O homem em Heráclito
Francisco Moraes (UFRRJ)
O verdadeiro tema de Heráclito não é o mundo físico, mas a condição humana, a condição de mortalidade.
(Charles H. Kahn)
Apesar de ser considerado de há muito um dos mais representativos filósofos da
PHÝSIS, parte considerável dos fragmentos de Heráclito que chegaram até nós trata
abertamente do homem e de seu modo de ser. Parece ser de um espanto relativo ao
modo de ser do homem (dos homens) que principia todo o pensamento de Heráclito
naquilo que este possui de mais característico. A perplexidade original da qual parte
Heráclito é sem dúvida a situação de adormecimento ou de apatia em que vivem em
geral os homens (os muitos) diante daquilo que constitui a conjuntura reunidora de tudo:
o Lógos. Não se trata, bem entendido, de uma espécie de inconformismo moral ou
moralizante, que ao fim e ao cabo sempre almeja corrigir alguma coisa. A perplexidade
aqui é bem mais decisiva e diz respeito àquilo que antes caracterizaria o homem
enquanto homem. Queremos sustentar aqui que os homens, aos quais faz referência
Heráclito em vários fragmentos, não são simplesmente a “multidão ignorante”, incapaz
de compreender e ter presente aquilo que verdadeiramente importa; os muitos são, ao
contrário, os homens enquanto tais, ou seja, todos nós (Heráclito inclusive) à medida
que não alcançamos sustentar, a partir de nós mesmos, a exposição decidida à
totalidade do ente. O homem é para Heráclito o maior mistério: “Como alguém poderia
manter-se encoberto face ao que nunca declina?”, se pergunta ele em um de seus
fragmentos. Nenhum homem pode ser o que é sem reportar-se à totalidade do ente.
Disso ninguém seria capaz. No entanto, homem nenhum pode instalar-se nessa
totalidade de modo a poder disponibilizá-la para si. Esta é a perplexidade de Heráclito.
Por que não poderíamos ser sem a referência à totalidade? A insinuação dada por
Heráclito a essa pergunta, que podemos tomar ao modo de resposta, é que sempre e em
toda parte já nos descobrimos em nosso existir sendo em meio a diferenças que não
foram postas primeiramente por nós mesmos. Podemos viver ou morrer, dormir ou
acordar, falar ou silenciar, agir ou descansar, amar ou odiar, mas não podemos em
absoluto existir sem nos projetar a partir de nós mesmos para essas e outras
possibilidades similares. Mais ainda: em seu próprio movimento de ser, o homem
recebe dessa mesma totalidade determinações fundamentais que são elas mesmas
incontornáveis: Ser livre ou escravo, desperto ou dormente. Para Heráclito, os homens
não nascem todos livres e depois as circunstâncias históricas e/ou sociais ratificam ou
tolhem sua liberdade. Ser livre ou escravo é antes o modo como a própria realidade
condiciona cada um em seu viver. Quem pode suportar e acolher a realidade assim
mesmo como ela se mostra é livre, quem não pode suportá-la é escravo.
Heráclito não nos propõe uma determinada compreensão de conjunto do mundo
para então situar a condição humana a partir dela, prescrevendo como cada um teria de
comportar-se em face dela a fim de ser verdadeiramente livre e racional. Ele na verdade
assume muito naturalmente diferenças bem conhecidas e difundidas em seu tempo
como estando fundadas, em última instância, na legalidade do mundo (Logos). A última
coisa que devemos encontrar em Heráclito é uma doutrina do desencantamento com o
mundo fundada na razão. Heráclito não supõe em absoluto que “tudo flui”, doutrina que
no máximo poderia ser atribuída a Crátilo, um discípulo extremado que conhecemos
através de Platão e Aristóteles1, mas que “tudo é um”. Heráclito é ao mesmo tempo um
conservador e um revolucionário. Conservador porque mantêm intocadas diferenças
tradicionais entre homens e deuses, entre livres e escravos; revolucionário porque trata
de fundar essas diferenças em outra parte que não em meras convenções, mas antes em
uma legalidade de tipo superior. De fato, caso considerasse que “todo flui” seria de se
esperar a defesa de uma postura resignada e apática diante do devir. Ora, não é possível
encontrar nada de semelhante ao longo dos fragmentos que chegaram até nós, muito
pelo contrário. Heráclito não sustenta nenhum indiferentismo diante da realidade em
devir. Trata-se antes de um poder agir em consonância com essa realidade, sem
acalentar ilusões injustificadas. A sabedoria de Heráclito é uma sabedoria trágica, como
mostrou Nietzsche, e não um conformismo diante do sem sentido da vida.
Se não é o caso de estabelecer uma postura adequada ao homem a partir do
conhecimento da essência da realidade apresentado de maneira clara e distinta, de modo
a subordinar a vida humana como um todo às possibilidades abertas pelo conhecimento,
do que se trata então? Trata-se tão somente de fazer aparecer a própria totalidade e isso
1 Segundo Platão e Aristóteles, Crátilo acreditava que para ser coerente com a suposta doutrina heraclitiana do fluxo universal seria preciso renunciar ao discurso, o qual criaria uma aparente fixidez ali onde nada haveria de fixo. Por isso, ao invés de falar, Crátilo se limitava a apontar ou a assobiar.
de modo a que seja ela, e não o conhecimento, que possibilite a sua descoberta. É
preciso dispor-se em situação para poder de fato compreender. O discurso de Heráclito é
resolutamente oracular não por algum gosto por obscuridades, como já foi acusado na
antiguidade quando ainda se tinha acesso à integra de seu “livro” (Cf. Teofrasto e
Cícero). Heráclito nos apresenta uma forma originária de pensamento precisamente por
não instalar-se na diferença teoria e prática.
Como discursa para os homens, Heráclito deve assumir que estes, muito embora
se comportem no mais das vezes ao modo de um alheamento em relação ao Logos,
podem compreender o que ele pretende dizer. Todavia, essa possibilidade de
compreensão não equivale, por um lado, a um entendimento (teórico) da lei universal do
mundo e tampouco se destina a uma possibilidade de esclarecimento dos homens em
geral. A possibilidade de compreensão deve corresponder à conquista de uma
disponibilidade para com o Lógos, que consiste na disposição de sustentar
corajosamente a identidade dos contrários, liberando assim uma fala e um olhar
extraordinários, isto é, divinos. Essa disposição seria dada a todos os homens. Porque
não se mostram capazes de algo assim, a maioria vive como se tivesse um entendimento
próprio e particular, na dormência de uma apatia úmida, espantando-se com o Logos em
tudo.
Um fragmento de Heráclito pode nos indicar o caminho para essa postura. O
fragmento diz: “Se não se espera não se encontra o inesperado, sendo sem caminhos de
encontro nem vias de acesso.” Trata-se do fragmento 18. Apoiando-nos no que
dissemos acima, e ousando um primeiro acesso ao dito do fragmento, podemos dizer
que a existência humana acontece, em linhas gerais, a partir da diferença entre
previsibilidade e imprevisibilidade. Estamos sempre procurando estabelecer condições
de previsibilidade de modo a tornar seguro, tanto quanto possível, o nosso viver. O
homem da técnica leva até o extremo essa pretensão à medida que busca confiar em
procedimentos estabelecidos antecipadamente e passíveis de serem repetidos e
aperfeiçoados. Estamos sempre hoje dispostos a conceder muito valor ao controle dos
riscos de toda e qualquer empresa. Desde essa perspectiva onde predomina o controle e
o asseguramento, busca-se ao máximo expurgar da vida sua imprevisibilidade
constitutiva. Tudo o que acontece de modo diferente daquele que foi previsto tende a ser
experimentado como um completo descalabro. Mesmo o risco que decidimos correr
deve ser sempre um risco calculado, quer dizer, um risco mínimo. Acreditamos
cegamente que o sucesso seja um bem e que o fracasso seja um mal. Por outro lado, se
nos privássemos de todo planejamento e de toda tentativa de antecipar nossas ações e
iniciativas, entregando tudo ao acaso das circunstâncias, certamente facilitaríamos as
coisas para nós pelo fato de nos pouparmos da angústia em relação ao futuro e à sua
indeterminação. É que renunciando ao poder de planejamento não teríamos como
reconhecer o imprevisível enquanto imprevisível. Tudo seria imprevisível e nada o seria
propriamente. Se quisermos encontrar o imprevisível temos, portanto, que prever e
antecipar. Tanto na tentativa de controlar e limitar ao máximo a imprevisibilidade
quanto no suposto abandono a ela, não acontece o encontro com o imprevisível. Se tudo
for planejamento e se tudo for improviso nada propriamente acontece como tal. É que
tudo acaba se desfazendo seja na monotonia da previsibilidade seja na puerilidade do
novo pelo novo. Para acontecer ele mesmo, o real necessita permanecer imprevisto na
própria previsibilidade. Como isso? Tomemos o exemplo de uma aula. O professor
planeja a sua aula. Fazendo isso duas atitudes logo se apresentam como possíveis: o
professor pode planejar a aula para que tudo saia conforme o planejado. Assim fazendo,
mesmo obtendo sucesso em seu intento, ele estará sempre limitado ao que foi estipulado
por ele. Todo caminho alternativo que porventura se insinue, talvez por intermédio de
uma pergunta, será sempre percebido como ameaça e descaminho. Por outro lado, o
professor pode também planejar sua aula de modo a colocar-se, da melhor maneira
possível, em situação de aula. Neste caso, há sempre o convite ou a abertura para que as
coisas saiam diferentes do planejado. Podemos planejar a aula de modo a ser possível
acolher o inesperado, no caso, uma pergunta ou curiosidade do aluno. Já sabemos qual
dessas duas formas de planejamento goza de prestígio em nossos dias. No entanto,
nenhuma delas, na ótica de Heráclito, seria capaz de por si só dar lugar ao inesperado. É
que tudo depende de como a pergunta será acolhida na hora mesma em que for
formulada, tanto pelo aluno quanto pelo professor. Nenhum planejamento pode dar
conta desse desamparo. Por mais aberto que seja um planejamento, pode ser que uma
pergunta ou mesmo um comportamento de um aluno fira e coloque em risco seus
pressupostos. O que fazer então? No fundo não há nenhuma receita possível. Sabemos
apenas que um desafio de liberdade foi colocado e que não estamos em condições de
suprimi-lo. Desse modo, assim nos posicionando, deixamos que tudo aconteça de modo
mais livre, sem a necessidade de reduzirmos tudo a uma forma qualquer de
planejamento. Como diz Heráclito: “Não é melhor para os homens que lhes aconteça o
que eles querem”.
Essa mesma postura de abertura àquilo que nos põe em questão em nossas
expectativas de sentido pode ser observada em relação ao ouvir e ao falar. Heráclito
afirma que “não sabendo ouvir, não sabem falar”. De fato, todo ouvir que seja também
um compreender disposto é uma espécie de fala silenciosa consigo mesmo, pela qual
nos deixamos traduzir o que um outro está a falar. Ouvir é mesmo um falar a sós
consigo mesmo. Só que esse falar consigo não é um simples tagarelar para si mesmo.
Ouvir significa propriamente reverberar ou deixar repercutir em nós o sentido do que se
diz. Para isso é preciso uma coragem toda especial. É que em meio a tal repercussão já
não temos nenhuma garantia de que chegaremos a uma conclusão ou a um
conhecimento seguro. Pode ser inclusive que sejamos forçados a renunciar a
determinadas convicções que nos trazem tranquilidade e conforto, as quais muitas vezes
foram conquistadas de maneira autêntica. Todavia, basta a recusa de semelhante risco
para que a nossa fala perca a sua força própria e se converta em simples palavrório.
Heráclito apresenta uma reflexão sobre o homem que não pode ser
compreendida em termos de humanismo. O homem em Heráclito só se deixa
compreender a partir da referência ao Lógos. Este último, por sua vez, não é razão,
como posteriormente será traduzido, mas princípio e estrutura do mundo, a experiência
fundamental do um-tudo ou tudo-um. Que o homem não possa instalar-se nessa
referência ao Logos é motivo da maior perplexidade. Todavia, exatamente por não
compreenderem essa conjuntura reunidora das diferenças e por se deixarem ficar em
meio ao conforto de distinções isoladoras, é que os homens são o que são. Nessa apatia
não cabe enxergar apenas uma incapacidade por parte do homem. A existência humana
que se realiza em meio a distinções e dicotomias favorece o que menos se poderia
esperar dela: a experiência insólita da identidade dos contrários. Para ser o lugar dessa
experiência o homem não precisa deixar de ser homem, assumindo uma postura
pretensamente sobre-humana de indiferença. Não precisamos deixar de julgar males a
doença e o sofrimento dela decorrente para apreciarmos a grandeza de uma alma que a
ela resiste bravamente. Não precisamos deixar de sofrer o incômodo de nossa
ignorância para melhor assumir a sua legitimidade. Não precisamos negar a nossa
finitude para suportarmos, sem inveja, a superioridade dos deuses. Basta que no
fracasso de nossas expectativas de controle e segurança saibamos dar passagem ao olhar
extraordinário da identidade dos contrários: a morada do homem.
Fragmentos:
I
Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Com efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo com este Logos e, não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais às que levo a cabo, discernindo e dilucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono. (Frag. 1)
IISe não se espera não se encontra o inesperado, sendo sem caminhos de encontro nem vias de acesso. (Frag. 18)
IIINão sabendo auscultar, não sabem falar. (Frag. 19)
IV
Como alguém poderia manter-se encoberto face ao que nunca se deita? (Frag. 16)
VUma coisa a todas as outras preferem os melhores: a glória sempre brilhante dos mortais; a multidão está saturada como o gado. (Frag. 29)
VISem compreensão: ouvindo, parecem surdos, o dito lhes atesta: presentes estão ausentes. (Frag. 34)
VIIAuscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um. (Frag. 50)
VIIINão compreendem, como concorda o que de si difere: Harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira. (Frag. 51)
IX
De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros homens; de uns fez escravos, de outros, livres. (Frag. 53)
X
Do Logos com que sempre lidam se afastam, e por isso as coisas que encontram lhes parecem estranhas. (Frag. 72)
XI
Não é para se falar e agir dormindo. (Frag. 73)
XII
E os que dormem também são operários (...e cooperam nas obras que acontecem no mundo).
XIII
A morada do homem não tem controle, a divina tem. (Frag. 78)
XIV
O mais sábio dos homens, comparado com Deus, parecerá um macaco (tanto na ciência, como na beleza, como em tudo o mais). (Frag. 83)
XV
Indolente, o homem se deixa espantar pelo Logos em tudo. (Frag. 87)
XVI
Os homens acordados tem um mundo só que é comum (enquanto cada um dos que dormem, se voltam para seu mundo particular). (Frag. 89)
XVII
Para o Deus, tudo é belo e bom e justo. Os homens, porém, tomam umas coisas por injustas, outras por justas. (Frag. 102)
XVIII
Para os homens os olhos e as orelhas dos que têm mentes bárbaras, são más testemunhas. (frag. 107)
XIX
Não é melhor para os homens que lhes aconteça tudo que eles querem. (Frag. 110)
XX
É dado a todos os homens conhecer-se a si mesmos e pensar. (Frag. 116)
XXI
A morada do homem, o extraordinário. (Frag. 119)
Bibliografia:
ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. Trad.
Emmanuel Carneiro Leão. Bragança Paulista, SP: Ed. Universitária São Francisco,
2005.
HERÁCLITO. Fragmentos contextualizados. Trad. Alexandre Costa. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
KAHN, Charles H. Arte e pensamento em Heráclito: Uma edição dos fragmentos com tradução e comentário. Trad. Élcio de Gusmão Verçosa Filho. São Paulo: Paulus, 2009.
Bibliografia:
ANAXIMANDRO. Os pensadores originários. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Bragança Paulista, SP: Ed. Univesitária São Francisco, 2005.
KAHN, Charles H. A arte e o pensamento de Heráclito: uma edição dos fragmentos com tradução e comentário. Trad. Élcio de Gusmão Verçosa Filho. São Paulo: Paulus, 2009.
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