UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR
INSTITUTO DE CULTURA E ARTE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
O MO(VI)MENTO DO DISCURSO:
Entre o Tratado sobre a Natureza ou sobre o No-ser e o Elogio de Helena
VICENTE THIAGO FREIRE BRAZIL
Fortaleza CE
2012
1
VICENTE THIAGO FREIRE BRAZIL
O MO(VI)MENTO DO DISCURSO:
Entre o Tratado sobre a Natureza ou sobre o No-ser e o Elogio de Helena
Dissertao apresentada ao programa de Ps-
Graduao em Filosofia da Universidade Federal do
Cear, como requisito parcial para a obteno do
ttulo de Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Jos Carlos Silva de Almeida
REA DE CONCENTRAO:
Filosofia da Linguagem e do Conhecimento
Fortaleza CE
2012
2
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao
Bibliotecria Perptua Socorro Tavares Guimares
B794 m Brazil, Vicente Thiago Freire
O movimento do discurso: entre o tratado sobre a natureza ou sobre o
no-ser e o elogio de Helena./ Vicente Thiago Freire Brazil. Fortaleza:
Universidade Federal do Cear, 2012.
95 fls.;
Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Cear,
Departamento de Filosofia, fortaleza, 2012.
Orientao: Prof. Dr. Jos Carlos Silva de Almeida.
1. Sofistas (Filosofia grupo) I. Ttulo
CDD 183.1
3
AGRADECIMENTOS
Agradeo a Deus Ser do qual no possvel pensar nada maior sem o qual
minha existncia sequer teria sentido.
A minha amada famlia Danielly, Thassa e Gabrielly combustvel de minha vida;
alimentam-me de amor cotidianamente.
Aos meus pais Ftima e Brasil exemplos de dedicao, esforo e perseverana. Se
amo estudar porque aprendi contigo, minha me, se nunca desisti de estudar foi em virtude
de teu exemplo e conselhos, meu pai.
Ao estimado Prof. Jos Carlos Silva de Almeida, que aventurou-se a enveredar comigo
os tortuosos caminhos trilhados pelos sofistas. Obrigado por sua disponibilidade, orientao e
seriedade. Seu empenho docente inspira-me e instiga-me ao desafio de tornar-me um
educador comprometido.
Aos demais Professores do PPG em Filosofia da UFC, especialmente a Prof Maria
Aparecida de Paiva Montenegro; sua constante colaborao em minha pesquisa, desde a
graduao, tornou este trabalho possvel.
Aos colegas da graduao Paulo Csar, Edmilson Rodrigues e William Matias. Aos
companheiros da graduao que continuaram no mestrado, Mateus Uchoa, Alex Pinheiro e
Ivonilda. Ao companheiro de orientao no mestrado, Reginaldo.
Agradeo por fim CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel
Superior, pela concesso da bolsa de estudos, sem a qual este trabalho no teria sido possvel.
4
A Danny,Thassa e Gaby,
Amores de minha vida inteira.
5
Uma tal iluso que, por um lado, o que cria a iluso mais justo que aquele que no
a cria e, por outro lado, aquele que se deixa encantar mais sbio que aquele que no se
deixa levar. De fato, um mais justo porque aquilo que prometeu f-lo; o outro, o que cede
ao encanto, mais sbio: com efeito deixa-se levar pelo prazer das palavras, o que no deixa
de ter um sentido.
Grgias
6
RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo central arrazoar sobre o conceito de Discursividade
em Grgias de Leontino tomando como base duas de suas principais obras a ns acessveis, o
Tratado sobre o no-ser ou sobre a natureza e Elogio de Helena. Pretende-se demonstrar que
o logos tem em Grgias um papel de inteiro destaque, sendo este um tema constante, do
momento no pensamento gorgiano, podendo este ser compreendido como o fio condutor da
obra do Leontinense. No obstante o reconhecimento do momento do discurso em Grgias,
demonstra-se tambm na presente pesquisa que esse absolutamente dinmico, vivo, puro
movimento. Partindo de uma anlise do contexto sociocultural formador da sofstica na
qual so apresentadas e discutidas as principais questes que envolvem os pensadores que so
relacionados neste movimento segue-se para a discusso pormenorizada de ambos os textos,
tendo como pressuposto de leitura para compreenso do Tratado a meontologia gorgiana que
funda o momento do discurso no pensamento ocidental, e do Elogio a onipotncia do logos
que pe a realidade cultural na qual a natureza humana est posta em movimento para que a
tragicidade de nossa existncia seja suavizada.
Palavras-chave: Discursividade, Grgias, Sofstica.
7
ABSTRACT
The aim of this research is central reason on the concept of discursiveness in Gorgias of
Leontino based two of his main works in the accessible, The Treaty on the Non-being or
About The Nature and Praise of Helena. Intend to demonstrate that the Logos has in Georgias
a role of full mention, and this is a constant theme of "moment" in gorgian thought, which
may be understood as the wire of the work of the leontineese. Despite the recognition of
"moment" of the speech in Gorgias, it shows that also in this research that this is absolutely
dynamic, alive, pure "movement". Starting with an analysis of the sociocultural context of
sophistry - in which are presented and discussed the main issues surrounding the thinkers
who are related in this movement - is followed by detailed discussion of both texts, with the
assumption of reading for understanding the Treaty in the gorgian Meontology founding the
"moment" of discourse in Western thought, and praise the omnipotence of the logos that puts
the cultural reality in which human nature is "movement" for the tragedy of our existence is
softened.
Key words: Discursiveness, Gorgias, Sophistry
8
SUMRIO
INTRODUO 10
CAPTULO I O QUE A SOFSTICA? 12
1 A CRIAO DA SOFSTICA 12
1.1 Contexto Scio-histrico do Surgimento da Sofstica 12
1.2 Conjuntura Filosfica do Nascimento da Sofstica: os Filsofos Naturalistas
Precursores, Contemporneos e Primeiros Adversrios dos Sofistas 20
1.3 A Origem do Termo Sophistes 25
1.4 A Unidade na Diversidade: uma Tentativa de uma Caracterizao da Sofstica 28
1.4.1 A sofstica ou apenas os sofistas? 27
1.4.2 A unidade na heterogeneidade da sofstica 29
1.4.3 O ensino da virtude poltica: o sofista e o ensino na Atenas democrtica 36
CAPTULO 2 GRGIAS, O SOFISTA/FILSOFO 41
2 Grgias, o Pensador siciliano 42
2.1 O Grgias X Grgias 45
CAPTULO 3 A MEONTOLOGIA COMO FUNDAMENTO DA
DISCURSIVIDADE EM GRGIAS
49
3.1 Nada ( ) 50
3.1.1 A impossibilidade da existncia do no-ente ( ) 51
3.1.2 A no-existncia do ente ( ) 52
3.1.3 A impossibilidade lgica da coexistncia simultnea do ente ( ) e do
no-ente ( ). 56
3.2 Se Algo Existir ser Incognoscvel e Inconcebvel ao Homem (
) 59
3.3 Se fosse apreendido, no seria possvel transmiti-lo a outrem (
, ) 62
4 A Discursividade em Grgias 67
4.1 Promio Apresentao da Temtica Geral do Texto. ( 1,2) 69
4.2 Caracterizao de Helena Elogios e Justificativas para uma Defesa ( 3-5) 70
4.3 Apresentao e Crtica das Trs Primeiras Possveis Causas para o
Rapto/Fuga de Helena. (6-15) 72
9
4.4 O Eros como Quarta Possibilidade de Acusao contra Helena Acrscimo
Conceitual ou Unificao de Teses? (15-19) 84
4.5 Eplogo Retomada das Teses e Declarao de Inocncia de Helena (20,21) 88
5 Balano Geral da Anlise da Discursividade e seus Componentes no
Pensamento Gorgiano 88
CONCLUSO 91
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 92
10
INTRODUO
Mui provavelmente, o que h de mais instigante no estudo da filosofia antiga a
percepo de que os problemas que na atualidade so tidos como de extrema relevncia j
estavam presentes, como discusso ou forte intuio, no florescer da filosofia ocidental.
Ao analisarmos os textos acessveis de Grgias podemos perceber a construo de
uma reflexo filosfica instigante sobre a problemtica do logos. O discurso para o sofista de
Leontino deve ser considerado como a mxima esfera de efetivao de nossa humanidade.
no discurso que construmos a realidade ltima com a qual lidamos, pois esta
essencialmente cultural. Aquilo que conhecemos ou compreendemos em nossa existncia est
absolutamente relacionado com aquilo que dizemos, isto , com os discursos que proferimos.
Contudo, diametralmente oposto a Parmnides, Grgias no compreende a relao
Ser X Discurso como uma isomorfia, muito menos uma oportunidade para fundamentar a
defesa de uma ontologia forte atravs da postulao de uma realidade extramundana. Para o
sofista, o fato de enunciarmos discursos constri aquilo que era definido como o ser, de tal
maneira, que este constitui-se uma pura elaborao convencional daquele.
O mundo que conhecemos, aquele que de fato concebemos como existente, uma
elaborao determinada pelos enunciados anteriormente proferidos e por aqueles que
continuam sendo emitidos no cotidiano de nossas relaes.
Por isso falar de uma essncia do ser, ontologicamente fundada, preexistente a
linguagem, e especialmente conceber tal ser como causa geneticamente anterior a linguagem,
no mnimo um desatino na concepo gorgiana.
exatamente neste momento que cada indivduo reconhece o quanto cada ser
humano tem plenos motivos para ser existencialmente angustiado; a tomada do discurso como
objeto de apaziguamento das contradies do real torna-se muito mais aceitvel e, em certa
medida, necessria para o indivduo.
Nossa existncia envolta em uma tragdia epistemolgica: temos uma
concupiscncia epistmica insacivel, mas uma capacidade efetiva de leitura de mundo
limitada em virtude da precariedade de nossa racionalidade e sensibilidade.
Grgias de Leontino em suas obras, o Tratado sobre o no-ser ou sobre a natureza e
Elogio de Helena discorre exatamente sobre este poder criativo inerente ao discurso. Na
11
primeira obra, Grgias denuncia a impossibilidade humana de eleger outro recurso, que no o
logos, como instrumento de construo do conhecimento de um indivduo.
J no Elogio, Grgias demonstra a mltipla potencialidade do discurso, assim como
a onipotncia do mesmo. O discurso tem o poder de construir um esteretipo negativo de uma
pessoa, assim como de descriminalizar aqueles que injustamente sofrem o resultado de
julgamentos precipitados.
Desta maneira, pretende-se demonstrar nesta pesquisa que o logos tem em Grgias
um papel de inteiro destaque, sendo este um tema constante, do momento, no pensamento
gorgiano, podendo este ser compreendido como o fio condutor da obra do Leontinense.
O discurso o momento de efetivao da reflexo filosfica em Grgias, diante da
ausncia de qualquer elemento fundante da realidade, nossos discursos tornam-se os nicos e
reais balizadores
Toda e qualquer interpretao dos textos gorgianos que se afastam desta premissa, o
discurso tem poder, torna-se extremamente limitada e tendenciosamente negativa.
No obstante o reconhecimento do momento do discurso em Grgias, demonstra-
se tambm na presente pesquisa que esse absolutamente dinmico, vivo, puro movimento.
Partindo de uma anlise do contexto sociocultural formador da sofstica na qual
so apresentadas e discutidas as principais questes que envolvem os pensadores que so
relacionados neste movimento segue-se para a discusso pormenorizada de ambos os textos,
tendo como pressuposto de leitura para compreenso do Tratado a meontologia gorgiana que
funda o momento do discurso no pensamento ocidental.
Do Elogio a onipotncia do logos que pe a realidade cultural na qual a natureza
humana est posta em movimento para que a tragicidade de nossa existncia seja suavizada.
O fato que o debate sobre o mo(vi)mento do discurso em Grgias suscita o incio
de um novo paradigma filosfico no qual o mais importante no aquilo que deveria ser e o
indivduo incapaz de conhecer, e sim aquilo que e a humanidade capaz de transformar
ainda mais.
12
CAPTULO I O QUE A SOFSTICA?
1 A CRIAO DA SOFSTICA
A partir do sculo V a.C., uma srie de fatores de ordem social, econmica e poltica
contriburam para o surgimento de um grupo sui generis de pensadores na Grcia antiga; tais
filsofos foram responsveis por profundas mudanas no paradigma filosfico clssico e
suscitaram questes to importantes para a histria da filosofia1 que, inclusive, na
contemporaneidade, encontramos fortes e reconhecveis ecos de seus pensamentos e debates,
como nos afirma Guthrie (1995, p. 26). Estes pensadores eram os sofistas.
Os sofistas, obviamente, so fruto de uma engenhosa e imbricada relao entre o clima
espiritual de sua poca e as condies socioculturais da civilizao grega antiga. Investigar a
primazia gentica de um destes dois aspectos, de maneira que se possa determinar aquele que
a causa determinante do outro, tarefa demasiado complexa, pois estes implicam-se
mutuamente.
Podemos assim notar que, somente a soma de inmeros fatores favorveis e
desfavorveis, poderia determinar o surgimento de pensadores to brilhantes e
imprescindveis histria da filosofia como os sofistas.
Alm da relao entre o social e o espiritual, nesta etapa inicial da pesquisa, nos
debruaremos numa anlise do vocbulo sophists e na contribuio de filsofos
contemporneos no processo de uma leitura no-platnica/aristotlica das teses sofistas.
Passemos ento a analisar especificamente cada um destes importantes aspectos que
esto ligados ao surgimento deste movimento filosfico.
1.1 Contexto Scio-histrico do Surgimento da Sofstica
A sofstica no pode ser definida como uma escola filosfica propriamente dita,
pressuposto que discutiremos ulteriormente neste trabalho, todavia, no se pode negar que os
pensadores que so agrupados neste movimento so, como nos diz Mondolfo (2008, p. 537),
1 Podemos citar como questes de relevncia para a sofstica e de contnuo interesse na atualidade o
incomparvel destaque dado linguagem, sendo esta o elemento central da reflexo filosfica, a defesa de um
ceticismo em contraposio direta a uma postura dogmatista defendida pelo eleatismo, predominante na poca,
uma forte crtica ao carter mstico da religiosidade exercida no contexto da religio pblica grega e prpria
religio enquanto tal, a diferenciao entre nomos e physis etc.
13
a expresso natural de uma nova conscincia pronta para advertir quo contraditria, e assim
trgica, seja a realidade.2
O movimento sofstico assim a expresso filosfica de uma srie de crises e
transformaes que enfrentava a sociedade grega do sculo V a.C. Os sofistas passam a
ganhar destaque, especialmente em Atenas, a partir de dois acontecimentos importantssimos:
o desenvolvimento e a consolidao dos ideais democrticos mais especificamente a partir
da forte influncia poltica de Pricles (461 a 429 a.C.) e a liderana de Atenas na liga
martima de Delos (477 a.C.).3
O conceito de democracia tem suas origens, segundo Detienne (1988, p. 154), na ideia
de isonoma a qual estaria diretamente ligada ao exerccio poltico dos aristoi no sculo VI
a.C. e, neste contexto histrico, no significava, necessariamente, igualdade perante a lei,
pois segundo alguns intrpretes inclusive o prprio Detienne , isonomia pode ser um
vocbulo derivado de nmein e assim expressaria a ideia de igualdade na diviso de bens
materiais ou de direitos polticos entre indivduos especficos e no num carter absoluto
esta tambm uma das possveis interpretaes da partcula iso- , concluso diferente da
que se chega ao propor-se nmos como termo originrio da palavra em anlise.
O desenvolvimento da democracia traz consigo aquilo que Untersteiner (2008, p. 541)
denomina de crise da aristocracia, que apesar de aparentemente ter sua origem apenas em
fatos histricos, est intimamente relacionada mudana de uma srie de pressupostos ticos,
gnoseolgicos e metafsicos daquele perodo.
Havia no governo aristocrtico um senso de coletividade que representado pela ideia
de philantropa, contudo esta noo, no momento inicial da filosofia antiga, seletiva. Deste
modo a aristocracia no se identificava com os outros segmentos da sociedade, havia apenas
um reconhecimento mtuo de cidadania plena entre as pessoas deste mesmo nvel econmico
e cultural, por isso, sequer consideravam o restante da populao digna de participar de
2 Orig.: lespressione naturale di una coscienza nuova pronta ad avvertire quanto contradittoria,e perci
tragica, sai la realt. 3 importante ressaltar que os testemunhos apontam para a chegada dos principais sofistas em Atenas
exatamente neste intervalo histrico. Isto corrobora a tese aqui defendida de que os sofistas so uma pertinente
manifestao intelectual de sua poca, desconstruindo assim o argumento de que estes seriam meros acidentes
intelectuais da filosofia antiga. Para exemplificar esta relao scio-histrico-filosfica pode-se citar: Grgias foi
a Atenas na condio de embaixador de Leontini em 427 a.C. Neste perodo deveria ter por volta de 55 anos
(Hpias Maior 282b). Neste mesmo perodo, que compreende o momento da Guerra do Peloponeso, Hpias
tambm esteve na plis democrtica como embaixador de lis. J Protgoras, deslocando-se para Atenas, foi
indicado pelo prprio Pricles para escrever a constituio de uma nova colnia fundada, Turii, em 444 a.C.
(DIGENES LARTIOS. Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres. IX, 50). Antfon era ateniense, uma exceo
num grupo de estrangeiros-sofistas, e teve grande influncia no final do sculo V.
14
julgamentos ou deliberaes pblicas. Esta grande massa de pessoas no passava de um
verdadeiro vulgo.
Todavia a partir de uma interpretao cada vez mais radical de conceitos como
isonoma e philantropa que o ideal democrtico ganha fora na civilizao grega,
notadamente em Atenas. Segundo Rodolfo Mondolfo:
O conceito de coletividade, com todas as consequncias gnoseolgicas, se
conserva e se amplia, da mentalidade aristocrtica, na experincia do perodo
democrtico. [...] O estado universal toma o lugar da universalidade dlfica e
aristocrtica. (MONDOLFO, In: UNTERSTEINER, 2008, p.547).
Como nos aponta Detienne (1988, p.158-160), o processo de democratizao da
civilizao grega est intimamente atrelado a uma dessacralizao ou secularizao da
verdade, isto , no perodo arcaico a concepo de verdade algo que provm do
conhecimento mtico-mstico do mundo nico acessvel naquele perodo histrico , deste
modo intimamente ligada aos ofcios do poeta e do sacerdote, todavia, a partir do final sculo
VI a.C e incio do sculo V a.C, o conceito de verdade passa a ligar-se reflexo filosfica
j iniciada pelos pr-socrticos fato este que tem grande repercusso tambm no processo
educacional do homem grego.4 Nas palavras de Detienne:
A reforma hoplita e o nascimento da cidade grega, ambas em si mesmas, em
solidariedade, no podem separar-se da mais decisiva transformao intelectual do
pensamento grego: a construo de um sistema de pensamento racional que aponta
para a manifesta ruptura com o pensamento religioso, de carter geral, em que uma
mesma forma de expresso abarca diferentes tipos de experincia. (DETIENNE,
1988, p.158).
A secularizao da verdade, na passagem da sociedade arcaica para a sociedade
clssica, denuncia uma forte crise de autoridade nas instituies (poesia artstica e religio)
que anteriormente detinham o poder de analisar a validade ou no de um determinado
discurso.
Paulatinamente, estas instituies tornaram-se dentro de si mesmas um processo de
desenvolvimento reflexivo de tal maneira que a recepo do saber no pode mais ser realizada
de uma maneira meramente dogmtica.
Se no nascimento da civilizao grega temos a palavra divinamente inspirada do
sacerdote ou a sabedoria enciclopdica dos primeiros poetas, no sculo VI a.C temos uma
4 Segundo Werner Jaeger (1994, p. 335), somente com o advento da sofstica que se pode falar com
propriedade do nascimento de uma paidia grega, sendo esta vista como uma formao espiritual consciente de
todos os cidados.
15
guinada na construo do conhecimento, especialmente com relao ao estabelecimento de
seu carter veritativo.
Despontam neste perodo poetas que, atravs de seus textos, j demonstram o interesse
do homem grego por importantes questes, que mais tarde tornar-se-o centrais na discusso
filosfica. Com os textos homricos, mui provavelmente datando do sculo VIII a.C, temos o
incio do processo de transmisso escrita dos valores morais e intelectuais do homem grego.
A partir do sculo VI a poesia j est muito prxima daquilo que no sculo vindouro
constituir-se- tradicionalmente como saber filosfico.
A poesia deste perodo j aponta para um progressivo abandono de uma submisso a
vontade divina e acentua o peso da responsabilidade humana nas aes e escolhas. O dilogo
e o debate ganham paulatinamente espao, inclusive dentro da poesia e da religio, como
estratgias ideais para avaliao da veracidade de um determinado discurso.
Para alguns pensadores, como Conford (1989), por exemplo, os pr-socrticos
extraram suas intuies filosficas no de uma aproximao com as cincias da natureza, e
sim de uma apropriao de conceitos e princpios expressos na religiosidade grega arcaica.
Pode-se assim perceber que o nascimento da filosofia est intimamente relacionado ao
desenvolvimento reflexivo da poesia e religiosidade grega.
A democracia ateniense foi, como nos demonstra Jaeger (1994, p. 336), a ampliao
do conceito de comunidade de sangue, largamente utilizado pela aristocracia para justificar
uma srie de direitos exclusivos daquele grupo especfico como o acesso privilegiado
poltica e educao , de modo que todo cidado livre foi considerado pelo estado como
membro da grande comunidade ateniense na qual este teria plenos direitos
independentemente de seu nvel econmico e cultural e tambm responsabilidades para com
o bem-estar da plis.
Deste modo, as decises polticas que anteriormente eram discutidas apenas por um
pequeno grupo de pessoas aspecto caracterstico de um sistema oligrquico , a partir da
democracia, passam a ser debatidas por todos os cidados, com o objetivo de se chegar a
benefcios para um maior nmero de cidados, e no exclusivamente para um grupo reduzido
de indivduos que descendessem de uma determinada famlia.5
exatamente neste contexto de crise social (fim dos direitos exclusivos da
aristocracia), poltica (universalizao do poder de voto e do direito de participar das
5 evidente que o avano social trazido pela democracia ateniense no teve efeitos universalmente aplicados
naquela sociedade. Para a maioria dos especialistas, em mdia apenas 10% da populao de uma plis
organizada democraticamente possuam direitos de cidadania.
16
discusses de temas pertinentes a todos os cidados atenienses) e educacional (decadncia da
fundamentao mtico-mstica do conhecimento e ascenso da reflexo filosfica) que dois
conceitos ganharo notoriedade na mentalidade do homem ateniense do sculo V a.C., a
isegoria e a parrhesia. Nas palavras de Casertano:
A primeira (isegoria), que de qualquer modo um termo no especfico da
democracia, podendo indicar tambm uma paridade entre famlias aristocrticas,
indica a mera igualdade no direito da palavra, pelo fato de que cada cidado tem o
direito de intervir na assembleia, qualquer que seja o peso que sua interveno
possa ter; a parrhesia, ao contrrio, cuja primeira apario se encontra
provavelmente em Eurpedes, indica a possibilidade concreta de dizer livremente
aquilo que se quer, e o termo que mais apropriadamente caracteriza a ordem
constitucional democrtica em Atenas. (CASERTANO, 2010, p.16).
A questo que surge para o homem ateniense deste contexto histrico, a partir da
anlise dos efeitos causados por estes dois novos conceitos : uma vez que, em tese, o direito
ao uso da palavra est acessvel a todos os cidados (isegoria), como usufruir deste direito de
maneira livre e significativa para a comunidade e para o prprio cidado (parrhesia)?
Ressaltando-se o evidente pressuposto de que para o homem deste contexto social, felicidade
coletiva pr-requisito para felicidade pessoal.
A resposta para tal questionamento estaria ligada ao incio do desenvolvimento de uma
viso discursivo-reflexiva do mundo, por meio da qual o homem grego sentiu-se no direito
enquanto pessoa que reconhecida pela sociedade e no dever em virtude do forte
compromisso do esprito grego com a coletividade de analisar e criticar os discursos e as
ideias que eram apresentadas nas assembleias.
O uso do discurso no contexto democrtico deixa de ter como fundamento
argumentos de autoridade mtica ou mstica, os quais apelavam para uma pura reproduo
da tradio ou para uma inefvel comunicao com os deuses; agora o mais importante na
enunciao de um discurso no o seu emissor antes o representante dos deuses ou o
detentor de uma sabedoria vastssima transmitida somente a alguns escolhidos capazes de
reproduzi-la , pois todo e qualquer cidado da plis tem o direito de publicamente emitir
sua opinio e defend-la.
O principal fator para se analisar a validade, ou no, de um determinado discurso est
muito mais ligado capacidade deste de persuadir racionalmente aqueles que o ouvem, do
que uma dependncia direta com o carter ou status social de seu emissor.
Assim pode-se notar que a grande conquista advinda da democracia ateniense a
parrhesiazomai, isto , a capacidade de falar aquilo que se deseja e no simplesmente
17
reproduzir aquilo que j foi enunciado anteriormente.6 Deste modo, por meio do discurso, a
possibilidade de conquistar outros direitos tornou-se algo real.
A democracia ateniense, por meio dos pressupostos e causas apresentados
anteriormente, propiciou o surgimento de um novo grupo de pensadores, os quais no tinham
mais a ambio de formar indivduos com conhecimentos meramente enciclopdicos, que
serviriam apenas para a ostentao, e sim pessoas capazes de defender suas ideias e sua
cultura publicamente. Como bem nos diz Jaeger:
na poltica e na tica que mergulham as razes desta terceira forma de educao
sofstica. Distingue-se da formal e da enciclopdica, porque j no considera o
homem abstratamente, mas como membro da sociedade. desta maneira que coloca
a educao em slida ligao com o mundo dos valores e insere a formao
espiritual na totalidade da aret humana. (JAEGER, 1994, p. 342-343).
importante, neste momento, desconstruir um mito que foi por muito tempo
reproduzido na histria da filosofia e que est relacionado consolidao da democracia
ateniense, qual seja: os sofistas ministravam aulas as quais tinham como principal objetivo a
transmisso de tcnicas para apreender a virtude Aret.7
A proposta educacional sofstica, possibilitada pelo contexto democrtico ateniense,
formar pessoas capazes de participar da vida poltica de maneira til e significativa; assim se
deve frisar que aquilo que os sofistas propunham ensinar era a virtude poltica e no a
virtude enquanto tal.
Para tornar mais evidente a relao entre os sofistas e a questo do ensino da aret
poltica citamos a seguir o clebre passo no qual Scrates e Protgoras debatem sobre a
possibilidade do ensino da virtude:
Protgoras O meu ensino destina-se boa gesto dos assuntos particulares de
modo a administrar com competncia a prpria casa e dos assuntos da cidade de
modo a faz-lo o melhor possvel quer por aces quer por palavras.
Scrates Ser que percebi bem as tuas palavras? Parece-me que falas da arte de
gerir a cidade e prometes transformar homens em bons cidados?
Protgoras esse precisamente, Scrates, o objectivo que me proponho cumprir. 8
6 Michel Foucault no ano de 1984 proferiu uma srie de palestras intituladas Le gouvernement de soi et des
autres II: Le courage de la vrit, que postumamente vieram a ser publicadas em forma de livro. Nesta obra de
Foucault h uma pormenorizada anlise da importncia e dos efeitos que a parrhesia causou na sociedade grega
antiga e tambm uma tentativa de resgate da mesma como caracterstica imprescindvel do discurso humano na
contemporaneidade. 7 Protgoras 323c, 324c; Cf. GUTHRIE, W.K.C. Os Sofistas, 1995, p.41-42; JAEGER. Paidia, p. 340.
8 Protgoras 319a.
18
Desdobrando-se o conceito de aret definido como algo que est ligado diretamente
natureza do indivduo, assim no artificial e por isso impossvel de ser ensinado9 no
conceito de virtude poltica que algo completamente artificial e necessariamente
transmitido por meio de uma paidia s pessoas10
, pode-se perceber a importncia do papel
do sofista neste novo contexto poltico do mundo helnico.
Como virtude poltica entenda-se a capacidade de articular-se discursivamente com
o objetivo de defender determinado ponto de vista perante outros indivduos. Pode-se assim
deduzir que aquilo que os sofistas propunham-se a ensinar, na maioria dos casos, no era algo
ligado ao campo da ontologia, e sim da poltica; e esta virtude poltica era um componente
novo e essencial para as pessoas que compunham a democracia ateniense.
A democracia, por meio dos sofistas, propicia assim o desenvolvimento de um
importante aspecto para a sociedade grega daquele perodo: o acesso de um maior nmero de
pessoas a uma racionalidade articulada por meio de discursos pblicos; o avano na
publicizao da cultura ou nas palavras de Casertano (2010, p. 19), de uma nova cultura
a qual no mais ligada a uma ordem natural (defendida pelos poetas e sacerdotes), muito
menos a tentativa de explicar o mundo a partir de tal perspectiva (proposta dos filsofos
naturalistas).
Ligado ao desenvolvimento da democracia ateniense h outro fato, de natureza
poltico-econmica, extremamente importante para o nascimento dos sofistas: a formao da
liga martima de Delos (476 a.C).
O fato de liderar um conjunto de pleis tornou Atenas o centro das atenes no
contexto da civilizao grega no sculo V a.C. Obviamente este destaque no era completo
em virtude da concorrncia de Esparta que, no mesmo perodo, funda a liga militar do
Peloponeso (431 a.C). Graas a este fato histrico, muitos sofistas migraram de suas cidades-
estado para Atenas, alguns como representantes polticos (Grgias, por exemplo), outros
simplesmente atrados pelo florescimento desta cidade.
Quatro anos depois de liderar a vitria dos gregos sobre os persas em Salamina (480
a.C), Atenas cria uma confederao com finalidades mercantis, polticas e blicas. medida
que Atenas passa a influenciar a vida poltica e comercial de outras pleis, a interao socio-
cultural tambm entre indivduos de contextos diferentes aumenta consideravelmente.
9 Este primeiro conceito de aret algo ilusrio para os sofistas, impossvel de ser comprovado, acessado e por
isso dificilmente ser transmissvel a outro indivduo, se esta for existente como bem defender Grgias no seu
Tratado; logo, cabe ao homem ateniense um esforo para tornar-se um bom poltico, e para atingir tal finalidade
este deve acumular cultura suficiente para, com desenvoltura, defender suas ideias nas assembleias pblicas. 10
Protgoras 318e.
19
H assim um forte choque cultural que produzir, inevitavelmente, a necessidade de
um ajuste social entre cidados de pleis diferentes o que somente ser possvel por meio de
um discurso moderador, articulado racionalmente, que parta de um pressuposto defendido por
um dos principais sofistas, Protgoras: O homem a medida de todas as coisas, das que so
como so e das que no so como no so.11
O contato com outras culturas gerou no homem ateniense do sculo V a.C uma srie
de questionamentos que iam de encontro s crenas religiosas12
, s leis locais de cidade-
estado13
e as variadas formas de governo existentes na civilizao grega.
Diante de uma forte crise da aristocracia, o grupo dos comerciantes martimos em
virtude das alianas com outras pleis foi o mais beneficiado neste momento histrico. A
transio e consolidao do regime democrtico trouxeram aos comerciantes uma
oportunidade antes no possvel: debater, discursar e decidir sobre os assuntos relativos
plis com o mesmo direito (isonomia) e poder (isegoria) que qualquer outro cidado.
Diante de tantas possibilidades os comerciantes sentem-se incapazes de discutir com
os aristoi, que possuam uma slida formao educacional; neste contexto que surge a
necessidade de formar novos indivduos hbeis no campo do discurso e da persuaso, assim,
por consequncia, que surge o sofista como educador.14
O modelo arcaico de educao grega estava intimamente ligado questo da imitao
e da repetio, em contrapartida os sofistas defendiam uma formao cultural do cidado, algo
que produziria a formao integral deste, como no modelo tradicional, contudo por meio de
estratgias diferentes algo exigido diante dos desafios da nova organizao poltico-
econmica de Atenas. Com relao ao modelo educacional sofstico, Jaeger esclarece:
O ideal de educao humana para ele (Protgoras) a culminao da cultura, no
sentido mais amplo. Tudo se engloba nela, desde os primeiros esforos do homem
para dominar a natureza fsica at o grau supremo da autoformao do esprito
humano. Nesta profunda e ampla fundamentao do fenmeno educacional, mais
uma vez se manifesta a natureza do esprito grego, orientado para aquilo que de
universal e de total h no ser. Sem ela, nem a ideia de cultura nem a da educao
humana teriam vindo luz naquela forma plstica. (JAEGER, 1994, p. 365).
Graas ao intercmbio cultural nascido atravs do comrcio e das interaes polticas
entre Atenas e outras pleis, foi possvel ampliar o espectro cultural do homem grego e assim
necessrio dar, queles que podiam ter acesso, uma formao mais integral e humanstica
11
PLATO, Teeteto 152a; 12
Leis 889e; PROTGORAS, fragmento 4. 13
A tese do igualitarismo de Antifonte; ANTIFONTE, fragmento B44. 14
Cf. JAEGER, 1994, p. 339-340.
20
entenda-se neste contexto, humanstico, aquilo que exclusivamente humano, por isso na
formao proposta pelos sofistas no havia espao para fundamentao do conhecimento em
aspectos religiosos ou mticos. (Cf.: CASERTANO, pp. 17-19).
Sobre esta formao cultural do homem grego, desapegada a valores mtico-msticos,
diz-nos Casertano:
Portanto, a religio, como necessrio complemento das leis, no outra coisa seno
um instrumento mais refinado de controle social e poltico, bom para manter no
cabresto as plebes, e da qual o homem culto e de poder, que dela no necessita, deve
saber fazer uso atento. (CASERTANO, 2010, p.75). (Grifo nosso).
1.2 Conjuntura Filosfica do Nascimento da Sofstica: os Filsofos Naturalistas
Precursores, Contemporneos e Primeiros Interlocutores dos Sofistas
Os filsofos naturalistas15
, ou os physikoi como nos diz Aristteles na Metafsica, so
a primeira expresso do florescer filosfico da Grcia antiga. So estes os responsveis pelo
enorme salto qualitativo que o pensamento ocidental deu ao abandonar uma cosmoviso
dominada por aspectos mticos e religiosos, e iniciarem os esforos para fundamentao do
conhecimento humano exclusivamente em pressupostos racionais.
Os naturalistas fazem a pergunta pela arch do cosmos, isto , os primeiros filsofos
investigavam qual a origem fundadora, sustentadora e finalstica de todas as coisas existentes
no universo. Havia entre estes pensadores um consenso: o princpio fundamental de todas as
coisas existentes algo natural/fsico, em grego, physis. Para estes filsofos a physis:
[...] abarca tambm a fonte originria das coisas, aquilo a partir do qual se
desenvolvem e pelo qual se renova constantemente o seu desenvolvimento; com
outras palavras, a realidade subjacente s coisas de nossa experincia. (JAEGER,
1952. apud BORNHEIM, 2000, p. 11).
Assim o desejo dos naturalistas atingir, por meio da physis, uma concepo lgico-
racional para explicar o mundo. Etimologicamente o vocbulo physis deriva de duas outras
palavras: a partcula -sis que est relacionada com a ideia de ao, movimento, e o prefixo
15
Opta-se, no presente trabalho, pela designao Filsofos Naturalistas ao invs das outras possibilidades Pr-
socrticos, Filsofos Fisicalistas por acreditar-se que a primeira designao concede uma centralidade
exagerada a figura de Scrates no s na histria da filosofia, como especialmente na filosofia antiga, no a
despeito das relevantes contribuies de tal pensador, mas como um esforo de diminuir a influncia das
concepes socrtico-platnicas-aristotlicas na anlise da histria da filosofia; e que o segundo termo reduz,
erroneamente, o campo de pesquisa dos primeiros filsofos a aspectos exclusivamente fsicos do cosmos, viso
esta que ser desconstruda a seguir na presente pesquisa.
21
phy-, derivado de phyein, que indica impelir, crescer, desenvolver-se. (BENOIT, 2009,
p.77).
Assim, quando os naturalistas investigavam a origem fundadora do cosmos, estavam
em busca de algo que fosse ativo e gerador no s daquilo que fsico, mas tambm daquilo
que estava para alm do fsico, nas palavras de Bornheim:
Em nossos dias, a natureza se contrape ao psquico, ao anmico, ao espiritual, ou
qualquer que seja o sentido que se empreste a estas palavras. Mas para os gregos,
mesmo depois do perodo pr-socrtico, o psquico tambm pertence physis. Esta
importante dimenso da physis pode ser melhor compreendida a partir de sua
gnesis mitolgica. J afirmamos que os deuses gregos no so entidades
sobrenaturais, pois so compreendidos como parte integrante da natureza.
(BORNHEIM, 2000, p. 12).
Ao propor uma pesquisa sobre a physis os naturalistas procuravam solucionar uma
indagao que surge no incio do desenvolvimento da filosofia: existe, para cada objeto do
mundo, uma natureza especfica ou h uma natureza universal, presente em todos os entes do
mundo, da qual seja possvel derivar uma unidade no cosmos?16
Todavia, importante ressaltar que a pesquisa naturalista, ainda que iniciada por tal
indagao muito ligada quilo que fsico , no se reduz a uma mera investigao sobre o
mundo natural, pois a partir da pergunta pela origem do mundo fsico que os primeiros
filsofos passam a analisar as questes relativas ao humano, uma vez que este partcipe
daquele.
A esta postura dos filsofos naturalistas nasce uma crtica que, se no completamente,
em grande parte verdadeira: neste perodo a filosofia no conseguiu dar conta dos problemas
especificamente humanos. Pode-se explicar este fato atravs da postura que, de modo geral,
situava o homem como mais um objeto do mundo, no dando a este qualquer papel de
destaque.
Nas palavras de Reale (1993, p. 177): De fato, no mbito da filosofia da physis, no
se atribua ao homem lugar privilegiado, ou melhor, no se compreendia nem se justificava
este lugar privilegiado. Deste modo, pode-se notar a necessidade que surgiu, no incio da
histria da filosofia, de uma reflexo mais detida e apurada acerca do homem enquanto tal.
Evidentemente esta anlise que fazemos da filosofia naturalista est diretamente ligada
ao acesso que temos s ideias destes primeiros pensadores. A escassez de textos que
preservem as teses destes pensadores um enorme desafio com o qual nos deparamos.
16
Cf.: GOMPERZ, T. Los pensadores Griegos, 1969, p.75.
22
Deste modo, talvez seria mais exato afirmar que, diante dos fragmentos textuais
antigos a que temos acesso hoje, supomos que os filsofos naturalistas concentraram-se mais
numa anlise de questes relativas ao cosmos, na qual, aparentemente, as temticas relativas
ao homem possuem um papel secundrio.
Porm, importante destacar-se que, apesar das dificuldades que os naturalistas
enfrentaram para responder as questes relativas ao homem, estes realizaram tais pesquisas,
investigaram problemas humanos.
necessrio realizar tal ressalva para que se evite uma leitura estereotipada destes
pensadores, assim como dos prprios sofistas como veremos a seguir que so opostos
entre si em nome de uma leitura homogeneizante e linear da histria da filosofia, tal qual
proposta, por exemplo, por Aristteles. assim que o Estargirita apresenta-nos a sofstica:
Eis uma prova do que dissemos: os dialticos e os sofistas tm o mesmo aspecto do
filsofo (a sofstica a sapincia apenas aparente, e os dialticos discutem sobre
tudo, e o ser comum a tudo), e discutem essas noes, evidentemente, porque elas
so o objeto prprio da filosofia. A dialtica e a sofstica se dirigem ao mesmo
gnero de objetos aos quais se dirige a filosofia; mas a filosofia difere da primeira
pelo modo de especular e da segunda pela finalidade da especulao. A dialtica
move-se s cegas nas coisas que a filosofia conhece verdadeiramente; a sofstica
conhecimento aparente, mas no real.17
O objeto de estudo dos naturalistas, o cosmos, era to amplo que uma pesquisa detida
em um campo especfico, no caso a humanidade, seria reduzir demasiadamente o foco das
investigaes. Para os naturalistas, os problemas do homem merecem a mesma ateno que
qualquer outro problema relativo a natureza possa exigir.
Alm desta viso excessivamente abrangente dos problemas filosficos na qual os
problemas humanos se diluem h ainda outros problemas que podem ser citados como
pontos frgeis da filosofia naturalista, sendo um deles a diversidade de respostas a que
chegaram as pesquisas naturalistas.
A quantidade de possibilidades para se definir a physis constituinte do cosmos foi de
tal modo exagerada que levou ao extremo de haver respostas contraditrias umas as outras.18
17
ARISTTELES, Metafsica, Livro G, 2, 1004 b, 18-27. 18
Pode-se tomar como exemplo deste fato a existncia de um grupo de pensadores monistas (os quais defendiam
que a realidade era formada essencialmente por apenas um elemento), tendo como representantes Tales de
Mileto, Parmnides de Elia, Herclito de feso entre outros, e um grupo de filsofos que defendiam a tese
pluralista (segundo a qual o cosmos formado pela interao de um nmero determinado de elementos
essenciais existncia do mesmo), so exemplos de pensadores pluralistas Empdocles de Agrigento e
Anaxgoras de Clazmena. Alm disso, dentro destes segmentos da filosofia naturalista havia contradies entre
as respostas propostas pelos pensadores, como por exemplo, a gua, segundo Tales, em contraposio ao fogo-
movimento de Herclito, que tambm se contrapunha tese do ser-imvel de Parmnides.
23
Talvez, como pior consequncia para a filosofia naturalista, a multiplicidade de respostas
produziu paulatinamente uma descrena na possibilidade de atingir-se uma resposta vlida
para a pergunta impulsionadora destes filsofos.
Como consequncia inevitvel destas duas falhas estruturais dos filsofos naturalistas
a falta de um aprofundamento nas questes relativas e especficas ao ser humano e dos
problemas correlatos a este, e o conjunto, quase infinito, de respostas propostas ao problema
da physis como fundamento do universo abre-se espao para o surgimento de um novo
grupo de pensadores que elegeram a problemtica do humano, bem como seus assuntos
correspondentes (tica, poltica, religio etc), como a temtica por excelncia da filosofia.
Tais pensadores, imprescindveis para a histria da humanidade, foram os sofistas.
Deve-se observar que a originalidade na abordagem das questes mais relativas ao
homem tradicionalmente atribuda a Scrates. Disto, todavia, pode-se indagar: teria sido
Scrates um sofista, ainda que apenas no momento inicial de sua trajetria filosfica?
Uma das questes de relevncia que se deve destacar na relao entre a filosofia
naturalista e a sofstica que, a partir dos fragmentos que nos so acessveis, podemos notar
que aquela empreendeu grandes esforos na construo de uma cosmologia, enquanto esta
investiu seus esforos numa investigao epistemolgica, ou seja, enquanto os primeiros
filsofos tomaram como fio condutor de seus pensamentos a pretenso de dizer as estruturas
essenciais do universo como um todo, os sofistas preocupavam-se, principalmente, em
discutir se era possvel ao homem conhecer de fato algo do mundo, e se o era, de que maneira
se dava tal processo. Sobre esta questo nos diz Bonazzi:
Em outras palavras, os sofistas movimentam-se na esteira da tradio da filosofia
pr-socrtica, continuam a se interessar pelos problemas relativos natureza,
cidade e ao homem, mas segundo uma hierarquia inversa, que se baseia numa
intuio filosfica decisiva: que a relao entre o homem e a realidade
problemtica, no esttica, mas deve ser construda. E desta constatao que os
sofistas partiram para tratar do homem e de seus problemas: porque, se a natureza
em si ambgua, neutra ou sem sentido, em outro lugar que devemos procurar dar
sentido experincia e vida humana. A ateno se transfere da cosmologia
epistemologia, do estudo de como a realidade a como podemos conhec-la e
relacionarmo-nos com ela. Da physis ao logos19
(BONAZZI, 2010, p. 56-57).
19
Orig.: In altre parole, i sofisti si muovono nel solco della tradizione della filosofia presocratica, continuano a
interessarsi dei problemi riguardanti la natura, la citt e luomo, ma secondo una gerarchia rovesciata, che
prende spunto da unintutizione filosofica decisiva: che tra la realt e luomo il rapporto problematico, non
garantito, ma deve essere costrito. Ed da questa presa datto che i sofisti muoveranno per trattare delluomo e
dei suoi problemi: perch, se la natura in s ambigua, neutrale o priva di senso, altrove che bisogna cercare
per dare un senso allesperienza e alla vita delluomo. Lattenzione si sposta dalla cosmologia
allepistemologia, dallo studio di come la realt a come noi possiamo conoscerla e relazionarci con essa.
Dalla physis al logos.
24
Os naturalistas partem do pressuposto de que o homem tem, de fato, tanto a
possibilidade quanto os meios necessrios para conhecer a realidade na qual este est inserido.
Este postulado intrnseco filosofia naturalista aquilo que mais inquieta a mente de um
conjunto de pensadores que, em locais diferentes e sem uma relao direta entre si, comea a
duvidar desta potncia humana.
A sofstica assim uma consequncia (in)direta da filosofia naturalista. No possvel
negar-lhe a origem causal, todavia, evidente que a opo terica que estes pensadores
posteriores tomaram foi, sutilmente, diversa daquela assumida pelos naturalistas. Todo o
desejo por aquilo que o humano, presente na sofstica, nada mais que a reao de um
grupo de pensadores que no se conformaram com as pesquisas filosficas de sua poca e
ousaram ir alm.
A influncia da filosofia naturalista, ainda que como efeito reativo, sobre a sofstica
tamanha que, para exemplificar tal herana, podemos citar a clebre obra do sofista
Grgias, Sobre a Natureza ou Sobre o No-ser, que uma pardia, cheia de ironia e
sarcasmo, do grande poema de Parmnides, Sobre a Natureza.
No af de atacar o modelo ontolgico do eleatismo, Grgias faz uma releitura do
Poema e concomitantemente lana as bases de uma antiontologia, de sua teoria do
conhecimento e enuncia a linguagem como potncia privilegiada da racionalidade humana.
Para tornar mais evidente que os objetos de estudo dos naturalistas e dos sofistas so
basicamente os mesmos, sendo, todavia, bem diferenciadas as perspectivas utilizadas por
estes grupos para abordar tais temticas, citamos mais uma vez Bonazzi:
De uma maneira geral a vagueza do conceito pr-socrtico tem promovido um
equvoco de uma clara ciso entre a filosofia naturalista e a sofstica, produzindo um
senso comum segundo o qual os primeiros tm se ocupado apenas da natureza e os
outros do homem. Como todo senso comum, este contm um pouco de verdade e de
falsidade: verdade que a reflexo dos naturalistas teve como objeto privilegiado a
physis (a natureza), enquanto que os sofistas por sua vez esto interessados por
aquilo que especificamente relativo ao homem; mas no menos verdade que os
pr-socrticos foram responsveis por importantssimas contribuies no campo da
linguagem, da psicologia humana, e que os sofistas tambm se ocuparam do
problema da physis e da relao do homem com o mundo ao seu redor. Em outras
palavras, o que muda a perspectiva, no os temas abordados: os filsofos
naturalistas pesquisam o elemento de ligao que relaciona o homem ao mundo ao
seu redor, e os sofistas esto preocupados com aquilo que os distingue. Mas a
mudana de perspectiva no depende de um desinteresse dos ltimos pelos
primeiros: este o resultado de um confronto crtico.20
(BONAZZI, 2010, p. 24).
20
Orig.: Di solito la vagheza del concetto di presocratico ha favorito lequivoco di una netta cesura tra i
filosofi naturalisti e i sofisti, dando vita al luogo comune per cui i primi si sarebbero occupati solo della natura
e i secondi delluomo. Come tutti luoghi comunni, anche questo contiene una parte di verit e una di falsit:
vero che la riflessione dei naturalisti ha come oggetto privilegiato la physis (la natura), mentre i sofisti si
25
Como neste presente momento da pesquisa nos concentramos em discorrer sobre os
elementos espirituais que contriburam para o nascimento da sofstica, nos absteremos de
tratar da relao dos sofistas com outros pensadores e filsofos contemporneos a estes, como
Scrates, por exemplo, tema to polmico e vasto que no ser possvel nesta pesquisa
contemplar.21
1.3 A Origem do Termo Sophistes
Como nos assegura Bonazzi (2010, p.11), para compreendermos a presena da
sofstica na histria do pensamento ocidental necessrio entender esta como a histria de um
nome, mais que isso, a histria de um esteretipo, que como tal, trouxe inmeros prejuzos
para os pensadores que assim foram denominados.
Etimologicamente o vocbulo sophistes derivado do verbo sophizesthai que significa
aquele que exercita a sabedoria (sophia). Assim o sofista no aquele que se considera
como o sbio, detentor de uma verdade estabelecida e inamovvel, pelo contrrio,
indivduo que investiga, discute, debate sobre aquilo que se construiu socialmente como
conhecimento.
A sofstica, por definio, promotora de um contnuo processo de avaliao daquilo
que se convencionou como conhecimento estabelecido em uma determinada sociedade. Nesta
perspectiva, a sofstica demonstra-se essencialmente dinmica e crtica.
G. B. Kerferd, em sua obra O movimento sofista (1999, p. 45), faz questo de
demonstrar a fragilidade dos argumentos que tentam defender um empobrecimento
conceitual do termo sophistes no processo de desenvolvimento da cultura grega. Segundo o
autor, tal conjunto de teses teria suas razes no pensamento aristotlico, especialmente no
interessano piuttosto di ci che pi specificamente proprio delluomo; ma non meno vero che i presocratici
furono capaci di importantissimi contributi sul linguaggio o sulla psicologia umana, che i sofisti si occuparono
anche dei problemi della physis e della relazione tra luomo e il mondo che lo circonda. In altre parole, quello
che cambia la prospettiva, non gli argomenti trattati: i filosofi naturalisti cercano gli elementi di continuit
che legano lessere umano al mondo che lo circonda, i sofisti sinteressano di ci che lo distingue. Ma il cambio
di prospettiva non dipende dal disinteresse dei secondi per i primi: il risultato di un confronto critico. 21
H uma vasta literatura que trata sobre a relao entre os sofistas e Scrates, e assim como Kerferd (2003,
p.96-110) somos propensos a ver o clebre filsofo de Atenas como um sofista nato, o qual faz vasto uso das
estratgias de persuaso e retrica, especialmente dos elenchos. importante lembrar, apenas a ttulo de
introduo da questo, que as acusaes que levaram Scrates a julgamento e posterior condenao morte
foram, exatamente, impiedade contra os deuses da religio pblica grega e manipulao da juventude ateniense
atravs de ensinamentos corruptos.
26
desejo de apresentar a histria da racionalidade dentro de um modelo desenvolvimentista
enfatizando sobretudo a procedncia do particular ao universal. (KERFERD, p. 46).
A falcia do argumento aristotlico22
estaria em tentar demonstrar que no seu
nascedouro, o significado do vocbulo sophia, estaria ligado posse de um conhecimento
profundo e reflexivo sobre uma determinada atividade; assim, o fato de ilustres pensadores da
antiguidade grega, como o matemtico Tales, o poeta Homero ou mesmo Scrates, serem
denominados textualmente de sophs apenas indicaria que tais homens eram exmios nas
atividades que exerciam.
assim que nos diz o Estagirita, numa tentativa de produzir uma pretensa evoluo
semntica do conceito de sophia, em sua tica a Nicmaco:
Por isso dizemos que Anaxgoras, Tales e os homens semelhantes a eles possuem
sabedoria filosfica, mas no prtica, quando os vemos ignorar o que lhes
vantajoso; e tambm dizemos que eles conhecem coisas notveis, admirveis,
difceis e divinas, mas improfcuas. Isso, porque no so os bens humanos que eles
procuram.23
Num segundo momento do desenvolvimento do significado do vocbulo, sophia
estaria relacionada com a capacidade de resolver com sabedoria determinados problemas,
especialmente aqueles ligados vida prtica (poltica). Mais uma vez, apenas nesta particular
acepo da palavra, seria correto dizer que Pricles, por exemplo, foi um sophos, pois isto
soaria como um elogio capacidade poltica do grande estadista grego do sculo quinto.
, contudo, na mais baixa acepo da palavra, ou seja, aquela que define sophia como
uma aptido manual para determinada profisso ou conhecimento especfico de uma
determinada tcnica, que temos adequadamente reconhecido o carter do sophistes que
Aristteles tanto atacava.
Ressalte-se, novamente, como nos afirma Kerferd (1999, p. 45), que este tipo de
apresentao da evoluo do termo completamente artificial e no histrica, contudo, no se
pode negar o efeito que tal definio produziu na mentalidade da posteridade com relao a
imagem do sofista; sendo este visto no como aquele que possui um saber efetivamente vlido
sobre um determinado assunto, mas apenas como o indivduo que detentor de um conjunto
de tcnicas capaz de convencer, por vias no racionais, os outros.
A reproduo e o comentrio dos clssicos fragmentos textuais, platnicos ou
aristotlicos, que apresentam definies pejorativas para o termo sophistes ou descries para
22
ARISTTELES, tica a Nicmaco 1141a-b 23
Ibid., 1141b 1-5
27
a atividade do sofista tais como no Protgoras 312a, 316d-317c; Sofista 218 b-d, Metafsica
1004b 17-26, algo que se considera, segundo o objetivo da presente pesquisa, desnecessrio,
pois nada mais seria que uma republicao de inverdades e exageros que reforam uma viso
estereotipada dos sofistas; provavelmente o melhor modo de fazer cessar tais ataques
infundados no lhes dando voz.
1.4 A Unidade na Diversidade: uma Tentativa de uma Caracterizao da Sofstica
Em virtude da singularidade das teses propostas pelos sofistas, necessrio
refletirmos, de uma maneira mais detida, sobre as peculiaridades que marcam esta nova forma
de filosofar que nasce na Antiguidade. Num primeiro instante nos debruaremos sobre a
problemtica da heterogeneidade da sofstica e das dificuldades de se propor um conjunto
mnimo e comum de caractersticas, presente no modo de fazer filosofia dos variados
indivduos que assim foram denominados.
Num segundo momento, nos deteremos em demonstrar a relao mutuamente causal
entre o carter intercitadino da sofstica e a questo do recebimento de honorrios por parte
dos sofistas. de suma importncia estabelecermos uma explicao lgica e coerente para
esta relao, pois esta ltima postura, isto , o recebimento de pagamento pela ministrao de
aulas, a atitude que mais rendeu crticas aos sofistas no curso da histria da filosofia.
Este segundo momento da reflexo acerca das caractersticas essenciais dos sofistas
finalizar com um esforo de demonstrar que o recebimento de honorrios como pagamento
por atividades intelectuais no algo introduzido pelos sofistas, mas na verdade o reflexo de
uma prtica social habitual no sculo V a.C.
1.4.1 A sofstica ou apenas os sofistas?
Antes de abordarmos as possveis aproximaes e intercesses existentes entre os
sofistas, realizaremos uma reflexo sobre as dificuldades que se impem a uma tentativa de
agrupar os indivduos que, no sculo V a.C, foram denominados de sofistas, assim como os
obstculos para defini-los como um grupo.
Toda e qualquer tentativa de homogeneizao dos sofistas sempre problemtica; no
importa o vis que se escolha terico ou metodolgico , o agrupamento destes pensadores
requer muito esforo. Dentre os desafios que se pode apresentar quele que se prope tal
28
empresa est a escassez de textos de autoria dos sofistas, fato que dificulta diretamente uma
compreenso maior destes pensadores.
Alguns especialistas em filosofia antiga24
discutem na atualidade sobre a real
possibilidade de se definir uma sofstica de fato, ou se possvel apenas apresentar o variado
conjunto de ideias dos pensadores que foram posteriormente designados de sofistas.
Temos assim o dilema entre um pluralismo de ideias, manifestadamente presente nos
fragmentos dos sofistas que nos so acessveis, e um esforo de unificao destes pensadores,
iniciado por Plato e Aristteles, e em certa perspectiva importante para a compreenso do
contexto no qual se situavam os sofistas.
Sobre a discusso de uma sofstica unitria fala-nos a professora Maria Jos Vaz
Pinto: No obstante a eventual plataforma comum, coloca-se a dvida de ser legtimo falar
de uma Sofstica ou de um movimento sofstico ou se devemos ater-nos apenas aos sofistas,
considerados como em si mesmos nas suas concepes individuais.25
A variedade de teses propostas e discutidas, a inexistncia de uma liderana oficial ou
mesmo ideolgica e a ausncia de um espao fsico especfico para o desenvolvimento dos
debates tal como uma escola, jardim ou prtico , no nos impede de reconhecer a
importncia de pensadores como os sofistas, contudo dificulta o estabelecimento de vnculos
que possam identific-los uns com os outros e assim aproxim-los. Nas palavras de Guthrie
(1995, p. 49): No se pode falar deles (os sofistas) como escola.
Temos assim um movimento de pensadores, os sofistas, e no uma escola de
pensamentos. bem verdade que no h nisto novidade alguma, uma vez que os filsofos
naturalistas, vistos como um todo, tambm devem ser compreendidos em sua multiplicidade
temtica natural, e no simplesmente, como a tradio aristotlica tenta nos fazer perceber,
um grupo homogneo e harmnico de pensadores.
Sobre o carter multitemtico do movimento sofista afirma-nos Romeyer-Dherbey:
Os sofistas possuem, como veremos, personalidades e doutrinas muito diferentes.
Quais so, portanto, os traos comuns que lhes proporcionam uma denominao
semelhante? Talvez um determinado nmero de temas, como o interesse prestado a
problemas sobre a linguagem, problemtica das relaes entre natureza e a lei, por
exemplo. Mas no isto o mais importante. A semelhana que une estas
individualidades distintas est antes num momento histrico e num estatuto social.
(ROMEYER-DHERBEY, 1986, p. 10).
24
Cf. BIGOU, D. Diversit des sophistes, unit de la sophistique. Noesis, N2, 1998. 25
SOFISTAS. Testemunhos e fragmentos. Traduo de Ana Alexandre Alves de Sousa, Maria Jos Vaz Pinto.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p.12.
29
O que nos fica explcito a partir das palavras supracitadas que os pensadores que
foram tradicionalmente denominados de sofistas nunca tiveram a inteno de formar uma
escola filosfica que agrupasse um determinado nmero de indivduos que defendessem um
mesmo conjunto de teses. O surgimento de tal identificao sociointelectual absolutamente
posterior e artificial.
Na verdade, a sofstica nasce como anttese daquilo que se convencionou chamar de
pensamento filosfico tradicional antigo, ou seja, no havia entre estes pensadores um mtuo
comprometimento intelectual que os unisse. Para ser denominado de sofista a partir do sculo
IV a.C bastava discordar das ideias dos naturalistas ou de Scrates, Plato e Aristteles.
Como temos visto inicialmente, a tentativa de estabelecer uma unidade sistmica
sofstica por meio da definio de um corpus doutrinrio bsico, que seja comum a estes
pensadores, algo que somente ser possvel de ser realizado se fizermos, de antemo, um
extenso conjunto de ressalvas, como se pretendeu at agora realizar no contexto desta
pesquisa.
1.4.2 A unidade na heterogeneidade da sofstica
Diante dos desafios e percalos para se analisar os sofistas como movimento
filosfico, isto , como sofstica, uma das possibilidades agrup-los tendo por base no um
nico objeto de estudo, e sim a estratgia de abordagem das variadas temticas, ou seja, uma
espcie de mtodo filosfico minimamente comum.26
Passemos ento a investigar quais seriam tais elementos constituintes do procedimento
sofstico, que seriam capazes de servir como vnculo para tais pensadores.
Que mtodo este? Quais suas caractersticas?
Pode-se definir o mtodo sofstico como uma paidia, isto , como a defesa da
possibilidade de um processo educativo que fosse capaz de tornar os indivduos aptos para a
vida pblica na polis.27
Entenda-se vida pblica como poder de falar aquilo que se pensa de
maneira articulada e racional, a ponto de convencer outros indivduos. Sem dvida, aquilo que
se pode definir como poltica.
Para Untersteiner (2008, p. XXII), o sofista no pode ser compreendido apenas como
um educador humanista, apesar de tal postura ser um enorme avano num contexto filosfico
26
Nisto temos um forte ponto de convergncia entre os sofistas e Scrates, pois em ambos os casos a escolha de
um mtodo filosfico para a construo do pensamento algo basilar. 27
Podemos apresentar como defensores de tal postura E. Duprel (1948, p. 397) e G. B. Kerferd (2003, p. 52).
30
onde de um lado estavam os filsofos naturalistas e sua predominante inquietao pela
constituio ltima do universo e de outro estava Scrates e seus alunos os quais, atravs de
um forte apelo metafsico, buscavam compreender o homem.
Diante de tal contexto espiritual no qual ou homem de tal forma objetivado, a ponto
de ser avaliado apenas como mais um elemento constituinte da physis, sem nenhuma
importncia especfica, ou este deve abstrair considervel importncia de suas relaes inter-
pessoais em nome de um, quase que mstico, dialogar com a alma em busca da ideia do bem
ltimo, constituinte metafsico do todo da realidade.
Para Untersteiner o que caracteriza primordialmente o sofista a percepo da
tragicidade da realidade, a qual era compreendida pelo filsofo por meio de um
fenomenismo28
que se apropriou de estratgias antirrealistas para denunciar os limites da
cognoscibilidade humana.29
A precariedade de nosso aparelho cognitivo ante a infinitude das mltiplas formas de
entes existentes denuncia a necessidade de compreendermos que o conhecimento absoluto,
exaustivamente esgotado e desta maneira imutvel, que qualquer coisa existente impossvel.
Por isso, diante deste quadro angustiante, no qual nossa concupiscncia cognitiva
sempre nos exige mais, sendo, contudo, impossvel saci-la em virtude da incapacidade lgica
de determinar objetivamente o que qualquer coisa em si mesma, resta apropriarmo-nos
daquilo que o mundo para ns e atravs do discurso constru-lo continuamente por meio de
nossas interaes sociais.
Apesar de diferentes, estas duas teses podem ser compreendidas de forma
complementar, isto , diante da tragdia da existncia humana que no pode apropriar-se da
verdade de fato, resta-nos, atravs de uma educao que prime pelo debate das questes que
so palpveis ao indivduo, ou seja, as questes humanas, construir nossa realidade. Nas
palavras de Jaeger:
Em todo caso, uma afirmao superficial dizer que aquilo que de novo e de nico
liga todos os sofistas o ideal educativo da retrica. Comum a todos antes o fato
de serem mestres da aret poltica e aspirarem a alcan-la mediante o fomento da
formao espiritual, qualquer que fosse a sua opinio sobre a maneira de realiz-la.
(JAEGER, 1994, p 343).
28
Cf. CASERTANO, 2010, p. 44. 29
Tome-se como exemplo desta leitura de mundo sofstico o relativismo antropocntrico de Protgoras e as
crticas gorgianas metafsica e a epistemologia de seus contemporneos.
31
Este o elemento de ligao, visto enquanto componente estratgico, que propomos
haver entre os sofistas que atuaram na Grcia do sculo V a.C.
Tendo por base esta premissa, pode-se caracterizar o modo de fazer filosofia do sofista
como um contnuo exerccio reflexivo, que tem por finalidade possibilitar uma formao
cultural aos indivduos. Este aspecto paidtico-cultural-humanstico da sofstica de tamanha
importncia que assim nos afirma Casertano:
Concluindo, podemos dizer que com os sofistas se afirma um tipo de filosofia no
abstrato, no isolado da vida concreta e prtica do homem, mas como instrumento
de vida necessrio, meio para levar a prpria vida a uma tomada de conscincia
histrica. Nesse sentido, pode-se falar at de um humanismo da cultura dos
sofistas: onde por humanismo no se deve entender, na esteira da notao platnica
(que, com os sofistas e Scrates, quer iniciar a poca da reflexo sobre o homem
contraposta quela sobre a natureza), em seguida retomada por Hegel e pela
historiografia mais ou menos influenciada pelo idealismo, algo de contraposto aos
naturalismo ou filosofia da natureza, mas uma concepo que une estreitamente
os termos natureza e cultura. Essa ltima considerada justamente em seu emergir
da ordem natural, no ser o resultado de um processo natural no qual se insere, com a
sua tomada de conscincia, com as suas problemticas, com a sua possibilidade de
errar, com as suas incertezas e com as suas verdades parciais, a tentativa do homem
de construir a sua natureza humana e de melhor-la. (CASERTANO, 2010, p. 22).
Assim, de suma importncia compreender que a natureza que determina aquilo que
o ser homem no algo constitudo biofisicamente, e sim o conjunto de relaes socio-
culturais ao qual este foi submetido no curso de sua existncia.
A cultura, e no um determinismo biolgico, passa a ser o elemento primordial
constituinte do mundo que verdadeiramente ns conhecemos e que nos implica. O mundo que
nos influencia no construdo por tomos ou molculas, mas por tradies, costumes e
ideologias historicamente desenvolvidas.
Somos um ser naturalmente cultural, assim sendo, o caminho de desumanizao de um
indivduo ou sociedade a artificializao da cultura atravs de mecanismos de controle e
imposio desta.
Tendo por base esta concepo, esta estrutura procedimental da sofstica a qual
valoriza o processo de enriquecimento cultural como mecanismo de potencializao da
humanidade, concentremo-nos agora na anlise das principais temticas espirituais nas quais
se envolveram e pesquisaram os sofistas.
Se possvel propor um conjunto de temas que seja, minimamente, objeto de interesse
das pesquisas dos sofistas de um modo geral, podemos citar como partcipes deste conjunto: a
defesa do primado da linguagem na racionalidade, o conflito nmos e physis, uma forte crtica
32
ao modelo religioso vigente e a possibilidade do ensino da virtude poltica. (ROMEYER-
DHERBEY, 1986, p. 10; GUTHRIE, 1995, p. 46-50).
Tratemos pormenorizadamente de cada uma destas temticas, tomando como base os
fragmentos dos prprios sofistas; sempre tendo em mente que as generalizaes que aqui
sero feitas sobre as caractersticas de uma sofstica devem ser lidas a partir das ressalvas
anteriormente feitas.
Para os sofistas, a linguagem tinha um carter extremamente importante, pois nela
que se constri e efetiva a realidade, ou seja, para estes o real no pode ser compreendido em
si mesmo, mas aquilo que ns denominamos como realidade nada mais que uma conveno
linguisticamente constituda.30
Para melhor esclarecer esta perspectiva sofstica faamos uma anlise conjunta de dois
fragmentos representativos deste modo de conceber a realidade, sendo o primeiro de Grgias
e o segundo de Protgoras:
O discurso um soberano poderoso, que com um pequenssimo e invisvel, executa
aes divinas.31
O homem a medida de todas as coisas, das que so que so, das que no so que
no so.32
O contexto original no qual se encerram os dois fragmentos importantssimo para
compreenso do significado dos mesmos. O enunciado gorgiano foi extrado de uma das
obras mais famosas do sofista de Leontino, Elogio de Helena. O texto em apreo faz parte do
terceiro argumento apresentado por Grgias para inocentar a rainha espartana.
Grgias deseja demonstrar que em virtude da onipotncia do discurso, a indefesa dama
no pode ser reputada como culpada; esta na verdade uma vtima no compreendida.
J o segundo fragmento de Protgoras oriundo da obra Contra os Matemticos de
Sexto Emprico o mdico seguidor do ceticismo pirrnico. Protgoras apresentado por
Sexto como um ctico fenomnico, o qual atravs de sua tese lapidar desemboca num
relativismo que tem nos fenmenos a nica garantia de conhecimento dos fatos do mundo.
30
Observe-se os ecos da concepo sofstica da linguagem no pensamento platnico, especialmente no Crtilo
onde o autor debrua-se sobre o tema da fundamentao da linguagem de maneira exaustiva analisando
minuciosamente os principais argumentos tanto do naturalismo como do convencionalismo e finaliza de modo
aportico para parte dos eruditos, j para outros Plato concede a um convencionalismo moderado a vitria na
disputa conceitual. 31
GRGIAS, Elogio a Helena, 8. 32
SEXTO EMPRICO, Contra os Matemticos, VII, 60 apud: PINTO, M.J.V. Testemunhos e Fragmentos. p. 79.
33
Pode-se perceber a partir destes dois textos o carter de destaque que a linguagem
recebeu na sofstica. Ela um tirano poderoso, isto , o discurso no apenas, de fato, uma
ferramenta de governo, assim como aquele que faz uso de tal poder capaz de realizar obras
de um deus, ou seja, ilimitadas.
Mas como a linguagem instituda, de que modo ela vem ao mundo? Sem dvida
alguma, atravs do homem. A linguagem no autnoma, ela naturalmente humana. Deste
modo, por meio da linguagem que constitui o mundo, o homem, aquele que o mtron, o
nico ser capaz de estabelecer os limites e sentidos da realidade, cria seu mundo cultural.33
No intuito de estabelecer uma cosmoviso antieletica, especialmente anti-
parmendea, a qual ataca frontalmente uma concepo de verdade como algo cristalizado,
imposto por tradies mstico-mticas, revelado apenas a um pequeno grupo de elementos
privilegiados da sociedade, que os sofistas propem o uso do discurso como instrumento
produtivo da realidade sociocultural.
Para a sofstica, a linguagem, atravs de um movimento dialtico entre os fatos que se
desenrolam no mundo e as percepes individuais que cada indivduo tem deste, constri as
verdades que so utilizadas em um determinado contexto histrico.
A verdade deixa assim de ser um ente metafisicamente constitudo, preexistente
experincia humana, para tornar-se na sofstica um conceito (um discurso, uma palavra)
fenomenicamente construdo por um homem de uma determinada cultura.
A linguagem constri o mundo, obviamente, no que a linguagem construa rochas ou
rios, mas esta estabelece as perspectivas pelas quais o homem ler a realidade na qual vive.
Em outras palavras, a linguagem estabelece os pr-conceitos que serviro de chave de
leitura para compreendermos o mundo em que vivemos.
Diante desta artificializao da realidade que construda pela linguagem, deriva-se
uma questo no mbito da moral: para agir corretamente devo agir de conformidade com a lei
ou com a natureza? Ora, deve-se esclarecer que agir segundo a lei seria obedecer as regras que
foram constitudas em minha sociedade, e agir conforme a natureza seria seguir as normas que
existem estruturalmente em meu ser.
Licofronte, em um clebre fragmento, registrado por Aristteles, apresenta-nos a
postura dos sofistas quanto a tal questo, no qual este diz:
33
CASERTANO, 2010, p. 53.
34
A sociedade torna-se uma aliana diferente apenas do ponto de vista topogrfico dos
outros tipos de alianas estabelecidos entre os povos que vivem distantes. A lei
uma conveno e, como dizia o sofista Licofronte, uma garantia dos direitos
recprocos, mas incapaz de tornar bons ou justos os cidados.34
A existncia do homem algo natural, a existncia do cidado algo absolutamente
artificial; por isso ilusria a defesa da formao de uma plis boa e justa, a partir de homens
bons e justos.
Aquilo que definimos como bondade, justia e retido passa, necessariamente, por
uma relao de comparao entre indivduos, ou seja, somente possvel fazer a partir de um
conjunto de aspectos que se constituem socialmente, e a sociedade regida por elementos
artificiais.
Ora, sendo a legislao de uma determinada sociedade o fruto de uma conveno
(syntheke), esta incapaz de transformar aquilo que naturalmente os indivduos so. Este
parece ser o objetivo de todo sistema de leis, transformar indivduos maus e corrompidos em
pessoas moralmente boas.
Deve-se ressaltar, todavia, que mesmo diante da ineficcia tico-moral das leis, estas
so extremamente apropriadas para o estabelecimento de relaes polticas. H assim j na
Antiguidade, por meio dos sofistas, um vislumbre daquilo que a modernidade consagrar
atravs de Maquiavel: a separao entre o tico e o poltico.
Ainda sobre este dilema nmos e physis de grande valia citarmos Antifonte em seu
clebre Fragmento:
Assim, se um indivduo, ao transgredir as normas, passar despercebido aos que
estabeleceram as leis, escapar desonra e ao castigo, mas, se no passar
despercebido, no escapar. Se, pelo contrrio, algum excede o possvel e violenta
alguma das exigncias inerentes natureza, se passar despercebido a todos os
homens no menor o mal; bem como, se todos assistirem, no maior o mal.35
Por este texto, percebe-se, mais uma vez, a fragilidade da lei enquanto instrumento de
aperfeioamento da natureza humana. Aquilo que se no pode ser mudado. Deste modo, na
sofstica, a tica perde completamente seu espao para a poltica. Critica-se deste modo, todo
o esforo de uma filosofia que se empenha em mudar aquilo que o homem seria por natureza.
H assim um forte conflito entre a lei que acessria e a natureza que essencial. Por
vezes em nome da observao do legal se violenta o natural. No se deve, todavia, equiparar
as teses de Antifonte a um direito natural. Sofista que era, este reivindica a necessidade de
34
ARISTTELES, Poltica, 3, 9, 1280 b 8 35
Fragmento 44 B, col. II.
35
cada homem tornar-se construtor de sua conscincia atravs de sua cultura. Esta sua
verdadeira natureza, e no simplesmente algo biolgico.
Sendo crticos to lcidos de certas limitaes da vida social, os sofistas defendem
ainda a necessidade da superao da viso religiosa comum que ainda predominava na Grcia,
e especialmente em Atenas. Sobre a crtica ao modelo religioso vigente no sculo V a.C,
podemos citar o clssico fragmento da obra Dos deuses de Protgoras: Em relao aos
deuses, no estou em posio de saber nem que (ou como) so, nem que (ou como) no so,
ou que aparncia tem; pois h muitas coisas que impedem o conhecimento: a obscuridade do
assunto e a brevidade da vida humana.36
O enunciado protagrico um exemplo para representar a postura que o sofista vai
tomar numa sociedade que ainda era muito influenciada por uma viso religiosa. Note-se que
no um atesmo dogmtico puro e simples, isto , uma negao absoluta, no propositiva de
provas contrrias existncia da divindade.
A postura assumida pelo sofista ser a de um agnosticismo que, diante dos dois
entraves propostos no fragmento acima a obscuridade do tema e a brevidade da vida , no
poder declarar uma posio final. H assim uma suspenso de juzos.
Protgoras permanece assim fiel ao princpio do homem-medida e demonstra que
diante da impossibilidade da certeza de um determinado fato a defesa peremptria deste
ilgica, em contrapartida, uma negao absoluta da possibilidade do conhecimento tambm
redundaria em semelhante contradio.
Numa verso naturalista do ataque dos sofistas ao tesmo grego, Prdico defendia que:
Os antigos consideravam deuses o Sol, a Lua, os rios, as fontes e, em geral, tudo
aquilo que vantajoso nossa vida por causa da sua utilidade, tal como os egpcios
consideravam o Nilo um deus. E por isso Demter era considerada o po, Dionsio,
o vinho, Poseidon, a gua, Hefesto, o fogo, e assim cada uma das coisas de que nos
servimos.37
Assim como o texto de Protgoras supracitado, o de Prdico est registrado por Sexto
Emprico em seu Contra os Matemticos, o intuito do pirrnico mdico alinhar Prdico
entre os cticos em virtude de sua postura antimstica sobre as divindades.
36
Fragmento 4 apud PINTO, M.J.V. Testemunhos e Fragmentos, p. 82. 37
SEXTO EMPRICO, Contra os Matemticos, IX, 18.apud: PINTO, M.J.V. Testemunhos e Fragmentos, p.
170.
36
Na concepo de Prdico, foi uma relao de necessidade dos homens com os objetos
do mundo que lhes levou a diviniz-los. O passo seguinte foi antropomorfizar os elementos
naturais de modo a torn-los mais capazes de intervir e negociar com os homens.
Os sofistas demonstram assim que a temtica dos deuses no deve ser algo que
angustie os indivduos, pois, tanto por nossa incapacidade de conceber respostas cabveis,
quanto o provvel carter pragmtico do nascimento dos deuses, conduz-nos a tomar uma
postura de maturidade intelectual com relao a estes.
1.4.3 O Ensino da Virtude Poltica: o Sofista e o Ensino na Atenas Democrtica
Passemos ento a analisar aquela que foi a postura mais polmica adotada pelos
sofistas: a defesa da possibilidade do ensino da virtude. Como j foi apresentado
anteriormente, os sofistas defendiam que era possvel ensinar aquilo que era culturalmente
mais desejvel a um ateniense no sculo V a.C: a capacidade de convencer os outros atravs
de discursos.38
necessrio destacarmos, nesta anlise sobre os sofistas e a problemtica do ensino da
virtude, que estes foram os primeiros pensadores, na histria da filosofia ocidental, a
defenderem um processo sistmico de aprendizagem, nas palavras de Jaeger: Em todo o
caso, constituem um fenmeno do mais alto significado na histria da educao. com eles
que a paidia, no sentido de uma ideia e de uma teoria consciente da educao, entra no
mundo e recebe um fundamento racional.39
Deseja-se aqui utilizar a acepo supracitada para virtude, a qual desvia o foco de uma
leitura moralista que simplesmente possa identificar virtude e moral. Na verdade parece-nos
claro que no contexto social no qual a sofstica estava envolvida, aret tinha muito mais
relao com o aspecto poltico do que com uma concepo exclusivamente tica.40
Alguns esclarecimentos que devem ser feitos sobre a posio dos sofistas quanto ao
ensino da virtude:
1) A proposta sofstica rompe com o modelo educacional aristocrtico vigente at
aquele momento, o qual defendia que apenas alguns indivduos detinham o direito
natural educao. Estes teriam um pendor natural para a filosofia;
38
Protgoras 324 a 325 d. 39
JAEGER, 1994, p 348. 40
Protgoras 318e.
37
coincidentemente os detentores de tal caracterstica natural, em geral, tambm
eram os mais ricos e poderosos da plis.
2) Para o sofista todo e qualquer indivduo, se bem ensinado, ser capaz de possuir a
tcnica eficiente para o bom pronunciamento de discursos. Antifonte no seu
Fragmento 4 A, II, afirma-nos que: Por natureza somos todos absolutamente
iguais, tanto brbaros quanto gregos. Isso se pode ver a partir das necessidades
naturais de todos os homens. Deve-se assim perceber que na concepo da
sofstica, aqui exemplificada por Antifonte, no havia impedimentos, naturais ou
legais, para a instruo de um indivduo que assim desejasse ter educao. bvio
que, de fato, mesmo com os sofistas, este ensino no estava acessvel a todos, se
no apenas, ainda, a uma parcela da sociedade. No caso da paidia sofstica, em
grande parte os indivduos que tiveram acesso a esta foram aqueles ligados
atividade martimo-comercial, os quais tiveram uma grande ascenso econmico-
social no sculo V a.C, mas faltava-lhes ainda habilidade poltica. Note-se assim
que uma viso romanceada, que apresenta os sofistas como indivduos
extremamente preocupados com o desenvolvimento da democracia ateniense, por
ver nesta o melhor modelo de desenvolvimento poltico para a plis, falsa.
(KERFERD, 2003, p. 34).
3) Por fim, para os sofistas o ensino da virtude algo consciente. A paidia sofstica
pode ser resumida como uma aquisio cultural, um enriquecimento intelectual a
partir de um conjunto de tradies e normas aos quais um determinado indivduo
submetido no exerccio da vida social. (CASERTANO, 2010, p.19).
A possibilidade ou no do ensino da virtude uma grande questo filosfica.
Sabedores disto, os sofistas no se eximiram de posicionar-se sobre tal questo. Como j foi
discutido anteriormente, a virtude que o sofista pretende dominar e ensinar a seus discpulos
nada tem a ver com algo de carter natural se compreende-se natural como aquilo que est
ligado a uma determinada essncia fsica.
A natureza da virtude estava ligada poltica, a formao humanstica do indivduo,
algo absolutamente artificial e possvel de ser moldado por um perito no assunto. Cabe ao
sofista ensinar ao homem que deseja participar dos embates polticos a techn, a arte poltica
que lhe far hbil orador.
38
Acusa-se os sofistas de serem descompromissados com a verdade, a qual relegada a
segundo plano em detrimento de um maior pagamento. Abandonando-se os esteretipos,
importante ressaltar que, de fato, no era do interesse dos sofistas como j foi anteriormente
discutido impor uma verdade inamovvel. Para estes, tal verdade fundamentada numa esfera
ideal de conhecimento sequer existia.
No fragmento 133 registra-se as seguintes palavras de Protgoras sobre a questo da
educao: O ensino requer disposio natural e exerccio [...] preciso aprender comeando
desde jovem41
Pode-se aqui notar que a educao tem relao direta com um processo
formativo, no doutrinador o que seria se fosse defendido o ensino de indivduos que j
tivessem sido completamente envolvidos por um processo cultural.
Ainda sobre a defesa dos sofistas com relao ao ensino da virtude poltica
imprescindvel citarmos o principal fragmento sobre a obra Estaes de Prdico, no qual o
sofista de Ceos demonstra que para Hracles foram propostos dois caminhos oferecidos pela
virtude e pelo vcio. Caberia ao mtico heri a escolha de um destes
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