UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB
DEPARTAMENTO DE CINCIAS HUMANAS CAMPUS V
PROGRAMA DE PS-GRADUO EM HISTRIA REGIONAL E LOCAL
JOSIANE THETH ANDRADE
O TABULEIRO DAS VENDAS:
COTIDIANO DE UM POVOADO MARCADO PELAS LOJAS DAS
ROAS
SANTO ANTONIO DE JESUS - BA
SETEMBRO - 2010
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JOSIANE THETH ANDRADE
O TABULEIRO DAS VENDAS:
COTIDIANO DE UM POVOADO MARCADO PELAS LOJAS DAS ROAS
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Regional e Local, da Universidade do Estado da Bahia/UNEB, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre.
ORIENTADORA: PROF DR CARMLIA APARECIDA SILVA MIRANDA
SANTO ANTONIO DE JESUS - BA
SETEMBRO 2010
P553 Andrade, Josiane Theth.
O Tabuleiro das vendas: cotidiano de um povoado marcado
pelas lojas das roas. / Josiane Theth Andrade - 2010.
126 f.: il Orientador: Prof. Dra. Carmlia Aparecida da Silva Miranda. Dissertao (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa
de Ps-Graduao em Histria Regional e Local, 2010.
1. Histria Oral. 2. Tradio Oral. 3. Vendas. 4. Mutupe - Bahia I. Miranda, Carmlia Aparecida da Silva. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de Ps-Graduao em Histria Regional e Local.
CDD: 907.2
Elaborao: Biblioteca Campus V/ UNEB Bibliotecria: Juliana Braga CRB-5/1396.
TERMO DE APROVAO
O TABULEIRO DAS VENDAS:
COTIDIANO DE UM POVOADO MARCADO PELAS LOJAS DAS ROAS
JOSIANE THETH ANDRADE
Banca Examinadora: _______________________________________________ Prof Dr. Carmlia Aparecida Silva Miranda (Orientadora) Universidade do Estado da Bahia - UNEB _______________________________________________ Prof. Dr. Gilmrio Moreira Brito Universidade do Estado da Bahia - UNEB _______________________________________________ Prof. Dr. Lina Maria Brando de Aras Universidade Federal da Bahia - UFBA _______________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira (Suplente) Universidade do Estado da Bahia - UNEB _______________________________________________ Prof. Dr. Vilma Maria do Nascimento (Suplente) Universidade Catlica do Salvador - UCSAL
SANTO ANTONIO DE JESUS - BA
SETEMBRO - 2010
memria do meu pai Juvenal Santos Andrade, vendeiro no Tabuleiro por mais de 30 anos, fazendo deste ofcio sua vida e da venda o lugar derradeiro de sua existncia.
AGRADECIMENTOS
Escrever sobre o Tabuleiro significou mais do que relatar a histria de um
lugar, pois me proporcionou descortinar o cotidiano do homem do campo em suas
mltiplas facetas. Mas para tornar possvel uma histria do povoado e de suas
vendas foi necessrio a colaborao de inmeras pessoas que, com boa vontade e
solicitude, tornaram esta pesquisa uma realidade, e s quais gostaria de aqui deixar
meus agradecimentos.
Inicialmente, a minha orientadora, professora Carmlia Aparecida Silva
Miranda, por ter me acolhido como orientanda em um momento difcil e, tambm, por
sua pacincia em me ouvir e ler meus escritos sempre com desvelo e criteriosidade.
A dois outros professores que ajudaram a dar forma pesquisa ainda na
graduao e na ps-graduao. Primeiro, ao professor Rogrio de Souza que, na
graduao, com suas indicaes e conselhos contribuiu de sobremaneira para a
concretizao desse trabalho, fazendo com que ele deixasse de ser um sonho.
Segundo, professora Edinlia Maria Souza Oliveira que, durante o curso de
especializao, abriu novos horizontes para a pesquisa propondo outras abordagens
para o tema.
Aos professores Gilmrio Moreira e Lina Maria Brando de Aras que,
durante a qualificao do meu trabalho, me indicaram possibilidades e fizeram
sugestes prestimosas para o crescimento qualitativo desta pesquisa.
Aos professores e professoras do Programa de Ps-Graduao em
Histria Regional e Local, da Universidade do Estado da Bahia, Campus V, em
especial ao professor Charles DAlmeida Santana, a quem devo o incentivo para
enveredar pelo estudo do cotidiano do homem do campo.
queles que tecem/teceram a histria que aqui narro: Pedro Dudu (Pedro
Andrade); Jos Gajilo (Jos Gonalves); Carmerino Theth (in memoriam); Neide
(Aurineide Theth); Caboclinha (Laura de Jesus Andrade - in memoriam); Antonio
Corao (Antonio de Jesus); Maninho (Manoel Amado); Dona Pomba (Maria Nunes
dos Santos); Hlio Nunes dos Santos; Madalena P. de Andrade e Domingos S. de
Andrade. Todas essas pessoas que, com boa vontade, ao me emprestarem suas
lembranas, deram vida e pulsao ao trabalho.
A minha famlia que direta ou indiretamente contribuiu para minha
formao. Em especial, a minha querida me, Aurineide Theth, e a minha irm,
Joseneide Theth, que me incentivaram e no me deixaram desanimar.
A Hildete Leal, pela reviso criteriosa do texto e a indicao de caminhos
para torn-lo leve e prazeroso leitura.
Aos meus amigos e colegas de profisso, Derneval Ferreira, Luciene
Rocha e Leninha, pelas leituras e sugestes que enriqueceram o texto, alm do
apoio em momentos difceis na escrita da dissertao.
A Simone Figueiredo e Fabiane da Silva, pela ajuda e troca de
experincias durante o mestrado, com sugestes de textos e ideias que contriburam
no desenvolvimento da dissertao.
Aos meus amigos e colegas de mestrado: Margarete Nunes, Cristiane
Lima, Caroline Lima, Lielva, Rejane, Rosngela, Daiane, Taiane, Regina,
Wanderson, Kleberson, Fatinha, Leila Carol, Soane Cristino, Camila, Oscar, entre
outros que no cito.
A minhas amigas, Aline Miranda e Anna Carolina Reis Costa de Lima,
pelas leituras de alguns dos meus textos e pelas crticas sempre bem vindas.
A Catia Matias pela ajuda no abstratc e por sua solicitude em ajudar-me.
E, por fim, mas no menos importante, toda minha gratido a Deus que
me deu fora nas horas difceis, no s durante a pesquisa, mas ao longo de minha
vida.
Muito obrigada.
preciso dizer ento como habitamos nosso espao vital de acordo com todas as dialticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num "canto do mundo.
Bachelard. A potica dos espaos, p. 26.
RESUMO
Este trabalho apresenta um estudo sobre as relaes econmicas, sociais e culturais desenvolvidas pela populao local e fregueses no espao das vendas (estabelecimentos comerciais) do povoado do Tabuleiro, que est localizado no municpio de Mutupe - BA. Nos anos de 1960 a 2000 as vendas exerceram uma grande influncia sobre a vida cotidiana dos indivduos que conviviam nessas espacialidades, sobrepondo suas funes essencialmente comerciais para assumir mltiplos papis, dentre eles, destaca-se a funo sociabilizadora das vendas que se tornaram um verdadeiro observatrio popular. Contudo, essas casas comercias e, consequentemente, o povoado sofreram, ao longo do tempo, uma srie de mudanas que acabaram resultando na decadncia das vendas e influram na dinmica cotidiana do Tabuleiro ao gerar rupturas e permanncias em costumes e tradies, como por exemplo as que ocorreram nos festejos do brinquedo de roda e da burrinha. No bojo dessas transformaes vivenciadas no povoado podem ser citadas: a introduo de elementos da modernizao; as migraes; as reformas infraestruturais; a ressignificao de antigas tradies, entre outras. Para a realizao da pesquisa foram utilizadas, sobretudo, narrativas de moradores locais, que, por meio das memrias expressas pela oralidade, abriram perspectivas variadas no s para reconstruir uma histria do povoado e de suas vendas, como tambm para refletir sobre o processo de ressignificao da memria em diferentes situaes e temporalidades.
Palavras-chave: vendas; cotidiano; memria; cultura; sociabilidade; modernizao.
ABSTRACT
This work presents a study about the economic, social and cultural relations, developed by the local population and customers in the vendas of the village of Tabuleiro, located in the municipality of Mutupe, State of Bahia. From 1960 to 2000, the vendas had a great influence on daily life of the people who lived in Tabuleiro, leaving of being just a commercial establishment to assume many functions, among them, become a true popular observatory. However, these commercial establishments and, consequently, the village had suffered, throughout the time, a lot of changes that had in result the decay of the sellings
and these facts influenced in
the Tabulieros daily dynamics, transforming, for example, the customs and traditions of that place, occurring into celebrations like: the brinquedo de roda and burrinha. Among the changes experienced by people who lived in the village can be mentioned: the introduction of modernization elements; the migrations; the infrastructural reforms; the changes in the old traditions, and others. For the realization of this research had been used, principally, narratives of local inhabitants, that through of memories expressed by the orality, had opened varied perspectives not only to reconstruct a history of the Tabuleiro and its vendas, as well as to reflect on the process of memory construction in different situations and temporalities.
Key words: vendas; quotidian; memory; culture; sociability; modernization.
LISTA DE FOTOGRAFIAS, FIGURAS E TABELAS
FOTOGRAFIA 01: Venda Santa Ana................................................................ 35
FOTOGRAFIA 02: Cantoria na venda do Sr. Jos Gonalves....................... 56
FOTOGRAFIA 03: Crianas na Venda............................................................. 66
FOTOGRAFIA 04: O festejo da burrinha na cidade de Mutupe...................... 84
FOTOGRAFIA 05: Viso panormica do povoado do Tabuleiro...................... 104
FOTOGRAFIA 06: O vendeiro Juvenal Santos e sua esposa.......................... 110
FIGURA 01: Vale do peso de cacau assinado pelo vendeiro
Juvenal S. Andrade.......................................................................................... 47
FIGURA 02: Carta com pedido de noivado Dona Maria Nunes..................... 81
TABELA 01: Evoluo da utilizao das terras na regio do
Vale do Jiquiri 1970-1980........................................................................... 95
TABELA 02: Participao das reas de lavoura na rea total dos
estabelecimentos por municpios do Vale do Jiquiri 1975 1980................. 95
ABREVIATURAS
COBER Companhia Baiana de Eletrificao Rural
SEBRAE - Servio de Apoio s Micro e Pequenas Empresas da Bahia
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
SEI - Superintendncia de Estudos Econmicos e Sociais da Bahia
SUMRIO
INTRODUO.....................................................................................
14
CAPTULO I - O COTIDIANO DAS VENDAS...................................... 32
1.1 As lojas das roas..........................................................................
32
1.2 A venda e suas mltiplas funes..................................................
41
1.3 Vendeiros e fregueses - uma relao marcada pela tica rural.....
46
1.4 Lugares de prosa...........................................................................
50
1.5 Venda: um espao praticado e ressignificado...............................
58
CAPTULO II - VIVER NA ROA........................................................ 68
2.1 O povoado do Tabuleiro ................................................................
68
2.2 Quando os faces e enxadas do lugar diverso.......................
75
CAPTULO III - O TEMPO E O VENTO: PERMANNCIAS E MUDANAS NA VIDA COTIDIANA DO TABULEIRO........................
91
3.1 Ressonncias, repercusses sentimentais e recordaes do passado................................................................................................
91
3.2 A decadncia das vendas .............................................................
102
CONSIDERAES FINAIS ................................................................
1115 FONTES .............................................................................................
119
REFERNCIAS ..................................................................................
1122
14
INTRODUO
O povoado do Tabuleiro1, localizado no municpio de Mutupe, estado da
Bahia, o objeto de estudo desta pesquisa que, mais do que preocupada em
reconstituir sua origem e formao, busca analisar como uma comunidade rural,
distante cerca de 4 km da sede do municpio, esteve intrinsecamente ligada s suas
vendas, participando da dinmica scioeconmica e cultural do local.
A palavra vendas designa as casas comerciais das zonas rural e urbana
de muitas localidades do Brasil. As vendas ainda constituem espaos tradicionais de
bairros de inmeras cidades. Na Bahia, elas so comumente chamadas de bodegas,
bibocas, mercearias, armazns, etc. Devido organizao espacial e variedade de
funes, a maior parte delas negocia com secos e molhados e complementa seus
estoques e encargos a partir das necessidades dos lugares em que se instalam. Na
essncia, elas carregam o princpio de fornecer de tudo um pouco populao.
O Tabuleiro um povoado formado por pequenos agricultores e
trabalhadores rurais, que vivem em torno da policultura da mandioca, feijo, milho,
coco, banana, guaran, cravo, entre outros. Todavia, o cultivo do cacau e a criao
de gado, a partir dos anos de 1960, ganharam fora, constituindo-se, atualmente, os
grandes responsveis pelo sustento econmico da populao local.
No que diz respeito estrutura fsica, esse povoado, outrora denominado
Riacho do Mutum 2, , atualmente, formado por um arraial onde se encontram
algumas dezenas de casas residenciais, uma escola fundada em 1948 e uma venda
em funcionamento, alm de propriedades rurais. Ao longo do tempo o povoado
sofreu algumas mudanas, como o esvaziamento populacional do lugar fruto de
migraes, mudanas na produo agrcola, entre outras. O que destoa do passado
quando as vendas se multiplicavam ao longo da antiga estrada vicinal que corta o
Tabuleiro, que nos dias de sbado era tomada por tropas de mulas carregadas de
mercadorias, animais de passeio e trabalhadores rurais do local e de povoados
vizinhos que se dirigiam s vendas para fazer feira, negociar os produtos da roa,
1 O povoado faz parte do municpio de Mutupe. O municpio localizado na sub-regio do Vale do
Jiquiri, na zona fisiogrfica do Recncavo Sul, tendo uma extenso territorial de 358 Km, com populao de 20.462 habitantes. Cf: Diagnstico dos Municpios Vale do Jiquiri. SEBRAE, maro de 1995. 2 A partir da observao de algumas escrituras de terra dos moradores do povoado, na segunda
metade do sculo XX, o local onde est situado o povoado do Tabuleiro era denominado Riacho do Mutum. Cf: Comarca de Mutupe. Escritura de terra do Sr. Jos Gonalves, livro n 24, fls. 112-114.
15
permutar animais e jogar conversa fora, quase sempre acompanhados de um copo
de cachaa e um cigarro de fumo picado envolvido em fina palha de milho ou papel
de seda.
No Tabuleiro, as vendas assumiam mltiplos papis, alm de fornecer
mercadorias variadas ao consumo dos fregueses, grande parte agregava as funes
de armazm, aougue e casa de jogos. Ao que parece, a sua essncia mltipla se
constitui, ao longo do tempo, conforme as necessidades de consumo e lazer da
localidade, somando-se a outros fatores como a distncia dos centros urbanos e a
prpria opo dos consumidores pelas vendas locais no momento de realizarem as
compras e negociarem a produo agrcola de suas roas.
A preferncia dos fregueses descortina outra faceta das vendas que seu
carter socializador. Por ser um espao que promove a interao dos indivduos, a
funo comercial o incio de relaes que, aos poucos, pela frequncia e
intimidade, proporciona o estreitamento dos laos de amizade e solidariedade dos
seus frequentadores.
Segundo Sidney Chaulhoub (1986), a venda um reduto de lazer
popular, pois congrega as pessoas em torno do lazer, da diverso, mas, tambm,
abre margem a relaes diversas de convivncia, expondo conflitos e tenses da
vida social. As vendas, desse modo, tm um significado importante na vida cotidiana
do Tabuleiro. O povoado tornou-se famoso, justamente, por ter um comrcio
influente, que atraa compradores e negociantes de localidades vizinhas. A partir
dessas observaes iniciais, a pesquisa se direcionou no sentido de compreender
como se davam as interaes cotidianas entre os frequentadores das lojas rurais e
os desdobramentos na vida econmica, cultural e social do povoado.
Esta pesquisa se apoiou nas vivncias e experincias de sujeitos de
carne e osso, que sentem dores, alegrias, saudades e sonham. Assim, ao privilegiar
suas lembranas e impresses sobre a vida ao longo de um tempo to incerto
quanto o da memria, determinar um recorte temporal com preciso calendar
tornou-se invivel. Aquilo que rememorado no se inscreve num tempo fixo; por
vezes, datas e objetos significativos ajudam o processo de desencadeamento das
lembranas, mas, neste trabalho, por sua natureza, optou-se adotar uma baliza
temporal, a determinar temporalidades monolticas.
No que tange s memrias dos indivduos entrevistados sobre os
aspectos histricos do povoado, elas remontam a quase todo o sculo XX. Porm,
16
pela prpria formao histrica do Tabuleiro, pode-se dizer que, a partir da dcada
de 1960 at os primeiros anos sculo XXI, o vilarejo sofreu profundas mudanas e,
por seu carter dinmico e transformador, a pesquisa privilegiou as memrias
referentes a essa temporalidade. Dentre essas transformaes, destacam-se: a
desativao da Estrada de Ferro de Naraz; a decadncia do tropismo; a abertura
de uma estrada de cho ligando o povoado sede do municpio; a chegada da luz
eltrica; e o crescimento da pecuria e da produo cacaueira, entre outras.
Alis, abro um parntese aqui para explicar ao leitor alguns aspectos que
envolvem os sujeitos dessa pesquisa e a mim como pesquisadora. A escolha desse
povoado como objeto de pesquisa foi influenciado pelas minhas vivncias no lugar,
visto que meu pai, Juvenal dos Santos Andrade (1948-2002), foi vendeiro no
Tabuleiro por mais de 30 anos. A histria de vida das pessoas que narro aqui, de
certa forma, tambm a minha, na medida em que vivenciei o cotidiano desse lugar.
Alguns dos entrevistados so meus parentes, como a Sra. Aurineide Theth
Andrade, minha me, e o Sr. Carmerino Theth, meu av, e todos os outros citados
so pessoas com as quais convivi durante grande parte da minha vida. Foi por
compartilhar dessas vivncias que decidi fazer um estudo das vendas e do povoado.
Esses lugares de memria, com caractersticas prprias, cheiros, sabores,
sensaes tteis, remetem a lembranas de minha infncia e juventude, das horas
que ficava sentada no balco da venda, observando meus pais trabalharem. E,
embora, conserve a distncia necessria para manter o rigor do ofcio, deixo aqui
tambm minhas prprias experincias e memrias.
Ter vivido nesse povoado, assim como ter frequentado os espaos das
vendas foi o que despertou o desejo de desenvolver uma pesquisa histrica sobre o
Tabuleiro. No incio, desde a graduao quando comecei a pesquisar esse tema, me
chamou a ateno o fato de um pequeno povoado possuir, em seu passado, uma
quantidade significativa de vendas que mantinham um comrcio dinmico,
absorvendo quase toda a produo agrcola local. A partir da outras indagaes
emergiam medida em que a pesquisa se desenvolvia, tais como: por que as
pessoas do lugar davam preferncia s vendas no momento de comercializar a
produo agrcola de suas roas? Por que raramente iam ao centro urbano da
cidade de Mutupe negociar? Por que o Tabuleiro era geralmente associado as suas
vendas? O que havia nesse lugar que atraa tanta gente? O que as vendas
representavam na vida dos moradores do lugar? Como elas influam no cotidiano do
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povoado? Como as pessoas do lugar viviam, trabalhavam, divertiam-se? Enfim,
esses questionamentos deram origem problemtica da pesquisa: analisar, atravs
de um olhar histrico, o cotidiano de uma comunidade rural marcado pelas vendas.
Para entender como esses estabelecimentos comerciais estavam
entrelaados vida dos moradores do lugar, bem como suas memrias esto
carregadas de impresses de um passado social, criado e recriado pela convivncia
compartilhada entre os sujeitos e lugares, o dilogo com as fontes foi imprescindvel
para dar liga a uma massa de lembranas de indivduos nicos. Fossem escritas,
orais ou imagticas, cada fonte, dentro de sua especificidade de abordagem,
contribuiu para compor um corpus de informaes suficiente, se no apenas para
resolver as questes iniciais formuladas durante a pesquisa, mas para suscitar
outras tantas, que se configuram em indcios valiosos para os pesquisadores que
enveredam nas sendas incertas da histria.
As fontes usadas na pesquisa foram variadas, somaram-se s narrativas
orais, documentos escritos e fotografias. No obstante, as memrias expressas nas
narrativas orais dos entrevistados constituem o cerne deste trabalho, no pela
inexistncia de outros tipos de evidncias, mas por tratar-se de uma pesquisa que
lida com as sensibilidades de homem e mulheres do campo. O ato de narrar
demonstra comportamentos prprios de cada um, permeados de impresses to
diversas da vida, que proporciona ricos objetos de investigao.
Nos momentos de dilogo com os narradores, um gesto furtivo, uma
pausa demorada na fala, uma queixa sobre a vida, os sorrisos provocados por
lembranas to variadas acrescentaram pulsao pesquisa, o que, s vezes,
escapa impessoalidade do registro escrito. Para Raphael Samuel (1989-90,
p.231), h tipos de pesquisas que apenas podem ser realizadas com a ajuda de
uma testemunha viva, ou testemunhas, que, atravs de suas memrias expressas
pela fala, podem contribuir para acrescentar pesquisa outras nuances muitas
vezes diferentes a outros tipos de fontes.
O historiador lida com seres nicos; portanto, depara-se com diferentes
verses de um determinado acontecimento. Cada pessoa pode produzir um grande
nmero de histrias em potencial, a memria no est desassociada do indivduo,
mas passa por ele. Procurar semelhanas nas narrativas ou dados que confirmem
as informaes pode levar o historiador ao anacronismo. Quem sabe sejam nas
diferenas, nas inconstncias entre as impresses dos sujeitos que esteja aquilo que
18
vai descortinar um novo mundo de possibilidades pesquisa. Para apreender tais
sensibilidades, Portelli (1997) alerta e, at mesmo, orienta o historiador que trabalha
com narrativas orais para o ato de ouvir e estar disposto a mudar seus
posicionamentos a partir dos indcios dados pelas fontes. Para esse autor,
A arte essencial do historiador oral ouvir (...) se ouvimos e mantivemos flexvel nossa pauta de trabalho, a fim de incluir no s aquilo que acreditamos querer ouvir, mas tambm o que a outra pessoa considera importante dizer, nossas descobertas vo superar nossas respostas (PORTELLI, 1997, p. 22).
Durante a realizao das entrevistas foram ouvidos diversos indivduos,
dentre eles os vendeiros, fosse homem ou mulher, os moradores do Tabuleiro, alm
de sujeitos que frequentavam o povoado e tinham memrias diversas do lugar.
preciso destacar que muitos aspectos apreendidos nas entrevistas foram registrados
em longas conversas informais, ocasies em que, muitas vezes, o gravador no
registrou, mas que, durante o momento do cafezinho, da conversa descontrada,
ficaram gravados na minha memria e, de alguma forma, permeiam as
interpretaes das fontes e a escrita do texto.
As narrativas foram transcritas na ntegra, como uma forma de respeitar
valores culturais e formas orais de expresso de um grupo de pessoas que criaram
socialmente sentidos prprios as suas vivncias. A inteno era no deixar fugir, na
transcrio reinterpretativa das fontes orais, aspectos lingusticos que caracterizam
as formas de dizer dos indivduos. Na fala, emoes podem ser captadas, logo,
uma transcrio feita sem critrios pode comprometer o sentido daquilo que se
queria dizer, quanto mais prximo ao dito pelo narrador, mais rico torna-se o relato
oral.
J as fotografias constituem as fontes imagticas, muitas delas recolhidas
entre os moradores locais, outras produzidas durante a pesquisa de campo. As fotos
foram utilizadas como objetos de investigao histrica que apreenderam
experincias de trabalho, de lazer e aspectos cotidianos dos moradores do
Tabuleiro. As imagens mostraram-se como elementos portadores de memrias,
objetos tcteis que carregam consigo valores sociais e afetivos, significativos nas
vidas das pessoas.
19
Susan Sontag (1981), que h dcadas vem se dedicando aos estudos da
fotografia, chama a ateno para o fato de que o sentido da imagem fotogrfica
permite a presentificao do passado, que, todavia, s ganha sentido se tiver sido
identificado ou caracterizado (SONTAG, 1981, p.18). A imagem um texto e
apresenta um contexto, sua compreenso fica afetada ao analisar a imagem por ela
mesma. Portanto, a fotografia ganha sentido no momento em que mediada,
traduzida interpretativamente em palavras que a signifiquem. Da a importncia de
ter junto aos portadores da fotografia a histria da prpria imagem. s vezes, o
contexto em que foi produzida pode contar mais sobre um determinado fato do que o
momento eternizado no papel.
Dentre os documentos escritos, utilizou-se uma carta, escritura de terra,
leis, vales de compra e venda cedidos por vendeiros, assim como estudos
econmicos e demogrficos desenvolvidos por centros de pesquisa como o IBGE,
SEI e SEBRAE. O cruzamento de tais fontes foi importante por evidenciar aspectos
polticos e socioeconmicos constituintes da vida cotidiana e produtiva do povoado,
e proporcionar as conexes com acontecimentos regionais e nacionais, j que o
Tabuleiro est inserido em um contexto macrorregional.
A anlise de cada tipo de documento ajudou a formar um arcabouo de
informaes que compe no s o trabalho aqui apresentado como contribui para
desmitificar as associaes que comumente se faz do meio rural como lugar de
atraso, ignorncia e limitao (WILLIAMS, 1989, p.11), quando, constitui-se, dentro
de sua ampla gama de objetos e sujeitos, um vasto campo de estudo para histria.
E, ao abordar os modos de vida da populao local, suas manifestaes culturais,
sua relao com as vendas, contribui-se para, atravs da oralidade e da memria,
apreender aspectos de sua vida passada, que os documentos no registraram e so
importantes para entender, hoje, as rupturas e permanncias, valores e
experincias, comportamentos e atitudes marcantes e/ou constituintes de sua
histria.
Nessa perspectiva, a relevncia desta pesquisa est em mostrar como
uma localidade rural, aparentemente sem grandes acontecimentos importantes e
aspectos histricos ditos relevantes, pode constituir um rico objeto de estudo capaz
de revelar a histria de um local e sua gente. Principalmente, por lanar luz sobre a
participao das vendas na vida cotidiana do homem do campo, que embora no
seja um tema desconhecido, pouco abordado pelos historiadores. Assim, busco
20
aqui aprofundar e problematizar tais espacialidades enquanto lugares de
socializao e trocas econmicas e culturais.
A feitura de um trabalho de pesquisa histrica requer uma srie de
cuidados e tratamentos especficos. Alm de estabelecer os tipos de fontes que
sero usadas, os mtodos de investigao, os referenciais bibliogrficos e,
sobretudo, quais campos historiogrficos ir percorrer, importante ter um
referencial terico-metodolgico coerente com a pesquisa desenvolvida, pois evita
torn-la um apangio de abordagens distintas, perdida na hiperespecializao do
conhecimento histrico.
Barros (2004) chama a ateno para esse aspecto ao enfatizar e discutir
como os historiadores tm sentido dificuldades em situarem os trabalhos
historiogrficos nos diversos campos da histria. Para esse autor, a crescente
fragmentao do conhecimento, consequentemente, da prpria histria em
subespecialidades tem gerado uma fragmentao de perspectivas. Assim, no h
mais uma nica maneira de ver os acontecimentos, justamente pela ausncia de
certezas que serviam de modelo para o enquadramento do conhecimento cientfico.
O historiador no tem mais uma ideia homognea de seu ofcio. Os modelos de
histria total passam por uma crise paradigmtica. Diante disso, Barros (2004)
enfatiza que no h uma obrigao de encaixar o trabalho historiogrfico em um
determinado campo da histria,
Na verdade isso no possvel, j que a ampla maioria dos bons trabalhos historiogrficos situa-se na verdade em uma interconexo de modalidades. Se so bons, so complexos. E se so complexos, ho de comportar algum tipo de ligao de saberes, seja os interiores ou exteriores ao saber historiogrfico (BARROS, 2004, p. 7-8).
Uma alternativa proposta por Barros (2004) seria estabelecer alguns
critrios de diviso que facilitariam o processo de interconexo dos diversos
domnios da histria. Segundo ele,
A chave para compreender estes vrios campos, (...) est em distinguir muito claramente as divises que se referem a dimenses (enfoques), as divises que se referem a abordagens (ou modos de fazer a Histria), e as divises interminveis que se referem aos domnios reas de concentrao em torno de certas temticas e objetos possveis (BARROS, 2004, p. 8).
21
As consideraes iniciais sobre a problemtica da feitura de um trabalho
historiogrfico apontadas por Barros (2004) serviram para refletir as abordagens que
a pesquisa sobre o povoado do Tabuleiro requereu ao discutir sua vida cotidiana,
analisando as relaes que as pessoas do lugar estabelecem com as vendas, bem
como as formas de sociabilidades e conflitos presentes na vida cotidiana daqueles
que vivem nessa localidade. Tais abordagens terico-metodolgicas se fizeram
necessrias visto que a pesquisa passeia por diversas dimenses da histria e por
outros domnios. Essas ponderaes deram um norte pesquisa e ajudaram a
pensar os problemas e desafios inerentes a ela.
Ainda no que diz respeito pesquisa em foco, foram contempladas, entre
as abordagens e dimenses propostas por Barros (2004), pelo menos, trs ramos da
histria: a Histria Regional e Local, a Histria Cultural e a Histria Oral, alm de
outros caminhos pelos quais tais campos da histria enveredam como os estudos do
cotidiano e da memria.
Dentre os diferentes conceitos de Histria Regional e Local, Neves (2002)
ressalta a ideia de pertencimento ao espao, que o indivduo o reconhece como
parte de sua Histria e a noo espacial se dilui, o homem se funde ao lugar,
reconhece-o como seu, criando uma identificao. Conforme esse autor,
A Histria Regional e Local consiste numa proposta de estudo de atividades de determinado grupo social historicamente constitudo, conectado numa base territorial com vnculos de afinidades, como manifestaes culturais, organizao comunitria, prticas econmicas, identificando-se suas interaes internas e articulaes exteriores e mantendo-se a perspectiva de totalidade histrica (NEVES, 2002, p. 45).
Diferente de Neves (2002), que v a regio como uma construo histria
de indivduos que criam laos de pertencimento ao lugar, para Albuquerque (2003,
p. 8) a noo de regio mais que uma delimitao territorial, ela uma construo
histrica, cultural e imagtico-discursiva. Definio essa a que o autor chegou ao
observar como o surgimento de uma identidade nordestina se deu a partir de um
discurso circunscrito numa relao de poder, na qual a decadente aristocracia
nordestina, diante de um momento histrico que alimentava um discurso de
apagamento das diferenas regionais e integrao nacional, se via ameaada,
22
portanto fazia-se necessrio manter uma memria espacial, que conservasse viva
essa dominao. A Regio Nordeste surge, assim, como uma inveno discursiva.
Embora o Nordeste, estudado por Albuquerque (2003), tenha sido
resultado da construo discursiva de uma elite social, sua concepo de regio
desenvolvida no livro A inveno do Nordeste se configura uma realidade diferente
daquela na qual o Tabuleiro est inserido. Porm, os conceitos de Histria Regional
destacados por Albuquerque (2003), aplicados a essa pesquisa, fazem pensar como
o sentimento regionalista no se limita a meras fronteiras geogrficas. A regio pode
ser uma criao histrica, um discurso construdo de uma dada visibilidade e
dizibilidade.
A existncia fsica de um lugar, de um espao, s ganha sentido na
prtica cotidiana, nas relaes afetivas, nas sensibilidades que se constituem entre
os sujeitos e os lugares por eles frequentados. Neves (2002, p. 45) destaca que o
regional e o local no esto desvinculados do extrarregional, do nacional, do que
acontece em outras localidades.
O Tabuleiro no est parte de acontecimentos macrorregionais. Houve
a preocupao de fazer, sempre quando possvel, a ponte entre os acontecimentos
no s do lugar como do Brasil e do mundo. Afinal, como aponta Ana Fani Carlos
(1996, p. 28-29),
O lugar aparece como um fragmento do espao onde se pode apreender o mundo moderno, uma vez que o mundial no suprime o local. O lugar se produz na articulao contraditria entre o mundial que se anuncia e a espacialidade histrica do particular.
Como se pode depreender das ideias de Ana F. Carlos (1996), nesse
processo de interao, entre o particular e o geral, do micro com o macro, que
possvel estabelecer um nmero maior de relaes e interpretaes nas aes
cotidianas. As especificidades se explicam e ganham significado, possibilitando
atingir as sensibilidades dos homens do passado, revelar como eles representavam
a si prprios e ao mundo. Um mundo simblico repleto de sentidos, por vezes
imperceptveis, multifacetados e, ao mesmo tempo, mensurveis em certos
aspectos, em aes concretas, palpveis, passveis de medio e comprovao.
O palco de atuao dos indivduos no o mero espao delimitado por
seus passos inscritos, provisoriamente, no cho que corresponde ao territrio onde
23
habitam. O espao significado nas vivncias dirias, na forma como os indivduos
o praticam. As aes dirias urdem experincias de vida, que relevam como homem
e mulheres pensam e se comportam. Assim, o cotidiano o lugar privilegiado para
observar como a vida se desenrola, porque longe de ser o lugar da banalidade, no
dia-a-dia que as vidas ganham sentido.
No Tabuleiro, o cotidiano est ligado ao trabalho no campo, ligao dos
moradores com a natureza, agitao das vendas, s festas tradicionais, s
conversas nos passeios das casas, enfim a cada lugar por onde passam esses
indivduos deixando suas marcas. Os estudos sobre o cotidiano se mostram de
grande valia para aqueles que se dedicam aos estudos locais. Muitas vezes, na
vida de todo dia que os historiadores encontram as chaves que abrem as portas que
conduzem ao entendimento do conhecimento histrico produzido pelos indivduos
nas relaes sociais, sobretudo, em um ramo da histria onde as experincias de
vida so fundamentais para sua compreenso.
Acerca dessas consideraes, as ponderaes feitas por Certeau (1994,
p. 41) no livro A Inveno do Cotidiano so de grande valia. O autor argumenta
que os mecanismos de poder, regulamentao e disciplinamento da sociedade, que
tentam regular e controlar a vida dos homens, podem ser burlados por prticas,
tticas e estratgias de sobrevivncia que os indivduos criam na dinmica cotidiana.
A vida social torna-se espao de negociao dentro de um cotidiano improvisado,
sempre possvel de ser re-inventado.
Por sua vez, Agnes Heller (1992, p. 17) argumenta que a vida cotidiana
a vida de todo homem. Ele est imerso na cotidianidade, no escapa a sua
dinmica. O indivduo , ao mesmo tempo, um ser particular e ser genrico, porque
cada sujeito nico e capaz de fazer escolhas individuais, assim como produto de
suas relaes sociais e sujeitos as suas influncias a partir de assimilaes. Esse
termo usado pela autora para se referir s formas de intercmbio social, nas quais
o indivduo mediado por grupos (famlia, escola, comunidade, etc.) apreende os
elementos da cotidianidade (HELLER, 1992, p. 21).
Os estudos do cotidiano encontram guarida tambm na Histria Cultural,
pois, como afirma Barros (2004, p. 57), a vida cotidiana est inquestionavelmente
mergulhada no mundo da cultura. Ao existir, o indivduo j produz cultura. A histria,
que, por muito tempo, se recusou em ver historicidade na cotidianidade, nas suas
prticas e representaes sociais, tem na Histria Cultural uma gama de objetos de
24
estudo, diversidade to grande que os historiadores que se debruam sobre os
estudos culturais tm sentido dificuldade de estabelecer noes de cultura e limitar
seus domnios de investigao. J que se trata de uma dimenso mltipla, plural,
complexa e que pode gerar diversas aproximaes diferenciadas.
Diante dessa diversidade, interessante abordar algumas das principais
discusses acerca da temtica da cultura e dos tericos que contriburam com suas
concepes pesquisa. Nas ltimas dcadas questes, como a prpria concepo
de cultura, a legitimidade na diviso entre cultura popular e erudita, a consistncia
de certos conceitos como: os de biculturalidade de Burke (1989); circularidade,
utilizado por Ginzburg (1987); multiculturalismo, usado por Hall (2003); e
hibridismo cultural de Bhabha (2005). Esses so alguns exemplos de conceitos de
cultura que tm gerado uma larga produo historiogrfica. Para se ter uma noo
do que vem sendo produzido, vale citar alguns nomes de referncia nos estudos
culturais e como eles abordam o tema cultura.
A concepo de circularidade cultural que prope como recprocas as
influncias entre a cultura dos segmentos dominantes e subalternos movendo-se
de baixo para cima constitui-se noutra importante contribuio de Ginzburg (1987),
inspirado nos trabalhos de Bakhtin (1987). No movimento de circularidade, ambas as
culturas popular e erudita se influenciam mutuamente, de acordo com valores
prprios de cada classe social.
Aproximando-se do conceito de circularidade cultural, Peter Burke (1989,
p. 56) cunhou o termo biculturalidade, para expressar o quanto os membros das
elites conheciam e participavam da cultura popular, ao mesmo tempo em que
preservavam sua cultura; ou seja, prticas culturais eram compartilhadas entre
membros do povo e das elites. Todavia, a expresso cultura popular e erudita/elite
criticada dada a extenso e a impresso homogeneizante que passa. Roger Chartier
(1991, p. 138-178), um de seus crticos, defende a ideia de que os sujeitos se
apropriam e representam as prticas culturais de formas diversas. H imbricaes
entre elas e diferentes maneiras de apropriao dos objetos, no sendo, por vezes,
possvel estabelecer a fronteira entre popular e erudito, encontrando formas originais
de cultura do povo como queria alguns historiadores.
Thompson (1987), em outra perspectiva e mais ligado Histria Social,
foi um dos pioneiros no que tange aos estudos de Histria Cultural, aproximando os
dois campos, ao afirmar que a classe social se constitui numa formao econmica
25
e tambm cultural (THOMPSON, 1987, p. 10). Nos seus estudos culturais sobre a
classe camponesa e urbana, assim como as transformaes operadas na Inglaterra
do sculo XVIII, observou que a cultura popular pode ser inserida nos movimentos
das classes trabalhadoras em defesa de seus costumes ante as mudanas do
mundo industrial moderno, o que ele chamou de economia moral da multido
(THOMPSON, 1998, p. 152), assumindo um ntido vis de luta de classes na defesa
de seus costumes que incluam tanto condies de trabalho como festas, feiras, vida
em tabernas e ritos sociais.
Os diferentes pontos de vista demonstram que, ainda hoje, arriscado
assumir conceitos cristalizados sobre cultura. Os tericos mencionados e outros
tantos revelavam que a cultura no pode ser reduzida a meros esquemas, limitada
em um conjunto de crenas e costumes. A cultura permeada de representaes,
apropriaes, simbologias, variando de acordo com experincias e vivncias dos
diferentes sujeitos histricos, lugares, espaos, relaes econmicas, polticas e
sociais. Cabendo queles que se dedicam ao estudo dessa temtica avaliar quais os
melhores conceitos ou procedimentos a serem adotados diante da vasta gama de
significaes do termo.
Em maior ou menor grau, esses autores contriburam para essa pesquisa,
embora em suas obras as discusses a respeito da cultura se debatam com
realidades diversas e conceitos mpares. Trabalha-se, aqui, ento, com a ideia de
cultura como uma ao tecida no dia-a-dia das relaes sociais, permeando as
prticas cotidianas dos indivduos, conforme as contribuies conceituais e tericas
dos autores mencionados.
Como j foi abordada anteriormente, a narrativa oral constitui a principal
fonte usada no trabalho e, embora no necessite que os documentos escritos ou
imagens a sustentem, ela, por si s, j uma evidncia. s vezes, para certas
realidades, espaos e lugares pesquisados, a fonte oral se torna essencial, uma vez
que capaz de ampliar a compreenso do contexto, produzir outras informaes
disponveis apenas na memria das pessoas.
Os defensores do status da Histria Oral como disciplina, apesar de
inmeras divergncias entre eles sobre determinados pontos tericos, partem de
uma ideia fundamental: a histria oral inaugurou tcnicas especficas de pesquisa,
procedimentos metodolgicos singulares e um conjunto de procedimentos prprios
(AMADO & FERREIRA, 1998, p. 13). Ainda na concepo de Janaina Amado e
26
Marieta de M. Ferreira, como disciplina, a Histria Oral dispe de um corpus terico,
que seus crticos consideram impreciso e inconsistente. Aqueles que a tomam como
uma metodologia fazem uso das suas tcnicas de recolhimentos das fontes orais e
procedimentos de interpretao da Histria Oral, mas no a dispem como uma
dimenso histrica capaz de se sustentar como uma disciplina.
Muitas crticas Histria Oral se ancoram em uma suposta no
confiabilidade, inconsistncia das memrias, imprecises de seus objetos de
estudos. A est o plus da Histria Oral, justamente por tratar da subjetividade, da
memria, das narrativas, depara-se com esse complexo mundo dos desejos, das
fantasias, dos sonhos que fazem parte de cada indivduo. Ao historiador cabe
analisar como se do essas subjetividades, como se constroem nas relaes
sociais; nesse sentido Thomson (1998) lembra que, no trabalho com as narrativas
orais,
(...) procuramos explorar as relaes individuais e coletivas, entre memria e identidade, ou entre entrevistador e entrevistado. De fato, frequentemente estamos to interessados na natureza e nos processos da rememorao quanto no contedo das memrias que registramos (THOMSON, 1998, p. 69).
Thomson (1998) chama a ateno para a importncia de como se do os
processos de rememorao, o que uma questo delicada na Histria Oral. Para
evitar o uso indiscriminado da memria, a sua manipulao requer um procedimento
tico do historiador na utilizao das narrativas, para que no produza uma farsa
histrica, colocando o valor da Histria Oral em xeque. Segundo Portelli (1997, p.
13), os historiadores orais tm a responsabilidade no s de obedecer a normas
confiveis, quando coligem informaes, como tambm de respeit-las, quando
chegam a concluses e fazem interpretaes.
Alis, o objeto de estudo do historiador oral so as histrias de vida dos
indivduos. O ato de narrar traz tona memrias de um tempo passado que vive no
presente e novas experincias ampliam constantemente as imagens antigas e no
final exigem e geram novas formas de compreenso (THOMSON, 1997, p. 57). Ou
seja, as memrias esto em um constante processo de ressignificao. Desse
modo, o que rememorado, de que forma so reconstrudas essas memrias e
27
como elas do sentido vida dos sujeitos constituem aspectos a serem investigados
pelos historiadores.
As narrativas orais, ento, remetem s memrias, j que as expressam
com toda fora. Nas entrevistas, notou-se que os indivduos pensam e sentem de
formas diversas, e essa profuso de reminiscncias distintas requer ajuda terica de
autores que se dedicam problemtica das memrias (para no incorrer no risco de
interpretaes precipitadas), bem como abordagens interdisciplinares que auxiliem
no entendimento de seus mecanismos de funcionamento.
Fala-se muito em memria coletiva, memria individual, memria social,
enfim, vrios tipos e formas de rememorar e de construir memrias. Dentre os
diversos conceitos, algumas consideraes se tornam necessrias. Burke (2000, p.
74-75) traz duas abordagens sobre memria: primeiro, ele a considera uma
construo social, que se vale de esquemas de identificao que levam ao
aparecimento de outras memrias; e segundo, como a memria social influenciada
por organizaes sociais e meios de comunicao de massa. O autor elenca,
tambm, cinco elementos de propagao e formao das memrias sociais: as
tradies orais, os relatos escritos, as imagens, aes que transmitem memrias
como ritos de comemoraes e os espaos, lugares de memria. Esses elementos
de construo no so ingenuamente usados, muitas vezes so tentativas de
convencer, formar a memria de outrem ou tentativas de impor interpretaes do
passado e construir representaes sociais, formadoras de identidades sociais.
O que Burke (2000, p.83) busca enfatizar como os grupos sociais
utilizam a memria de formas diferentes. Uma guerra, por exemplo, pode ser sentida
de formas distintas, os vencedores podem dar-se ao luxo de esquecer, enquanto os
perdedores no conseguem aceitar o que aconteceu e so condenados a remo-lo,
reviv-lo, refletir sobre como poderia ter sido diferente. Isso expe as
multiplicidades de identidades sociais, de memrias, que podem se valer de
esquemas vrios de conformao e identificao. Muitas vezes at o esquecimento
um ato proposital de apagamento de uma memria inconveniente, uma amnsia
social, na definio do autor.
A memria tambm feita de esquecimentos, de silncios, de selees e
incluses, to mltiplas em seus aspectos constituintes que prope vrios desafios
aos historiadores. Porm, pensar nas razes pelas quais ocorrem o esquecimento e
o silncio, diz muito histria. Segundo Pollak (1989, p. 3), o silncio pode surgir
28
como uma forma de resistncia de uma memria reprimida e que, por muito tempo,
no encontrou vazo, mas foi conservada e transmitida pelas geraes posteriores.
O mesmo autor argumenta, ainda, que o silncio sobre o passado est ligado a uma
necessidade de encontrar um modus vivendi, cujo esquecimento acomoda e ajuda a
superar experincias traumticas.
As variadas consideraes acerca da memria e suas imbricaes com a
Histria Oral e aos estudos culturais e regionais remetem a Raphael Samuel
(1989/1990, p. 232) ao chamar ateno para o fato de que o historiador pode fazer
com que a pedra de toque se torne a experincia real da vida das pessoas,
presentes no cotidiano, na vida cultural, nas memrias, nas vivncias que guardam
um mundo de possibilidades de investigao histrica.
Na perspectiva de pesquisar a vida cotidiana do povoado do Tabuleiro,
partindo da questo inicial de observar como as vendas da localidade influam na
vida social, cultural e econmica da populao do local, foram selecionadas algumas
referncias bibliogrficas a fim de dar suporte terico-metodolgico pesquisa. Na
ausncia de ttulos que tenham o povoado do Tabuleiro como objeto de estudo foi
necessrio recorrer pesquisa de obras que tivessem algum registro histrico da
cidade de Mutupe, da qual o Tabuleiro parte. Nesta busca foi selecionado o livro
Mutupe, Pioneiros e descendentes, de Helena Rebouas (1992). O livro traz, de
forma geral e, por vezes, descritiva, a histria da cidade, abordando desde sua
formao at aspectos de cunho poltico, econmico, social e cultural do municpio;
porm, no deixa de construir uma referncia bibliogrfica de grande valor diante da
escassez de trabalhos historiogrficos a respeito do municpio.
Para tratar do mundo rural (um dos objetos de estudo deste trabalho),
foram selecionados alguns trabalhos de pesquisa histrica que tm em comum a
reflexo sobre cotidiano do trabalhador rural, suas vivncias e experincias, bem
como suas prticas de sobrevivncias, expresses culturais, costumes e tradies.
Dentre eles, Fartura e Ventura Camponesas de Charles D Almeida Santana
(1998), que se prope a discutir sobre as migraes de trabalhadores rurais das
cidades de Santo Antnio de Jesus e Conceio do Almeida, entre os anos de 1950
a 1980, e a forma como homens e mulheres conseguiram sobreviver perda da
possibilidade de trabalho em suas cidades, assim como preservaram na memria
percepes e recordaes da vida no campo, utilizadas pelo historiador, a fim de
apreender mudanas / permanncias / incorporaes em seus costumes, hbitos,
29
valores e tradies no processo de rompimento com os laos que os prendiam
regio, na medida em que, pressionadas pelas transformaes em seus modos de
vida e trabalho, foram levados a assumir, em seus horizontes, a migrao para a
capital baiana.
Tambm foi de grande contribuio o trabalho de Edinlia Maria Oliveira
Souza (1999), Memrias e tradies: viveres de trabalhadores rurais do municpio
de Dom Macedo Costa Bahia (1930-1960). Trata-se de um estudo sobre a vida
cotidiana e experincias de descendentes de escravos e mestios pobres, marcados
por um passado de lutas contra a pobreza e por lembranas da escravido
traduzidas em comportamentos, atitudes, valores, tradies e costumes que
caracterizam a forma de viver dos trabalhadores do campo.
Por sua vez, Sylvia Maria dos Reis Maia (1985), em Dependency and
survival of Sapeau small farmers, contribui para o estudo do cotidiano no campo
da cidade de Sapeau, localizada no Recncavo da Bahia. Nesse trabalho, a autora
discute as estratgias de sobrevivncias, sobretudo, das trabalhadoras rurais, suas
vivncias nas casas de farinha, a lida com os animais, enfim, o dia-a-dia nas roas.
Aspectos fundamentais para entender como homens e mulheres do campo
desenvolvem tticas de sobrevivncias na vida cotidiana.
No que tange bibliografia sobre as vendas poucos foram os ttulos com
essa referncia, e quando o fazem sempre de forma rpida e sucinta, restando a
busca por obras com temticas prximas, compartilhadoras de certos pontos em
comum com esses estabelecimentos comerciais. Abaixo seguem algumas obras
com as quais tive contato e considero prximas do assunto em investigao:
Os trabalhos de Fernand Braudel (1997/1998), primeiro e segundo
volumes da trilogia Civilizao Material, Economia e capitalismo Sculos XV - XVIII.
Obras que analisam o conjunto das trocas, desde o escambo at o mais sofisticado
capitalismo, e cuja relevncia justifica-se por tratar do pequeno comrcio e seus
mecanismos de funcionamento, aspecto indispensvel para compreender como as
vendas influenciavam na vida econmica e social do povoado;
O estudo de Sidney Chaulhoub (1986), Trabalho, Lar e Botequim,
embora trate do dia-a-dia da classe trabalhadora no Rio de Janeiro da Belle poque,
traz uma importante discusso sobre o botequim como observatrio popular. Palco
de relaes sociais reveladoras de comportamentos, atitudes e valores culturais
30
desses sujeitos histricos, constituindo um estudo imprescindvel na compreenso
das vendas no s como espao de trocas econmicas como de sociabilizao;
O estudo de Maria Izilda Santos de Matos (2001), Meu Lar o
Botequim, que outro importante referencial bibliogrfico. O livro tem como eixo
central o alcoolismo e a construo da masculinidade nos discursos musical e
mdico entre 1889 a 1940, atravs de campanhas sanitrias e publicitrias que
veiculavam padres de sensibilidade, construindo novos hbitos, valores e costumes
para homens e mulheres. O que contribui para entender questes de identidade,
aspectos psicolgicos e outras peculiaridades inerentes aos frequentadores das
vendas;
As obras relacionadas constituem apenas a seleo de algumas
referncias utilizadas nessa pesquisa, mas com a juno dos pressupostos
terico-metodolgicos que o trabalho assume uma identidade, mesmo que mltipla
em seus aspectos constituintes.
Este texto est dividido em trs captulos. No primeiro, intitulado O
cotidiano das vendas, discute-se o espao das vendas na sua estruturao
organizacional, e o modo como essa espacialidade revestida de significados
diversos para os sujeitos que a praticam. Tambm so analisadas as mltiplas
funes das vendas e papis assumidos pelos vendeiros, com destaque para sua
funo sociabilizadora, alm de discutir como elas influam na dinmica
socioeconmica do Tabuleiro.
No segundo captulo, abordada a vida cotidiana da populao do lugar,
desde as atividades dirias, como o trabalho no campo, at os laos de
solidariedade estabelecidos em atividades como os adjutrios, e as formas de lidar
com as adversidades dirias atravs de jogos de astcias. Assim como foram
discutidas as mudanas operadas no povoado com a introduo de elementos da
modernizao tais como, a luz eltrica, a TV, os eletrodomsticos, a utilizao de
mquinas nas atividades laborais, a construo de uma estrada ligando o povoado
sede do municpio de Mutupe e seus impactos. Vale salientar que essas mudanas,
a partir da segunda metade do sculo XX, foram apontadas pelos entrevistados
como responsveis pela introduo de novos costumes e tradies, provocando
rupturas e permanncias na tessitura sociocultural e fsica do lugar.
Ainda no segundo captulo, em uma outra seo, trata-se das formas de
sociabilidade presentes no povoado, dentre elas destacam-se o folguedo da burrinha
31
e o brinquedo de roda. Tais aspectos so observados em uma abordagem cultural, a
fim de perceber como algumas dessas prticas sociais e muitas dessas festas e
espaos de socializao foram deixando de existir ou ganharam novas
configuraes, num processo de ressignificao de suas prticas, a partir de
mudanas operadas no s no povoado como na sociedade brasileira.
No terceiro e ltimo captulo, discutem-se os fatores que levaram
decadncia das vendas e a forma como isso afetou o povoado. Dentre esses
aspectos, destacam-se o crescimento da pecuria e da lavoura cacaueira, atividades
concentradoras de terras, que motivaram migraes da populao para outros
estados brasileiros, na busca de melhores condies de vida. Sem falar, no maior
acesso da populao local a outras localidades e aos bens de consumo ofertados
pela introduo de elementos da modernizao no lugarejo ou o aumento da
violncia, como identificado nas narrativas ao longo da pesquisa.
O trabalho apresentado tentou seguir os passos dos moradores do
Tabuleiro ao analisar e discutir suas aes e atitudes, possibilitando apreender
aspectos histricos no s de um lugar, como vivncias de pessoas que imprimiram
no espao sua prpria histria. Uma vez que esses sujeitos, ao darem voz a suas
experincias, deixando emergir as memrias de um tempo passado que ressoam no
presente, possibilitaram o estudo de uma memria social criada e forjada na vida
campestre.
32
CAPTULO I
O COTIDIANO DAS VENDAS
Tinha uma vendinha no canto da rua, onde o mangaieiro ia se animar. Tomar uma bicada com lamb assado, e olhar pra Maria do Jo.
Sivuca
1.1 AS LOJAS DAS ROAS
Lugares de memria, assim refere-se Pierre Nora (1993) aos lugares
onde a memria se cristaliza e se refugia; so vestgios do passado presentes no
espao, no gesto, na imagem, nos objetos. Seguindo esses rastros de memria,
encontram-se evidncias de um passado que o historiador, com seu olhar
perscrutor, mesmo carregado de signos do presente, pode usar para buscar, em
recordaes de um tempo passado, aspectos constituintes da histria de um lugar.
No caso do povoado do Tabuleiro, os lugares de memria se apresentam
nos caminhos abertos pelos trabalhadores rurais que diariamente se dirigem para
suas roas ou de seus patres para trabalhar, em uma casa velha, no balco das
vendas, onde muitos indivduos se recostam para conversar, beber, jogar, comprar
ou vender produtos, nas fotografias antigas que congelaram no papel momentos de
alegrias e tristezas, enfim, lugares de memria que trazem marcas concretas de um
passado construdo socialmente por aqueles que l conviveram ou convivem.
Para os antigos moradores, esses lugares so relembrados ou vistos com
um misto de alegria, tristeza e saudade; muitos s existem em suas lembranas.
Mas, graas capacidade dos indivduos de guardarem em suas memrias os
acontecimentos significativos de sua vida, foi possvel aos sujeitos que vivenciaram
as transformaes cotidianas do local narrarem as suas memrias sobre as festas, o
dia-a-dia nas vendas, a chegada de elementos da modernizao e seus efeitos
33
sobre as pessoas e o lugar, entre outros tantos aspectos da vida social de uma
comunidade rural.
Dentre os lugares de memria, as vendas, certamente, marcam a histria
do Tabuleiro e as lembranas daqueles que l convivem. Ao se dirigirem a esses
estabelecimentos comerciais, os indivduos criam laos de familiaridade por meio de
prticas cotidianas imperceptveis, que ajudam a compor lembranas e, mais que
isso, de alguma forma, fossem quais fossem os caminhos escolhidos para
percorrerem, no Tabuleiro, quase todos os caminhos levavam s vendas,
atravessando vidas, compondo destinos.
As marcas que os passos dos indivduos deixam no cho de terra batida
do vilarejo, e que o tempo e o vento tratam de apagar, embora no tenham permitido
deixar registros materiais de sua passagem, criaram nas lembranas dos moradores
um cabedal de memrias que marcam definitivamente suas vivncias. Ao falar do
Tabuleiro, remete-se, inevitavelmente, s vendas. Durante as entrevistas com os
moradores locais fica evidente como esses estabelecimentos comerciais permeiam
suas memrias. As vendas, no passado, eram como a seiva que revigorava a vida
do povoado, o corao de um corpo social cuja alma do lugar alimentava. Tanto que
as crises econmicas sentidas pelas vendas, a partir dos anos de 1990, abalaram de
forma direta a dinmica social do Tabuleiro.
A venda se constitui mltipla em seus diversos aspectos, ultrapassa o
esteretipo de lugar de trocas econmicas. Os frequentadores mais do que comprar
e vender buscam as vendas para se divertirem, elas promovem o encontro, a festa,
o lazer. Mas as vendas podem ser tambm palco de desentendimentos, de brigas e
conflitos. Aspectos discutidos por Sidney Chalhoub (1986, p.231) ao se referir s
vendas e botequins do Rio de Janeiro na virada do sculo XX. Para o autor, a venda
um
Centro aglutinador e difusor de informaes entre populares. E mais do que isto, a referncia a venda como um observatrio popular, sugere que este um ponto privilegiado uma espcie de janela aberta para o estudo de padres de comportamento dos homens pobres (...). E, com efeito, a venda ou o botequim cenrio para o surgimento e desenrolar de rixas e conflitos pelos mais variados motivos, desde os problemas ligados ao trabalho e habitao, passando pelas questes de amor e relaes entre vizinhos, e chegando at as contendas por motivos mais especificamente ligados ao lazer, como os jogos (...) ou a bebida.
34
Muitos entrevistados trazem em suas narrativas os vrios aspectos que
envolvem a vida cotidiana nas vendas, explcitos por Chalhoub, ao relembrarem das
brigas e assassinatos, das conversas animadas, dos dias que ficavam at altas
horas da noite cantando, tocando, jogando e bebendo; demonstrando, assim, que as
vendas no so apenas lugares de atividades comerciais e de bebedeira, mas
importantes espaos de sociabilidade e conflitos.
Aqueles que entravam por uma das diversas portas da venda, pelo menos
a partir da segunda metade do sculo XX, viam naquele ambiente imagens que lhes
eram e continuam, em parte, sendo prprias. As vendas, em sua estrutura fsica, tm
um balco separando o espao do vendedor e do fregus, sobre o qual eram
colocados fardos de carne do sol e do serto (conhecida em outras regies do Brasil
como carne seca ou charque), peixes salgados, toucinhos de porco, rolos de fumo
dos quais os fregueses costumavam tirar algumas lascas, picar e fazer cigarros sem
pagar nada. At mesmo costumavam provar as carnes salgadas e cruas como tira-
gosto acompanhado quase sempre por um copo de pinga ou um punhado de
farinha de mandioca que tambm estava venda.
Nas paredes, podia-se ver uma profuso de mercadorias expostas nas
prateleiras ou penduradas em ganchos, outras se espalhavam em cima de tbuas
pelo cho. Havia, tambm, uma mesa ou escrivaninha onde o vendeiro colocava o
dinheiro ganho, seus cadernos de anotaes e outros instrumentos de trabalho. Do
lado do fregus, na parte externa do balco, havia alguns bancos, cadeiras ou toras
de madeira colocadas em posio vertical servindo como assentos. Em algumas
vendas de maior tamanho haviam sinucas e mesas utilizadas para o jogo de cartas
ou simplesmente para servir os clientes. Pelo cho se espalhavam mercadorias,
sacos de farinha de mandioca, caixas, rolos de corda de sisal, etc.
As vendas eram vistas, tambm, por alguns como lugares de sujeira e
desorganizao; ali os fregueses cuspiam no cho, as moscas zanzavam sobre as
carnes e os vendeiros, na sua maioria, no mantinham hbitos higinicos na
manipulao dos alimentos. Alis, aqueles que buscam nas vendas um ambiente
assptico, provavelmente, no o encontrar. H at um dito popular na regio que
diz: quem no quer casa cuspida, no ponha venda. Ou seja, o cho das vendas
quase sempre estava sujo, mas h que se entender que isso faz parte de prticas
comuns aos frequentadores desse espao. A cachaa jogada no cho, por exemplo,
tem origem no ritual dos bebedores de ofertar uma parte aos santos; outros porque
35
mascavam fumo e cuspiam a borra no cho. Enfim, era um lugar onde muita gente
circulava, com costumes e hbitos diversos, logo lhe dava esse aspecto
aparentemente de desorganizao, mas que parte de sua essncia diversa de
sentidos simblico e funcional.
Foto 01: Venda Santa Ana. Povoado do Tabuleiro, Mutupe. Fonte: Fotografia - Josiane Theth Andrade, setembro de 2003.
Esse cenrio pode ser observado em algumas representaes imagticas
das vendas. A fotografia usada como elemento de abordagem do passado pode
conter, em sua superfcie sensvel, a marca indefectvel do passado que a produziu
e consumiu (MAUAD, 1996, p 10). E, talvez, seja nas memrias que a fotografia
carrega ou nas que ela pode revelar que a histria surge, como um lampejo do
passado, despertando lembranas adormecidas que retornam velozes (BENJAMIN,
1993, p. 225), e que devem ser apresadas pelo historiador antes que se evanesam
como uma luz que se extingue.
A fotografia do estabelecimento comercial do falecido Sr. Juvenal
Santos Andrade (1948 2002). Com a morte do proprietrio, a venda passou a ser
administrada por seu scio e irmo Szinio Santos Andrade. No que diz respeito
produo da prpria imagem fotogrfica, preciso destacar que a inteno era
captar um ngulo capaz de contemplar o mximo possvel o espao da venda, para
mostrar e ampliar o leque de elementos a serem analisados no documento. Ao
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observar a imagem, nota-se que a venda conserva sua estrutura fsica e
organizacional, mas, na fotografia, outras espacialidades se revelam. Segundo
Mauad (1996, p.10),
A prpria fotografia um recorte espacial que contm outros espaos que a determinam e estruturam, como, por exemplo, o espao geogrfico, o espao dos objetos (interiores, exteriores e pessoais), o espao da figurao e o espao das vivncias, importamentos e representaes sociais.
Quanto organizao das mercadorias nota-se que elas esto
espalhadas e misturadas sem nenhum critrio quanto forma e tipo. Por exemplo,
nas prateleiras superiores observam-se garrafas de bebidas alcolicas lado a lado
com vasilhames de leo lubrificante para motores automotivos, produtos que por
serem inflamveis, no deveriam estar nesse lugar. Embora a disposio dos artigos
venda seja feita com a inteno de mostr-los e incentivar o consumo, esses
estabelecimentos possuem uma organizao prpria, a preocupao maior era com
o sortimento dos produtos, pois o esprito dessas lojas das roas fornecer de tudo
um pouco.
Na imagem aparece com clareza o balco que separa duas
espacialidades bem distintas, o lado do fregus e o lado vendeiro. Simbolicamente,
h uma separao entre o pblico e o privado. O balco assume uma configurao
limtrofe e constitui um elemento carregado de representaes significativas para
entender as atitudes dos sujeitos e as intenes na concepo cnica dos espaos
da venda.
Goffman (2009, p. 120) discute como espaos pblicos e privados podem,
por sua natureza, estabelecer atitudes comportamentais diferenciadas. A partir de
uma anlise dramatrgica da sociedade, o autor enfatiza que os indivduos
assumem diversos papis sociais, agindo como atores em um jogo de simulao,
que varia conforme o palco e os interesses, dos papis que eles querem assumir ou
dos que so obrigados a representar. Na concepo do autor, a forma como as
pessoas se comportam nesses espaos uma questo a ser problematizada, visto
que revelam muitas aes por trs das atuaes dos atores sociais.
Pode-se, distinguir, dentre outras, quatro regies simblicas no espao da
venda: a fachada da venda; a parte externa e interna ao balco e os fundos da
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venda. Cada espacialidade vivenciada e significada de forma diversa pelos
indivduos que ali circulam. Na fachada, os batentes das portas so divisas entre
trs mundos complementares: a rua, a venda e por trs do balco. O que acontece
na rua, embora seja exterior venda, no aberta a qualquer ao por parte dos
sujeitos que a passam. A rua funciona como uma extenso da venda, embora fosse
pblica e livre circulao de todos. Para ali se estendiam as mesmas regras de
comportamento respeitadas no interior das vendas, o pblico e privado se fundem.
Da Matta (1997, p. 47) discute esses aspectos ao afirmar que a casa e a rua
constituem
Esferas de significao social - casa, rua e outro mundo - que fazem mais do que separar contextos e configurar atitudes. que eles contm vises de mundo ou ticas particulares (...), esferas de sentido que constituem a prpria realidade e que permitem normalizar e moralizar o comportamento por meio de perspectivas prprias.
Numa passagem de sua entrevista, Dona Aurineide ressaltou que os
comcios polticos e festejos tradicionais nas portas da venda, (em outras palavras,
na frente da casa comercial) para se realizarem era pedida, geralmente, autorizao,
no caso, ao seu marido, o vendeiro Juvenal:
Eles chegava aqui na venda, chamava a gente avisando do que ia acontecer e pregava os cartaz. Se fosse na frente da venda o pessoal pedia autorizao a Juvenal, se j fosse na frente da escola pedia ao prefeito (Aurineide Theth, 50 anos, entrevista em 14/04/2007).
Nessa fala, dois aspectos destacam-se: a parte da rua frontal venda
tratada como propriedade do vendeiro; e a rea em frente escola como um
espao pblico, controlado pelo governo. No primeiro caso, a dicotomia casa e rua
quebra sua barreira, o pblico tratado como privado, talvez isso ocorra porque nas
comunidades rurais o terreiro da frente, como chamado esse espao, uma
extenso da casa, como os passeios e caladas nas casas urbanas.
No momento em que os ps dos transeuntes ultrapassam as portas das
vendas e adentram em seu espao interior, outros comportamentos e atitudes
morais so esperados dos praticantes desse espao. Como a rua ficou para trs,
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comportamentos arruados so malvistos, no se pode misturar o espao da rua
com o da casa sem criar alguma forma de grave confuso ou at mesmo conflito
(DA MATTA, 1997, p.50), uma vez que a venda possui tambm um carter de casa.
Segundo Bachelard (2008, p.25), todo espao, realmente habitado traz
consigo a essncia da noo de casa, ou seja, nele os praticantes sentem-se
acolhidos, protegidos; sem falar, que a casa o lar primeiro, espao que
Na vida do homem, (...) afasta contingncias, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantm o homem atravs das tempestades do cu e das tempestades da vida. Ela corpo e alma. o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "jogado no mundo", como o professam as metafsicas apressadas, o homem colocado no bero da casa. E sempre, em nossos devaneios, ela um grande bero. Uma metafsica concreta no pode deixar de lado esse fato, esse simples fato, na medida em que ele um valor, um grande valor ao qual voltamos nos nossos devaneios. O ser imediatamente um valor. A vida comea bem; comea fechada, protegida, agasalhada no regao da casa (BACHELARD, 2008, p. 26).
Ao pisar no cho da venda, penetra-se simbolicamente no espao da
casa, portanto, os indivduos sentem-se em um lugar que acolhe e protege; invadir
esse espao ou desrespeit-lo pertubar a paz, pois o espao destas lojas rurais
sentido de forma sentimental pela maioria dos fregueses, visto que compe as
memrias afetivas de muitos que cresceram frequentando a venda, conhecendo o
vendeiro e suas famlias.
Para Bachelard (2008, p.64), a casa um espao que deve condensar e
defender a intimidade. A ideia de privacidade remete a um estado no qual o
indivduo pode exercer sua intimidade sem se preocupar que outros estejam
observando ou censurando, sentir-se vontade. Dessa forma, comportamentos
ofensivos, que agridam a intimidade e o sossego dos fregueses so reprovveis; e
agir, no espao da venda, como se estivesse na rua um comportamento
inaceitvel.
Tanto a parte externa quanto a interna do balco no propiciam plena
privacidade. Mesmo representando um limite entre o pblico e privado, divisar tais
instncias uma tarefa inexata. O balco constitui uma meia barreira, ele permite
visualizar as aes do vendeiro, seus procedimentos, quem entra e sai daquele
ambiente, da mesma forma que o comerciante tambm o faz em relao parte
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externa. Por outro lado, se algum, sem permisso, pular o balco ser visto como
um invasor quebrando a regra de convivncia que permeia a conduta moral daquele
ambiente. Mais que isso, invaso propriedade privada, assim como intimidade
do vendeiro; a parte interna o seu lugar de atuao, onde ele e sua famlia
circulam. At porque muitas vendas so conectadas prpria casa do vendeiro,
quase sempre por uma porta que d acesso aos dois espaos, o que chamo aqui de
fundos da venda, o lugar, realmente, de privacidade dos proprietrios dessas casas
comercias.
As diversas espacialidades, funes e representaes das vendas que
existiam no Tabuleiro faziam delas um difusor de sensaes aos sentidos com
cheiros tpicos, vindos das carnes salgadas espalhadas no balco, das cachaas,
das especiarias espalhadas em sacos pelo cho, um cheiro misto de cravo e cacau,
alm das cores diversas configuradas pelas mercadorias dispostas nas prateleiras,
pelos doces expostos em frasqueiras giratrias cujo movimento encantava as
crianas, fazendo-as sonhar e salivar com as guloseimas. Sem contar as sensaes
tcteis dos objetos dispostos no ambiente, enfim, a venda funcionava como um
espao sinestsico, e como uma porta de entrada das novidades, fossem
tecnolgicas ou dos noticirios referentes aos ltimos acontecimentos no Brasil ou
no mundo.
Em consonncia com a ideia de espao da novidade, voltando anlise
da fotografia (Foto 01), perceptvel a introduo de elementos da modernizao no
espao da venda como frzeres, televiso e balana digital, entre outros,
evidenciando melhoramentos tcnicos dos instrumentos de trabalho do vendeiro,
possibilitados, em parte, pela chegada da luz eltrica no povoado em 19793.
Alis, o fato da venda do Sr. Juvenal ter conseguido se modernizar e, ao
mesmo tempo, ter aliado sua prtica comercial ao antigo sistema de socializao do
homem do campo podem ter sido fatores que fizeram com que sua venda tenha se
mantido por mais de trinta anos em funcionamento, com uma freguesia fiel,
enquanto esteve em atividade. Como afirma Certeau (1996, p.120), ao se referir s
pequenas mercearias tradicionais dos bairros franceses, a modernizao suscita
sempre alguma desconfiana quanto qualidade dos produtos; a padronizao, a
3 A luz eltrica chegou ao Tabuleiro em 1979, devido iniciativa de alguns moradores que recorreram
aos servios da Companhia Baiana de Eletrificao Rural. Informaes retiradas do contrato do proprietrio da Venda Santa Ana. Cf: COBER, Contrato n 1623/79.
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mercadoria previamente embalada, todos esses processos na apresentao dos
alimentos que inquietam o fregus ante as mudanas. Portanto, foi justamente o
equilbrio entre o novo e o antigo que evitou uma ruptura simblica entre aquilo que
as vendas representam com toda sua tradio e as inovaes trazidas pela
introduo gradativa de elementos modernizantes.
A chegada da televiso, no entanto, foi sentida pela populao local de
uma forma bastante significativa. Abriu-se um mundo de possibilidades. A venda
passou a oferecer no s mais um meio de distrao e lazer, mas um portal para um
mundo da cultura de massa. As novelas, o telejornalismo, os filmes e desenhos
animados passaram a adentrar naquele universo rural, mudando costumes,
interferindo nas prticas sociais. Assim a senhora Aurineide Theth descreve a
novidade da TV:
A, ia os meninos assistir televiso, outros eu vou assistir o jornal. J vinha pra venda ver televiso, assistir novela. Tinha uma novela chamada Marrom Glac que o povo j gostava de assistir essa novela, foi logo quando botou televiso aqui (Aurineide Theth, 50 anos, entrevista em 14/04/2007).
Hobsbawn (1994, p.300) comenta como o fenmeno da televiso chegava
s populaes de pases mais pobres, a partir da segunda metade sculo XX, por
meio de espaos pblicos, que aglutinavam as pessoas diante da caixa mgica, j
que os primeiros aparelhos de televiso eram caros e, por conseguinte, no
acessveis a todos. Ir a lugares pblicos como bares, clubes, praas para ver TV
tornou-se um costume de muitos, no incio atrados pela novidade da tecnolgica,
depois pelo hbito ou, quem sabe, ver TV s era mais um pretexto para sair,
encontrar gente nos lugares pblicos.
A chegada da TV um exemplo dos impactos causados pela introduo
de elementos modernizantes no espao da venda, que funcionava como uma
espcie de catalisador das transformaes sociais do povoado, na medida em que
havia uma interao entre os sujeitos e o lugar, atravs de formas de apropriao,
utilizao e ocupao do ambiente fsico da venda. Se fosse definir o espao das
vendas, diria que sua geografia emocional desde quando ele ressignificado
sentimentalmente pelos indivduos enquanto construo social.
41
1.2 A VENDA E SUAS MLTIPLAS FUNES
As lojas das roas, como Guimares Rosa (1969) trata as vendas no
conto A estria do homem do pinguelo, caracteriza-se pela diversidade de funes.
No Tabuleiro, elas deveriam atender s necessidades de consumo dos moradores e
absorver a produo agrcola da regio, por isso o ambiente da venda teve que se
adaptar a tais necessidades. As vendas, comumente, agregavam no mesmo espao
as funes de armazm, aougue e, at mesmo, casa de jogos e, por conseguinte, o
prprio vendeiro acabava assumindo diversos papis.
O Sr. Carmerino Theth (1925 - 2008), que viveu toda sua vida no campo,
sempre de chapu na cabea e vestido com camisa de manga e cala de linho,
gostava de andar sempre alinhado e, por anos, participou da vida cotidiana do
Tabuleiro, assim descreveu como se davam as relaes comerciais nas vendas:
O povo leva mercadoria pra vender, levava coisa pra vender na venda e trazer mercadoria da venda. Vendia e comprava, que tinha armazm. A mesma venda servia de armazm, comprava a farinha, comprava o caf, comprava o cacau, comprava fumo, nesse tempo tinha fumo! Comprava fumo e comprava mercadoria na venda. Isto tudo eu arcancei; s vezes ia e no. Levava o dinheiro, levava as mercadoria nos anim. Vendia e comprava mercadoria ( Carmerino Theth (1925 2008), entrevista em 16/03/2003).
Com essas palavras, o Sr. Carmerino Theth traduz o papel da venda
como instrumento elementar da troca, termo usado por Fernand Braudel (1998)
para se referir s trocas comerciais que escapam ao grande mercado, que as
estatsticas no controlam, uma espcie de civilizao material, que compe esta
infraeconomia, esta outra metade informal da atividade, a da autossuficincia, da
troca dos produtos e dos servios num raio muito curto (BRAUDEL,1997, p.51).
Isto perceptvel numa pesquisa encomendada pelo SEBRAE-BA
(Servio de Apoio s Micro e Pequenas Empresas da Bahia) em 1995, na qual a
microrregio do Vale do Jiquiri, onde o municpio de Mutupe se localiza,
apontada como uma regio de produo predominantemente agrcola, em que os
sistemas de comercializao adotados diferem em se tratando de pequenos ou
mdios/grandes produtores.
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Os maiores produtores realizam a comercializao da sua produo com intermedirios tradicionais ou, em condies adversas de preos, levam o produto diretamente ao mercado. J os pequenos, por falta de maior poder e barganha, entregam o resultado da sua atividade aos bodegueiros 4 ou caminhoneiros sempre presentes s feiras municipais. (SEBRAE, 1995, p.51)
Os vendeiros exerciam a funo de intermedirios das trocas5, limitando-
se a comprar e vender sem fabricar com as mos a maior parte daquilo que
ofereciam. Os trabalhadores rurais (maioria de seus clientes), pelo contrrio,
vendiam seus gneros agrcolas e compravam imediatamente as mercadorias que
necessitavam nos prprios estabelecimentos ou em outros locais, como j foi
relatado pelo Sr. Carmerino que levava as mercadoria no anim, vendia e comprava
mercadoria, ou seja, era uma relao direta. Os lavradores com pouco poder
aquisitivo no tinham como segurar os produtos e esperar a elevao dos preos.
No obstante, pelo menos at a dcada de 1960, era difcil o acesso cidade de
Mutupe, devido s dificuldades de locomoo e dada precariedade das estradas,
as vendas acabavam surgindo como opes mais confortveis para comerciarem;
porm, preciso salientar que isso no era regra geral, muitos encontravam outras
formas de negociar seus produtos.
A diversidade de produtos pode ter contribudo para que os moradores e
trabalhadores rurais procurassem com mais frequncia as vendas do Tabuleiro e
no o comrcio da cidade. Durante as entrevistas com vendeiros ou ex-vendeiros do
povoado, quase todos demonstraram a preocupao em fornecer de tudo um
pouco para a populao local, atendendo s necessidades dos consumidores,
vendendo desde alimentos, ferramentas usadas no campo a remdios, s pra citar
alguns exemplos.
Para o Sr. Jos Gonalves, tocador de violo, vendeiro no Tabuleiro,
entre as dcadas de 1960 a 1990, a venda deveria estar sempre sortida:
Era carne, era sabo, era acar, era feijo, era arroz e mais alguns cereais. De tudo a gente botava: manteiga, cachaa, fumo de corda, cigarro. Isso as coisas da venda. Comprimido, ali, para febre, dor de cabea, essas coisa, gripe. Tudo a gente botava, retalho. Sabe?
4 Bodegueiros outra denominao dada aos donos de vendas da regio.
5 Conferir referncia feita por Braudel aos lojistas europeus do sculo XVIII, como intermedirios das
trocas, insinuando-se entre os produtores e compradores, sem quase nunca fabricarem com suas mos o que vendiam. Atividade semelhante a do vendeiro, como pequeno comerciante que . Cf: Civilizao Material, Economia e Capitalismo sculos XV XVIII: Os jogos das trocas. v.2, p. 48.
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(Jos Gonalves de Oliveira, 87 anos de idade, entrevista em 19/01/2003).
O princpio de fornecer de tudo um pouco nas vendas foi apreendido no,
j citado, conto do escritor Guimares Rosa (1969), A estria do homem do
pinguelo. Rosa relata o cotidiano de um vendeiro chamado Cesarino, que havia
herdado a venda do pai e vivia em um arraial, nas palavras do autor, em um
princpio de mundo cercado de campos e tabuleiros. No conto, Cesarino descrito
como um homem querido de todos, influente no lugar, mas que tambm sofria com
as dvidas e concorrncia de outras casas comerciais. Ao descrever o cotidiano das
vendas, as prosas ao p do balco, o ritual dos bebedores, Rosa (1969, p.107)
destacou como as vendas em sua essncia deveriam ser sortidas de produtos ao se
referir aos estoques de uma loja da roa, onde de tudo h armarinho, fazendas,
ferragens, armas, secos e molhados gneros, toucinho, artigos fnebres, tinta,
cadernos, panelas e velas.
Na fala do Sr. Pedro Andrade, ex-vendeiro do Tabuleiro e agricultor
famoso por ser um exmio contador de causos, ele descortina uma realidade que
se aproxima daquela que se configura na fico de Rosa (1969): eu vendia secos e
molhados e comprava cereais. Matava boi, matava porco. Tinha casa de jogo, tudo
que participava da diverso eu tambm tinha e supria o povo (Pedro Andrade, 75
anos, entrevista em 06/07/2003).
A variedade de funes e de produtos comercializados por essas lojas
das roas traz tona alguns questionamentos. Como as mercadorias eram
adquiridas? De que formam chegavam ao povoado? A resposta para tais
questionamentos remete a uma reflexo sobre o acesso que os vendeiros tinham
aos meios de transporte, dificuldade de localizao do povoado e sobre a prpria
rota percorrida pelos produtos at chegarem ao Tabuleiro e, consequentemente, a
sua populao. Alm do que, preciso observar as mudanas de infraestrutura
ocorridas no povoado a partir da segunda metade do sculo XX, reflexo de
transformaes em nvel nacional que interferiram no acesso s mercadorias e em
antigos costumes e tradies.
At a dcada de 1960 as mercadorias chegavam ao Tabuleiro, quase
sempre, transportadas por mulas, cavalos ou jumentos que os vendeiros possuam.
Eles mesmos iam at cidade montados nos animais, carregando-os de
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mercadorias nos armazns, que, por sua vez, adquiriam os produtos chegados
atravs da j decadente Estrada de Ferro de Nazar, que cortava o municpio de
Mutupe, ou nas mos dos tropeiros que trabalhavam para os donos dos armazns,
trazendo os produtos de regies vizinhas; e como relembra Sr. Jos Gonalves,
tropeiro era ns mesmo, e ele continua:
[As mercadorias] vinha daqui de Mutupe, nesse tempo no tinha nem estrada diretamente, a gente andava era no lombo dos anim, tanto eu quanto Maninho. A gente muntava no meio da cangalha, botava panacum6 e tudo, a ia buscar as coisas (Jos Gonalves de Oliveira, 87 anos de idade, entrevista em 19/01/2003).
O Sr. Carmerino Theth, em outro trecho de sua entrevista, narra com
riqueza de detalhes a maneira como os vendeiros adquiriam as mercadorias:
A mercadoria da venda vinha de Laje, vinha de Mutupe, vinha de Valena, vinha de todo o canto, em lombo de anim, ia buscar de lombo de anim! A estrada de ferro trazia, botava em Laje, o trem de ferro botava em Mutupe, era carregado pelo trem de ferro. Agora, de Mutupe pra c, vinha em lombo de anim, porque no tinha estrada de carro
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