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Associação Educacional Sul-Rio-GrandenseFACULDADE PORTO-ALEGRENSE

Av. Manoel Elias, 2001 – Morro Santana CEP: 91240-261 Porto Alegre - RS

Acadêmica: Juliana Wanessa Goulart.

Orientadoras: Marilia Barcelos e Patrticia Cunha.

O processo de editoração e o texto poético

A normatização do texto poético

A poesia é a arte da exaltação do sentimento humano. Geralmente, quando pensamos em poesia imaginamos sua disposição em versos, mas o texto poético pode ser apresentado de diferentes formas. Assim, os responsáveis pela editoração de obras poéticas ou obras que apresentam textos poéticos devem estar atentos a esse tipo de variação na configuração/formato do texto, para não alterar a forma e nem o sentido proposto pelo poeta. Os livros de poesia têm muitas especificidades, por essa razão são quase sempre impressos de forma diferente dos livros em prosa.

O objeto de trabalho do poeta é a palavra, desta forma ele procura utilizá-la da melhor forma possível, tentando assim tirar melhor proveito de cada uma delas para suas composições. Muitas vezes, o poeta subverte as regras da norma culta utilizando a licença poética. Desta maneira, colocações que poderiam ser consideradas “erradas”, como desvios da norma culta (aproximação da oralidade), uso de figuras de linguagem, precisam ser atentamente observadas pelo revisor para que ele na tentativa de adequar o texto a norma culta não acabe por alterar o sentido do texto. Segundo Emanuel Araújo (1986, p. 152) "do ponto de vista da editoração o que ressalta é a dificuldade de cada caso, é a sua transposição gráfica, sua harmonia visual na página, e não propriamente sua liberdade linguística".

Poesia em verso

Formato tradicional em que encontramos os textos líricos. Esse tipo de texto apresenta essa configuração desde a Antiguidade época em que surge um grande nome da poesia ocidental: Homero, compositor das epopéias Ilíada e Odisséia, que foram registradas em versos. Após esse período, da Idade Média a atualidade o registro em versos passou por diferentes formas de metrificação. Os versos já foram compostos de forma exemplar, através do uso de rimas, sonoridade, configuração de estrofes, até a libertação total por meio do verso livre que surgiu durante o período modernista. Em função dessa infinidade de feições e possibilidades para apresentação da poesia em verso o editor-de-texto deve realizar uma normalização flexível de maneira que sua atividade não interfira na criação do poeta.

Continuidade da frase

Um hábito entre os poetas mais antigos, mas que hoje quase não é utilizado éiniciar todos os versos do poema com letra maiúscula. Situação que podemos observar em Manuel Bandeira:

Rondó dos Cavalinhos

Os cavalinhos correndo, E nós, cavalões, comendo...Tua beleza, Esmeralda, Acabou me enlouquecendo.

Os cavalinhos correndo, E nós, cavalões, comendo...O sol tão claro lá foraE em minhalma —anoitecendo!

Os cavalinhos correndo,E nós, cavalões, comendo...Alfonso Reys partindo,E tanta gente ficando...

Os cavalinhos correndo, E nós, cavalões, comendo...A Itália falando grosso,A Europa se avacalhando...

Os cavalinhos correndo, E nós, cavalões, comendo...O Brasil politicando,Nossa! A poesia morrendo...O sol tão claro lá fora,O sol tão claro, Esmeralda,E em minhalma — anoitecendo![1]

[1] Manuel Bandeira. "Rondó dos cavalinhos", em Bandeira de bolso: uma antologia poética (Porto Alegre: L&PM, 2008)

Na atualidade, a maior parte dos poetas preferem dar continuidade a construção frasal, ainda que o texto esteja em versos. Assim, o texto não fica preso ao padrão invariável da letra inicial maiúscula. Araújo (1986, p.156) considera que esse tipo de alteração éuma “vantagem para a estética e a legibilidade do texto”. Essa clareza na leiturapode ser constatada através do poema de Mario Quintana:

PARECE UM SONHO...

"Parece um sonho que ela tenha morrido!"diziam todos… Sua viva imagemtinha carne!… E ouvia-se, na aragem,passar o frêmito do seu vestido.

E era como se ela houvesse partidoe logo fosse regressar de viagem…- até que o nosso coração doridoa Dor cravava o seu punhal selvagem!

Mas tua imagem, nosso amor, é agora menos dos olhos, mais do coração.Nossa saudade te sorri: não chora…

Mais perto estás de Deus, como um anjo querido.E ao relembrarte a gente diz, então:"Parece um sonho que ela tenha vivido!"[2][2] Mário Quintana. "Parece um Sonho...", em

Quintana de bolso: rua dos cataventos & outros poemas (Porto Alegre: L&PM, 2006)

Outra mudança pela qual a poesia passou foi a utilização do verso livre. Os versos livres não seguem nenhuma regra pré-estabelecida quanto ao metro, à posição da sílaba mais forte, nem à presença ou regularidade de rimas. Esse tipo de verso começou a ser utilizado a partir do modernismo[3] e continua sendo utilizado na poesia contemporânea. Conforme Araújo (1986, p.158), “esse recuso faz ressaltar o peso de todas as palavras, de cada significado em seu encadeamento não obstante lógico, mas pleno de ambiguidades –sobretudo pela ausência de pontuação [...]”. Podemos visualizar de forma objetiva a utilização do verso livre através de alguns versos do poema Evocação do Recife, de Bandeira (poeta que teve sua produção marcada pela liberdade formal):

[3] Movimento literário e artístico do início do séc. XX

[4] Manuel Bandeira. "Evocação do Recife", em Bandeira de bolso:uma antologia poética (Porto Alegre: L&PM, 2008)

Rua da União...Como eram lindos os nomes das rua da minha infânciaRua do Sol(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...

... onde se ia fumar escondidoDo lado de lá era o cais da Rua da Aurora...

... onde se ia pescar escondido[4]

Em Evocação do Recifealguns versos estão alinhados a direita, outros surgem centralizados, outros alinhados a esquerda e todos eles com diferentes metragens. Esses diferentes tipos de alinhamento foram pensados pelo poeta para causar diferentes tipos de sentido. Se o editor-de-texto viesse a alinhar todos os versos à direita além de alterar o texto do poeta alteraria intenção proposta pelo poeta.Muitas vezes, as composições poéticas também apresentam versos muito longos, em que para marcar a continuidade da frase no verso seguinte utiliza-se um colchete. Essa situação pode ser visualizada em Quintana:

O HOMEM DO BOTÃOQuando esta velha nave espacial do mundo for um

[dia a piqueNão haveráicebergnenhum que o explique... ApenasUm de nós, em desespero- como quem se livra de uma terrível dor de cabeça

[com uma bala rápida no ouvido -Vai apertar primeiro o botão:Clic!Tão simples... E os mais espertos venderão,A preços populares, arquibancadas na LuaOu caríssimos camarotes de luxoPara que possam todos assistir à nossa ÚLTIMA

[FUNÇÃO.O perigoÉ que a arquibancada desabeOu que a própria Lua venha a cair no caldeirão fervente.Enquanto isso, Deus, que afinal é clemente,Põe-se a cogitar na criação, em outro mundo,De uma nova humanidade- sem livre-arbítrio -Principalmente sem livre-arbítrio...Mas com esse puro instinto animalQue o homem do botão atribuía apenas às espécies

[inferiores.[5]

[5] Mario Quintana. "O homem do botão", em . Quintana de bolso:rua dos cataventos & outros poemas (Porto Alegre: L&PM, 2006)

Em O homem do botão,Quintana utiliza versos de diferentes extensões, e aqueles que rompem o espaço da mancha seguem no verso seguinte com a utilização do colchete. Como pudemos observar esses versos que seguem no verso posterior não seguem o alinhamento à direita (como os demais), eles ficam quase que centralizados e têm um alinhamento próprio, como observamos acima. Assim o leitor pode identificar com maior clareza que não se trata de um novo verso.

Composições especiaisMuitos poetas além de utilizar os vocábulos para dar forma aos seus versos

utilizam também o espaço gráfico para completar seus poemas, bem como, seus significados. Sobre esse tipo de construção Araújo (1986, p.160) coloca que “os caprichos da criação levam [...] o preparador de originais a respeitar ilimitado número de pormenores, cabendo-lhe a difícil tarefa não de normalizar canonicamente o texto que lhe é entregue, mas de infundir-lhe coerência gráfica”.

Entre os poetas que mais utilizaram esse tipo de construção estão os poetas concretistas, que além de utilizarem a sonoridade dos versos, também construíam seus poemas de maneira visual (levavam em consideração letras, espaçamentos, caracteres, cores). Enfim, levavam em consideração toda e qualquer característica que pudesse agregar valor ao texto. Um poema que evidencia esse tipo de ocorrência éO â mago do ô mega, de Haroldo de Campos :

[6] Haroldo de Campo. "O â mago do ô mega", em Haroldo de Campos:melhores poemas (São Paulo: Global, 2000)

[6]

Nesse poema o poeta exercita com maestria o espírito do poema concretista. A diagramação em que os diferentes versos estão dispersos pela página lembra o formato das constelações que muito inspiravam os poetas concretistas em suas composições. O poema foi originalmente impresso com o fundo preto e as letras brancas, dando maior visualização para proximidade com as constelações.

Numeração de linhas e estrofesEsse tipo de situação em que o editor insere numeração antes do inicio de cada verso ocorre geralmente em edições críticas. Conforme palavras de Araújo (1986, p.165) isso “facilita a remissão das notas, indicando ao leitor, de imediato, a linha que se refere determinado comentário”. Para tal situação verificamos a seguir exemplo presente em Norma Goldstain (2005, p.26) em que o poema o poema Debussy, de Manuel Bandeira recebe numeração antes do início de cada verso:

DEBUSSY1 Para cá, para lá...2 Para cá, para lá...3 Um novelozinho de linha...4 Para cá, para lá...5 Para cá, para lá...6 Oscila no ar pela mão de uma criança7 (Vem e vai...)8 Que delicadamente e quase a adormecer o balança9 - Psiu... -10 Para cá, para lá...11 Para cá e... 11 -O novelozinho caiu.[7]

[7] Manuel Bandeira. "Debussy", em Versos, sons, ritmos (São Paulo: Ática, 2005)

Poesia em prosaEmbora em menor proporção, muitos poetas incluem entre em suas obras textos líricos em prosa. Com relação à esse tipo de organização do texto Araújo (1986, p.152) salienta que “quando isso ocorre, conforma-se naturalmente à estrutura normal da mancha da página, respeitadas, porém, a sequência paragráfica, a pontuação, os desvios ortográficos (se propositais), quaisquer fissuras impostas pelo autor”. Para corroborar essa colocação utilizamos texto de Bandeira:

Tragédia Brasileira

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade.Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífi-

lis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.

Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo o que ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, ar-ranjou logo um namorado.Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael

mudava de casa.Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua

General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.[8]

[8] Manuel Bandeira. "Tragédia Brasileira", em Bandeira de bolso:uma antologia poética (Porto Alegre: L&PM, 2008)

A poesia Tragédia Brasileira, esteticamente, em nada lembra a estrutura clássica das poesias. Apresenta-se através da poesia em prosa em que para desconhecidos o texto pode facilmente figurar como uma prosa poética, quando na verdade é o contrário. O texto Escalas e Ventríloquos, de Flora Süssekind, faz uma análise da produção literária contemporânea (década de 90) observando que as produções passam por uma crise de escala, uma tensão enunciativa influenciada por fatores econômicos e culturais. A escritora coloca que o gênero lírico vem sofrendo um processo de narratização. Segundo Süssekind (1999):

Chama a atenção, nesse sentido, sobretudo no último decênio, uma espécie de variação sistemática de escala, manifesta tanto em exercícios, por vezes paradoxalmente concomitantes, de expansão e compressão, quanto em movimentos de narrativização da lírica, de um lado, e de miniaturização narrativa, de outro [...] o movimento de expansão, marcaria a expressão lírica. [...] reconceituação do poema em prosa, cuja presença na produção brasileira recente passa por disseminação singular.

Desde os anos 90, a poesia brasileira vem sofrendo um processo de hibridização, resultante da erosão de fronteiras entre os gêneros (mídia, canção, teatro, videoclipe), ressaltando-se a internet como forma de afirmação de grupos de autores que veículos seus textos em revistas eletrônicas e/ou blogs. Silvia Helena Cyntrão (2008, p.3) coloca que “a poesia contemporânea é feita de textos cada vez mais voltados para o particular; avessos, assim, às generalizações e às universalizações”.

BIBLIOGRAFIA

ARAUJO, Emanuel. A construção do livro: princípios da técnica de editoração. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

BANDEIRA, Manuel; JARDIM, Mara Ferreira. Bandeira de bolso: uma antologia poética. Porto Alegre: L&PM, 2008.

CYNTRAO, Sylvia Helena. O lugar da poesia brasileira: um mapa da produção. Revista Intercâmbio. (on-line). Disponível em: (http://www.onda.eti.br/revistaintercambio/conteudo/arquivos/1961.pdf). Arquivo capturado em 18 de maio de 2009.

DÉPRÉ, Inês Oseki (Sel.). Haroldo de Campos: melhores poemas. São Paulo: Global, 2000.

D’ ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental : autores e obras fundamentais. 2. ed. São Paulo: Ática, 2004

GOLDSTEIN, Norma Seltzer. Versos, sons, ritmos. 13. ed. São Paulo: Ática, 2005.

QUINTANA, Mário. Quintana de bolso: rua dos cataventos & outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 2006.

SUSSEKIND. Flora. Escalas & ventríloquos. Disponível em http://subrosa3.wordpress.com/2008/01/05/flora-sussekind-escalas-ventriloquos/. Arquivo capturado em 18 de maio de 2009.