O PORCO-DO-MATO NA MITOLOGIA DOS
CINTA LARGA, SURUÍ PAITER E OUTROS POVOS VIZINHOS
Aila V. Bolzan
Relatório Final - Iniciação Científica (bolsa CNPq), PUCSP
Orientação de Dorothea V. Passetti. Julho de 2009
Prêmio Menção Honrosa Iniciação Científica – Antropologia, CIÊNCIAS HUMANAS
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica - PUCSP
O interesse pela questão surgiu primeiramente com o projeto de pesquisa “O
porco-do-mato e o tucum – objetos, mitos e ritos entre os índios Cinta Larga e Suruí
Paiter” de minha orientadora Dorothea Passetti, desenvolvido a partir do manuseio e
observação dos objetos Cinta Larga, pertencentes à coleção1 doada por Carmen
Junqueira ao acervo do Museu da Cultura da PUC-SP, local onde faço estágio há dois
anos, e conseqüentemente desenvolvi uma relação de proximidade com este material.
Com a leitura do projeto me interessei em pesquisar uma das propostas
apresentadas, que visa entender a relação existente entre a tradição oral e a cultura
material da etnia Cinta Larga.
Algumas flechas Cinta Larga possuem um trançado de pêlos de caititu em sua
haste, além disto, conforme observação de Passetti, a queixada e o caititu (ou
genericamente o porco-do-mato) são animais prediletos a serem caçados e comidos por
estes indígenas. A flecha é produzida exclusivamente pelos homens, que também fazem
1 A coleção é composta de 141 objetos: 2 diademas plumários; 20 flechas; 4 arcos; 1 adereço para a cabeça, de pele de onça; 1 lambrete de resina com estojo; 2 cintas de entrecasca de arvore; 7 cestos; 2 potes de cerâmica; 7 fusos; 1 rede de algodão; 1 adorno ritual de palha; 1 tipóia de algodão; 4 pares de munhequeiras tecidas; 1 munhequeira pequena; 3 pares de braçadeiras, 41 colares de tamanho vaiado e de diversos tipos; 3 pares de pulseiras, 1 amuleto de ouvido de paca; 14 rolos de fungo usados como amarrilhos; 1 pente de madeira; 2 casas de marimbondo; 1 favo de mel; 1 cogumelo defumador, 3 machados de pedra (2 com cabo de madeira); 1 borduna; 1 par de obejetos para produzir fogo; 15 flautas transversais, ainda, dois cadernos contendo desenhos e gratujas em hidrocor, 400 fotos preto & branco de autoria de Jesco Von Putkamer e 120 fotos coloridas de Carmem Junqueira .
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o trançado para adorná-la. Além de indumentária, ela é arma de caça e guerra e também
um objeto cerimonial trocado em casamentos e festas.
O objetivo desta pesquisa é investigar, nas publicações dos poucos autores que
trabalharam com a etnia, a presença do animal em suas diversas aparições,
principalmente na mitologia, visando este trançado. A obra mais importante de relatos
mitológicos Cinta Larga é Mantere Ma Kwé Tinhin – histórias de maloca antigamente
(1988) narrados por Pichuvy Cinta Larga e organizados por Ana Leonel Queiroz, Ivete
Lara Camargos Walty e Leda Lima Leonel. O livro se divide em duas partes: “Os
Mitos” e “Outras histórias”, relativas ao período após o contanto com o branco. A parte
dos mitos é composta por vinte e seis narrativas em torno de oitenta páginas, com
participação de todos os personagens da floresta, incluindo vivos e não vivos.
Além dos Cinta Larga, os índios Suruí Paiter, vizinhos a eles, pertencem ao
mesmo tronco lingüístico, que é Tupi-Mondé. No passado eram grupos inimigos que se
enfrentavam em guerras sangrentas, mas atualmente mantém relações amigáveis. Há
importantes semelhanças entre as duas etnias, dentre elas a língua e a flecha, que
também possui o trançado com pêlos de caititu, porém com diferenças significativas que
serão apresentadas adiante.
Os Suruí Paiter também foram alvo deste trabalho, através da leitura minuciosa
das obras de Betty Mindlin, antropóloga que durante anos realizou pesquisas entre os
povos indígenas da região e publicou diversos livros de mitologia com narrativas dos
Suruí Paiter, Macurap, Tupari, Ajuru, Jabuti, Arikapu e Aruá. Dentre eles, talvez os
mais interessantes para esta reflexão, são aqueles dos Suruí, por apresentarem
semelhanças aos Cinta Larga. Com a leitura deste material, pude estabelecer algumas
comparações entre os dois grupos, relevantes para a pesquisa.
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Os estudos antropológicos sobre os índios Cinta Larga, realizados por
pesquisadores da PUC-SP, se desenvolveram inicialmente com Carmen Junqueira, a
partir de 1979 (JUNQUEIRA, 2002:6). Estes estudos resultaram em relatórios e artigos
publicados, e também em Sexo e Desigualdade entre os Kamaiurá e Cinta Larga
(2002). João Dal Poz, antropólogo de outra instituição, também dedicou seus estudos a
este grupo, sua dissertação de mestrado e na tese de doutorado, apresenta as relações
observadas ao longo dos anos de trabalho com eles.
A bibliografia Cinta Larga é relativamente escassa, uma vez que a etnia foi
contatada recentemente, a partir dos anos 70. Além da leitura das publicações de ambos
os autores citados acima, vale ressaltar a importância do acervo fotográfico de Jesco
Von Putkamer, que acompanhou os primeiros contatos com os povos na região do Mato
Grosso e Rondônia. O Museu da Cultura possui uma coleção de reproduções deste
registro: 400 fotos preto & branco além de 120 fotos coloridas de Carmen Junqueira.
A respeito dos índios Suruí Paiter, Betty Mindlin realizou seus estudos
concomitantemente aos de Carmen Junqueira sobre os Cinta Larga, como parte do
Programa Polonoroeste2, e deu atenção especial à mitologia Suruí.
Carmen Junqueira, que me guiou pela aventura indígena, fazia pesquisa
etnológica sobre os Cinta Larga de Serra Morena. Fizemos quase todas as
viagens ao mesmo tempo – eu indo para os Suruí e ela para Serra Morena
– e o companheirismo dessas andanças teve tanto encanto quanto estar
entre os índios. Na volta trocávamos o que íamos descortinando sobre o
mundo tribal e íamos juntas, avaliando a situação dramática dos índios
(MINDLIN, 1985:14).
2 O Programa Polonoroeste se iniciou a partir de 1982 com recursos do Governo brasileiro e do Banco Mundial. O objetivo central era pavimentar a estrada BR-364 (Cuiabá-PortoVelho) na região compreendida entre os estados de Mato Grosso e Rondônia. Neste período desenvolveram-se projetos de análise sobre as mudanças enfrentadas pelas populações locais em conseqüência da política de integração regional, além do mais, foram feitos estudos de avaliação de impacto ambiental, programas de assistência sanitária e de proteção aos índios da região.
3
Estes estudos resultaram na tese de doutorado de Mindlin intitulada Nós Paiter
os Suruí de Rondônia (1985), orientada por Carmen Junqueira na PUC-SP.
Posteriormente este material foi transformado em livro compilando um estudo
etnográfico extenso sobre estes indígenas. Além deste livro foi utilizada a publicação
mitológica Vozes da origem: Betty Mindlin e narradores Suruí Paiter (1996).
É importante, de certa maneira, dar continuidade aos estudos anteriormente
realizados sobre as etnias aqui problematizadas. Com abordagem distinta, este trabalho
reafirma a importância destas culturas, uma vez que a investigação da mitologia
registrada e a conservação dos objetos tradicionais são de fundamental importância para
o registro e resgate das tradições indígenas, significativamente dissolvidas no decorrer
das suas histórias recentes.
Mitos e lendas parecem permanecer vivos por um período mais longo que os
objetos materiais e os adornos corporais, cada vez mais em desuso. Para Mindlin
(2001) enquanto houver alguém que domine a língua tradicional, os mitos continuarão
sendo narrados, e cabe aos antropólogos e colaboradores encorajar possíveis
publicações.
Em matéria publicada recentemente pelo Jornal Folha de S. Paulo, no caderno
Mais, foi divulgado que, pela primeira vez no Brasil, o IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística) levantará oficialmente o número de línguas faladas no território.
Estima-se que sejam faladas 220 línguas, sendo 190 indígenas. Manuela Carneiro da
Cunha, em matéria especial para a Folha, comenta o levantamento que será realizado
ano que vem, e afirma que há um grande divisor de águas na maneira de se perceberem
os índios, sendo que até recentemente entendia-se que os índios eram como resquícios
do passado e destinados a desaparecer física e culturalmente. Nesta matéria, a
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antropóloga traça um panorama geral da história da política indigenista brasileira, desde
a colonização até os dias atuais, e a maneira como os índios foram inúmeras vezes,
incorporadas à margem da sociedade brasileira.
No mesmo caderno publicado no dia 12 de junho, Luiza Bandeira, repórter
enviada à fazenda de Mâncio Lima (AC), divisa com o Peru, relata um pouco a situação
dos Poianaua, índios que atualmente se encontram em esforço conjunto para recuperar
um idioma que foi proibido há quase cem anos. Os esforços dos Poianaua reafirmam a
importância da língua indígena para a sobrevivência do grupo. Mesmo assim, os
resultados ainda são limitados, pois apenas três pessoas idosas conhecem o idioma,
sendo que apenas uma mulher o fala fluentemente. Em 2002, após a demarcação da
terra indígena Poianaua, a FUNAI passou a reconhecer a escola local, adotando um
modelo de ensino que valoriza a cultura indígena. Segundo Jósimo Constante, indígena
Poiaunaua, a língua é complexa e segue uma lógica complicada. “Esta complicação é
reflexo de um sistema lingüístico que traduz uma forma diferente de enxergar o mundo.
São essas riquezas, escondidas na diversidade das línguas, que desaparecem quando
morrem os idiomas”. (BANDEIRA, 2009: 10)
* * *
Os índios Cinta Larga e Suruí-Paiter, são habitantes do Parque Aripuanã criado
em 1969, situado entre os estados do Mato Grosso e Rondônia. Passaram a ser
estudados somente a partir dos anos 1970, vivendo as conseqüências culturais e
políticas do contato e pacificação pelos subseqüentes órgãos do Estado para este fim
(SPI e FUNAI). Na região, também vivem outras etnias pertencentes ao tronco Tupi e a
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família Mondé, ou seja, falam a língua Tupi-Mondé. São eles: os Cinta Larga, Suruí
Paiter, Aruá, Gavião e Zoró.
Os Cinta Larga e os Suruí-Paiter, falam a mesma língua e vivem próximos.
Mindlin (1985) observou que a população Suruí apresenta importantes diferenças
físicas, além de outras, em relação aos grupos habitantes do Parque.
Com mitologia e traços culturais parecidos, há diferenças físicas grandes
entre os grupos – embora talvez não entre os Cinta Larga e os Gavião.
Os Suruí são menores, mais magros e escuros que os Cinta Larga; os
Zoró são claros e de traços muito finos. Todos furam o lábio inferior
para inserir um tembetá de resina e muitos ainda usam essa prática. (...)
Os Suruí e os Zoró tem tatuagens no rosto (MINDLIN, 1985:25)
Ambos os grupos, exaltam a caça como atividade principal e como fonte de
alimento predileto. Segundo Junqueira, para os Cinta Larga “A caça é a atividade que
mais apreciam, principalmente se puder ser feita com espingarda” (JUNQUEIRA:
1984:221). As duas etnias também desenvolvem atividade agrícola com certa variedade
de produtos. A dieta Cinta Larga inclui, principalmente, a mandioca, o cará e o milho
“As tarefas agrícolas não atraem muito os Cinta Larga, embora os produtos da roça
sejam importantes na sua dieta” (idem, ibidem: 219). Os Suruí além dos três vegetais
elencados acima, também cultivam o inhame e a batata, dedicam-se mais à roça do que
a etnia vizinha. Geralmente as mulheres se responsabilizam pela roça, mesmo quando
acompanhadas dos homens “A derrubada é realizada exclusivamente por homens e
contrasta com o plantio, no qual a divisão do trabalho não é marcada com clareza (...)
havendo homem presente, a mulher não pega na enxada, mas, eventualmente, planta”
(idem, ibidem: 220).
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Colher é trabalho de mulher, principalmente as batatas e os inhames. Os
homens apenas apontam os melhores lugares e esperam conversando (...)
vez ou outra os homens ajudam a colher e um homem sozinho, com a
mulher em reclusão (com nenê novo, por exemplo) vai buscar a própria
comida, se não houver alguém que o faça (MINDLIN, 1985:39).
Os homens saem à caça e confeccionam objetos utilizados nas atividades
consideradas masculinas; como arcos e flechas, além de construírem casas e
acampamentos. Tanto homens quanto mulheres saem juntos à mata para coletar frutos,
mel, plantas e possíveis fontes de alimento, além de buscar material para o artesanato.
Quando há comida na aldeia, é aquela trazida da roça, da caça, da pesca e da produção
da roça, revelando que se trata de culturas que não armazenam provisões.
Uma das principais diferenças entre as duas etnias, Cinta Larga e Suruí Paiter,
consiste na forma que dividem suas tarefas. Entres os Suruí há uma divisão que separa a
aldeia em duas metades.
O que orienta a divisão entre o mato e a aldeia é a existência das duas
linhagens Gamep3. Para pertencer a um dos lados, um homem deve ter um
cunhado no outro. As mulheres casadas com homens do lado “metare”
são, em tese, irmãs ou pertencem à linhagem Gamep do lado aldeia –
“íwai” (...) Os homens e suas mulheres “metare” fabricam presentes para
dar ao cunhado e a mulher da metade da comida “íwai”, enquanto estes
fornecem o alimento (MINDLIN, 1985:48). 3 Os Suruí é se subdividem em quatro grupos patrilineares: os Gamep, Gamir, Makor e Kaban (entrelaçado aos Gamep, os Kaban são descendentes de uma mulher roubada aos Cinta Larga).
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Uma metade é denominada (“íwai”) da roça, a outra “metare” (do mato). Todo
ano, os da roça promovem uma festa oferecendo a makaloba, bebida fermentada
produzida a partir do milho, cará ou mandioca, cultivados na roça. A bebida é ingerida
em abundância e vomitada fora da casa. Em troca da festa oferecida pelos “íwai’, os do
mato retribuem com colares, panelas, enfeites, cocares e flechas, confeccionados no
mato. No ano seguinte, essas metades se invertem.
Ligado à troca de bens (alimentos por objetos) a divisão mato/aldeia existe
também como resultado dos casamentos e da troca de mulheres. Sem um
cunhado no lado oposto, um homem tem que se retirar do “metare” e parar
de fabricar artesanato. (...) Em largos traços, é essa a divisão
“metare/ìwai”. Aí se manifestam a troca das mulheres, as trocas das festas
Mapimaí (de comida por objetos e trabalho) e a cooperação no trabalho,
orientada para ocasiões especiais, as festas com derrubadas no mato
(idem, ibidem:48-50).
Para Mindlin, as metades são importantes na manutenção das atividades
econômicas, para o casamento, festas, rituais e moradia. A autora afirma que esta é uma
oposição aparentemente rara: mulheres, trabalho e bens são trocados entre os dois lados,
entre duas linhagens “A oposição mato/roça parece rara. Investigando superficialmente
a bibliografia sobre as tribos brasileiras, ela aparece, por exemplo, nos Xicrin, em que
uma metade definida por certos círculos de idade vai para o mato caçar e tem trocas
intensas com o outro, encarregado da roça” (idem, ibidem: 47).
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Os índios Cinta Larga não utilizam este tipo de divisão em duas metades
mato/aldeia a partir das linhagens patrilineares, mas promovem festas semelhantes,
muitas vezes para celebrar a construção de uma nova casa ou para anunciar uma guerra,
onde o anfitrião oferece a bebida e a comida em troca dos objetos trazidos pelos
convidados, em sua maioria, provenientes de outras aldeias Cinta Larga. Segundo relato
de Dal Poz (1991), a chicha é muito consumida durante os dias de festa, sendo
considerada também um dos elementos centrais do evento4. A bebida é feita por
mulheres que passaram meses cultivando o produto da roça, seja mandioca, cará ou
milho. O vegetal é escolhido a critério do convidado; ele é quem decide do que será
feita a bebida. Para os anfitriões, os convidados assumem o papel do “outro”, observa o
autor ao comparar este comportamento ao dos Suruí, que deixam clara essa relação ao
descreverem os convidados como “não parente”, associados sempre ao Metare
(acampamento próximo à aldeia onde fazem artesanato) fora da maloca (1991).
Para a festa, é preciso capturar um filhote de queixada, animal
por excelência destinando ao sacrifício ritual. Caititu, macaco,
arara, quati, mutum, jacamim e outros, servem igualmente de
vítima. Aprisionado durante uma caçada, ou recebido como
presente, o animal também vai receber um nome, derivado de
algum sinal ou comportamento característico. Em regra, o animal
vai ser criado pela esposa do zápiway ou por sua filha
(DAL POZ, 1991: 199 - 200).
4 Os Cinta Larga denominam a festa de maneira genérica pelo termo íwa (tomar chicha).
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A menina com o seu porco-do-mato domesticado. Grupo de Serra Morena (RO). Foto: Jesco Von Puttkamer, 1976
Nesta etnia, homens são caçadores e mulheres são agricultoras e cozinheiras,
mas essa divisão não é tão exata na prática. Conforme observação de Junqueira em Sexo
e Desigualdade entre os Kamaiurá e Cinta Larga (2002) as mulheres sempre
desempenham papel secundário, os homens estão sempre à frente das atividades,
literalmente quando saem à mata ou desempenham tarefas cotidianas.
Tal como grande parte das outras etnias indígenas, os Cinta Larga e Suruí são
caçadores. Dal Poz (1993) e Junqueira (1985) afirmam que a caça é a atividade mais
interessante aos Cinta Larga “a ela se dedicam assiduamente e é um dos assuntos
preferidos na conversa entre os homens (DAL POZ, 1991:125)”, através da fala
cerimonial berewá, exclusiva do gênero masculino, onde narram suas aventuras e
andanças heróicas de caça e guerra.
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Diferentemente da caça aos outros animais, que é solitária, a caça ao queixada
exige cooperação de vários caçadores
(...) abro um parênteses para a caça ao queixada, que exige cooperação de
vários caçadores, situando-se como exceção dentre as técnicas habituais.
Ao perceber um bando de porcos nas proximidades, todos os homens da
aldeia, se mobilizam para, ou combinam para sair na manhã seguinte em
sua perseguição uma exceção às técnicas habituais, pois a caça geralmente
é atividade solitária. (...) Os mais abatidos, certamente numerosos, são
variedades de macacos e aves, como jacus, jacutinga e mutum. Queixada,
caititu e anta, porém, são os animais mais apreciados. E como reparou
Junqueira (1981:37), é a gordura o principal indicativo para o paladar
(DAL POZ, 1991:125).
A imagem dos homens Cinta Larga, aparece na bibliografia e nas fotografias,
sempre vinculada ao ideal masculino de homem guerreiro e caçador, exibindo força
física e a boa destreza no manejo das armas.
Os homens possuem uma indumentária variada: a cinta de
entrecasca de árvore, chapéus de pele de onça são usados em
situações formais, como pode ser visto nas fotografias que
retratam a chegada, pela primeira vez, de uma comitiva Cinta
Larga ao posto da FUNAI. Em outras situações, também
cerimoniais, os homens usam diademas plumários no lugar da
pele de onça, além dos arcos e flechas sempre presentes nesta
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indumentária, como se fosse necessário estar sempre armado
(PASSETTI, 2005: 3).
Parque indígena Serra Morena (RO), guerreiro C. Larga. Foto: Jesco Von Puttkamer, 1976.
Dal Poz descreve os objetos de guerra Cinta Larga, especialmente a flecha e o arco:
Os arcos (matpé), de seção oval, medem cerca de 2,0 metros, e são
fabricados do caule da pupunheira (jobát). As flechas (jáp), em
média com 1,8 metros, consistem de uma haste de taquara onde se
encaixa uma ponta com formato de faca, obtida de um tipo de
taboca, e na extremidade inferior, aletas de penas de gavião ou
mutum. (...) Há flechas de vários tipos, para aves, macacos,
animais de grande porte e pesca, mas sempre elaborados
cuidadosamente. Esses mesmos tipos são usados na guerra.
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Algumas flechas têm uma parte da haste feita de madeira (ipép),
dentada, e adornada com pêlos de caititu (jápsík), cujos motivos
são losangos (DAL POZ, 1991:58).
Fabricação de flecha, homem Cinta Larga. Foto: Carmen Junqueira, Serra Morena (RO) 1979.
Observando as fotos de Jesco Von Putkamer e manuseando a coleção de objetos Cinta
Larga, presentes no Museu da Cultura, Passetti descreve as flechas da seguinte
maneira:
Elas possuem haste de taquara, com emplumação radial de
uma pena de gavião atada, e suas pontas são fabricadas com
um tipo de taboca, destacáveis, com formas diversas. Muitas
delas apresentam a metade superior da haste feita de paxiúba,
segundo verificação pessoal de Junqueira, madeira também
escura como as dos arcos. As flechas cerimoniais, ofertadas
pelo genro ao sogro como presentes em casamento, podem ter
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esta parte serrilhada. (...) Elas ainda recebem adorno de um
delicado mosaico de cerca de 10 cm na haste, antes da ponta –
um mosaico trançado na própria flecha, com pelos longos do
animal, formando motivos geométricos variados em preto e
branco, resultando num efeito visual brilhante que pode
enganar à primeira vista, sugerindo matéria-prima sintética.
(...) O arremate das flechas é feito com fios finos de algodão
em tons pastel quentes enrolados na haste e, em algumas
flechas, nota-se um quase imperceptível acabamento em
plumas aparadas rente, no lado inferior do mosaico
(PASSETI, 2007: 4-5)
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A partir da descrição de Mindlin sobre os objetos Suruí e, olhando atentamente as
fotografias, podemos visualizar que a flecha desta etnia também possui um trançado de
pêlos de caititu, porém com outros motivos gráficos se comparado à flecha Cinta Larga.
Além da presença do trançado, uma parte da flecha Suruí é pintada com tinta preta e
adornada com linha tingida de urucum, conforme descrição de Mindlin:
Há pouca taquara, encontrada apenas muito longe. São enfeitadas com
pêlos de porco-do-mato, com algodão pintado de urucum ou com
desenho de jenipapo, sendo usada uma resina escura. O autor é sempre
identificado por qualquer pessoa. Cada flecha tem uma forma, um
desenho, uma finalidade – para matar animais diferentes, gente, peixe.
Os desenhos serão associados à linhagem, representam figuras, tem
marca de quem fabricou? Não foi possível descobrir. Antigamente e
certo que usavam veneno – qual seria? (MINDLIN, 1985:69).
O que mais impressiona a autora é como os índios se reconhecem nos seus
objetos, a nossos olhos quase idênticos. Entre os Suruí Paiter, uma resina preta é
utilizada para fazer um desenho na flecha, segundo Mindlin, designando a qual
linhagem a pessoa pertence:
Todos sabem quem fez um cesto, uma flecha, mesmo que se trate de um
objeto de outra aldeia quando visto na sede do Parque. Com a maior
simplicidade, uma lição do que significa o trabalho concreto, cada
pessoa ligada à própria arte. (...) Cada flecha tem uma forma, um
desenho, uma finalidade – para matar animais diferentes, gente, peixe.
Os desenhos serão associados à linhagem, representam figuras, tem
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marca de quem fabricou? Não foi possível descobrir. Antigamente e
certo que usavam veneno – qual seria? (MINDLIN, 1985:69).
Mitologia
Para iniciar a reflexão sobre a importância do porco-do-mato aos índios Cinta
Larga e Suruí Paiter, visando entender a existência do trançado de pêlos de caititu
presente na flecha, há um mito central que se repete em versões semelhantes entre os
Cinta Larga, explicitando a proximidade simbólica da etnia ao animal. Ele foi também
encontrado entre os Aruá, que narra uma história segundo a qual os homens saíram para
fazer a primeira guerra, mas só encontraram porcos e mataram todos.
Apoiada em versões registradas por Dal Poz (1991:354) e narrado por Pichuvy
Cinta Larga (1988:45-47) resumo o mito da seguinte maneira:
Mito Cinta Larga
Histórias de Pawo
resumo: Quando os Cinta Larga foram fazer primeira guerra,
encontraram apenas porcos do mato e mataram todos eles. Um dos
índios não conseguiu matar nenhum, segundo o narrador por que
estava triste devido ao ciúme que sentia de sua mulher. Diante disso,
ninguém deu o pedaço de carne a ele. Chateado com a situação, saiu
para andar sozinho no mato à procura de uma cotia para caçar e
comer. Durante a caçada encontrou Pawo, o dono dos porcos, que
perguntou ao índio se ele havia comido carne de porco e o motivo pelo
qual estava triste. Ele respondeu que ninguém lhe deu caça devido ao
ciúme que sentia da mulher. Pawo pediu que abrisse a boca para
conferir se havia restos de porco, e confirmou a versão do índio, ao ver
cabelo de cotia entre seus dentes. Então, o dono dos porcos, decidiu
ajudar o índio arrumar uma caça, por ele não ter comido a carne e ter
dito a verdade. Ao retornar no acampamento, o índio levou um Nambu
(pássaro) dado por Pawo. Contou ao seu irmão que havia encontrado o
dono do mato que lhe ajudou por não ter matado os porcos, mas seu
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irmão não acreditou alegando que apenas o pajé consegue ver Pawo.
Chateado novamente, Pawo combinou com o índio que transformaria
todo seu pessoal em porcos para substituir aqueles que eram dele.
Pediu também ao índio, para fazer uma marca branca no cabelo do
rosto da mulher que lhe causou ciúme, assim o índio poderia
reconhecê-la e matá-la depois que todos virassem porcos. Pawo,
então, pegou coco de babaçu para colocar o dente do pessoal
enquanto dormiam. O único índio que permaneceu matou sua mulher
ao ver a marca branca no rosto do animal, e todo mês de agosto e
setembro os porcos chegam à roça para comer macaxeira.
Assim que índio queria fazer primeira guerra. Depois que ele foi
virar porco!... aí não deu para fazer guerra. É assim que é
história de Cinta Larga de antigamente, é assim... (CINTA
LARGA, 1991: 45).
Este é um mito inserido nas histórias de Pawo, o dono do mato, e também
utilizado na dissertação de mestrado e na tesde de doutorado de João Dal Poz, em uma
versão similar denominada Bebéti, o dono do porco, narrada por Zé Lopes Kabân,
morador de Serra Morena.
A relação entre o porco-do-mato e os homens Cinta Larga é estreita e de grande
relevância. No mito, os homens saíram para fazer a primeira guerra, mas só encontraram
porcos e mataram todos. Dal Poz (1991) em sua dissertação de mestrado apresenta
possíveis hipóteses sobre o significado simbólico do porco para uma grande festa
promovida anualmente (descrita na introdução acima) em que ao final um animal é
sacrificado, tradicionalmente uma queixada.
Uma das denominações para a festa, diante de outras existentes, é bébé aka
(matar porco) por metonímia, a parte pelo todo, pois a festa é um conjunto de eventos,
que seguem um determinado programa ritual: beber chicha, dançar e matar a vítima
animal, apesar de nem todas as festas, ao final, fazerem o sacrifício da vítima. Segundo
Pichuvy, a festa também está muito associada à guerra “quando ele mandar fazer guerra,
ele mandar fazer festa grande” (CINTA LARGA, 1988:116). Esta frase faz referência ao
zápiway, o dono da casa, que também ao fazer uma maloca nova, produz uma festa.
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O autor compreende o ritual como uma metáfora canibal que há entre o dono da
festa e o alimento que ele oferece. “Os Cinta Larga qualificam da mesma maneira a
carne humana e a carne de caça: kakit [gostoso], kâmdak [gordo] e “macia”, é o que
dizem” (DAL POZ, 1991: 276). A caça e o inimigo são basicamente sinônimos, à
medida que nos cantos berewá, invocados pelos guerreiros Cinta Larga, cantados em
festas e guerras, a caça é um tema recorrente, evoca a guerra unificando o aliado,
chamam também em outras situações o inimigo pelo nome da caça.
Esses homens guerreiros, em determinadas ocasiões como a festa que antecede
a guerra, não se referem ao inimigo de maneira direta; utilizam-se de formas pejorativas
para designá-lo, como por exemplo, porcos, macacos e outros animais. Essa maneira de
tratar o adversário, para Dal Poz, explicita uma relação de equivalência entre animais a
serem caçados e inimigos a serem combatidos. Caça e inimigo podem ser vistos como
sinônimos para os homens Cinta Larga, tanto na guerra quanto na festa.
(...) o canto antecipa a tática dos guerreiros, mas sob a condição
de não anunciar o nome dos inimigos ou que vai “atacar gente”.
Os cantores dizem então que vai “matar porco”, “matar macaco”,
que saem para “uma caçada” (...) (DAL POZ, 1991: 226).
Em Moqueca de Maridos (1997), Mindlin publicou um mito Aruá em uma
versão similar ao mito contado por Pichuvy sobre o dono dos porcos. Os Aruá também
vivem em Rondônia e pertencem ao mesmo tronco lingüístico dos Cinta Larga e do
Suruí Paiter, Tupi-Mondé
Mito Aruá
O dono dos porcos
resumo: Os homens matavam qualquer ser vivo que encontrassem. Durante
uma viagem de cinco dias, alguns homens construíram uma pascana (um
tipo de acampamento) para repousarem durante o longo trajeto da viagem.
Próximo à pascana no mato, os homens encontraram um bando de
queixadas, uma vara de porcos. O cacique disse: -
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Vamos matar todos para vingarmos as antas, do que elas fizeram com
nossas mulheres.
Eles cercaram e meteram flecha em todos os porcos, só um pequeninho
que conseguiu escapar. Dentre esses caçadores, apenas um não pôde
matar e nem comer o porco, pois sua mulher (que também namorou a anta)
estava com nenê pequeno, sujeita a dieta. O pai da moça disse a seu
genro:
-Vai matar nambu-galinha para comer, este você pode.
Então o moço saiu à procura do nambu. Já escurecendo, apareceu o
dono dos porcos que perguntou ao rapaz o que ele estava procurando, e
ele respondeu que era nambu-galinha. O dono dos porcos perguntou
novamente:
-Você matou meus porcos, meu neto?
O caçador explicou que não podia porque estava com nenê novo e
que não havia mexido com seus porcos.
O único porquinho que tinha escapado estava no colo do dono dos
porcos, além de ter em seus braços todos os tipos de pássaros nambu,
oferecendo todos ao rapaz. Ele aceitou. O dono dos animais deu as
instruções ao rapaz de como preparar a caça:
-Você pela, moqueia, pede para sua mulher assar, depois de
assado chama os teus parentes para comer. Aconselha os teus para
dormirem com você na sua pascana, pois irei matar aqueles que mataram
meus porcos para ficarem no lugar deles.
O moço obedeceu ao dono dos porcos, fez tudo direitinho, só seus
parentes que não quiseram comer nambu, alegando que estavam de
barriga cheia. O rapaz, então, seguiu sem os parentes para fazer sua
pascana fora do grupo. Durante a noite, o dono dos porcos adormeceu os
homens como num encanto, de barriga para baixo. Os porcos caçados
ainda estavam no moquém. Pingou um sernambi nas costas dos homens,
começando pelo pai do rapaz, que logo gritou e grunhiu como um porco
pulando da rede. O “feiticeiro” pingou o sernambi em todos os homens,
todos foram se transformando na caça, era um estrondo. Os homens,
virados em porcos, comeram todos os porcos que estavam nos moquéns,
a própria caça que tinham apanhado na véspera. De gente restou apenas o
casal e o nenê afastados em outra pascana, que subiram num coqueiro
para se protegerem.
A partir deste dia o dono dos porcos passou a chamar o rapaz de
neto, com carinho, pediu a ele que fizesse muito flecha e ordenou que
19
quando cruzasse os porcos matasse poucos, apenas dois ou três.
Ensinou-lhe como devia caçar, usando um cipó forte cobrindo e
protegendo os caçadores dos ataques dos porcos. Só haviam restado os
três, o rapaz voltou para aldeia e teve mais uma menina, que passou a ser a
mulher do irmão. Desta relação incestuosa nasceram cinco filhos e filhas, e
a população aos poucos foi aumento, o pai sempre ensinando como fazer
flecha para caçarem. Voltaram para o lugar onde os homens tinham virado
porcos. Cobertos com o cipó especial, o caçador e sua família estavam
protegidos do ataque dos animais. Disseram ao dono dos porcos que
estavam prontos, e aos poucos ele foi soltando os porcos, que comiam um
dos seus, do seu próprio bando. Quando a pessoa pedia para o dono “esse
é meu!”, os porcos paravam de comer uns aos outros; cada pessoa podia
então flechar o seu porco. Fizeram quatro expedições semelhantes a essa,
só que na quarta vez um teimoso os acompanhou, não soube usar o cipó
corretamente, os porcos vieram o atacaram e comeram todos. O dono dos
porcos disse que havia ensinado corretamente como caçar os porcos, mas
daquele dia em diante os homens iriam sofrer para matar a caça, por causa
do teimoso.
Em Vozes de Origem (1996) a autora reproduz um mito narrado por Dikboba
Suruí sobre as árvores, que antigamente eram gente, e hoje são plantas usadas para
extrair tintas e resinas utilizadas na pintura da flecha Suruí. Seguem abaixo os dois
mitos resumidos:
Mito Suruí
O caçador Panema ou Galowa, a luz com estrondo
resumo: O mito narra a história de um homem com azar na caça, ele
não conseguia matar nenhum bicho. Certo dia uma árvore que
antigamente era gente, Moradei, contou a Panemá que conseguia caçar
muito bem porque passou a perna em suas flechas e assim elas
passaram a ter a mesma sorte que ele. O homem viu outro homem
borkaa, que antigamente era gente e hoje é planta que dá resina preta
que se passa na flecha, caçando e matando muitos macacos. Hoje a
resina borkaa preta também dá muita sorte na caça. Gereió e Morad-
20
hoba também eram gentes, hoje são plantas usadas para esfregar no
corpo, utilizadas para se ter sorte na caça. As plantas, que eram gente,
ajudaram o homem azarado a ter sorte. A partir daí, com a flechada ele
pegou um tucano e não errou mais nenhum tiro. Em seguida ele pegou
um bando de macacos. Então fez uma troca com as plantas que
forneceram os elementos da sorte adquirida, levaria sua esposa para
eles a namorarem. Ao retornar para o acampamento, ninguém
acreditou no caçador que trazia consigo vários macacos caçados.
Adormeceu preocupado, com medo que sua mulher contasse
a alguém o que tinha acontecido. E não viu que sua perna estava
encostando no moquém, em pouco tempo, tinha queimado toda.
Os outros acordaram e assustaram-se:
-Ele queimou a perna ao assar os macacos! Por que será que
se deixou queimar assim, sem perceber?- e ficaram com medo dele.
Até os irmãos diziam que era melhor fugirem, ou o caçador podia
resolver comer todo mundo.
Decidiram esconder-se em cima do tapiri do acampamento
onde estavam, no telhado de palha, deixando o caçador sozinho. Este
logo acrodou:
-Que aconteceu com minha perna, como fui me queimar
assim? E estes sem- vegonhas dos meus parentes, nem me
avisaram, nem me acordaram, e me abandonaram todo queimado...
Agora vou ter que virar alguma outra coisa, não posso mais ser gente.
Estava tão enfurecido, que comeu a carne toda nos fogos de
cada jirau, para não deixar mais nada para os outros.
- E agora, agora é hora de eu virar alguma coisa que assuste
os homens, que lhes faça mal! No que eu posso virar? Posso virar o
pawagab, o passarinho que pia com sinal de guerra... (MINDLIN,
2007:33)
O caçador não sabia em que poderia se transformar para
assustar os homens. Pensou em se transformar em taboca, com a qual
se produz a ponta da flecha, que quando o vento faz barulho na haste
as pessoas acham que uma guerra está para estourar,
conseqüentemente deverão brigar e sentir medo. Pensando melhor,
21
decidiu então, se transformar em galowa, a luz que cai com estrondo e
aterroriza os homens. O rapaz foi embora para o céu e se transformou
em trovão.
Será possível estabelecer uma relação entre a resina preta borkaa, que se passa
nas flechas para dar sorte na caça e o trançado de pêlos de caititu? O trançado cumpre
função semelhante à resina preta? Na mitologia são fatores externos que decidem se os
homens caçam ou não.
Se compararmos o mito Cinta Larga e Aruá sobre o dono dos porcos
reproduzidos anteriormente, ao mito Suruí sobre o caçador Panema, será possível
estabelecer relações interessantes quanto à semelhança das duas etnias vizinhas.
Lévi-Strauss observa em Antropologia Estrutural dois, ao comparar as duas
tribos vizinhas presentes no mito Gesta de Asdiwal, que ao mesmo tempo em que
vizinhos se assemelham, também se diferenciam. Esta diferenciação torna-se útil ao
equilíbrio das necessidades humanas.
Afinal de contas, se os costumes dos povos vizinhos manifestam relações
de simetria, não se deve buscar a causa apenas em algumas leis misteriosas
da natureza do espírito. Esta perfeição geométrica também resume, no
modo presente, os esforços, mais ou menos conscientes, porem inúmeros,
acumulados pela historia, e que visam todos o mesmo objetivo: atingir um
limiar, sem duvida o mais útil para as sociedades humanas, no qual se
instaure um justo equilíbrio entre sua unidade e sua diversidade; e que
mantenha a balança igual entre a comunicação, favorável às iluminações
recíprocas, e a ausência de comunicação, também salutar, pois as flores
frágeis da diferença tem necessidade de penumbra para subsistir
(LÉVI-STRAUSS, 1989: 260).
Nas versões Cinta Larga e Aruá, os homens estão com azar na caça. Geralmente
os mitos indicam que o azar na caça ocorre devido a fatores externos, como por
exemplo, a traição da esposa ou até mesmo durante o período que o marido está sujeito
a dieta. Por terem nenê novo, nos primeiros meses, estes homens não podem comer
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determinados tipos de alimentos, não participam de caçadas, tampouco de guerras. No
mito sobre o caçador Panema, não está claro o porquê de o homem sofrer azar na caça,
mas tanto no mito Cinta Larga quanto no Aruá, os caçadores estão azarados em
conseqüência de impedimentos para manterem relações sexuais com suas mulheres.
O guerreiro Cinta Larga encontra Pawo, que o ajuda lhe dando um nambu, uma
caça, pois ele é o dono dos porcos, dono do mato, aquele que fornece sorte aos
caçadores, decidindo qual animal pode ser morto ou não. Na versão Suruí, o azarado
encontra árvores e plantas que antigamente eram gente, são donos dos elementos que,
utilizados na flecha, fornecem a sorte almejada por ele. Para tudo há uma troca a ser
estabelecida, entre o índio Cinta Larga e Pawo, a troca é matar todos os seus e os
tornarem porcos no lugar daqueles que foram mortos. No caso Suruí, a troca é dar sua
mulher para as plantas namorarem, talvez garantindo o fim do azar para sempre. Todos
os parentes duvidam da sorte adquirida ou do encontro repentino com esses seres da
floresta. De maneira distinta, os dois homens vingam-se de seus parentes, seja sob a
forma de canibal, vento ou trovão, seja transformando todos em porcos ou roubando a
mandioca da roça quando chega o mês de agosto.
Em Mitológicas 1 – o cru e o cozido, Lévi-Strauss apresenta cinco mitos em
versões muito semelhantes à Cinta Larga e Aruá. São narrativas de etnias diferentes,
sobre a origem dos porcos-do-mato, e o que mais impressiona nestas versões é o fato de
que os homens são sempre transformados em porcos por motivo de vingança: seja por
terem roubado a caça de um rapaz, desejo de experimentar carne de porco ou pela
traição da mulher. Considerando que a carne de porco é muito apreciada entre os
indígenas, além de exigir destreza no manejo das armas para caçá-los, aquele que for
transformando em porcos será por si só um inimigo a ser combatido, muitas vezes
pertencente à mesma etnia do vingador, porém inimigo.
* * *
Outros dois mitos, desta vez sobre namoro escondido, se reproduzem de forma
semelhante entre as duas etnias. Estas narrativas reafirmam a simetria mencionada
anteriormente. Vale ressaltar que uma das condições necessárias à conquista das
mulheres, para um homem, é saber caçar os alimentos mais apreciados e a queixada
23
(porco-do-mato) está entre eles. Além da caça, a roça também pode ser determinante na
conquista.
O primeiro mito, Sunkip o filho do Mutum, pertence às narrativas de Pichuvy
Cinta Larga. O segundo, Primeiras Mulheres, foi contado por diversos narradores
Suruí em versões variadas, recolhidas por Mindlin entre os anos de 1979 a 1992.
Mito Cinta Larga
Sunkip – Filho de Mutum
resumo: Uma mulher decidiu namorar coruja durante uma festa na
maloca. Enquanto todos dançavam, ela ficou espiando a coruja. Paxit5,
passarinho azul, chegou, dançou e tomou chicha. A mulher se
aproximou e tomou metade da chicha (bebida fermentada a partir do
milho, cará ou mandioca) de Paxit, dizendo que gostava muito dele.
Paxit não acreditou e argumentou que ela tinha um noivo, a coruja. A
mulher respondeu que não queria mais saber de coruja e saiu atrás
dele, dizendo que se ele fosse embora da festa, ela iria junto. Sem
coruja perceber, a mulher combinou com Paxit dele sair deixando
sinais no decorrer do caminho até sua casa, ela sairia depois,
seguindo as pistas. Uma das pistas era sua pena, indicando o início do
caminho correto para casa do amante.
Ao iniciar o caminho a mulher se deparou com duas opções,
uma com a pena de Paxit e outra com a pena de coruja. Andou e
chegou a casa de coruja que estava sentado em cima da maloca
esperando a mulher. A mãe de coruja pediu que ele fosse em busca de
alimento para dar de comer a sua mulher. Ela então saiu e caçou um
rato para que ela comesse. A mulher não quis comer o rato, dizendo
que seu pai lhe mandou que não o fizesse. O marido lhe ofereceu
milho, mas sua roça não era suficiente, então, juntos, saíram em busca
de mel. Acharam mel em cima da árvore, a mulher comentou que iria à
busca de uma vasilha, mas fugiu de coruja. Ao retornar à maloca,
perguntou sobre a mulher à sua mãe, dizendo que a tinha perdido. Sua
mãe recomendou que fosse através do caminho de Paxit em busca da
mulher.
5 Saíra azul, o filho da onça.
24
Durante a fuga, a mulher muito esperta, pediu aos animais que não
dissessem sobre seu paradeiro ao seu marido, e se escondeu no
pescoço de socó, um pássaro comedor de peixe. Quando o coruja
encontrou socó, desconfiado com o volume, perguntou a ele o que
tinha na garganta, mas socó lhe respondeu que estava com dor de
dente. Depois de coruja continuar a busca, a mulher continuou a fuga e
durante o trajeto encontrou mutum, que permitiu que ela se
escondesse debaixo de sua asa, pois estava com medo do coruja.
Então o coruja chegou e perguntou novamente sobre a mulher. Mutum
respondeu que não tinha visto, que estava ali apenas fazendo
trançando pêlos de caititu na flecha. Desconfiado, o coruja perguntou
o que mutum tinha embaixo da asa. Mutum ficou bravo com ele e pediu
para que não mexesse ali, pois estava com dor. A mulher continuou
escondida lá, e é por isso, segundo o narrador, as mulheres se
escondem quando vêem namorado ou marido. Quando o coruja foi
embora, mutum disse a ela para dormir tranqüila debaixo de sua asa,
pois o coruja não estava mais lá. Daí mutum “transou” a mulher e a
engravidou e ela foi embora gestante para casa de Paxit, o passarinho
azul.
Mito Suruí
Primeiras Mulheres
resumo:Antigamente não havia mulheres no mundo, apenas um homem
sozinho, Iapeb. Ele resolveu namorar uma árvore que de tanto namorar
engravidou do rapaz. Antes de viajar o rapaz avisou sua mãe que caso
ouvisse um barulho na floresta, para sair e ver o que era.
À noite a arvore explodiu uma criança que começou a chorar,
logo depois ouviu-se um segundo estouro, era mais uma criança
chorando. A avó foi à mata pegar as crianças passando a cuidar delas.
As meninas cresceram e tornaram-se moças, uma chamava-se Kabeud
e a outra Samsam.
Certo dia Iapeb, o pai das mocinhas, mandou preparar bebida
em sua maloca para promover uma grande festa, um iatir. Pintou de
jenipapo os convidados e mandou chamar o pessoal de outras aldeias
para a festa. No dia da festa o pai chamou as filhas e contou a elas que
25
sua mãe não era gente e sim uma árvore, e que tudo aconteceu num
sonho.
As meninas se pintaram, beberam e dançaram durante a festa.
Entre os visitantes estava um pássaro, Pexir, e Makoba, uma coruja.
Makoba dançava se exibido para as moças gostarem dele, mas elas só
queriam Pexir. As moças riam de coruja, mas mesmo assim o pai dizia
a Makoba que as moças o achavam muito sedutor.
Quando a festa acabou, todos se despediram e as duas
mulheres combinaram com Pexir de ele deixar uma pena no caminho
indicando o trajeto de sua maloca. Makoba, muito esperto, trocou a sua
pena com a de Pexir, indicando a direção de sua maloca. Coruja pediu
a mãe para preparar carne para as meninas quando elas chegassem a
sua casa. As duas foram parar na casa de coruja. Quando viram a
carne oferecida pela mãe de Makoba, as moças disseram que aquilo
não era carne nenhuma, pois se tratava de um rato. Além da carne, a
coruja ofereceu mel, que também foi rejeitado pelas moças por não se
tratar de mel de abelha, mas sim lágrima que a coruja tirou dos seus
próprios olhos. Quando Makoba quis namorar as mulheres, Samsam o
enganou pondo os dedos em V para ele enfiar o pênis, fingindo que
abrira as pernas, mas sua irmã Kabeud namorou de verdade. Quando o
coruja decidiu sair para apanhar castanhas, as mocinhas aproveitaram
e fugiram.
Durante a fuga, elas encontraram Oiô, uma rolinha vermelha de
pescoço azul, e pediram para ficar com ele. O rolinha escondeu as
meninas em sua boca. Makoba estava à procura das duas, e perguntou
a Oiô se havia visto as garotas, o coruja desconfiado perguntou à
rolinha porque ele estava com a boca inchada. Ele respondeu que era
por estar sentindo dor de dente. Oiô empurrou a coruja, pegou as
meninas e as levou para sua maloca. Ofereceu, em sua casa, peixe
como alimento, mas uma das irmãs, desconfiada, afirmou que se
tratava de minhoca. Bravas com o pássaro mentiroso, fugiram
novamente no dia seguinte.
No caminho encontraram a garça, Makabe, que havia
escondido as moças em seu cesto de peixes. Oiô perguntou à ave se
ela viu as meninas, ela disse que não, a moça o empurrou e ele se
transformou em pássaro. A história se repetiu, as moças ficaram uma
noite com a garça que quis namorá-las, uma pôs o dedo em V, a outra
namorou de verdade.
26
No dia seguinte, fugiram e encontraram o Veado, Makabe, que
estava com muito milho em sua roça. As duas comeram todo milho e
se ofereceram para ficar com ele, ele aceitou. Depois do milho o veado
saiu para caçar e levar de comer para elas, mas ao invés de caçar
arrancou carne de sua própria perna e levou para sua mãe cozinhar. As
meninas desconfiaram novamente, indagando como o veado havia
conseguindo tanta carne, ainda mais sem osso. Foram investigar e
descobriram a origem da caça. Fugiram novamente.
Então finalmente encontraram Amôa, o jabuti. Deixou as duas
e saiu para caçar e dar de comer a elas. Quando Amôa retornou,
perguntou aos macacos que estavam com as meninas:
- Quem esta comendo minhas mulheres?
A história se repetiu de forma semelhante às outras situações.
Desta vez, na ultima fuga, elas encontraram a onça que tinha muitas
cabeças de porco em seu cesto de lixo, as duas encantadas com a
quantidade de caça resolveram casar-se com o onça. Ambas tiveram
nenê e a proteção da sogra, uma sogra voraz. Porém a sogra comeu
uma das irmãs, a outra para vingar-se a matou, e cuidou do sobrinho e
do próprio filho sozinha.
Na primeira versão a origem da moça está oculta. Na segunda são duas
mocinhas, ao contrário da primeira. Há uma disputa da coruja com outro animal. A
coruja é o marido que o pai gostaria de casar as filhas, mas, na verdade, elas desejam
transgredir com o pássaro Pexir ou Paxit, saindo na mata à procura dos pretendentes.
Rato é alimento proibido, tanto aos Suruí quanto aos Cinta Larga. Desprezam o
primeiro amante, por oferecer o seu alimento habitual. Ao final, valorizam os homens
que de certa maneira possuem os melhores alimentos, geralmente oferecidos pelos
pretendentes e preparados pela sogra. Aparecem porcos nos dois mitos: no primeiro é o
caso do Mutum trançando os pêlos de caititu nas flechas, no segundo, que é uma
narrativa Suruí, a onça Amôa está cheia de cabeças de porco em seu cesto.
Conforme descrição de Dal Poz, para confecção de instrumentos de caça e
guerra, os homens Cinta Larga
27
(...) despendem inúmeras tardes em suas “oficinas”, pequenos
acampamentos a cerca de duzentos metros da maloca, no frescor da floresta,
onde sós ou em conjunto confeccionam arcos e flechas. Objetos preciosos, os
caçadores tudo fazem para recuperar as flechas quando disparam, tomando
precauções ao mirar ou trepando, no que são hábeis, nas mais altas árvores
(1991:127).
No mito acima (Sunkip – Filho de Mutum, p.26), contado por Pichuvy, isto se
evidencia no momento em que a mulher, andando na floresta, encontra seu suposto
amante trançando os cabelos de porco-do-mato em sua flecha, sozinho. Caçar é
atividade exclusivamente masculina e individual. Os meninos desde criança andam com
seus “arquinhos” e flechas, já em busca de calangos e borboletas, algo que comprova a
importância dos instrumentos de caça e guerra para a cultura Cinta Larga. De maneira
semelhante, Mindlin afirma que na metade “metare”, no mato, são confeccionados os
artesanatos Suruí, local também repleto de caça segundo a autora.
Encontrei também, nas narrativas de Pichuvy, o porquê da utilização, por
exemplo, da taboca na confecção da flecha Cinta Larga, associada à mulher. O mito
resumido abaixo evidencia esta relação:
Mito Cinta Larga
Njap - flecha
resumo: O mito conta que foi a mulher quem inventou fazer flecha de
taboca (um tipo de bambu utilizado como ponta para a flecha). Uma mulher
mandou seu marido ir caçar, pois estava com muita vontade de comer carne. O
marido saiu à caça e a mulher ficou a espera para ver qual tipo de carne ele
traria. Quando ele retornou trouxe só um passarinho, tipo um nambu, a mulher
indagou:
-Cadê bicho? Cê matou ninguém...
Aí índio respondeu pra ela:
-Eu não achei nada bicho. Eu num achei nada. Matei só
um nambuzinho para você comer. (CINTA LARGA, 1988:51)
28
Mesmo assim a mulher assou o nambu e comeu, mas ficou chorando,
afinal queria uma caça maior. O marido então disse a ela que no dia seguinte os
dois sairiam juntos para caçar. Logo cedo ele foi caçar, e quando viu rastro de
porco no mato, disse à sua mulher:
- Olha, você vai espantar porco aqui - espantar né?- pra
ele vem pra encontrar porco. Aí mulher foi. Ela foi e vê o
porco. Espantar porco, né? Aí porcão veio com ela, mulher.
Aí porco correu, correu, né? Aí homem flechou um porco. Aí
mulher mordeu na costa de porco, né? – na bunda de porco.
Aí homem não vê mais mulher. Aí quando não vê mais
mulher, homem foi procurar. Aí ele viu a taboca-taboca de
ponta de flexa. Aí homem fala:
- Essa taboca... pra que essa taboca? Eu nunca vi essa
taboca! Quando o homem falou, mulher apareceu:
-Eu tava perdida! – a mulher falou – Eu tava perdida!
Aí o homem respondeu:
- Eu tava procurando você. Onde você tava?
Aí mulher falou:
-Essa taboca, eu inventei para você matar bicho.
Ele falou:
-Ié?...Tá bom.
-Essa taboca, - ela falou – essa flecha, pra você não
precisar mais alisar pedaço de árvore, né? (CINTA LARGA,
1988: 52)
Pichuvy explica que seu avô lhe contou que antes da mulher inventar a ponta de
flecha, feita de taboca, os homens precisavam alisar pedaços de árvore. Após essa
invenção, apareceram muitas flechas, em todos os cantos, pois foi a mulher quem fez
assim.
A taboca deve ficar embaixo do sol para secar, esquentar e assim ficar branca e
dura. Não pode colocá-la em água fervendo, isso desperta vontade de comer carne. “Só
isso da história de mulher. Tá bom?” (idem, ibdem).
29
Neste mito, Njap, quem morde a bunda do porco não é sua mulher-esposa, mas
sim a mulher-flecha, que espanta o porco e faz com que ele corra. Há aqui uma relação
de simbiose entre a mulher e a flecha. Quando o caçador dá conta que perdeu sua flecha,
entra em desespero, afinal a flecha é o instrumento inseparável desse homem guerreiro,
assim como a mulher que desempenha suas tarefas essenciais à manutenção da vida do
grupo. Observado por Dal Poz (1991) a ponta da flecha com sangue é o maior símbolo
de sucesso na caça ou na guerra para o homem Cinta Larga, uma maneira de se orgulhar
de sua destreza no manejo do arco. O autor também relaciona o fato de não poder
colocá-la em água fervendo ao costume de reclusão das mulheres Cinta Larga durante a
menstruação. Elas não podem ter nenhum tipo de contato com a água, não é interessante
que tomem banho ou desempenhem tarefas cotidianas, e devem permanecer por dois
dias, ou mais, no canto da casa sem contato.
Antropofagia, inimigos e objetos
Observando a relação das culturas Cinta Larga e Aruá com o porco-do-mato,
podemos perceber, de certa forma, que comparações podem ser estabelecidas quanto à
ingestão da carne de porco e a prática de antropofagia. Isto se torna claro à medida que
os homens no mito da versão Aruá, após serem transformados em porcos, comem seus
próprios semelhantes, devorando a caça que estava no moquém. Esta comparação
estabelecida poderá ser bem exemplificada com o mito Cinta Larga abaixo, relatado por
Pichuvy e parcialmente resumido por mim:
Mito Cinta Larga
Bebé – Porco
resumo: Um índio saiu para caçar no mato, mas arrancou pedaço da
sua própria carne e virou o bicho. Nasceu cabelo de porco no pedaço
da carne que ele arrancou. Chegou a sua casa e falou assim:
30
- Eu matei porco! Agora vocês cozinhar porco.
A mulher dele cozinha a carne... Pessoal dele não sabe que é
pedaço carne dele, né?
E outra vez foi caçar. Quando carne acabou, ele vai caçar de
novo, Aí trouxe carne, né? Aí mulher perguntou:
-Cade cabeça do porco?
Aí ela falou assim:
-Você não traz cabeça de bicho!... (CINTA LARGA, 1981:85)
Ele saiu novamente para caçar e fez a mesma coisa, arrancou pedaço
de sua própria carne. O marido não sabia que seu sogro estava
escondido vendo ele arrancar um pedaço de carne em vez de caçar
porco. O sogro voltou para a maloca e sua filha lhe perguntou se tinha
visto seu marido. O pai respondeu que não, mas ela insistiu e ele
acabou entregando o genro. Contou a sua filha sobre a farsa do marido
em substituir a caça do porco por sua própria carne arrancada. Ao
chegar em casa com a carne nas costas, o marido disse:
- Eu trouxe o porco de novo. Eu trouxe o porco de novo...
Aí mulher respondeu:
-Esse é pedaço de teu carne! Quando ela falou que “esse é
pedaço de teu carne”, ele voando – passarinho, né? – ele foi embora.
(idem, ibidem)
Então passarinho é o homem que arrancava pedaço. O
narrador diz que é aquele que canta a noite no mato, que assobia
parecido com grito de gente, o pã pã mep6.
A carne humana tanto se assemelha à de porco que no mito denominado Bebé, o
caçador preguiçoso arranca de sua própria pele para dar de comer a sua mulher,
disfarçadamente, até aparecem pêlos sob o pedaço para não haver nenhum tipo de
desconfiança. Ao sair para caçar porcos, o homem caça a si próprio diante da
semelhança de sabores.
6 Pássaro de hábitos noturnos
31
Dal Poz em Dádivas e Dividas na Amazônia- parentesco, economia e ritual nos
Cinta Larga (2002), apresenta uma passagem interessante sobre o mito Bebeti o dono-
dos- porcos7, na qual é possível perceber uma relação do porco com a antropofagia
guerreira:
O mito Bebeti, o dono-dos- porcos, assim, descreve o processo de cisão de uma
unidade de germanos, em razão do abuso alimentar – caçadores bem sucedidos que
comem excessivamente, e não repartem sequer com o irmão que nada caçou. Aqueles
transformam-se em porcos, este em caçador. Ou seja, no horizonte das obrigações
recíprocas desdobra-se a ameaça canibal pendente, o prenúncio da devoração dos
adversários feitos presas alimentares (DAL POZ, 2002:181).
Aqui se observa uma coincidência com o final do mito Aruá O dono dos porcos,
pois nas duas narrativas o herói passa a ser caçador de porcos.
Segundo observação de Dal Poz, no ato canibal, o que se come é sempre o outro.
Este discurso demarca as fronteiras de maneira clara, não só em relação às dimensões
sociais e políticas, mas outras dimensões, como por exemplo, a cultura e a natureza, os
homens e os animais, os vivos e os mortos e, inclusive, os sujeitos e os objetos, estes,
fundamentais para esta análise.
A partir do mito sobre a origem dos homens, Gora, o reino animal, por sua
vez, remeteria precisamente ao exterior da sociedade e, em particular, ao
próprio campo dos inimigos. Ainda nos tempos míticos, os animais foram
criados para alimentar os homens, a partir de uma série de metamorfoses
impostas a uma parte da humanidade original. O demiurgo convertera
homens em espécies animais, para prover uma criança que desejava “comer
carne”. (...) Bebeti o dono-dos-porcos, assim castigou caçadores, que
mataram uma grande quantidade de animais, mas negaram a carne ao irmão
azarado, transformando-os em queixadas (idem, ibidem: 196).
O autor afirma ainda, que o tema da animalização, segundo um princípio de
equivalência simbólica entre a caça e a guerra, distingue os inimigos por uma relação
7 Este mito, narrado por Zé Paulo Kabân, possui diferenças em relação ao mito Histórias de Pawo narrado por Pichuvy Cinta Larga. Ao final o único homem que resta torna-se caçador de porcos.
32
alimentar, a predação canibal. Nas festas guerreiras os cantores não pronunciam o nome
do inimigo, apenas os indicam como animais a serem caçados.
O tema da animalização, devo insistir, sugere enquanto solução para as
situações de ausência ou recusa de reciprocidade, segundo um princípio de
equivalência simbólica entre comestibilidade e hostilidade ou, em outros
termos, entre a caça e a guerra. Destarte, os inimigos são distinguidos por
uma relação alimentar, predação canibal, e com isto consignados
simbolicamente ao domínio da animalidade. Nas festas guerreiras, que são
uma espécie de ilustração ritual dessa assertiva, os cantores jamais
pronunciavam o etnônimo dos adversários, indicando-os tão-somente como
animais a caçar. Isto faz da caça uma nítida metáfora para a guerra, um
espaço transitivo no qual os inimigos são colocados em relação: a guerra é
caça, e os inimigos estão ali na posição de animais. Temos aqui, outra vez,
um código alimentar, uma chave de leitura para a distinção crucial entre a
sociedade cinta-larga e seus exteriores. (idem, ibidem: 196)
Porco, flecha e antropofagia guerreira formam uma tríade da cultura Cinta
Larga. No mito sobre o dono do mato, o homem Cinta Larga tornado inimigo, é de fato
o porco, ou o porco é o seu inverso? Adornar a flecha com o trançado de pêlos de caititu
faz com que esta flecha seja fortemente caracterizada por este homem guerreiro-
antropófago-caçador. Se na origem todos se transformaram em porcos; na festa simulam
um ataque ao queixada para substituir o inimigo atacado; apreciam a carne de porco
sendo a mais valorizada em relação às demais, entendo que esta relação não deve ser
descartada, mas sim levada em consideração.
Os pêlos de caititu que são usados para enfeitar a flecha das duas etnias, além de
outros elementos que compõem os objetos indígenas Tupi-Mondé, cumprem de alguma
maneira, papel significativo. Talvez, de forma precipitada, podemos considerar que
estes pêlos presente na flecha Cinta Larga representem o inimigo a ser combatido, por
meio do mecanismo de equivalência simbólica entre a caça e a guerra. Afinal,
originalmente, os inimigos míticos, da mesma etnia, foram transformados em porcos,
daí a importância em caracterizar a flecha, fortemente identificada ao gênero masculino,
com este inimigo a ser combatido.
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Referências ao porco-do-mato,
queixada e caititu
Mitológicas 1 – O cru e o cozido
Referências dos mitos
(M1) Bororo: o xibae e iari, “as araras e seu ninho” – faz referência a um objeto mágico, um chocalho feito com unhas de caititu, utilizado por um rapaz para ter sorte nas difíceis provas colocadas a ele, como castigo por ter namorado a mãe. (M8) Kayapó-Kubenkranken: origem do fogo - um caçador abandonado pelo cunhado, durante uma caçada, permanece em cima de uma arvore sem ter como descer. Uma onça carregando um caititu nas costas, passa pela arvore onde estava o rapaz. A onça ajuda o rapaz, levando-o à sua própria casa. Durante o trajeto a onça coloca o rapaz nas costas do caititu que ela havia caçado. A onça ensina o rapaz a usar o arco e flecha e também fazer fogo para cozer os alimentos. Certo dia o rapaz foge e retorna à sua aldeia contando aos seus familiares sobre os aprendizados adquiridos. Os familiares querem possuir as mesmas coisas da onça e seguem até a casa dela disfarçados de animais, com objetivo de pegar as técnicas da onça. Dentre os animais, um caititu se encarrega de pegar o algodão fiado. “O pecari, geralmente distinto do caititu em nossos mitos, é certamente o queixada que tem a boca branca (...). O caititu é, portanto, o porco-do-mato. (...) A segunda espécie é menor que a primeira, solitária ou pouco gregária, a primeira vive em bandos” (LEVI-STRAUSS, 1991: 79). (M14) Ofaié-xavante: a esposa da onça – durante uma expedição de mulheres ao mato para apanhar lenha, uma delas avista uma carcaça de queixada deixada por uma onça. A moça manifesta interesse em tornar-se filha da onça, pois a onça sabe caçar muito bem e possui muita carne boa. A onça aparece e acolhe a moça, lhe ensinando caçar e dando as melhores carnes a ela. Cansada da moça, após algum tempo, a onça pede a ela que retorne a sua aldeia. A moça retorna a aldeia mostrando muita destreza na caça. (M15) Tenetehara: a origem dos porcos-do-mato – Tupã enfurecido com alguns parentes por terem maltratado seu afilhado, pede ao afilhado que junte penas e as amontoe em volta da aldeia destes parentes. O rapaz queima as penas, e cercados pelas chamas, os parentes correm de um lado para o outro, pouco a pouco grunhindo como caititus e porco-do-mato. Aqueles parentes transformados em animais, que conseguiram fugir para a floresta, foram os antepassados dos atuais porcos-do-mato. Tupã faz de seu afilhado o senhor dos porcos.
Páginas: 42, 73, 75, 78, 79, 86, 88-91, 97-98, 99, 101, 103-105, 108-110, 119, 125, 129–131, 159, 198, 201, 203, 207, 252, 288, 298.
(M16) Mundurukú: origem dos porcos-do-mato – é uma narrativa semelhante à anterior. Por vingança os homens são transformados em
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porcos. Aparece no mito que único animal de pêlos conhecido no passado, era o caititu, e também o único animal que os homens caçavam, exceto um caçador chamado Karusakaibe, que caçava o pássaro inhambu (nambu), e trocava os pássaros com os caititus caçados por outros homens. (M18) Kayapó-Kubenkranken: origem dos porcos-do-mato – nesta narrativa, também semelhante à anterior, ao contrario de caititus, os homens por vingança, são transformados em queixadas. (M21) Bororo: origem dos porcos-do-mato – ao contrario das narrativas anteriores, são mulheres que se vingam de seus maridos transformando-os em porcos. (M25) Kariri: origem dos porcos-do-mato e do tabaco – nos tempos do demiurgo, os homens lhe pediram para experimentar porcos-do-mato que ainda não existiam. O avô (que era o demiurgo) transformou todas as crianças com menos de dez anos em porquinhos, e fez com que todos os porquinhos subissem ao céu por meio de uma grande arvore. Os homens mais velhos subiram aos céus e caçaram todos os porquinhos. De volta à aldeia, os homens fizeram um banquete com a carne dos filhos transformados em porcos.
(M125) Kayapó: origem da chuva e da tempestade – a narrativa contem uma passagem sobre um caçador, que ao chegar ao local da caçada, imita os barulhos dos porcos como forma de atraí-los.
Referências ao porco-do-mato,
queixada e caititu
Mitológicas 2 – Do mel as cinzas
Referências dos mitos
(M238) Warrau: A flecha partida – este mito tem uma referência interessante ao porco-do-mato. Um homem pouco hábil na caça, sentado na mata, recebe a visita de animais que colocam a língua para fora e lambem seus pés, para lhe dar boa sorte quando quisesse caçar a espécie a qual o animal pertencia, incluindo o porco-do-mato.
Páginas:
17-21, 24-26, 36-40, 99, 158, 173, 177, 239-40, 287, 289, 314, 320-22, 325, 327, 330, 335, 342,
(M 274) Arawak: O jaguar transformado em mulher – o mito conta a história de um homem que era um exímio caçador, não tinha quem o igualasse na caça aos porcos-do-mato. Em contrapartida o jaguar não caçava mais que dois porcos, então o jaguar resolveu transformar-se em mulher para se casar com este homem e descobrir seus segredos de caça.
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Na página 287, Lévi-Strauss relata sua participação em uma caçada na companhia dos Tupi-Kawahib do Rio Machado, no Brasil. O autor observou que para chamar a caça, incluindo o porco-do-mato, “batia-se no chão com uma vara em intervalos regulares: “pum... pum... pum...”. Afirma que os lavradores no Brasil dão a este procedimento o nome de caça de batuque.
374, 414-18, 424.
(M303) Tacana: A educação dos rapazes e das moças – este é um mito extenso, sobre a história de três homens que ao se perderem na floresta com seus filhos, encontram porcos-do-mato. Os filhos transformam-se neste animal. O sogro de um dos heróis, faminto e perdido, come seu próprio braço esquerdo. Um ser da floresta, semelhante ao dono dos animais, censurou-o por isso com o castigo de nunca mais poder voltar junto aos humanos, transformado em tamanduá-bandeira e vagando sem destino pela terra. O mesmo ser, dono dos animais, denominado Chibute, aconselha os caçadores a sempre enterrarem o fígado do porco-do-mato no local que ele foi abatido, e também oferecer ao dono dos porcos em oferenda, uma bolsinha tecida e enfeitada com motivos simbólicos, afim de que ele não afaste seu rebanho, mas o deixe vir aos lugares salíferos onde os caçadores matarão muitos animais. Para o sucesso na caça, a entidade recomenda ainda os preceitos que o bom caçador deve seguir e transmitir aos seus dependentes, entre eles não comer miolo de porco-do-mato.
Nos volumes 3, A origem dos modos à mesa, e 4, L´homme nu, não há mitos relativos ao porco-do-mato.
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