VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3636
OFICINA DE LÍNGUA PORTUGUESA: A SEGUNDA LÍNGUA PARA SURDOS
LARA FERREIRA DOS SANTOS1
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
DJAIR LÁZARO DE ALMEIDA2
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
INTRODUÇÃO
O ensino-aprendizagem da leitura e escrita da língua majoritária como segunda língua para
surdos tem sido tema de diversos estudos desenvolvidos à luz de diferentes perspectivas
teóricas. Por muito tempo acreditou-se que as dificuldades apresentadas por sujeitos surdos
e os consequentes erros realizados por estes indivíduos na leitura e escrita, fossem
causados por um déficit cognitivo imposto pela própria surdez (SVARTHOLM, 1994;
WATSON, 1994). Lacerda (1998) discute de forma bastante aprofundada as diversas
correntes teóricas e abordagens de atendimento aos surdos; mas vale destacar que dentre as
três principais correntes – Oralismo, Comunicação Total e Bilinguismo -, o Oralismo foi a
que teve maior duração e deixou marcas profundas na história das comunidades surdas – as
consequências são observadas ainda hoje no desempenho escolar e nos textos produzidos por
surdos, muito aquém do desejado.
Considerando os documentos legais mais recentes em favor das comunidades surdas,
somados à atual política de inclusão educacional, passou-se a defender a Educação
Bilíngue para surdos.
A partir da publicação da Lei nº 10.436 (BRASIL, 2002), que reconheceu a Libras como
língua de comunicação e expressão das comunidades surdas brasileiras, e do Decreto nº
5.626 (BRASIL, 2005), que definiu atribuições e previu a inserção de profissionais
específicos para atuarem junto à educação de surdos, muitas alterações foram difundidas e
exigidas do poder público com relação ao atendimento e inclusão educacional desta
parcela da população. Começou-se, então, a discutir a Educação Bilíngue como modelo de
atendimento mais adequado. De acordo com o texto do Decreto nº 5.626 (BRASIL,
2005) as instituições de ensino devem assegurar o atendimento diferenciado aos alunos
surdos, em todas as etapas da educação, e também profissionais como professor bilíngue,
instrutor surdo e intérpretes de Libras.
Lodi (2013) define a educação bilíngue para surdos, considerando que eles devem
desenvolver, primeiramente, a língua de sinais (L1) nas relações com usuários desta língua
(preferencialmente surdos) e, a partir do aprendizado desta língua, o ensino-aprendizagem da
língua portuguesa escrita pode ter início, sendo esta a segunda língua dos surdos (L2). A
1 Mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) e Doutoranda em Educação
Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Doutorando em Educação Especial
pela Universidade federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected].
VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3637
autora destaca ainda a relevância de práticas bilíngues que considerem as particularidades,
materialidade e aspectos culturais associados à língua de sinais, fatores que demandam
metodologias de ensino adequadas a este público e elaboradas a partir da Libras.
A educação bilíngue baseia-se, portanto, no pressuposto de que ao se deparar com a Língua
Portuguesa escrita, o surdo, dotado de um discurso proporcionado pela Libras, pode
apreender, compreender e apreciar a enunciação daquela, como segunda língua. Neste
sentido, Bakhtin nos apoia quando define língua como reflexo de relações sociais.
Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode
ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior. Aquele que
apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o que se
pode chamar o “fundo perceptivo”, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é
por aí que se opera a junção com o discurso aprendido do exterior. A palavra vai à
palavra. (BAKHTIN, 2010, p.153).
É, portanto, no quadro do discurso interior, edificado por uma língua, que ocorrem as
construções conceituais da leitura e da escrita. Dessa forma, a língua de sinais é usada como
elemento de significação desse processo para o surdo, cujas especificidades relacionam-se:
a não fonetização da escrita, a uma intensa exploração dos aspectos viso-espaciais
da escrita e ao uso dos parâmetros fonológicos da língua de sinais como elemento
regulador e organizador da escrita. (PEIXOTO, 2006, p. 205).
Porém, a produção textual escrita, fruto de uma enunciação, pressupõe uma anterior
elaboração ativa da linguagem a partir da recepção de um repertório, por meio da leitura
como chave de acesso e de interpretação do meio social, cultural e histórico. Dessa forma, a
aprendizagem da escrita atrela-se à diversidade de textos e contextos manipulados pelo
indivíduo surdo. Garantem-se, assim, os elementos necessários à negociação entre sinais e
palavras, operando a semantização destas nos diferentes contextos.
Todavia as propostas e práticas educacionais baseiam-se, ainda hoje, no ensino de
conhecimentos da língua portuguesa por si própria, sem repensar metodologias de ensino que
considerem a Libras como base para este aprendizado, o que causa insucessos devido ao pouco
acesso dos surdos aos conhecimentos, pela barreira linguística imposta. Assim, em decorrência
de práticas inadequadas de ensino, observa-se que muitas vezes esses sujeitos, já adultos e ao
final da escolarização básica, não são capazes de ler e escrever satisfatoriamente ou ter um
domínio adequado dos conteúdos acadêmicos (LACERDA e LODI, 2009). Portanto torna-se
fundamental discutir formas de ensino que permitam o amplo letramento de surdos no
Português escrito.
Assim sendo, a aprendizagem da língua portuguesa, na modalidade escrita, não é uma opção,
mas uma necessidade imposta pela vida social bem como pelos processos de escolaridade. A
própria legislação brasileira, afirma que “A Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá
substituir a modalidade escrita da língua portuguesa” (BRASIL, 2002). O ensino-
aprendizagem da língua portuguesa, de acordo com Lacerda e Lodi (2009, p.145), empregou
historicamente uma metodologia fundada em estratégias isoladas do contexto enunciativo,
não permitindo uma relação discursiva efetiva entre o aluno surdo e a linguagem escrita. Tal
metodologia, não proporcionando o fluxo do discurso que deveria se estabelecer na transição
VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3638
das referidas línguas, não desenvolvia o processo de leitura necessário para a posterior
produção textual. As autoras defendem, ainda, que o ensino-aprendizagem da língua
portuguesa escrita para surdos deve partir de uma metodologia que reconheça a necessidade
de se levar em conta “a interação entre escrita e os valores socioculturais que a determinam”,
tendo em vista a situação de uso nos diferentes campos de atividade humana.
De acordo com Lodi (2004), a maioria dos surdos brasileiros, devido ao desconhecimento ou
não domínio da língua de sinais buscam o português como primeira língua em escolas cuja
pedagogia volta-se exclusivamente para ouvintes. A autora aponta para uma prática possível
com o desenvolvimento de Oficinas, cuja valorização da Libras, como construção de sentidos,
propicia interações discursivas, permitindo que os sujeitos surdos se reconheçam como
leitores, a partir de práticas embasadas em textos escritos de diversos gêneros.
As Oficinas possibilitaram, ainda, que as diversas linguagens sociais constitutivas da
língua portuguesa e presentes nos diferentes textos abordados fossem postas em confronto com a diversidade de linguagens também constitutivas da Libras e, no
embate estabelecido, houve diálogo e construção de sentidos. Esse diálogo (ou
interação interdiscursiva) possibilitou que um trabalho de leitura fosse realizado.
(LODI, 2004, p.422).
Outros pesquisadores, como Arcoverde (2006) e Bisol, Bremm e Valentini (2010), apontam
para estratégias de ensino, diferenciadas do ensino tradicional, que apresentam bons
resultados quanto às produções escritas. O uso de imagens e novas tecnologias para o ensino
da língua portuguesa têm despertado interesse em surdos adolescentes e adultos.
As crianças e jovens dos dias atuais estão amparados pela legislação, tendo seus direitos
de acesso à educação e uso da Libras assegurados, bem como o aprendizado do português
como segunda língua, conforme apontam algumas pesquisas recentes na área (LACERDA
e LODI, 2009; MARTINS e MARTINS, 2011). Entretanto o mesmo não ocorre com os
adultos surdos que, egressos do sistema educacional, carregam o fardo da escolarização
precária, com histórias de um processo de construção de letramento interrompido ou negado.
Faz-se necessário, portanto, propiciar acesso à leitura e escrita da língua portuguesa aos
surdos de forma adequada, baseando-se nos preceitos de uma abordagem bilíngue, em que a
Libras tenha papel fundamental como língua de acesso aos demais conhecimentos. Deste
modo, o objetivo deste estudo é analisar práticas de ensino e aprendizagem de Português
como segunda língua, utilizando a Libras como língua de instrução, para surdos egressos,
ou em fase final do ensino médio, não proficientes em Português escrito, durante Oficinas
de Português.
MÉTODO
A comunidade surda de São Carlos, composta por surdos de idades variadas e, em sua
maioria, com pouca compreensão da língua portuguesa, buscou auxílio junto à Universidade
com o intuito de aprofundar seus conhecimentos. Propôs-se, então, o oferecimento de
Oficinas de Língua Portuguesa, a fim de propiciar práticas de leitura e escrita da língua
portuguesa, como segunda língua, para adultos surdos, por meio de um trabalho com
diferentes gêneros textuais, a partir de interações discursivas em Libras (como primeira
língua desta comunidade), e assim, oferecer possibilidades de acesso à leitura nos diversos
VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3639
contextos sociais. Os participantes são surdos jovens/adultos egressos ou em fase final do
ensino médio, que não tiveram, durante seu processo de formação, acesso ao português
como segunda língua, intérprete ou qualquer atendimento especializado. Com domínio
restrito do Português escrito, apresentam dificuldades para construir pequenos textos. Vale
ressaltar que também apresentam domínio restrito da Libras, sendo fortemente marcados
pelas práticas de oralização.
As Oficinas tiveram início no primeiro semestre de 2011 e desde então foram conduzidas por
pesquisadores ouvintes e bilíngues (ambos autores deste trabalho), doutorandos do Programa
de Pós-graduação em Educação Especial, da Universidade Federal de São Carlos-
UFSCar, em parceria com outros estudantes de pós-graduação, alunos da graduação
e
profissionais da educação. A língua de instrução dessas Oficinas é a Libras, conforme
orienta o Decreto nº 5.626 (BRASIL, 2005). Os encontros são semanais e têm duração de
uma hora e meia, e contam com um público bastante variado e com presença oscilante.
Inicialmente participavam do grupo cerca de quinze surdos e, atualmente, participam do
grupo, em média, seis surdos, com faixa etária de quinze a vinte e oito anos de idade.
A proposta pedagógica das referidas Oficinas, baseada em um trabalho com diferentes
gêneros textuais, calca-se na relevância da interação e da historicidade para a construção de
sentidos pelos sujeitos. Com o intuito de colocar os referidos sujeitos em contato com
diferentes gêneros discursivos e inseri-los em práticas de letramento, foram desenvolvidas,
primeiramente, atividades de leitura a partir das certidões de nascimento e das carteiras de
identidade dos envolvidos, momento em que os surdos, por meio de discussões em Libras,
construíam significações possíveis para os dados constante desses documentos,
desenvolvendo, assim, o processo de leitura. Tal prática desembocou em relatos de histórias
individuais, extrapolando o universo dos citados documentos, ensejando a leitura de mapas
geográficos, textos da internet e documentários, entre outros.
Dentre as atividades desenvolvidas nas Oficinas, destacamos um trabalho com documentário
cinematográfico - gênero que se distingue pelo compromisso, embora parcial e subjetivo, com
a exploração da realidade - privilegiando a construção de sentidos pelos sujeitos envolvidos.
O discurso, como lócus de transformação de enunciados, é engendrado pelas relações que aí
se tecem. É, pois, na interação com o outro que a consciência se constrói, incorporando
diferentes modalidades discursivas. O gênero documentário cinematográfico, híbrido por
excelência, incorpora as mais diversas tipologias textuais, desde a descrição, passando pela
exposição e narração até a argumentação, cada qual com suas pistas linguístico-discursivas
características. O processo de ensino-aprendizagem da língua portuguesa, norteado pelas
organizações básicas das diferentes tipologias textuais dar-se-á a partir da compreensão de
que em diferentes situações reais de comunicação, textos diversos, podem se estruturar
internamente de forma semelhante.
O documentário “Lixo Extraordinário”3, que acompanha os trabalhos do artista plástico Vik
Muniz, foi apresentado, aos alunos surdos, de forma segmentada após contextualização a
partir de uma sinopse. Os trechos exibidos foram discutidos em Libras, os quais num segundo
momento, a partir das discussões suscitadas pelo grupo, eram escritos, pelos pesquisadores, e
projetados pelo datashow, com o objetivo de proporcionar leitura e interações discursivas
3 Documentário: Lixo Extraordinário. Titulo Original: Waste Land – Ano de Lançamento: 2010 – Direção:
Karen Harley, João Jardim e Lucy Walker.
VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3640
entre o grupo de surdos e ouvintes bilíngues. Os trechos exibidos, bem como os textos
projetados ou impressos eram retomados, proporcionando aos alunos surdos a possibilidade
de inferir significados discursivos em diferentes contextos.
Os dados aqui apresentados acontecera m no segundo semestre de 2011 e primeiro
semestre de 20124; embora as Oficinas aconteçam até os dias atuais e as atividades tenham
outros objetivos e enfoques, esta atividade foi selecionada para o presente estudo e
aprofundamento, visto se tratar de um processo complexo e diferenciado. A escolha deste
documentário se deu devido à atualidade do tema e pelo interesse de alguns participantes
do grupo em ingressar no ensino superior – o que exige conhecimentos gerais e escrita de
redação. Além disso, este mesmo tema foi explorado com estudantes surdos que participam
de um Programa de Inclusão Bilíngue do qual a segunda autora deste trabalho participa, e os
resultados alcançados nessa experiência motivaram sua utilização também com o grupo foco
deste estudo (LACERDA et al., 2012).
Algumas atividades foram documentadas através de vídeo-gravações, para uso nas
próprias Oficinas, a fim de apresentar ao grupo sua evolução com relação a diversos
aspectos, principalmente seu desempenho linguístico em Libras, e posterior análise dos
dados coletados.
Em estudos que focalizam aspectos metodológicos, especialmente em áreas como as das
ciências humanas (CASTRO, 1996), é crescente o reconhecimento de que a linha teórica
eleita pelo pesquisador tende a ser determinante da metodologia por ele adotada. Em outras
palavras, não é qualquer metodologia que pode ser aplicada a qualquer teoria enfocada.
“[...] é preciso também reconhecer que a própria opção por uma metodologia é ditada pela
teoria abraçada, com todas as suas crenças e pressupostos a respeito da natureza de seu
objeto de estudo" (PERRONI, 1996, p.25). Nesse sentido, a vídeo-gravação mostra-se
como uma técnica adequada para tais fins, uma vez que possibilita a observação da realidade
em processo, revelando as interações e as práticas de ensino e aprendizagem, além de
propiciar ao pesquisador uma visão ampla das inter-relações tecidas nestes espaços.
Os vídeos e textos produzidos foram observados e analisados respeitando a cronologia dos
eventos, e as análises visaram identificar e discutir as práticas de ensino e o processo de
aprendizagem dos surdos, com relação a Libras e aos temas abordados nas Oficinas. As
análises estão ancoradas em pesquisas da área da surdez e nos pressupostos da abordagem
Histórico-Cultural, e em autores como Bakhtin (2010) e Vigostki (2007, 2008). Este
último autor relata que, em relação ao método de suas pesquisas, o foco de interesse não
deve ser a mera descrição de fatos, mas a compreensão das relações e comportamentos, a
observação dos processos e produtos sociais. Por este motivo buscamos acompanhar as
transformações ocorridas no espaço das Oficinas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da observação dos vídeos e materiais produzidos foi possível notar alguns
aspectos relevantes quanto ao ensino de língua portuguesa para surdos adultos, que serão
apresentados e discutidos a seguir.
4 Os resultados parciais deste estudo foram apresentados em outro evento (SANTOS et al, 2012).
VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3641
O primeiro dado refere-se à diminuição do número de participantes ao longo dos
encontros. Conforme exposto anteriormente a maioria dos participantes do grupo é
oralizado, ou seja, faz uso da língua oral para comunicação, embora de forma incipiente
e insuficiente para uma comunicação efetiva nas práticas sociais. Ao notarem que, para a
compreensão efetiva dos conceitos e conhecimentos pretendidos, a língua de instrução
seria a Libras, muitos deixaram de comparecer às Oficinas, alegando que seu interesse era o
aprendizado da língua portuguesa e não da Libras, e que esta não os auxiliaria nos
vestibulares e outros contextos que exigem leitura e escrita fluentes. O fato demonstra o não
conhecimento dos processos de desenvolvimento de linguagem e não aceitação de sua
condição bilíngue – boa parte dos surdos adultos não se sente parte integrante de uma
comunidade com língua e identidade diferenciadas. Dizeu e Caporali (2005) e Góes (1999)
abordam a importância da língua de sinais na constituição de sujeitos surdos; em ambos
os estudos há referência à língua como responsável pela atribuição de significados ao
mundo, como fundamental para a construção da cognição e subjetividade, bem como da
identidade e da vida em sociedade. Embora as autoras citem o desenvolvimento de
linguagem em crianças surdas, as discussões se aplicam também a adultos surdos com
aprendizado tardio da língua, conforme se observa a seguir:
Dessa forma, a criança surda necessita de uma língua que possibilite a ela a
integração ao seu meio, no qual ela seja capaz de compreender o que está ao seu redor, significar suas experiências, em vez de uma língua que a torne um ser apto
para reproduzir um número restrito de palavras e frases feitas, que para ela não terão
nenhum significado comunicativo, restringindo sua potencialidade para construir e
utilizar a linguagem no processo dialógico (DIZEU e CAPORALI, 2005, p. 590).
Assim, boa parte dos membros desse grupo, visivelmente influenciados por práticas de
oralização, não compreende a importância da Libras, fundamental para o desenvolvimento e
aprendizado (inclusive do português), e a visão da surdez mostra-se marcada por certo
preconceito, já que acreditam ser possível o aprendizado do português por si só, mesmo
não tendo acesso a ele de forma plena. Não consideram, por exemplo, o fato de terem sido
escolarizados em práticas de português oral e escrito e estas mesmas práticas se mostrarem
insuficientes. Conforme aponta Lodi (2013, p.77) “[...] antes de se iniciarem os processos de
ensino-aprendizagem da língua portuguesa, é imprescindível um trabalho que leve estes
sujeitos ao desenvolvimento de linguagem (Libras)”.
Nota-se também uma questão séria com relação ao “se ver” como surdo; o grupo, de forma
geral, não apresenta uma identidade surda, em que se valoriza a forma diferenciada de
aprender, pela visão; há uma exaltação da oralidade e dos ouvintes. Concordamos com
Dizeu e Caporali (2005) quando referem que este ocultamento e depreciação da surdez
são decorrência da convivência apenas com a comunidade ouvinte, que leva os sujeitos ao
estigma de deficiente que quer se igualar ao ouvinte. Quando há contato com a comunidade
surda, usuária de uma língua em comum, que sabe de suas limitações e potencialidades, o
sujeito passa a se aceitar como normal, apenas surdo.
Entretanto, os sujeitos que continuaram a frequentar as Oficinas, cerca de seis surdos,
apresentaram grande evolução em diversos aspectos. Observou-se que a Libras foi, de
fato, aceita pelos participantes como língua; ao longo dos encontros eles passaram a trazer
dúvidas sobre alguns conceitos, e iniciaram uma busca por conhecimentos na língua,
VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3642
relatando frequentemente ao grupo novos sinais aprendidos, e demonstrando maior atenção
e interesse à temática. Este acesso tardio a Libras acarretou em grande defasagem com
relação a conhecimentos básicos do cotidiano. O cenário apresentado no documentário é o
aterro sanitário localizado no Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro; muitos dos surdos não
apresentavam o conceito de cidade, estado e país, e também desconheciam seus respectivos
sinais; não tinham conhecimento sobre como é feita a coleta de lixo, o local onde este é
normalmente depositado, os efeitos causados pelos aterros sanitários, e a necessidade de
reciclar lixo, dentre muitos outros conceitos. A apresentação do documentário, em trechos e
posterior discussão, possibilitou a troca de conhecimentos e a apropriação da língua em
uso; ao mesmo tempo em que os sujeitos se apropriaram de novos
conceitos/conhecimentos, a língua também circulou de forma mais natural, gerando trocas
dialógicas ricas.
Conforme expôs Vigotski (2008) todo ensino precisa ser mediado socialmente, não sendo
apropriado individualmente pelos sujeitos; logo o professor é o responsável por mediar o
conhecimento dos conceitos científicos, e também as novas palavras que circulam no
espaço da sala de aula – e tem papel determinante para formação conceitual da criança.
Assim, o discurso do professor orienta as ações e pensamentos da criança que, por meio
desta interação e diálogo, passa a significar palavras e apreender conceitos. Embora neste
caso não se trate de situações de sala de aula e relação entre professor e alunos, ocorre, de
fato, o processo de ensino e aprendizagem em situação bastante semelhante. Os surdos, ao
se comunicarem por meio das Libras, passaram a adquirir novos conceitos e conhecimentos
e colocá-los em diálogo com os demais participantes, gerando uma relação de troca e
internalização de conhecimentos em grupo. Este conhecimento internalizado é que pode
então ser significado na materialidade da escrita em português. Estes surdos puderam, com
apoio naquilo que conheceram e discutiram em Libras, dar sentido ao português escrito e
refletir sobre seu modo de funcionamento. O ensino a que foram submetidos durante anos
na Educação Básica, apenas apoiado nas práticas de português (oral e escrito), em salas de
aula ‘inclusivas’, não se mostrou eficiente já que houve pouquíssima apropriação da
modalidade escrita do português, ou seja, escrevem e leem com muita dificuldade. É
necessária a busca de novas estratégias didáticas que favoreçam uma aprendizagem
funcional, efetiva do português escrito.
Outro aspecto que propiciou bastante evolução do grupo com relação aos conhecimentos (em
Libras e em português) foi o trabalho com um projeto contínuo, de longa duração, a partir de
um mesmo tema. O fato de o grupo saber exatamente os assuntos que seriam abordados a
partir de um trabalho com/em um mesmo campo semântico, possibilitou o aprofundamento
de conceitos, ampliação lexical e discussões complexas – diferente do que se observa nas
estratégias de sala de aula, em que cada dia um tema novo é abordado, dificultando a
compreensão pelo aluno. Neste caso, o trabalho com projeto foi de grande valia,
considerando as dificuldades linguísticas (em L1 e L2) apresentadas pelo grupo.
Leite (1996) explora o conceito de Pedagogia de Projetos, esclarecendo que se trata mais de
uma nova postura pedagógica que uma técnica de ensino. O tema central pode partir do
professor e/ou dos alunos, e da própria conjuntura, mas o aspecto primordial é o
envolvimento de todo o grupo com o processo. O produto final do projeto deve refletir em
outros espaços e momentos da vida do aluno; concordamos com a autora quando afirma que:
VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3643
Os projetos são processos contínuos que não podem ser reduzidos a uma lista de
objetivos e etapas. Refletem uma concepção de conhecimento como produção
coletiva, onde a experiência vivida e a produção cultural sistematizada se
entrelaçam, dando significado às aprendizagens construídas. Por sua vez, estas são
utilizadas em outras situações, mostrando, assim, que os educandos são capazes de
estabelecer relações e utilizar o conhecimento apreendido, quando necessário.
(LEITE, 1996, p. 24).
Com relação à leitura, notou-se que a leitura coletiva favoreceu a troca de conhecimentos;
alguns surdos, com maior conhecimento do português, auxiliaram os colegas com relação
aos significados e termos/expressões que não conheciam, e aqueles que tinham maior
conhecimento da Libras, esforçaram-se para esclarecer aos demais membros do grupo os
conceitos mais relevantes. No decorrer dos encontros a leitura em grupo foi se tornando
mais fluida, o que demonstrou a apropriação de inúmeros conceitos – tanto em Libras
quanto em português. Vale ressaltar que a estratégia utilizada pelos pesquisadores –
apresentação de imagens e discussão dos temas em Libras inicialmente para posterior
apresentação de textos – mostrou-se bastante adequada e favoreceu os processos de leitura,
já que os sujeitos puderam ter acesso à temática antes em Libras e depois em português.
Campello (2008) aborda a importância do recurso imagético para a construção de conceitos
por sujeitos surdos; os signos são construídos visualmente, portanto o uso de imagens
mediado pela língua de sinais facilita a apropriação e internalização dos conhecimentos,
processo fundamental para o aprendizado de uma segunda língua. Em relação ao acesso à
leitura por meio da Libras, Lodi (2013, p.177) relata que “[...] as relações com a linguagem
escrita devem ser desenvolvidas a partir da leitura de diversos gêneros discursivos,
considerando, inicialmente, os discursos em Libras trazidos pelos alunos.” Desta forma
coloca-se em diálogo o tema, o texto e o gênero pretendidos, sendo possível ao surdo, a partir
do conhecimento adquirido, a produção escrita.
A produção escrita dos sujeitos surdos foi bastante breve nesta atividade, cujo enfoque foi a
leitura; todavia foi possível perceber, a partir de pequenos textos produzidos pelos sujeitos
visando sintetizar o documentário assistido, que houve apropriação de alguns
conhecimentos, tais como apresentação e forma da escrita mais bem elaborados,
incorporação de itens lexicais presentes nas leituras, e melhor uso de regras gramaticais.
CONCLUSÕES
As questões de ensino e aprendizagem da língua portuguesa para surdos adultos mostram-se
ainda um grande desafio. As análises indicam que um trabalho em/sobre a língua de
sinais é fundamental para o aprendizado de uma segunda língua, entretanto o
convencimento da comunidade surda local, com crenças arraigadas na educação a que
foram subtida, sobre a importância da Libras, não é tarefa simples. Faz-se necessária uma
maior exposição dos surdos às questões identitárias e culturais da surdez, bem como
propiciar o contato com outros surdos adultos usuários de Libras, a fim de inseri-los neste
universo, até então, novo para eles.
As estratégias de ensino também se mostraram relevantes para a compreensão efetiva das
propostas de leitura; é fundamental para esses sujeitos conhecer o tema a ser abordado
VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3644
anteriormente à apresentação de textos, pois o conhecimento prévio dos conceitos em sua
língua e com uso de recursos imagéticos facilitaram o acesso ao português escrito.
Iniciativas como estas são de grande importância para a comunidade surda que, embora
tenha terminado ou esteja em fase de término de seus estudos, tem pouquíssimo acesso às
questões de letramento. Acreditamos que ainda há muito trabalho para desenvolver junto a
este grupo, entretanto, esta primeira at ividade e seus resultados positivos possibilitaram
novas propostas de trabalho por meio de projetos, visando atender às necessidades do grupo
e, cada vez mais, oportunizar o acesso à língua portuguesa de forma adequada aos surdos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARCOVERDE, R. D. de L. Tecnologias digitais: novo espaço interativo na produção escrita
dos surdos. Cad. CEDES [online]. 2006, vol.26, n.69, pp. 251- 267.
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 14.ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
BISOL, C. A.; BREMM, E. S.; VALENTINI, C. B. Blogs de adolescentes surdos: escrita e
construção de sentido. Psicol. Esc. Educ. (Impr.) [online]. 2010, vol.14, n.2, pp. 291-299.
BRASIL. Decreto Nº 5.626. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que
dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de
dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, 22 de dezembro de 2005.
BRASIL. Lei 10.436. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 de abril de 2002.
CASTRO, M. F. P. (org.). O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas: Ed. da
UNICAMP, 1996.
CAMPELLO, A. R. S. Aspectos da visualidade na educação de surdos. 2008. 245f. Tese
(Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
CASTRO, M. F. P. (org.). O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas: Ed. da
UNICAMP, 1996.
DIZEU, L. C. T. de B.; CAPORALI, S. A. A língua de sinais constituindo o surdo como
sujeito. Educação e Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, maio/ago. 2005. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/es/v26n91/a14v2691.pdf . Acesso em:
10 out.2007.
GÓES, M. C. R. de. Linguagem, surdez e educação. 2. ed. Campinas: Autores
Associados, 1999.
LACERDA, C. B. F. de; LODI, A. C. B. Ensino-aprendizagem do português como
VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3645
segunda língua: um desafio a ser enfrentado. In: LODI, A. C. B. e LACERDA, C. B. F. de.
Uma escola duas línguas: letramento em língua portuguesa e língua de sinais nas etapas
iniciais de escolarização. Porto Alegre: Editora Mediação, 2009. p. 143-160.
LACERDA, C. B. F. de. et al. A surdez e o lixo podem ser extraordinários: a escola
aprendendo com as diferenças. In: Anais do XVI encontro nacional de didática e
práticas educacionais (ENDIPE). 2012 (p.1-10)
LACERDA, C. B. F. de. Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos
surdos. CAD. CEDES, 19(46), 1998. p. 68-80.
LEITE, L.H.A. Pedagogia dos projetos: intervenção no presente. Revista Presença
Pedagógica, v. 2, no 8, março/abril de 1996. p. 24-33.
LODI, A. C. B. A leitura como espaço discursivo de construção de sentidos: Oficinas
com surdos. 2004. 248f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da
Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004.
____________. Ensino da língua portuguesa como segunda língua para surdos: impacto na
educação básica. In: LACERDA, C.B, F. de; SANTOS, L.F. dos (orgs). Tenho um aluno
surdo, e agora? Introdução à Libras e Educação de surdos. São Carlos: EDUFSCar, 2013. p.
165-183.
MARTINS, V. R. de O.; MARTINS, L. Experiências de letramento visual na
constituição da Libras e do português por alunos surdos numa escola regular. In: Anais
do SIELP. Volume 1, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2011.
PEIXOTO, R.C. Algumas considerações sobre a interface entre a língua brasileira de sinais
(Libras) e a língua portuguesa na construção inicial da escrita pela criança surda. In: Cad.
Cedes, Campinas, vol. 26, n. 69, p. 205-229, maio/ago. 2006.
PERRONI, M. C. O que é o dado em aquisição da linguagem?. In: CASTRO, M. F. P.
(org.). O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
SANTOS, L.F. dos ; SANTOS, G. F. D. ; LACERDA, C.B.F.de. Oficinas de Português
como segunda língua para surdos adultos. In: V Congresso Brasileiro de Educação Especial e
VII Encontro Nacional dos Pesquisadores da Educação Especial, 2012, São Carlos. V
Congresso Brasileiro de Educação Especial e VII Encontro Nacional dos Pesquisadores da
Educação Especial, 2012. p. 6481-6495.
SVARTHOLM, K. Second Language Learning in the Deaf. In: AHLGREN, I,;
HYLTENSTAM, K. (Eds.), Bilingualism in Deaf Education, International Studies on Sign
Language and Communication of the Deaf, vol 27. Hamburg: Signum Press, 1994.
VIII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISADORES EM EDUCAÇÃO ESPECIAL
Londrina de 05 a 07 novembro de 2013 - ISSN 2175-960X
3646
VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Trad. José Cipola Neto (et al.). São Paulo:
Martins Fontes, 7ª ed., 2007.
______ . Pensamento e linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 4ª ed., 2008.
WATSON, L. M. The Use of a Developmental Approach to Teaching Writing with Two
Groups of Young Hearing-Impaired Children. In: Journal of the British Association of
Teachers of the Deaf, vol. 18, nº1, 18-29, 1994.
Top Related