ruiacutedos existem entre o que se diz e o que se quer dizer Quem haacute de
mostrar que o que pode ser aprendido se sujeita ao que deve ser aprendido Imersa em
narrativa a mensagem assume o rosto das variadas interpretaccedilotildees e ainda assim a
mensagem eacute apenas a interpretaccedilatildeo do real enquanto palavra obra gesto e natildeo o real
propriamente A unicidade da obra a que Benjamin (1987 paacuteg 171) se referia eacute o que
permite uma entrega a cada vez autecircntica de respostas sem esgotar a questatildeo que a arte
suscita Nessa dimensatildeo todo tradutor eacute em certa medida traidor ainda sem o querer
pois necessariamente ele falharaacute em entregar a mensagem na iacutentegra concomitantemente
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o tradutor eacute um ldquotraditorrdquo algueacutem que porta uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo e a passa
adiante em sua possibilidade de autenticidade
125 Traiccedilatildeo e mutiratildeo
A traiccedilatildeo natildeo deixa de ser uma tradiccedilatildeo na interpretaccedilatildeo da tradiccedilatildeo ou melhor
da falta agrave tradiccedilatildeo seja na figura de um rei enganado seja na de um amante infiel A
histoacuteria da liacutengua apenas serve para confirmar a desconfianccedila que a traiccedilatildeo engendra
Todavia o uacuteltimo seacuteculo tem revisto sua proacutepria compreensatildeo de relato histoacuterico o que
vem influenciando as mais diversas aacutereas inclusive a lexicografia
Os dicionaristas agora levam em conta natildeo apenas a norma culta escrita para
reconhecer uma entrada no dicionaacuterio ndash como nas primeiras publicaccedilotildees em liacutengua
vernacular ndash mas o uso corrente oral palavras chulas e ateacute palavras de uso apenas em
determinadas comunidades Essas populaccedilotildees algumas delas isoladas do conviacutevio com o
restante da civilizaccedilatildeo tiveram um desenvolvimento proacuteprio da liacutengua condizente com
sua experiecircncia de mundo
Nesse sentido algumas palavras para noacutes ndash que estamos acostumados com o
linguajar citadino que fomos atravessados por anos de teorias e praacuteticas cientiacuteficas jaacute
cristalizadas ndash podem soar estranhas pela maneira como usam aquelas comunidades
embora ambas tenham uma origem comum Isto eacute cada tradiccedilatildeo faz seu caminho e
resguarda interpretaccedilotildees singulares em diaacutelogos mais ou menos audiacuteveis no uso
corriqueiro das fontes propulsoras do nomear
No dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que
pela fala perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircncia Contudo na maior
parte das vezes e com frequecircncia o dito nos vem ao encontro como uma fala
que passou
Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz fariacuteamos bem em
encontrar um dito que se diz genuinamente e natildeo um dito qualquer escolhido
de qualquer modo Dizer genuinamente eacute dizer de tal maneira que a plenitude
do dizer proacutepria ao dito eacute por sua vez inaugural (HEIDEGGER 2003 paacuteg
12)
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Nos grandes dicionaacuterios de portuguecircs brasileiro uma das entradas de traiccedilatildeo
destoa do sentido de perfiacutedia mais usual ao mesmo tempo em que se aproxima de uma
entrega e uma oferta ldquo4 Regionalismo Minas Gerais Mato Grosso Mato Grosso do Sul
Variedade de mutiratildeo em que o fazendeiro que tenciona auxiliar o vizinho chega agrave casa
deste de madrugada em companhia de trabalhadores e desperta-o ao som de cantosrdquo
(HOUAISS 2009a Traiccedilatildeo) ldquo5 MG MT MS Mutiratildeo em que os ajudantes chegam agrave
casa de quem vai ser ajudado de madrugada e acordam-no com cantosrdquo (AULETE
VALENTE 2016 Traiccedilatildeo) ldquo5 Bras MT Espeacutecie de mutiratildeo (q v) com a
particularidade de o fazendeiro que pretende auxiliar o vizinho chegar agrave casa deste alta
noite de surpresa em companhia dos trabalhadores acordando-o em geral ao som de
cantos [Cf nesta acepccedil suta (3) e estalada (5)]rdquo (FERREIRA 2004 Traiccedilatildeo)
6 REG (MG MS MT) ETNOL Ver suta acepccedilatildeo 3 3 REG (GO) ETNOL
Mutiratildeo prestado por amigos e vizinhos de um fazendeiro que chegam de
surpresa para realizar um serviccedilo urgente e quando concluiacutedo voltam para a
sede da fazenda para um jantar especial seguido de reza cantoria e danccedila
traiccedilatildeo (DICIONAacuteRIO MICHAELIS 2015 Suta)30
Como a traiccedilatildeo virou auxiacutelio Como de perfiacutedia a palavra traiccedilatildeo ganhou uma
conotaccedilatildeo praticamente oposta digna inclusive de comemoraccedilotildees A tal pergunta natildeo se
pode responder com certeza neste trabalho Em geral os regionalismos satildeo marcas
culturais como estruturas linguiacutesticas que se referem a determinadas comunidades e satildeo
leituras de mundo feitas por ou a respeito delas Apresentam uma singularidade no uso
seja na manutenccedilatildeo de sentidos seja na construccedilatildeo de novas relaccedilotildees entre palavra e
realidade de tal modo que um sentido antigo poderia tomar um caminho aparentemente
contraditoacuterio ao canocircnico e ainda assim dialogar com este no que haacute de originaacuterio em
ambos Em entrevista ao Diaacuterio de Lisboa Joatildeo Cabral de Melo Neto nos oferece sua
interpretaccedilatildeo do que seja o regionalismo e o regional
O regionalismo natildeo eacute uma linguagem regional que o inutilizaria mas falar de
problemas que estatildeo mais proacuteximos da pessoa que fala a dor do homem a
alegria suas lutas e as suas belezas etc [] Quando me bato pelo regionalismo
eacute para mostrar numa anedota o local os sentimentos comuns a todos os
30 Disponiacutevel em lthttpmichaelisuolcombrbuscar=0ampf=0ampt=0amppalavra=sutagt Acesso em 20 set
2016
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homens O homem soacute eacute amplamente homem quando eacute regional (ATHAYDE
1998 paacuteg 85)
Tem-se pois a ajuda oferecida Uma comunidade na qual um de seus membros
receberia auxiacutelio de bom grado apresenta-se e se dispotildee ao trabalho conjunto Importante
notar que a vinda auxiliadora natildeo recai exclusivamente na realizaccedilatildeo do labor mas se
enfeita de muacutesica e danccedila um rito trabalhiacutestico Ela natildeo eacute imediata natildeo eacute objetiva em sua
funccedilatildeo mas se permite demorar no empenho de ajudar num tempo em que ajuda natildeo eacute
puro desempenho da tarefa Por sua vez o ajudado tambeacutem oferece algo comidas
agradecimentos e seu trabalho se junta aos demais na comunhatildeo criada para aquela
circunstacircncia especiacutefica
Neste caso a festa eacute tatildeo necessaacuteria quanto o trabalho Tanto que o serviccedilo natildeo visa
agrave remuneraccedilatildeo natildeo se busca a troca simboacutelica A voluntariedade estaacute na garantia de
persistecircncia desse tipo de relaccedilatildeo de comunidade que se ajuda pois cada um eacute tanto um
uacutenico quanto a unidade que caracteriza o comum Eu o ajudo no que me ajudo Na entrega
da ajuda que eacute uma traiccedilatildeo em particular eu perpetuo a tradiccedilatildeo daquela comunidade
Esta eacute a traiccedilatildeo que oferece ajuda mediante confraternizaccedilatildeo e agrave revelia de salaacuterio
Uma daacutediva que natildeo se fia unicamente no desfecho para o ato e que atravessa toda a accedilatildeo
desde sua requisiccedilatildeo de auxiacutelio ateacute sua promessa ambas veladas no desvelar daquela
comunidade A isto chamamos de outro nome quando nos reunimos para ajudar em
amizade e em prol de um uacutenico em unidade com os demais mutiratildeo
Para compreender a relaccedilatildeo regionalista com a palavra traiccedilatildeo conveacutem ouvir nela
o que aparece como sinocircnimo dicionarizado agrave palavra mutiratildeo Aqui sinocircnimo seraacute
tratado como um termo que indica a aproximaccedilatildeo entre as experiecircncias de mundo que as
palavras sugerem Logo prestar atenccedilatildeo ao que mutiratildeo se refere eacute atentar-se agravequilo que
a traiccedilatildeo pode vir a dizer a noacutes e diz agrave sua maneira aos que vivem naquelas comunidades
regionais
A palavra mutiratildeo se origina de potyrotilde pitibotilde popitibotilde e picorotilde (DICIONAacuteRIO
TUPI-GUARANI 2016 Mutiratildeo)31 Na liacutengua tupi ldquop t k quando precedidos por vogai
nasal ou nasalizada mudam-se em mb nd ng [] b em siacutelaba aacutetona muda-se em m quando
precedido por vogal nasal ou nasalizadardquo (RODRIGUES 1953 paacuteg 123) Isso ocasiona
31 Disponiacutevel em lthttpwwwdicionariotupiguaranicombrdicionariomutiraogt Acesso em 21 set
2016
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a variaccedilatildeo motyrotilde que significa no idioma indiacutegena ldquo(v intr) ndash trabalhar em conjuntordquo
(NAVARRO 2013 paacuteg 405) Diferentemente de um grego ou latim o tupi eacute uma liacutengua
que nos chegou exclusivamente pela via oral assim uma mesma palavra pode ter vaacuterias
origens devido agraves incertezas que a envolvem Isso de nenhuma maneira precisa ser
encarado como um demeacuterito mas como desafio de lidar com o variado e o mesmo
simultaneamente
Um caminho de interpretaccedilatildeo possiacutevel para isto a que os indiacutegenas chamavam de
popitibotilde ou popytybotilde proveacutem da palavra popy que literalmente quer dizer ldquoponta cabo
extremidade (de qualquer coisa)rdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 394) haja vista sua
constituiccedilatildeo poacute ldquomatildeordquo (NAVARRO 2013 paacuteg 390) + py ldquopeacute patardquo (NAVARRO
2013 paacuteg 413) Vaacuterias satildeo as palavras geradas com esse radical por exemplo popyatatilde
e popyrsquoi ldquolsquoser forte de braccedilosrsquo [e] lsquodestreza de matildeosrsquordquo(NAVARRO 2013 paacuteg 394)
respectivamente Nesse sentido popytybotilde significa ldquo(etim ndash ajudar a matildeo) (v tr) ndash
ajudarrdquo (NAVARRO 2013 paacuteg 395) Ajudar com as matildeos uma indicaccedilatildeo ao esforccedilo
no empenho do auxiacutelio como nos esforccedilamos em trabalhos manuais Auxiliar natildeo como
quem apoia ou aconselha mas como quem carrega o fardo alheio com as proacuteprias matildeos
fazendo-o seu por instantes
126 Os mutirotildees do homem
Embora a palavra seja de origem tupi outras tribos como os šerersquonte tinham
experiecircncias semelhantes agravequela referente a potyrotilde ldquoSe a capina foi demasiada para uma
famiacutelia o marido saiu para caccedilar preparou uma torta de carne a partir da caccedila e a serviu
para os companheiros que vieram assisti-lordquo (NIMUENDAJUacute 1942 paacuteg 33 ndash traduccedilatildeo
livre)32 Tambeacutem assim o portuguecircs compara em sinocircnimo emergecircncia do que se afina
nas diversas singularidades o mutiratildeo agrave traiccedilatildeo
Traiccedilatildeo que eacute tradiccedilatildeo ou seja mutiratildeo que eacute tradiccedilatildeo um atravessamento no
tempo de um trabalho conjunto em comunidade Neste desdobramento social daacute-se um
32 If the weeding was too much for one family the husband went hunting had a meat-pie made from the
kill and served it to fellow-members who came to assist him
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trabalho pelas mesmas matildeos que recebem a festa que eacute o natildeo trabalho que eacute o desvio do
caminho da ajuda Desvio e via de trabalho fazem parte do mutiratildeo assim como fazem
da tradiccedilatildeo sua traiccedilatildeo sua outra via de acesso ao que eacute entregue
Aprender que a tradiccedilatildeo porta o descaminho da mensagem eacute aceitar a festa sem a
qual natildeo haacute mutiratildeo sem o mutiratildeo a obra natildeo anda Sem a traiccedilatildeo a histoacuteria se repete
sem invenccedilatildeo tradicionalmente se repete Justamente eacute pela educaccedilatildeo que nos deparamos
com o empenho de pensar o desempenho da traiccedilatildeo da tradiccedilatildeo agrave medida que se educa
como quem traduz cuidando para que se deixe emergir na traduccedilatildeo o vigor da tradiccedilatildeo
isto eacute o que manteacutem a tradiccedilatildeo viva doadora de sentidos sejam eles arcaicos sejam
contemporacircneos instigadora de sentidos tanto conservadores quanto iconoclastas
Mas na mesa aquele menino Guirigoacute na senvergonhice inocente de sua pouca
geraccedilatildeo tinha adormecido completo antecipadamente e eu consenti que as
mulheres carregassem o coitadinho diabinho pesado como um de maioridade
e levassem para dormir sei laacute onde por entre colchatildeo e lenccedilol A vida inventa
A gente principia as coisas no natildeo saber por que e desde aiacute perde o poder de
continuaccedilatildeo ― porque a vida eacute mutiratildeo de todos por todos remexida e
temperada (ROSA 2016 paacuteg 316)
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2 Pensando a Filosofia
21 A filosofia como resposta
Seria pois a resposta para nossos problemas a filosofia Ao optar pelo estudo
dessa disciplina leva-se a crer que haacute certo indiacutecio da apoteose filosoacutefica como desenlace
Pretensotildees agrave parte questiona-se entre outras coisas se e como a filosofia se relaciona
com a tradiccedilatildeo e haja vista a relaccedilatildeo de ensino e tradiccedilatildeo como ela se relaciona com o
ensino
Para isso conveacutem uma seacuterie de outras perguntas Poreacutem um dilema eacute estabelecido
na hora de responder a elas eacute possiacutevel de fato dar uma resposta O que eacute isto aonde chega
meu questionamento A relaccedilatildeo de filosofia com o responder natildeo eacute a mais oacutebvia Isso
porque compreendecirc-la no acircmbito do perguntar tornou-se lugar-comum do filosofar cujas
respostas passam por fugidias para natildeo dizer pouco confiaacuteveis Essa falta de confianccedila
em suas soluccedilotildees aparece como uma de suas caracteriacutesticas fundamentais possibilitando
um questionamento incessante sem um compromisso expliacutecito de resoluccedilatildeo e nem de
compreensatildeo ldquoo fazer-se compreensiacutevel eacute o suiciacutedio da filosofiardquo (HEIDEGGER 1989
paacuteg 435 ndash traduccedilatildeo livre) 33
Natildeo que essa forma de conhecimento seja totalmente avessa a propor caminhos
afinal ldquoa exclusividade da criaccedilatildeo de conceitos assegura agrave filosofia uma funccedilatildeo []rdquo
(DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17) Natildeo encerrando na assertiva anterior a
problemaacutetica a dupla de intelectuais franceses ainda desmistifica diversas crenccedilas a
respeito da filosofia e ratifica seu papel uacutetil neste caso o de conceituar Dar nome ao
inominado enveredando pelo inominaacutevel
[] a grandeza da filosofia estaria justamente em natildeo servir para nada eacute um
coquetismo que natildeo tem graccedila nem mesmo para os jovens Em todo caso natildeo
tivemos jamais um problema concernente agrave morte da metafiacutesica ou agrave superaccedilatildeo
da filosofia satildeo disparates inuacuteteis e penosos Fala-se hoje da falecircncia dos
sistemas quando eacute apenas o conceito de sistema que mudou Se haacute lugar e
tempo para a criaccedilatildeo dos conceitos a essa operaccedilatildeo de criaccedilatildeo sempre se
33 Das Sichverstaumlndlichmachen ist der Selbstmord der Philosophie
58
chamaraacute filosofia ou natildeo se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um
outro nome (DELEUZE GUATTARI 1992 paacuteg 17)
Apregoa-se na citaccedilatildeo acima a serventia da filosofia Sua causa seria algo claro
e em contrapartida qualquer aporia seja em suas teorias (como o fim da metafiacutesica) seja
dela consigo proacutepria seu porquecirc de existir eacute faceirice de criadores de intrigas
desnecessaacuterias Em outras palavras nesse trecho um conceito eacute uma resposta As nuances
do que isso significa para Deleuze se desdobram e ldquo[] natildeo deixam margem para duacutevida
a filosofia natildeo eacute uma simples arte de inventar de produzir os conceitos ela eacute uma
disciplina rigorosa que tem como funccedilatildeo primordial a criaccedilatildeo de novos conceitosrdquo
(SCHOPKE 2004 paacuteg 131)
Este rigor aproxima a filosofia da ciecircncia (mas tambeacutem da arte) pois pressupotildee
uma teacutecnica e grande labor Os limites entre as faculdades se desfazem em alguns casos
acentuando ainda mais o compromisso com uma resposta a seus anseios ldquoa filosofia eacute
pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos conhecimentos racionais a partir dos
conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico dessa ciecircnciardquo (KANT 1992 paacuteg 41)
A funcionalidade justifica com facilidade o conhecimento Precisamos saber fazer
contas para o troco da padaria e para as construccedilotildees da engenharia precisamos do idioma
para a compreensatildeo escrita da sociedade precisamos disso para aquilo basicamente
tem-se uma foacutermula Basta substituir isso para se chegar agravequilo e vice-versa Entretanto
haacute um certo vazio quando a filosofia eacute a primeira variaacutevel da equaccedilatildeo pois ateacute para o
mais elementar (por exemplo no acircmbito escolar as notas e provas) nem para isso ela
serve
Para todo professor de Filosofia acostumado agrave lida no Ensino Meacutedio satildeo
bastante conhecidas as perguntas do tipo lsquopara que serve a Filosofiarsquo lsquoeacute
mesmo necessaacuteria esta disciplina ou ela eacute apenas para mostrar que este coleacutegio
tem mais disciplinas do que os outrosrsquo ou ainda lsquose Filosofia natildeo cai no
vestibular por que temos de estudaacute-larsquo Questotildees surgidas na maior parte das
vezes logo nos primeiros contatos do aluno com essa lsquonova realidadersquo
(BRASIL 2000 paacuteg 44)
O empenho nos estudos se confunde com a dificuldade de aceitaccedilatildeo da
importacircncia da filosofia Natildeo eacute agrave toa que seus praticantes os filoacutesofos satildeo ditos seres
questionadores repletos de duacutevidas natildeo de soluccedilotildees Inclusive a distacircncia da praacutetica
59
torna-a por vezes inalcanccedilaacutevel agravequeles que natildeo foram iniciados nos conceitos dessa
mateacuteria e por isso inapropriada ao contexto de Ensino Fundamental e Meacutedio
Entretanto natildeo foi assim que comeccedilamos este texto e natildeo se pretende dar
prosseguimento creditando a nefelibatas eruditos o papel do filoacutesofo muito menos tratar
a filosofia em meio a balbuacutecies sem sentido Existe tanto um apreensiacutevel por meio do
conceito quanto o embate entre o que ainda natildeo foi pensado e o impensaacutevel Somente no
percurso desses questionamentos pode-se ter mais clareza quanto a seu significado
Falemos mais concretamente A direccedilatildeo de um Estado pode bem dizer
precisamos agora a fim de realizar um plano quinquenal de fiacutesicos que
recuperem nesse ou naquele campo a vantagem das outras naccedilotildees ou
necessitamos de meacutedicos que elaborem cientificamente um medicamento
efetivo contra a gripe [] Mas lsquoPrecisamos no momento de filoacutesofos quersquo
ndash sim o quecirc Agora soacute haacute uma possibilidade lsquo que desenvolvam
fundamentem e defendam a seguinte ideologiarsquo ndash soacute se pode falar assim com
a destruiccedilatildeo simultacircnea da filosofia (PIEPER 2014 paacuteg 19)
Propotildee-se aqui encarar a filosofia como a resposta que seja Para tanto a fim de
reconhececirc-la em suas idiossincrasias seraacute preciso aceitar que de fato parece um
contrassenso senatildeo maacute feacute da Histoacuteria colocar a filosofia no domiacutenio tanto das respostas
e da austera dedicaccedilatildeo quanto no do questionamento e do insoluacutevel Apenas apoacutes
debruccedilarmo-nos em seus sentidos do mais cotidiano ao canocircnico podemos ousar
responder ao que ela presta contas e quais relaccedilotildees esperar com tradiccedilatildeo e ensino ldquoIsso
eacute assim por ser o reconhecimento uma resposta Ele responde ao inacessiacutevel agrave medida que
o resguarda O pensamento compreende como resposta a uma relaccedilatildeo com um outro que
se mostra como velamento recusa como um adyton34rdquo (TRAWNY 2013 paacuteg 22)
34 ldquoSantuaacuterio secreto a que soacute tinham acesso os sacerdotes nos templos antigos da Greacuteciardquo (HOUAISS
Aacutedito 2009a) proveniente do grego ldquonatildeo deve ser adentradordquo (LIDDELL SCOTT Ἄδυτος 1940)
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)2F
dutosgt Acesso em 11 mai 2017
60
22 Filosofia inteligecircncia e entendimento
Ao longo de sua histoacuteria a filosofia tem assumido diversas acepccedilotildees o que eacute
determinante para compreender seu propoacutesito se eacute que haacute um Isso natildeo apenas em
variaccedilatildeo diacrocircnica de significados mas tambeacutem sincrocircnica ou seja nos registros atuais
da liacutengua Desde o uso diaacuterio da palavra ateacute os mais formais e teacutecnicos significados
encontramos conceituaccedilotildees ateacute contraditoacuterias do que seja filosofia
Naturalmente isso natildeo eacute um problema As contradiccedilotildees satildeo bem-vindas mas sem
que se caia na esparrela de aceitaacute-las esquecendo-se de fazer a devida criacutetica soacute porque a
princiacutepio tudo eacute vaacutelido Nem por outro lado fazer do filoacutesofo um inquisidor cuja missatildeo
eacute hierarquizar categorizando os diversos saberes Aleacutem disso histoacuteria discurso canocircnico
e opiniatildeo cotidiana natildeo satildeo coisas tatildeo diversas entre si e no mais das vezes se imiscuem
cada uma revelando um sentido que nos auxilia a pensar a questatildeo
Apesar disso no mais das vezes em sua trajetoacuteria a filosofia apregoa a si o ofiacutecio
de distanciar-se da opiniatildeo ou δόξα Quer dizer ao se questionar pelo significado
filosoacutefico a δόξα aparece como uma resposta equivocada Ora isso revela esse iacutempeto
que afasta os natildeo iniciados criando um estigma segregador na disciplina Na suposiccedilatildeo
de natildeo validar tudo na mesma medida promove-se a separaccedilatildeo em joio e trigo valorando
positiva ou negativamente as partes ldquoo meacutetodo da dialeacutectica eacute o uacutenico que procede por
meio da destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a caminho do autecircntico princiacutepio a fim de tornar seguro
seus resultados e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espeacutecie de lodo
baacuterbaro em que estaacute atoladardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 347)
A referecircncia agraves almas castigadas que jaziam no Hades atoladas no lodo (PLATAtildeO
2000 paacuteg 47) natildeo eacute leviana Por esse vieacutes da Repuacuteblica embora nela sejam considerados
outros modos de saber o meacutetodo dialeacutetico (que eacute o da filosofia) prepondera A filosofia
platocircnica se confunde com a proacutepria dialeacutetica sob a ressalva de que a ldquopalavra lsquodialeacuteticarsquo
natildeo designa nada com precisatildeo natildeo passa de uma miscelacircnea Ela abarca e potildee em
confusatildeo uma vasta gama de problemas de necessidades especulativas e de temas e
pensamentos heterogecircneosrdquo (RUYER 1961 paacuteg 1 ndash traduccedilatildeo de Thayrine
61
Kleinsorgen)35 haja vista todos os seus diaacutelogos nos quais Soacutecrates se apresenta sempre
perante os interlocutores a lidar com as diversas concepccedilotildees e com o princiacutepio agregador
delas
Para ele [Platatildeo] a Dialeacutetica eacute a teacutecnica da pesquisa associada que se efetua
atraveacutes da colaboraccedilatildeo de duas ou mais pessoas com o processo socraacutetico do
perguntar e responder A filosofia era de fato para Platatildeo natildeo uma tarefa
individual e privada mas obra de homens que lsquovivem juntamentersquo e lsquodiscutem
com benevolecircnciarsquo eacute a atividade proacutepria de lsquouma comunidade da educaccedilatildeo
livrersquo (Leis VII 344b) (ABBAGNANO 1970 paacuteg 252)
Desse modo a hierarquia de Platatildeo dos tipos de conhecimento justifica tanto o
iacutempeto filosoacutefico pela coerecircncia loacutegico-semacircntica quanto a repulsa histoacuterica dessa
disciplina pela opiniatildeo ou senso comum Isso ocorre seja pelo fato de ldquoabarcar num soacute
golpe de vista todas as ideias esparsas de um lado e do outro e fundi-las numa soacute ideia
geralrdquo (PLATAtildeO 2002 paacutegs 106-107) seja por ldquoseparar novamente a ideia geral nos
seus elementos nas suas articulaccedilotildees naturais sem todavia mutilar qualquer dos
elementos primitivos como faz um mau accedilougueirordquo (PLATAtildeO 2002 paacuteg 107)
definindo assim os modos de proceder com a dialeacutetica
lsquoSua interpretaccedilatildeo eacute deveras suficientersquo eu disse lsquoe agora respondendo a36
estas quatro partes assume-se estas quatro influecircncias ocorrendo na alma a
intelecto ou razatildeo para a mais alta a entendimento para a segunda atribui-se
a crenccedila para a terceira e para a uacuteltima o pensamento pictoacuterico ou a conjectura
e arranjaacute-las numa proporccedilatildeo considerando que elas participam no
esclarecimento e precisatildeo na mesma medida em que seus objetivos tomam
parte da verdade e da realidade (PLATAtildeO 1969a 511d-511e ndash traduccedilatildeo
livre)37
ἱκανώτατα ἦν δ᾽ ἐγώ ἀπεδέξω καί μοι ἐπὶ τοῖς τέτταρσι τμήμασι τέτταρα ταῦτα
παθήματα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενα λαβέ νόησιν μὲν ἐπὶ τῷ ἀνωτάτω διάνοιαν δὲ
ἐπὶ τῷ δευτέρῳ τῷ τρίτῳ δὲ πίστιν ἀπόδος καὶ τῷ τελευταίῳ εἰκασίαν καὶ τάξον
35 Le mot laquodialectiqueraquo ne deacutesigne rien de preacutecis nest quun fourre-tout Il couvre et met confusion toute
une vaste reacutegion de problegraveme de besoins speacuteculatifs de thegravemes de penseacutee heacuteteacuteroclites Disponiacutevel em
lthttpwwwjstororgstable40900578gt Acesso em 19 jul 2017 36 A preposiccedilatildeo ἐπί possibilita diversas traduccedilotildees conforme ldquofor [por ou para]rdquo e ldquocomrdquo vide o diaacutelogo
Goacutergias ldquofour branches of it for four kinds of affairsrdquo (PLATAtildeO 1967 463b) e ldquoquatro partes com quatro
campos diferentes de atividaderdquo (PLATAtildeO 2017b) 37 ldquoYour interpretation is quite sufficientrdquo I said ldquoand now answering to these four sections assume these
four affections occurring in the soul intellection or reason for the highest understanding for the second
assign belief to the third and to the last picture-thinking or conjecture and arrange them in a proportion
considering that they participate in clearness and precision in the same degree as their objects partake of
truth and realityrdquo Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017
62
αὐτὰ ἀνὰ λόγον ὥσπερ ἐφ᾽ οἷς ἐστιν ἀληθείας μετέχει οὕτω ταῦτα σαφηνείας
ἡγησάμενος μετέχειν (PLATAtildeO 1903 511δ-511ε)38
Aqui se apresenta um exemplo do caraacuteter categorizante da filosofia O auge da
influecircncia na alma (ψυχῇ) eacute o intelecto (νόησιν) Essa palavra grega eacute a forma declinada
de νόησις que ldquoeacute usada em seu sentido estrito de νοῦς natildeo apenas a faculdade de νοῦς
[] O exerciacutecio de νοῦς eacute corretamente falado como πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον
[influecircncias ocorrendo na alma] mas a faculdade em si mesma dificilmente poderia ser
assim descritardquo (ADAM 1902 ndash traduccedilatildeo livre)39
Essa eacute a inteligecircncia (LIDDELL SCOTT 1940 Νόησις)40 que faz oposiccedilatildeo agrave
percepccedilatildeo pelos sentidos agrave sensaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Αἴσθησις PLATAtildeO
1987 paacuteg 313)41 Somente o que fosse validado pelo intelecto seria de interesse da
filosofia o que eacute aprendido apenas pela experiecircncia com a proacutepria coisa teria consistecircncia
lodosa e seria menos confiaacutevel A razatildeo inspira seguranccedila pois pode ser comprovada e
medida (Cf ratio vide HOUAISS 2009a Razatildeo) As sensaccedilotildees podem ser
primeiramente sentidas depois descritas narradas cantadas e vividas mas dificilmente
satildeo precisas na convicccedilatildeo do caacutelculo ldquoAprende entatildeo o que quero dizer com o outro
segmento do inteligiacutevel daquele que o raciociacutenio atinge pelo poder da dialeacutectica [] sem
se servir em nada de qualquer dado sensiacutevel mas passando das ideias umas agraves outras e
terminando em ideiasrdquo (PLATAtildeO 1987 paacutegs 312-313)42
38 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 17 mai 2017 39 Νόησιν is used in its strict sense of νοῦς in actual exercise not merely the faculty of νοῦς cf 508 E note
The exercise of νοῦς is correctly spoken of as a πάθημα ἐν τῇ ψυχῇ γιγνόμενον but the faculty itself could
hardly be thus described Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A
section3D511Dgt Acesso em 20 mai 2017 40 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dno2
Fhsisgt Acesso em 17 mai 2017 41 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dai)2
Fsqhsisgt Acesso em 21 mai 2017 42 τὸ τοίνυν ἕτερον μάνθανε τμῆμα τοῦ νοητοῦ λέγοντά με τοῦτο οὗ αὐτὸς ὁ λόγος ἅπτεται τῇ τοῦ διαλέγεσθαι
δυνάμει [hellip] αἰσθητῷ παντάπασιν οὐδενὶ προσχρώμενος ἀλλ᾽ εἴδεσιν αὐτοῖς δι᾽ αὐτῶν εἰς αὐτά καὶ τελευτᾷ
εἰς εἴδη Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D63A
section3D511bgt Acesso em 04 jul 2017
63
Uma ressalva contudo faz-se necessaacuteria a respeito das traduccedilotildees de νοῦς por
razatildeo Nas duas citaccedilotildees acima utiliza-se essa palavra e seus derivados no entanto a fim
de corresponder com o original grego conveacutem uma observaccedilatildeo acerca de certo
anacronismo do termo Isso porque estritamente falando o conceito de razatildeo como noacutes
o conhecemos hoje ainda natildeo tinha sido inventado
Claro que a rigor nenhuma palavra grega melhor dizendo nenhuma palavra no
tempo tem um sentido atual se ela mesma natildeo for atualizada Aleacutem disso natildeo eacute nada
incongruente a traduccedilatildeo de νοῦς por razatildeo Logo de que vale essa observaccedilatildeo
Exatamente pelo dito para tornar atual a palavra Significa fazer seu passado soar de
modo presente atento natildeo agrave fala pronunciada mas ao que nunca cessa de dizer a questatildeo
ldquoAuscultando natildeo a mim mas o Logos eacute saacutebio concordar que tudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO
1991 paacuteg 71)43
Inclusive esse pensador tambeacutem faraacute uso dessa palavra em seu fragmento 40 que
na traduccedilatildeo de Carneiro Leatildeo aparece como ldquomuito saber natildeo ensina sabedoria [νόον]
pois teria ensinado a Hesiacuteodo e Pitaacutegoras a Xenoacutefanes e Hecateurdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 69)44 Assim temos outro vieacutes de interpretaccedilatildeo mas que natildeo para por aiacute pois ao
longo da histoacuteria conforme as compreensotildees de realidade mudam tambeacutem a palavra diz
a quem a ouve coisas distintas ldquoSinto poreacutem nos meus membros outra lei que luta
contra a lei do meu espiacuterito [νοός] e me prende agrave lei do pecado que estaacute nos meus
membrosrdquo (BIacuteBLIA Romanos 7 23)45 Desse modo ratifica-se o caraacuteter profiacutecuo que a
palavra adquire geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo ao mesmo tempo em que endossa a confusatildeo de
qual sentido adotar neste ou naquele contexto
Contudo nem sempre haacute um compromisso com a palavra ou seja a
responsabilidade assumida para a traduccedilatildeo com a tradiccedilatildeo e sua respectiva traiccedilatildeo
Ocasiona-se entatildeo sua transformaccedilatildeo em invoacutelucro vocabular a serviccedilo da propagaccedilatildeo
de ideias Ueacute mas natildeo eacute disso que tratam os vocaacutebulos transposiccedilatildeo da realidade concreta
para o conceito abstrato E ainda que Bakhtin (2003 paacuteg 324) diga que ldquoa liacutengua a
43 ldquoοὐκ ἐμοῦ ἀλλὰ τοῦ λόγου ἀκούσαντας ὁμολογεῖν σοφόν ἐστιν ἓν πάντα εἶναιrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg
70) 44 ldquoπολυμαθίη νόον οὐ διδάσκειmiddot Ἡδίοδον γὰρ ἂν ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ
Ἑκαταῖονrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 68) 45 βλέπω δὲ ἕτερον νόμον ἐν τοῖς μέλεσίν μου ἀντιστρατευόμενον τῷ νόμῳ τοῦ νοός μου καὶ αἰχμαλωτίζοντά
με ἐν τῷ νόμῳ τῆς ἁμαρτίας τῷ ὄντι ἐν τοῖς μέλεσίν μου Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-
alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle557000179999gt Acesso em 3 jul 2017
64
palavra satildeo quase tudo na vida humanardquo isso passa longe do entendimento de que tudo eacute
qualquer coisa como se natildeo importasse o que usaacutessemos e todo dizer fosse igualmente
vaacutelido
Nesse sentido a sinoniacutemia entre intelecto e razatildeo conforme sugere a traduccedilatildeo de
Paul Shorey torna-se senatildeo equivocada ao menos digna de suspeita A razatildeo recebe uma
conceituaccedilatildeo bem especiacutefica no caminho do Ocidente demarcando por exemplo um vieacutes
sobre o sentido fundamental de interpretaccedilatildeo bem diferente do proposto pelas Escrituras
e pelo pensador brasileiro Daiacute a conveniecircncia em nos atentarmos a natildeo fazer das palavras
veiacuteculos de nossa vontade sob o risco de natildeo aceitarmos o convite do outro e soacute
estancarmos disciplinadamente estancarmos num monoacutelogo
Com a disciplina afirma-se um acircmbito de questotildees possiacuteveis que estabelece
direccedilotildees e caminhos dotados de certa validade O campo de objeto ocupado
pela disciplina fica confinado agrave disciplina As coisas de que trata a disciplina
soacute podem vir agrave palavra enquanto e agrave medida que a disciplina e seu aparato
metodoloacutegico permitem A disciplina e sua validade permanecem a instacircncia
paradigmaacutetica da possibilidade e do modo em que uma coisa se torna objeto
de uma ciecircncia ndash e um objeto apropriado para pesquisa As disciplinas em vigor
satildeo como uma peneira soacute admitindo aspectos bem determinados das coisas
Natildeo eacute tanto a coisa o seu fundamento e sua lsquoverdadersquo que decidem o que
pertence lsquoagrave coisarsquo mas sim a disciplina que confina a coisa enquanto objeto da
disciplina (HEIDEGGER 1998 paacuteg 240)
O perigo estaacute aiacute fazer do rigor de nossos desejos o real esquecendo-se do que eacute
ndash somos e natildeo somos Fazer do real apenas o eu ignora parte essencial de sua constituiccedilatildeo
aquele pedacinho sobre o qual natildeo nos cabe versar pois a noacutes estaacute velado Platatildeo trata
tanto de uma realidade apreensiacutevel quanto de uma incompreensiacutevel Sua questatildeo
todavia se processa a partir dos modos em que isso ocorre Parca eacute a compreensatildeo do
real sua conjectura alta o intelecto Ao nomeaacute-lo por razatildeo natildeo soacute utilizamos uma
palavra fortemente carregada de conceitos como determinamos que a excelecircncia do
conhecer daacute-se pela razatildeo e natildeo pela sabedoria ou pelo espiacuterito
A tarefa que se impocircs foi portanto conceber a ratio determinante do animal
homem na direccedilatildeo que pouco a pouco se revela no pensamento moderno A
essecircncia da razatildeo e isto significa da subjetividade natildeo eacute o mero pensamento
ou entendimento A essecircncia da razatildeo eacute a vontade Pois eacute na vontade
apreendida como o que se quer a si mesmo que se completa o colocar-se-
diante-de-si-mesmo do homem a subjetividade (HEIDEGGER 1998 paacuteg
235)
65
Semelhantemente ocorre com a traduccedilatildeo de λόγος por raciociacutenio Que bandeira
quer se defender em qual interpretaccedilatildeo do original claacutessico ela se fia Por que natildeo fazer
como o pensador Carneiro Leatildeo no fragmento 50 de Heraacuteclito (1991 paacuteg 71) e
simplesmente natildeo traduzir deixando a criteacuterio do leitor o estudo do grego antigo Outra
possibilidade eacute a total adequaccedilatildeo do termo ao sentido de essecircncia como acontece em ldquoNo
princiacutepio era o Verbo []rdquo (BIacuteBLIA Joatildeo 1 1) A histoacuteria dessa interpretaccedilatildeo de λόγος
marca o caminho que o Ocidente percorreu ateacute seu destino enquanto raciociacutenio passando
pela Vulgata ldquoIn principio erat Verbum []rdquo (BIacuteBLIA Ioannes 1 1)46 que por sua vez
adveacutem de ldquoἘν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος []rdquo (BIacuteBLIA Ιωαννην 1 1)47
Quaisquer desses posicionamentos escondem (e revelam) o sentido fundamental
da questatildeo do ser em cada dizer e nomear fundando pelo limite dito uma presenccedila no
real Enquanto a apropriaccedilatildeo de λόγος por Verbo ou Palavra como em Lutero ldquoIm Anfang
war das Wortrdquo (BIacuteBLIA Johannes 1 1)48 reapresenta sua concepccedilatildeo essencialista nos
paracircmetros da metafiacutesica do periacuteodo claacutessico ateacute os dias de hoje a manutenccedilatildeo do verbete
grego elitiza e convida o leitor a retornar ao movimento primordial da palavra
atualizando-a reversamente ou seja vai-se agraves origens em busca do que vigora
Conhecemos a definiccedilatildeo grega na formulaccedilatildeo posterior de homo est animal
rationale o homem eacute o animal racional Do λόγος a ratio da ratio a razatildeo O
elemento caracteriacutestico da capacidade racional eacute o pensamento Como animal
racional o homem eacute o animal pensante [] Podemos dizer que a definiccedilatildeo
referida eacute a determinaccedilatildeo metafiacutesica da essecircncia do homem Nela o homem
que se encontra sob o domiacutenio da metafiacutesica exprime a sua essecircncia
(HEIDEGGER 1998 paacuteg 234)
Um detalhe Heidegger se refere agrave expressatildeo grega ἄνθρωπος ζῷον λόγος ἔχον
remetendo-se a Aristoacuteteles Contudo natildeo haacute em sua obra essa citaccedilatildeo ipsis litteris O mais
provaacutevel eacute que ela seja uma corruptela de ldquoοὐθὲν γάρ ὡς φαμέν μάτην ἡ φύσις ποιεῖ
λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴωνrdquo (ARISTOacuteTELES 1957 1253a)49 algo como
ldquoPois a natureza [φύσις] como noacutes declaramos natildeo faz nada sem propoacutesito e soacute o homem
46 Disponiacutevel em lt httpswwwbibliaonlinecombrtnvjo1gt Acesso em 07 jul 2017 47 Disponiacutevel em lthttpwwwnestle-alandcomenread-na28-onlinetextbibeltextlesenstelle53gt
Acesso em 07 jul 2017 48 Disponiacutevel em lthttpswwwbibliaonlinecombrluther-1545jo1gt Acesso em 07 jul 2017 49 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100573Abook3D13A
section3D1253agt Acesso em 08 jul 2017
66
dos animais possui [ἔχει] discurso [λόγον]rdquo (ARISTOacuteTELES 1944 1253a)50 conforme
sugere Andrew Glynn (2015)51
Sutileza que faz toda a diferenccedila pois nesse trecho podemos aferir que a φύσις
enquanto real eacute quem possibilita o homem centrando a questatildeo natildeo na subjetividade
mas deslocando-a agrave apropriaccedilatildeo da essecircncia Apropriar-se porque embora o homem
ldquotenhardquo o λόγος ele deve mantecirc-lo seguraacute-lo nas proacuteprias matildeos ateacute habitaacute-lo vesti-lo
engravidar-se dele todos esses satildeo os sentidos do verbo grego (LIDDELL SCOTT 1940
Ἔχω)52 e natildeo abarcam a compreensatildeo de possuir apenas como quem controla a posse
material de um objeto possuir eacute ser possuiacutedo pela posse
Assim o que temos satildeo termos da Antiguidade que datildeo certa origem cronoloacutegica
a conceituaccedilotildees atuais e exatamente por isso natildeo devem ser igualados em significacircncia
Para natildeo estagnar em uma problemaacutetica historiograacutefica mais proveitoso para este
percurso que pretendemos aqui eacute decerto aceitar o desafio de pensar a oposiccedilatildeo
estabelecida em Platatildeo Ele tenta fundamentar a distinccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel a tal
ponto que chega a ser excludente um pelo outro Enquanto o intelecto trabalha com a
destruiccedilatildeo das hipoacuteteses a fim de encontrar a verdade embasada justificada logicamente
a sensaccedilatildeo redundantemente apenas sente um bastar da proacutepria vivecircncia Eacute a partir desse
viver experienciado que estaacute a verdade dos sentidos
A Razatildeo eacute a forccedila que liberta dos preconceitos e do mito das opiniotildees
enraizadas mas falsas das aparecircncias e consente estabelecer um criteacuterio
universal ou comum para a conduta do homem em todos os campos Do outro
lado como guia propriamente humano a Razatildeo eacute a forccedila a qual consente que
o homem se liberte dos apetites que tem em comum com os animais
submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida Esta eacute a duacuteplice
funccedilatildeo que foi atribuiacuteda agrave Razatildeo desde os primoacuterdios da filosofia ocidental
(ABBAGNANO 1970 paacuteg 792 ndash grifos no original)
50 For nature as we declare does nothing without purpose and man alone of the animals possesses speech
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Aristot+Pol+11253aampfromdoc=Perseus3Atext3A1
999010058gt Acesso em 08 jul 2017 51 Disponiacutevel em lthttpskalountoswordpresscom20150427what-is-the-human-part-one-rational-
animal-or-zoon-logon-echongt Acesso em 08 jul 2017 52 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)2F
xw1gt Acesso em 08 jul 2017
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Uma oposiccedilatildeo radical mas que natildeo ocorre bruscamente Haacute etapas intermediaacuterias
entre os extremos que constituem essa segregaccedilatildeo essencial para Platatildeo Discute-se sobre
διάνοιαν forma declinada de διάνοια cujo sentido perpassa διά-νοια o que estaacute entre
(διά) a inteligecircncia (νοῦν) e a opiniatildeo (δόξης) ldquopois considere entendimento como algo
intermediaacuterio entre opiniatildeo e razatildeordquo (PLATAtildeO 1969a 511d ndash traduccedilatildeo livre)53 Logo
διάνοια aqui significa entendimento compreensatildeo mas fundamentalmente quer dizer o
lugar que natildeo eacute jaacute opiniatildeo mas que tambeacutem natildeo alcanccedilou a inteligecircncia Ainda natildeo ao
menos Estaacute em contato com o intelecto vislumbra-o sem tecirc-lo compreende-o agrave medida
que a δόξα enquanto local de predominacircncia das sensaccedilotildees eacute rejeitada
Esse eacute o conhecimento que ocorre ldquona geometria e nas ciecircncias afins [ἀδελφαῖς
τέχναις]rdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 312) Ao declarar indiretamente que somente ao filoacutesofo
como aquele que estaacute em relaccedilatildeo de profunda intimidade com o νοῦς cabe pensar os
princiacutepios e aos ldquocientistasrdquo eacute forccedilado ldquoinvestigar a partir de hipoacuteteses sem poder
caminhar para o princiacutepio mas para a conclusatildeordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311) ele faz
uma distinccedilatildeo importante O filoacutesofo marca uma ruptura que caracteriza sua forma de
pensar e que vai de encontro a outros importantes pensadores por aproximar a ciecircncia da
filosofia embora discernindo ambas entre si
Temos assim como base a aritmeacutetica que lsquofacilita a passagem da proacutepria alma
da mutabilidade agrave verdade e agrave essecircnciarsquo (Livro VII 525c) a seguir o espaccedilo a
duas dimensotildees ou geometria plana em terceiro lugar o espaccedilo a trecircs
dimensotildees por meio da estereometria a astronomia estuda os corpos soacutelidos
em movimento e a harmonia o som que eles entatildeo produzem Trata-se
portanto de um ensino essencialmente formativo Todas estas ciecircncias tecircm por
missatildeo preparar o espiacuterito para atingir o plano mais elevado a dialeacutectica cujo
fim eacute o conhecimento do Bem (Livro VII 333b-e) (PEREIRA 1987 paacuteg
XXXI)
Conveacutem reforccedilar que tanto teacutecnica quanto ciecircncia adequam-se ao contexto
somente se considerarmos que uma mesma terminologia pode tratar de assuntos distintos
Isso porque ao nos referirmos agrave ciecircncia noacutes homens modernos temos o haacutebito de
imaginar doutores de jalecos brancos e sentenccedilas de verdade inquestionaacutevel
Costumamos ao falar de teacutecnica pensar o modo de fazer algo agrave medida que detemos os
53 [hellip] because you regard understanding as something intermediate between opinion and reason
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D63A
section3D511dgt Acesso em 16 de mai 2017
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meios a partir dos quais algo se faz Em outros termos para noacutes ter uma teacutecnica eacute
sinocircnimo de ter o controle cognosciacutevel sobre a produccedilatildeo de alguma coisa
Quanto maior for o controle aparentemente mais controle eacute desejado dando-se a
impressatildeo de evoluccedilatildeo e desenvolvimento Teacutecnica e tecnologia hoje se imiscuem e uma
ciecircncia de ponta indica tecnologia mais avanccedilada mesmo que problemas elementares
estejam esperando soluccedilatildeo Nesse meio tempo a teacutecnica mais simples torna-se obsoleta
a despeito de sua eficaacutecia em prol das novas tecnologias Se antes a teacutecnica nunca
houvera prometido a soluccedilatildeo do problema apenas delegando a si o papel de ferramenta
facilitadora a teacutecnica moderna promete mundos e fundos a cura dos mais terriacuteveis males
aquele uacuteltimo gadget e update para manter a roda dos desejos sempre a girar
Em contrapartida uma regiatildeo se desenvolve na exploraccedilatildeo de fornecer carvatildeo
e mineacuterios O subsolo passa a se desencobrir como reservatoacuterio de carvatildeo o
chatildeo como jazidas de mineacuterio Era diferente o campo que o camponecircs outrora
lavrava quando lavrar ainda significava cuidar e tratar O trabalho camponecircs
natildeo provoca e desafia o solo agriacutecola
Em contraste explora-se uma aacuterea da terra a fornecer carvatildeo e mineacuterios A
terra se des-encobre neste caso depoacutesito de carvatildeo e o solo jazida de minerais
Era outro o lavradio que o lavrador dispunha outrora quando dis-por ainda
significava lavrar isto eacute cultivar e proteger A lavra do lavrador natildeo desafiava
o lavradio Na semeadura apenas confiava a semente agraves forccedilas do crescimento
encobrindo-a para seu desenvolvimento Hoje em dia uma outra posiccedilatildeo
tambeacutem absorveu a lavra do campo a saber a posiccedilatildeo que dis-potildee da natureza
E dela dis-potildee no sentido de uma exploraccedilatildeo A agricultura tornou-se induacutestria
motorizada de alimentaccedilatildeo Dis-potildee-se o ar a fornecer azoto o solo a fornecer
mineacuterio como por exemplo uracircnio o uracircnio a fornecer energia atocircmica esta
pode entatildeo ser desintegrada para a destruiccedilatildeo da guerra ou para fins paciacuteficos
(HEIDEGGER 2006 paacuteg 19 ndash grifos no original)
Natildeo podemos ignorar que ainda natildeo se trata da teacutecnica como a conhecemos hoje
e consequentemente da ciecircncia moderna senatildeo por uma questatildeo cronoloacutegica por
ontologicamente a concepccedilatildeo generalizante do homem e sua loacutegica natildeo estarem em pleno
vigor Cabe lembrar que tanto o mito quanto a sua transmissatildeo eram tidos como naturais
entre todos e quiccedilaacute seja esse o grande embate de Soacutecrates ndash a maiecircutica nunca foi para
convencer Agatatildeo ou Trasiacutemaco para um fim qualquer mas a toda πoacuteλις pelo fim digno
do periacuteodo de influecircncia homeacuterica
Podemos supor que como P Shorey (1968 p 248) e F M Cornford
(PLATAtildeO 1969b p 321) que Platatildeo se viu na necessidade de se defender
contra a celeuma levantada pelas afirmaccedilotildees sobre o tema [a condenaccedilatildeo da
poesia] feitas naqueles mesmos livros [II e III] Mas a importacircncia da poesia
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na vida grega justifica a expansatildeo dada a este ataque Embora desde os finais
do seacutec VI aC a escrita estivesse divulgada e desde o seacutec V houvesse um
comeacutercio de livros apreciaacutevel (PEREIRA 1998 p 18-19) a verdade eacute que era
a poesia oralmente transmitida (quer pelos rapsodos quer pelos actores
dramaacuteticos) o principal meio de educaccedilatildeo e veiacuteculo de conhecimentos Esta
transmissatildeo intersubjetiva do saber eacute um aspecto caracteriacutestico e fundamental
da cultura grega bem visiacutevel aliaacutes nos proacuteprios diaacutelogos de Platatildeo E natildeo
esquecemos que mesmo para extensas narrativas em prosa como eram as
Histoacuterias de Heroacutedoto natildeo estava excluiacuteda a praacutetica da recitaccedilatildeo perante um
grande auditoacuterio (PEREIRA 1987 paacuteg XXXV)
Em outras palavras para Platatildeo os fins imediatos dados pela aparecircncia e
sensaccedilotildees natildeo seriam concernentes agrave filosofia estivessem eles envolvidos com pequenos
problemas do cotidiano ou com grandes obras de poliacutetica e de construccedilatildeo civil mas
apenas os princiacutepios geradores de todos os problemas Enquanto as demais disciplinas
respondem agrave pergunta por si (o que eacute a poliacutetica O que eacute construccedilatildeo civil) por suas accedilotildees
e finalidades praacuteticas (p ex a poliacutetica faz construccedilatildeo civil serve para) a filosofia
transforma a proacutepria pergunta existencial como seu caraacuteter fundamental almejando natildeo
necessariamente a um fim outro senatildeo o de se perguntar pelo ser em tudo ldquoo que eacuterdquo
Esse tipo de entendimento sobre a filosofia influencia o Ocidente ateacute eacutepocas mais
recentes Por exemplo em Kant (1992 paacuteg 41) podemos notar certa afinidade com o
exposto haja vista nomear filosofia como ciecircncia (Wissenschaft)
A filosofia eacute pois o sistema de conhecimentos filosoacuteficos ou dos
conhecimentos racionais a partir dos conceitos Eis aiacute o conceito acadecircmico
dessa ciecircncia De acordo com o conceito mundano ela eacute a ciecircncia das
finalidades uacuteltimas da razatildeo humana Esse conceito altivo confere dignidade agrave
filosofia isto eacute um valor absoluto E realmente tambeacutem eacute o uacutenico
conhecimento que soacute tem valor intriacutenseco e aquilo que vem primeiro conferir
valor a todos os demais conhecimentos (KANT 1992 paacuteg 41)
Eacute possiacutevel encarar sua referecircncia agraves finalidades uacuteltimas (letzten Zwecken) no
conceito mundano como que reafirmando em alguma medida o percurso platocircnico no
Ocidente Isso porque embora as ideias de fim e princiacutepio aparentem ser diametralmente
opostas nos dois casos domina a dinacircmica metafiacutesica e essencialista por tratarem de
conceitos absolutos ldquo[] ao passo que na outra parte a que conduz ao princiacutepio
absolutordquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 311)
Por outro lado pensadores como Heidegger se propuseram a aproximar mais a
filosofia agrave arte e em contrapartida a fazer uma criacutetica ferrenha agrave ciecircncia Dessa forma eacute
rompida a tradiccedilatildeo que limitava e congregava toda uma compreensatildeo de realidade acerca
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da ciecircncia e da filosofia Satildeo outros meacutetodos buscam-se outras influecircncias e geram-se
confusotildees plenamente aceitaacuteveis ao se dispor a tais leituras ldquoConhecemos eacute claro muita
coisa sobre a relaccedilatildeo entre filosofia e poesia Natildeo sabemos poreacutem do diaacutelogo dos poetas
e dos pensadores que lsquomoram proacuteximos nas montanhas mais separadasrsquo [nahe wohnen
auf getrennsten Bergen]rdquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51)
Enquanto a διάνοια platocircnica faz a ponte cognosciacutevel entre inteligecircncia e opiniatildeo
para Heidegger haacute certa distacircncia instransponiacutevel entre filosofia e poesia contudo isso
as define como iacutentimas ao abismo esse limite cerceador e constituidor de constantes
questionamentos e desafios Para tanto o pensador traz o poema em sua tensatildeo com o
pensar ldquodepois de um verso do hino Patmos de Houmllderlin ele [Heidegger] descreve a
relaccedilatildeo entre pensamento e poesia que lsquoperto vivem nas mais separadas montanhasrsquo com
a imagem do cimo do tempordquo (KIMMERLE 1995 paacutegs 77-78 ndash traduccedilatildeo livre)
Conveacutem pois conferir um trecho maior sua primeira estrofe a fim de discutir com mais
propriedade a imagem-questatildeo colocada
Patmos54
Estaacute proacuteximo
E difiacutecil de agarrar o deus
Onde contudo haacute perigo cresce
O que salva tambeacutem
Agraves escuras vivem
As aacuteguias e destemidas partem
As filhas dos Alpes sobre o abismo
Em singelas feitas pontes
Por isso juntas laacute estatildeo em torno
Do cimo do tempo e as mais amadas
Perto vivem esmorecendo nas
Mais separadas montanhas
Entatildeo daacute pura aacutegua
Oacute asas daacute-nos os mais apurados sentidos
Para atravessar e regressar (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre)55
54 Pequena ilha grega no Egeu Meridional Local onde o apoacutestolo Joatildeo foi exilado e teria recebido a
revelaccedilatildeo para escrever o Evangelho (SMITH PatrsquoMos 1901) Disponiacutevel em
lthttpwwwstudylightorgdictionariessbdppatmoshtmlgt Acesso em 27 mai 2017 55 Nah ist Und schwer zu fassen der Gott Wo aber Gefahr ist waumlchst Das Rettende auch Im Finstern
wohnen Die Adler und furchtlos gehn Die Soumlhne der Alpen uumlber den Abgrund weg Auf leichtgebaueten
Bruumlcken Drum da gehaumluft sind rings Die Gipfel der Zeit und die Liebsten Nah wohnen ermattend auf
Getrenntesten Bergen So gib unschuldig Wasser O Fittiche gib uns treuesten Sinns Hinuumlberzugehn
und wiederzukehren Disponiacutevel em lthttpgutenbergspiegeldebuchfriedrich-h-262132gt Acesso em
27 mai 2017
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Νοῦς eacute a superaccedilatildeo de διάνοια e portanto superior a δόξα e a αἴσθησις ndash que se
relaciona com a arte (daiacute a palavra esteacutetica) Para Platatildeo a poesia as sensaccedilotildees e suas
representaccedilotildees estatildeo intimamente ligadas ao que haacute de mais abjeto satildeo uma espeacutecie ldquode
veneno intelectual e inimiga da verdaderdquo (HAVELOCK 1996b paacuteg 20) Tudo que elas
representam deve ser evitado para que suas maacutes influecircncias natildeo desvirtuem os homens
De acordo com o caminho do que haacute de mais nobre e belo aos olhos da filosofia conforme
Livro X ldquoDe modo que natildeo devemos deixar-nos arrebatar por honrarias riquezas nem
poder algum nem mesmo pela poesia descurando a justiccedila e as outras virtudesrdquo
(PLATAtildeO 1987 paacuteg 474)
A ceacutelebre expulsatildeo dos poetas nada mais eacute do que a sequecircncia loacutegica Natildeo nos
surpreende quando Platatildeo (1987 paacuteg 473) fala que ldquoaqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao
lembrarmos de novo a poesia por justificadamente excluirmos da cidade uma arte dessa
espeacutecierdquo se nos ativermos ao empenho de sistematizaccedilatildeo e adequaccedilatildeo que fundamenta
essa verdade Esta soacute tem validade pelo intelecto e natildeo soacute pode mas deve ignorar as
sensaccedilotildees A revoluccedilatildeo circunscrita aqui diz respeito a uma concepccedilatildeo de ser e estar no
mundo anterior retroacutegrada que precisa ceder espaccedilo abrir matildeo de sua presenccedila para se
reconhecer aparecircncia imaginaccedilatildeo perdendo seu estatuto de seriedade Assim no
decorrer de milecircnios acaba por tornar-se entretenimento isto eacute tudo o que natildeo for por
essa nova loacutegica simplesmente natildeo eacute
Fica imediatamente evidente que um tiacutetulo como a Repuacuteblica natildeo pode nos
preparar para o surgimento nesta obra de um ataque tatildeo frontal agrave essecircncia da
literatura grega Se a discussatildeo segue um plano e se a investida vinda de onde
vem constitui uma parte essencial daquele plano entatildeo o objetivo do tratado
como um todo natildeo pode ser contido dentro dos limites a que denominamos
teoria poliacutetica (HAVELOCK 1996b paacuteg 20)
Para Heidegger poesia e filosofia estatildeo no ldquocimo do tempordquo Natildeo se trata aqui de
trocar arte por ciecircncia mas de reconhecer o vigor da palavra poeacutetica destratada pela
histoacuteria Seu desterro platocircnico natildeo faz jus ao voo da aacuteguia empreendido para ter com sua
irmatilde de pensamento O abismo marca o intransponiacutevel a ponte e a travessia o diaacutelogo e
o regresso e o perigo definem a identidade desta relaccedilatildeo de proximidade e distacircncia na
qual convivem filosofia e poesia
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221 Ciecircncia e intelecto
Todavia cabe antes uma ressalva pois haacute uma incongruecircncia entre passagens da
Repuacuteblica Vejamos ldquocomo anteriormente chamar agrave primeira divisatildeo ciecircncia agrave segunda
entendimento agrave terceira crenccedila e agrave quarta conjectura ou pensamento pictoacuterico ndash e agraves duas
uacuteltimas ambas opiniatildeo e agraves duas primeiras intelectordquo (PLATAtildeO 1969a 533e-534a ndash
traduccedilatildeo livre)56 conforme o original ldquoἀρκέσει οὖν [] τὴν μὲν πρώτην μοῖραν ἐπιστήμην
καλεῖν δευτέραν δὲ διάνοιαν τρίτην δὲ πίστιν καὶ εἰκασίαν τετάρτην καὶ συναμφότερα μὲν
ταῦτα δόξαν νόησιν δὲ περὶ οὐσίανrdquo (PLATAtildeO 1903 533ε-534α)57 Em 511d Platatildeo
descreve o cume do conhecimento como sendo νοῦς e em 533e ἐπιστήμην sendo esta
subdivisatildeo de νοῦς
Mais importante do que exigir clareza absoluta dos textos antigos eacute empreender o
caminho de pensamento que por vezes seraacute duacutebio Ἐπιστήμην eacute a forma declinada de
ἐπιστήμη que significa entre outros sentidos conhecimento conhecimento cientiacutefico e
faz oposiccedilatildeo agrave δόξα (LIDDELL SCOTT 1940 Ἐπιστήμη)58 Por sua vez δόξαν eacute a forma
declinada de δόξα significando opiniatildeo sim mas tambeacutem expectativa julgamento
noccedilatildeo reputaccedilatildeo (LIDDELL SCOTT 1940 Δόξα)59
Haacute pois dois campos semacircnticos aproximados um sujeito agrave especulaccedilatildeo
possibilidade de certeza ou ateacute achismo outro sujeito agrave comprovaccedilatildeo teoacuterica
argumentaccedilatildeo loacutegica e fundamentaccedilatildeo da certeza Desse modo leva-se a crer que Platatildeo
deveria estar se referindo a νοῦς e διάνοια como ambas sendo ἐπιστήμη ndash e natildeo o contraacuterio
ndash que por conseguinte se opunha agraves outras duas δόξα
56 as before to call the first division science the second understanding the third belief and the fourth
conjecture or picture-thoughtmdashand the last two collectively opinion and the first two intellection
Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101683Abook3D73A
section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 57 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D73A
section3D533egt Acesso em 28 mai 2017 58 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3De)pisth
2Fmhgt Acesso em 28 mai 2017 59 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddo2
Fca5Egt Acesso em 28 mai 2017
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Outro aspecto problemaacutetico eacute igualar ἐπιστήμη agrave ciecircncia pois vimos que Platatildeo
distingue ciecircncia de intelecto Decerto em diversos contextos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel
entretanto especificamente nesse causa confusotildees Talvez uma possibilidade fosse
simplesmente considerar a palavra por ldquoconhecimentordquo em oposiccedilatildeo agrave ldquoopiniatildeordquo
Entendemos contudo tratar-se de uma ambiguidade jaacute estabelecida na tradiccedilatildeo
filosoacutefica e por respeito agrave fonte do texto em inglecircs optou-se por manter ldquociecircnciardquo
Eacute muito frequente a traduccedilatildeo dessa [ἐπιστήμη] palavra por lsquociecircnciarsquo remetendo-
se assim de modo impliacutecito mas tambeacutem impreciso e apressadamente
aproximado agrave ciecircncia moderna Em seu germe mais interior que soacute vem agrave tona
no encaminhamento da histoacuteria moderna essa ciecircncia eacute de essecircncia teacutecnica
[] O fundamento e o acircmbito essencial da teacutecnica moderna eacute essa vontade [de
ser senhor da totalidade do mundo no modo do ordenamento] que em toda
intenccedilatildeo e apreensatildeo em tudo o que se quer e alcanccedila sempre quer somente a
si mesma e a si mesma armada com a possibilidade sempre crescente de poder-
querer-a-si (HEIDEGGER 1998 paacutegs 204-205)
23 Crenccedila e conjectura
Entramos agora no domiacutenio da δόξα Se para falarmos de ἐπιστήμη e νοῦς tivemos
de ter cautela tambeacutem este acircmbito eacute traiccediloeiro Sobre o que tratamos quando nos
referimos a δόξα Vejamos um exemplo o hino Patmos comeccedila com os seguintes versos
ldquoEstaacute proacuteximo E difiacutecil de agarrar o deusrdquo (HOumlLDERLIN 1993 ndash traduccedilatildeo livre) A
referecircncia agrave divindade eacute clara proacutepria inclusive do Romantismo e essencial ao poema
Ela diz algo a respeito de uma postura diversa que privilegia o que antes voluntariamente
se velava na histoacuteria do Ocidente
Eacute como se o poeta cuja influecircncia claacutessica eacute notoacuteria resolvesse aludir agrave musa que
laacute se encontrava e se desencontrava A aproximaccedilatildeo do sagrado ratifica o contexto das
sensaccedilotildees do que precisa ser experienciado agrave medida que se torna menos preciso e
calculaacutevel Em contraste com o filoacutesofo que exclui a πoacuteλις do verso e jaacute que os poemas
coparticipam do domiacutenio do sensiacutevel retira o homem das sensaccedilotildees e seus crenccedilas
Houmllderlin refaz a ponte singela que aproxima em sua dificuldade essas duas aacuteguias as
quais Heidegger propositalmente identifica por poesia e filosofia
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Este eacute o domiacutenio ao qual relega Platatildeo a δόξα o de ser contraponto de νοῦς Se
este se apresentava como superior aquele eacute o inferior das sensaccedilotildees que tocam a ψυχῇ
mas que por isso estaacute em meio ao comum e ao geral ao normalmente aceito e
imediatamente sentido Assim como o anterior superior tambeacutem eacute subdividido
Como terceiro estaacutegio de influecircncia na alma temos em Platatildeo a πίστιν forma
declinada de πίστις A traduccedilatildeo portuguesa comentada da Repuacuteblica de 1987 assim como
a ediccedilatildeo brasileira de 2000 opta por ldquofeacuterdquo Para evitar o sincretismo a escolha pela
palavra ldquocrenccedilardquo parece ser mais aconselhaacutevel indo ao encontro da ediccedilatildeo em liacutengua
inglesa Outras definiccedilotildees tais quais ldquoconfianccedila persuasatildeo honestidade garantia e ateacute
creacuteditordquo (LIDDELL SCOTT 1940 Πίστις)60 versam em torno da palavra
Dessa forma por que considerar crenccedila como de menor importacircncia para a
filosofia Essa eacute uma duacutevida honesta mas talvez a pergunta inicial possa ser reformulada
para saber sobre o quecirc do crer quer dizer o que se acredita aqui que difere do credo da
etapa anterior Ora a δόξα eacute o acircmbito da αἴσθησις logo se fia nos sentidos Confia-se
no que se vecirc no que pode ser tocado de modo que seria preciso fazer a experiecircncia com
as coisas mais do que sobre as coisas Contudo para Platatildeo apenas fazer uma experiecircncia
praacutetica com as coisas natildeo eacute garantia de acesso a elas pois somente pelo intelecto se
achegaria aonde natildeo se pode ver como se natildeo ver as coisas mas a ideia das coisas fosse
realmente vecirc-las
Se noacutes limitarmos estritamente DC [segmento da Figura 1 referente a ζῷα etc]
a ὁρατά πίστις precisa ser entendida como um estado da mente que acredita
apenas nas coisas palpaacuteveis (ἐναργῆ) e visiacuteveis (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ
φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510 A)61 lsquoverrsquo como noacutes ainda dizemos
lsquopara crerrsquo Mas Platatildeo jaacute falou de AC [segmento da Figura 1 referente a
εἰκόνες e ζῷα etc] como δοξαστόν62 (nota 510 A) logo que πίστις natildeo deve
ser confinada aos objetos da visatildeo (ADAM 1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)63
60 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpi2F
stisgt Acesso em 29 mai 2017 61 [] a que nos abrange a noacutes seres vivos e a todas as plantas e toda a espeacutecie de artefactos (PLATAtildeO
1987 paacuteg 311) 62 [hellip] Acaso consentirias em aceitar que o visiacutevel se divide no que eacute verdadeiro e no que natildeo o eacute e que tal
como a opiniatildeo [δοξαστόν] estaacute para o saber assim estaacute a imagem para o modelo (PLATAtildeO 1987 paacuteg
311) 63 If we strictly limit DC to ὁρατά πίστις must be understood as the state of mind which believes only in
visible palpable (ἐναργῆ) things (τὰ περὶ ἡμᾶς ζῷα καὶ πᾶν τὸ φυτευτὸν καὶ τὸ σκευαστὸν ὅλον γένος 510
A) lsquoseeingrsquo as we still say lsquois believingrsquo But Plato has already spoken of AC as δοξαστόν (510 A note)
so that πίστις should not be confined to the objects of sight
75
Figura 1 ndash As quatro influecircncias
Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929
Em mateacuteria de conhecimento πίστις estaacute na parte inferior por principalmente natildeo
aceitar o convencimento pelo conceito mormente julga pelo sensiacutevel a realidade Dessa
forma as respostas que algueacutem pode procurar e oferecer natildeo seriam apenas loacutegicas mas
tambeacutem emotivas e situacionais Aqui faz-se uma distinccedilatildeo importante pois abre um
precedente agrave compreensatildeo das coisas natildeo pelo que elas satildeo mas por suas categorias
Platatildeo refere-se a πίστις como uma imagem que convence mas natildeo vence
independentemente de como e o que for retratado nela Simplesmente por ser retrataacutevel
ela jaacute abre matildeo de certa inteligibilidade e por isso estaacute fadada agrave imperfeiccedilatildeo das
experiecircncias concretas
Quer isto dizer que o que a coisa eacute o seu Was-sein ou o seu ser eacute dado natildeo na
sua pura e simples aparecircncia sensiacutevel e sempre particular mas no seu lsquoaspectorsquo
(εἶδος) tal que soacute uma visatildeo supra-sensiacutevel do ente o pode captar ndash e que soacute eacute
ele proacuteprio acessiacutevel como poderia mostrar uma nova anaacutelise senatildeo por meio
das lsquocateroriasrsquo (κατηγορiacuteα) que decidem das possibilidades de ser desse ente
(ZARADER 1998 paacuteg 210)
Jaacute Aristoacuteteles (2005 paacuteg 95-96) desenvolve diversa e detalhadamente esse tema
ao classificar a retoacuterica como ldquoa capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso
com o fim de persuadir [πιθανόν] Esta natildeo eacute seguramente a funccedilatildeo de nenhuma outra
arte pois cada uma das outras apenas eacute instrutiva e persuasiva [πειστική64] nas aacutereas de
sua competecircnciardquo Aludindo ao caraacuteter fronteiriccedilo do convencimento ele divide sua obra
em trecircs livros que discorrem sobre λόγος πάθος e ἔθος da persuasatildeo percepccedilatildeo triacuteplice a
64 Forma tardia e declinada de πιστικός (LIDDELL SCOTT 1940 Πιστικός) Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dpistiko
2Fs2gt Acesso em 30 mai 2017
76
partir da qual ele compreende o tema Em outras palavras eis o entendimento de que a
crenccedila eacute um convencer por argumentaccedilatildeo loacutegica assim como pelas emoccedilotildees e pelo
contexto em que ocorre
Se Platatildeo colocou πίστις num acircmbito eminentemente opinativo por conseguinte
oposto ao epistemoloacutegico Aristoacuteteles tambeacutem concorda que a retoacuterica natildeo eacute uma ciecircncia
e como tal tem qualidades proacuteprias Embora ambas possuam uma teacutecnica a retoacuterica
apenas se aproxima do verdadeiro trabalhando com probabilidades e possibilidades
provaacuteveis Enquanto isso para os dois filoacutesofos a ciecircncia se constitui por verdades
universais ldquoEacute igualmente insensato aceitar conclusotildees meramente provaacuteveis de um
matemaacutetico e demandar demonstraccedilatildeo precisa de um oradorrdquo (ARISTOacuteTELES 1934 ndash
traduccedilatildeo livre)65 conforme o original ldquoΠαραπλήσιον γὰρ φαίνεται μαθηματικοῦ τε
πιθανολογοῦντος ἀποδέχεσθαι καὶ ῥητορικὸν ἀποδείξεις ἀπαιτεῖνrdquo (ARISTOacuteTELES
1894)66
Agora se crenccedila pressupotildee um convencimento por mais que ele natildeo fosse
dialeticamente adequado haacute aiacute um jogo tensional no qual existe uma possibilidade de
questionamento Quem pode ser convencido deve possuir os subsiacutedios para o
convencimento precisa haver alguma duacutevida a ser respondida ou certezas passiacuteveis de
contra-argumentaccedilotildees O que eacute totalmente dado como certo pronto estaacute sem necessidade
de acabamento
Imagina homens numa morada subterracircnea [Figura 2] [] desde a infacircncia []
de pernas e pescoccedilo acorrentados [segmento 119886119887 ] [] a luz chega-lhes de uma
fogueira acesa numa colina [] entre o fogo e os prisioneiros passa uma
estrada ascendente [segmento 119890119891 ] Imagina que ao longo dessa estrada estaacute
construiacutedo um pequeno muro [segmento 119892ℎ ] []
[] Imagina agora ao longo desse pequeno muro homens que transportam
objetos de toda espeacutecie []
[] Dessa forma tais homens [os acorrentados] natildeo atribuiratildeo realidade senatildeo
agraves sombras dos objetos fabricados (PLATAtildeO 2000 paacutegs 225-226)
65 It is equally unreasonable to accept merely probable conclusions from a mathematician and to demand
strict demonstration from an orator Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100543Abekker20page
3D1094b3Abekker20line3D20gt Acesso em 01 jun 2017 66 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100533Abekker20page
3D1094b3Abekker20line3D25gt Acesso em 01 jun 2017
77
Figura 2 ndash Ilustraccedilatildeo da alegoria da caverna
Fonte THE REPUBLIC OF PLATO 1929
Quando natildeo haacute questotildees soacute respostas quando natildeo haacute um conceito a ser
reproduzido e nem sua reproduccedilatildeo apenas um vestiacutegio de algo que dificilmente pode ser
caracterizado pela ousadia da resposta nem pela inquietude da pergunta laacute dominam as
sombras Natildeo pode haver convencimento onde soacute haacute convicccedilatildeo ldquoE se o arrancarem agrave
forccedila da sua caverna o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e natildeo o largarem
antes de o terem arrastado ateacute a luz do Sol natildeo sofreraacute vivamente e natildeo se queixaraacute de
tais violecircncias mdash Com toda a certezardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226)
Eis que por fim analisaremos a palavra εἰκασίαν forma declinada de εἰκασία
como pensamento pictoacuterico imaginaccedilatildeo conjectura representaccedilatildeo suposiccedilatildeo etc
(LIDDELL SCOTT 1940 Εἰκασία)67 Esse eacute o estaacutegio mais distante do conhecimento
Domiacutenio da praacutetica e das sensaccedilotildees a aprendizagem se daria pela via empiacuterica e natildeo
67 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dei)kasi
2Fagt Acesso em 20 mai 2017
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atraveacutes de formulaccedilotildees inteligiacuteveis Sabe-se o que se fez ou o que se viu do contraacuterio natildeo
existe Haacute somente o puro e simples saber ou o achar que se sabe pelo menos
Achismos agrave parte haacute de se convir que nunca se natildeo sabe de nada Esse
desmerecimento das aparecircncias e das opiniotildees parte de um Platatildeo de fora da caverna sem
possibilidade de retorno a ela Decerto que na Repuacuteblica ele volta mas natildeo como antes
ldquoSe um homem nessas condiccedilotildees descesse de novo para o seu antigo posto natildeo teria os
olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Solrdquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg
318) E como natildeo teria Do contato com a ideia platocircnica ateacute o contato com as demais
pessoas ldquoacorrentadasrdquo passaram-se dois milecircnios e o filoacutesofo ainda natildeo reestabeleceu
plenamente sua visatildeo
A filosofia sofre desse estigma que ela mesma criou o de ser inacessiacutevel aos
muitos Na alegoria da caverna Platatildeo supotildee tanto os acorrentados como ldquoos curados da
sua ignoracircnciardquo (PLATAtildeO 2000 paacuteg 226) Relata seus percursos de saiacuteda e retorno
mas nada diz desse primeiro despertar Eacute possiacutevel ensinar teacutecnicas de memorizaccedilatildeo de
argumentaccedilatildeo de convencimento mas como ensinar a pensar Eacute possiacutevel ensinar
teacutecnicas de como fazer poesia muacutesica mas como algueacutem vira poeta muacutesico ou no nosso
caso filoacutesofo
Na instacircncia de nossas experiecircncias cotidianas e da tradiccedilatildeo acabamos por
reproduzir muitas aprendizagens e compreender muitos ensinamentos
Independentemente do juiacutezo em torno deles o saber acontece Buscar o saber se for esse
mesmo o caminho empreendido natildeo passa ldquoda parte que nos cabe deste latifuacutendiordquo
Aquele que busca o saber pode aprender ou natildeo aquele que natildeo busca pode aprender ou
natildeo Como proceder Qual caminho seguir Assim deve-se descer agrave caverna natildeo se deve
descer ou natildeo se deve nem mesmo sair dela ldquoEntatildeo aonde noacutes vamos mdash Sempre para
casardquo (NOVALIS 1982 ndash traduccedilatildeo livre)68
Por vezes aquele conhecimento mais insignificante pode ser explorado pelo
intelecto Quiccedilaacute aquele conhecimento mais insignificante natildeo deve ser explorado pelo
intelecto mas simplesmente deve-se aceitaacute-lo do mesmo modo como eacute preciso aceitar
muitas verdades sem as quais natildeo seria possiacutevel viver se cada chatildeo fosse uma questatildeo
natildeo dariacuteamos um passo sequer Nem por isso tal postura precisa ser tratada por
68 raquoWo gehn wir denn hinlaquo raquoImmer nach Hauselaquo Disponiacutevel em
lthttpgutenbergspiegeldebuchheinrich-von-ofterdingen-523524gt Acesso em 03 mai 2017
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ignoracircncia nem a inacessibilidade de muitos deve ser igualada ao ofiacutecio de poucos
Alguns satildeo filoacutesofos assim como alguns satildeo camponeses e embora agraves vezes
circunstacircncias avessas agrave vontade forcem que muitos se tornem camponeses
provavelmente soacute alguns tambeacutem teriam a vocaccedilatildeo para o campo
Para Platatildeo tende-se a crer que a vocaccedilatildeo para a filosofia eacute natildeo saber Afinal ele
relaciona os quatro estaacutegios de afetaccedilatildeo da alma em proporccedilatildeo isto eacute em analogia ou
melhor em ἀνὰ λογόν forma declinada de ἀνὰλόγος (ora escrita junta ora separada no
texto original) aquilo que estaacute em relaccedilatildeo de correspondecircncia com o λόγος (LIDDELL
SCOTT 1940 Ἀνὰλόγος)69 Daiacute εἰκασία ser o domiacutenio absoluto das certezas ldquoA traduccedilatildeo
lsquoconjecturarsquo leva a equiacutevocos pois conjectura implica duacutevida consciente ou hesitaccedilatildeo e
duacutevida eacute estranha para εἰκασία no sentido de Platatildeo Contudo ele pode ter pretendido
sugerir que tal estado mental natildeo fosse em realidade melhor do que conjecturardquo (ADAM
1929 paacuteg 72 ndash traduccedilatildeo livre)70 Tudo eacute puro aceitamento
Do ponto de vista meramente de ὁρατά o a ser visto o visiacutevel (LIDDELL
SCOTT 1940 Ὁρατός)71 o estaacutegio inicial se daacute nas sombras Entretanto o caminho de
apreensatildeo do conhecimento por Platatildeo tambeacutem eacute um percurso de questionamento Na
alegoria da caverna εἰκασία trata de apreender o mundo ao redor a partir somente do que
vemos dele Jaacute em πίστις abre-se matildeo de algumas certezas num contexto natildeo mais tatildeo
uniformizado pela penumbra A interpretaccedilatildeo cristatilde vai traduzi-la por fides temos pois
a feacute e seus misteacuterios enquanto desdobramento do mundo Seja por crenccedila ou por mera
suspeita amorfa dos conceitos a realidade natildeo se apresenta cheia de certezas como antes
No estaacutegio superior encontra-se διάνοια o vigorar das questotildees ἀδελφαῖς τέχναις
afins agrave teacutecnica Aqui a realidade natildeo eacute apenas as coisas os seres vivos e suas
representaccedilotildees mas o modo como essas manifestaccedilotildees ocorrem Em outras palavras os
procedimentos pelos quais a realidade estaacute subjugada fazem inclusive com que ela possa
69 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Da)nalo
gi2Fagt Acesso em 03 jun 2017 70 The translation lsquoconjecturersquo is misleading for conjecture implies conscious doubt or hesitation and
doubt is foreign to εἰκασία in Platos sense Plato may however have intended to suggest that such a state
of mind is in reality no better than conjecture Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400943Abook3D63A
section3D511Egt Acesso em 04 jun 2017 71 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Do(rato
2Fsgt Acesso em 04 jun 2017
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ser manipulada e controlada por definiccedilotildees universais embora sem transcender das
finalidades imediatas
Cabe ressaltar que em εἰκασία e πίστις as manifestaccedilotildees satildeo tidas por
apresentaccedilotildees ou seja elas se mostram assim como satildeo e satildeo assim como se mostram
compreendidas por meio da experimentaccedilatildeo concreta com as coisas e sem a exigecircncia do
intermeacutedio conceitual por isso a compreensatildeo sensiacutevel da realidade Jaacute em διάνοια e νοῦς
haacute certa convicccedilatildeo de que as manifestaccedilotildees satildeo representaccedilotildees do plano universal e ideal
logo imperfeitas e passiacuteveis de questionamentos daiacute sua inteligibilidade e seu caraacuteter
superior para a filosofia platocircnica
Por fim νοῦς eacute o saber mais elevado e com mais questionamentos
Paradoxalmente a maior compreensatildeo de si e do que haacute ao redor eacute o estaacutegio de maior
duacutevida a ponto de Soacutecrates o mais saacutebio para a pitonisa e personagem principal dessa
filosofia chegar ao cuacutemulo de soacute saber uma coisa ndash que nada sabe Esse eacute o saber
fundamental que envolto em sombras os homens natildeo podem sequer imaginar ateacute
derradeiramente se verem retornando agrave caverna com a compreensatildeo de que a luz eacute soacute
mais um aspecto menos sombrio das trevas como se ser fosse soacute uma passagem para natildeo
ser
Entatildeo pus-me a considerar de mim para mim que eu sou mais saacutebio do que
esse homem pois que ao contraacuterio nenhum de noacutes dois sabe nada de belo e
de bom mas aquele homem acredita saber alguma cousa sem sabecirc-la
enquanto eu como natildeo sei nada tambeacutem estou certo de natildeo saber (PLATAtildeO
1949 paacuteg 17)
24 Filosofia e opiniatildeo
Seja ou natildeo seja a filosofia a resposta para nossos problemas ela certamente se
apresenta como uma das possibilidades para um ensino contraacuterio agrave proposta
tradicionalmente imposta Mas ateacute ela mesma tem sua histoacuteria e maneiras proacuteprias de ser
Seu modus operandi responde agrave medida que se distancia em caraacuteter voluntaacuterio de um
saber praacutetico simples sem as lisuras da Academia nem a pretensatildeo de semelhante esmero
racional Poreacutem haacute outras formas de cuidar do pensamento que natildeo pelo intelecto
81
A intenccedilatildeo natildeo eacute trocar seis por meia duacutezia desqualificando o empenho seacuterio de
sistematizaccedilatildeo e racionalizaccedilatildeo mas a partir do momento em que se questiona o preacute-
estabelecido conveacutem ao menos sugerir uma alternativa E tanto o rompimento quanto o
outro caminho natildeo satildeo aleatoacuterios Se a tradiccedilatildeo natildeo consegue conceber bem que
determinadas camadas sociais estejam aptas ao pensamento eacute praticamente peremptoacuterio
rever essa forma de compreender a realidade por exemplo no caso do ensino de filosofia
a partir de uma perspectiva poeacutetica
Entatildeo eacute possiacutevel certo questionamento advindo de eg crianccedilas mas natildeo apenas
de pobres de miseraacuteveis de pessoas de baixa escolaridade de culturas tidas como
exoacuteticas etc Todavia jaacute sendo a filosofia excludente por toda sua histoacuteria ela proacutepria
convida a um repensar sua atividade a fim de que possamos contemplar o natildeo
arbitrariamente velado Natildeo por puro moralismo haja vista certa desconfianccedila salutar sim
pelos caminhos muito pisados em nossos tempos midiaacuteticos de controle de massa
Duas estradas divergiam num bosque em setembro
E lamentando natildeo poder seguir em ambas as vias
E sendo o uacutenico viajante durante muito tempo me lembro
olhei para uma tatildeo longe quanto eu conseguia
ateacute onde ela dobrava na descida e sumia
Entatildeo peguei a outra parecia boa e vasta
e fosse talvez a mais atraente
pois estava coberta de grama precisando ser gasta
embora aqueles que passaram na frente
tivessem gasto ambas quase igualmente
E ambas que aquela manhatilde igualmente fez
cobertas por folhas pegada alguma a manchar
Oh deixei a primeira para outra vez
Mesmo sabendo como um caminho leva a caminhar
duvidei se iria algum dia voltar
Devo estar contando isso com a alma cortada
Em algum lugar haacute uma distacircncia de tempo imensa
divergiam em um bosque duas estradas
e eu escolhi a menos viajada
e esta escolha fez toda a diferenccedila (FROST 1916 paacuteg 9 ndash traduccedilatildeo de Ceacutesar
Ramos)72
72 Two roads diverged in a yellow wood And sorry I could not travel both And be one traveler long I
stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth Then took the other
as just as fair And having perhaps the better claim Because it was grassy and wanted wear Though
as for that the passing there Had worn them really about the same And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black Oh I kept the first for another day Yet knowing how way leads on
to way I doubted if I should ever come back I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and
82
Nem decerto por acreditar que todos podem fazer tudo eacute que todos podem ser
filoacutesofos Natildeo natildeo podem assim como todos natildeo podem ser jogadores de futebol o que
natildeo se trata de uma problemaacutetica de meacuterito Naturalmente que o esforccedilo e as condiccedilotildees
favoraacuteveis do sistema vatildeo influenciar para se alcanccedilar tal e tal objetivo Contudo haacute de
se levar em conta tambeacutem a aptidatildeo caracteriacutestica pouco precisaacutevel supostamente inata
das pessoas para determinadas atividades Aleacutem disso tudo o simples fato de que para
cada escolha pressupotildee-se necessariamente a exclusatildeo de tantas outras jaacute eacute forte indiacutecio
de que nem todos chegam a fazer filosofia
Por outro lado natildeo eacute disso que se propotildee a falar neste trabalho A filosofia do
mesmo modo que muitos outros ofiacutecios pode (quiccedilaacute deve) ser um empenho de poucos
mas enquanto possibilidade fundamental de recolhimento dos questionamentos natildeo
conveacutem que ela (quiccedilaacute todos os outros ofiacutecios) seja reconhecida por um caraacuteter excludente
de muitos como se somente os ldquoescolhidosrdquo pudessem assim pensar O penhor de alguns
natildeo deve ser confundido com a segregaccedilatildeo dos demais
Claro que tal exclusatildeo natildeo se processa tatildeo agraves claras No mais das vezes ela vem
com a sutileza fria da navalha ao destituir de valor uma colocaccedilatildeo legiacutetima poreacutem oriunda
de uma fonte pouco estimada ou impressotildees e suposiccedilotildees sem um embasamento teoacuterico
canocircnico Ateacute puacuteblicos inteiros podem ser ignorados por natildeo gozarem de prestiacutegio
intelectual como no caso das crianccedilas que quando fazem um comentaacuterio ldquofilosoacuteficordquo
coloca-se aspas nele ou em sequecircncia faz-se uma interjeiccedilatildeo qualquer de espanto e
admiraccedilatildeo adorno comum sobre atitudes inesperadas
Um reconhecimento que resvala pelo preacute-conceito de se crer que desse mato natildeo
sairia coelho mas espantosamente aqui estaacute ele o leporiacutedeo Noacutes julgamos agrave revelia e
surpreendemo-nos quando o juiacutezo natildeo daacute conta do real Estes ldquoohrdquo e ldquoahrdquo natildeo possuem
a mesma atenccedilatildeo demandada aos comentadores oficiais mas sim alternam entre o bibelocirc
e o gracejo respondendo natildeo ao pensamento doado pelos sentidos mas pela alegoria
hierarquizante e excludente criada pelo intelecto
ages hence Two roads diverged in a wood and Imdash I took the one less traveled by And that has made
all the difference Traduccedilatildeo disponiacutevel em lthttpmunhoblogspotcombr201105robert-frost-poeta-
americano-in-roadhtmlgt Acesso em 10 jun 2017
83
Desde sua raiz etimoloacutegica a infacircncia parece evocar um estado de minoria ou
de incapacidade de dependecircncia ou de fraqueza de imperfeiccedilatildeo ou mesmo de
selvageria imagens todas as quais transferidas para nossos discursos
educacionais que em sua maioria compartilham a ideia de que a crianccedila natildeo eacute
nada mais do que um presente sem presenccedila [grifo no original] um estado
preparatoacuterio e provisoacuterio um tempo sem direito proacuteprio pois toda educaccedilatildeo eacute
uma instruccedilatildeo das crianccedilas natildeo para elas mesmas (pelo que satildeo) mas assim
pelo que seratildeo (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 11 ndash traduccedilatildeo livre)73
Se ldquoa filosofia como ateacute aqui a entendi e vivi eacute a vida voluntaacuteria no meio do gelo
e nas altas montanhas ndash a procura de tudo o que eacute estranho e problemaacutetico na existecircnciardquo
(NIETZSCHE 2008 paacuteg 8) isso natildeo quer dizer colocar-se numa torre de marfim numa
transcendecircncia mundana em prol das questotildees Indica contudo um caminhar singular a
despeito da seguranccedila e do conforto coletivos sem a princiacutepio opor-se a eles Ademais o
comportamento voluntarioso (freiwillige) pressupotildee uma adesatildeo agraves questotildees ditas
filosoacuteficas a partir da liberdade pela vontade que eacute entendida aqui como a possibilidade
de escolha entre ser ou natildeo filoacutesofo Eacute certo que podemos exercer nossos desejos nisso
ou naquilo mas concernidos em nossas proacuteprias limitaccedilotildees caso contraacuterio retornariacuteamos
agrave esparrela do querer eacute poder Portanto quanto a isso faz-se uma ressalva
As questotildees natildeo satildeo posses Natildeo estatildeo agrave mercecirc de algum grupo para que possam
ser desenvolvidas em conceitos ldquoComo a palavra querer tambeacutem as palavras questatildeo
questionar e questionamento vecircm do latim quaerere Quaerere significa empenhar-se
na busca e na procura do que natildeo se tem por jaacute se ter e para se vir a terrdquo (LEAtildeO 1977
paacuteg 44) Elas natildeo servem para dar voz a minorias nem exaltar a maioria O que se faz
com as questotildees natildeo satildeo as questotildees satildeo seus encaminhamentos suas respostas suas
soluccedilotildees sua limitaccedilatildeo entre as demais questotildees Elas mesmas satildeo apenas possibilidades
de pensamento agraves quais a filosofia atenta e corresponde agrave sua maneira questionar
enquanto a harmonia e sintoma articuladores com aquilo que o pensamento tem a pensar
(HEIDEGGER 2003 paacuteg 135)
Nessa dimensatildeo natildeo tendo as questotildees dono tambeacutem natildeo teratildeo seus tratadores
seus cuidadores seus pensadores Melhor dizendo se cabe agrave filosofia a lida com as
73 Desde su misma raiacutez etimoloacutegica la infancia parece evocar un estado de minoriacutea o de incapacidad de
dependencia o de debilidad de imperfeccioacuten o incluso de salvajismo imaacutegenes todas ellas que se han
trasladado a nuestros discursos pedagoacutegicos los cuales en su mayoriacutea comparten la idea de que el nintildeo
no es maacutes que un presente sin presencia un estado preparatorio y provisional un tiempo sin derecho
propio pues toda educacioacuten es una instruccioacuten de los nintildeos no por ellos mismos (por lo que son) sino por
lo que seraacuten
84
questotildees elas natildeo se restringem exclusivamente ao apreendido pelo intelecto Natildeo sendo
posse do saber tradicional conveacutem averiguar o trespassar delas pelos sentidos pela
opiniatildeo pelo simples conviver com elas Desse modo a resposta pela filosofia natildeo se
apresenta jaacute dada em algum grande mestre mas tambeacutem exige o escrutiacutenio nas mais
variadas manifestaccedilotildees inclusive laacute onde normalmente eacute vedado o interesse conceitual
no uso corrente sem prestiacutegio sem muito raciociacutenio puro empirismo e achismo Encarar
a questatildeo eacute lidar com sua multiplicidade
O que eacute filosofia Veja-se por exemplo seu sentido querendo dizer ldquomodo de
pensarrdquo ldquoNada afeta sua filosofia de boecircmio inveteradordquo (FERREIRA 2004 Filosofia)
Neste contexto o termo se aproxima a ldquoprinciacutepiordquo fio condutor de determinada maneira
de agir pensar e ser mesmo num registro mais popular Daiacute vem a notoacuteria expressatildeo
ldquofilosofia de vida visatildeo ou enfoque filosoacutefico sobre a natureza o propoacutesito da existecircncia
ou o modo como se deve viverrdquo (HOUAISS 2009a Filosofia)
Parece claro que os casos supracitados se referem a uma resposta objetiva com
preceitos e meacutetodos de accedilatildeo como etiquetas sociais posiccedilotildees poliacuteticas e posturas eacuteticas
Por esse aspecto o ensino de filosofia pode ser justificado sem muita dificuldade pois
estariacuteamos no domiacutenio da transmissatildeo de valores ou quando muito num
pseudoquestionamento que oculta uma certeza
Eis como o uso corriqueiro enxerga a filosofia uma integridade dogmaacutetica
Naturalmente que quaisquer manejos de palavras estatildeo sujeitos a seriedades e a
leviandades Decerto natildeo eacute muito usado pelos filoacutesofos profissionais acostumados com
historiografias e reflexotildees abstratas entrementes estaacute na boca do povo instruiacutedo no
portuguecircs falado Uma filosofia de vida enquanto insistecircncia de uma crenccedila inclusive
remete agrave proacutepria histoacuteria da disciplina quando Soacutecrates resoluto aceita sua pena
Embora os homens natildeo o percebam eacute possiacutevel que todos os que se dedicam
verdadeiramente agrave Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem
mortos Sendo isso um fato seria absurdo natildeo fazendo outra coisa o filoacutesofo
toda a vida ao chegar esse momento insurgir-se contra o que ele mesmo pedira
com tal empenho e em poacutes do que sempre se afanara (PLATAtildeO 2017a)
Essa profissatildeo de feacute que Soacutecrates realiza particulariza o filoacutesofo como um ser para
a morte Ao mesmo tempo identifica-o por seu aspecto fundamentalmente gregaacuterio cuja
dedicaccedilatildeo profissional se estabelece mediante uma questatildeo comum a todos os homens o
85
finamento Portanto ainda que o termo filosofia em filosofia de vida natildeo seja o sentido
canocircnico ele reflete parte importante dessa loacutegica nem sempre clara mas profundamente
coerente de convivecircncia com as questotildees e seu pensamento
A filosofia que se distancia do uso exiacutemio do raciociacutenio mas se manteacutem atenta ao
questionar natildeo trai seu princiacutepio do contraacuterio habita-o novamente retificando e
ratificando seu aspecto mais genuiacuteno sua busca questionadora e fundadora Ela passa por
uma compreensatildeo legiacutetima e concreta de uma entrega agraves questotildees comparaacutevel por
exemplo a um padeiro ciente de sua dignidade e inclinado dia apoacutes dia a zelar pelo seu
patildeo natildeo importando quatildeo cedo precise acordar Para ele suas ideias sua teacutecnica e sua
realidade coordenam e consagram valor a suas accedilotildees que por sua vez se apresentam como
oferta a quem se dispor agrave padaria ainda que por ser a mais proacutexima
Quando no fundo da noite de inverno uma tormenta de neve brame
debatendo-se em torno do abrigo escurece e cobre tudo eacute a hora propiacutecia da
filosofia O questionamento tem entatildeo de deixar-se fazer simples e essencial
A elaboraccedilatildeo de cada pensamento natildeo pode ser senatildeo aacuterdua e severa O esforccedilo
de formar as palavras se identifica com a resistecircncia que os abetos oferecem
de peacute agrave tormenta
O trabalho da filosofia natildeo corre por fora no campo extra-vagante Conserva
uma relaccedilatildeo de intimidade com o trabalho dos camponeses (HEIDEGGER
1977a paacuteg 324)
25 Diaacutelogo e filosofia
No entanto das partes anteriores faz-se presente um dos maiores argumentos
contra uma resposta filosoacutefica de que a filosofia natildeo responde a coisa alguma Isso
porque demos exemplos como sendo descrita pelo sistema racional e loacutegico mas tambeacutem
a identificamos com o labor quieto e simples do camponecircs Qual a ponte entre um e outro
Haacute uma relaccedilatildeo ou trata-se apenas de diversidade de opiniotildees
Quanto a isso fala a voz da tradiccedilatildeo tradicional e seu aspecto transmissor e
controlador nem por isso menos honesta Esperar uma resposta definitiva pode ser
frustrante mas fugir agrave responsabilidade de propor um caminhar natildeo deve ser encarado
apenas como prudecircncia A falta da ousadia de pensamento e o receio constante de natildeo
tomar decisotildees eacute uma fronteira entre o cuidado e a cobardia De modo semelhante a Heitor
86
encarando seu destino funesto assim a resposta se ousa a responder fadada ao equiacutevoco
pela incapacidade de apreensatildeo totalizante do real
Haacute muito tempo decerto Zeus grande e seu filho frecheiro
determinaram que as coisas assim se passassem pois eles
sempre beneacutevolos soiacuteam salvar-me ora o Fado me alcanccedila
Que pelo menos obscuro natildeo venha a morrer inativo
hei de fazer algo digno que chegue ao porvir exaltado (HOMERO 2015 paacuteg
457)74
Diante da inexoraacutevel imprecisatildeo da resposta soacute nos resta a dignidade de responder
agrave questatildeo como pudermos Desse modo foram expostas na pretensatildeo de diaacutelogo diversas
acepccedilotildees do que seja filosofia ainda que algumas delas natildeo estivessem em sintonia com
este percurso de pensamento O cerne problemaacutetico estaacute em a partir do diverso que se
apresenta confluir tradiccedilatildeo e traiccedilatildeo enquanto identidade e diferenccedila a fim de chegar a
uma resposta que corresponda agrave ldquodinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircnciardquo (LEAtildeO
2010 paacuteg 212) ou seja que decirc conta da anguacutestia da pergunta que eacute simultaneamente
tradiccedilatildeo e criaccedilatildeo
Afinal soacute se pergunta porque natildeo se sabe algo ndash a criaccedilatildeo por vir ndash mas se natildeo
soubeacutessemos nada natildeo haveria como perguntar ndash o respaldo da tradiccedilatildeo De maneira
semelhante eacute orquestrado o jogo das respostas nunca eacute posto algo completamente novo
nem se reproduz algo exatamente igual ldquoTodavia antes mesmo de explorar a resposta
que aiacute eacute dada importa medir o caraacutecter especiacutefico da questatildeo Tornar-se-aacute entatildeo patente
que esta clivagem questatildeo-resposta eacute ela mesma provisoacuteria e que uma justa medida da
questatildeo encerra jaacute em si o essencial da respostardquo (ZARADER 1998 paacuteg 237) Sejam os
posicionamentos mais ou menos afins com seu modo de pensar almeja-se aqui ao diaacutelogo
entre as partes
Dialogar natildeo eacute aceitar tudo o que vem do outro nem soacute aceitar o que mais se
aproxima teoricamente de noacutes mas eacute lidar com a tensatildeo entre o estranho e o conhecido
a fim de propriamente responder Dar propriedade agrave resposta como o que adentra um
percurso singular em confronto com a tradiccedilatildeo sem ao mesmo tempo abrir matildeo dela
Eis o motivo de pensar a filosofia como resposta um caminho que compara logo traz agrave
identidade sem igualar Fazem parte de toda comparaccedilatildeo na verdade quaisquer dois
74 Livro XXII linhas 301-304
87
elementos que satildeo aproximados e colocados um agrave disposiccedilatildeo do outro identificam-se
aproximadamente colocados frente a frente satildeo tidos por semelhantes mesmo que ainda
diferentes
Esse detalhe demarca uma forma de guiar o pensamento e se distingue
radicalmente da definiccedilatildeo na qual a filosofia eacute uma resposta acabada soluccedilatildeo encontraacutevel
categoria reprodutiacutevel Tampouco devia se furtar a responder aos anseios das pessoas e
da sociedade como se fosse algo fora de sua alccedilada Ela natildeo estaacute agrave mercecirc da resposta
nem aqueacutem nem aleacutem Se a filosofia se propotildee a algo eacute a este diaacutelogo entre permanecircncia
e mudanccedila
Natildeo se pode estabelecer todo relacionamento numa posiccedilatildeo a natildeo ser
aceitando a multiplicidade de posiccedilotildees Na multiplicidade vocecirc se coloca
assume uma posiccedilatildeo Sempre haacute o outro o diferente tanto o outro do outro
quanto o outro de si mesmo em cada posiccedilatildeo O outro eacute a diferenccedila do proacuteprio
movimento de constituir uma diferenccedila uma posiccedilatildeo Toda posiccedilatildeo se manteacutem
num processo de diferenciaccedilatildeo e jaacute eacute em si mesmo um outro e traz consigo a
dinacircmica de diferenciaccedilatildeo de sua proveniecircncia (LEAtildeO 2010 paacuteg 212)
Ao longo do tempo a filosofia vem dando respostas atraacutes de respostas num
movimento incessante embora com seus contratempos Nem por isso os posicionamentos
devem ser encarados hierarquicamente anulando o anterior em prol do vindouro A
filosofia natildeo evolui Muito menos o estudo dos textos claacutessicos precisa acontecer para
que sejam decorados transformando a tradiccedilatildeo numa coisa estanque e sem vida
literalmente fruto apenas de um passado morto feito por falecidos filoacutesofos A filosofia
natildeo eacute mero relato de conceitos e categorias
Uma das dificuldades em lidar com ela encarando-a por ciecircncia eacute a natildeo
progressatildeo dos diferentes posicionamentos Hegel eacute um Kant superado Aristoacuteteles um
Platatildeo melhorado Embora os questionamentos possam ser desdobrados o empenho de
cada um desses grandes autores assim como o geacutermen inquiridor dos incipientes
discentes tem caracteriacutesticas proacuteprias e propriedade filosoacutefica quando se atecircm agrave questatildeo
que eacute sempre geradora de novas questotildees Daiacute seu caraacuteter dialogal Natildeo eacute possiacutevel sem a
diferenccedila natildeo eacute possiacutevel sem a identidade e isso natildeo quer dizer igualdade
O pequeno pensador natildeo se equivaleria agrave tradiccedilatildeo Honestamente falando ele natildeo
tem a mesma importacircncia histoacuterica nem sequer deve ter a mesma densidade no
questionar Todavia na singularidade do seu questionamento haacute ali agrave espreita o natildeo
88
pensado A experiecircncia que o caminhar do caminho proporciona revela uma existecircncia
sensiacutevel compreensiacutevel agrave medida que se experiencia e eacute dificilmente transmissiacutevel pois
arduamente conceituaacutevel
Afinal ningueacutem nunca comeu fruta alguma Fruta natildeo tem gosto nem cor nem
forma Sabemos da fruta apenas conceitualmente do relato do que seja uma fruta seu
sabor seu cheiro Come-se entretanto lsquoestarsquo banana lsquoestarsquo maccedilatilde lsquoestarsquo manga e como
tal elas jamais poderatildeo ser comidas novamente Esta sim eacute saboreada e infelizmente (ou
natildeo) soacute por quem caacute come ldquonatildeo se pode entrar duas vezes no mesmo riordquo (HERAacuteCLITO
1991 paacuteg 83)75 Pode-se contudo convidar a realizar quem queira a experiecircncia ediacutevel
com outra banana Em diaacutelogo gustativo nota-se que bananas jaacute foram comidas mas
nunca lsquoestarsquo senatildeo aqui nem estaria e por isso sabe-se e natildeo se sabe seu sabor Ela eacute
uacutenica no bananal propriamente proacutexima e diferente ldquono mesmo rio entramos e natildeo
entramos somos e natildeo somosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)76
O diaacutelogo tem que partir do proacuteprio do contraacuterio ele estaria fadado ao vozerio
reprodutivo sem qualquer compromisso consigo e com o outro (que eacute um consigo) Ele
natildeo tem que dizer tudo nem poderia natildeo dizer nada natildeo diz necessariamente o que deve
ser dito (deve ser para quem) nem se omite a dizer o requisitado Ambas as atitudes satildeo
partes da vontade dos interlocutores O diaacutelogo do proacuteprio apenas diz ou seja sua accedilatildeo eacute
medida pela sua possibilidade de accedilatildeo nada aleacutem nada aqueacutem
O sucesso dessa realizaccedilatildeo dessa perfeiccedilatildeo por sua vez soacute eacute possiacutevel com a
instauraccedilatildeo de um fator que assegure a sua consecuccedilatildeo a sua realizaccedilatildeo Se
por um lado esse fator pode ser entendido a partir da realizaccedilatildeo da citaccedilatildeo
acima [navegar eacute preciso viver natildeo eacute preciso]77 como a manutenccedilatildeo do
mesmo se impotildee que pensemos o que vem a ser esse mesmo O mesmo natildeo eacute
a mera realizaccedilatildeo e sim a condiccedilatildeo de possibilidade para que essa realizaccedilatildeo
se realize (JARDIM 2005 paacuteg 45)
Este proacuteprio dita a correspondecircncia com tradiccedilatildeo e ensino As condiccedilotildees de sua
manifestaccedilatildeo as quais perpassam pelas demandas situacionais pela histoacuteria pelos gostos
pessoais etc fazem parte do grande pacote que eacute a resposta E haacute ainda a vigiar o
75 ldquoποταμῷ γὰρ οὐκ ἔστιν εμβῆναι δὶς τῷ αὐτῷrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82) 76 ldquoποταμοῖς τοῖς αὐτοῖς ἐμβαίνομέν τε καὶ οὐκ ἐμβαίνομεν εἶμέν τε καὶ οὐκ εἶμενrdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 70) 77 Πλεῖν ἀνάγκη ζῆν οὐκ ἀνάγκη
89
inominaacutevel onde a matildeo humana nunca alcanccedila Como a resposta lida com esse vazio
Como dizer e agir perante o que natildeo se tem como responder O pensador diz que ldquonatildeo eacute
para falar [λέγειν] e agir dormindordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 79)78 e em um outro
fragmento ele se refere agrave morte como sendo ldquotudo que vemos acordados sono o que
vemos adormecidosrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 63)79 Talvez isso indique que estamos
fadados ao funesto ao que natildeo diz respeito agrave nossa vontade se queremos de fato viver
Por outro lado temos a vivecircncia adormecida Dormitando dirigimo-nos agrave vida
segura ou agrave impressatildeo de seguranccedila e dormimos a fim de que nada aconteccedila como se
debaixo das cobertas o monstro natildeo viesse nos pegar Nesse sentido o falar e o agir do
sono ignorando os ensinamentos do pensador satildeo o compromisso com a penumbra do
estado de sonolecircncia com o que chega sem nos afetar sem fazermos a experiecircncia
apenas um sonho nebuloso e fugaz
Trabalhando pois sobre o oacutebvio (mas nem por isso desprezaacutevel) natildeo eacute possiacutevel
dialogar dormindo e λέγειν infinitivo do verbo de mesma raiz de λόγος natildeo nos deixa
escapar desse sentido dialoacutegico Na resposta da filosofia para a tradiccedilatildeo se funda ao
menos a atenccedilatildeo do desperto Um responder que dialoga com o proacuteprio de cada um e
com aquilo comum a todos noacutes isto eacute a morte
Como se daacute o diaacutelogo na morte Esse eacute o tipo de colocaccedilatildeo que faz do filoacutesofo
algueacutem de pouco acesso Para uma pergunta absurda justifica-se com o espanto afinal
ningueacutem fala nada depois de morto como poderia entatildeo haver diaacutelogo Em se tratando
de Heraacuteclito talvez seja apenas uma idiossincrasia de pensador seu estilo de lidar com
as questotildees conforme se compreendia em De finibus bonorum et malorum Livro II
Capiacutetulo V paraacutegrafo 15 ldquoQuod duobus modis sine reprensione fit si aut de industria
facias ut Heraclitus lsquocognomento qui σκοτεινός perhibeturrsquo quia lsquode natura nimis
obscure memoravitrsquordquo (CIacuteCERO 1914 paacuteg 94)80 a saber ldquoO qual pode ser feito em dois
casos sem repreensatildeo se se procede intencionalmente como em Heraacuteclito que
78 ldquoκαὶ ὃτι οὐ δεῖ lsquoὥσπερ καθεύδοντας ποιεῖν καὶ λέγεινrsquordquo (HERAacuteCLITO apud ANTONINUS 1916 paacuteg
92) Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreaminernetdli20151834032015183403Marcus-Aurelius-
Antoninuspagen121mode2upgt Acesso em 06 ago 2017 79 ldquoθάνατός ἐστιν ὁκόσα ἐγερθέντες ὁρέομεν ὁκόσα δὲ εὕδοντες ὕπνοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 62) 80 Conforme nota da ediccedilatildeo de 1914 desta obra a citaccedilatildeo eacute provavelmente de Luciacutelio
90
lsquocognominado Obscuro haviarsquo pois lsquoniacutemio obscura memorava sua filosofiarsquordquo (CIacuteCERO
1960 paacuteg 87 ndash traduccedilatildeo livre)81
Ainda que a questatildeo da morte seja tratada por diversos setores de nossa sociedade
desde o acadecircmico e cientiacutefico ateacute o religioso se estabelece no mais das vezes um
diaacutelogo com mas fundamentalmente sobre a morte afinal ldquono decorrer dos uacuteltimos
seacuteculos pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciecircncia coletiva
sua onipresenccedila e sua forccedila de evocaccedilatildeordquo (BENJAMIN 1987 paacuteg 207) Heraacuteclito (1991
paacuteg 63) em seu fragmento 21 revestindo-se da alcunha da obscuridade propotildee um
diaacutelogo na morte ou a partir da morte Eacute estabelecido um desatino como se fosse possiacutevel
falar com a morte ou atraveacutes dela sem perecer Por outro lado eacute sugerido que realmente
se vive para e na morte Como isso eacute possiacutevel
Falar dormindo natildeo seria pois mais factiacutevel A psicanaacutelise por exemplo efetua
toda uma estrutura de conhecimento sobre a interpretaccedilatildeo dos sonhos Muitas religiotildees
tomam o sono por transe estado de consciecircncia alterada e ponte para as verdades ocultas
agrave vigiacutelia Uma vida guiada pelo sono se adequaria melhor agrave compreensatildeo geral do que
uma pela morte Imaginar um diaacutelogo com o sono eacute bem mais criacutevel do que o paradoxo
posto pelo pensador preacute-socraacutetico soacute reforccedilando o paradigma obscuro tanto dele quanto
da filosofia em geral
Era bem verdade que numerosos versos dos livros sagrados sobretudo dos
upanixades do Sama-Veda referiam-se a esse quecirc derradeiro mais iacutentimo Que
versos maravilhosos lsquoTua alma eacute o mundo inteirorsquo ndash rezava um deles e estava
escrito que o homem durante o sono o sono profundo entrava no proacuteprio
acircmago e habitava o Aacutetman82 Sabedoria milagrosa residia nesses poemas []
Mas onde se achariam os bracircmanes onde os sacerdotes os saacutebios ou os ascetas
que lograssem natildeo somente conhecer senatildeo tambeacutem viver essa profunda
sabedoria Onde estaria o homem perito que fosse capaz de realizar aquele
passe de maacutegica que transportasse a familiaridade com o Aacutetman desde o sono
para o estado de vigiacutelia para a vida de todos os momentos e a demonstrasse
por atos e palavras (HESSE 2003 paacuteg 12)
Entre os diferentes modos da fala o que estaacute em jogo aqui eacute como se portar diante
de λέγειν Apresenta-se enquanto colocaccedilatildeo primordial a ausculta da unidade de λόγου
81 ldquoDas kann in zwei Faumlllen geschehen ohne Anstoszlig zu erregen wenn man entweder absichtlich so
verfaumlhrt wie Heraklit der den Beinamen bdquoder Dunkleldquo erhielt weil er uumlber die Gesetzmaumlssigkeit der Natur
gar zu dunkel berichteterdquo 82 Do sacircnscrito atma essecircncia sopro alma Na filosofia hindu significa o proacuteprio ou a alma Sua origem
remete ao proto-indoeuropeu etmen sopro conforme The Online Etymology Dictionary Disponiacutevel em
lthttpwwwetymonlinecomindexphpterm=atmangt Acesso em 02 ago 2017
91
conforme Hipoacutelito em Refutaccedilatildeo de todas as heresias IX 9 1 ao citar Heraacuteclito (apud
KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 193) ldquoDando ouvidos natildeo a mim mas ao
Logos eacute avisado concordar em que todas as coisas satildeo umardquo Ainda que se estiveacutessemos
mortos ou dormindo tudo natildeo passaria de uma manifestaccedilatildeo do λόγος daiacute o pensador
natildeo estar visando a princiacutepio sua clareza imediata mas a concordacircncia nesse domiacutenio
ontoloacutegico no qual tudo eacute um ldquoO mesmo eacute vivo e morto vivendo-morrendo a vigiacutelia e o
sono tanto novo como velho pois estes se alterando satildeo aqueles e aqueles se modificando
satildeo estesrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 83)83
Nesse sentido tanto o que vemos acordados quanto o que vemos adormecidos
ldquodariardquo no mesmo tudo seria um ndash apenas natildeo damos conta disso Natildeo prestamos atenccedilatildeo
agrave unidade e nos debatemos entre este ou aquele caminho entre ser algo ou parecer ser
algo entre o inteligiacutevel ou o sensiacutevel entre morrer ou dormir Segue um trecho do
soliloacutequio do personagem Hamlet Ato II Cena I insigne caso do dilema de morrer e
dormir
Ser ou natildeo ser Eis a questatildeo Que eacute mais
nobre para a alma suportar os dardos
e arremessos do fado sempre adverso
ou armar-se contra um mar de desventuras
e dar-lhes fim tentando resistir-lhes
Morrer dormir mais nada Imaginar
que um sono potildee remate aos sofrimentos
do coraccedilatildeo e aos golpes infinitos
que constituem a natural heranccedila
da carne eacute soluccedilatildeo para almejar-se
Morrer dormir dormir Talvez sonhar (SHAKESPEARE 2011 paacuteg 70)
Natildeo obstante o filoacutesofo se esmera por um sentido e desaconselha o outro o limite
posto eacute fundamental Diz de sua filosofia apresentando como mais conveniente para o
entendimento dela seguir pela morte do que pelo sono Limitando respondendo aderindo
a uma posiccedilatildeo esse pensamento define sem encerrar ou seja sem fechar por resolvida a
questatildeo do uno pois entre um ou outro haacute um e outro Morrer e dormir estatildeo em tensatildeo
perpeacutetua mesmo na adesatildeo de uma por outra ldquoO homem toca a luz na noite quando com
83 ldquoταὐτὸ ζῶν καὶ τεθνηκὸς καὶ ἐγρηγορὸς καὶ καθεῦδον καὶ νέον καὶ γηραιόνmiddot τάδε γὰρ μεταπεσόντα ἐκεῖνά
ἐστι κἀκεῖνα πάλιν μεταπεσόντα ταῦταrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 82)
92
visatildeo extinta estaacute morto para si mas vivendo toca o morto quando com visatildeo extinta
dorme na vigiacutelia toca o adormecidordquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 65)84
Heraacuteclito em sua filosofia abraccedilou o paradoxo da linguagem no qual ele concebe
como possiacutevel a morte em sintonia com a vida e de modo semelhante o sono com a
vigiacutelia ldquoDe todas as coisas a guerra eacute pai de todas as coisas eacute senhor a uns mostrou
desses a outros homens de uns fez escravos de outros livresrdquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 73)85 Πόλεμος a guerra a polecircmica sentidos todos que abarcam a tensatildeo inerente
e paradoxal que natildeo resume tudo nem cessa tudo pelo contraacuterio manteacutem acesa a disputa
em tudo Natildeo eacute uma questatildeo de escolha permanecer a dormir ou despertar para a vida
que tambeacutem natildeo aparece com negaccedilatildeo da morte Trata-se concomitantemente de viver
morrendo e de adentrar demoradamente a morte enquanto se vive A morte natildeo eacute uma
maldiccedilatildeo como se pretende pintar mas traccedilo distintivo dos mortais
Morte aqui eacute plenitude de realizaccedilatildeo do homem sua grande saiacuteda de si ndash ex-
istecircncia assim como uma saiacuteda em si dentro do proacuteprio que o define A busca natildeo eacute
incansaacutevel ao contraacuterio ela se plenifica quando cansamos pois eacute nosso destino tanto
correr atraacutes quanto deixar ir A humanidade vive partindo de laacute para caacute a decidir e a
inventar de mal a pior e desta para melhor tal atitude leva-a a criar e a ansiar pela criaccedilatildeo
mas como ela natildeo bastaraacute leva-o tambeacutem a se insatisfazer pelo criado e em sequecircncia
a produzir mais Daiacute a exaustatildeo buscamos por algo que nunca se basta Uma hora cansa
Uma hora para Partir em uacuteltima instacircncia eacute morrer
Heraacuteclito relega morte e sono agrave experiecircncia do ver Em grego o substantivo nesse
caso diz objetivamente do aspecto ou aparecircncia de uma coisa ou pessoa seus contornos
da apariccedilatildeo de algo e subjetivamente do ato de ver dignidade posiccedilatildeo (LIDDELL
SCOTT 1940 Ὄψις) Esse modo de encarar a visatildeo natildeo foca exclusivamente no que o
homem vecirc ou pode ser visto por ele mas chama atenccedilatildeo ao que se dispotildee agrave vista
manifesta-se aos olhos dos mortais e dos imortais Faz-se presenccedila mas nem por isso
torna-se presente a todos
Com a extinccedilatildeo da visatildeo morte e sono se aproximam como se ao cerrar os olhos
das muacuteltiplas atenccedilotildees fosse mais propiacutecio a ausculta do λόγος Depois de um dia
84 ldquoἄνθρωπος ἐν εὐφρόνῃ φάος ἅπτεται ἑωυτῷ ἀποσβεσθεὶς ὄψεις ζῶν δὲ ἅπτεται τεθνεῶτος εὕδων
ἐγρηγορὼς ἅπτεται εὕδοντοςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 64) 85 ldquoπόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι πάντων δὲ βασιλεύς καὶ τοὺς μὲν θεοὺς ἔδειξε τοὺς δὲ ἀνθρώπους τοὺς
μὲν δούλους ἐποίησε τοὺς δὲ ἐλευθέρουςrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 72)
93
exaustivo o sono ateacute que seria muito bem-vindo Em contrapartida pela experienciaccedilatildeo
do visiacutevel o homem heracliacutetico precisa decidir Satildeo as escolhas impostas pelo proacuteprio
viver e para isso natildeo deve estar dormindo mas ir ao encontro do λόγος na morte esse
embate vivo e contiacutenuo Deve-se como quem tem uma obrigaccedilatildeo natildeo com a moral
vigente mas com o que impele agrave plenitude de sua constituiccedilatildeo Οὐ δεῖ natildeo eacute para natildeo se
deve conforme fragmento 73 falar e agir a dormir Οὐ eacute adveacuterbio de negaccedilatildeo e δεῖ
(LIDDELL SCOTT 1940)86 verbo que joga com os sentidos de precisar necessitar
querer sobremaneira etc Nossa obrigaccedilatildeo eacute com a escuta do Um natildeo de um pensador de
uma sumidade ou de um conjunto delas no tempo embora natildeo seja possiacutevel se
desvencilhar totalmente disso
Morte e vida morte e sono satildeo o conflito vigorando ldquoo contraacuterio em tensatildeo eacute
convergente da divergecircncia dos contraacuterios a mais bela harmoniardquo (HERAacuteCLITO 1991
paacuteg 61)87 Claro que no livre caminho das escolhas qualquer posiccedilatildeo passa por
imposiccedilatildeo e a fala de um cala a voz do outro Tomar uma escolha dentro da loacutegica do
certo e do errado visa a cessaccedilatildeo do combate Trata-se caacute da harmonia natildeo da anulaccedilatildeo
da diferenccedila Por mais responsaacuteveis que desejemos ser com os homens apenas podemos
convidaacute-los ensinar propondo encaminhamentos caso contraacuterio seria impor nossa
vontade dizer como se faz prescrever e doutrinar
O perigo de qualquer ajuda estaacute em acreditar que um sujeito deteacutem a resposta
definitiva e simultaneamente que outrem eacute incapaz de alcanccedilaacute-la Quando estender a
matildeo Mesmo se houvesse um empenho para tornar o que eacute pequeno e simples aos nossos
olhos em grandioso natildeo eacute possiacutevel ignorar a singularidade da pequenez pois cada
responder tem seu quinhatildeo de equiacutevoco e para cada soluccedilatildeo uma pretensatildeo de verdade
Perante os conflitos a oposiccedilatildeo ou a treacutegua busca a cessaccedilatildeo do embate num campo de
batalha um quer derrotar o outro ateacute que natildeo haja batalha ou entatildeo fazem-se as pazes
volta-se ao lar pois a batalha findou Haacute a situaccedilatildeo conflitante e sua resoluccedilatildeo haacute a causa
e a consequecircncia mas ldquonatildeo compreendem como concorda o que de si difere harmonia
de movimentos contraacuterios como do arco e da lirardquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71)88 isto
86 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei3
Dgt Acesso em 26 set 2017 87 ldquoτὸ ἀντίξουν συμφέρον καὶ ἐκ τῶν διαφερόντων καλλίστην ἁρμονίηνrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 60) 88 ldquoοὐ ξυνιᾶσιν ὅκως διαφερόμενον ἑωυτῷ συμφέρεταιmiddot παλίντονος ἁρμονίη ὅκωσπερ τόξου καὶ λύρηςrdquo
(HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 70)
94
eacute natildeo se opor natildeo se igualar mas manter a tensatildeo Aqui tomar uma decisatildeo dever fazer
isso ou aquilo eacute soacute mais um modo de caminhar no caminho
Apenas por ser dual que pode haver a presunccedilatildeo da unidade do real Embora o um
seja o princiacutepio gerador que conflagra a aproximaccedilatildeo das distacircncias conforme fragmento
50 isso soacute eacute possiacutevel porque aparentemente nem tudo eacute proacuteximo Do um como princiacutepio
ao dois como unidade natildeo eacute soacute um belo tiacutetulo mas faz referecircncia direta agrave discussatildeo
ontoloacutegica em torno do λόγος heracliacutetico Por haver tensatildeo haacute a possibilidade de
complemento mantendo assim uma oposiccedilatildeo que de fato se opotildee ou seja natildeo anseia
pelo teacutermino de sua posiccedilatildeo oposta Nessa realidade ambivalente a decisatildeo proferida
sussurra a incapacidade de perda da singularidade dos contraacuterios no um Por isso seja
qual for o caminho morrer ou dormir este natildeo se soma com o aquele na unidade aquele
natildeo se sintetiza com este morrer eacute dormir e natildeo eacute dormir na unidade do ciacuterculo
Simultaneamente dizer que ldquotudo eacute umrdquo (HERAacuteCLITO 1991 paacuteg 71) eacute o modo mais
simples no qual pulsa o vigor originaacuterio do pensamento de dizer que tudo natildeo eacute um
[] uma paisagem que se apresenta sempre atraveacutes de dois binocircmios um o
mais secreto e escondido que faz brotar dentro de si mesmo um outro que se
revela que se faz visiacutevel Eacute como se esses pensadores [Heraacuteclito e Parmecircnides]
dissessem que toda coisa tudo aquilo que eacute natildeo estaacute nunca sozinha no sentido
de algo encerrado em si mesmo mas sempre o eacute junto a uma outra coisa em
sintonia com a alteridade com a qual a um soacute tempo se relaciona e se opotildee
constituindo com ela uma unidade (MICHELAZZO 1999 paacuteg 85)
Tudo eacute tatildeo singular quanto dual e plural e por isso ἓν πάντα εἶναι eacute paradoxal
necessariamente Nem poderia ser diferente afinal supondo que tudo fosse um apenas
com o rigor matemaacutetico de 1 ne 2 e o universo cessasse de possibilidades e de tudo restasse
somente um lsquouacutenica cadeirarsquo Ou lsquouacutenica canetarsquo ateacute mesmo lsquouacutenico homemrsquo Ningueacutem
haveria de sentar-se naquela ou nenhum poema seria escrito com esta Qualquer
possibilidade de vida seria sem sentido Da mesma forma se tudo natildeo fosse um se natildeo
houvesse essa relaccedilatildeo entre minus entre as coisas entre as pessoas entre os instantes do tempo
minus qualquer transitoriedade cessaria natildeo haveria enigmas nem caminhos para a cadeira
ser sentada a caneta virar poema e o homem morrer
Morte natildeo eacute e eacute vida vigiacutelia natildeo eacute e eacute sono assim como o uno eacute e natildeo eacute uno O
que eacute o uno No momento em que nos atemos ao momento o mesmo natildeo eacute mais o mesmo
e outro momento eacute apenas para jaacute natildeo ser outro momento Por que natildeo medir a unidade
95
se ao fim ela permaneceraacute unidade Como medir o que natildeo pode ser medido mdash
Medindo por mais impreciso que possa ser Se se faraacute crenccedila na verdade dessa mediccedilatildeo
satildeo outros quinhentos
96
3 Pensando a Linguagem
O homem fala O λόγος tambeacutem fala Tudo fala Em meio ao vozerio dos seres
nem sempre eacute possiacutevel ouvir a proacutepria voz Mesmo sem sua audiccedilatildeo o carro anda o barco
zarpa e a vida segue surda Sem o cuidado promovido pelo ouvido o diaacutelogo dos seres
cessa e batem-se cabeccedilas na multiplicidade amorfa que natildeo se sabe unidade
Natildeo agrave toa almejou-se sair da caverna como uma compreensatildeo de resgate de uma
ausculta no caso das ideias em meio agrave rede de sombras A filosofia ao longo de sua
histoacuteria tem se preocupado em diversos momentos com o que constitui e daacute sentido aos
seres Pergunta-se pela essecircncia a tradiccedilatildeo responde com a aacutegua em Tales com o fogo
em Heraacuteclito mas tambeacutem com εἶδος com Deus com ratio etc
De tudo que a filosofia fez ou faz ainda hoje laacute estaacute ora encoberta ora mais direta
a pergunta pelo que eacute Na introduccedilatildeo de ldquoWas ist Metaphysikrdquo de 1949 Heidegger
(1955 paacuteg 35) vai nos colocar diante da seguinte afirmaccedilatildeo ldquoDas Seiende das in der
Weise der Existenz ist ist der Mensch Der Mensch allein existiertrdquo Em versatildeo brasileira
de Os pensadores Ernildo Stein traduziu a sentenccedila como ldquoo ente que eacute ao modo da
existecircncia eacute o homem Somente o homem existerdquo (HEIDEGGER 1979b paacuteg 59) Aqui
nos dispomos a ela como uma duacutevida eacute possiacutevel que somente o homem exista Quase
sem dificuldades pode-se protestar pelo absurdo ensejado na asserccedilatildeo heideggeriana
Afinal a seu lado haacute um bicho este ser estaacute no mundo tambeacutem Ele respira come
e interage com os demais seres Ele natildeo existe Para negar que natildeo soacute o homem existe
precisariacuteamos perguntar o que eacute existecircncia e em seguida de que modo o homem eacute e os
demais seres natildeo satildeo Naturalmente soacute o homem existir natildeo nega que o homem eacute nem
que os demais seres satildeo O que estamos tentando fazer eacute responder agrave escuta do ser do
homem na medida em que o ser do homem eacute como o ser do homem pode ser ndash e somente
ele pode ser
Natildeo se pressupotildee que soacute o homem possa ser Tudo eacute Entretanto a pergunta pelo
ser ganha contornos diferentes se atentarmos ao modo como se eacute ou seja como tornar-se
a si mesmo como apropriar-se do que eacute proacuteprio No livre caminho das escolhas qualquer
posiccedilatildeo poderia passar por imposiccedilatildeo e calar a voz do outro por isso a importacircncia de se
atentar aos modos de ser
97
Opta-se por isso ou aquilo daacute-se respostas a esmo sem o devido cuidado Tais
consideraccedilotildees a respeito das escolhas passa pela vontade (sou algo porque quero) e em
sequecircncia pela exclusatildeo (vocecirc natildeo eacute algo porque eu natildeo quero) O homem fala sob
pressatildeo Ele precisa responder agraves exigecircncias do cotidiano e prover de soluccedilotildees a lousa
Por esse vieacutes suas escolhas pressionadas acabam por gerar opressatildeo tanto de si quanto
dos demais Quem estaacute oprimido necessita exprimir-se e ao ser natildeo seria diferente
O ser precisaria ser exprimido precisaria se exteriorizar isto eacute existir Por sua
vez o ser seria uma interioridade opressora da existecircncia Nesse sentido ser e existir
fariam praticamente oposiccedilatildeo De um lado o ser exigindo sua expressatildeo a ponto de forccedilar
uma existecircncia e do outro o natildeo ser cuja inexistecircncia estaria agrave mercecirc do que eacute
Da oposiccedilatildeo busca-se a cessaccedilatildeo dos conflitos numa sociedade que esqueceu o
paradoxo de ser e natildeo ser Haacute a situaccedilatildeo conflitante e o depois haacute a causa e o depois Daiacute
encarar a pergunta pela essecircncia por algo de resoluto ou a fala do homem sem a tensatildeo
dos contraacuterios externando sua voz agraves demais falas Natildeo A pergunta pela fala natildeo cala
natildeo precisa calar
Tendo em vista o dito soacute o homem eacute ao modo da existecircncia natildeo conclui que os
demais seres natildeo satildeo nem que natildeo existem somente que natildeo existem como o homem
existe Em outras palavras os demais seres natildeo ldquoexistemrdquo porque o homem existe E de
fato os demais seres natildeo existem na sentenccedila heideggeriana mas ainda assim se
atentarmos para o natildeo dito no dito devemos dizer natildeo ao fato de o homem existir na
causalidade referencial dos demais seres natildeo existirem
Assim a existecircncia natildeo nega algo aos outros seres mas afirma uma singularidade
no homem Nesse caso a afirmaccedilatildeo eacute escuta agrave fala do ser Agrave medida da fala do λόγος o
homem escuta Ser e λόγος natildeo se confundem em significado pelo contraacuterio se
complementam em sentidos no paradoxo da linguagem um servindo de morada ao outro
(HEIDEGGER 1947 paacuteg 5) Agrave medida dessa escuta o homem decide e responde ldquono
dito a fala recolhe e reuacutene tanto os modos em que ela perdura como o que pela fala
perdura ndash seu perdurar seu vigorar sua essecircnciardquo (HEIDEGGER 2003 paacuteg 12)
O passarinho eacute o homem escuta o canto do passarinho A aacutervore eacute o homem vecirc
se ela caiu ou natildeo se fez barulho ou natildeo ou seja a escuta proacutepria agrave fala do ser nomeia agrave
medida que pode nomear na correspondecircncia das limitaccedilotildees da escuta Cantar e cair satildeo
somente disposiccedilotildees da fala do homem para compreender o ser do paacutessaro e da aacutervore
98
Retoacuterica 1
Cantam os paacutessaros cantam
Sem saber o que cantam
Toda sua compreensatildeo eacute sua garganta (PAZ 1989 p 19 ndash traduccedilatildeo livre)89
Chamar de existecircncia o modo proacuteprio de o homem escutar a fala do ser natildeo nega
que os demais seres tenham um modo proacuteprio de escuta e fala nem esgota o ser do homem
na existecircncia O entendimento da fala humana natildeo se consuma no grito ela interpreta diz
o oacutebvio repete a diferenccedila e cala Jaacute o paacutessaro a planta e as pedras satildeo exclusivamente
Exclusivo natildeo porque natildeo possam corresponder ao ser mas porque o homem que
corresponde ao ser do homem natildeo pode deixar de ouvir-se Em outras palavras a
existecircncia eacute a correspondecircncia agrave fala do ser agrave medida do homem Nesse sentido tudo que
eacute para o homem existe tambeacutem para o homem quer dizer soacute pode ser interpretado
compreendido assimilado dissecado estudado e experienciado agrave medida humana e agrave
escuta da fala do ser ao homem Daiacute a margem sempre errada no encontro das existecircncias
Equivocadas estatildeo sempre a se ouvir Existir natildeo eacute ser Existir eacute uma possibilidade Ser eacute
o possiacutevel
De maneira semelhante quando a filosofia se pergunta por como ser filosofia ela
natildeo anula suas variadas respostas assim como a de outras faculdades do pensamento
sobre ela mas diz do modo proacuteprio de dizer atenta ao que eacute ldquopensar desde a linguagem
significa alcanccedilar de tal modo a fala da linguagem que essa fala aconteccedila como o que
concede e garante uma morada para a essecircncia para o modo de ser dos mortaisrdquo
(HEIDEGGER 2003 paacuteg 10) A fala do homem eacute uma concessatildeo da fala do λόγος
Quanto mais atento formos agrave escuta da fala do λόγος mais habitaremos nela
O λόγος estaacute presente nas falas mas natildeo se consome nelas se encontra nas
decisotildees nossas de cada dia mas natildeo se esgota ali O esgotamento faz parte pois a escuta
atenta demanda certo tardamento demora na morada da linguagem tardanccedila que nem
sempre dispomos Normalmente cremos nas falas imediatas porque precisamos de
respostas imediatas por exemplo o dinheiro para a mensalidade do plano de sauacutede Tanta
correria que natildeo haacute tempo nem para perceber a questatildeo que permanece inconclusa e
89 Retoacuterica 1 Cantan los paacutejaros cantan sin saber lo que cantan todo su entendimiento es su garganta
99
doadora de sentidos por exemplo o que eacute cuidar por que o cuidado se desdobra na
instituiccedilatildeo meacutedica e por aiacute vai
A esse papel delongado na fala dos homens em ressonacircncia agrave do λόγος prestam-
se personagens especiacuteficas ldquoA linguagem eacute a casa do ser Nessa habitaccedilatildeo mora o
homem Poetas e pensadores satildeo seus vigiasrdquo (HEIDEGGER 1947 paacuteg 5 ndash traduccedilatildeo
livre)90 Significa dizer que haacute uma disposiccedilatildeo de tempo proacutepria que se distancia da hora
funcional para parar e para criar uma temporalidade memoraacutevel para movimentar
sentidos de uma coisa qualquer um cuidado com as coisas para operar a partir delas
interpretando experienciando tornando-as de fato obra
Uma unidade que natildeo eacute lsquocoisarsquo mas lsquoobrarsquo ndash quer dizer antes de tudo combate
Porque o mundo aspira sempre a dominar a terra a terra aspira sempre a reter
o mundo Deixar o mundo ser mundo e a terra ser terra eacute portanto mantecirc-los
no seu afrontamento vivo afrontamento que eacute o uacutenico a permitir-lhes ser cada
um para si e ser um para o outro Instigadora do combate do mundo e da terra
a obra eacute o espaccedilo de realizaccedilatildeo da unidade (ZARADER 1998 paacuteg 252)
Nesse sentido pode parecer ateacute que poetas e pensadores podem se ausentar por
completo da ordem das coisas e das exigecircncias mundanas Natildeo natildeo podem como
tambeacutem natildeo pode o motorista fugir agrave conduccedilatildeo do veiacuteculo e a sentinela ao posto sem
colocar em risco sua obra Portanto tambeacutem os poetas e pensadores natildeo podem se
ausentar do cuidado ao λόγος Natildeo por escolherem ser poetas e pensadores e por isso
precisarem cuidar do λόγος mas sim porque a escuta do λόγος vige neles que haacute poesia e
pensamento Por a questatildeo urgir primordialmente que a possibilidade de responder
acontece
A correspondecircncia agrave fala do λόγος eacute proacutepria de cada um assim como sua ausculta
Defronte de semelhantes contratempos as pessoas reagem diferentemente conforme
Metafiacutesica Livro IV Capiacutetulo 2 Seccedilatildeo 1003a Linha 33 ldquoτὸ δὲ ὂν λέγεται μὲν πολλαχῶςrdquo
(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 130) a saber ldquoo ser se diz em muacuteltiplos significadosrdquo
(ARISTOacuteTELES 2002 paacuteg 131) Se o dito eacute pois diverso tambeacutem seraacute nossa
interpretaccedilatildeo Eacute o caso da lesma que pode ser apreendida pelo livro de biologia ou
enojada pela dissecaccedilatildeo da crianccedila curiosa E pode ser cantada de verso em prosa segue
90 Die Sprache ist das Haus des Seins In ihrer Behausung wohnt der Mensch Die Denkenden und
Dichtenden sind die Waumlchter dieser Behausung
100
de vento em popa os desdobramentos do λόγος do uno divisiacutevel cujas partes se mostram
distintamente a noacutes
De cajado
rutilante
eremita
do profundo
vai a lesma
cada instante
recriando
nosso mundo (LEGRENDE 2011 paacuteg 57)
No modo moderno de lidar com o embate do uno surge a decisatildeo da vontade
Decide-se pela vida decide-se pelo sono e por vezes pela morte Esquecida a dualidade
opta-se por um ou por outro Nada fora do comum jaacute que nem sempre estamos cientes agrave
ausculta do λόγος Conscientes ou natildeo haacute o uno e perpetramos sua rede de manifestaccedilotildees
sem o saber sem passar pela nossa vontade E mesmo quando cientes natildeo basta querer
para poder Natildeo eacute apenas por gostarmos de dirigir que podemos pegar do carro e sair por
aiacute tem toda uma teacutecnica e empenho envolvidos no processo Natildeo eacute porque estudamos
arduamente as lesmas e sabemos as respostas para todas as nossas perguntas que estamos
perante agrave duacutevida genuiacutena de pensamento vai a lesma de cajado rutilante eremita do
profundo cada instante ela recria ou natildeo nosso mundo como diria Legrende (2011 57)
Todos colaboramos tendo em vista um fim comum uns consciente e
deliberadamente outros sem o saber como Heraacuteclito [fragmento 75] (penso
eu) diz daqueles que dormem que satildeo obreiros e colaboradores das coisas que
se fazem no mundo Mas os homens cooperam de diferentes maneiras mesmo
aqueles que criticam e tentam opor-se e destruir pois o universo necessita ateacute
desses homens Resta-te perceber entre que espeacutecie de obreiros estaacutes aquele
que governa o universo faraacute certamente uso adequado de ti e te receberaacute entre
os que jaacute colaboram e os que se dispotildeem a colaborar Mas natildeo ocupes um lugar
como o verso mediacuteocre e ridiacuteculo na trageacutedia de que fala Criacutesipo91 (MARCO
AUREacuteLIO 1967 paacuteg 97)
Por isso que nem o poeacutetico-filosoacutefico nem o teacutecnico-funcional estatildeo agrave medida do
λόγος aqueacutem ou aleacutem entre si Se ao inveacutes de fazer um poema decidiacutessemos medir o
tamanho de uma coluna de maacutermore esta mediccedilatildeo natildeo calaria necessariamente a
91 Criacutesipo foi um conhecido estoico grego Esta passagem se refere ao fragmente 1181 da ediccedilatildeo de von
Arnim conforme nota do original
101
desmedida do Coliseu seus diversos tamanhos a medir e a natildeo medir A medida que mede
o tamanho pelos nuacutemeros da matemaacutetica eacute mais um modo de ouvir a fala do λόγος Ainda
que definitivamente natildeo seja o λόγος em sua totalidade
Daiacute a dificuldade da metafiacutesica nos moldes dicotocircmicos de νοῦς e δόξα ao se
deparar com Heraacuteclito O Obscuro natildeo estaacute claro por natildeo se articular tradicionalmente
ou seja dentro de certos preceitos de oposiccedilotildees e argumentaccedilotildees esperadas inclusive
logicamente esperadas A desculpa de que sua escrita nos foi relegada fragmentada natildeo
convence jaacute que tantos outros escritos antigos estatildeo em fragmentos aleacutem do que a
alcunha adveacutem de uma eacutepoca na qual eacute concebiacutevel que alguns dizeres do pensador
estivessem ateacute em outras dimensotildees
Σκοτεινός natildeo eacute devido somente ao seu modo de se manifestar mas tambeacutem a
como seus interlocutores o podiam compreender Sua obscuridade faz jus agrave parcela de
confusatildeo de natildeo compreensatildeo e de tensatildeo do seu pensamento a fim de que o λόγος
retenha seu misteacuterio aquele natildeo dito em todo dizer como eacute fruto do excesso de
luminosidade na concatenaccedilatildeo das ideais com as quais seus leitores estariam
acostumados Essa medida torna-se problemaacutetica quando roga para si o que o λόγος eacute em
sua totalidade natildeo permitindo assim outras manifestaccedilotildees Como se impossiacutevel fosse o
ponto fora da curva
31 Linguagem e limite
Natildeo eacute de agora a questatildeo de como a filosofia se compreende E jaacute que a proacutepria
natildeo estaacute agrave parte do mundo compreender-se eacute em alguma medida compreender o mundo
Do mesmo modo o mundo encara a filosofia com as garras afiadas com que apanha tudo
o que encontra deixando pouco espaccedilo para brechas ou pontas soltas ldquoa incerteza sempre
foi uma fonte suprema de medordquo (BAUMAN 2010 paacuteg 25) Por natildeo se restringir a um
tempo especiacutefico esse incocircmodo aparece nos preacute-socraacuteticos e atravessa as eras
inquietando os homens
Se vale mais a pena morrer do que sonhar Isso certamente soa como algo senatildeo
impossiacutevel difiacutecil de decidir pois natildeo eacute uma pergunta funcional A permanecircncia em
102
estado de vigiacutelia daacute o tom da resposta heracliacutetica na mesma medida em que destoa do
status quo que deseja transformar o caminho filosoacutefico num passo a passo Assim segue
a pergunta conforme paraacutegrafo 309 de Philosophische Untersuchungen ldquoWas ist dein
Ziel in der Philosophie mdash Der Fliege den Ausweg aus dem Fliegenglas zeigenrdquo isto eacute
ldquoQual eacute seu objetivo na filosofia mdash Mostrar agrave mosca a saiacuteda do mosqueirordquo
(WITTGENSTEIN 1971 paacuteg 131 ndash traduccedilatildeo livre) a indicar outro caminho aleacutem do
aparente uacutenico jeito que nesse caso seria o fim do inseto
Ao mostrar ensina-se um caminho diz-se o que a mosca pode fazer aleacutem de se
debater frustrantemente Natildeo que ela faraacute o dito Tambeacutem natildeo haacute garantias de sucesso
pela simples audiccedilatildeo nem pela execuccedilatildeo Zeigen convida anuncia solenemente o que
antes era dado como certo a fim de que a atenccedilatildeo devida possa ser despendida
Etimologicamente esse verbo tem a raiz indo-germacircnica dįk- (KLUGE 1899 paacuteg 433
GRIMM GRIMM 1971 Zeigen)92 a mesma de ensinar em inglecircs (DICTIONARY
Teach)93 mostrar em grego (LIDDELL SCOTT 1940 Δείκνυμι)94 e dico dizer em latim
(GLARE 1968 paacuteg 537)
Haacute muito que mostrar algo eacute apenas ldquo1 oferecer agrave vistardquo (HOUAISS 2009a
Mostrar) dizer eacute ldquo1 expor atraveacutes de palavrasrdquo (HOUAISS 2009a Dizer) e ensinar eacute ldquo1
repassar ensinamentos sobre algo doutrinarrdquo (HOUAISS 2009a Ensinar) O domiacutenio da
funcionalidade preza pela presteza e reprodutibilidade logo tende-se ao uso mecacircnico das
palavras esvaziadas de significaccedilatildeo para o manejo ordinaacuterio com elas Isto equivale
agravequilo este siacutembolo sonoro representa tal gesto ou aquele objeto e por aiacute vai
Ainda a respeito dos sentidos de zeigen cabe detalhar um pouco sua relaccedilatildeo com
o verbo latino dico primeira pessoa do singular do presente dos verbos cujos infinitivos
satildeo dicare e dicere Ambos significam dizer mas com certos sentidos mais
pormenorizados em um verbete do que no outro Sobre as diferenccedilas entre eles
92 Disponiacutevel em lthttpwoerterbuchnetzdecgi-
binWBNetzwbgui_pysigle=DWBamplemid=GZ03301ampmode=Vernetzungamphitlist=amppatternlist=ampmain
mode=gt Acesso em 05 ago 2017 93 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowseteachs=tgt Acesso em 05 ago 2017 94 Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Ddei2
Fknumigt Acesso em 05 ago 2017
103
encontramos em dicare referecircncias a ldquodedicar devotar consagrarrdquo e em dicere ldquofazer um
juramento votar dar evidecircnciardquo (GLARE 1968 paacuteg 537)95
Embora o uso de dicare mantenha um tom cerimonioso em alguns contextos por
tratar da sagraccedilatildeo e da dedicaccedilatildeo a um deus a uma figura incontestadamente de
importacircncia dicere daacute seu testemunho pelo dizer ldquoComo orare dico tem um caraacuteter
solene e teacutecnico eacute um termo da liacutengua da religiatildeo e do direitordquo (ERNOUT MEILLET
2001 paacuteg 172 ndash traduccedilatildeo livre)96 Um mostrar que se diz Os sentidos dos dois vocaacutebulos
confluem entre si atraveacutes da voz que traz agrave tona o sagrado seja na evocaccedilatildeo da divindade
seja na presenccedila da verdade Um dizer que mostra faz evocar trazer agrave palavra o vigor do
sagrado ldquoA raiz indo-europeia wekw- [de evocar voz] indicava a emissatildeo de voz com
todas as forccedilas religiosas e juriacutedicas que delas resultamrdquo (ERNOUT MEILLET 2001
paacuteg 754 ndash traduccedilatildeo de Manuel Antocircnio de Castro)97
Concomitantemente a abstraccedilatildeo da realidade em conceitos na ψυχῇ platocircnica
conforme seccedilatildeo 511d da Repuacuteblica tem se demonstrado eficiente em se tratando do
empobrecimento da experiecircncia sensiacutevel Permitindo entre outras coisas postergar o
trato com as palavras isto eacute sabendo o significante e o significado basta aplicaacute-los
quando for mais conveniente O visiacutevel eacute limitado existindo apenas ateacute onde nossos olhos
alcanccedilam poreacutem o invisiacutevel as ideias abstratas independem de um objeto especiacutefico
pelo contraacuterio podem ser aplicadas a qualquer coisa Semelhantemente as palavras
sofreram um enfraquecimento de sua caracteriacutestica de evocaccedilatildeo de trazer agrave presenccedila na
nomeaccedilatildeo para serem compreendidas na loacutegica significante e significado Assim o que
algo significa pode ser reproduzido dicionarizado definido e arbitrariamente somente
relaciona-se com a coisa em questatildeo A experiecircncia oral concreta eacute limitada e irrelevante
natildeo se distinguindo em linhas gerais uma da outra
O mostrar agrave mosca natildeo pode esperar pois eacute uma experiecircncia radical Nem por isso
estaacute em sujeiccedilatildeo agrave pressa do ponteiro Diz conceitualmente o significado do significante
mas tambeacutem marca a ferro e fogo o bicho com o ensinamento de sua finitude Ratifica a
95 ldquo2 To dedicate devoterdquo e ldquo6 to make a oath to vote to give evidencerdquo respectivamente 96 Comme orare dico a un caractegravere solennel et technique crsquoest un terme de la langue de la religion et du
droit 97 La racine wekw- eacutetait en indo-europeacuteen celle qui indiquait leacutemission de la voix avec toutes les forces
religieuses et juridiques qui en reacutesultent
104
situaccedilatildeo limiacutetrofe da mosca em contato com o mosqueiro e alerta-a para uma condiccedilatildeo
aleacutem do vidro reconfigurando seus limites delimitando e deslimitando
Somente porque o filoacutesofo estaacute sempre a jogar com a linguagem que ele pode fazer
filosofia Por estar em concordacircncia com a fala da linguagem ele traccedila tanto um paralelo
com a tradiccedilatildeo quanto reconhece seus pontos sensiacuteveis e dignos de questionamento Por
estar em discordacircncia com a fala da linguagem o filoacutesofo pode responder a ela
cuidadosamente habitando seus limites e radicalmente atuando para sua criaccedilatildeo e
consequentemente destruiccedilatildeo ldquo56 Os limites da minha liacutengua [grifo no original]
significam os limites do meu mundordquo (WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 148 ndash traduccedilatildeo
livre)98
Logo ele eacute aquele que mostra a saiacuteda Quatildeo tentador natildeo eacute encarar essa assertiva
por salvaccedilatildeo De fato sair do mosqueiro salvaria a mosca Aleacutem do mais a palavra
Ausweg abarca os significados de remeacutedio e alternativa (LANGENSCHEIDT 2001 paacuteg
692) e o que seria mais curativo do que um bom remeacutedio durante o estado de
enfermidade A cura processada pode ser encarada dessa forma como a soluccedilatildeo do
problema se o problema fosse passiacutevel de cura Trata-se aqui de uma problemaacutetica
filosoacutefica na qual o alvo a meta ou objetivo das Ziel tal como pular a proacutepria sombra eacute
sair do frasco feito para que vocecirc natildeo saia dele
Eacute propor solucionar o insoluacutevel sair do caminho sem saiacuteda Ainda assim toda
partida chega a algum lugar logo para cada Ausweg podemos supor um Weg um
caminho Nesse sentido a proposta de Wittgenstein natildeo se mostra mais eficaz para
remediar o irremediaacutevel do que quaisquer outras atitudes mesmo assim eacute um caminho e
uma resposta Eacute uma assunccedilatildeo de que ele o pensador estaacute comprometido com o cuidado
entre a sanidade e o insano que salienta sua decisatildeo e o separa por um fio de dar murro
em ponta de faca ou de saber que o sucesso natildeo eacute a uacutenica soluccedilatildeo mas que o caminhar
natildeo eacute soacute possiacutevel mas nosso dever com o caminho
A saiacuteda estabelece um limite Ateacute entatildeo sem outro caminho ainda que aparente
natildeo haacute diferenciaccedilatildeo natildeo haacute chances de se diversificar para a mosca que caiu presa no
mosqueiro e por isso se fundiu nele Mosqueiro e mosca eram uma coisa soacute O mosqueiro
98 56 Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt
105
era o mundo da mosca Na identificaccedilatildeo que mostra algo que pode acontecer uma
alternativa ocorre a cisatildeo do mundo
Mosqueiro e mosca se separam na exposiccedilatildeo da saiacuteda Assim como o umbral
marca o limite entre os cocircmodos e as cercanias da casa delimitam a propriedade assim o
caminho para fora reafirma o compromisso com o caminho de dentro Toda chegada parte
de algum lugar Mosqueiro pois toma seu lugar enquanto proveniente da mosca Natildeo faz
sentido mosqueiro sem mosca mas o contraacuterio natildeo eacute verdade a mosca natildeo eacute mosqueiro
natildeo se encerra nele natildeo necessariamente
Para haver Fliegenglas eacute imprescindiacutevel der Fliege se assim natildeo for se trataria de
somente mais um Glas soacute mais um vidrino recipiente sem nenhuma relevacircncia para a
mosca senatildeo eventuais resquiacutecios meliacutefluos Da mesma forma Glas demarca a qualidade
de natildeo mosca de Fliegenglas reafirmando tratar-se de duas entidades a mosca e o vidro
de pegar moscas Duas realidades separadas pelo limite apresentado pelo filoacutesofo
O mosqueiro eacute e natildeo eacute a mosca A proacutepria palavra jaacute diz a mosca mas
diferentemente fundando outra forma da mosca ser mosca Natildeo haacute limite sem o entorno
Sua circunvizinhanccedila se apresenta na saiacuteda eacute o reconhecimento da linha ao redor do
ciacuterculo O limite se confunde com sua transgressatildeo refazendo a ponte entre o que somos
e natildeo somos Essa eacute a meta do filoacutesofo reafirmar o abismo pelo salto Natildeo por tendecircncias
suicidas mas por ter sapiecircncia de que o abismo natildeo seria nada sem a possibilidade da
queda assim como cair natildeo seria possiacutevel sem o caminhar
O inuacutetil
Disse Hui Tzu a Chuang Tzu
mdash Todo o seu ensinamento estaacute baseado no que natildeo tem utilidade
Replicou-lhe Chuang Tzu
mdash Se vocecirc natildeo aprecia o que natildeo tem utilidade
Natildeo pode comeccedilar a falar sobre o que eacute uacutetil
Por exemplo a terra eacute larga e vasta
Mas de toda a sua extensatildeo o homem utiliza
Apenas poucas polegadas
Sobre as quais se manteacutem de peacute
Suponhamos agora que vocecirc tire
Tudo o que ele realmente natildeo usa
De modo que ao redor de seus peacutes
Um golfo se abra
E ele fica de peacute no vazio
Sem nada de soacutelido
Com exceccedilatildeo do que se encontra bem debaixo de cada peacute
Por quanto tempo poderaacute utilizar o que estaacute usando
106
Disse Hui Tzu
mdash Cessaria de servir a qualquer finalidade
Concluiu Chuang Tzu
mdash Isto prova
A absoluta necessidade
De que lsquonatildeo tem utilidadersquo (MERTON 1984 paacuteg 194-195)
Para isso ele se achega agrave beira do despenhadeiro para arriscar um salto Esta eacute sua
correspondecircncia ao abismo agrave questatildeo cuja profundidade natildeo se esgota mas se adentra
em cada resposta Natildeo eacute um saltar de cabeccedila no vazio sem sentido nem aterrar a
profundura para jamais sermos tragados por ela e fazecirc-la planiacutecie segura para um
pensamento raso
A resposta filosoacutefica agrave mosca natildeo pretende solucionar a problemaacutetica do frasco
diretamente Em vez disso coloca novamente a questatildeo instituindo a limitaccedilatildeo entre a
mosca e o vidro Mostrar a saiacuteda natildeo desfaz o mosqueiro como a porta natildeo desfaz a casa
mas convida a lidar com o limite como algo que natildeo precisa ser seguido agrave risca tambeacutem
somos aleacutem dele nem arriscado sempre ao extremo tambeacutem somos aqueacutem dele pois o
ciacuterculo se define tanto pelo que estaacute dentro como pelo que estaacute fora
32 As nuances das palavras nos contornos da linguagem
Responder natildeo eacute um papel exclusivo da filosofia Eacute tanto uma palavra como uma
atitude muito comum Nas perguntas das provas haacute um espaccedilo destinado para isso Na
duacutevida de quanto custa o patildeozinho naquela outra padaria no momento apoacutes uma saudaccedilatildeo
e no fechar das matildeos depois de levado o soco acontece ali uma resposta agraves interpelaccedilotildees
da vida
Cria-se a expectativa do quadrado da hipotenusa que se iguala agrave soma dos
quadrados dos catetos na lacuna preenchida no teste do valor monetaacuterio do quilo mais ou
menos barato do que o da bodega da esquina do olaacute e do olho roxo Somos ensinados a
isso Embora as reaccedilotildees variem no tempo e no espaccedilo de modo geral estamos sempre no
aguardo de um posicionamento que nos tire da suspensatildeo da questatildeo
107
Todo o processo comunicativo eacute baseado em correspondecircncias Em remetentes e
destinataacuterios em dar agrave mensagem o recebido para na via de matildeo dupla da prosa moderna
devolver a missiva em seguida Se se pergunta espera-se com isso um termo o desenlace
pelo qual fomos formados a crer e compreender
Quando muito natildeo cabe a noacutes mas aos outros dar as respostas que aguardamos
Ao professor cabe responder o aluno com a soluccedilatildeo do problema ao atendente o
comprador com o preccedilo do patildeo ao amigo o irmatildeo com a atenccedilatildeo devida e ao rival a noacutes
com a violecircncia por vezes merecida Em nossa sociedade se a interrogaccedilatildeo eacute parcialmente
livre o travessatildeo costuma ser destinado a setores a profissionais e a especialistas no
assunto
Tudo tem seu lugar nas engrenagens da maacutequina a pergunta e a resposta natildeo
fogem a isso Responder passa a ser encarado como uma postura formal Como natildeo ser
seduzido pela crenccedila da oficialidade se tradicionalmente tem sido assim A mais antiga
universidade europeia em funcionamento data de 1088 e antes disso a Academia de
Platatildeo foi fundada no ano de 387 antes de Cristo isto significa dizer que haacute tempos o
Ocidente tem se empenhado a reter a produccedilatildeo do saber em determinadas instituiccedilotildees em
detrimentos de outras circunstacircncias e localidades
A partir do momento em que o conhecimento foi compartimentado retirado de
sua experiecircncia imediata e empossado no poacutedio das categorias especializadas fica cada
vez mais difiacutecil natildeo considerar as respostas oficiais para dizer o que as coisas satildeo Mal
comparando seria perguntar ao padeiro sobre o teorema de Pitaacutegoras Que se faccedila notar
natildeo eacute que o padeiro saiba ou natildeo saiba pouco importa pois ele natildeo deteacutem o saber oficial
a respeito dessa problemaacutetica isto eacute ele natildeo estaacute autorizado a responder oficialmente
Autorizaccedilatildeo dada pela tradiccedilatildeo Neste caso a tradiccedilatildeo tradicional encastela nas
instituiccedilotildees formais de ensino nos oacutergatildeos governamentais nas fundaccedilotildees emissoras de
diplomas e registros os atestes da veracidade das respostas Nossa sociedade distorceu a
seu bel-prazer a compreensatildeo mitoloacutegica de Pandora e Prometeu erigindo
estabelecimentos que concentram as verdades perante as opiniotildees e as experiecircncias
concretas dos indiviacuteduos e ateacute de grupos
Isto significa que esses locais e as pessoas que respaldam essas localidades satildeo
capazes de nos prover das respostas que necessitariacuteamos para manter as engrenagens
sociais em funcionamento Desse modo natildeo precisariacuteamos mais lidar diretamente com
108
os dilemas que jogam com nossos limites por mais simploacuterios ou essenciais que eles
possam ser As respostas vecircm prontas basta apenas acessaacute-las
A Pandora original foi enviada agrave Terra com uma caixa que continha todos os
males de coisas boas continha soacute a esperanccedila O homem primitivo vivia neste
mundo de esperanccedila Confiava na magnanimidade da natureza nos benefiacutecios
dos deuses e nos instintos de sua tribo para sobreviver Os gregos claacutessicos
comeccedilaram a substituir a esperanccedila pelas expectativas Em sua versatildeo do mito
de Pandora ela havia soltado tanto os males quanto os bens Lembravam-se
dela sobretudo pelos males que havia soltado E esqueceram que a lsquodoadora de
tudorsquo era tambeacutem a guardiatilde da esperanccedila
Os gregos contavam a histoacuteria de dois irmatildeos Prometeu e Epimeteu Prometeu
sempre admoestava Epimeteu para que deixasse Pandora em paz Mas este
acabou casando-se com ela No grego claacutessico o nome Epimeteu que significa
lsquoolhar para traacutesrsquo foi traduzido por lsquoboborsquo ou lsquoestuacutepidorsquo [] Os homens
planejaram instituiccedilotildees com que pretendiam fazer frente aos males
disseminados Conscientizaram-se de seu poder de modelar o mundo e fazecirc-lo
produzir serviccedilos que eles mesmos aprenderam a esperar Queriam que suas
proacuteprias necessidades e as futuras demandas de seus filhos fossem modeladas
por seus artefatos Tornaram-se legisladores arquitetos autores idealizadores
de constituiccedilotildees cidades e obras de arte que servissem de exemplo para seus
descendentes O homem primitivo confiava na participaccedilatildeo miacutetica dos ritos
sagrados para iniciar pessoas na doutrina da sociedade [] (ILLICH 1973
paacutegs 115-116)
Ora mas como as repostas poderiam vir prontas se fazemos perguntas Isso natildeo
pressupotildee uma duacutevida Naturalmente que sim mas ateacute para perguntar eacute indispensaacutevel
saber algo Natildeo eacute possiacutevel perguntar sobre o que natildeo temos como perguntar a respeito
Por mais tautoloacutegico que essa uacuteltima assertiva possa soar ela remete ao conhecimento do
ser a perambular o natildeo ser
Como acessar o natildeo ser Acessamos o ser agrave medida que ele se revela a noacutes Seja
nas questotildees como em suas respostas precisamos estar nas cercanias do ser para que haja
compreensatildeo Quando natildeo o habitamos em alguma instacircncia ou seja quando natildeo somos
simplesmente as coisas acontecem e natildeo temos a possibilidade de darmos conta disso
A luz das estrelas perguntou ao Natildeo-Ser mdash Mestre voacutes existis ou natildeo
Como a luz das estrelas natildeo obtivesse qualquer resposta dispocircs-se a vigiar o
Natildeo-Ser Esperou para ver se o Natildeo-Ser aparecia
Manteve seu olhar fixo no profundo Vaacutecuo esperando para tentar ver uma
sombra do Natildeo-Ser
Olhou durante todo o dia e nada viu Ouvia mas natildeo escutava nada Tentava
pegar mas nada pegava
Entatildeo a luz das estrelas exclamou finalmente mdash Eacute isto
mdash Este eacute o mais distante Quem poderaacute alcanccedilaacute-lo
Posso compreender a ausecircncia do Ser
Mas quem pode compreender a ausecircncia do Nada
109
Se agora acima de tudo o Natildeo-Ser eacute
Quem seraacute capaz de compreendecirc-lo (MERTON 1984 paacuteg 161)
Quantas coisas acontecem diante de nossos olhos neste exato momento sem que
percebamos Incontaacuteveis Mesmo aquelas que percebemos ainda eacute uma percentagem
iacutenfima do que poderia ter sido e o que poderia natildeo eacute assim como o que jamais poderaacute
ser tambeacutem natildeo eacute O natildeo ser natildeo estaacute presente o ser o ainda natildeo presente e o que acontece
eacute o ser sendo presenccedila simultaneamente presente e a presentificar-se independentemente
do que tenhamos a dizer sobre ou se tomamos ciecircncia dele
Nesse sentido nem o ser nem o natildeo ser eacute Do contraacuterio seria um ente acessado
por completo apreendido agrave nossa imagem e semelhanccedila ou seja natildeo estariacuteamos de fato
compreendendo o ser mas dizendo o que o ser deveria ser de nosso ponto de vista Isso
eacute tatildeo grave e presente que se construiu todo o aparato conceitual para dar respostas com
as quais jaacute estamos acostumados e no mais que conveacutem aos interesses Significa que
acessamos o ser e o devassamos o natildeo ser eacute o ser eacute tudo eacute ente tudo eacute o que jaacute foi dado
respondemos apenas a noacutes mesmos as nossas perguntas cujo misteacuterio natildeo passa de uma
farsa sem trageacutedia
Como gecircnio construtivo o homem se eleva nessa medida muito acima da
abelha esta constroacutei com cera que recolhe da natureza ele com a mateacuteria
muito mais tecircnue dos conceitos que antes tem de fabricar a partir de si mesmo
Ele eacute aqui muito admiraacutevel ndash mas soacute que natildeo por seu impulso agrave verdade ao
conhecimento puro das coisas Quando algueacutem esconde uma coisa atraacutes de um
arbusto vai procuraacute-la ali mesmo e a encontra natildeo haacute muito que gabar nesse
procurar e encontrar e eacute assim que se passa com o procurar e encontrar da
lsquoverdadersquo no interior do distrito da razatildeo Se forjo a definiccedilatildeo de animal
mamiacutefero e em seguida declaro depois de inspecionar um camelo lsquoVejam um
animal mamiacuteferorsquo com isso decerto uma verdade eacute trazida agrave luz mas ela eacute de
valor limitado quero dizer eacute cabalmente antropomoacuterfica e natildeo conteacutem um
uacutenico ponto que seja lsquoverdadeiro em sirsquo efetivo e universalmente vaacutelido sem
levar em conta o homem (NIETZSCHE 2009 paacuteg 537)
A iniciaccedilatildeo agrave realidade deixa de ser miacutetica e composta de rituais sacros para ser
fruto da educaccedilatildeo e das leis Eacute a passagem do concreto para o abstrato da experiecircncia
sensiacutevel para a inteligiacutevel O controle social chega a atingir as demandas por necessidades
isto eacute se o homem pode produzir algo ele deve poder produzir a necessidade daquela
produccedilatildeo Se o homem pode dar respostas ele deve poder produzir as perguntas que se
adequem agraves respostas agraves quais ele estaacute preparado
110
Por mais que tentemos fugir os mitos de Siacutesifo e de Tacircntalo insistem em bater na
nossa cara Condenados a empurrar uma pedra ateacute o cimo da montanha e a passar fome e
sede respectivamente essa dinacircmica de um esforccedilo interminaacutevel se desdobra
modernamente em crescentes e insaciaacuteveis demandas por necessidades Eis um paradoxo
social pois ao criar uma realidade de instrumentos os homens que ldquoquanto mais podem
comprar mais decepccedilotildees tecircm que engolirrdquo (ILLICH 1973 paacuteg 178) se
instrumentalizam tornando-se refeacutens da proacutepria criaccedilatildeo
Se algum dia natildeo foi assim se nos primoacuterdios o homem era governado pelos fatos
pelas necessidades baacutesicas e pelo destino arremedo do sagrado atualmente natildeo eacute essa a
maneira das coisas serem experienciadas Ao longo de seacuteculos desenvolveu-se a
confianccedila nas instituiccedilotildees humanas como bastiotildees do controle e doadoras da seguranccedila e
com o tempo o equiliacutebrio entre confiar na natureza e confiar em sua proacutepria criaccedilatildeo foi
abalado O homem atual esqueceu-se de sua tragicidade e elevou ao extremo sua
dependecircncia institucional Cego nessa confianccedila natildeo vecirc as contradiccedilotildees do processo
Essas estruturas satildeo auto e antropofaacutegicas a saber
Uma sociedade comprometida com a institucionalizaccedilatildeo dos valores identifica
a produccedilatildeo de bens e serviccedilos com a demanda pelos mesmos A educaccedilatildeo que
nos faz necessitar do produto estaacute incluiacuteda no preccedilo do produto A escola eacute a
agecircncia publicitaacuteria que nos faz crer que precisamos da sociedade tal qual ela
eacute (ILLICH 1973 paacuteg 178)
33 O limite da resposta
Do pondo de vista da educaccedilatildeo tradicional a importacircncia da transmissatildeo da
seleccedilatildeo e da reproduccedilatildeo de um conteuacutedo parece evidente Daiacute crer que satildeo as instituiccedilotildees
a educaccedilatildeo oficial que transmite os valores natildeo mais o mito natildeo mais os deuses (embora
o sagrado modernamente possa ser apreendido pelas instituiccedilotildees) Por outro lado na
construccedilatildeo de um pensamento criacutetico tambeacutem encontramos a crenccedila num controle a ser
transmitido ainda que justificado ideologicamente Por mais que se argumente que os
conteuacutedos transmitidos satildeo vitais para a sobrevivecircncia ou que os mesmos perpassam pela
111
responsabilidade dos envolvidos neste processo isto eacute os educadores os educados e o
mundo trata-se no mais das vezes do que pode ser apreensiacutevel pelo saber
A educaccedilatildeo eacute o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para
assumirmos a responsabilidade por ele [] eacute tambeacutem onde decidimos se
amamos nossas crianccedilas o bastante para natildeo expulsaacute-las de nosso mundo e
abandonaacute-las a seus proacuteprios recursos e tampouco arrancar de suas matildeos a
oportunidade de empreender alguma coisa nova [] preparando-as [] para a
tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT 1972 paacuteg 247)
Tomar uma decisatildeo eacute uma resposta A educaccedilatildeo pelas vias da tradiccedilatildeo decide
respostas aos pais agrave sociedade e agrave questatildeo colocada Esse tem sido o papel do ensino Por
mais que se decida pelo cuidado ou pela ousadia essas correspondecircncias podem vir pelas
vias da apreensatildeo dando indiacutecios de preparaccedilatildeo e margens agrave transmissatildeo Com isso
modela-se sentidos agrave existecircncia
A marca que o ensino deixa na carne desse mundo comum nem sempre eacute visiacutevel
a olho nu mas isso natildeo quer dizer que ela natildeo esteja exercendo sua influecircncia Em outras
palavras o que se identifica na vontade de preparaccedilatildeo eacute a necessidade de uma resposta
que valide a transmissatildeo Se a resposta natildeo for adequada se natildeo partir de uma decisatildeo
modelar a saber que pode ser usada como modelo agraves demais ela eacute excluiacuteda enquanto
verdade Torna-se ficccedilatildeo invencionice parvoiacutece de filoacutesofo que natildeo diz coisa com coisa
mdash Por conseguinte oacute Glaacuteucon quando encontrares encomiastas de Homero a
dizerem que esse poeta foi educador da Greacutecia99 e que eacute digno de se tomar por
modelo no que toca a administraccedilatildeo e a educaccedilatildeo humana para aprender com
ele a regular toda a nossa vida deves beijaacute-los e saudaacute-los como sendo as
melhores pessoas que eacute possiacutevel e concordar com eles em que Homero eacute o
maior dos poetas e o primeiro dos tragedioacutegrafos mas reconhecer que quanto
a poesia somente se devem receber na cidade hinos aos deuses e encoacutemios aos
varotildees honesto e nada mais Se poreacutem acolheres a Musa apraziacutevel na liacuterica ou
na epopeia governaratildeo a tua cidade o prazer e a dor em lugar da lei e do
princiacutepio que a comunidade considere em todas as circunstacircncias o melhor
mdash Exactamente
mdash Aqui estaacute o que tiacutenhamos a dizer ao lembrarmos de novo a poesia por
justificadamente excluirmos da cidade uma arte desta espeacutecie (PLATAtildeO
1987 paacutegs 472-473)
Ironicamente o julgamento que Platatildeo fez agrave poesia de base homeacuterica no passado
se assemelha muito com a criacutetica agrave filosofia nos tempos atuais Significa dizer que a
99 Conforme nota da citaccedilatildeo a mais antiga prova dessa asserccedilatildeo diz respeito ao Fragmento 10 de
Xenoacutefanes ldquoUma vez que desde iniacutecio todos aprenderam por Homerordquo
112
pergunta que Soacutecrates faz agrave Homero ldquodiz-nos que cidade foi graccedilas a ti melhor
administradardquo (PLATAtildeO 1987 paacuteg 456) compreende natildeo soacute o vigor do que se tem a
dizer a partir de sua relevacircncia uacutetil quanto ignora a inutilidade de toda utilidade A
imprescindibilidade de fazer algo com essa resposta tornando-a eficaz a nossos
problemas passa por cima do fato de que Platatildeo inclusive utilizou-se da poesia Sua
escrita dialoacutegica as referecircncias miacuteticas o fizeram fruto de sua proacutepria criacutetica
Na mesma linha de pensamento sarcaacutestica tambeacutem as instituiccedilotildees por mais
controladoras que sejam natildeo conseguem se livrar completamente da filosofia Quer dizer
o pensamento que se tenta abarcar nunca se esgota de todo Haacute brechas e veredas nem
tudo Nem tudo pode ser encontrado logo nem tudo estaacute perdido Eacute a isso que nos
referimos quando tratamos filosofia como resposta Natildeo eacute um responder a algo
definitivamente mas um postar-se a
Natildeo que a questatildeo do ser natildeo esteja presente Natildeo eacute possiacutevel natildeo estar a falar do
ser do contraacuterio estariacuteamos a falar de quecirc Do natildeo ser Aiacute ele seria ser natildeo Digamos
tratar-se pois de um modo distinto do que eacute ser a saber natildeo enquanto essecircncia
preocupada em identificar as qualidades imutaacuteveis mas com a presenccedila do que eacute mutaacutevel
e do que permanece Apregoa-se que pensar a essecircncia limita e dicotomiza sem perceber
que a identidade esvaziada da questatildeo do ser estaacute mais preocupada em classificar e
adequar do que propriamente em tornar-se presenccedila
Mas eacute tambeacutem uma questatildeo quem eacute quem Natildeo eacute lsquoO que eacute quemrsquo ndash natildeo eacute
uma questatildeo de essecircncia mas de identidade (como quando perguntamos diante
da fotografia de um grupo de pessoas cujos nomes conhecemos mas natildeo os
seus rostos lsquoQuem eacute quemrsquo ndash Este eacute Kant Aquele eacute Heidegger E este outro
ao lado dele) (NANCY 1991 paacuteg 7 ‒ grifo no original)
Ateacute mesmo faz sentido lidar com as respostas agraves questotildees no modo da identidade
natildeo da essecircncia Podemos crer no que vemos com mais facilidade do que o que natildeo vemos
a princiacutepio Eacute mais faacutecil achar que detemos o controle do que podemos identificar ao
contraacuterio o ser natildeo eacute identificaacutevel embora possa ser aprendido ateacute certo ponto pelas
caracteriacutesticas de um ente poreacutem nunca por inteiro Quem eacute quem eacute questatildeo ndash assim como
para que como quando quanto etc ndash agrave medida que pressupotildeem a possibilidade do
questionamento isto eacute a pergunta pelo ser em todo perguntar o que eacute quem O que eacute
ser O que eacute quem eacute quem
113
Quando a tradiccedilatildeo pela accedilatildeo das estruturas de poder diz o que o ser eacute ou natildeo eacute
ela responde categoricamente agrave questatildeo Natildeo importa o quatildeo bem fundamentada uma
resposta possa ser se ela decide por um caminho ela se arrisca por ele Naturalmente que
estaacute em jogo aqui diversas concepccedilotildees de existecircncia Heidegger por exemplo reconhece
tanto Existenz existecircncia quanto Dasein presenccedila traduccedilatildeo de Maacutercia Saacute Cavalcante
Schuback Em Dasein se espera resgatar pela palavra o caraacuteter de acontecimento do ser
mesmo aquele manifesto onticamente enquanto existecircncia se adequa mais agrave concepccedilatildeo
tradicional do termo no qual a relaccedilatildeo de ser soacute eacute possiacutevel pela existecircncia ldquoperceberemos
que tanto ser quanto pensar se tornam de certo modo dependentes da lsquocoisa que existersquo
e de seu modo de existecircnciardquo (JARDIM 1995 paacuteg 15) Dessa forma pensamos que
existir natildeo deixa de ser uma resposta dada pelo ser portanto existir como estar em
identidade com o ser que por isso pode ser pensado Em outras palavras o ser que natildeo
pode ser pensado natildeo eacute no sentido de natildeo existir
εἰ δrsquo ἄγrsquo ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείῃ γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δrsquo ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
Os uacutenicos caminhos da investigaccedilatildeo em que importa pensar Um (aquilo) que
eacute e que (lhe) eacute impossiacutevel natildeo ser eacute a via da Persuasatildeo (por ser companheira
da Verdade) o outro (aquilo) que natildeo eacute e que forccediloso se torna que natildeo exista
esse te declaro eu que eacute uma vereda totalmente indiscerniacutevel pois natildeo poderaacutes
conhecer o que natildeo eacute ndash tal natildeo eacute possiacutevel ndash nem exprimi-lo por palavras
(PARMEcircNIDES apud KIRK RAVEN SCHOFIELD 2010 paacuteg 255)
O que eacute eacute e o que natildeo eacute natildeo eacute Uma definiccedilatildeo aparentemente simples e que
possibilita a pergunta pela identidade que responde ao certo ou errado Ou isso ou aquilo
traz agrave tona a questatildeo por meio da acomodaccedilatildeo loacutegica Por que natildeo isso e aquilo Quem
disse que tinha de ser cocircmodo que tinha de ser coerente Agraves vezes ao controle foge ateacute a
fuga e precisamos lidar com o sim e o natildeo com o limite que tanto abre possibilidades
quanto encerra-as
Numa hipoacutetese absurda suponha-se que pudeacutessemos expor todas as
possibilidades numa fotografia A pergunta pela identificaccedilatildeo estaria interessada em saber
ldquoqual eacute qualrdquo ldquoquem eacute quemrdquo ou ldquocomo eacute quemrdquo qual caminho tomar quem devo
114
escolher como proceder diante destas escolhas Mal comparando essa eacute a postura da
vontade de controle da resposta que assegura e da mensagem que transmite
De modo decircitico apontariacuteamos esta ou aquela chance de ser na expectativa de
fazer prevalecer nossos desejos Na urgecircncia por uma resposta que atenda nossas
necessidades o proacuteprio ldquoo que eacuterdquo em cada perguntar passa despercebido ndash p ex o que eacute
como o que eacute proceder o que eacute estar diante de o que eacute escolher Questionamentos que agrave
primeira vista natildeo levam a lugar algum e que natildeo precisam ser feitas a todo momento
caso contraacuterio natildeo seria possiacutevel a miacutenima conversa
Se natildeo se confia no chatildeo natildeo eacute possiacutevel sequer dar um passo Alguma crenccedila
alguma confianccedila eacute forccedilosa ainda assim estatildeo presentes em toda resposta certeira
infindas questotildees sem soluccedilotildees apenas encaminhamentos Para cada ser que eacute haacute certo
limite tensional que o define tambeacutem como natildeo ser como indecifraacutevel ou a decifrar no
desdobrar e no responder
A questatildeo da identidade torna-se pois a questatildeo da representaccedilatildeo quando
ignoramos essa parte velada no desvelamento da questatildeo Se na muacutesica natildeo soubeacutessemos
como o arranjo foi composto ainda assim ele deixaria de soar No momento em que
perguntar pela identidade pretende prescindir agrave pergunta pelo ser jmmperguntar pelo
ldquoquemrdquo ldquocomordquo ldquopor quecircrdquo apresenta-se como a medida do real e tudo o que diferir
seraacute de menor importacircncia
Representamos quando a medida de algo se daacute pelo que ele faz produz sua
finalidade a quem diz respeito ou de que forma ele se manifesta em detrimento do que
eacute Basicamente significa dizer que toda existecircncia funcional acontece na representaccedilatildeo
Entatildeo quando se eacute de fato quando o ser eacute presente Tornar-se presenccedila depende da coisa
que existe isto eacute ldquopermite que focalizemos a unicidade e singularidade do evento de
tornar-se presenccedila sem ter que explicar lsquoo quersquo existia antes que lsquoelersquo se tornasse
presenccedilardquo (BIESTA 2013 paacuteg 67 ‒ grifo no original) Poreacutem tornar-se presenccedila natildeo eacute a
coisa que existe natildeo se esgota nela
Para aleacutem do que achamos que as coisas sejam do que acreditamos que queremos
haacute o que natildeo sabiacuteamos que queriacuteamos Aquela outra forma de ser da qual natildeo tiacutenhamos a
menor noccedilatildeo Natildeo se trata de humildade de pensamento ou de postura prudente perante agrave
vida acontece que tornar-se presenccedila tambeacutem natildeo depende da coisa que existe Desse
modo a questatildeo ontoloacutegica natildeo perde sua relevacircncia pois ela diz respeito agrave
115
multiplicidade inerente a cada vontade desejo e existecircncia Ela estaacute presente embora natildeo
se faccedila presenccedila a rigor Eis que se esbarra no tatildeo afamado ser Em outras palavras eacute
pensar o que eacute esses muitos que acontecem τὸ ὂν λέγεται πολλαχῶς eacute a possibilidade de
como produzir do oacutebvio do funcional do uacutetil ou simplesmente o fundamento limitador
e constituidor
34 A resposta do limite
Natildeo tem muito jeito Para sair da mesmice das soluccedilotildees simploacuterias e da resposta
pronta eacute mister esforccedilo A tradiccedilatildeo jaacute estaacute dada As instituiccedilotildees jaacute estatildeo postas A mosca
jaacute estaacute presa no mosqueiro Quando isso tudo natildeo for o bastante esse eacute o momento do
pensamento Para isso que enveredamos por estradas tortuosas e por vezes escolhemos
o caminho desdenhado que assombra entre os arbustos
A saber a resposta e o responder nos mostram muito dessa circunstacircncia na qual
nos instamos Podem indicar tanto uma afinidade com a perpetuaccedilatildeo quanto o empenho
de transformaccedilatildeo tanto se referem ao lugar de fala quanto a quem ou a que se fala Enfim
cada resposta corresponde a uma perspectiva e se relaciona a uma postura de estar no
mundo
Responder ao mundo eacute como estamos no mundo Daiacute se deriva que o mundo
enquanto local de habitaccedilatildeo dos seres se configura pelas nossas respostas ao longo do
tempo Natildeo apenas pois nem tudo o que acontece tem nossa assinatura mas eacute inegaacutevel o
impacto que uma resposta bem dada pode causar em um ambiente propiacutecio Nesse
sentido responder ao mundo eacute responder o mundo ldquoO mundo eacute tudo o que ocorrerdquo
(WITTGENSTEIN 1960 paacuteg 30 ndash traduccedilatildeo livre) conforme o original ldquoDie Welt ist
alles was der Fall istrdquo Por estarmos no mundo que o respondemos por sermos o mundo
que ele ocorre e nos ocorre em significaccedilotildees
Logo o cuidado com as respostas passa por um cuidado com o mundo Como
cuidar ao responder Cada qual cuida e eacute cuidado pelo empenho do cuidar Isso natildeo deve
ser confundido com zelo no entanto natildeo se afasta de todo Trata-se no mais de que para
realmente cuidar de algo habitamos aquilo a tal ponto que nos constitua Ao responder o
mundo respondemos ao mundo a partir do que somos do mundo
116
Somos na presenccedila do mundo e natildeo em sua posse Queremos que as coisas
aconteccedilam e por vezes controlamos seu fazimento Soacute por vezes mesmo pois a margem
das possibilidades eacute o local da habitaccedilatildeo dos seres nunca completamente imerso nunca
inexoravelmente excluiacutedo Em seu limiar o respondemos e o habitamos e por estar na
borda vislumbramos sua geraccedilatildeo tanto quanto seu falimento o entorno que o define e
definha Daiacute a necessidade de cuidado como quem cuida da terra vir a ser planta
Somente sendo um pouco vegetal somente sendo um pouco camponecircs
Esse cuidado eacute nosso dizer nosso responder Como os dizeres que datildeo diversos
relatos sobre a mesma coisa cada um corresponde como pode Vai o meacutedico e daacute uma
resposta medicinal a um problema de sauacutede vai o advogado e revela a lei que justificou
determinada accedilatildeo vai o professor e se compromete com a educaccedilatildeo de nossos filhos em
nossa ausecircncia Vai tudo isso sem necessariamente retornar agrave proacutepria urgecircncia de
respostas A quem cabe cuidar do responder ldquoO pensador diz o ser O poeta nomeia o
sagradordquo (HEIDEGGER 1979a paacuteg 51) ou seja ldquoDer Denker sagt das Sein Der
Dichter nennt das Heiligerdquo (HEIDEGGER 1955 paacuteg 51)
Natildeo natildeo cabe soacute ao pensador cuidar do responder O mundo eacute responsabilidade
de todos pois todos satildeo fundamentados pelo mundo que somos Ele deixa sua marca na
carne assim como demarcamos o solo com as criaccedilotildees e existecircncia Existe-se e eacute-se de
muitas maneiras Medica-se advoga-se leciona-se Se o pensador estaacute incumbido de
alguma accedilatildeo talvez esteja de agir enquanto ποιεῖν e dizer enquanto λέγειν atentamente
conforme fragmento 73 de Heraacuteclito Isto eacute o pensador eacute aquele imerso no cuidado de
ser e estar no mundo de ser porque estaacute no mundo de ser do mundo que ele eacute
Diz-se o ser responde-o Essa resposta eacute e estaacute no mundo Natildeo encerra a
totalidade mas cerca a possibilidade O limite do responder do pensador diz das cercanias
do ser que possibilita e daacute sentido a todo o resto Por isso ele versa sobre inutilidades
Natildeo porque sejam despreziacuteveis suas colocaccedilotildees mas por natildeo terem a preocupaccedilatildeo
imediata das necessidades e daiacute serem apreciadas com dificuldade Natildeo eacute correta mas eacute
verdadeira natildeo eacute precisa mas duacutebia natildeo eacute contraditoacuteria mas paradoxal Sonolecircncia e
vigiacutelia morte e vida ser e natildeo ser estatildeo no dito do pensador e falam do mundo que nos
encontramos corresponde agraves respostas individuais e tenta conectaacute-las agrave coletividade e
permanecircncia da questatildeo O ser se diz diversamente e cabe ao pensador mostrar como
quem indica o que estaacute acontecendo e ningueacutem tem mais tempo para dar por isso
117
Eacute interessante notar como essa questatildeo temporal eacute vital para compreender o
pensador e todos que se comprometam unicamente com o imediatismo Alguns autores
inclusive resgatam o sentido etimoloacutegico da palavra escola para pensar o tempo algo
como ldquolazer descanso tranquilidaderdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σχολή ndash traduccedilatildeo
livre)100 Essa noccedilatildeo implica em conceber que se tudo for para alguma coisa estaremos
sujeitos agraves respostas dadas agraves pressas Uma linha reta e contiacutenua de causa e consequecircncias
uacuteteis quase que num estado constante e iminente subjugaccedilatildeo do outro na guerra com o
tempo Nesse domiacutenio decide-se limitando para poupar futuros questionamentos assim
basta aplicar e seguir adiante sempre adiante em evoluccedilatildeo sem fim
De fato eu queria aprofundar a criacutetica (no sentido de Kant) da razatildeo erudita
ateacute ao ponto em que os questionamentos deixam em geral intocado e tentar
explicitar os pressupostos inscritos na situaccedilatildeo de skholegrave tempo livre e
liberado das urgecircncias do mundo que torna possiacutevel uma relaccedilatildeo livre e
liberada com tais urgecircncias e com o proacuteprio mundo (BOURDIEU 2001 paacuteg
9)
Embora a tradiccedilatildeo escolar tenha se esforccedilado por desvincular o tempo dessa
perspectiva ldquoescola ndash como tempo livre na qual o mundo eacute compartilhado e crianccedilas ou
jovens tecircm a experiecircncia de serem capazes de comeccedilar ndash precisa ser criadardquo
(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 113 ndash traduccedilatildeo livre)101 essa atitude foi
frustrada pela sua mesma origem Isso porque o proacuteprio ato de pensar necessita de uma
medida de quietude alguma viela na rodovia da exatidatildeo para a reflexatildeo criacutetica enfim
para reafirmar o compromisso com o caminho trilhado
Conveacutem ressaltar que natildeo se refere a encastelar-se na torre de marfim da erudiccedilatildeo
dos eleitos Eacute patente que haveraacute teacutecnica conhecimentos teoacutericos e praacuteticos que
dependeratildeo do empenho de seus executores mas principalmente eacute uma questatildeo de
postura Dispor-se perante o ser para ouvi-lo e assim dizecirc-lo em resposta nomeaacute-lo em
concordacircncia soacute eacute possiacutevel na confianccedila em abrir matildeo da seguranccedila da mensagem do
tempo que urge por uma resposta objetiva e pragmaacutetica ou seja ldquose a sociedade eacute para
100 Leisure rest ease Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dsxolh
2Fgt Acesso em 30 ago 2017 101 School ndash as free time in which the world is shared and children or young people have the experience of
being able to begin ndash must be created
118
ser renovada precisa se libertar e aceitar o risco de confiar a responsabilidade pela sua
renovaccedilatildeo a figuras ndash professores ndash isentas da obrigaccedilatildeo de produzir resultadosrdquo
(MASSCHELEIN SIMONS 2013 paacuteg 129)102
Natildeo somente os professores mas eacute dever de todos empenharem-se vez por outra
no penhor de pensar o haacutebito Seraacute que eu devo comer isso sempre fazer isso sempre ser
assim sempre Certamente que eacute quase impossiacutevel ensinar algueacutem a pensar sem
doutrinar Fazer com que se pense autonomamente Decerto eacute um ato de ousadia Agora
natildeo daacute para saber o que eacute possiacutevel sem arriscar abraccedilando o ilimitado o limitado e o
limitaacutevel em seu limiar agrave beira de ser e natildeo ser
Ao pensador cabe dizer o ser Seu compromisso eacute com a questatildeo isto eacute pensar o
haacutebito do pensamento Sua decisatildeo eacute pelo risco Diferente de um soldado cuja proacutepria
vida estaacute em jogo diferente de um meacutedico cuja vida do paciente estaacute em suas matildeos o
pensador segue sempre pela encruzilhada Seus caminhos pactuam com o sagrado e o
profano com o inuacutetil e por incriacutevel que parece com a extrema necessidade de natildeo
permitir a desgraccedila do pensamento Qualquer coisa por coisa qualquer lugares comuns
opiniotildees fechadas respostas banais natildeo
O pensador fundamentalmente pensa Em seu dizer o ser se manifesta e a
existecircncia jaacute conhecida e gasta renova seu sentido A tradiccedilatildeo eacute ainda a mesma mas
tambeacutem natildeo eacute cria-se ousa-se criar crecirc que cria e eacute essa crenccedila que o motiva Esforccedilar-
se por um pensamento digno de ser pensado eacute o miacutenimo e o maacuteximo que qualquer
pensador pode crer
35 Dois lados da mesma moeda
351 A resposta que natildeo soluciona
102 If society is to be renewed it must free itself and hazard to entrust responsibility for this renewal to
figures ndash teachers ndash exempted from the obligation to produce results
119
Uma resposta que natildeo se fie apenas nas soluccedilotildees soacute por serem as tradicionais mas
que decirc tempo ao tempo de ldquorepor recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009a Resposta)
a questatildeo da tradiccedilatildeo O dizer do pensador natildeo repete o ser natildeo leva o ser agravequeles que
natildeo tecircm acesso a ele Natildeo soacute eacute leviano achar isso como natildeo condiz com o caraacuteter
inegociaacutevel do que eacute O ser natildeo barganha nem o dito troca favores por benesses natildeo
compra natildeo vende fiduacutecias
Dizer como quem daacute uma resposta colocando novamente o ser isto eacute responde e
diz o que jaacute estaacute posto ratificando-o presentificando-o manifestando-o em sua
singularidade o que se eacute em diaacutelogo com sua multiplicidade o que se pode ser A
resposta natildeo vem atender agraves preces pela resoluccedilatildeo novamente aqui se coloca o que a
princiacutepio natildeo se cala a questatildeo Numa dialeacutetica ocircntica o pensador diz o ser agrave medida que
ele se cala para ouvir a fala do ser que natildeo se restringe aos discursos agraves palavras de
ordem aos comandos mas desde isso tudo laacute tambeacutem se pronuncia o canto o hino a
ladainha o carpido ou seja o rito
Dizer como quem responde Eacute interessante notar que a palavra resposta natildeo eacute
substantivo derivado de responder A histoacuteria da liacutengua uniu duas palavras distintas num
uso muito semelhante Essa origem entretanto daacute uma pequena amostra da plurivalecircncia
da linguagem Resposta nos remete ao latim reposita ou reposta particiacutepio passado
feminino de repono (GLARE 1968 paacutegs 1620-1621) prefixaccedilatildeo de pono pela partiacutecula
re- que indica retrocesso e oposiccedilatildeo mas tambeacutem repeticcedilatildeo e reforccedilo (HOUAISS
2009b)
Por sua vez pono eacute uma corruptela de po- + sino gt pozno prefixaccedilatildeo pela
partiacutecula aspectual indicando que a accedilatildeo atingiu seu fim (ERNOUT MEILLET 2001
paacuteg 520) Essa eacute uma diferenciaccedilatildeo conhecida nossa Por exemplo em inglecircs temos os
verbos to lay e to lie por deitado e estar deitado respectivamente (DICTIONARY
Lay)103 e em alematildeo stellen e stehen pocircr e estar de peacute (LANGENSCHEIDT 2001 paacutegs
1082-1083)
Seja por meio gramatical seja lexical o significado dos verbos eacute o mesmo o que
muda eacute como a accedilatildeo verbal se processa Nas situaccedilotildees acima todas se referem a estar
cuja diferenccedila ocorre entre colocar algo em determinado estado para laacute permanecer e
103 Disponiacutevel em lthttpwwwdictionarycombrowselays=tgt Acesso em 02 set 2017
120
estar em certo estado e aqui permanecer Concomitantemente sino se afina com deixar
algo ou algueacutem sozinho deixar ir deixar uma coisa intocada permitir que algo aconteccedila
(GLARE 1968 paacuteg 1770) ficando a cargo de pono e seu particiacutepio situs o sentido mais
fiacutesico da palavra (ERNOUT MEILLET 2001 paacuteg 628) Em portuguecircs vamos ter as
palavras situaccedilatildeo posiccedilatildeo assento siacutetio etc todas se apresentando como o que jaacute foi
colocado ou sempre assim esteve e laacute fica ou se almeja esse fim Sino pois eacute o estado de
solidatildeo e permanecircncia em que algo eacute deixado constituindo assim uma localidade
A solitude emocional eacute uma solidatildeo espacial Estar soacute natildeo como um ato de
desespero ou anguacutestia pesarosa e negativa mas parte essencial da constituiccedilatildeo dos seres
Estar como parte integrante de ser espaccedilo determinado no tempo espacialidade soacute por
sua singularidade que define e se define perante as demais solidotildees Desse modo eacute
estabelecida a relaccedilatildeo com a palavra resposta Sinere eacute posicionar-se em solitude situs
sua posiccedilatildeo no tempo e no ser ponene enquanto pocircr em uma posiccedilatildeo ir ao encontro do
cerco de existecircncia que delimita e funda uma localidade no mundo e por fim reponere
como o reposicionamento dessa localidade movimento que a ratifica e daacute vigor agrave posiccedilatildeo
situada
A questatildeo eacute Por isso ela estaacute posta e ao nos postarmos diante dela a fim de
adentrarmos sua localidade recolocamo-la agrave medida que podemos agrave medida que
podemos habitar sua habitaccedilatildeo Resposta aleacutem de soluccedilatildeo para os problemas tambeacutem eacute
ao tomarmos aquele desvio do oacutebvio e do imediato recolocaccedilatildeo da questatildeo Para isso eacute
fundamental alguma liberdade com o tempo e certa dose de rompimento da temporalidade
vigente
Contemporaneamente tem-se um conceito que abarca tal ruptura como uma
profanaccedilatildeo Pensando nisso temporalmente temos um tempo que se desprende dos
dispositivos que dizem como a temporalidade deve ser ldquoSe consagrar (sacrare) era o
termo que designava a saiacuteda das coisas da esfera do direito humano profanar por sua
vez significava restituiacute-las ao livre uso dos homensrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg 65) Os
usos da hora dos minutos e dos segundos satildeo problematizados a saber desvinculados do
sentido usual o que ele chama de sagrado para pode adquirir uma nova experimentaccedilatildeo
tornar-se puacuteblica mais uma vez ldquoProfanar natildeo significa simplesmente abolir e cancelar
as separaccedilotildees mas fazer delas um uso novo a brincar com elasrdquo (AGAMBEN 2007 paacuteg
75)
121
Por outro lado essa aparente crenccedila no sagrado natildeo deixa de estar vinculada agrave
proacutepria noccedilatildeo que temos do tempo Diz-se gastar perder tempo para dar uma resposta
que fuja do esperado Desperdiccedila-o ao tentar refazer os passos como se caminhar natildeo
fosse jaacute outro caminho igualmente dotado de verdade A sacralidade estanque nos remete
ao dogma e deixa de lado o maravilhamento e assombro que o mito e o rito nos acometem
Ou seja suspende-se a noccedilatildeo das horas e insere-nos numa nova temporalidade numa
nova localidade por jogar com o que somos e natildeo somos
Assim tambeacutem o profano natildeo eacute tatildeo fluido assim pois natildeo haacute nada mais comum
em tempos de crise como a vontade de seguranccedila o dia a dia os costumes dos mais
variados haacutebitos agrave nossa casa tudo isso comum a noacutes sem a deferecircncia sacra com o calo
do uso corrente e que assim como o sagrado nos define e delimita Nesse sentido nem
tanto o tempo necessita urgentemente perder sacralidade assim como natildeo precisa perder
mundanidade Haacute de se pensar uma alternativa que congregue o paradoxo das nossas
experiecircncias
Os filoacutelogos natildeo cansam de ficar surpreendidos com o duacuteplice e contraditoacuterio
significado que o verbo profanare parece ter em latim por um lado tornar
profano por outro ndash em acepccedilatildeo atestada soacute em poucos casos ndash sacrificar
Trata-se de uma ambiguidade que parece inerente ao vocabulaacuterio do sagrado
como tal adjetivo sacer com um contrassenso que Freud jaacute havia percebido
significaria tanto lsquoaugusto consagrado aos deusesrsquo como lsquomaldito excluiacutedo
da comunidadersquo A ambiguidade que aqui estaacute em jogo natildeo deve apenas a um
equiacutevoco mas eacute por assim dizer constitutiva da operaccedilatildeo profanatoacuteria (ou
daquela inversa da consagraccedilatildeo) Enquanto se referem a um mesmo objeto
que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano tais operaccedilotildees
devem prestar contas cada vez a algo parecido com um resiacuteduo de
profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente
em todo objeto profanado (AGAMBEN 2007 paacuteg 68)
352 Temor sagrado
Eacute paradoxal essa relaccedilatildeo entre sagrado e profano entre a retidatildeo das soluccedilotildees e o
entroncamento da coisa colocada novamente em resposta Isso porque a linguagem eacute um
paradoxo lar de absurdos de certezas dos homens e da verdade Ela responde a nossos
anseios temporais e nos tira as palavras no momento crucial Ao tentar dar uma resposta
no tempo estamos agrave mercecirc dele e de sua idiossincrasia A fim de compreender melhor
122
como se processa essa dinacircmica de responder na e agrave temporalidade conveacutem delongar-se
em sua instacircncia sagrada e profana
Acima Agamben se refere a Freud Num de seus artigos intitulado Totem e tabu
o psicanalista reflete sobre um importante conceito de tabu Ele comeccedila referindo-se agrave
origem polineacutesia do termo cujo significado versa ldquoem dois sentidos contraacuterios Para noacutes
significa por um lado lsquosagradorsquo lsquoconsagradorsquo e por outro lsquomisteriosorsquo lsquoperigosorsquo
lsquoproibidorsquo lsquoimpurorsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 16) Ideias semelhantes podem ser vistas neste
dicionaacuterio de maori refazendo o percurso histoacuterico da palavra ldquoser sagrado proibido
restrito afastado sobre a proteccedilatildeo de atua [os deuses e os ancentrais]rdquo (MOORFIELD
Tapu ndash traduccedilatildeo livre)104
As significaccedilotildees de tabu que utilizamos hoje se afastam do universo miacutetico e se
aproximam do moral No dicionaacuterio podemos encontrar seis entradas a primeira refere-
se agrave instituiccedilatildeo religiosa conferindo sacralidade a seres objetos ou lugares
concomitantemente proibindo qualquer contato com eles sob pena de castigo divino
Todas as demais entradas trazem a ideia de proibiccedilatildeo ora interdiccedilatildeo religiosa ora
cultural ou imposta por costume social ou como medida protetora Vejamos alguns
exemplos ldquoEm Samoa distribuiacutea-se todo o pescado pelo chatildeo e ele era lavado em aacutegua
doce para livraacute-lo do taburdquo ldquoBeltrano eacute uma pessoa que vive presa a tabusrdquo e ldquoOs tabus
convencionais da era vitorianardquo (HOUAISS 2009a Tabu)
Essa concepccedilatildeo ratifica as restriccedilotildees imposta agrave educaccedilatildeo pelos pais pela
sociedade e pelos educadores a fim de zelar pela estrutura vigente temendo por seus
filhos do sistema Tambeacutem reforccedila o sentido de separaccedilatildeo do tempo produtivo
controlaacutevel daquele que se perde em filosofias em tentativa e erro e na experienciaccedilatildeo
demorada do mundo Enfim perdemos a proteccedilatildeo das divindades e de nosso passado a
saber do sagrado que nos definia pela tradiccedilatildeo e deixamos o lugar vago entrada e saiacuteda
de novas ideologias que ao piscar dos olhos envelhecem em sua utilidade
[] o caacutelculo demonstra toda a eficiecircncia natildeo perde tempo com a espera do
inesperado onde natildeo haacute tempo a perder com interpretaccedilotildees onde natildeo
interferem as transferecircncias da anguacutestia [] a utilizaccedilatildeo dos modelos de
identificaccedilatildeo no universo dos fatos inventa espiacuteritos e por muito tempo o ceacuteu
foi povoado de seres metafiacutesicos como colonialismo capitalismo
imperialismo comunismo (LEAtildeO 1977 paacuteg 67)
104 Be sacred prohibited restricted set apart forbidden under atua protection Disponiacutevel em
lthttpmaoridictionaryconzword7504gt Acesso em 04 set 2017
123
Para cada situaccedilatildeo um limite apropriado tanto aqueles louvaacuteveis a serem
almejados quanto os despreziacuteveis a serem execrados e propriamente a esses uacuteltimos
chamariacuteamos de tabus Determinados assuntos natildeo devem ser mencionados Na exceccedilatildeo
das exceccedilotildees quando se precisar tocar no assunto que o toque seja delicado pois eacute toacutepico
sensiacutevel ou que seja riacutespido pois eacute passiacutevel de reprovaccedilatildeo Em ambas as circunstacircncias
preza-se pela brevidade discursiva jaacute que natildeo se deve falar de tal coisa chamariz de mau-
agouro
Com o tempo aprende-se a ignorar aquilo a que natildeo conseguimos dar a devida
atenccedilatildeo ateacute que se cria o haacutebito a tradiccedilatildeo da seguranccedila e do conforto Ao natildeo mencionaacute-
lo natildeo o tornamos presenccedila mas ele o sagrado e o profano estatildeo presentes queremos
isso ou natildeo Deixamos subentendida a pujanccedila posta pelo tema e tememos pelos
descontroles que dali possam se originar num ambiente controlado A existecircncia dos tabus
da tradiccedilatildeo surge concomitantemente agrave tradiccedilatildeo dos tabus mantenedores de um status
quo
Para responder o que eacute o tabu precisaremos pensaacute-lo Um problema com isso estaacute
pois no empecilho moral que eacute pensar sobre um tabu No geral evita-se dispor a respeito
de tal tema em falar sobre ele quanto mais com ou a partir dele Eacute difiacutecil dizer jaacute que no
dito somos convidados a secirc-lo para pensaacute-lo quando o pensamos aproximamo-nos tanto
dele que por fim incorremos em delito ou seja incorremos no proacuteprio tabu ldquolsquoA violaccedilatildeo
de um tabu transforma o proacuteprio transgressor em tabu ()rsquordquo (FREUD 2006 paacuteg 17)
Esse encontro nos deixa desconfortaacuteveis moralmente estranhos ateacute que natildeo nos
reconhecemos no que nos transformamos
Dizer o ser tem seu risco e muitas vezes o tabu eacute o que natildeo queremos ser Aquilo
que natildeo queremos que seja Ainda que haja uma relativizaccedilatildeo imensa entre certo ou
errado algumas posturas estatildeo tatildeo enraizadas que tendemos a apenas passaacute-las adiante
erigindo praticamente uma cultura do bem e uma do mal daquilo que compreendemos
como mau e bom Direta e indiretamente educa-se em nossas escolas e nos demais
ambientes para coibir e incentivar tal e tal comportamento a ponto de se achar terriacutevel
pensar o contraacuterio
124
Os homens105 que incorrem em tabu satildeo estes que se transitam no limiar de uma
existecircncia seja social seja individual A ambivalecircncia na qual habitam torna-os notaacuteveis
negativa ou positivamente isto eacute perceptiacuteveis em meio agrave gama das mesmas decisotildees Da
notabilidade surgem as ponderaccedilotildees reprovaccedilotildees condenaccedilotildees exaltaccedilotildees a saber os
demais passam a responder a eles Acaba que por requisitarem respostas as pessoas natildeo
soacute correspondem como de algum modo satildeo respondidas por esse tabu Ou por partir de
um monstro ou por se originar de um heroacutei o tabu enquanto um misteacuterio parcialmente
acessado revela uma resposta que tanto inspira atitudes como pode servir de modelo de
comportamento No caso essa concepccedilatildeo moralizaria o tabu trabalhando por meio de
paradigmas para preservar um modus operandi um know how de como se pensar o real
[] qualquer um que faz o que eacute proibido isto eacute que viola o tabu se torna ele
proacuteprio tabu Como harmonizar isto com o fato de o tabu se ligar natildeo somente
a uma pessoa que fez o que eacute proibido como tambeacutem a pessoas em estados
especiacuteficos aos proacuteprios estados bem como objetos impessoais Qual pode
ser o atributo perigoso que permanece o mesmo em todas essas condiccedilotildees
diferentes Soacute pode ser uma coisa a qualidade de excitar a ambivalecircncia dos
homens e de tentaacute-los a transgredir a proibiccedilatildeo
Qualquer um que tenha violado um tabu torna-se tabu porque possui a perigosa
qualidade de tentar os outros a seguir-lhe o exemplo por que se lhe deve
permitir fazer o que eacute proibido a outros Assim ele eacute verdadeiramente
contagioso naquilo em que todo exemplo incentiva a imitaccedilatildeo e por esse
motivo ele proacuteprio deve ser evitado (FREUD 2006 paacuteg 25)
Os limites nossa constituiccedilatildeo satildeo tanto sagrados quanto profanos E permeando
as duas instacircncias no limiar habita o ocultamento Natildeo sabemos nossa limitaccedilatildeo ateacute
sermos tentados por ela e arriscarmo-nos em sua borda Quando na interpretaccedilatildeo de
Freud das ideias de Wundt ele disse que ldquoEsse poder [tabu] estaacute ligado a todos os
indiviacuteduos especiais [] a todos os estados excepcionais [] e a todas as coisas
misteriosas como a doenccedila e a morte o que estaacute associado a elas atraveacutes do seu poder de
infecccedilatildeo ou contaacutegiordquo (FREUD 2006 paacuteg 18) e que ldquoAssim os rapazes satildeo tabu em
suas cerimocircnias de iniciaccedilatildeo as mulheres durante a menstruaccedilatildeo e imediatamente apoacutes
o parto assim como os receacutem-nascidos as pessoas enfermas e acima de tudo os mortosrdquo
(FREUD 2006 paacuteg 19) ele nos convida a pensar essa caracteriacutestica de convivecircncia com
o que natildeo sabemos este democircnio incontrolaacutevel e portanto temiacutevel
105 Cabe ressalvar que para os povos antigos da polineacutesia o tabu natildeo eacute uma condiccedilatildeo exclusivamente
humana mas tambeacutem eacute ligado a animais manifestaccedilotildees do clima frutas aacutervores etc
125
Simultaneamente tabu eacute o sagrado algo sempre presente Pelo menos era para
muitos povos antigos que experienciavam a tradiccedilatildeo como a presenccedila da ancestralidade
ou seja eles mesmos seus avoacutes seu passado e seu fundamento Por eles os deuses se
afirmavam como a primeira ascendecircncia genealoacutegica seu parente mais antigo isto eacute o
que funda uma famiacutelia consequentemente um povo Os maoris tecircm na palavra atua o
duplo sentido de deus e ancestral deixando transparecer um passado ativo respondente
nas pessoas e palco ainda de acontecimentos o que difere radicalmente do tempo
estanque e portador de mensagens estanques com o qual estamos acostumados a lidar
contemporaneamente
1 (substantivo) antepassado com influecircncia contiacutenua deus democircnio ser
sobrenatural deidade fantasma objeto de fruto de supersticcedilatildeo ser estranho ndash
embora muitas vezes traduzido como lsquodeusrsquo e agora tambeacutem usado para o Deus
cristatildeo isso eacute um equiacutevoco do significado real Muitos maori traccedilam sua
ancestralidade a partir de atua em sua whakapapa [genealogia (MOORFIELD
Whakapapa)106 literalmente lsquoo fundamento que acontece (MOORFIELD
Whaka107 Papa108)] e satildeo considerados ancestrais com influecircncia em
determinados domiacutenios Estes atua tambeacutem eram uma forma de racionalizar e
perceber o mundo Normalmente invisiacutevel atua pode ter representaccedilotildees
visiacuteveis (MOORFIELD Atua ndash traduccedilatildeo livre)109
353 O que responde o sagrado
Cada resposta cada ensinamento cada aprendizagem estaacute vinculada a uma
tradiccedilatildeo mas cada pessoa objeto animal ou seja ente eacute em si jaacute uma tradiccedilatildeo Somos
106 Disponiacutevel em
lthttpmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakapapaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017 107 Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=whakaampsearc
h=gt Acesso em 06 set 2017 108 Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=papaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017 109 1 (noun) ancestor with continuing influence god demon supernatural being deity ghost object of
superstitious regard strange being - although often translated as ldquogodrdquo and now also used for the
Christian God this is a misconception of the real meaning Many Māori trace their ancestry from atua in
their whakapapa and they are regarded as ancestors with influence over particular domains These atua
also were a way of rationalising and perceiving the world Normally invisible atua may have visible
representations Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=atuaampsearch
=gt Acesso em 06 set 2017
126
o que pode haver de mais tradicional de noacutes mesmos isso porque nos desdobramos numa
histoacuteria presente que se atualiza no mundo a partir das possiblidades de ser sua
ancestralidade sacra Nesse sentido podemos aqui traccedilar um paralelo com a educaccedilatildeo
como apropriar-se do que eacute proacuteprio o que jaacute somos o que fomos mas ainda vige e o que
seremos pela ousadia de dar um passo adiante criaccedilatildeo e destruiccedilatildeo Dessa forma eacute
possiacutevel compreender de que trata o sagrado sem por isso abrir matildeo de seu caraacuteter de
misteacuterio perene
Contudo natildeo eacute assim que o sagrado se manifesta contemporaneamente mas sob
a eacutegide da religiatildeo e da descrenccedila enquanto portador de inverdades De um modo geral
principalmente no Ocidente a atualidade natildeo crecirc no sagrado como por exemplo na
ciecircncia na miacutedia e na ciecircncia O proacuteprio termo tabu que ldquodenota tudordquo (FREUD 2006
paacuteg 16) permite um outro Qual o outro de tudo mdash Nada Para Freud (2006 paacuteg 16)
o inverso de tabu eacute noa que diz do que eacute comum ordinaacuterio e geralmente acessiacutevel Essa
concepccedilatildeo daacute a entender que somos ordinaacuterios e extraordinaacuterios ao mesmo tempo
1 (partiacutecula) apenas simplesmente ateacute ao acaso ociosamente
infrutiferamente em vatildeo assim que - uma partiacutecula que segue imediatamente
apoacutes a palavra a que se relaciona Indica uma ausecircncia de limitaccedilotildees ou
condiccedilotildees
2 (estativo) estar livre das influecircncias de tapu ordinaacuterio sem restriccedilotildees
vaacutecuo oco (MOORFIELD Noa ndash traduccedilatildeo livre)110
Dizer tabu de tudo estaacute para dizer sagrado de tudo dessa sacralidade profana e
misteriosa Em toda localidade haacute um deus dormindo Do simples da pedra que a crianccedila
brinca agraves grandes obras da humanidade o tempo sagrado natildeo suspende o tempo comum
ao contraacuterio chama atenccedilatildeo agrave fala misteriosa e fundadora que sussurra quando nada
acontece A correria da obrigaccedilatildeo tende a achar que algumas coisas natildeo estatildeo dignas dela
criando juiacutezos de valor certo ou errada da verdade das manifestaccedilotildees
Paralelamente ao dizer do pensador o artista nomeia (HEIDEGGER 1955 paacuteg
51) Dos ruiacutedos faz-se muacutesica das cores pintura ldquopensamento e linguagem satildeo para o
artista instrumentos de uma arte Viacutecio e virtude satildeo para o artista materiais para uma
110 1 (particle) only just merely quite until at random idly fruitlessly in vain as soon as - a particle
following immediately after the word it relates to Denotes an absence of limitations or conditions
2 (stative) be free from the extensions of tapu ordinary unrestricted void Disponiacutevel em
lthttpwwwmaoridictionaryconzsearchidiom=ampphrase=ampproverb=amploan=ampkeywords=noaampsearch=
gt Acesso em 07 set 2017
127
arterdquo (WILDE 1981 paacuteg 7) O poeta nomeia o sagrado Nomear norteia o nume O norte
do sagrado conduz agrave consagraccedilatildeo do mundo e agrave autosagraccedilatildeo no sentido de auscultar no
ordinaacuterio o extraordinaacuterio em repouso Uma resposta se forma deforma a realidade antes
sem nome sem senso de direccedilatildeo ao divino Nomear cerceia nas cercanias entoa o limite
fundador do nome o ancestral ainda presente
O tabu eacute o limite que vigora desde sempre fundamento que delimita Conviacutevio
diaacuterio de todos os homens mas mateacuteria-prima aos poetas e pensadores De modo que o
incorrer em tabu ou ocasiona em decadecircncia e posterior destruiccedilatildeo ou alarga os limites
desvelando o velado A parede da morada do ser eacute rompida ou a casa cai ou ganha-se
uma nova sala e um heroacutei ou um monstro arrombador de portas O sagrado inicia o que o
tabu limita ambos datildeo sentido ao mundo O comeccedilo eacute labiriacutentico que ldquopode se configurar
abertura significa espaccedilo-temporalidade que possa permitir e reunir tudordquo (JARDIM
2000 paacuteg 420)
O limite precisa obrar precisa fazer sentido tem que ser concreto para o limitado
Natildeo eacute arbitraacuterio ele eacute dado pelo real em suas diversas circunstacircncias A arbitrariedade do
limite confecciona barreiras invisiacuteveis gerando colocaccedilotildees muito honestas como quem
traccedilaraacute as barreiras e como mantecirc-las quais os modelos a serem seguidos e evitados para
manter a barreira invisiacutevel O limite eacute necessariamente uma barreira visiacutevel ou melhor
uma localidade que encerra as possibilidades do ser A partir da definiccedilatildeo heideggeriana
do fim no caso da Filosofia fica expliacutecito o finito enquanto a plenitude natildeo mero
esgotamento e enclausuramento do possiacutevel
O antigo significado de nossa palavra lsquofimrsquo (Ende) eacute o mesmo que o da palavra
ldquolugarrdquo (Ort) lsquode um fim a outrorsquo quer dizer lsquode um lugar a outrorsquo O fim da
Filosofia eacute o lugar eacute aquilo e em que se reuacutene o todo de sua histoacuteria em sua
extrema possibilidade Fim como acabamento quer dizer esta reuniatildeo
(HEIDEGGER 1979d paacuteg 72)
Agora como saber se ao quebrar a parede a casa permaneceraacute Soacute agrave medida de
como respondemos agraves questotildees saberemos o que sobraraacute de noacutes Natildeo eacute algo soacute para
poetas e pensadores decerto mas eles estatildeo sempre proacuteximos indicando os limites
provocando-os contando a histoacuteria de seus desbravadores
Sobre o que cabe a cada um haacute um relato de cultura antiga dos maori que dizia
que o chefe da tribo natildeo soprava o fogo com a boca para natildeo transmitir o sagrado agrave carne
128
cozida e matar quem a comesse transformando em chefe quem chefe natildeo era (FREUD
2006 paacuteg 22) Claro que isso tambeacutem poderia ocasionar num novo chefe Isto conflita
com a concepccedilatildeo de Freud de os homens se sentirem tentados Dentro desta loacutegica do
controle ele soacute pode ver como tentaccedilatildeo o que os antigos viam como presenccedila (qualquer
um que incorre em tabu eacute tabu) Tabu natildeo eacute apenas um exemplo para ser evitado e
adorado Quem eacute rei sempre foi rei Quem seraacute rei sempre foi rei Outro que tentasse ser
rei alargaria seu ser para aleacutem de seu proacuteprio ocasionando no fim para aleacutem da finitude
cegueira paralisia ou morte
Se consigo comer a carne em tabu do liacuteder se consigo encontrar o Graal ou tirar
a espada da pedra natildeo importa pois soacute consigo na medida em que jaacute sou a possibilidade
de tirar a espada da pedra Trata-se de destino natildeo de vontade Trata-se de apropriar-se
do que eacute proacuteprio natildeo de tentar ser algo que natildeo somos Trata-se de achar o que natildeo
podemos perder natildeo de possuir o que jamais podemos ter
Respondemos como quem casa ser e ente linguagem e liacutengua sagrado e profano
Concerne arriscar a medida ao diaacutelogo e agrave tensatildeo que se faz presenccedila Isso nos remete agrave
etimologia de responder como assegurar novamente seu compromisso com a questatildeo
Distinto de resposta responder vem do latim respondeo cujo significado se assemelha
muito ao sentido moderno da palavra (HOUAISS 2009a Responder)
Todavia vimos que haacute muito mais nas repostas do que crecirc nossa vatilde filosofia E jaacute
em latim podiacuteamos encontrar o verbo que acompanhado de re descambou em responder
Esse verbo nos falava de outra postura perante o mundo mas conhecida nossa ldquo1
Comprometer-se noivar 4 Prometer ou afirmar solenemente dar a palavra sobre dar
uma garantia derdquo (GLARE 1968 paacuteg 1809 ndash traduccedilatildeo livre)111 Do particiacutepio passado
de spondeo sponsus temos em portuguecircs esposo esposa e esponsais A relaccedilatildeo entre
casamento e responder daacute-se no compromisso firmado no sagrado reacutedeas cavalo e
cavaleiro da carruagem dos seres Em concoacuterdia entre o limite e o ilimitado esposamos
na localidade onde habita a questatildeo e ratificamos nosso compromisso com ela
Ainda que nem todo homem seja poeta ou pensador todos estatildeo sujeitos ao
questionamento Todos em alguma medida reafirmam seu compromisso com o
111 1 To give a pledge or under taking 4 To promise or asserts solemnly give onersquos word about give a
assurance of
129
questionar O sagrado natildeo eacute posse de ningueacutem sua natureza eacute tatildeo extraordinaacuteria quanto
gregaacuteria e fundadora dos limites
[] Eacute deus desconhecido
Ele aparece como ceacuteu Acredito mais
que sejam assim Eacute a medida dos homens
Cheio de meacuteritos mas poeticamente
o homem habita esta terra [] (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacutegs
256-257 ndash traduccedilatildeo de Emmanuel Carneiro Leatildeo)112
Num paralelo mitoloacutegico Iacutecaro natildeo se satisfaz em sair do labirinto mas leva-o
aonde quer que vaacute (JARDIM 2000 paacuteg 424) Natildeo eacute uma decisatildeo sua natildeo eacute uma
adequaccedilatildeo a um modelo Sua proacutepria praacutetica define quem ele eacute uma decisatildeo do real Sua
desmedida incorrer em tabu eacute a proacutepria condiccedilatildeo heroica e monstruosa seu fim sua
plenitude
Em sua correspondente grega spondeo aparece como σπένδω com um sentido
parecido com um sentido digamos mais concreto Em vez de circunscrever o
compromisso ele diz do ato que o precede ldquofazer uma oferenda liacutequida (porque antes de
beber o vinho uma porccedilatildeo foi derramada na mesa no coraccedilatildeo ou no altar) [] fazer
libaccedilotildeesrdquo (LIDDELL SCOTT 1940 Σπένδω ndash traduccedilatildeo livre)113 aquele gole para o
santo que a cultura popular tanto conhece
Seja pela muacutesica na meacutetrica espondeu seja pelo vinho cor de sangue vertido agrave
terra respondemos em mutiratildeo o que o mito evocava em palavra e rito A cada resposta
em compromisso ratificado com a localidade mais solitaacuteria responde-se com a bagagem
da tradiccedilatildeo e com a parte que nos cabe nosso proacuteprio Assim o tabu concerne a palavra
que nos forma e enforma apropriaccedilatildeo nomeada pelo poeta dito pelo pensador o sagrado
que eacute sendo Neste sentido poeacutetico e mitologicamente o homem habita pois em casa que
eacute tabu as coisas tecircm memoacuteria a fala que natildeo cessa em lembranccedila mas permanece a dizer
no tempo
112 [] Ist unbekannt Gott Ist er offenbarwie der Himmel Dieses Glaubrsquoich eher Der Mensch Maas
istrsquos Voll Verdienst doch dichterisch wohnet Der Mensch auf dieser Erde [] 113 make a drink-offering (because before drinking wine a portion was poured on the table hearth or altar)
[hellip] make libations Disponiacutevel em
lthttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990400573Aentry3Dspe2
Fndwgt Acesso em 08 set 2017
130
O mito que eacute tabu nomeia o sagrado agrave medida que se escuta a fala do tempo O
que eacute o sagrado senatildeo o proacuteprio do tempo a presenccedila do presente uma teoria fundamental
do real mdash O fundamento da casa o que origina e permite a permanecircncia do originaacuterio
na plenitude da habitaccedilatildeo Trazer para extraordinaacuterio a fala do comum esquecido e ao
banal o maravilhoso que natildeo se escuta eis talvez um belo sentido para um ensino poeacutetico
131
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Natildeo basta definir poeacutetica para falar de uma educaccedilatildeo poeacutetica Quando se firmou
o compromisso de discutir sobre o ensino e a filosofia optou-se por uma discussatildeo que
se desse de modo poeacutetico tornando uma fala sobre algo um dito em conjunto com alguma
coisa Promoveu-se pois um diaacutelogo com as disciplinas em questatildeo poeticamente Nesse
vieacutes a mera definiccedilatildeo fugiria da perspectiva esteacutetico-filosoacutefica e estaria aqueacutem do ofiacutecio
de reunir no ato de ensinar o dizer do filoacutesofo e o nomear do poeta
ldquoPoeticamente o homem habitardquo (HOumlLDERLIN apud HEIDEGGER 2006 paacuteg
257) eacute quase um lema versa o leme deste barco Natildeo se trata de reconceituar o ensino eacute
preciso voltar a ensinar pela primeira vez natildeo se trata de fazer histoacuteria da filosofia apenas
mas de tambeacutem filosofar sua histoacuteria transgredindo a mensagem da tradiccedilatildeo ao mesmo
tempo em que se presta a ela a devida homenagem Habitar de modo poeacutetico eacute natildeo deixar
as linhas do pensamento serem declamadas prosaicamente
Fiz de mim o que natildeo soube
E o que podia fazer de mim natildeo o fiz
O dominoacute que vesti era errado
Conheceram-me logo por quem natildeo era e natildeo desmenti e perdi-me
Quando quis tirar a maacutescara
Estava pegada agrave cara
Quando a tirei e me vi ao espelho
Jaacute tinha envelhecido
Estava becircbado jaacute natildeo sabia vestir o dominoacute que natildeo tinha tirado
Deitei fora a maacutescara e dormi no vestiaacuterio
Como um catildeo tolerado pela gerecircncia
Por ser inofensivo
E vou escrever esta histoacuteria para provar que sou sublime (PESSOA 1997 paacuteg
124)
Naturalmente que estamos cheios de viacutecios Cheios de costumes acostumados e
encostados no haacutebito de se ensinar algo e de como encarar a filosofia Essa forma de
ensino na qual nos encontramos tem se mostrado desgastada e passiacutevel de incisivas
criacuteticas no que concerne a formar cidadatildeos pessoas mais humanas e em uacuteltima instacircncia
mais felizes Isso tudo eacute um ponto de interrogaccedilatildeo quanto agrave eficiecircncia Entretanto no que
diz respeito ao consumismo e agrave adesatildeo a uma loacutegica de mercado desenvolvimentista e
tecnocrata a educaccedilatildeo contemporacircnea de modo geral apresenta-se muito eficaz
132
Como uma maacutescara que se confunde com rosto os homens estatildeo agrave deriva em sua
existecircncia sem mais se perguntarem sobre si mesmos encarando tal postura como
improdutiva Vale mais a pena um conhecimento uacutetil e uma vida mansa mas segura
deter o controle do que arriscar novos caminhos Ainda que se decirc a entender o contraacuterio
a aparente sandice dessa uacuteltima assertiva natildeo ignora as inovaccedilotildees tecnoloacutegicas e os altos
investimentos em infraestrutura que ocorrem em alguns setores da economia em algumas
partes do mundo poreacutem chama atenccedilatildeo agrave inovaccedilatildeo do novo natildeo da mesmice Novas
tecnologias natildeo necessariamente satildeo outras tecnologias no mais das vezes eacute a mesma
loacutegica impositiva que submete o λόγος dos demais discursos agrave vontade da teacutecnica
Navegar natildeo eacute mais preciso viver sim Viver como quem segue o fluxo da mareacute
e se adequa ao sobe e desce das ondas a fim de que o barco natildeo vire Vital mas natildeo
essencial Os homens precisam da utilidade urgem por seguranccedila por mais que tenham
que abrir matildeo de certa liberdade Eacute pois mister viver em nenhum momento se propocircs
aqui algo diferente disso que se ignorassem as condiccedilotildees baacutesicas para a vida para o
ensino e para o pensamento
Acontece que natildeo soacute de patildeo vive o homem Natildeo eacute possiacutevel que a medida das coisas
seja apenas o para quecirc elas servem Pobre das baratas Elas natildeo prestam logo podem ser
eliminadas A filosofia hoje natildeo serve para nada ou pouco logo vamos dar cabo dela
ou deixar soacute a rabiola para ser lembrada quase nunca no aacutelbum de fotografias da histoacuteria
Tal foacutermula poderia ser empregada com outros animais dos quais jaacute achamos que
exploramos tudo mas tambeacutem ideologias praacuteticas povos culturas faixas etaacuterias e por
aiacute vai
Por esse motivo o que permanece no fluxo das mudanccedilas eacute a pergunta que norteia
o primeiro capiacutetulo deste trabalho Faz parte do tempo inovar e definhar e natildeo caberaacute a
noacutes decidir sobre isso No entanto o que tange o possiacutevel haacute de ser ousado A serventia
de uns eacute a inutilidade de outros e a verdade de outrora foi esquecida Algumas contudo
cortam profundo na memoacuteria e sentidos vigem A tradiccedilatildeo se funda na ranhura do tempo
que ainda sangra
Ou porque natildeo tem cura ou por entalharmos o corpo mnemocircnico com
conhecimentos a ferida aberta da tradiccedilatildeo eacute nossa identidade no tempo e espaccedilo Nosso
modo de pensar agir e sentir nossas preferecircncias e desgostos nossos temores e louvores
nossos discursos e linguagem satildeo frutos de algo que foi passado de geraccedilatildeo a geraccedilatildeo
133
Normalmente natildeo temos em mente que quando vemos uma fotografia antiga um livro
empoeirado ou um conceito anacrocircnico satildeo nossos pais e avoacutes surrando verdades
Vocecirc eacute o herdeiro
Filhos satildeo os herdeiros
pois pais morrem
Filhos ficam e floram
Vocecirc eacute o herdeiro (RILKE 2012 paacuteg 66 ndash traduccedilatildeo livre)114
Somos e natildeo somos o que fomos e seremos aquele diz respeito agrave tradiccedilatildeo este ao
ensino Tanto um quanto o outro estatildeo intrinsecamente relacionados de maneira que
estudar um tem jaacute imiscuiacutedo o estudo do outro Isto significa que perguntar-se pelo ensino
eacute responder pela tradiccedilatildeo e repensar a tradiccedilatildeo propotildee olhar o ato de ensino com a visatildeo
inquiridora que sabe e natildeo sabe
Compreende-se por ensino o que se apreende por tradiccedilatildeo Um ensino mecacircnico
precisa de uma tradiccedilatildeo tecnocrata da mesma forma que reconhecer no dito o eco poeacutetico
eacute natildeo encarar a educaccedilatildeo restrita agrave transmissatildeo do conhecimento nem somente palco de
avaliaccedilotildees e encenaccedilotildees de aprendizagens Refere-se agrave dignidade dos caminhares no
caminho por mais tortos que possam ser Eacute um dar-se ao risco Natildeo vale a pena para
passar na prova natildeo vale a pena para apertar o parafuso nem operar o paciente Eacute digno
sem ser aplicaacutevel aproveitaacutevel sem o aval aproveitador da norma Eacute da tradiccedilatildeo mas
ainda natildeo eacute tradicional
Mar Portuguez
Oacute mar salgado quanto do teu sal
Satildeo lagrimas de Portugal
Por te cruzarmos quantas matildees choraram
Quantos filhos em vatildeo resaram
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso oacute mar
Valeu a pena Tudo vale a pena
Se a alma natildeo eacute pequena
Quem quer passar aleacutem do Bojador
Tem que passar aleacutem da dor
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu
Mas nelle eacute que espelhou o ceacuteu (PESSOA 1934 p 64)
114 Du bist der Erbe Soumlhne sind die Erben denn Vaumlter sterben Soumlhne stehn und bluumlhn Du bist der
Erbe
134
O desbravamento pode ser feito de diversas maneiras Haacute quem pegasse da direccedilatildeo
e saiacutesse oceano afora Em sala de aula uma das formas de descobrir eacute sem duacutevidas por
meio do desdobramento de um pensamento questionador Perguntar agraves e ser perguntado
pelas questotildees que nos interpelam
Natildeo eacute qualquer caminhar mas o filosoacutefico Natildeo soacute por estar escancarado no
tiacutetulo mas principalmente pelo proacuteprio estigma da filosofia que ela foi inquirida para dar
prosseguimento ao incocircmodo deixado pela tradiccedilatildeo e pelo ensino Sob as alcunhas de
confusa e abstrata ela permanece ainda um bastiatildeo de criaccedilatildeo e de pensamento frente agraves
demandas por soluccedilotildees objetivas e praacuteticas Relegada ao curriacuteculo escolar e agrave caacutetedra
acadecircmica ela natildeo eacute a mesma da aacutegora claacutessica decerto Em tempos digitais e impessoais
como o nosso a filosofia surge sendo uma vaacutelvula de escape no miacutenimo Seu potencial eacute
do tamanho de seu desafio dar sentido ao insensiacutevel dar agrave tradiccedilatildeo o pensamento devido
e ao ensino o cuidado esperado
Contudo a filosofia natildeo estaacute agrave parte do mundo logo tambeacutem tem caracteriacutesticas
dele inclusive aquelas que a princiacutepio se dispotildee a problematizar Por esse motivo
conveacutem se perguntar pelo ser da filosofia A matildee de todas as ciecircncias tornou-se parte do
conhecimento cientiacutefico como isso foi possiacutevel Tida por obra de eleitos enclausurados
numa torre de marfim sem relevacircncia social e a sobreviver de um prestiacutegio decadente de
eras devassadas o ldquoamor ao saberrdquo padece por seacuteculos de erudiccedilatildeo metafiacutesica de
categorizaccedilotildees e hierarquizaccedilotildees e em uacuteltima instacircncia por ter sido uma das responsaacuteveis
por suplantar a verdade mito-poeacutetica em prol da razatildeo
Agrave exceccedilatildeo do excesso a filosofia come o que plantou Sua origem em Platatildeo tem
traccedilos transgressores e perversos ao mesmo tempo podendo ter influenciado seus
praticantes a exercer uma segregaccedilatildeo ideoloacutegica Somente quem saiacutesse da caverna das
opiniotildees dos pensamentos ditos rasos e sensiacuteveis da δόξα e adentrasse o νοῦς a
contraparte ideal da existecircncia seria digno dela Com isso poetas pensamentos do
subsolo revelaccedilotildees miacutesticas e tudo o que natildeo se adequasse ao raciociacutenio loacutegico-formal
foram postos em escanteio e perderam seu teor de verdade para assumir contornos
ficcionais pitorescos quando natildeo falaciosos
A proposiccedilatildeo de questionar a filosofia desenrola-se pois num filosofar outro
Concebe um pensamento que reconhece no ser algo de fluido de paradoxal e de dialoacutegico
A fim de tentar abarcar o mundo com as matildeos mesmo suas camadas aparentemente
135
contraditoacuterias esse risco do pensar responde aos mais diversos incocircmodos Do sono agrave
vigiacutelia quanto da morte agrave vida sem os opor sem os solucionar dispotildee-se a aceitar o
equiacutevoco inerente assim como quem anda sobre ovos
Olhar para frente e para traacutes Ao enveredar pela tradiccedilatildeo ouvem-se muitas vozes
a dizer e nomear isto que se apresenta no tempo Ateacute o pensamento pode ser pensado A
questatildeo entretanto natildeo eacute algo de nebuloso e eteacutereo entre cem e sem sentidos Ela situa o
ser no espaccedilo com suas respostas e perpetua a sagraccedilatildeo da linguagem ao ser respondida
Hipoteticamente se a filosofia estaacute restrita aos filoacutesofos o pensamento eacute de todos e de
ningueacutem O caminhar singular de cada um ao lidar com as questotildees resgata o cuidado
primordial das civilizaccedilotildees receacutem-nascidas cujo mundo se mostrava pela primeira vez e
precisava ter um nome
A palavra
Prodiacutegio distante e louco
Minha margem agrave sua eacute pouco
Aguardei ateacute a parda Parca
E encontrei o nome em sua marca ndash
Eu pude atecirc-lo com teso
Para brilhar e luzir preso
Ansiei por bom vindouro
Com fraacutegil e raro tesouro
Toda via Ela me dizia
mdash Nada haacute aqui e a terra eacute vazia
Eis que escorre entre meus dedos
E agrave paacutetria dou enganos ledos
Triste entatildeo soube abdicar
mdash Secirc sem palavra vaacutecuo e ar (GEORGE apud HEIDEGGER 2003 p 124 ndash
traduccedilatildeo livre)115
Uma postura proacutepria perante a tradiccedilatildeo da filosofia engendra um trato proacuteprio com
o modo de se pensar A morte natildeo cabe nos dicionaacuterios temos que fazer a experiecircncia de
115 Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die
graue norn Den namen fand in ihrem born ndash Drauf konnt ichs greifen dicht und stark Nun bluumlht und
glaumlnzt es durch die mark Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie
suchte lang und gab mir kund bdquoSo schlaumlft hier nichts auf tiefem grundldquo Worauf es meiner hand entrann
Und nie mein land den schatz gewann So lernt ich traurig den verzicht Kein ding sei wo das wort
gebricht
136
morrermos um pouco para saber o ser que se mostra no falecimento Tampouco se daacute a
linguagem por encerrada nos livros didaacuteticos da histoacuteria Natildeo satildeo os verbetes que ganham
novas entradas mas o mundo que brota significados antes ignorados O ofiacutecio da postura
poeacutetica e pensadora no mundo eacute encontrar as palavras que faccedilam jus ao descobrimento
do mesmo local onde habitamos e somos habitados constante e incessantemente Essa eacute
a proposta esse eacute o desafio isto eacute um convite a um ensino poeacutetico
137
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Produto didaacutetico apresentado ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia e Ensino do Centro Federal
de Educaccedilatildeo Tecnoloacutegica Celso Suckow da Fonseca
CEFETRJ como parte dos requisitos necessaacuterios agrave
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre
Orientador Eduardo Augusto Giglio Gatto
Rio de Janeiro
Outubro de 2017
151
RESUMO
Trecircs experiecircncias poeacutetico-filosoacuteficas
Apresentaccedilatildeo planejamento desenvolvimento e criacutetica de trecircs experiecircncias de
filosofia com uma perspectiva poeacutetica Elas foram pensadas para serem feitas a princiacutepio
com crianccedilas num ambiente de sala de aula Num primeiro movimento eacute exposta parte
de um filme paroacutedia de Frankenstein e discute-se sobre as limitaccedilotildees de nossa vontade
Num segundo movimento discute-se o que eacute ser perguntando a crianccedilas sobre o exerciacutecio
de ser crianccedila Num terceiro movimento realizado tanto com crianccedilas quanto com jovens
em pares uma pessoa eacute vendada e requisitada a guiar a outra pessoa discutindo-se com
isso nosso apego ao controle a relaccedilatildeo de confianccedila estabelecida aceitaccedilatildeo do equiacutevoco
Por fim eacute patente a existecircncia singular que cada crianccedila jovem e ateacute adulto possuem
Suas capacidades inventivas questionadoras aleacutem e aqueacutem dos preconceitos ou do
demasiado zelo com eles Nesse sentido arriscar-se e aceitar o provaacutevel tropeccedilo
apresenta-se como caracteriacutestica essencial neste caminhar
Palavras-chave Poeacutetica Ensino de Filosofia Tradiccedilatildeo Linguagem
152
ABSTRACT
Three poetic-philosophical experiences
Presentation planning development and critic of three experiences of philosophy
with a poetic perspective They were designed to be done at first with children in a
classroom environment In a first movement part of a film Frankensteinrsquos parody is
exposed and the limitations of our will are discussed In a second movement it is
discussed what is to be asking children about the exercise of being a child In a third
movement carried out both with children and with young people in pairs a person is
blindfolded and asked to lead the other person discussing with this our attachment to
control the relationship of trust the acceptance of misunderstanding Finally it is clear
the unique existence that each child young and even adult have Their inventive
questioning abilities beyond prejudices or over-zeal with them In this sense risking and
accepting the probable stumbling is presented as an essential characteristic in this walk
Keywords Poetics Teaching Philosophy Tradition Language
153
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
Figura 1 ndash Calvin e Haroldo 165
Figura 2 ndash A morte 166
154
SUMAacuteRIO
Apresentaccedilatildeo 155
Quando a vida nos diz natildeo 157
Objetivo geral 157
Objetivo especiacutefico 157
Proposta para a atividade 158
Fluxograma 160
Relato da experiecircncia 161
Reflexatildeo com a experiecircncia 169
Exerciacutecios de ser crianccedila 171
Objetivo geral 171
Objetivo especiacutefico 171
Proposta para a atividade 171
Fluxograma 174
Relato da experiecircncia 174
Reflexatildeo com a experiecircncia 177
A cegueira da visatildeo 178
Objetivo geral 178
Objetivo especiacutefico 178
Proposta para a atividade 178
Fluxograma 180
Relato da experiecircncia 180
Reflexatildeo com a experiecircncia 183
Consideraccedilotildees finais 186
Referecircncias 188
155
Apresentaccedilatildeo
A volta da filosofia para as salas de aula alcanccedilou as seacuteries iniciais do
Fundamental Ainda um movimento isolado acontece em alguns locais do Brasil e mais
especificamente no Rio de Janeiro Em Duque de Caxias na Escola Municipal Joaquim
da Silva Peccedilanha juntamente com o Projeto de Extensatildeo Em Caxias a filosofia en-caixa
do Nuacutecleo de Estudos Filosoacuteficos da Infacircncia do PropedUerj coordenado pelo professor
Walter Kohan onde este trabalho foi apresentado o ensino de filosofia com crianccedilas tem
se mostrado como resposta116 agrave carecircncia reflexiva e questionadora jaacute em tenra idade
diante do mundo
O iniacutecio do projeto data de 2007 e desde entatildeo tem gerado um importante papel
na divulgaccedilatildeo e solidificaccedilatildeo da filosofia com crianccedilas Durante esses anos podemos
contar com o apoio da Secretaria de Educaccedilatildeo de Duque de Caxias da Faperj aleacutem da
direccedilatildeo das escolas seus professores e pesquisadores e alunos de graduaccedilatildeo e poacutes-
graduaccedilatildeo Minha participaccedilatildeo eacute recente Inicia-se em 2013 quando comecei a frequentar
os grupos de discussatildeo Do segundo semestre de 2013 ateacute 2015 atuei diretamente na
escola Joaquim da Silva Peccedilanha coordenando e participando das experiecircncias
filosoacuteficas
Inicialmente o desenvolvimento destas atividades foram pensadas para estarem
sujeitas agrave brevidade de uns tempos de aula e voltadas para crianccedilas entre 8 e 11 anos
Entretanto conveacutem natildeo soacute ater-se ao desdobramento do tema mas a outros elementos
que possam convidar a pensar sobre o assunto ainda que indiretamente natildeo se
restringindo a faixas etaacuterias A questatildeo natildeo tem idade Ou seja o planejamento estaraacute
sempre aqueacutem da execuccedilatildeo e das nuances de cada contexto servindo apenas como guia
dentre uma multiplicidade de caminhos Conveacutem ressaltar que todos os responsaacuteveis
pelas crianccedilas estavam cientes das atividades propostas e que poderiam ser realizadas
filmagens fotografias e que os nomes de seus filhos poderiam ser expostos
116 O significado desta palavra aqui natildeo se restringe agrave dar uma soluccedilatildeo mas vista sua tradiccedilatildeo como ldquorepor
recolocar restabelecerrdquo (HOUAISS 2009 Resposta) promovendo a cada responder um recolocar-se
naquilo que nos instiga Nesse sentido ao inveacutes de encarar uma resposta como o que encerra a questatildeo
passa-se a lidar com ela por aquilo que apresenta novas possibilidades renovando e inovando
156
Ainda antes de dar iniacutecio propriamente eacute preciso sugerir que isto aqui natildeo se
refere ao primeiro contato com a turma nem ao uacuteltimo O pensamento natildeo comeccedila aqui
nem somos o suprassumo do saber por estarmos a fazer tais e tais atividades Mais vital
eacute a forma como a chamada experiecircncia filosoacutefica se organiza diferentemente de uma aula
tradicional propondo natildeo soacute ideias estranhas agrave uma disciplina usual como tambeacutem uma
praacutetica proacutepria e singular
A fim de que a atividade se desenvolva conveacutem que algum eacutethos comum se
estabeleccedila Tambeacutem sugerimos fortemente que a participaccedilatildeo de todos seja incentivada
mas natildeo exigida caso o aluno natildeo queira sem demanda por conhecimentos preacute-
estabelecidos com base no certo ou errado Dessa maneira dirimindo o iacutempeto por
reproduzir conceitos (para uma avaliaccedilatildeo por exemplo) ao estabelecer um espaccedilo de
conhecimento muacutetuo em que as estranhezas quanto agraves pessoas agrave forma de aula ou ao tipo
de tema sejam ao menos toleradas Isso porque em geral o aluno espera estar sujeito a
ameaccedilas de reprovaccedilatildeo consequentemente desqualificaccedilatildeo no que diz respeito a seu
meacuterito na resposta ou confia demasiadamente na autoridade do professor ou na voz da
turma como apelo demagoacutegico Embora seja improvaacutevel desfazer todas as falaacutecias
comuns do dia a dia educacional pelo menos o questionamento acerca delas precisa estar
em voga enquanto fundamento para erigir este trabalho
Iniciar uma postura filosoacutefica desde cedo pode ser bem interessante para a
realidade dos alunos acostumados a serem alvo de soluccedilotildees prontas para as perguntas da
lousa ensinados a responder ao professor em vez de perguntarem-se Esta importacircncia de
pensamento legitima o caminho reflexivo de cada um e coloca o ensino de filosofia como
um autoexerciacutecio de filosofar no qual a carecircncia conceitual natildeo impede a dignidade das
experiecircncias singulares No dia a dia lida-se com perdas ganhos dores e alegrias por que
natildeo considerar isso mateacuteria-prima para as aulas
157
Quando a vida nos diz natildeo
Objetivo geral
A partir de dinacircmicas filmes e trechos de livros pretende-se construir
conjuntamente com as crianccedilas uma postura questionadora diante do mundo
perguntando-se pelos porquecircs de determinados haacutebitos e trazendo agrave tona grandes temas
filosoacuteficos como a verdade a vontade e ateacute a morte atraveacutes da proacutepria realidade e
experiecircncias comuns da idade
Objetivo especiacutefico
Propotildee-se apresentar um trecho do filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton
Uma paroacutedia em animaccedilatildeo de Frankenstein com cerca de 20 minutos de duraccedilatildeo que
conta a relaccedilatildeo de um garoto com seu cachorro bruscamente interrompida por um
acidente fatal e a posterior reanimaccedilatildeo do cadaacutever Com isso apresentamos a relaccedilatildeo do
homem com a morte isto eacute a negaccedilatildeo do homem em morrer concomitante agrave sua vontade
de controlar a vida
Uma analogia mais simples e direta menos terriacutevel com dramas psicoloacutegicos de
um menino afeito a ciecircncias que perdeu seu amigo de estimaccedilatildeo e tenta recuperaacute-lo Esse
deslocamento do palco dos questionamentos do claacutessico literaacuterio para o curta metragem
de animaccedilatildeo pretende a empatia dos alunos abrindo um canal importante para o
desdobramento filosoacutefico apropriado
158
Proposta para a atividade
Com as estruturas baacutesicas para a apresentaccedilatildeo de filmes propomos dois tempos
de 45 minutos diluiacutedos em duas semanas nos quais os primeiros 10 minutos seriam para
trazer a disposiccedilatildeo da turma para a atividade Sabe-se laacute o que mais ocorreu se um recreio
agitado ou se uma aula monoacutetona Esse eacute o momento de perceber se a atividade deve
prosseguir ou se seraacute preciso deixaacute-la para outro momento a fim de trabalhar um
questionamento pujante Uma sugestatildeo eacute utilizar os proacuteprios afazeres burocraacuteticos ou
estruturais como proecircmio Por exemplo a arrumaccedilatildeo das carteiras em roda ou uma
simples chamada pode servir de chamariz para esse instante
Dando sequecircncia agrave introduccedilatildeo agora cabe apresentar o tema o que natildeo precisa
ser feito secamente Recapitulando questiona-se a ideia do homem pelo homem como
um produto comercializaacutevel uma doenccedila a ser diagnosticada e curada o humano torna-
se uma espeacutecie uma cor uma sexualidade e uma infinidade de predicativos que validam
o sujeito homem Pergunta-se entatildeo se nossa ideia de homem passa a ser o homem
Como introduccedilatildeo solicitaria que cada um pensasse brevemente numa palavra
conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado na pergunta ldquoO que eacute
lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo Nada mais do que 5 minutos Em seguida um de cada vez seria
requisitado a pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito poreacutem
sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido Caso a turma seja mais tiacutemida uma possibilidade
eacute comeccedilar com vocecirc mesmo aiacute sim desenvolvendo brevemente o motivo
Independentemente de como a turma corresponder a participaccedilatildeo do professor faz parte
de uma posiccedilatildeo dialeacutetica a diferenccedila estaacute na importacircncia que eacute devotada a ele Espera-se
que 10 minutos sejam o suficiente para tal Independentemente do comportamento da
turma como a fala eacute livre e incentivada a tendecircncia agraves vozes simultacircneas eacute grande Por
isso introduzimos o que chamamos de a ldquobola da vezrdquo uma bolinha que ditava quem
detinha a palavra para falar pedia-se a bola bastando levantar a matildeo
O segundo momento refere-se agrave suspensatildeo dos porquecircs Solicite que os alunos
pensem se manifestem mas natildeo digam seus motivos Isto daacute ensejo a um proacuteximo estaacutegio
da experiecircncia filosoacutefica aleacutem de interromper o fluxo esperado haja vista que teremos
os mais diversos exemplos mantendo a atenccedilatildeo por meio da curiosidade e ansiedade
159
Ao teacutermino do momento inicial estaacute na hora da exibiccedilatildeo do curta Conveacutem
chamar atenccedilatildeo de que o mesmo eacute um desdobrar do assunto anterior Tambeacutem eacute
interessante notar as expressotildees conversas e impressotildees da turma durante a exibiccedilatildeo
embora natildeo ache aconselhaacutevel deter-se por demais nisso com o risco de cair em
psicologias comportamentais caso natildeo seja sua aacuterea de domiacutenio
Passados 45 minutos do iniacutecio da atividade eacute feita uma rodada geneacuterica sobre as
opiniotildees Se gostaram e por que se o filme correspondeu agrave palavra-som-gesto de cada
um se houve empatia com a personagem etc Dependendo da turma os minutos finais
podem transcorrer sem muitos problemas Poreacutem caso haja poucas falas cabe ao
professor dar sua breve contribuiccedilatildeo explorando as privaccedilotildees de se querer algo e de poder
esse algo enquanto abre caminho para o fim da aula
Encerrando o primeiro dia seria solicitado que pensassem na pergunta ldquoO que eacute
lsquosimrsquo para vocecircrdquo cujas respostas agora escritas deveriam ser trazidas no encontro
seguinte A pergunta pela afirmaccedilatildeo sofre duas influecircncias imediatas o anterior ldquonatildeordquo e
os dizeres do filme sobre o assunto Isso deve movimentar as opiniotildees Ainda que os
alunos natildeo cumpram a tarefa o esforccedilo para se dispor a inquirir sobre a temaacutetica foi feito
pois tanto as perguntas como o Frankenwenie insistem nas referecircncias da vontade do
homem com a realidade reforccedilando o argumento
Na semana seguinte os primeiros 10 minutos se assemelhariam aos do uacuteltimo
encontro Os 15 minutos seguintes retomariam as respostas escritas ou natildeo a respeito do
ldquosimrdquo se se correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do
ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme responderia ao ldquonatildeordquo
e ao ldquosimrdquo Nesse momento os exemplos da induccedilatildeo satildeo revistos confirmados
descartados adaptam-se aos novos posicionamentos dando unidade agrave atividade Um
tempo tambeacutem utilizado para ambientar os alunos na discussatildeo Por fim cabe uma
interpretaccedilatildeo sua sobre como a personagem lida com a morte e o porquecirc o que parte e o
que permanece assunto desenvolvido no tema Quanto a isso conveacutem uma breve
explanaccedilatildeo
A explanaccedilatildeo deve alcanccedilar de 10 a 15 minutos Eacute o momento de assumir a
responsabilidade de ter levantado o toacutepico e de fato participar do diaacutelogo Sem respostas
prontas mas com sua opiniatildeo sincera embasada e digna de ser exposta O caminho jaacute foi
traccedilado natildeo se chegaraacute ao fim mas eacute preciso caminhar Pela explanaccedilatildeo se reforccedila a ideia
160
de que natildeo haacute soluccedilotildees faacuteceis mas que nos eacute requisitado pensar e se posicionar por mais
breve por mais incerto que seja buscando o provaacutevel que supomos ser
Nos minutos finais propotildee-se que todos escrevam num papel uma frase afirmativa
ou interrogativa um verso ou um desenho algo para dizer a esse menino retratado no
filme Quem assim desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez O epiacutelogo almeja
essa proximidade quase iacutentima entre cada aluno e a personagem jaacute que ambos teriam
vivenciado situaccedilotildees semelhantes Ratifica o concreto dos pensamentos e sentimentos
expostos no filme em comunhatildeo com o que foi pensado e sentido pelos expectadores
Como a personagem natildeo responde ao recadinho revela-se mais uma vez o caraacuteter sem
resposta da argumentaccedilatildeo sem desmotivar a accedilatildeo perante ao que natildeo dispomos de
controle Aproveite para aconselhar fortemente a quem natildeo assistiu ao filme por completo
que assim o faccedila
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar o tema e solicitar que cada um pensasse brevemente numa
palavra conceito som ou sensaccedilatildeo a respeito da palavra ldquonatildeordquo sintetizado
na pergunta ldquoO que eacute lsquonatildeorsquo para vocecircrdquo ndash 5 minutos
3 Pronunciar em voz alta se assim desejasse essa palavra ou conceito
poreacutem sem dizer o porquecirc de tecirc-la escolhido ndash 10 minutos
4 Exibir o curta ndash 25 minutos
5 Pensar e escrever ldquoO que eacute lsquosimrsquo para vocecircrdquo ndash para casa
6 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
7 Retomar as respostas escritas ou natildeo a respeito do ldquosimrdquo se se
correspondem com as do ldquonatildeordquo e de que modo Se depois do filme e do
ldquosimrdquo o ldquonatildeordquo primeiro ainda suscita tais definiccedilotildees e como o filme
responderia ao ldquonatildeordquo e ao ldquosimrdquo ndash 15 minutos
161
8 Expor um comentaacuterio participando do diaacutelogo ndash 10 a 15 minutos
9 Escrever num papel uma frase afirmativa ou interrogativa um verso ou
um desenho algo para dizer a esse menino retratado no filme Quem assim
desejar pode ler em voz alta ou mostrar o que fez ndash minutos finais
Relato da experiecircncia
Terminado o breve desenho animado perguntamos o que acharam do filme se
gostaram o que gostaram e a maioria dos alunos respondeu afirmativamente Sem
demora a conversa ganhou espaccedilo nos silecircncios iniciais ora longos ora breves a
depender da turma
Primeiramente o que apareceu nas opiniotildees gerais foi a relaccedilatildeo do menino com o
cachorro Em duas turmas disseram que o fato de terem ressuscitado o cachorro foi uma
coisa boa no filme Na turma 502 a Katlem natildeo fala diretamente de ressuscitar mas a
relaccedilatildeo menino e cachorro se apresenta como siacutentese de uma possiacutevel oposiccedilatildeo agrave morte
pois juntos eles enfrentam a separaccedilatildeo e o fim e no filme saem vitoriosos Seria a morte
uma inimiga a ser subjugada ldquoQuando o menino arremessou a bola e a bola foi laacute pra
cima eu achei que o cachorro gostava muito do Vitor [nome do garoto do filme] e ele
gostava muito dele e ele natildeo merecia morrerrdquo
Estabeleceu-se a correspondecircncia do presente o que aparentemente temos e a
morte o que aparentemente natildeo temos o controle fronteira tecircnue guiada pelas aparecircncias
Na turma 501 depois das impressotildees iniciais decidimos ser mais diretos e caminhar no
limite mencionado Perguntamos ldquoO Luiz [um aluno] disse que o bicho mesmo morto se
mexe [] A morte natildeo passa uma ideia lsquoparadarsquo Como se mexer se estaacute mortordquo
ldquondash Por causa do choquerdquo Notamos que muitas pessoas responderam e ainda
tentaram detalhar os processos teacutecnicos Algumas ateacute como o Miqueias achavam que o
principal no filme era a experiecircncia cientiacutefica justificada nos comentaacuterios a respeito de
quantos volts tem um raio (o Luiz falou o valor com tanta certeza que todo mundo
acreditou) referecircncia agravequele ldquoaparelho que eu vi num filmerdquo (a referecircncia a filmes a
162
novelas e agrave tevecirc foi bem recorrente) aquele de ldquodar choque no peitordquo (desfibrilador) mas
ldquosoacute daacute para recuperar quando a pessoa morre naquele instanterdquo disse Luan
Nesse momento a turma estava bem envolvida na discussatildeo com vaacuterios querendo
contribuir A ldquobola da vezrdquo exerceu um papel norteador importante pois eacute um siacutembolo
uma lembranccedila de que algueacutem deseja falar e algueacutem deseja ouvir Quando muita gente
quer a bola combinamos com a turma de ir passando para o lado de matildeo em matildeo assim
todos teriam o direito de falar se quisessem
Desse modo o Luiz (sim novamente ele um dos nossos maiores participantes)
teve sua reacuteplica na pergunta sobre a morte parada ldquotipo assim cortar o rabo de um lagarto
[] ele solta o rabo que fica se mexendo e consegue fugirrdquo A morte em movimento para
que houvesse vida O rabo foi morto podemos supor pela lagartixa para que ela mesma
pudesse viver
A morte se mexe a morte estaacute parada a morte acontece Afinal ldquopor que ateacute hoje
o ser humano natildeo faz isso [ressuscitar] com todos os mortosrdquo perguntou o Max Eu
respondi que o cachorro era especial para a crianccedila do filme afinal nem todo mundo as
pessoas gostariam que voltasse (seguido de alguns risos) Jaacute o Wallace achou que foi
porque o corpo foi costurado
Objetividade era a palavra de ordem De fato o filme dava um destaque agrave
experiecircncia laboratorial nada mais justo que os 501 focassem na questatildeo teacutecnica As
colocaccedilotildees que eram feitas tinham um procedimento meacutedico por traacutes ou um detalhe mais
praacutetico e mais importante quase nenhuma referecircncia a qualquer emoccedilatildeo ou sobrenatural
foi feita Souza e Pereira (1998) vatildeo compreender o entendimento moderno do conceito
de ciecircncia como um modo da verdade entendida por certeza na qual a explicaccedilatildeo do real
se sobrepotildee ao proacuteprio real suas outras manifestaccedilotildees e misteacuterios insoluacuteveis
Ao final da atividade deste primeiro dia fizemos um trabalho mnemocircnico a fim
de reforccedilar o discutido para o proacuteximo encontro Cada pessoa iria fazer uma pergunta ou
dizer uma palavra que sintetizasse seus pensamentos emoccedilotildees a respeito do que tinha
acabado de acontecer Nesta ocasiatildeo notamos um lado mais sentimental juntamente com
o objetivocientiacutefico Questionava-se onde ficava a alma nesse processo de ressuscitar ou
soacute a palavra tristeza tivemos ateacute uma pergunta teoloacutegica de se deus natildeo devolver a alma
como ficaria o corpo
163
Esse teor menos material estaacute mais presente em todos os demais encontros Com
os 502 por exemplo cujo envolvimento nas discussotildees ocorreu mais depressa que na
501 logo nas primeiras colocaccedilotildees surgiu a tristeza o desmerecimento pelo ocorrido
Pareceu que ressuscitar natildeo supriu a urgecircncia de vida cabendo o luto Lembremos essa
turma era aquela que jaacute discutira em alguma medida a morte
Tristemente abatido impotecircncia diante do que natildeo controlamos por melhores que
sejam nossos aparelhos Na falta de esperanccedilas com o que contamos Quando nos
remetemos ao filme na hora que o garoto termina a experiecircncia para reviver o cachorro
a princiacutepio ela natildeo daacute resultados Sobre o corpo imoacutevel o pequeno cientista se debruccedila e
uma laacutegrima escorre de seu rosto Para a Eduarda Letiacutecia e outros tantos esse foi o fator
decisivo para que o cachorro pudesse ressuscitar
Mas seraacute o benedito essa turma natildeo vecirc o oacutebvio A ciecircncia teve seu papel soacute que
o choro funcionou melhor de acordo com a Luiza Para a Isabelle nem se tratou de fato
de aguinha dos olhos mas do amor e a Beth117 sintetizou ao dizer que ldquona ciecircncia natildeo haacute
tanto amor quanto na laacutegrimardquo Elas terem pensado essa relaccedilatildeo lanccedilou-me para o seacuteculo
XX Para a reprodutibilidade da teacutecnica para a questatildeo da teacutecnica e outros tantos ensaios
e pensamentos que se referiam ao homem esquecendo sua humanidade e agrave maacutequina
com seu sentido de ferramenta esvaziado para que tudo ao redor se mova em torno dela
Todavia essa natildeo eacute a idade em jogo naquele ambiente Provavelmente essas
crianccedilas nunca leram Benjamin nem Heidegger mas elas podem sim terem
experienciado as criacuteticas ao mundo ldquode devir-crianccedila ou de devir-infantil que eacute uma
forma de estar no mundo associada natildeo aos anos que se tem mas agrave experiecircncia de vida
que se afirmardquo (KOHAN 2012 paacuteg 43)
Ao considerar a emergecircncia de possibilidades no devir torna-se esperado
associaccedilotildees nunca antes imaginadas O Alex identificou a morte pelo olfato Ou talvez
tenha sido uma metaacutefora quando remeteu ao cheiro da morte afinal era soacute um filme Um
pouco antes do cachorro ser atropelado e vir a falecer aquela iminecircncia exalava uma
essecircncia prenuacutencio traacutegico Quando a crianccedila do filme vai ao cemiteacuterio eacute assustador ele
podia se machucar natildeo eacute Alex
117 Nome fictiacutecio devido agrave ausecircncia do nome real nas gravaccedilotildees
164
O aroma puacutetrido e a decomposiccedilatildeo dos corpos isso tambeacutem eacute o cheiro da morte
e natildeo eacute agradaacutevel Muitos outros na sala tambeacutem tiveram receio com o cemiteacuterio mas
natildeo a Katlem ela disse que o amor a teria dado coragem Aqui temos um velho embate
gerador de heroacuteis covardes e sensatos Entrar ou natildeo entrar no cemiteacuterio precisa ser agrave
noite Sentir o cheiro da morte e ainda assim ir agrave sua direccedilatildeo (talvez o cachorro natildeo tenha
sentido mesmo com seu focinho canino) eacute se aventurar na morte pelo Vitor da 502
E com a morte natildeo se brinca Pois para a Julia se aventurar era brincar mas o
pobre catildeo natildeo sabia do perigo que o aguardava nem que haacute brinquedos que natildeo perdoam
Julia mdash A morte tava presente laacute e quando ele foi voltar [] ele morreu
Vanise mdash A morte fica perto da pessoa
Julia mdash Eu acho que sim no momento certo
Isis mdash Eu vou tentar responder o cheiro da morte para mim foi que o
cheiro da morte deixou um rastro quando vocecirc faz uma comida vocecirc sente um
cheiro deixou um rastro
Isis mdash O rastro deixa uma pista o cheiro de que o carro ia vir A morte era o
carro
Andreacute Lira (2012) defende que a presenccedila da morte eacute algo que natildeo vivemos em
seu interior Sempre exterior quiccedilaacute ao redor a rigor soacute podemos falar sobre jaacute que
ningueacutem morreu e depois escreveu ou discursa proveniente dela embora julguemos poder
sentir sua proximidade Ser novo para morrer e a condenaccedilatildeo ao natildeo conhecimento vatildeo
influir diretamente no comportamento estrangeiro em relaccedilatildeo ao tema
Tanto a aluna Isabelle quanto a professora regente Adriana mais uma vez nos
mostrando a fluidez da questatildeo entre as idades sofreram pela falta de respostas Disse
aquela ldquoNatildeo sei se a morte taacute perto de mim mas eu natildeo quero estar perto dela Sou nova
demais para morrer [] Tenho medo porque natildeo conheccedilo o que vai ter depoisrdquo A Irandy
confessou que tambeacutem tinha medo por natildeo conhecer Ora se vocecirc natildeo conhece porque
supor que eacute ruim e principalmente que deve ser temido
165
Figura 3 ndash Calvin e Haroldo
Fonte DEPOSITODOCALVIN 2005
Um problema corrente do trabalho foi o tempo Quando a discussatildeo pegava fogo
tiacutenhamos que encerrar o encontro para receber a proacutexima turma O cheiro o rastro a
aventura a brincadeira O medo Um dos maiores motivos que me motivou a realizar um
trabalho desses foi o fato de que a morte eacute temida Quis aproveitar que o assunto surgiu
da turma 502 e contrapor com sua ausecircncia na 501 Antes contudo comentemos como
na turma 402 se desenvolveu o confronto com o diferente
Primeiro ponto como havia dito muitos disseram que a ressuscitaccedilatildeo foi o aacutepice
do filme A Tamiris ateacute disse que se fosse possiacutevel iria fazer o mesmo com a avoacute Agora
para ressuscitaacute-la de acordo com o filme teria de haver uma aproximaccedilatildeo com um lado
sombrio indigesto com o cemiteacuterio caveiras e corpos feacutetidos e em decomposiccedilatildeo
Eca e outras interjeiccedilotildees e caretas eram ouvidas durante a animaccedilatildeo O sentimento
de nojo foi instigado teria a Tamiris encarado a morte no corpo imoacutevel da avoacute com
repulsa O Mateus acredita que natildeo com um certo desdeacutem como se sentir nojo fosse
algo hipoacutecrita ldquoeu acho que fede mas queria fazer uma pergunta e uma pessoa que eles
amam muito vatildeo falar que eacute nojenta que eacute isso ou aquilordquo
Poxa Mateus mas natildeo eacute muito normal ver sangue saindo ou bichinhos comendo
a pessoa mesmo que seja da nossa famiacutelia neacute Mas a gente vai tentar se segurar porque
eacute uma pessoa proacutexima pelas ideias e algumas palavras de Fernando Sim concordo natildeo
eacute habitual separamos a morte da vida Evitamos por medo ou por nojo enxergar a morte
acontecendo ao nosso redor em noacutes mesmos Por esse vieacutes tornamos estranho o que nos
eacute proacuteximo e familiar
166
Figura 4 ndash A morte
Fonte O PATO A MORTE E A TULIPA 2009
mdash Vocecirc veio me buscar agora mdash Estou perto desde que vocecirc nasceu por via
das duacutevidas [] Eacute a tarefa da proacutepria vida cuidar do acidente e tambeacutem da
gripe e de todas as outras coisas que ocorrem a vocecircs patos118 Eu soacute digo uma
coisa raposa (ERLBRUCH 2009 paacutegs 4-7)
Ateacute o prezado momento do texto tratamos basicamente das primeiras aulas Para
natildeo depender unicamente da memoacuteria os colegas e eu bolamos uma atividade
Trouxemos duas reacuteplicas de cracircnios um mais realista tirando os olhos vermelhos e
brilhantes outro mais escurecido de porcelana e com um buraco na cabeccedila (para colocar
velas aromaacuteticas)
As caveiras passavam de matildeo em matildeo seguidas da admiraccedilatildeo pela turma 501 a
mais objetiva e espanto pela 502 a mais emotiva A turma 402 viveu a experiecircncia mas
natildeo chegamos a desenvolvecirc-la Houve ainda quem colocasse a foto de uma das cabeccedilas
como foto de fundo do celular Na hora falhamos por natildeo perguntarmos a causa da
admiraccedilatildeo aos alunos mas acertamos em perguntar do espanto
A turma 501 riu fez piada disse que era feia cheirou a caveira bateu nela se
aproximou como pocircde Natildeo que tivessem medo se mostraram curiosos mas natildeo
animados Perguntaram se era de verdade o Miqueias ateacute questionou a relevacircncia por
natildeo ser cabeccedila de cachorro De bebecirc natildeo era natildeo tinha moleira disse o Viniacutecius
118 Essa eacute a uacuteltima imagem do livro O pato a morte e a tulipa Entatildeo por que um coelho e natildeo um pato
Entendo que a histoacuteria se passa com um pato mas poderia ter acontecido com um coelho ou com uma
pessoa Cada um tem sua raposa e a morte acompanha a todos
167
Enquanto a turma 502 soacute queria fazer festa com a caveira a turma 501 se intrigou
Natildeo acredito na mera coincidecircncia de que exatamente na que teve as discussotildees mais
focadas na explicaccedilatildeo objetiva tenha se interessado mais em entender a aquele objeto
enquanto a turma da laacutegrima e do amor queria mais brincar Um estudo incipiente que
vislumbra uma diferenccedila com o lidar despreocupado ou natildeo
A ciecircncia e o que denominei emoccedilatildeo determinam as duas grandes linhas de
compreensatildeo da morte mas haacute uma terceira presente em todas e de maior presenccedila nos
uacuteltimos encontros a religiatildeo O conforto que a teacutecnica natildeo explicava e a esperanccedila que
faltava na presenccedila da morte preluacutedio de ausecircncia era oferecido pelo acalanto da
imortalidade A alma impereciacutevel o deus misericordioso que protege os bons e estaacute acima
da morte
Por exemplo na turma 501 o Washington disse que o cracircnio natildeo poderia
ressuscitar porque natildeo tinha corpo O Luiz nos lembrou natildeo poderia porque natildeo tinha
alma primeiro Deus precisaria devolver a alma ao corpo A vida estava na alma a carne
apenas a guarda Problematizamos ldquoSe a morte eacute uma questatildeo da alma porque mexer
com o corpordquo Seraacute que o embrulho precisa estar agrave altura do presente
Na 502 minha turma das emoccedilotildees deu para explicar tintim por tintim como se
processava a vida apoacutes a morte Mais seguros do que diziam afirmavam e sabiam Havia
menos tristeza entre os alunos naquele dia Assim falou a Julia ldquoQuando a gente morre
a gente natildeo sabe o que acontece Pode vir algum anjo [] quando vocecirc taacute dentro de um
caixatildeo vocecirc natildeo volta mais O espiacuterito fica laacute dormindo mas quando Jesus voltar ele
sobe Eu tenho certezardquo
Depois de uma concordacircncia geral a Julia continuou a relatar a existecircncia de trecircs
ceacuteus O primeiro seria o ceacuteu das nuvens e da chuva o segundo o ceacuteu do inimigo assim
ela disse e o terceiro seria o local de Deus Alguma mente brilhante entre risos e
jocosidade que infelizmente natildeo registramos o nome se pronunciou a respeito de 25
ceacuteus
Outras pessoas tambeacutem se pronunciaram sobre os trecircs ceacuteus uma delas propocircs ateacute
um desafio ldquoEstaacute na Biacuteblia qualquer uma catoacutelica evangeacutelica pode procurarrdquo (no
estado em que se encontravam as discussotildees todos queriam falar ao mesmo tempo a
turma estava agitada e os nomes natildeo tiveram seus aacuteudios registrados) Foi um espanto
168
entre os demais colegas e eu principalmente porque tiacutenhamos estudiosos de religiatildeo entre
noacutes e eles contestavam a veracidade daquelas informaccedilotildees
Em plena efusatildeo de opiniotildees um grupo estava distraiacutedo conversando Um dos
membros rindo falou ldquoAh gente parem de falar de morte parece macumbardquo poucos
prestaram atenccedilatildeo todavia pelo menos outras duas vezes ela repetiu se o que estaacutevamos
fazendo era macumba e se laacute era roda de macumba Fiquei feliz pelo material de pesquisa
mas entristecido pela opiniatildeo nitidamente preconceituosa
ldquoPor que falar de morterdquo ela perguntou na roda final de perguntas Eu perguntei
ldquopor que natildeo falar de morterdquo Pela religiatildeo eacute ofensivo ou desrespeitoso ao Senhor falar
de morte Somente as outras religiotildees falam sobre o tema (Isso para natildeo perguntar por
que natildeo falar de outras religiotildees)
Pude perceber que aquele grupo de pessoas estudantes de Caxias do quarto e
quinto ano fundamental tinha a realidade religiosa muito marcante em seus dias (pelo
menos duas alunas tinham parentes pastores) Tanto adultos quanto crianccedilas estatildeo
sujeitos agrave reprodutibilidade das opiniotildees Souza e Pereira (1998) defendem que o tempo
moderno estaacute regulado pela produtividade logo quanto mais raacutepido melhor Dessa
maneira entendo que o discurso religioso funciona tambeacutem nessa loacutegica e deseja se
afirmar com destreza e propriedade
A morte passa a ser um braccedilo da religiosidade pois essa consegue com primor o
que nenhuma outra verdade faz Suas soluccedilotildees datildeo por encerrada a questatildeo que natildeo
convive mais em misteacuterio A repeticcedilatildeo se processa a fala a liacutengua uacutenica do puacutelpito
Portanto somos conduzidos a pensar que a crianccedila eacute um pequeno adulto
Se a modernidade tem esse pensamento e a contemporaneidade faz uso sim dele
tambeacutem inventamos o soacute A crianccedila cresce em idade e reproduz o adulto que ela sempre
foi mas ela natildeo eacute soacute um adulto tambeacutem deteacutem singularidade Todo este trabalho mostra
o quatildeo originaacuterias eram suas posiccedilotildees reflexotildees e sentimentos caminhando
conjuntamente com a pretensatildeo de ser sobre ela
Se a crianccedila natildeo eacute soacute um pequeno adulto talvez o adulto tambeacutem seja uma crianccedila
grande embora natildeo soacute Se o adulto precisa se transmitir agrave crianccedila que ele se permita natildeo
esquececirc-la em si O cerne aqui se refere agravequela fluidez das idades de como a morte estaacute
presente a todos Por fim quando cerrarmos os olhos no sono das eras tenhamos a
169
serenidade da noite tranquila e nos lembremos por quaisquer meios que jaacute falamos da
morte e ela natildeo eacute uma estranha seja bem-vinda
Entonces recordar la infancia significa quizaacute preparar un mundo comuacuten [grifes
do autor] en el que el hecho de ser nintildeos no sea sinoacutenimo de imperfeccioacuten y
marginalidad ni donde devenir adultos tenga el sentido de una infancia
traicionada Aprender a concluir tratando de estar siempre a la altura de la
dignidad de esa despedida (BAacuteRCENA 2010 paacuteg 16)
Reflexatildeo com a experiecircncia
Afinal aqui se trata de um homem por mais novo e diverso que seja com origem
Isto significa que ele estaacute num domiacutenio histoacuterico que conduziraacute suas atitudes seus gestos
e por fim sua forma de ser Esse eacute o homem do Ocidente que inventou a escrita
alfabeacutetica119 a filosofia e a induacutestria
Nenhuma dessas revoluccedilotildees teacutecnicas chegaram sem cobrar um preccedilo pois cada
invenccedilatildeo pressupotildee um inventar-se para cada obra jaacute era preciso estar disposto a obrar
Eacute importante ratificar que o processo de transformaccedilatildeo da realidade natildeo eacute exclusivo do
homem ocidental mas talvez seja dessas caracteriacutesticas que nos unem a todos Nesse
sentido humanizar eacute proacuteprio do homem A questatildeo eacute que tipo de humanizaccedilatildeo eacute esta a
ocidental
Esse eacute o homem que vive a ilusatildeo Esse eacute o homem que vem perdendo seu contato
mais imediato e concreto com as coisas em detrimento de uma realizaccedilatildeo virtual que
nada mais eacute do que o desdobramento do processo de abstraccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo das
coisas Vive-se a iludir ludicamente a distrair-se das coisas em prol do que achamos que
as coisas sejam Afinal eacute mais faacutecil lidar com o que achamos das coisas do que com as
coisas elas mesmas ou seraacute que soacute podemos lidar com as coisas a partir de como podemos
compreendecirc-las
119 Haacute um embate na Academia sobre a invenccedilatildeo da escrita alfabeacutetica A ideia neste trabalho natildeo eacute se
perder ldquona busca do primeiro inventorrdquo (ROSALIND 1992 paacuteg 53) mas ater-se agrave revoluccedilatildeo teacutecnica
fornecedora da ldquobase conceitual para a construccedilatildeo das ciecircncias e filosofias modernasrdquo (HAVELOCK 1996
paacuteg 15)
170
A ilusatildeo alcanccedila proporccedilotildees modernas natildeo na compreensatildeo humana das coisas
mas na sua prepotecircncia globalizante A possibilidade de as coisas serem passa a ser nossa
possibilidade de ver as coisas Jaacute dizia o poeta que o universo natildeo seria uma ideia minha
mas sim minha ideia de universo eacute que seria uma ideia minha (PESSOA 2006 paacuteg 51)
Logo o que compreende eacute aquele que prende junto a si A ilusatildeo de poder
compreender tudo se faz principalmente por se tratar do caraacuteter ilusoacuterio com que nos
relacionamos com as coisas Natildeo lidamos mais com as singularidades preferimos seus
nuacutemeros estatiacutesticas o sabor de uma banana ou maccedilatilde cedem lugar ao conjunto das frutas
quantitativamente sem gosto A morte natildeo eacute mais uma manifestaccedilatildeo do real tanto quanto
respirar ou nascer mas algo que precisa e pode ser superado basta termos mais
conhecimentos a respeito
Diferentemente de um problema a ser solucionado meramente situacional e como
tal tendo seus desdobramentos teacutecnicos limitados pelos misteacuterios insoluacuteveis pulsatildeo de
novos desdobramentos o problema superado encerra qualquer discussatildeo Ele elenca uma
forma de ser uma ideia do que seja e assim a representaccedilatildeo sustenta uma ontologia
murcha desvigorada em seus muacuteltiplos sentidos
171
Exerciacutecios de ser crianccedila
Objetivo geral
Incentivar a autorreflexatildeo e o questionamento do senso comum tanto de si quanto
dos demais
Objetivo especiacutefico
A partir de poemas do livro Exerciacutecios de ser crianccedila de Manoel de Barros os
alunos satildeo convidados a pensar o que chamamos de crianccedila isto eacute eles mesmos Outro
desdobramento estaacute em como eacute possiacutevel algueacutem que natildeo seria crianccedila fazer esse
exerciacutecio por exemplo os professores e o autor Um terceiro encaminhamento diz
respeito ao contato com o texto literaacuterio e a relaccedilatildeo com a linguagem poeacutetica
Proposta para a atividade
Pensada para um grupo de crianccedilas entre 9 e 10 anos O mestre instigador apoacutes
ter se ambientado com a turma apresenta uns poemas do livro mencionado Conforme os
recursos da instituiccedilatildeo isso seraacute feito da forma que for mais adequada como uma
exposiccedilatildeo com os poemas em cartolinas (isso poderia ter sido uma atividade preacutevia entre
os alunos) expocirc-los no datashow e ler alguns com a turma ou mesmo ler direto no livro
para eles mas eacute importante que eles tenham como reler o poema No caso optamos por
uma mistura de cartolinas e exemplares do livro dividimos em grupos de cinco e eles
deveriam fazer um comentaacuterio a respeito Segue um dos poemas do livro citado
172
Exerciacutecios de ser crianccedila
No aeroporto o menino perguntou
mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho
O pai ficou torto e natildeo respondeu
O menino perguntou de novo
mdash E se o aviatildeo tropicar num passarinho triste
A matildee teve ternuras e pensou
Seraacute que os absurdos natildeo satildeo as maiores virtudes
da poesia
Seraacute que os despropoacutesitos natildeo satildeo mais carregados
de poesia do que o bom senso
Ao sair do sufoco o pai refletiu
Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com
as crianccedilas
E ficou sendo (BARROS 2010 paacuteg 469)
Um fator relevante para a dinacircmica aqui executada eacute a participaccedilatildeo do professor
ou coordenador na atividade Isto quer dizer sentar em grupo debruccedilar-se sobre um
poema e engendrar um comentaacuterio Natildeo para se sobressair nem engabelando um
simulacro participativo qualquer mas simplesmente ler e interpretar como todos os
outros Satildeo poemas curtos e simples embora profundos Algo em torno de 5 a 10 minutos
para a leitura e discussatildeo Pode ser que em algum momento o professor precise agir por
exemplo se a turma se dispersar em falatoacuterio excessivamente alto Natildeo tem jeito eacute
preciso intervir poreacutem tente natildeo deixar de fazer parte da atividade com a turma
Na hora dos comentaacuterios tudo vai depender das perguntas suscitadas Cada grupo
deveraacute apresentar seu poema para a turma A seguir alguns exemplos caso a turma tenha
dificuldade como se exercita ser crianccedila Ou assertivamente ser crianccedila eacute um exerciacutecio
logo natildeo se eacute crianccedila sem praticar ser crianccedila Ainda a relaccedilatildeo autor e obra foi
problematizada no sentido de compreender como um senhor de idade referindo-se a
Manoel de Barros conseguia ser crianccedila ou se ele se exercitava para natildeo engordar a
crianccedila interior dele e natildeo ter mais focirclegos para brincar (com as palavras)
O menino que carregava aacutegua na peneira
Eu tenho um livro sobre aacuteguas e meninos
Gostei mais de um menino que carregava aacutegua na peneira
A matildee disse que carregar aacutegua na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele
para mostrar aos irmatildeos
A matildee disse que era o mesmo que catar espinhos na aacutegua
O mesmo que criar peixes no bolso
O menino era ligado em despropoacutesitos
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos
173
A matildee reparou que o menino gostava mais do vazio do
que do cheio
Falava que os vazios satildeo maiores e ateacute infinitos
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
Porque gostava de carregar aacutegua na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que
carregar aacutegua na peneira
No escrever o menino viu que era capaz de ser noviccedila
monge ou mendigo ao mesmo tempo
O menino aprendeu a usar as palavras
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras
E comeccedilou a fazer peraltagens
Foi capaz de interromper o voo de um paacutessaro botando
Ponto no final na frase
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela
O menino fazia prodiacutegios
Ateacute fez uma pedra dar flor
A matildee reparava o menino com ternura
A matildee falou Meu filho vocecirc vai ser poeta
Vocecirc vai carregar aacutegua na peneira a vida toda
Vocecirc vai encher os vazios com as suas peraltagens
E algumas pessoas vatildeo te amar por seus despropoacutesitos (BARROS 2010 paacutegs
469-470)
Outra possibilidade de realizaccedilatildeo eacute passar o mesmo poema a todos O que eacute
indicado a turmas muito tiacutemidas ou com dificuldade de abertura ao tipo de atividade
Nesse caso um poema maior eacute preferiacutevel para transcorrer com os comentaacuterios Uma dica
eacute nunca subestimar o oacutebvio Perguntas do tipo como eacute possiacutevel carregar aacutegua na peneira
pode gerar discussotildees acaloradas Algumas crianccedilas vatildeo ateacute sugerir que jaacute carregaram
focando no ato concreto de levar uma peneira agrave agua e retornar dela aos pingos A
linguagem pode ser encarada ao peacute da letra como tornar-se mais abstrata Seja uma ou
outra e ateacute ambas numa experiecircncia poeacutetico-filosoacutefica precisam ser encaradas como
manifestaccedilotildees de verdade e desdobradas em seus meandros Gotas de aacutegua na peneira
matam sede curta e servem aos despropoacutesitos do poeta brincalhatildeo
Apoacutes a exposiccedilatildeo de todos que assim desejem cabe agora dar corpo agrave profusatildeo
de ideias Muito provavelmente alguns dos comentaacuterios teratildeo a ver entre si eacute
aconselhaacutevel relacionaacute-los ldquoOlhem o que fulano disse eacute muito parecido com o que
sicrano falourdquo Outros se oporatildeo ldquoJaacute beltrano acredita que isso eacute o oposto agravequilo que
fulano disserdquo E ateacute haveraacute os confusos que merecem maiores detalhes Nesses casos
solicitar a recolocaccedilatildeo do problema eacute prudente e pode ensejar uma nova perspectiva para
a questatildeo
174
Com as observaccedilotildees mais ou menos reunidas agora eacute o momento de expor um
comentaacuterio sobre elas e sobre os poemas Ter algum esquema do que dizer eacute muito
importante para natildeo se perder e passar confianccedila aos alunos poreacutem dialogar com os
pontos de vista apresentados eacute vital do contraacuterio seria mais uma aula como outra
qualquer Cerca de 15 minutos entre a composiccedilatildeo das relaccedilotildees e a explanaccedilatildeo
Por fim peccedila que cada um tendo em vista o que foi discutido escreva o que eacute ser
crianccedila para ela e se desejar leia em voz alta e comente para a turma Como nem o livro
nem talvez as cartolinas os alunos poderatildeo ter para si ao escrever o que eacute ser crianccedilas
eles tecircm a oportunidade de se expressarem e poderatildeo guardar o escrito para futuros
possiacuteveis pensamentos
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar poemas e solicitar que cada um ou cada grupo faccedilam
comentaacuterios a respeito ndash 10 minutos
3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e expor um comentaacuterio participando do
diaacutelogo ndash 15 minutos
4 Escrever e expor o que eacute ser crianccedila ndash 10 minutos
Relato da experiecircncia
Abaixo segue a transcriccedilatildeo de uma atividade realizada em meados de 2014 por
mim e Vanise Dutra na Escola Municipal Joaquim da Silva Peccedilanha Tendo havido um
encontro de ambientaccedilatildeo na semana anterior desta experiecircncia os alunos tinham sido
levados ao paacutetio para brincar e como dever de casa eles deveriam escrever sobre o que
era ser crianccedila para eles
175
Vanise mdash Entatildeo gente Olha soacute Vocecircs lembram o que a gente fez na semana
passada
Fernando mdash A gente brincou laacute fora A gente treinou nesse exerciacutecio de ser
crianccedila A gente tentou treinar aiacute A gente brincou Fez atividade laacute fora Foi
muito divertido
Vanise mdash Foi
Fernando mdash Ateacute a tia Janaiacutena brincou que eu vi (Risos)
Professora mdash Que Janaiacutena Eacute Alessandra
Fernando mdash Eacute Alessandra Eu esqueci Eacute que eu vi Janaiacutena no caderno
Vanise mdash E como que foi esse exerciacutecio Esse exerciacutecio laacute fora de ser crianccedila
Vocecircs acham que tem alguma relaccedilatildeo com o exerciacutecio que a gente fez laacute fora
de ser crianccedila com o exerciacutecio de escrever
Fernando mdash Eu acho que sim porque uma das coisas de ser crianccedila neacute
coisas que as crianccedilas fazem no exerciacutecio de ser crianccedila eacute brincar e nesse dia a
gente brincou muito Entatildeo acho que sim que tem alguma coisa a ver
Notemos que propositalmente pomos as crianccedilas para brincar a fim de que a
resposta agrave pergunta de ser crianccedila orbite pelos lugares comuns de brincadeira e jogo O
proacuteprio Manoel de Barros vai jogar com essa ideia Com a introduccedilatildeo dos poemas
brincadeira e o jogo alargam sentidos de modo que adultos podem brincar e brincadeira
de crianccedila natildeo precisa ser bola ou gude mas palavras recolocando a questatildeo de ser
crianccedila como ser adulto ou ser velho sob outra perspectiva
Vanise mdash E o que a gente fez aqui dentro Tem relaccedilatildeo
Fernando mdash Tambeacutem Eacute uma brincadeira que a faz a gente imaginar coisas e
pensar mais Crianccedila natildeo soacute brinca tambeacutem tem aquelas coisas que tem que
pensar coisas de escola coisas de trabalho natildeo Vaacuterias coisas que a gente
pensa aqui a gente brinca na mente brinca com a mente vai pensar de vaacuterias
formas
Vanise mdash Ouviram isso que o Fernando falou Que a gente que crianccedila natildeo
soacute brinca mas que crianccedila tambeacutem pensa
Andreacute mdash Eacute deixa eu fazer uma pergunta Escrever tambeacutem pode ser uma
brincadeira
Camili mdash Que escrever eacute um exerciacutecio de ser crianccedila Eu acho que pode ser
uma brincadeira
Vanise mdash Por quecirc
Camili mdash Ah natildeo sei Porque a gente se diverte com algumas coisas
escrevendo
Willian mdash Pode porque a gente gosta de desenhar
Gustavo mdash Respondendo agrave pergunta do Andreacute se escrever eacute exerciacutecio de ser
crianccedila Eu acho que sim porque tem muitas pessoas que jogam adedanha ali
no papel e eacute divertido
Interessante notar a inversatildeo que eacute feita Natildeo eacute brincar que tem que ser divertido
mas se traz diversatildeo eacute por ser uma brincadeira Nesse vieacutes coisas como escrever (que se
iguala no contexto a desenhar) e pensar podem ser luacutedicas e apraziacuteveis
176
Fernando mdash Queria soacute lembrar que exerciacutecio de ser crianccedila natildeo eacute soacute o brincar
O exerciacutecio de ser crianccedila eacute a gente se divertir Por isso que os adultos eles
tambeacutem fazem o exerciacutecio de ser crianccedila Porque muitas vezes vamos dizer
assim saem com os amigos aiacute se divertem riem acho que soacute o fato de rir jaacute
eacute um exerciacutecio de ser crianccedila porque vocecirc estaacute se divertindo Vocecirc estaacute
trazendo aquela felicidade de volta assim Natildeo que vocecirc seja triste mas vocecirc
estaacute trazendo aquela felicidade Soacute o fato de vocecirc rir vocecirc jaacute tem uma ideia do
exerciacutecio de ser crianccedila Que crianccedila natildeo vamos dizer que eacute boba mas em
todo momento faz uma piada ri essas coisas
Vanise mdash Vocecircs estatildeo ouvindo isso gente que ele estaacute falando Natildeo eacute soacute de
brincar segundo o Fernando que tem a ver com o exerciacutecio de ser crianccedila
Joatildeo mdash Eu quero responder a pergunta da Vitoacuteria
Vanise mdash Qual eacute a brincadeira que vocecirc mais gosta
Joatildeo mdash Eu natildeo sou muito de brincar mdash Joatildeo fala com um tom seacuterio mdash Meu
negoacutecio eacute mais negoacutecio de instrumento essas coisas Meu pai tambeacutem eacute
muacutesico Aiacute aos domingos eu vou pra casa dele e a gente fica laacute tocando
instrumento Eu em casa quase natildeo brinco Soacute mexo no computador e depois
fico tocando bateria
Vanise mdash E vem caacute Tu acha que isso eacute o quecirc Que isso eacute um exerciacutecio de ser
crianccedila que natildeo eacute Que eacute brincar que natildeo eacute brincar Quando vocecirc estaacute laacute com
o teu pai
Joatildeo mdash Pra mim eacute tia Da mesma maneira eu brincando com meus amigos
na rua eu me divirto Eu com meu pai brin tocando instrumento eu tambeacutem
me divirto Eu tocando na igreja eu me divirto Pra mim eacute tia
A muacutesica aparece aqui como algo de crianccedila Novamente uma inversatildeo que vem
bem a calhar Natildeo seria o exerciacutecio de ser crianccedila que definiria a crianccedila mas jaacute sendo
crianccedila sua existecircncia eacute um exerciacutecio por si soacute Isso eacute uacutetil para romper paradigmas de que
brincadeiras satildeo coisas apenas de crianccedila Tambeacutem adultos podem brincar assim como
crianccedilas podem exercitar-se agrave medida que tocam um instrumento
Natildeo eacute sinocircnimo de besteira Ela natildeo eacute boba Seu pensamento e sua diversatildeo natildeo
necessitam recair sempre nos mesmos lugares e da mesma forma Joatildeo se diverte com seu
pai e ambos partilham da muacutesica enquanto morada Nem o pai volta a ser crianccedila nem o
filho vira adulto eles instauram um tempo cronologicamente enfraquecido sem idades
precisaacuteveis Tocando um com o outro exercem uma relaccedilatildeo familiar proacutepria e envolvente
somente possiacutevel por quem se dispotildee a experienciar o instante Natildeo eacute uma questatildeo de
vontade vale dizer mas de entrega
177
Reflexatildeo com a experiecircncia
Nem sempre eacute faacutecil dar cabo do que temos em mente Tudo se torna mais
complicado se nosso ponto de partida pretende natildeo determinar caminhos preacutevios ou
meacutetodos verdadeiros apenas e fundamentalmente oferecer sugestotildees Trata-se pois de
propor um convite para caminhar agravequeles que desejam inspiraccedilatildeo para novas ideias
diaacutelogo entre o seu e este modo de fazer ou ateacute mesmo um pontapeacute inicial
Quaisquer que sejam as circunstacircncias eacute vital se colocar agrave disposiccedilatildeo de pensar e
escutar as questotildees aqui apresentadas e a maneira como elas satildeo tratadas sem
preconceitos ou diligecircncias desnecessaacuterias Isso porque do contraacuterio corre-se o risco de
deixar cair por terra uma possibilidade construtiva de conhecimento para incorrer em
meras prescriccedilotildees ou em criacuteticas assaz severas sem o merecido cuidado ndash natildeo com o texto
muito menos com o autor ou o professor mas com o pensamento Pensar sempre inspira
cuidados
178
A cegueira da visatildeo
Objetivo geral
Promover uma atividade que aguce a atenccedilatildeo a outros sentidos aleacutem de levantar
questionamentos sobre a confianccedila no que natildeo temos controle
Objetivo especiacutefico
Em pares um participante seraacute vendado e o outro natildeo O que estaacute vendado deveraacute
guiar pelo espaccedilo aquele que pode ver Essa eacute uma versatildeo da tradicional experiecircncia de
se vendar para deixar ser guiado por outro a fim de exercitar a confianccedila Poreacutem aqui o
desafio toma tons mais radicais para ambos quem natildeo vecirc precisa se empenhar para
confiar nos demais sentidos e arcar com a responsabilidade por si e por outrem ainda que
suas possibilidades estejam limitadas quem vecirc precisa se esforccedilar para natildeo assumir o
papel que natildeo eacute dele ou seja de guiar e assim aceitar os erros e equiacutevocos do guia
Proposta para a atividade
Tatildeo simples quanto complexa a depender de seu modo de execuccedilatildeo De material
didaacutetico apenas fitas de um tecido qualquer para cobrir os olhos O tempo de execuccedilatildeo
pode variar bastante mas entre 5 a 10 minutos costumam ser suficientes Ratificamos
que para cada nova dinacircmica conveacutem a realizaccedilatildeo da ambientaccedilatildeo conforme descrita
em ldquoQuando a vida nos diz natildeordquo
Originalmente ldquoA cegueira da visatildeordquo foi pensada para uma turma de 20 25 alunos
entre 8 e 11 anos mas fazecirc-la com uma turma inteira eacute bem trabalhoso Entatildeo para uma
179
turma menor ou talvez sortear alguns alunos seja mais pertinente Por outro lado eles
podem realizar a experiecircncia por eles mesmos com facilidade bastando um coleguinha
ou irmatildeo Outro ponto positivo estaacute no fato de que este exerciacutecio funciona bem para
idades mais avanccediladas conforme seraacute relatado adiante
Primeiramente eacute exposto aos possiacuteveis participantes o que se pretende fazer Dois
em dois um vendado e o outro natildeo O que natildeo enxerga deveraacute guiar aquele que enxerga
Quem guia deve estar ciente de sua responsabilidade e tentar executaacute-la da melhor forma
possiacutevel Quem eacute guiado deve refrear o iacutempeto corretor e deixar-se levar confiando no
guia A princiacutepio tudo parece uma brincadeira mas urgimos cuidado de quem guia Uma
digressatildeo breve sobre a confianccedila e sobretudo confiar como natildeo deter o controle pela
visatildeo vem a calhar Apoacutes entregar as faixas a cada dupla
Na experiecircncia propriamente dita deixe a dupla ambientar-se e em seguida pode-
se sugerir pequenas tarefas ou se o espaccedilo for amplo que ousem exploraacute-lo O importante
eacute haver deslocamento e o medo inicial caminhar em tensatildeo com a confianccedila
Diferentemente das outras atividades natildeo eacute aconselhaacutevel participar desta pois aleacutem dos
comandos eacute necessaacuterio estar em alerta e julgar quais riscos e satildeo convenientes e podem
vir a contribuir com a discussatildeo
Ao teacutermino eacute feita uma rodada das primeiras impressotildees e assim como em
ldquoExerciacutecios de ser crianccedilardquo eacute importante criar relaccedilotildees entre os diversos comentaacuterios
dando clareza e possibilitando uma discussatildeo mais profiacutecua Como jaacute houve uma
explanaccedilatildeo anterior tome cuidado para natildeo monopolizar a atividade com sua fala e ao
inveacutes motive e instigue as observaccedilotildees dos participantes e dos expectadores Cerca de 15
minutos deve ser o suficiente Relembrando que caso a discussatildeo esteja fluida pode ser
mais interessante adiar a proacutexima etapa da atividade para se aprofundar na atual
Por fim inverta os papeacuteis nas duplas e convide-os a se pocircr no lugar do outro Com
mais tempo ou turmas menores esta etapa pode vir logo em seguida da primeira
experiecircncia com a venda Isso tende a contribuir em muito com a discussatildeo
180
Fluxograma
1 Perceber se a atividade deve prosseguir em seguida trazer a disposiccedilatildeo da
turma para a ela ndash 10 minutos
2 Apresentar a atividade expor um comentaacuterio e entregar as faixas ndash 15
minutos
3 Dar corpo agrave profusatildeo de ideias e instigar observaccedilotildees ndash 15 minutos
4 Inverter os papeacuteis nas duplas ndash 5 minutos
Relato da experiecircncia
Tendo feita a explanaccedilatildeo que natildeo necessariamente deve seguir essa
argumentaccedilatildeo eacute hora de prosseguir com a experiecircncia Lembrando que o intuito natildeo foi
ministrar uma aula (embora nada impeccedila) somente foi uma provocaccedilatildeo para suscitar mais
duacutevidas do que entendimentos claros O importante eacute questionar o domiacutenio do controle
pela visatildeo
Um detalhe importante Por vezes o tempo iraacute se perder num ponto inesperado
Como natildeo haacute um rigor curricular nem avaliativo forte cabe ao professor medir se vale a
pena ou natildeo interromper Ateacute o momento foram contabilizados 16 minutos e 33
segundos
Dando seguimento trazemos a transcriccedilatildeo comentada da experiecircncia feita com
duas jovens Thayrine e Patriacutecia que se propuseram a realizaacute-la e concordaram em ter
suas falas aqui colocadas
Andreacute mdash Bom fizemos questionamentos muito interessantes Agora gostaria
de propor uma atividade para que corporifiquemos o que acabamos de discutir
Se eu pudesse resumir tudo em uma questatildeo ela seria ldquoNatildeo se trata de confiar
na visatildeo dos outros tambeacutem nem de confiar demais em si mesmo enquanto
subjetividade enquanto um eu mas talvez uma confianccedila no conviterdquo Tendo
isso em mente eu gostaria de convidar a uma de vocecircs para que fosse vendada
(podemos trocar depois) e que a pessoa com a venda guiasse a outra
181
Neste momento Patriacutecia se prontifica a ser vendada o que gera protestos de
Thayrine Natildeo que ela quisesse a venda para si mas por achar que Patriacutecia conhecia mais
o local do que ela e por isso teria uma noccedilatildeo espacial muito boa Natildeo se apresentou
como algo tatildeo importante assim o conhecimento preacutevio pois mesmo que ela conhecesse
bem o espaccedilo eacute um entendimento baseado na visatildeo Somente o movimentar-se com os
olhos cerrados jaacute eacute o suficiente para arremessaacute-la a um ambiente novo semelhante a
visitar uma paisagem qualquer que somente haviacuteamos visto por foto Colocada a venda
retomamos a atividade
Andreacute mdash Pois bem vocecirc que jaacute conhece este ambiente haacute anos estaacute insegura
para caminhar Vocecirc estaacute acostumada com ele pelos seus olhos mas o instante
eacute cego Por outro lado Thayrine vecirc ambas fazem parte do mundo que eacute uma
moradia mas de forma diferente e vocecirc tem a responsabilidade dos anos
[refiro-me agrave Patriacutecia que era mais velha] Na morada vocecirc sabe onde estatildeo os
pratos e talheres onde o papel higiecircnico fica guardado quando acaba no
banheiro em qual garrafa se bebe ou natildeo pelo gargalo mas e agora
Patriacutecia guie Thayrine pelos cocircmodos Thayrine mesmo que vocecirc possa
enxergar permita que Patriacutecia a conduza por esta bagunccedila adentro Se vocecircs
forem dar de cara na parede aproveitem e sintam o cheiro dela Se um copo
quebrar aproveitem a visatildeo do belo buquecirc de cacos de vidro e o som do
estrondo
A princiacutepio ela foi deixada sem mais orientaccedilotildees poreacutem ao longo da experiecircncia
optou-se por designar pequenas funccedilotildees a serem desempenhadas A falta de um propoacutesito
imediato aumenta a desorientaccedilatildeo o que contribuiacutea para um deslocamento reduzido As
duas comeccedilaram a caminhar sem rumo mas com as pequenas missotildees apanhar um objeto
ou ir ateacute certo canto da sala a exigecircncia e o envolvimento delas foi maior Patriacutecia estava
descalccedila ela tateou a parede e se dirigiu para o corredor que liga os cocircmodos
Patriacutecia mdash Isso mesmo Thayrine deixe eu topar com o peacute ou bater com a
cabeccedila
Thayrine mdash Que medo
Andreacute mdash Patriacutecia Thayrine estaacute com sede vocecirc poderia pegar um copo
drsquoaacutegua para ela
Havia uma garrafa grande de vidro que quase foi derrubada assim que Patriacutecia se
pocircs a procurar um copo para servir aacutegua Em seguida foram solicitadas outras duas
tarefas e depois retornamos para o local de iniacutecio e recomeccedilarmos com Thayrine a guiar
Determinou-se outras duas tarefas diferentes das anteriores apenas a do copo drsquoaacutegua se
182
repetiu a pedido de Patriacutecia Esta parte da atividade contabilizou 11 minutos e 10
segundos
Foi iniciada a etapa da confrontaccedilatildeo entre o que haviacuteamos discutido na explanaccedilatildeo
e a praacutetica que acabamos de fazer Conveacutem perceber que nem sempre os rumos da
discussatildeo satildeo os mesmos jaacute traccedilados a exemplo aqui ela descambou para a situaccedilatildeo
professor-aluno em sala de aula Eacute importante costurar com esse conhecimento insurgente
e espontacircneo Inclusive debates anteriores podem servir de base na construccedilatildeo da
explanaccedilatildeo da atividade seguinte
Andreacute mdash O que vocecircs acharam da experiecircncia
Patriacutecia mdash Eu gostei bastante
Thayrine mdash Eu tambeacutem mas me senti um pouco perdida no iniacutecio
Andreacute mdash E o que vocecircs gostaram
Patriacutecia mdash O fato de ter de fazer as coisas sem enxergar conjuntamente com
a funccedilatildeo de guia
Andreacute mdash Vocecirc sentiu que guiou ou recebeu algum sinal advindo dos olhos
dela
Patriacutecia mdash Natildeo ela pousou suavemente a matildeo na minha e assim foi a
experiecircncia toda
Andreacute mdash Quando vocecirc foi conduzida sentiu que a reciacuteproca foi verdadeira
Patriacutecia mdash Sim natildeo tivemos problema quanto a isso
Andreacute mdash Vocecircs acham que teria alguma diferenccedila se estivessem sozinhas
Thayrine mdash Eu sou muito individualista natildeo estava pensando muito na
Patriacutecia mdash Estava mais preocupada em me localizar
Andreacute mdash Mas vocecirc estava a guiaacute-la natildeo
Thayrine mdash Ainda assim me preocupava mais comigo afinal ela podia
enxergar natildeo havia como quebrar ou esbarrar em algo
Andreacute mdash Quanto a vocecirc Patriacutecia
Patriacutecia mdash Eu tambeacutem natildeo me preocupei muito com ela mas suponho que se
estivesse sozinha a experiecircncia natildeo seria tatildeo prazerosa
Thayrine mdash Para quem estaacute vendo eacute muito interessante estar bem proacuteximo e
poder vivenciar todos os descaminhos que a outra pessoa percorre
Andreacute mdash A meu ver o aacutepice da experiecircncia foi quando Patriacutecia quase
derrubou a garrafa e vocecirc nada fez para impedir Eacute a ideia do convite permitir-
se seguir os descaminhos de outrem Quem enxerga deteacutem um conhecimento
distinto e junto com ele um poder pois natildeo se trata de uma experiecircncia de
conhecer pelo contraacuterio ela convida a abrir matildeo momentaneamente do que jaacute
sabemos para experimentar algo novo
Patriacutecia mdash Bem se eu soubesse que havia uma garrafa ali certamente teria
desviado
Andreacute mdash Ao mesmo tempo natildeo eacute como se fosse um mundo completamente
proibido Tem-se acesso a ele soacute que por uma via diversa da qual se estaacute
habituado Haacute aromas tipos de superfiacutecie ruiacutedos etc
Andreacute mdash Agora pensando um pouco na discussatildeo do iniacutecio a partir dessa
experiecircncia vocecircs conseguem relacionar com o que haviacuteamos conversado
Thayrine mdash Eu acho que sim por essa questatildeo de o homem abandonar uma
necessidade de controlar o conhecimento para algueacutem e deixar que a pessoa se
vire mas foi bem mais libertaacuterio nesse sentido Quando eu a guiei natildeo teve
nenhuma interferecircncia no que eu estava fazendo Ela realmente me deixou
fazer tudo Se no caso eu fizesse o papel de aluno
183
Andreacute mdash Um momento A meu ver se eu tomasse essa experiecircncia como uma
alegoria da sala de aula o professor seria o cego Natildeo eacute ele quem estaacute
conduzindo
Patriacutecia mdash Eu pensei o contraacuterio ao que vocecirc estaacute dizendo porque de certa
forma apesar de ele estar guiando eacute como se ele natildeo tivesse conhecimento
natildeo
Andreacute mdash Pode ser o guia tem um conhecimento assim como o guiado soacute
satildeo diferentes Interessante que mesmo eu orientando vocecircs para natildeo
interferirem por vezes sua visatildeo de guiada natildeo consegue se ausentar Isso faz
parte eacute uma tensatildeo na verdade entre controle e descontrole Nem um nem
outro mas ambos Esse eacute o desafio
Thayrine mdash Deixe-me ver se eu entendi A pessoa que estaacute enxergando abre
matildeo do seu conhecimento para deixar que o outro assuma Ou seja quem
enxerga tenta guiar de alguma forma
Patriacutecia mdash Eu concordo com ela
Andreacute mdash Difiacutecil natildeo guiar Estamos habituados a isso Tambeacutem tem o fato de
por mais que possa haver um esforccedilo de pacificaccedilatildeo eacute muito difiacutecil nos
anularmos totalmente Creio que natildeo eacute possiacutevel jamais saber todo o ministeacuterio
Pois bem muito bom poreacutem a hora urge alguma consideraccedilatildeo final
Patriacutecia mdash Gostaria de ressaltar que concordo com Thayrine O aluno vendado
eacute de certa forma o professor guiado justamente porque a pessoa que estaacute
sendo guiada abre matildeo de seu conhecimento para se permitir ser guiada pelo
outro Na verdade o outro mostra a vocecirc as necessidades dele para que vocecirc
possa em alguma medida interferir Natildeo incisiva mas participativamente
Thayrine mdash Tem outra questatildeo que parte do pressuposto de que vocecirc sabe
tem algum conhecimento que aquela pessoa natildeo tem O que estaacute vendo de
algum modo tem um conhecimento que o outro natildeo tem mas deixando-se
guiar percebe que a outra pessoa tambeacutem tem um conhecimento diferente do
seu Ah Eu estava sentindo as coisas de outra forma diferente de Patriacutecia eu
tinha que tocar em tudo eacute diferente
Patriacutecia mdash Eacute outra forma de vivenciar de encontrar o mesmo caminho soacute que
por outras vias
Neste ponto encerramos a atividade Interessante perceber como a questatildeo do
controle e descontrole tomou rumos proacuteprios Numa situaccedilatildeo com outras pessoas a
discussatildeo certamente seria distinta O bate-papo final durou 9 minutos e 6 segundos Ao
todo foram cerca de 45 minutos
Reflexatildeo com a experiecircncia
De todos os cinco sentidos a visatildeo talvez seja o mais exaltado em nossa sociedade
Afirmaccedilatildeo que pode ser verificada de muitas maneiras uma delas se refere agrave luz Ela que
eacute possibilidade de visatildeo nos eacute apresentada como algo fundamental tanto pela via sacra
quanto pela sinoniacutemia com razatildeo Em Gecircnesis Capiacutetulo 1 Versiacuteculo 3 (BIacuteBLIA 1962)
184
temos a famosa passagem ldquoFiat luxrdquo na qual a divindade faz com que haja luz em
detrimento das trevas e a partir desse ato haacute vida De modo semelhante ldquoa racionalidade
eacute vista como a essecircncia e o destino do ser humanordquo (BIESTA 2013 paacuteg 31) no seacuteculo
XVIII conhecido tambeacutem como Seacuteculo das Luzes
Esta sociedade que vecirc acaba se definindo entre os limites do alcance de sua visatildeo
E a luz ora pelos deuses ora pela razatildeo possibilita que se possa ver isto eacute definir
Quando Heidegger (2008 paacuteg 41) se refere agrave ciecircncia (intimamente relacionada com a
razatildeo) como a ldquoteoria do realrdquo ele dialoga diretamente com o homem que vecirc e que precisa
ver para ser homem
O homem que vecirc se habituou com a visatildeo ele entende o mundo a sua volta por
esse sentido Um haacutebito que lhe trouxe conforto e seguranccedila A ciecircncia com sua exatidatildeo
traz seguranccedila Nesse vieacutes a teoria do real apresenta reminiscecircncias do sentido do verbo
grego theoreacutein contemplar perceber observar mas tambeacutem consultar um oraacuteculo
(LIDDELL SCOTT 1940) A luz da razatildeo permite que o homem veja o real assim como
o oraacuteculo permitia que o homem soubesse o desiacutegnio dos deuses
Natildeo podia o homem grego ter acesso ao desiacutegnio dos deuses senatildeo pelo oraacuteculo
Natildeo pode o homem atual ter acesso a seu mundo senatildeo pela luz da razatildeo Biesta (2013)
reconhece que o problema do homem racional (ou humanismo) eacute sua normatizaccedilatildeo do
que significa ser humano e consequentemente como compreender seu mundo Para entatildeo
corresponder a essa questatildeo o autor vai propor repensar o que entendemos por homem
Todavia em vez de perguntar pelo que eacute o homem a pergunta agora interroga a respeito
de onde o homem se torna presenccedila
Uma mudanccedila nada banal de como lidar com a questatildeo Enquanto a primeira
remete a si ao homem que (se) vecirc a segunda remete ao outro ao lugar no qual o homem
que vecirc se encontra uma pergunta pelo ser a outra pela presenccedila Sutilmente a questatildeo
engendra outra perspectiva de se dispor a perguntar pelo ser que tambeacutem eacute ser da
presenccedila e pela presenccedila do ser Trata-se de enfoque afinal ambas as perguntas satildeo feitas
pelo homem atual a saber noacutes mesmos
Perguntar pela presenccedila tambeacutem pergunta pelo ser mas tentando resgatar o que
haacute de mais concreto e mais perto embora nem sempre acessiacutevel deste ser Quando se
pergunta pela presenccedila assume-se que a essecircncia estaacute aqui independentemente do que
se acredita que ela seja ou poderia ser Se algueacutem pergunta eacute porque quer saber algo mas
185
a pergunta pela presenccedila natildeo comporta a seguranccedila de uma definiccedilatildeo propotildee o convite
da visita agrave presenccedila do outro
Por visita novamente o professor Biesta (2013) nos esclarece uma importante
distinccedilatildeo entre empatia turismo e visita A empatia e o turismo eacute uma adequaccedilatildeo de
sujeitos a outros sujeitos A visita por outro lado tenta manter as distacircncias entre cada
parte envolvida em um lugar comum Desta forma eacute assumido o desafio de amar o
proacuteximo como o proacuteximo que ele eacute ao inveacutes de como noacutes mesmos impondo ao outro
nossa forma de ver o mundo
O que podemos fazer sem luz Danccedilar eacute uma possibilidade O danccedilarino que olha
para os proacuteprios peacutes natildeo estaacute a danccedilar pois estaacute ocupado a olhar para os peacutes O deus que
danccedila (NIETZSCHE 1981) nunca sequer os viu ele confia no chatildeo e no ritmo
Naturalmente esta confianccedila natildeo vem sem risco Noacutes mortais mais do que os deuses
estamos sujeitos agrave violecircncia do mundo queremos possuir o diferente para nos
salvaguardar do que nos desafia irrita perturba (BIESTA 2013) e mata
Logo natildeo ver ou abrir matildeo da visatildeo natildeo pode ser resolvido num mero acender
ou apagar das lamparinas Eacute abraccedilar uma realidade com espinhos e perceber que nem tudo
poderaacute ser calculado e muito menos medido pela sua funcionalidade O homem que natildeo
valoriza a inutilidade vecirc a danccedila unicamente como adequaccedilatildeo aos passos coreograacuteficos
ele natildeo tem tempo para perder tempo para suspender o tempo fabril (MASSCHELEIN
2010) e experienciar a brevidade do mundo para arriscar e provar e natildeo gostar e
recomeccedilar de outra maneira Natildeo eacute capricho do cego danccedilar sem ver Assim como natildeo
devemos encarar a suspensatildeo da visatildeo como excentricidade mas sim por uma visita
(BIESTA 2013) a lidar com um mundo que natildeo conhecemos nem podemos conhecer
186
Consideraccedilotildees finais
Em linhas gerais tentamos relacionar entre si trecircs questotildees principais com o
intuito de habitar o terreno das praacuteticas mais adiante o que eacute tradiccedilatildeo o que eacute filosofia e
o que eacute linguagem Naturalmente que haacute uma infinidade de respostas Ratificando a accedilatildeo
de convidar seguem alguns encaminhamentos possiacuteveis que iratildeo ajudar na compreensatildeo
deste trabalho
A tradiccedilatildeo e o ensino andam juntos Este transmite a mensagem que aquele deixou
ao longo dos anos Concomitantemente aprendemos a crer na tradiccedilatildeo e em sua
transmissibilidade O modo como encaramos um natildeo se distancia muito do jeito que
lidamos com o outro a tal ponto que o ensino da tradiccedilatildeo se confunde com a tradiccedilatildeo do
ensino Nesse sentido natildeo eacute de se espantar que partir para estranhos rumos e diferentes
rotas gere algum abalo na maneira tradicional de ver as coisas Numa perspectiva mais
ampla somos e natildeo somos nossos pais assim como nossos filhos estatildeo destinados a ser
e natildeo ser agrave nossa imagem e semelhanccedila Nem a mensagem a ser transmitida costuma ser
assimilada de forma tatildeo inoacutecua sem alguma coisa de maacutecula e invencionice Por esse
motivo certo descontrole eacute mais do que bem-vindo eacute essencial
Prosseguindo o desenvolvimento das questotildees com as quais buscamos
familiaridade e em se tratando de experiecircncias de base filosoacutefica eacute interessante se
perguntar pela tradiccedilatildeo da filosofia Normalmente conceituaccedilotildees complexas e a sisudez
em seu trato se afinam com a filosofia e em contrapartida uma postura poeacutetica ou menos
centrada no conceito tendem a atrair repulsa O que chamamos de filosofia nem sempre
teve entendimentos afins com os atuais Nomeaccedilatildeo que instigava ideologias distintas sob
semelhante alcunha Inclusive aquelas definiccedilotildees e anedotas filosoacuteficas passaram por
modificaccedilotildees e solidificaccedilotildees no imaginaacuterio do pensamento de tal modo que pensar
aqueacutem ou aleacutem delas torna-se um esforccedilo tremendo
Refazer os passos que nos pisaram pisam e pisamos eacute conveniente Desde a
segregaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel ateacute o estabelecimento do domiacutenio da razatildeo o
pensamento soube se definir Eacute preciso desaprender Se o poeta foi expulso e com ele o
modo de ser poeacutetico tambeacutem a filosofia natildeo se encontra em bons lenccediloacuteis Achincalhada
de sandice e coroada de matildee de todas as ciecircncias enquanto foi esquecida propositalmente
187
no asilo das irrelevacircncias pelos filhos ingratos a maneira de dizer filosoacutefica eacute esvaziada
de importacircncia e soacute um pensamento disposto a pensar-se isto eacute uma filosofia capaz de
se questionar filosoficamente pode ousar um espaccedilo em nossa sociedade do controle
Conclui-se portanto que natildeo existe nada como uma existecircncia sem sentido Todo
existir significa um jeito de ver sentir pensar enfim ser A criacutetica da tradiccedilatildeo e
consequentemente da tradiccedilatildeo do pensamento estaacute intimamente vinculada com a criacutetica
de como somos o que somos Em outras palavras eacute perguntar o que eacute o ser a partir de
como se eacute Como natildeo deixar nossas respostas virarem soluccedilotildees mas permitirem a
recolocaccedilatildeo da questatildeo Como dizer sem definir nomear sem classificar Natildeo haacute
resultados garantidos soacute o horizonte e o misteacuterio que tanto esconde e nega quanto mostra
e ensina ldquoQuem quer passar aleacutem do Bojador Tem que passar aleacutem da dorrdquo (PESSOA
1934 paacuteg 64)
188
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