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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR-UECE
CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE MESTRADO ACADMICO EM FILOSOFIA
FRANCISCO DAVID DE OLIVEIRA ALMEIDA
O SIGNIFICADO FILOSFICO DA ALMA IMORTAL E SUA
CONGENIALIDADE COM O EIDOS: UM ESTUDO SOBRE O
FDON DE PLATO
FORTALEZA CEAR
2015
1
FRANCISCO DAVID DE OLIVEIRA ALMEIDA
O SIGNIFICADO FILOSFICO DA ALMA IMORTAL E SUA
CONGENIALIDADE COM O EIDOS: UM ESTUDO SOBRE O
FDON DE PLATO
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado
Acadmico em Filosofia, da Universidade
Estadual do Cear, como requisito pra
obteno do grau de Mestre em Filosofia.
rea de concentrao: tica Fundamental
Orientadora: Prof. Dr. Ilana Viana do
Amaral.
FORTALEZA CEAR
2015
2
3
4
Ao Elias e ao Heitor, em especial Juliana
Maria, que por ser Maria quem nos sustm de
amor...
5
Isso de querer ser exatamente aquilo que a
gente ainda vai nos levar alm...
No fosse isso e era menos, no fosse tanto e era
quase.
P. Leminski
6
RESUMO
A pesquisa apresenta a investigao do dilogo Fdon, que, diante de uma
significativa diversidade de temas, se ocupa em observar a relao entre ontologia e tica.
Apresentamos os conceitos de apallag e khrs como condio necessria para o
conhecimento. A partir dessa discusso apontamos um possvel significado filosfico para a
alma imortal. Os argumentos da reminiscncia juntamente com o argumento dos contrrios
nos serviro de intermdio para o objeto da pesquisa, que apresentar a distino entre
inteligvel e sensvel na tentativa de salvaguardar a aparncia.
Palavras-Chave: Alma. Imortal. Separao. Conhecimento. Eidos
7
ABSTRACT
The research presents a inquiry of Phaedo dialogue, that discusses about many topics.
It deals in observing the relationship between ontology and ethic. This paper will presents the
concepts of apallag and Khoris as necessary condition for knowledge. This discussion will
show a possible philosophical meaning for immortal soul. The arguments of reminiscent and
the argument of opposites will give support for this research, which It presents a distinction
between intelligible and sensitive in the attempt to safeguard the appearance.
Keywords : Soul. Immortal. Separation. Knowledge. Eidos
8
SUMRIO
1 INTRODUO .................................................................................................... 9
2 COMPREENDENDO O FDON...................................................................... 12
2.1 ARGUMENTOS ONTOLGICOS NO FDON ................................................ 12
2.2 A ALMA IMORTAL ENQUANTO EVIDNCIA ONTOLGICA: OS
CONCEITOS DE SEPARAO E ISOLAMENTO
................................................................................................................................... 19
2.3 O FLUXO HERACLTICO E A IMPOSSIBILIDADE DE DEFINIR O SER OU
DA POSSIBILIDADE DE FALAR DO NO-SER............................................... 24
2.4 O SER PARMENDEO OU DA NECESSIDADE DE SUA
..ESTABILIDADE....................................................................................................... 28
3 A CONVICO DE SCRATES DIANTE DA MORTE: DELIMITAES
ENTRE CORPO E ALMA........................................................................................ 35
3.1 O LOGOS SOCRTICO E O PANO DE FUNDO DO DILOGO......................... 35.
3.2 SCRATES E A MORTE.......................................................................................... 40
4 A EIKASIA UMA IMAGEM ILUSRIA ........................................................ 46
4.1 OS CONTRRIOS. ................................................................................................. 46
4.2 A REMINISCNCIA............................................................................................. 52
4.3 O LUGAR DO ESTTICO-SOMTICO.................................................................. 57
4.4 A EIKASIA, PISTIS, DIANIA E A NOSIS: INSTRUMENTOS DE
APREENSO DO REAL.......................................................................................... 59
5 CONSIDERAES FINAIS .............................................................................. 60
REFERNCIAS .................................................................................................. 63
9
1 INTRODUO
O Fdon um dilogo tido como da maturidade platnica. Ele um dos quatro
dilogos de Plato que se referem condenao de Scrates (os outros trs so: Crton,
Eutfron e Apologia de Scrates). Nele est contida a ltima discusso que Scrates teve com
seus discpulos. Scrates fora julgado e condenado pena de morte sob a acusao de
corromper a juventude. De acordo com a tradio grega, os condenados morte tinham que
beber a cicuta, veneno que, aos poucos, paralisa todas as funes do corpo at que resulte na
morte do indivduo. Este dilogo, em especfico, a narrao que Fdon faz a Equcrates,
contando como se deu e o que ocorreu no ltimo dia de vida de Scrates. Fdon comea ento
a relatar como estava Scrates, descrevendo detalhadamente a ltima discusso que o mestre
teve com seus discpulos Cebes e Smias.
O quadro dramtico do dilogo mostra que os amigos e discpulos de Scrates foram
visitar- lhe neste dia to penoso para eles. Sua esposa e filhos estiveram tambm presentes.
Fdon esteve bem prximo de Scrates no momento, relatando o desespero de Xantipa, sua
esposa, ao saber que aquele seria o ltimo dia no qual estaria ao lado do esposo. Comovidos
com tal cena e penosos com a possibilidade de no mais estar ao lado de seu mestre, os
discpulos tambm ficam inquietos e comovidos quanto sua morte. Scrates, por sua vez,
percebendo que seus discpulos estavam atnitos com a perda do mestre, comea ento a
relatar a felicidade que o verdadeiro filsofo deve sentir ao ter a certeza de que est prestes a
conhecer a verdade em sua instncia maior. O Fdon o dilogo no qual est contida a Teoria
do eidos, tema fundamental para a problemtica que desenvolvo nesta pesquisa. A leitura que
fao para tal relao do particular com o eidos que nessa relao est estabelecida uma
hierarquia conceitual que necessrio separar e isolar tanto o corpo quanto a alma para que
seja possvel haver distino de cada parte. Este trabalho tem o intuito de descartar qualquer
tentativa de separar cosmologicamente o particular da Ideia, negando a viso dualista que
muitos tm da realidade enquanto tal. No Fdon, a apreenso dessa realidade una que se d
em nveis distintos: no nvel sensvel e no nvel inteligvel. No nvel de apreenso sensvel, os
sentidos somente so capazes de capturar e apreender a realidade em um nvel inferior, isto
por causa de sua natureza carente de perfectude. No nvel inteligvel o pensamento refletido
em si mesmo tem a capacidade de conhecer o que verdadeiro. Isso somente ocorre quando a
alma tem por objeto o que verdadeiro, o que nunca muda e o que no est suscetvel ao
10
devir; tendo essas coisas por objeto de conhecimento a alma possui uma natureza
incorruptvel e perfeita.
Para tal abordagem h neste trabalho estudo sistemtico de todo o dilogo,
percorrendo, dentro da limitao que possui tal pesquisa, todas as argumentaes que Scrates
utiliza para demonstrar a relao da alma com a imortalidade. Postos estes argumentos, h um
trabalho filolgico dos conceitos utilizados e de suas conseqncias dentro da apresentao
dialtica da realidade enquanto tal. No h uma preocupao com o aspecto historiogrfico
dos acontecimentos relacionados morte de Scrates. Isso no to relevante para uma
abordagem filosfica dos conceitos platnicos. Plato monta todo um cenrio para colocar
Scrates diante da morte e mostrar a reao de insatisfao de seus discpulos com tal
situao. Todo esse cenrio tem tambm uma significao. O homem comum fadado a olhar
para a realidade somente atravs de seus sentidos, tendo como verdade as coisas que se
apresentam a eles. O filsofo, pelo contrrio, observa a realidade com os olhos da alma. A
preocupao do filsofo com a causa ltima do ser das coisas e com as coisas mesmas.
Scrates expressa sua alegria em estar diante de sua morte, pois somente a partir dela seria ele
capaz de ter o acesso definitivo ao conhecimento do verdadeiro. Plato mostra sempre duas
perspectivas de abordagem; a de Scrates, sempre filosofando sobre as coisas excelentes e a
perspectiva de seus discpulos, sempre preocupados e voltados para o que terreno e
perecvel, por exemplo, o corpo de Scrates.
Scrates comea ento a relatar a alegria que sente ao saber que vai se despir
definitivamente daquilo que, quando consultado sozinho, o impede de ter o conhecimento
verdadeiro. (Fd., 65b). Nessa temtica Scrates cita o que diz uma antiga tradio. o que
diz uma antiga tradio e no o que Scrates est dizendo. Toda a abordagem a essa antiga
tradio, ao orfismo em especial, sempre na tentativa de metaforizar os conceitos rficos
sobre alma, corpo e de uma possvel vida no alm. A abordagem dessas doutrinas no pode
ser tomada como uma afirmativa socrtica. O que Scrates quer discutir com seus discpulos
vai alm de uma concepo religiosa sobre a alma. As doutrinas das religies de mistrios,
principalmente as do orfismo, so utilizadas como ferramenta para a explicao de uma coisa
que est para alm destas doutrinas. O problema est em atribuir a Plato o que uma
peculiaridade da doutrina religiosa. Scrates em nenhum momento est preocupado em
afirmar religiosamente o destino da alma ou mesmo de uma vida que a alma ir viver logo
aps abandonar o corpo ao qual est presa. A abordagem do orfismo para demonstrar,
11
filosoficamente, a contradio que h entre a alma e o corpo. O homem, para Plato,
constitudo de duas partes, tanto da alma quanto do corpo. A negao do corpo para o orfismo
tinha uma conseqncia religiosa no tocante ao destino da alma e da vida no alm. Essa
concepo religiosa no caracteriza a filosofia platnica. O problema para Plato quando a
realidade tida como verdade na relao corprea com o particular, com aquilo que se
apresenta aos sentidos. nessa perspectiva que o corpo, com sua apreenso sensvel, tem um
carter negativo. O filsofo, atravs da morte, morte esta compreendida como o simples
exerccio de viver com a alma apartada do corpo, tem a relao com o verdadeiro. A relao
de semelhana da alma com o que eidtico, com a espcie, ou seja, a relao da alma
com o eidos.
No Fdon, h duas proposies sobre o argumento dos contrrios e so percebidas
como uma tentativa de refletir novamente sobre esses dois nveis de realidade. Em um
primeiro momento, Scrates fala sobre as coisas que possuem contrrios. A primeira
proposio fica caracterizada pelas coisas de natureza deveniente, que possuem uma gerao
cclica. Na segunda proposio Scrates est afirmando sobre os contrrios em si, e no das
coisas que possuem contrrios. O contrrio em si no pode aceitar a gerao nem a corrupo.
O contrrio em si ingnito, no tem uma causa externa, ele causa de si mesmo. Essa
abordagem desse momento de reflexo mostra a relao do particular, o que possui contrrio,
com o eidos, o contrrio em si mesmo. A teoria da reminiscncia e a teoria das idias so
tambm abordadas nessa mesma reflexo de significao da imortalidade da alma. Este
segundo captulo pode ser tambm entendido como a segunda parte do dilogo. Esta segunda
parte que justifica e fundamenta a primeira parte, onde ficou caracterizada uma abordagem
metafrica dos Mistrios. Scrates est dando um salto na reflexo, mas, s poderia fazer isto
tendo apresentado as primeiras categorias que serviriam de base para a reflexo sobre a
imortalidade da alma.
Direciono este trabalho para a concluso, mostrando este salto que Scrates d em
busca da causa ltima do Ser das coisas. Esse Ser das coisas, que o eidos, somente pode ser
distinguido com o inteligvel, ou seja, com a alma que imortal. Toda a tentativa de mostrar
que a alma imortal para testificar que o conhecimento verdadeiro dar-se sempre na relao
que a alma tem com o eidos. Dentro desta perspectiva que mostro que no necessrio
dividir a realidade cosmologicamente.
12
2 COMPREENDENDO O FDON
O Fdon a exposio do ltimo lgos socrtico. a ltima utilizao da potncia
cognitiva de Scrates para expressar seu lgos. Esse contexto do dilogo platnico a ltima
investigao filosfica de Scrates e no poderia abordar outro tema seno o significado
filosfico da alma imortal e sua congenialidade com o eidos. O cenrio do dilogo a morte
espreita de Scrates e o que Plato apresenta o lgos socrtico sobre a morte e a alma
imortal. Ento, o que falou ele diante da morte?(t on d stin tta epen nr pr to
thantou?) (Fd., 57 a). 1
2.1 ARGUMENTOS ONTOLGICOS NO FDON
A abordagem ontolgica no Fdon tem como referncia um contexto muito particular:
o da ltima via de demonstrao de que a alma imortal. Nosso interesse primeiro partir da
compreenso de que o eidos o ncleo fundamental e fundante de toda a filosofia platnica, e
apresentar uma leitura de que o lgos socrtico, no caso especfico do Fdon, possui refgio
necessrio para o esclarecimento e onde Plato consegue justificar a possibilidade de se
falar da estrutura do Ser. O discurso socrtico o que postula a imortalidade da alma como
condio nica e irremedivel para a phrnesis.
Os argumentos ontolgicos no Fdon tais como as condies para a existncia do Ser
e a possibilidade de conhecer e discursar sobre este Ser esto ligados a ultima via de
demonstrao de que a alma imortal. A leitura tradicional dos platonistas interpreta o Fdon
como sendo uma tentativa de provar a imortalidade da alma. Vamos de encontro a tal leitura,
preferindo a linha de raciocnio de L. Robin, A.P. Mesquita, Monique Dixsaut e David Ross,
percebendo no discurso de Scrates muito mais preocupao em fazer uma reflexo sobre o
significado filosfico da alma imortal do que comprovar essa imortalidade da alma. Para
incio esclareceremos que o termo grego referente imortalidade, athanasia, (Fd., 95c7) no
muito utilizado por Plato, o que Plato apresenta a alma imortal, athanatos psych.
1 Traduo livre. Em alguns momentos sero necessrias algumas tradues livres para a melhor compreenso
dos termos em grego. Teremos como auxlio o texto estabelecido por John Burnet, 1911. Algumas tradues
tambm sero utilizadas quando os termos tiverem uma aproximao maior com o texto estabelecido em grego.
13
(Fd.,100b).
H uma gama de trabalhos nos quais o propsito principal discutir uma possvel
teleologia prtica a cada dilogo de Plato, bem como, a partir da estrutura literria de seus
Dilogos, encontrar uma evoluo em seu modo de pensar e de expor sua filosofia. David
Ross em um texto de 19762 apresenta a discusso feita por Constantin Ritter3 sobre a lista de
dilogos que seriam cannicos e de autoria certa de Plato.4 O que nos interessa que mesmo
havendo divergncias de catlogos, a ltima tetralogia e o perodo no qual Plato antecede
esse ltimo momento enquanto filsofo caracterizado pelas discusses polticas referentes
nossa pesquisa. Se levarmos em conta essa discusso, tanto David Ross quanto Antonio Pedro
Mesquita chamam a ateno para o fato de que toda especulao sobre a filosofia platnica
tem desdobramentos muito subjetivos. H vrias escolas de estudos platnicos. Algumas que
entendem o intelectualismo socrtico5 como uma imaturidade em Plato de conseguir escrever
sua filosofia voltada ao campo tico-epistemolgico, no dando indcios ainda de sua
ontologia e outras escolas que apontam para uma filosofia sistemtica, onde nos dilogos
socrticos, j h a exposio de sua ontologia. A apresentao deste arcabouo dos escritos
platnicos e seus possveis desdobramentos so para ilustrar o quanto esse corpus possui um
to grande nmero de especulaes possveis sobre seus escritos. Portanto, partiremos do
Fdon, levando em considerao as filosofias de Herclito, Parmnides e Scrates.
Entendemos que cada dilogo tem fim em si mesmo, no cabendo resposta s aporias
deixadas propositadamente em algum dilogo que trate de uma teoria semelhante.
Diante de uma significativa diversidade de teorias apresentadas, podemos localizar
argumentos que nos apontem desde um Plato prioritariamente poltico, pois sua teoria
catrtica da alma, (Fd., 66e) tem uma preocupao com a fundao de uma cidade em novos
moldes, j que na medida em que estabelece um Bem a ser alcanado, regula a conduta de
toda a plis, at um Plato predominantemente lgico e epistemolgico, pois prossegue no
mtodo socrtico investigativo sobre uma tese unificadora das muitas respostas dadas ao que
seja o Ser. na fuga de um relativismo tanto do plano ontolgico quanto do epistemolgico e
2ROSS, William David. Teoria das idias. 1976 3 RITTER, Constantin. Kerngedanken der platonischenphilosopkie, 1931. A referncia feita por Ross dada
ao texto traduzido para o ingls em 1933. 4 Esta obra de Ritter a mais bem aceita entre os crticos da literatura platnica. Outros pesquisadores tambm
so apresentados na obra de Ross: Arnin, Lutoslawski, Raeder e Wilamowits. 5 Dilogos em que Scrates aparece em primeiro ato: Hipias menor: (agir humano) - Apologia: (discurso de
defesa) - Eutifron: (piedade e impiedade) - Criton: (justia) - Hipias (maior: esttica) - Laqus: (coragem) - Lisis:
(amor)
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tico-poltico que Plato tenta resolver as dificuldades que surgem ao tentar descrever sua
teoria do eidos. Observemos o momento em que uma Forma eidtica surge como hiptese:
-Quando , pois, que a alma atinge a verdade? Temos de um lado
que, quando ela deseja investigar com a ajuda do corpo qualquer questo
que seja, claro, a engana radicalmente.
- Dizes uma verdade.
No , por conseguinte, no ato de raciocinar, e no de outro modo,
que a alma apreende, em parte, a realidade de um ser?
-Sm.
- E, sem duvida alguma, ela raciocina melhor precisamente quando
nenhum empeo lhe advm de nenhuma parte, nem do ouvido, nem da vista,
nem dum sofrimento, nem sobretudo dum prazer mas sim quando se isola
o mais que pode em si mesma, abandonando o corpo sua sorte, quando
rompendo tanto quanto lhe possvel qualquer unio, qualquer contato com
ele, anseia pelo real? (Fd.,65c)
Essa sentena j aponta a relao entre a realidade e a aparncia, relao entre o que
possui a capacidade de afetao (pathos) os sentidos (aisthesis) e a instaurao de algo, (o
Ser), que resiste tanto contingncia apontada por Herclito quanto resiste tambm s ms e
incompletas descries a partir do que os sentidos conseguem perceber aquilo que os afetam
(Fd., 65 a). Plato ainda no expressa literalmente a palavra theoria, nem mesmo o termo
eidos, mas, hipoteticamente, os elementos constitutivos desta vo gradativamente emergindo
no decurso da investigao, nos sucessivos argumentos do logos socrtico. Preferimos
estabelecer uma diviso lgica do dilogo, apresentando-o nesta mesma configurao,
dividido em duas partes. A primeira parte fica caracterizada pelos argumentos de ordem
mitolgica, onde Plato, aparentemente, faz de Scrates um conhecedor dos mistrios,
defendendo a crena em uma perpetuao da alma, identificando-a como algo independente
prpria existncia materializada no corpo. A segunda parte do dilogo a prpria tentativa de
tentar outra forma de discursar, no se utilizando tanto dos conceitos de cunho estritamente
religiosos, mas tendo a pretenso de apresentar uma segunda navegao, outros argumentos
que fossem capazes de esclarecer e evidenciar sua theoria de que h uma distino entre o
inteligvel e o sensvel.
Abandonamos, por hora, a primeira parte do dilogo e partamos para o que
entendemos ser o centro temtico da abordagem ontolgica do significado filosfico para a
alma imortal. Decidimos deixar essa primeira parte do dilogo um pouco separada, para no
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nos deixar contaminar com suas insinuaes. Nossa proposta de trabalho deve partir do fim
porque a verdade est no incio.
a partir do conceito de (apallagen) e de (khrs) (Fd., 64c ), que se desenvolve a
discusso que aponta uma separao entre o modo de as coisas estarem em perptuo estado de
fluxo no mundo sensvel e aquilo que poderia de alguma forma fundamentar esse modo de as
coisas serem instveis. A perspectiva prpria do pensamento platnico , pois, a da relao,
ou melhor, de certa relao entre unidade e multiplicidade, que a lgica que tradicionalmente
sobre ela incide, de matriz aristotlica, no pode apreender sem imediatamente alterar. 6
A questo platnica a pergunta pelo que consiste o Ser das coisas, enquanto elas so
o que so. Mas que poderemos dizer, Smias, do seguinte: afirmaremos a existncia do justo
em si mesmo, ou a negaremos? (famn ti einai dikaios auto e ouden?)e tambm a do belo em
si mesmo e a do bom em si mesmo? (kals Ge ti kai agaths?) (Fd., 65d). O fato fundador
da teoria das ideias precisamente a clareza e conscincia de que, se as coisas so algo, aquilo
que as coisas so no se confunde todavia com elas. O argumento prossegue e Scrates ento
indaga se possvel atingir o conhecimento do que em si e por si mesmo, (ti kal auto
kath auto ka gath), (Fd., 65d) por intermdio de algum sentido. Na impossibilidade dos
sentidos conhecerem as instncias que so em si e por si, (auto kath at), Scrates ento,
apresenta os conceitos de separao, (apallag), e isolamento, (khrs). Ao distinguir e por os
rudimentos da separao entre o que os sentidos conseguem perceber e o Ser verdadeiro de
cada coisa que os sentidos percebem, nessa operao e distino que reside o conceito de
morte. Com mais clareza, podemos dizer que, perceber no conhecer.
Ao explicar o que o justo em si mesmo, belo em si mesmo e o bom em si mesmo,
Plato tenta evidenciar a existncia de uma instncia capaz de transcender a faculdade
aisthtica do homem.
Assim, pois, a uns podes tocar, ver ou perceber por intermdio dos
sentidos, (aisthesis); mas quanto aos outros, os seres que conservam sua
identidade, no existe para ti nenhum outro meio de capt-lo seno o
pensamento refletido, {dianoias logismoi}, pois que os seres desse gnero
so invisveis {aid}, subtrados viso, {oukorat}. (Fd., 79 a)
6 Aristteles na Metafsica critica a teoria das ideias platnica, mas, no consegue se desvencilhar dos conceitos
herdados por Plato.
16
Plato conclui com esta tese de congenialidade entre a alma e as ideias, ou se
quisermos, o que Plato est dizendo que a alma a instncia na qual as ideias se
movimentam e se comunicam. Para essa discusso apresentarei estas trs teses como substrato
para a reflexo do objetivo deste primeiro captulo, que a apresentao das principais
implicaes sobre o contedo ontolgico no Fdon.
Plato desenvolve trs hipteses, que apontam o mtodo geomtrico de raciocinar. A
observncia de tal mtodo utilizado mais importante do que o contedo do dilogo entres
Scrates e seus discpulos. Scrates em um primeiro momento se utiliza do discurso mtico-
religioso (mythologein)(Fd.,61e) para evidenciar que pensamento, (dinnoia) estabelece
relaes independentes de primazia sobre os sentidos. As trs hipteses so; a anmnesis, os
contrrios (enantios) e uma terceira hiptese que justamente no s o desenvolvimento das
outras duas hipteses como o cerne da discusso sobre a psykh imortal, pois o que Plato
conclui com esta terceira hiptese a congenialidade entre a alma e o eidos. A possibilidade
de conhecimento do Ser est condicionada sua estabilidade. As hipteses vo
geometricamente avanando at conseguir atingir princpios anipotticos. Esses princpios so
os condicionantes da primazia da contemplao sobre a percepo.
Vrios conceitos filosficos so criados por Plato, logo o argumento da alma imortal
s poderia ter um significado filosfico. Tenho muita esperana de, por esse modo, explicar-
te a causa mencionada e chegar a provar que a alma imortal, {tn atan epideksein ka
neyrs ein thnaton psych.} (Fd.,100b). Somente depois de desenvolver as principais
temticas do dilogo e logo aps ter exposto a reminiscncia, Scrates esclarece seu real
desejo com suas argumentaes, apresentar a (prhnesis) como uma atividade separada e
independente da intuio. Todo o dilogo serve como um preparo para seus discpulos
entenderem melhor o momento da exposio desta teoria.
Entendo a Teoria das ideias como o momento mximo e central do dilogo. Plato
dedica poucas palavras para exp-la, como se ela fosse de menos importncia que todos os
conceitos tratados no dilogo, mas isso apenas porque a Teoria do eidos tem um carter
conclusivo daquilo que Plato pretende apresentar no Fdon. A simplicidade deste argumento
demonstra que todo o trabalho de investigao argumentativa deixou o legado para uma
concluso da instaurao da alma imortal como uma atividade real e com a capacidade de
pensar (dynaminvkei ka phrnsin). (Fd., 70b).
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Plato apresenta a discusso sobre a phrnesis no que entendemos ser a segunda
parte do dilogo, que a possibilidade da instaurao de um Ser estvel com as consequncias
de seu conhecimento e as possibilidades do logos descrever este Ser estvel. Metaforizando o
eclipse solar, Scrates mostra mais uma vez a deficincia de se querer conhecer a verdade
atravs dos sentidos. Nesse contexto, afirma:
Lembrei-me disso e receei que minha alma viesse a ficar
completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os
objetos e tentasse compreend-los atravs de cada um de meus sentidos.
Refleti que devia buscar refgio no Lgos,e procurar no lgosa verdade
das coisas, {e to lgous kataphygnta n kenoi skopen tn ntn
t n ltheian}. (Fd.,99e).7
Scrates procura refgio em outra maneira de investigao que ele chama de segunda
navegao. um segundo caminho, o refgio no Lgos. Este termo de difcil traduo.
Algumas tradues apresentam o termo como ideia, outros como noes inteligveis, mas,
essa traduo alm de apressada tambm mais uma interpretao do inteligvel. Refugiar-se
no Lgos o caminho para estabelecer as noes inteligveis, mas, no nos obriga a traduzi-lo
por noes inteligveis.
No desenvolvimento da discusso Cebes e Smias ainda no esto convencidos
plenamente a respeito dos argumentos anteriores utilizados por Scrates. O princpio
estabelecido diz respeito alma imortal, segundo o qual a alma, quando contempla o eidos
aparentada e se assemelha com os seres reais e puros. A alma imortal quando tem a mesma
natureza do eidos, quando tem por objeto de conhecimento o que h de mais verdadeiro em
todas as coisas. A alma do homem comum se deixa levar pelas concupiscncias e prazeres do
corpo. O que Scrates sugere que, o quanto puder, o filsofo deve manter a alma afastada do
corpo, (Fd., 65a).
No tocante ao Ser, Scrates utiliza uma terminologia causal para apresent-lo. O eidos
no somente a natureza real e verdadeira como tambm a causa de todas as coisas. O mundo
sensvel est ontologicamente submetido primazia causal do eidos.
Tentarei mostrar-te a espcie de causa que descobri. Volto a uma
teoria que j muitas vezes discuti e por ela comeo: suponho que h um
belo,um bom, e um grande em si, {ti kals auto kath auto ka gaths ka
7 Traduo livre. O termo , Lgos de difcil traduo, ento, mais prudente mant-lo na traduo.
18
mega}8e do mesmo modo as demais coisas.(Fd., 100b).
Desprezado o mtodo dos filsofos da phsis,9 inclusive Anaxgoras, Scrates aponta
a causa inteligvel para a compreenso do real. Cebes e Smias j conhecem esses argumentos
pelas repetidas vezes em que Scrates j discutira sobre tal tema. A possibilidade de
existncia de um Belo em si mesmo, um Bom em si mesmo e um justo em si mesmo. A
existncia do que em si e por si mesmo pe em outro polo a instabilidade necessria ao
mundo sensvel. H um perptuo estado de fluxo essencial realidade sensvel. Mas, se todas
as coisas esto em um perptuo estado de fluxo porque h uma causa (aitia) para que todas
as coisas estejam assim. Os objetos sensveis, encarados na filosofia da natureza, como
causas, so compostos, uma vez que so constitudos de outros inmeros elementos. Por isso,
se transformam, mudam de natureza, podem ser divididos, no se conservam como so, e os
compreendemos somente pelos sentidos. (Fd., 78c). Por outro lado, h os que se encontram
acima dos sentidos, que so inteligveis, como o Igual em si, o Belo em si, enfim toda e
qualquer realidade em si, captada com a inteligncia refletida em si mesma (Fd.,78d). Esses
entes, diferentes dos primeiros, so invisveis, simples, indivisveis, permanecem sempre
como so, no mudando nunca, mantendo eternamente sua forma, e os compreendemos
exclusivamente com o pensamento puro. Esse processo fica evidenciado pela longa e
demorada exposio da ktharsis necessria aos iniciados nos mistrios. Essas afirmaes so
para provar que o homem tambm constitudo de duas instancias, o corpo e a alma. O corpo,
por estar sempre em contato com as coisas que possuem o devir, visvel e perecvel. A alma,
quando contempla o eidos em si e por si mesmo, invisvel mantendo sempre idntica a si
mesma, no mudando nunca. A reflexo sobre a imortalidade se d a partir dessas afirmaes
genricas a respeito da alma e do corpo. A alma, quando refletida em si mesma (dianoias
logismoi) se assemelha ao que eterno e imortal, tornando-se assim sua natureza tambm
imortal. O que a faz titubear a influncia do corpo, quando ela se encontra na mistura que
o homem consiste, justamente porque ela se encontra na mistura que ela no est
imediatamente em si e por si. A alma quando anseia o conhecimento por meio dos sentidos
assemelha-se s coisas temporais, logo no pode haver epistemedas coisas sensveis, somente
doxa. O exerccio da filosofia consiste na fundamentao da imortalidade da alma. no
8 Mostro a expresso para apontar os conceitos usados por Plato, pois a traduo j est posta ante a expresso.
9 Assim so conhecidos os filsofos que apontaram uma causa natural como arch.
19
exerccio de viver com a alma apartada do corpo no tocante a apreenso do conhecimento
verdadeiro que a alma se torna imortal, ao apreender somente a ousia de todas as coisas.
2.2 A ALMA IMORTAL ENQUANTO EVIDNCIA ONTOLGICA: OS CONCEITOS DE
SEPARAO E ISOLAMENTO
Entendemos que Plato faz uma diviso lgico-estrutural do dilogo, deixando na
primeira parte do dilogo uma reflexo a partir de sua apresentao mitolgica10 da
imortalidade da alma.11 Na concepo de imortalidade da alma, apresentada no Fdon, Plato
expe uma re-compreenso metafsico-gnosiolgica do conceito de morte. a partir deste
conceito que enveredamos a investigao, pois, segundo Plato,
A morte nada mais do que a separao da alma do corpo, {hts
psykhs apo to smatos apallag}ou seja, consiste nisto: apartado da almae
separado dela, o corpo (smatos)permanece isolado (khrs) em si mesmo; a
alma,por sua vez, apartada do corpo e separada dele, permanece isolada em
si mesma {aut kathhaut}. (Fd., 64 c-d).
nesse estado de isolamento (khrs) em que a alma e o corpo esto distintos no modo
de conceber a constituio antropolgica que Plato traz tona a discusso de sua ontologia.
a partir desta khrs que se evidenciam ambas as naturezas, tanto da alma quanto do corpo.
preciso separar para distinguir claramente. Toda a primeira parte do dilogo uma tentativa
de impor a condio de impossibilidade de reflexo, j que na constituio antropolgica o
corpo um entrave e por ser impuro no dotado da capacidade de reflexo (dinnoia).
Ento, toda a primeira parte do dilogo serve para impor essa condio de separao no modo
operatrio de pensar e sentir.
10Mythologein. Discursar em forma de mythos.
11 Por isso a abordagem ao orfico-pitagorismo
20
Estando a morte sob a condio primeira do pensar (logdzestai)Plato ento
subentende esta condio de morte e apresenta a distino do Ser.
Assim, pois, a uns podes tocar, ver ou perceber por intermdio dos sentidos, mas quanto aos outros, os seres que conservam sua identidade, no
existe para ti nenhum outro meio de capt-lo seno o pensamento refletido
{, dianoiaslogismoi} pois que os seres desse gnero so
invisveis (aid) e subtrados viso (oukorat). (Fd., 79 a)
Plato em nenhum momento tenta, e neste caso no poderia dar provas concretas da
existncia das ideias. O que podemos, por enquanto, entender que as ideias no so uma
prova, j que a ideia evidncia por si mesma. MESQUITA, A. P. expressa bem essa
tentativa de apresentar a ideia enquanto evidncia. Sigamos este mesmo raciocnio.
Contudo, precisamente porque se trata aqui de uma evidenciao,
para lhe assistir no h agora que ir procurar os locais onde Plato
alegadamente procede a uma fundamentao da ideia, isto , no h agora
que ir investigar as provas da ideia. mister apenas, pelo contrrio,
atentar no prprio modo como a ideia surge no texto platnico, em
obedincia a uma lgica de fundamentao no j da ideia, mas daquilo
que justamente a requer como fundamento.12
Para tal tarefa, Plato, em sua epistemologia, condiciona o conhecimento verdadeiro
contemplao que a alma tem, quando est em si e por si mesma,das coisas que so tambm
em si e por si. (Fd., 66 a). Estes so os argumentos ontolgicos do Fdon, cabe-nos agora
apresentar a segunda parte do dilogo onde esses argumentos so utilizados para evidenciar a
existncia do SER estvel. A evidncia da ideia traz consigo um processo de contradio no
modo operatrio de evidenci-la. Como ento fundamentar a constituio antropolgica, j
que o homem no somente alma, mas tambm, seu contrrio, corpo?
a partir desta contradio ou diferenciao que Plato apresenta a natureza do eidos.
Se o corpo somente capaz de perceber o particular e o individual no dando cabo ainda de
sua busca pelo ideal, a alma quem realiza esta tarefa. Estando morto e a alma estando
12MESQUITA, A. P. pag. 96
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=dianoi%2Fas&la=greek&can=dianoi%2Fas0&prior=th=shttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=dianoi%2Fas&la=greek&can=dianoi%2Fas0&prior=th=s
21
isolada em si, h um processo chamado de reflexo, dinnoia13. A alma refletida em si mesma
observa que o fundamento de todas as coisas est em sua natureza, no cabendo ao corpo a
observncia deste fundamento, j que o corpo somente capaz de observar as coisas que
possuem sua mesma natureza contingente.
A alma isolada, em si e por si,duplica-se mediante o exerccio filosfico,voltando-se
para si mesma num movimento reflexivo. Isto o que constitui a dinoia,14a reflexo do
pensamento. Para Plato, a dinoia, a reflexo do pensamento, somente possvel sob a
condio de isolamento (khrs). Esse movimento reflexivo que faz a instncia notica da
alma comungar com a instncia verdadeira do real. O conhecimento verdadeiro se estabelece
na reflexo do pensamento (dinoia) mas sua via primeira, na ordem cronolgica, a
percepo sensvel (asthesis). Na asthesis,a alma percebe que h uma deficincia ontolgica
na imagem produzida pelos sentidos. A imagem (eikasia) produzida pela via esttico-
somtica dos sentidos corporais remete a alma no somente ao que particular nas coisas
sensveis, mas, atravs de uma relao de semelhana com a alma, faz ela se dirigir a formas
ideais (Fd.,73 c). Desta forma ento, o conhecimento verdadeiro no se constitui pela
destituio da via esttico-somtica, mas requer como ponto de partida a manifestao
imperfeita da forma na imagem sensvel.15O carter positivo do esttico-somtico figura nessa
re-compreenso da via pela qual a alma ascende s formas ideais. O discurso mtico-religioso
da primeira parte do dilogo para autenticar esse carter positivo da mudana, onde o
discurso mtico-religioso um momento da verdade. H uma iluso necessria no mundo
sensvel. Todos os corpos transmitem e afetam-se com essas iluses produzidas pela eikasia.
As sombras e o reflexo do cu em uma poa de gua evidenciam que essa iluso percorre todo
o mundo sensvel, logo, a eikasia necessariamente uma parte das afetaes da alma. A pstis
pode ser compreendida como os objetos constituintes do mundo sensvel. Os objetos sensveis
afetam de tal modo a alma que cria nela uma crena, ou seja, possvel crer que o cu cabe
em um reflexo na gua. Essa crena o que M. Dixsaut chama de ponto de partida para o
conhecimento, ou primeiro momento da verdade. O corpo est isolado com sua percepo
13 Esse mesmo processo pode ser mais claramente observado na passagem de A Repblica, livro VI, no
diagrama da linha.
14Dinoia - Podemos entender a diania no seu sentido literal: atravs (di) do pensamento(nous). Este movimento
que atravessa o nous, o pe duplicadamente frente a si mesmo. A dinoia a reflexo que o nous tem de si
mesmo.
15 O ponto de partida no , ento, a sensao nela mesma, a sensao refletida como deficincia. Monique
Dixsaut. p. 99.
22
sensvel, e a alma, por sua vez, tambm isolada em si mesma, no momento da reflexo sobre a
imagem concebida pelos sentidos, imagem esta que um outro algo da reflexo. Monique
Disxault mostra essa passagem de uma forma lgica esse processo da asthesisrefletida
como deficincia. AssimafirmaDisxaut:
Le point de dpart nest donc pas la sensation en elle-mme,
cest la sensation reflechie comme dficience. Lobjet peru
acquiert le statut dimage, et dimage imparfaite. Pour prendre
consciencie de ce dfaut de ralit, il faut que lme soit elle-mme
en proie au manque et au dsir. La dficience de lobjet donn
dans la perception nest sensible qu celui qui aspire la ralit
que cet objet n fait quvoquer. (...) La perception dun objet nest
quune perception, elle ne donne pas rflchir celui qui ne
dsire ps la realit vraie, qui nest pas philosophe.16
Esse ponto de partida a asthsis refletida como deficincia. Ao perceber um objeto,
a asthsis num movimento especular faz com que a alma perceba que, com os sentidos
apenas, no se pode conhecer o que verdadeiro. Somente a asthsis refletida em si,
separada da inteleco, causa na alma a conscincia de que falta algo aos sentidos quanto
obteno do conhecimento verdadeiro. A alma do filsofo, e somente a do filsofo, capaz de
refletir com o pensamento em si, separado da aisthsis ,a realidade enquanto tal. Aps essa
especulao da asthesis, a alma sente o desejo de buscar algo verdadeiro por outro meio. A
alma, ento, isolada em si e apartada dos sentidos, consegue inteligir o que h de verdadeiro
em tudo. Quando este segundo processo ocorre, o movimento de concepo ou intelecoda
alma, que tem lugar o momento da reflexo da alma. Ao perceber que falta algo de
verdadeiro na imagem percebida pelos sentidos, a alma volta para si, num movimento
especular, e reflete em si mesma sua prpria realidade. A reminiscncia se concebe neste
ltimo passo, quando a alma refletida em si mesma, contempla o que verdadeiro naquilo que
est investigando, sua natureza arrastada para aquilo que puro, para o que permanece
16 DIXSAUT, M. Introdution. In: PLATO. Phdon. Traduo de Monique Dixsaut. Paris: Flamarion, 1991.
p.99
23
sempre o mesmo, da mesma forma, (Fd., 65c).
Isso faz com que a alma se lembre da realidade verdadeira de todas as coisas. A
reminiscncia se concretiza, ento, quando a alma, mediante uma relao de semelhana, faz
reportar aquilo que percebe sensivelmente quilo que concebe com a inteligncia, recordando
que este saber e essa realidade, que possibilita e condiciona a semelhana, se encontra em si
mesma. A alma recorda apenas porque possui conhecimento prvio, ou seja, a alma recorda
aquilo que em si, a realidade verdadeira das coisas. O conhecimento comea com a
sensao, mas apenas como um recurso para reportar-se s noes da inteligncia. Os
exemplos listados no dilogo, que associam a imagem com um modelo original, evidenciam
que a reminiscncia requer a dupla mediao do desejo e da reflexo. A imperfeio e a
carncia da imagem em relao ao original, e a correspondente passagem da percepo da
imagem para a concepo do modelo evocado pela rememorao, ratificam o fato de que o
princpio de ao da alma se pe como uma orientao ao que perfeito, ao que verdadeiro,
d-se a um movimento que parte da falta, da carncia, da deficincia, o qual se denomina
desejo.
A ocasio para a passagem s ocorre em funo de uma alma que deseja e aspira
ascender a uma realidade idntica sua. A percepo, separada e isolada da concepo,
recebe desta uma significao ideal, e apenas porque, por essa separao (apallag) e esse
isolamento (kris) a alma torna-se semelhante ao que imortal, inteligvel, uniforme,
monoeidos, e indissolvel. a alma do filsofo que imortal, pois somente a alma daquele
que aspira ao conhecimento do que verdadeiro, aquilo que tem sempre a mesma forma e
permanece o mesmo sempre, no mudando nunca, assemelha-se a essas realidades aspiradas.
O argumento da reminiscncia prova que a alma ao recordar a sua realidade em si, livra-se de
tudo aquilo que lhe prende ao corpo com sua corrupo e mortalidade. Esse argumento
tambm utilizado para, a partir dele, Scrates recorrer s ideias como refgio frente
incapacidade dos demais argumentos.
2.3 O FLUXO HERACLTICO E A IMPOSSIBILIDADE DE DEFINIR O SER OU DA POSSIBILIDADE DE FALAR DO NO-SER
24
Para apresentar conceitos referentes ao eidos so necessrias tambm
indicaes iniciais sobre as influncias sofridas por Plato da filosofia de Herclito. A
filosofia de Plato segue em muitos aspectos alguns pensadores precedentes, mas tem suas
caractersticas prprias que a separa de tais filsofos. A compreenso do eidos platnico
enquanto alteridade juno e purificao das filosofias que o precede.
Plato era familiarizado no s com o pensamento de Herclito como tambm com o
pensamento dos heraclticos, principalmente Crtilo17, um heracltico renomado. A herana da
filosofia heracltica pode ser observada na tentativa de Plato em estabelecer a existncia ou
ao menos a possibilidade de se falar do no-ser e distinguir assim a impossibilidade do
conhecimento restringir-se ao plano imanente da physis. Observamos princpios de tal
filosofia aceitos por Plato, mas, com ressalva na possibilidade de refugiar-se no logos e
buscar nele a causa para todas essas coisas, j que no possvel que tal causa esteja presente
neste mundo sensvel de mutao constante. So trs princpios importantes que apresento; 1)
a existncia de duas instncias contrrias entre si, 2) um possvel universal e 3) aquilo que
denominado em conformidade com tal universal. Plato tem como consequncia imediata a
instaurao de formas eidticas para garantir sua epistemologia, pois, para Plato, o
conhecimento s conhecimento (episteme) se tiver por objeto algo que no seja passvel de
corrupo. O cerne da filosofa de Plato demonstrar a dependncia dos objetos sensveis
sobre a possvel ideia, seres no visveis (aoraton).18O impacto que a filosofia de Herclito
tem sobre Plato vem desse posicionamento sobre as coisas que esto diante de ns, a physis.
A impossibilidade de a influncia heracltica ser positiva se dar pelo emprego da palavra
episteme. O que nos importa no a compreenso da filosofia heracltica, mas, a importncia
que tal filosofia teve para a elaborao de algumas teorias platnica que culminar com a
possibilidade da existncia das ideias. Para tanto alguns fragmentos so indispensveis: O
combate (plemos) de todos, o pai, de todas, rei. E uns ele, combate, revelou senhor, outros,
em combate, ele revelou, homem. De uns o combate fez escravos e de outros o combate fez
17Crtilo; (sculo V a.C.). Foi um filsofo grego, discpulo de Herclito de feso. As datas de
nascimento e morte de Crtilo no so conhecidas. No dilogo Crtilo, Plato apresenta-o como sendo mais
jovem que Scrates. Foi mestre de Plato, antes de Scrates, segundo Aristteles (Metafsica, I, 6), ou depois,
segundo Digenes Larcio (III, 6)
18Aoraton No passvel de viso. Aquilo que no pode ser visto, ora.
25
livres.19 Herclito d ao plemos um estatuto to superior ao da distino entre deuses e
homens e escravos e livres. O plemos de todas as coisas pai porque a prpria gerao
(gignetai)20 das coisas no possvel sem a efetivao de uma guerra perene, um combate que
vigora na gerao das coisas. O plemos de todas as coisas rei porque em toda a esfera da
ao humana e na esfera da distino poltica entre os indivduos tambm onde o plemos
vigora. A prpria distino entre homens e deuses inferior presena do combate. A
distino entre livres e escravos determinada pela existncia do combate. Isso o que h de
mais fundamental no pensamento de Herclito; a instaurao do combate como indispensvel
harmonia. A harmonia invisvel superior harmonia visvel.21 H uma harmonia invisvel
no interior deste combate. A harmonia s se explica pela presena do combate, uma harmonia
que no existe sem o combate. A harmonia est na tenso dos opostos. O exemplo utilizado
por Herclito o do arco que um acordo de tenses contrrias. Essas tenses so apenas
contrrias e no contraditrias. Esses conceitos sero abordados posteriormente.22 Existe uma
tenso de sentidos contrrios no arco de tal forma que seria impossvel ao arco no ter tal
tenso. Se no houver tenso no h arco. O arco depende, ento, desta tenso para existir. H
uma aparente harmonia presente nesse perptuo estado das coisas estarem nesse combate.
preciso saber que o combate o comum.23 Assim como para Tales de Mileto24 o comum era
a gua, para Herclito o comum o plemos, pois, tudo combate. A nica possibilidade de
algo universal a presena deste estado de combate. A prpria justia discrdia porque a
discrdia cria a possibilidade de as coisas serem como so. As coisas vm a ser, gnesis,
porque a presena da discrdia nas coisas a expresso da necessidade de as coisas serem
compostas por essa discrdia. O que j podemos observar a caracterizao de todas as coisas
19 DK 53 - As numeraes atribudas aos fragmentos pr-socrticos utilizadas no texto sero estabelecidas a
partir do trabalho feito pelos alemes Hermann Alexander Diels e Walther Kranz. A obra de Diels-Kranz deu
origem citao padronizada dos filsofos pr-socrticos, onde as duas primeiras letras so DKseguida do
nmero correspondente ao captulo referente a cada filsofo.
20Gignetai- tornar-se, vir- a ser, gerar.
21 DK 54. importante perceber que Herclito, o obscuro, escreve de forma aforismtica e intencionalmente no
utiliza o verbo eimi (ser). Herclito em nenhum de seus fragmentos que nos chegaram afirma que algo , ou seja,
a impossibilidade de definio.
22 Plato apresenta, no argumento de Cebes, a alma como harmonia.
23 DK 80
24 Met. A, 3, 983b21. Tstoiutesarches, princpio de todas as coisas.
26
estarem em perptuo estado de fluxo (eireontn). H uma positivao nesse estado, ou
mesmo um elogio mudana, por conta desta guerra sem fim.
Um fragmento que nos servir de apoio para compreender o elogio mudana o
fragmento do rio: Nos mesmos rios entramos e no entramos, somos e no somos.25 Esse
fragmento por ser o mais conhecido de Herclito recebeu as mais diversas interpretaes.
Partamos da mais simples; se o rio gua corrente, o bvio que a cada instante as guas se
tornem sempre passado imediato. As guas fluem constantemente impossibilitando, assim, de
afirmarmos com certeza de est banhando-se nas mesmas guas. No se trata do espao
geogrfico onde se encontra o rio, mas, da composio em que se encontra tal rio. Nesse
fragmento possvel afirmar que entramos no mesmo rio e ao mesmo tempo tambm
possvel dizer que no entramos no mesmo rio. As guas que nos tocam, nos tocam sempre
em um presente eterno, mas, a tentativa de repetio impossvel, pois, as guas j no se
encontram na mesma configurao. As guas que nos tocam no presente eterno jamais
podero voltar a nos tocar novamente, pois, nem as guas so as mesmas, nem quem se banha
no rio mais o mesmo. O fluxo do rio fica, ento, compreendido como o fluxo eterno
presente na natureza. O que possvel afirmar apenas a possibilidade de ter duas assertivas;
a de que entramos no mesmo rio e a de que no entramos no mesmo rio. Isso impossibilita
uma identidade suficiente no objeto para que possa ser definido. Por isso, somos e no somos.
Herclito faz um elogio mudana e a encara de uma forma positiva. A mudana a
expresso da natureza das coisas. O que caracteriza a natureza essa guerra nos objetos. H
na natureza uma guerra dos opostos que se caracteriza como harmonia. O mais belo dos
homens em face aos deuses se manifestar como um smio em sabedoria, beleza e tudo
mais.26 O que Herclito manifesta a possibilidade de dizer, ao mesmo tempo, que o homem
o belo e feio. O homem belo frente aos outros homens, mas, tambm feio quando
comparado com os deuses. Isso impossibilita uma definio certeira sobre o que o homem.
Para Herclito o homem os dois contrrios.
A rota para cima e para baixo uma e a mesma.27 Sobre a mesma rota pode se dizer
que ela para cima em comparao a quem estiver embaixo e , ao mesmo tempo, para baixo
25 DK 49
26 DK 83
27 DK 60
27
em comparao a quem est em cima. Para Herclito possvel afirmar sobre a mesma coisa
os dois contrrios. Nos mesmos rios, entramos e no entramos, somos e no somos. Essa
adio sobre somos e no somos o problema central de Herclito, a conjuno do ser e no-
ser. Herclito deliberadamente manipulador dos opostos, ele gosta desse jogo, por isso seus
aforismos so um tanto obscuros. Conjunes, o todo e o no todo, o convergente e o
divergente, o consoante e o dissonante, de todas as coisas um e de um todas as coisas.28 No
h verbos nem predicaes, mas, h um pensamento que universaliza o combate. Herclito
tambm pode ser encarado como o pensador do comum. O que h de comum o combate,
esse estado de fluxo, portanto a harmonia a presena do combate. Uma anlise positiva da
filosofia de Herclito ou se quisermos antiplatnica vem de Nietzsche:
O dever nico e eterno, a inconsistncia total de todo o real, que
somente age e flui incessantemente, sem alguma vez ser, , como Herclito
ensina, uma ideia terrvel e atordoadora, muitssimo afim, na sua influncia,
ao sentimento de quem, num tremor de terra, perde a confiana que tem na
terra firme. Foi precisa uma energia surpreendente para transformar este
efeito no seu contrrio, em sublimidade e no assombro bem-aventurado.
Herclito chegou a este ponto graas a uma observao do verdadeiro curso
do devir e da destruio, que ele concebeu sob a forma da polaridade, como
a disjuno de uma mesma fora em duas atividades qualitativamente
diferentes, opostas, e que tendem de novo a unir-se. Incessantemente uma
qualidade se cinde em si mesma e se divide nos seus contrrios:
permanentemente esses contrrios tendem de novo um para o outro. O
vulgo, verdade, julga reconhecer algo de rgido, acabado, constante; na
realidade, em cada instante, a luz e a sombra, o doce e o amargo esto juntos
e ligados um ao outro como dois lutadores, dos quais ora a um, ora a outro
cabe a supremacia. O mel , segundo Herclito, simultaneamente amargo e
doce, e o prprio mundo um jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-
se constantemente. Todo o devir nasce do conflito dos contrrios; as
qualidades definidas que nos parecem duradouras s exprimem a
superioridade momentnea de um dos lutadores, mas no pem termo
guerra: a luta persiste pela eternidade fora. Tudo acontece de acordo com
esta luta, e esta luta que manifesta a justia eterna.29
Herclito a conjuno do ser e no-ser e a possibilidade de pensar no ser e no no-
ser. Um outro filsofo que tambm influenciou a ontologia platnica sem dvida nenhuma
28 DK 10 29NIETZSCHE. A filosofia na idade trgica dos gregos. Trad. de Maria I. M de Andrade; reviso de
A. Moro. Rio de Janeiro: Elfos; Lisboa: Edies 70, 1995
28
Parmnides. O ser parmendeo o que mais se aproxima da estabilidade conferida ao
inteligvel. em Parmnides que ocorrer a unidade entre ser e pensar.
2.4 O SER PARMENDEO OU DA NECESSIDADE DE SUA
ESTABILIDADE
O conhecimento s pode ocorrer se houver estabilidade no objeto conhecido. Esta
estabilidade como j vimos no item anterior no pode est neste mundo dos sentidos e da
sensibilidade. necessrio haver uma instncia na qual esta estabilidade seja possvel. A
possibilidade da episteme fica condicionada fixidez do objeto conhecido e,
consequentemente fixidez do uso do pensamento e da linguagem que podero capturar o
conhecimento desse objeto. A noo chave do projeto de Plato e o que nos interessa nessa
pesquisa a influncia que Plato teve do poema de Parmnides para a elaborao de sua
ontologia. Essa influncia inegvel. Por mais que Scrates tenha sido, sem dvidas, a figura
que mais influencia a filosofia platnica, no podemos negar a importncia do poema
parmendeo para Plato. Scrates quem inspira Plato a elaborar hipteses de um
conhecimento imutvel. Esse projeto de uma episteme imutvel baseado nos ensinos
socrticos, mas, a questo socrtica fica suspensa para a apresentao de uma filosofia no
menos importante. Visamos tratar das relaes entre Ser, Pensar e Dizer no poema de
Parmnides. Procuramos demonstrar a relao entre essas trs dimenses, na medida em que
apontaremos as passagens no Fdon em Plato que indicam essa influncia.
Parmnides um dos representantes da passagem da poesia mtica cosmognica de
Hesodo e Homero para a filosofia. O estilo literrio tem relevncia na medida em que se
revela a situao de fronteira entre poesia e filosofia. Assim como Homero, a quem Jaeger30
diz ser o modelador do homem grego, Parmnides atribui deusa a inspirao e declarao
dos ensinamentos. Parmnides narra uma viagem morada da Deusa. A Deusa est no s
presente no poema como ela quem conduz Parmnides via da filosofia. J Homero na
Ilada31 faz um pedido para que a deusa cante a ira do peleio Aquiles. Hesodo no apela para
30JAEGER, Werner Wilhelm. Paidia: a formao do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 4 Ed. So
Paulo: Martins Fontes, 2001 31 HOMERO. Ilada. Traduo de Haroldo de Campos. So Paulo: Arx, 2002-2003. (2v.)
29
a deusa, mas, declara que as musas heliconades o instruram.32 Apenas a filosofia fica
desprovida de Musa, ento, Parmnides busca uma divindade feminina, uma deusa que sirva
de fonte inquestionvel, como instrutora para o seu discurso filosfico. Ao jovem filsofo ser
dado conhecer tanto a verdade redonda (aletheiaeukykleos) quanto a mera opinio dos mortais
(brotndoxas)na qual a deusa nega a existncia de crena verdadeira (pistisalethes). Na
saudao da deusa h uma clara distino entre o caminho da verdade, aquele percorrido pelo
jovem e que o levou prpria Deusa, e a opinio dos homens comuns, os mortais (brotn). A
deusa deixa clara uma distino entre o filsofo, como um iniciado e os demais homens
mortais, que permanecem na situao da opinio comum. No h dvidas de que a deusa
estabelece uma clara oposio entre verdade (aletheia)e opnio (doxa). Verdade e opinio so
excludentes, j que na opinio dos mortais no h nenhuma crena verdadeira. No pode
haver verdade na opinio comum dos mortais. Assim, o filsofo que trilha a senda da verdade
dever negar e livrar-se, de uma vez por todas, da opinio, j que ela s pode ser a via de
completo engano, sequer de verossimilhana. uma distino entre verdade e aparncia. A
oposio entre verdade e aparncia exige no apenas o conhecimento da primeira, mas da
falsa realidade da segunda.33
A clara oposio estabelecida por Parmnides entre verdade de um lado, e opinio e
aparncia, de outro, determinar o desenvolvimento de toda a filosofia grega posterior.
Parmnides influencia Plato a tal ponto que podemos observar a distino de realidades
inteligveis distintas do mundo da sensibilidade. O fluxo heracltico uma ameaa para a
distino de ser e no-ser, por isso Parmnides ganha relevncia para uma instncia na qual
seja possvel uma estabilidade e fixidez. A filosofia parmendia pode ser vista tambm, mas,
no somente, como uma tentativa de preservar o ser. Preservar o emprego da palavra e o
prprio fato de ser. Plato retoma essa identificao entre ser e inteligibilidade e a
desvalorizao da esfera da sensibilidade. Claro que Plato no parmendeo, pois, isso traria
srias consequncias para sua proposta epistmica. A refutao dada por Plato encontramos
em seu dilogo que leva o nome de Parmnides e onde ele comete seu parricdio filosfico.
deter-nos-emos somente no poema na tentativa de acompanhar, sempre sob o olhar platnico,
indcios de identidade entre ser e pensar.
32 Cf. HESODO. Teogonia: a origem dos deuses. Traduo de JaaTorrano. 3. ed. So Paulo: Iluminuras, 1995 33 Ver 1.2 A alma e o logos. Pg.
30
Os poemas escritos em lngua grega so regidos por uma mtrica que ajudam tanto o
rapsodo quanto os ouvintes e facilitam a memorizao dos versos cantados ou recitados. Os
mais de 15.000 versos homricos esto todos regidos pelo hexmetro datlico. uma
conjuno de palavras onde no seu comeo e fim sempre ter uma vogal longa. O hexmetro
datlico mais conhecido e impe ao rapsodo um ritmo que ser seguido por todo o poema.
No poema parmendeo tambm ocorre a mesma caracterizao mtrica. No um hexmetro,
mas o filsofo se esfora para enquadrar cada palavra no verso de modo que ele, por
completo, respeite essa regra de composio. Isso importante, pois, no estudo do poema nos
deparamos com distintas tradues justamente pela dificuldade que os estudiosos encontram
em traduzir os termos calculadamente encaixados no poema. H uma quantidade de slabas
que ele pode utilizar em cada verso, no podendo ultrapassar essa quantia nem mesmo deixar
faltar. Isso torna inevitavelmente o poema rgido, dificultando a compreenso gramatical do
texto.
O poema ainda est submetido por um certo procedimento potico, que difere dos
poemas homricos e hesidicos, pois, o tema central do poema no mais a glria dos
homens, klaandrn, o problema do Ser. A pergunta pelo o que o Ser, a ontologia
parmendea, apresentada em forma de poema. o que chamei de momento de transio da
poesia para a filosofia. O poema comea com a recepo da deusa e a explicao das duas
vias, dois caminhos, ods, a via da verdade e a via da opinio. Essa distino pode ser
observada em Plato quando ele pe em oposio episteme e doxa.
Os corcis que me transportam, tanto quanto o nimo me impele,
conduzem-me, depois de me terem dirigido pelo caminho famoso
da divindade, que leva o homem sabedor por todas as cidades.
Por a me levaram, por a mesmo me levaram os habilssimos corcis,
puxando o carro, enquanto as jovens mostravam o caminho.34
O poema comea com o jovem Parmnides sendo conduzido por uma carruagem,
guiado pela deusa. A deusa recebe Parmnides em sua morada e lhe revela duas vias, dois
caminhos (hodoi). O radical de hods o mesmo de mtodo, pois a palavra mtodo vem do
34 , ,
,
,
,
Parmnides. Da Natureza,Traduo do Professor Dr. Jos Gabriel Trindade Santos. Modificada pelo tradutor.
Primeira edio, Loyola, So Paulo, Brasil, 2002. Original em grego, conforme o texto estabelecido por J.
Burnet.
31
radical hods. Podemos entender essas duas vias como dois mtodos. Um pode ser aplicado e
o outro dentro da filosofia de Parmnides no pode nem ser pensado. A via da verdade
aquela na qual sabemos o que o Ser. J a via da opinio aquela na qual, por definio, o
local do erro e do engano. Plato tambm faz, no Fdon uma distino entre opinio e
episteme.
Aps saudar a chegada do poeta a deusa ento fala desses dois caminhos:
E a deusa acolheu-me de bom grado, mo na mo direita tomando, e com estas palavras se
me dirigiu ...pois o mesmo pensar e ser (togar auto noeinestin te kaieinai).35 Essa
identidade entre ser e pensar fundamental para a ontologia platnica. Para Plato o que vale
para o ser vale para o pensamento. O ser parmendeo o que , a nica coisa que pode ser dito
dele que ele . O ser para Parmnides compreendido como o particpio presente do eimi. O
particpio presente do verbo caminhar o ambulante (particpio presente latino do verbo
ambulare). Desta forma o particpio presente do verbo estudar o estudante. Nessa mesma
perspectiva compreendido o ser parmendeo como aquilo que . Parmnides j d indcios
de que impossibilitar falar sobre o no-ser. Dizer que algo , impossibilita assim, dizer que
ele no , pois o ser s pode ser. A impossibilidade no se d somente no discurso mas a
prpria associao entre ser e no-ser fica comprometida. Esse o momento da ruptura
platnica com Parmnides, para a teoria das ideias Plato acrescenta o conceito de alteridade
no qual ser possvel falar do sujeito sem que ele esteja implcito na proposio.
Parmnides ento prossegue descrevendo que a primeira via de inqurito deve ser
evitada, pois a via do no-ser, do nada, mas h uma outra via, verdadeira na qual o ser pode
ser dito e pensado. Se no houver ser no discurso, h apenas o nome, apenas uma palavra
vazia, impossvel de ser pensada. O pensar sempre sobre o ser direcionado, nunca sobre o
no-ser. A musa descreve essa via como a via dos mortais, onde a errncia dos indivduos
andar desnorteados, sem saber distinguir nada, como cegos, perplexos e indecisos em massas
para as quais o ser e o no-ser so dados como o mesmo e o no-mesmo.
O que nos interessa a impossibilidade de associar ser e no-ser e perceber que
tambm h uma via na qual h uma massa de indivduos na esfera da opinio, pois falar do ser
e do no-ser engano. A via da opinio no a via do no ser a via que mistura ser e no-
ser. Sobre o ser no pode dizer que ele foi ou que ser, ele deve ser ingnito e indivisvel, uno
e eterno. O ser no pode ter incio nem fim, pois, isso seria colocar o no-ser em sua
35 Parmnides. Da Natureza. Frag. III
32
constituio. Se ele no for uno, ele ter partes. Se o Ser tiver partes, uma parte em relao
outra no-ser.
Fica ento estabelecida a fixidez do Ser com seus desdobramentos. Partamos para um
outro filsofo que nos servir de auxlio na compreenso da ontologia platnica. Ele
ningum menos do que seu mestre, a quem dedicou boa parte de sua produo filosfica.
Scrates a personagem principal dos dilogos platnicos, chamados dilogos socrticos,
onde em primeira cena, Scrates dialoga com seus discpulos na prtica de sua cincia
conhecida como maiutica.36
2.5 SCRATES E A PHRNESIS
Se a filosofia de Herclito um impedimento para a definio e predicao,
Parmnides influencia positivamente ao associar Ser e Pensamento, imutabilidade e
identidade. Uma predicao s possvel se, necessariamente, A e B forem estveis, podendo
associar A a B sem dificuldades. A predicao segura a herana para Plato compreender a
filosofia socrtica. Encaramos Scrates como o pensador do universal, quem melhor expe
essa questo. Aristteles descreve Scrates como aquele que se ocupava de questes ticas e
negligenciava o mundo natural em sua totalidade, mas buscava o universal em questes ticas,
por isso o encaramos como o filsofo que melhor trata da questo do universal.37 A busca
pelo universal em questes ticas a manifestao da definio ou predicao segura.
Scrates carrega um problema em sua filosofia, a busca pelo universal. A questo
socrtica por excelncia a busca pelo universal. Para o conhecimento da filosofia de
Scrates temos trs fontes primrias, Aristfanes, Xenofonte e Plato. Esses trs,
provavelmente, tenham conhecido Scrates ou mesmo convivido como ele, so
contemporneos seus. Plato, com certeza, o mais celebre escritor sobre os dilogos
socrticos, mas, no o nico. Houve um grande nmero de escritores que, assim como
Plato, escreveram sobre Scrates e seus dilogos. Apenas essas trs fontes primrias
chegaram at nosso conhecimento, ficando perdido muitos outros documentos que poderiam
36 No Teeteto(148 e),Scrates descreve a profisso de sua me como parteira e assemelha seu mtodo de fazer
parir ideias em seus discpulos tal profisso de sua me. Esse mtodo conhecido como maiutica. A palavra
Parteira , (Teet. 149b).
37 Met. VI
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=mai%2Fas&la=greek&can=mai%2Fas0&prior=ta/s
33
descrever sobre Scrates. Xenofonte e Plato so tidos como fontes apologticas enquanto
Aristfanes uma fonte crtica da filosofia socrtica.
Aristfanes um renomado comedigrafo grego e apresenta uma caricatura bastante
cmica de Scrates. Em As nuvens Scrates , alm de fsico, um sofista. O Scrates
aristofnico bem realista, pois esta era a viso que os cidados atenienses tinham de
Scrates. A prpria condenao de Scrates em 399 a.C por acusao de impiedade
demonstra como Scrates era percebido pelos cidados atenienses. A condenao o
ressentimento dos poderosos contra Scrates. Chamar Scrates de fsico at aceitvel, mas
associar Scrates aos sofistas muito cmico, alm de ofensivo. As nuvens o testemunho
mais antigo de Scrates e nela j aparece uma questo muito importante para a filosofia, o
poder de persuaso do discurso. A retrica o tema desta comdia, onde o poder de discursar
bem pode transformar um discurso injusto em um discurso justo. A comdia uma completa
representao da histria de seu tempo. Aristfanes d uma grande importncia ao logos
quando Estrepsades adverte seu filho a utilizar o logos (discurso/palavras) de tal modo que,
quando for levado ao tribunal, acusado de dever dinheiro aos devedores, Fidpedes seja capaz
de, usando o logos, convena o juiz de que no deve o tanto de dinheiro que seus acusadores
apontam.
O tribunal um local bastante procurado pelos gregos, pois, h uma forosa inteno
em levar as pessoas ao tribunal na tentativa de que sejam experimentados na habilidade de
discursar. A retrica, ento, fica sendo a base para o direito desenvolvido na Grcia. O
Scrates apresentado por Aristfanes apenas um sofista que ensina retrica e a habilidade de
transformar um discurso injusto em um discurso aparentemente justo. A possibilidade de um
discurso verdadeiro posto em cheque. Aristfanes est ridicularizando Scrates, por isso a
comdia deve ser encarada com esse propsito.
Passemos ento ao Scrates platnico, que que nos interessa para a pesquisa.
Scrates nos dilogos platnicos aquele que se ocupa em encontrar o universal em questes
ticas e aplicou pela primeira vez o pensamento s definies. A influncia de Scrates sobre
Plato no s inegvel como tambm decisiva no pensamento platnico. Digenes Larcio,
um importante doxgrafo conta que Plato ao ver Scrates discursar no teatro, lanou seus
poemas no fogo e passou a seguir Scrates por vinte anos seguidos. 38 Esse episdio tem
38 M.G. Kury, DigenesLartios - Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres, Braslia, Ed. UnB, 1977.
34
poucas possibilidades de ter acontecido, mas, nos traz uma noo do quanto Scrates
influenciou Plato ao ponto de torn-lo o maior expoente da filosofia socrtica.
Os dilogos platnicos no so um tratado sobre a vida de Scrates e sobre tudo o que
ele disse. Dificilmente Plato tenha retratado fidedignamente algum dilogo real de Scrates.
Plato o utiliza como personagem principal na exposio de sua filosofia. Este fato traz
muitas complicaes para os estudiosos platnicos. At que ponto a personagem Scrates
influencia de fato em sua filosofia? O corpus platnico catalogado em trs categorias. Os
dilogos socrticos, onde Scrates aparece em primeira cena e questiona alguns sofistas sobre
o aprendizado das virtudes e a impossibilidade de definio. Esses dilogos da primeira fase
platnica ficam caracterizados pela aporia com que concluem seus dilogos. Scrates de tanto
interrogar os interlocutores acaba por fazer com que eles afirmarem o contrrio do que
defendiam no inicio do dilogo. So conhecidos como dilogos aporticos. H uma segunda
fase na elaborao dos dilogos que onde Plato tenta se desvencilhar das aporias
impregnadas nos primeiros dilogos, essa segunda fase conhecida como fase intermediria.
H uma terceira fase da produo filosfica de Plato que a fase da maturidade filosfica de
Plato, quando abandona de vez as aporias e as discusses de cunho estritamente ticos e
desenvolve outros campos em sua filosofia, como sua ontologia.
Os dilogos platnicos podem no retratar fielmente as conversas de Scrates, mas,
tambm, como na Comdia de Aristfanes, a personagem bem parecida com Scrates, ou
seja, no h muita discrepncia entre a personagem e o filsofo. No se trata de fices
criadas por Plato, mas, no precisamos acreditar que esses dilogos realmente aconteceram.
35
3 A CONVICO DE SCRATES DIANTE DA MORTE:DELIMITAES
ENTRE CORPO E ALMA
No quadro dramtico da morte de Scrates, Plato impulsiona e potencializa o
discurso de Scrates, o logos socrtico. Fdon se encontra com Equcrates que lhe pergunta
se estava de corpo presente na hora em que Scrates discursava sobre a morte ou se ouviu de
outras pessoas (autos oh phaidon, paregeinou Socratei ekein t meraito pharmakon epien
em toi desmtrioi, alloutou kousas?)(Fd., 57a). Fdon ento afirma que ele estava em
pessoa e que ouviu em primeira mo o discurso e percebeu a satisfao de Scrates em est
diante da morte, (Fd., 57a).
3.1 O LOGOS SOCRTICO E O PANO DE FUNDO DO DILOGO
Os temas abordados no incio do dilogo indicam uma pretenso em discursar em
forma de mito. que no discurso esto articulados alguns conceitos que desenvolveremos
para a compreenso da satisfao de Scrates em morrer e est diante da morte. A descrio
de detalhes aparentemente mtico-religiosos narram de modo dramtico a imerso filosfica
feita por Scrates sobre a morte e a alma imortal. Como j exposto no primeiro captulo os
conceitos de separao e isolamento sero aplicados para a distino entre corpo e alma, ou
do afastamento da alma em relao ao corpo. Essa primeira parte do dilogo j contm a
perspectiva filosfica que contracena com conceitos religiosos. Essa primeira parte do dilogo
parece ser uma preparao dos interlocutores do discurso, onde conceitos so,
gradativamente, (geometricamente) avanados a partir de hipteses lanadas. Analisemos
ento a primeira parte do dilogo como satisfao em morrer e estar morto (Fd., 58d).
- E ento, de que coisas falou ele antes de morrer? (thanatou) Qual foi o seu fim? (kai ps eteleta). Isso mesmo eu gostaria de saber, pois atualmente
no h nenhum de meus concidados de Flionte que esteja em Atenas, e de l,
faz muito tempo, que no nos vem nenhum estrangeiro capaz de nos dar
informaes seguras, a no ser que Scrates morreu aps ter bebido o veneno.
Mas, quanto ao mais, ningum nada nos soube relatar. (Fd.,57 b).
36
Equcrates ouve de Fdon que ele estava de corpo presente (Autos, o Phaidon,
paregenou Socrate ekenetei hemeraito pharmakon epien em toi desmoteroi) O autos,
afirma literalmente que Fdon ouviu o discurso de Scrates. Autos no se trata somente do
pedido de confirmao da presena de Fdon naquele dia, feito por Equcrates que espera
uma segurana e clareza do discurso. Se quisermos podemos encarar esse primeiro momento
do dilogo como a confirmao da distino entre corpo e alma. A narrativa de Fdon
introduz aos poucos o tema da separao ao relatar o ambiente em que se encontrara Scrates.
Scrates est na priso, Desmoterion, e a priso o melhor local para a alma est bem
apresentada. na priso do corpo que se manifesta como algo distinto, com faculdades
independentes. A condio de prisioneiro de Scrates, tal como ilustra Plato, revela uma
analogia da condio em que a alma se encontra na vida humana, presa ao corpo. A analogia
feita com Scrates preso pelas pernas e os infortnios sofridos pelocorpo. O dilogo investiga
justamente esta condio em que a alma fica aprisionada no e pelo corpo. Fdon tambm
escolhido por Plato por ser de Flionte, cidade situada no norte do Peloponeso e que foi um
atraente centro do pitagorismo. Os temas que aparecem no Fdon, como a alma imortal e sua
transmigrao, so comuns aos pitagricos, mas a concepo que Plato apresenta no dilogo
parece ser incompatvel com aquela defendida pelos pitagricos. A alma imortal e a discusso
a envolvendo ganha gradativamente, no desenrolar da narrativa, os contornos filosficos
realizados por Plato. A viso da alma como harmonia, pelos pitagricos, pode ser comparada
ao fragmento de Herclito sobre o plemos, (Fd., 85c-86e). 39 A alma harmonia porque ela
sobrevive ao corpo, mesmo estando presa ou limitada temporariamente. O dilogo no
consiste em uma crtica teoria da alma segundo o pitagorismo ou segundo as doutrinas dos
Mistrios, masno ignora a posio religiosa sobre o assunto. Para J. C. Rowe, Plato
pretende introduzir os leitores em um ambiente pitagrico ou religioso atravs das referncias
s religies de mistrios. Ele ressalta ento que o Fdon tem duas concluses principais: que a
melhor vida a vida dedicada filosofia, e que a alma imortal.40 No devemos ignorar a
referncia ao pitagorismo, pois o que Plato est tentando estabelecer a crena (pstis) que
h no discurso religioso. A ambientao em que se d o episdio mostra, possivelmente, a
inteno de criar uma esfera prpria e independente das relaes que h entre os personagens
39 A discusso sobre o plemos heracltico se encontra na seo 1.3
40The phaedo has two main conclusions: that the best life is the life of philosophy, and that the soul is immortal.
Plato. Phaedo; edited by C. J. Rowe. Cambridge University Press,Cambridge, 1993
37
e suas doutrinas. O incio do dilogo tem uma falsa impresso de que a morte apenas a sada
da alma do contato com o corpo, mas Plato distingue a morte do estado de estar morto. Esse
clima que envolve o filsofo diante da iminncia da morte muito sutilmente inaugura a
atmosfera que a personagem Scrates demonstrar ser o ambiente digno da alma: distinto e
afastado da vida comum. O atraso do navio que tinha ido a Delos homenagear o deus Apolo
demonstra o desencontro entre o cumprimento da sentena da morte de Scrates e as crenas
religiosas de quem os condenou.
- Nesse ponto, sim, houve quem nos informasse. Por sinal, at
estranhamos que, tendo sido to cedo, s muito mais tarde se procedesse a
execuo! Por que foi isso, Fdon?
- Simples coincidncia, Equcrates. Aconteceu justamente que, na
vspera do julgamento, tinha sido engrinaldada a popa do navio que os
atenienses enviam a Delos...[...]
- Trata-se do navio em que, segundo uma tradio ateniense, Teseu
embarcou outrora para Creta com os clebres sete pares de rapazes e moas
que salvou da morte, salvando-se tambm a si. E assim, como a cidade
houvesse feito a Apolo, segundo diz, a promessa de enviar todos os anos uma
peregrinao a Delos se daquela vez os jovens fossem salvos, desde aquele fato
at o presente se continuou a fazer essa peregrinao ao templo do deus. (Fd.,
58 a-c)
A comemorao festeja a vitria de Teseu sobre o minotauro. Conta o mito que ao
sucumbir guerra contra os cretenses, os atenienses tiveram de enviar sete moas e sete
rapazes para serem sacrificados pelo minotauro. O heri se juntou ao cortejo das vtimas e
com a ajuda de Ariadne venceu o monstro, regressando para Atenas. 41
Scrates teve de esperar para cumprir a sentena, pois a execuo de um prisioneiro
deixaria a cidade impura. Esse cenrio abre precedentes para a discusso sobre a katharsis. O
tema da purificao se apresenta bastante associado ao que toca as coisas divinas e a relao
do filsofo com elas. Para homenagear o deus, a cidade deve est purificada. De maneira
anloga percebemos que para se relacionar com o que divino e para ter um bom destino aps
a morte condio para o filsofo estar igualmente puro e preparado para tais coisas. A
purificao da cidade tem indcios de que Scrates estaria dando nessa ltima conversa com
seus discpulos o ensinamento que considera o mais importante dentre todos, a saber; a
41 Uma variante do mito acredita nos motivos polticos do envio dos jovens para o minotauro. Durante a guerra
uma peste enviada por Zeus contra os atenienses provocou a derrota de Egeu, o que levou o rei Minos a cobrar
uma taxa a cada nove anos. A taxa foi em forma de sete rapazes e sete moas atenienses enviados para Creta,
onde seriam colocados no labirinto para serem devorados pelo seu filho monstruoso, o Minotauro.
38
importncia de cuidar da alma e o modo legtimo de faz-lo e, assim, salvar seus discpulos
para que desfrutem da verdadeira vida de filsofo.
O pesar dos discpulos juntamente com a tempestade de lgrimas causada por Xantipa
nos seduz tambm a condoer-se com a morte de Scrates. Este, por sinal, se contrape com
boa aceitao em cumprir a sua condenao. Scrates ento justifica a concepo que tem da
morte e da convico que deve ter o filsofo diante deste fato inevitvel. O texto carregado
de sentimentos e facilmente conduz o leitor a uma leitura trgica do fato. A cena recebe
caractersticas de um momento fnebre pelas figuras que se mostram consternadas, como
Criton, que, aps ter ouvido todo o discurso de Scrates ainda lhe pergunta como devem
sepult-lo. Roberto Rossellini percebe a importncia deste trecho do dilogo Fdon ao
destinar a ltima cena de seu filme Socrate (1970) para a fala de Crton que insiste em se
preocupar com o corpo de Scrates, como se o verdadeiro Scrates fosse realmente o corpo
que dentre instantes estar despossudo de sua alma. No entanto, Scrates se encontra sereno e
imprime ao dilogo uma forte convico diante da morte. Fdon se impressiona com a
felicidade com que Scrates se encontra ao beber o phrmakon, (Fd., 57b). O termo
phrmakon assim como no Fdro tem um duplo sentido, a saber; o sentido de veneno, algo
malfico e letal, como o sentido de remdio, algo capaz de promover a cura para as
enfermidades corporais. Este sentido remediador se torna relevante na medida em que ganha
teor filosfico.
-Pois verdade, foi num estado de esprito bem singular
(thaumasiaepathon)que ali estive a seu lado; efetivamente no era
compaixo o que eu sentia, por assistir morte de um companheiro querido.
que esse homem me parecia feliz (eudaimon) Equcrates, a avaliar pelas
suas palavras (logos)e atitudes, tal a segurana e a nobreza com que
enfrentou o fim! Pelo que no pude de deixar de me convencer que um
homem como esse no desce ao Hades seno por uma determinao divina e
que, quando ali chega, para gozar de uma felicidade tal como talvez
nenhum outro tenha encontrado. E eis por que no sentia propriamente essa
natural compaixo de quem assiste a um transe doloroso. 42 Mas j
tampouco era o velho prazer de nos entregar filosofia pois este foi ainda o
objeto das nossas conversas (oi logoi). Em resumo, era uma indefinvel
4242 Monique Dixsaut faz uma traduo bem mais prxima ao original: Pourtoutescesraison,
rienquiressemblitlemoins Du monde de lapiti ne me venait, commeonetpulattendre de La part de qui
assiste a um malheur. (Platon. Fdon, p. 203)
39
sensao que me dominava (atekhnosatopon ti moi pathosparen)um misto
singular de prazer e simultaneamente dor ideia de muito em breve esse
homem deixaria de existir.43 mais ou menos nesse estado de esprito que
nos encontrvamos todos ns, os que o rodevamos, umas vezes ruindo,
outras chorando. Apolodoro, mais do que todos ns. (Fd.,58e 59 a ).
O dilogo comea a ganhar os desdobramentos de uma anlise filosfica na medida
em que Fdon descreve sobre o thaumasiaque o cometeram. Ele descreve uma sensao
diferente do sentimento de piedade que naturalmente o tomaria ao ver um amigo morrer. A
afeco de surpresa, thaumasiaparece abarcar um arranjo inabitual de dor, pela perda do
amigo, e de prazer, por v-lo sem sofrimento naquele instante, uma mistura que parece
estranha, diferente e incomum. Plato lana um turbilho de sentimentos nessa cena, no s
Xantipa, mas tambm Apolodoro no se contm e aos prantos assiste ao desfecho do discurso.
O que podemos j perceber o corpo como sede do pathose a psykhecomo sede da phrnesis.
O dilogo prossegue sem ainda efetivamente entrar na questo da phrnesis. Fdon
ento nomeia quem estava presente no ultimo discurso de Scrates. Os nomes dos atenienses
Apolodoro, Critbolo, Crton, Hermgenes, Epgenes, squines, Antstenes, Ctsipo e
Menexeno, alm de Plato, a quem atribuiu a ausncia so um testemunho a favor dos
discursos de Scrates e a autenticao por via dos cidados atenienses de seus ensinamentos,
(Fd.,59b). Entre os estrangeiros, estavam os tebanos Smias, Cebes, quem dialogar em
primeiro plano com Scrates. Talvez a ausncia de Plato seja uma tentativa de retirar do
texto qualquer caracterstica historiogrfica da morte de Scrates. Smias e Cebes so
interlocutores sobre o tema da alma imortal, no para concordar com Scrates, mas para lhe
contrapor na concepo que a alma tem para Scrates.
43Dixsaut novamente aproxima melhor o texto grego: Non, sincrementjtaisenvahi par um
sentimentdconcertantcurieuxmlange ou entrait certes Du plaisir, mais aussi de la douleurquand me revenait
lesprit (enthymoumenoi)que cethomme-l, tout lheure, allaitcesser de vivre (Platon. Fdon, p. 203)
40
3.2 SCRATES E A MORTE
Era costumeiro os discpulos de Scrates irem visit-lo na priso. No ltimo dia,
porm, eles chegaram mais cedo do que de costume, com o nascer do sol. Isso se deu devido a
notcia de que o navio havia chegado de Delos. Seria, portanto, o ltimo dia de vida do
mestre. No interior da cela, que parecia ter outro compartimento, estavam, Scrates, j liberto
das cadeias, Xantipa e sua tormenta de lgrimas e injrias juntamente com seus filhos de colo.
Oh, Scrates, eis que pela ltima vez os teus amigos conversaro contigo e tu com eles
(Fd..,60 a) Scrates prontamente solicita que o carcereiro conduza Xantipa at em casa com
seus filhos. Scrates continua sereno e convicto de sua morte. O estado emocional de Scrates
era bem distinto de seus discpulos. Scrates aceitara bem sua condenao.
Sentado sobre o leito e friccionando com a mo as penas livres da cadeia, Scrates
ento inicia seu discurso.
-Que coisa estranha, amigos, essa sensao a que os homens chamam
prazer (d)! espantoso como naturalmente se associa ao que passa por ser
o seu contrrio, a dor (lypern)! Ambos se recusam a estar presentes ao
mesmo tempo no mesmo homem; e todavia, se algum persegue e alcana
um deles, quase certo e sabido que acaba por alcanar um outro, como dois
seres que estivessem ligados por uma s cabea. Parece-me mesmo, que
sopo, se nisso tivesse pensado, teria composto uma fbula a esse respeito: A
Divindade, desejosa de lhes por fim aos conflitos, como visse frustrado o seu
intento, amarrou juntas as duas cabeas; e por isso que, onde se apresenta
um deles, o outro vem logo. , assim, que se lhe afiguram as coisas: devido
ao gr
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