OTACÍLIO EVARISTO MONTEIRO VAZ
DO QUE RIU O REI? – AS CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MAL-DIZER
DO REI DOM DINIS DE PORTUGAL (1279-1325)
Trabalho apresentado à disciplina Estágio
Supervisionado em Pesquisa Histórica,
apresentado ao curso de História, setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal
do Paraná.
Professora Dra. Marcella Lopes Guimarães
Curitiba, 2007
2
Para minha mãe Norma, pela lição de vida;
para minha mulher Adriana, pelo amor e pelo apoio;
ao Ferrugem, companheiro de digitação;
e para minha família e todos aqueles
que acreditaram em mim.
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RESUMO
A elaboração desta monografia permitiu um exercício de interpretação de fontes que se
mostraram fecundas para apontar características dos costumes, da religiosidade, dos códigos morais
e principalmente de como funcionou o humor na sociedade portuguesa dos séculos XIII e XIV.
Através do estudo das cantigas de escárnio e mal-dizer, foi possível perceber esses aspectos e
levantarmos algumas reflexões para estudos posteriores sobre o tema.
O estudo das fontes, escritas pelo rei português D. Dinis (1279-1325), revelou ainda que,
apesar dos problemas de ordem pessoal, as crises com seu irmão e com seu filho, já ao final de seu
reinado, e de ordem política, como o interdito papal e as negociações para manter os bens da Ordem
dos Templários em solo português, o monarca ainda encontrou incentivo para a produção de
cantigas nos seus variados estilos. Suas fontes líricas revelaram um grande potencial para o campo
historiográfico por nos trazerem informações sobre a sociedade medieval da Península Ibérica,
sobretudo em relação ao riso.
Palavras-chave: Cantigas; Dom Dinis; Idade Média.
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ABSTRACT
This monography aims an exercise of interpretation of rich fonts that point characteristics of
customs, religiosity, moral codes and mainly how humour working in a Potuguese society during
XIII and XIV centuries. Through the analysis of scorn songs, it was possible to notice this aspects
and raising some reflexions for future studies about this theme.
The analysis of fonts, written by Portuguese king D. Dinis (1279-1325), have also exposed
that he had the encouragement to write songs in various styles, although his personal problems such
as the crisis with his brother and son in the end of your reign, and the politics matters, such as the
Pope’s interdict and the negotiations to keep the Order of the Temple goods in a Portuguese land.
The king’s lyrics have revealed a big potential for the historiographic field of knowledge because
they have brought us information about the middle age society in Portugal and Spain, above all in
relation of humour.
Keywords: Songs, Dom Dinis, Middle Age.
5
SUMÁRIO
1. - Introdução ................................................................................................................... p. 6
2. - Contexto...................................................................................................................... p. 9
2.1 – Questões fraternas: D. Dinis x Infante Afonso ............................................ p. 10
2.2 – Questões religiosas: monarquia portuguesa x papado ................................. p. 10
2.3 – Conflitos entre pai e filho............................................................................. p. 12
2.4 – Governação e relações com o reino vizinho ................................................ p. 14
2.5 – O Rei Letrado............................................................................................... p. 17
3. – O Riso Medieval ...................................................................................................... p. 19
4. – As cantigas de escárnio e mal-dizer......................................................................... p. 21
4.1 – 1o ciclo satírico: “OS PECADOS DE MELION GARCIA”........................ p. 23
4.2 – 2o ciclo satírico: “AS DESVENTURAS DE JOÃO BOLO”....................... p. 25
4.3 - 3o ciclo satírico: “O FALASTRÃO” ............................................................ p. 28
4.4 – Fora dos ciclos satíricos ............................................................................... p. 32
5. – Do que riu o Rei? ..................................................................................................... p. 34
6. – Considerações finais ................................................................................................ p. 37
7. – Bibliografia .............................................................................................................. p. 38
8. – Apêndice .................................................................................................................. p. 39
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1. - INTRODUÇÃO
Este trabalho é o resultado de duas experiências pelo menos: o interesse despertado pela
Idade Média a partir da disciplina de História Medieval I e as pesquisas feitas sobre a produção
literária do rei português Dom Dinis (1279-1325), mais especificamente das canções de escárnio e
mal-dizer.
O que foram as cantigas trovadorescas, o que foram as cantigas de escárnio e mal-dizer e
como elas reagiram a elementos da sociedade circundante foram questionamentos orientadores dos
primeiros exercícios desta pesquisa. Entretanto, mais especificamente, voltamos o nosso olhar a
como o rei Dom Dinis se posicionaria nessa mesma sociedade. Quem era esse rei, como foi sua
criação, quais foram as suas influências, como era essa sociedade portuguesa e européia do século
XIII, do que Dinis riu nas suas cantigas de escárnio e mal dizer, quais eram seus alvos? Essas
questões mais específicas são as principais do presente trabalho.
As cantigas de escárnio e mal dizer são um subgênero dentro das composições poéticas dos
três cancioneiros galego-portugueses que nos restam.1 Produção literária e musical do período
medieval português e europeu, criadas e executadas por trovadores presentes nas cortes, “as
cantigas de escárnio e mal-dizer, por sua vez, distinguem-se das duas outras (de amigo e de amor)
pela sua ‘intenção ofensiva’, que pode ser mais ou menos evidente: se usam palavras encobertas,
isto é, equívocas, são de escárnio; se, ao contrário, ofendem abertamente, são de mal-dizer.”2 Mas,
no caso da presente monografia, as fontes analisadas não foram escritas por um trovador que
gravitava meramente na corte, mas por um rei português e é nesse ponto que reside o maior
interesse e motivação para esta monografia.
Rei português da virada do século XIII para o XIV, filho de Afonso III (1248-1279) e neto
do grande rei castelhano Afonso X, o Sábio, Dom Dinis foi um dos reis portugueses mais cultos de
sua época. Grande incentivador das artes e do conhecimento, beneficiou todo o reino, foi grande
político não apenas em solo português, mas solicitado por reis europeus, devido ao reconhecimento
de sua capacidade intelectual e governativa. Destacamos seu talento para gerenciar crises, como a
que existiu com o seu irmão, o infante D. Afonso, que reclamou o trono português alegando ser
Dinis fruto de matrimônio, na altura de seu nascimento, ilegítimo. Mais tarde, ao fim do seu
reinado, teve de administrar uma crise familiar envolvendo seu filho legítimo, o futuro Afonso IV, e
seu filho bastardo e preferido, D. Afonso Sanches.
Embora as cantigas de D. Dinis tenham sido estudadas por autores das áreas de História e
Letras, portugueses e brasileiros, existe espaço para novas visões de um assunto tão estimulante.
1 Os cancioneiros que chegaram aos nosso dias são: o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, o Cancioneiro da
Vaticana e o Cancioneiro da Ajuda. 2 VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia medieval: literatura portuguesa. São Paulo: Global, 1987. p. 14
7
A presente monografia é um exercício de pesquisa que tenta oferecer outros enfoques sobre
um tema já conhecido e estudado, servindo como momento de conclusão dos estudos levados a
efeito no curso de Graduação em História da Universidade Federal do Paraná.
As fontes para o presente trabalho encontram-se no texto produzido por Manuel Rodrigues
Lapa - Cantigas d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses. D.
Dinis escreveu torno de 124 cantigas, destas 10 são de escárnio e mal-dizer. Estas últimas compõem
o rol de fontes principais deste trabalho. Para que seja possível uma melhor compreensão do
contexto em que se insere esta monografia, não podemos abrir mão de uma bibliografia de valor
reconhecido.
Foi indispensável para a elaboração desta monografia, a contribuição das obras pertencentes
à área de Letras, onde encontramos autores como Yara Frateschi Vieira e Rodrigues Lapa, que
reunidos aos historiadores, tornaram o presente trabalho mais rico. Obra fundamental foi a História
da Literatura Portuguesa, de Antônio José Saraiva, onde são tratadas questões do desenvolvimento
da Língua Portuguesa, da produção literária portuguesa e elementos da poesia dos Cancioneiros e
das canções satíricas, nosso objeto de estudo.
Joaquim Veríssimo Serrão, em História de Portugal, nos oferece um panorama português,
dos séculos XI ao XV em seu volume I. Aspectos da literatura, arte, a organização política e militar
no governo de D. Dinis, os conflitos com a Igreja (legado de seu pai D. Afonso III), as lutas com
seu irmão D. Afonso por questões de direito ao trono, as ações de D. Dinis pelas terras portuguesas,
principalmente nas zonas do interior também são contempladas. Serrão nos fala da criação da
Ordem de Cristo, como estratégia de manter a tradição (e riqueza) dos Templários em Portugal, a
criação da Marinha de Guerra, onde há a figura destacada de Manuel Pessanha como grande
responsável pela segurança do litoral português. Podemos destacar essa iniciativa de Dinis também
como pequeno germe das grandes navegações que ocorreriam dois séculos depois.
Na parte cultural, Serrão nos mostra o Rei Letrado. Deve-se a ele o fato de que os
documentos oficiais, onde se incluem atos e processos judiciais, terem passado a ser redigidos em
Português e não mais em Latim, como era de costume. O favorecimento que o rei Dinis teve, ao
nascer e crescer em um ambiente onde havia um incentivo à atividade poética, tanto por parte de
seu pai, D. Afonso III, como de seu avô, Afonso de Castela, o Sábio, foram fatores que colaboraram
para que D. Dinis incentivasse a cultura em seu reino.
Em Instituições, Poderes e Jurisdições, I Seminário Argentina, Brasil, Chile, de História
Antiga e Medieval, de Marcella Lopes Guimarães e Renan Friguetto, no capítulo “Alianças
matrimoniais como estratégias políticas na Península Ibérica”, de José Carlos Gimenez, vemos a
importância das alianças matrimoniais como peça fundamental no jogo de poderes que ocorria não
apenas na Península Ibérica, mas em toda a Europa. Uma ferramenta que ia além das questões
8
religiosas e jurídicas, uma prática que servia como forma de consolidação do poder, servindo para
acordos econômicos, definições de território e fundamental no processo de paz entre reinos.
Na obra História de Portugal – a monarquia feudal – vol II, de José Mattoso, a partir do
capítulo “O triunfo da monarquia”, vemos a consolidação do poder do rei Afonso III, pai de D.
Dinis, através das várias estratégias que nos são apresentadas, as relações com o reino de Castela, a
administração régia, a política centralizadora e os grandes conflitos com os bispos, que levaram o
reino a sofrer um interdito por ordem do papa. No período final do governo de Afonso III, vemos o
nome de D. Dinis surgir como seu sucessor. Antes de falecer em Fevereiro de 1279, Afonso III
redige um documento onde se submete à autoridade do Papa e faz a doação de várias terras à Igreja.
Coube ao rei Dinis a difícil negociação para suspender o interdito papal, que só foi
conseguido em 1290. Questões relacionadas à administração peninsular, o próprio casamento com a
infanta Isabel, de Aragão, como estratégia de afirmação política na Península Ibérica realçam a
importância do rei Dinis no processo de definição do território português. Mattoso também analisa a
criação de uma força militar que complementava a presença já existentes dos cavaleiros, a Ordem
de Cristo, como estratégia para evitar a alienação dos bens dos templários em Portugal.
O autor ainda comenta a centralização de poder exercida pelo rei Dinis como um combate ao
poder senhorial que resultaria em um conflito entre os dois poderes, evento característico do seu
reinado. A guerra civil ocorrida no final de seu reinado, tendo como principal personagem seu filho,
o infante Afonso, que acusava o pai de favorecimentos ao seu outro filho bastardo, Afonso Sanches,
é evidência disso. O príncipe Afonso iniciou uma revolta dentro do território português que foi
combatida e condenada pelo rei D. Dinis. Nesta contenda vemos a rainha Isabel envolvida e
terminando por também ser atingida pela ofensiva de seu marido.
Além dos autores clássicos, como António José Saraiva e Manuel Rodrigues Lapa, para as
contribuições na Área de Letras, e de José Mattoso e Veríssimo Serrão para a História de Portugal,
congregamos outros historiadores para evidenciar elementos da paródia na Idade Média, como José
Rivair de Macedo. Ao lado desses nomes abalizados, fizemos questão de convocar novos
pesquisadores, como José Carlos Gimenez, professor da Universidade Estadual de Londrina, doutor
em História pela Universidade Federal do Paraná, e especialista no reinado de D. Dinis.
E buscar, entre colegas que já defenderam monografias na área, como Adriana Fernandes Morais
Martins, contribuições relevantes.
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2. - CONTEXTO
D. Dinis surge como rei em um cenário onde Portugal buscava sua consolidação como reino
livre das intenções de incorporação de Castela. No campo administrativo, D. Dinis continua o
trabalho de seu pai, Afonso III, em um processo de legitimação do poder, através de um forte
esquema de negociações e alianças com os reinos vizinhos3. Assim como Afonso III, D. Dinis
também deu continuidade ao processo de reconquista cristã nos territórios ocupados pelos mouros.
As expedições de Reconquista geralmente estavam envolvidas nas negociações que os monarcas
faziam com a Igreja, em troca de apoio para suas estratégias políticas.
Ao final de seu reinado, já abatido pela doença, Afonso III deixou várias lacunas na
governação, que favoreceram uma certa desordem em Portugal. Nas questões sociais, veremos
delinqüência e crimes pelo reino, incentivados pela sensação de impunidade que era vista naquele
momento. As primeiras medidas de D. Dinis ao assumir o reinado em 1279 foram inibir e controlar
esse desequilíbrio social, sentenciando os criminosos das várias localidades, trazendo assim uma
maior tranqüilidade para a sua sociedade. De forma geral, Dinis ficou conhecido como um rei mais
disposto a proteger o seu povo, não como um rei rude: “Homem de grandeza liberal e dotado de
inegáveis dons para o ofício de reinar, era sobretudo, por influência paterna como reflexo do
ambiente em que viveu, uma pessoa culta que fez da acção política uma forma superior de conduzir
o seu povo”.4 Foi a primeira administração completa que vemos em Portugal, sendo suas
características: as de ser um político hábil, homem de grande cultura, amante da literatura e das
artes em geral.
Três questões surgem invariavelmente quando se fala no rei D. Dinis: os conflitos com seu
irmão D. Afonso, por questões de sucessão ao trono; os conflitos com a Igreja e a suspensão do
interdito dado pelo Papa, e, por último, os conflitos que o rei Dinis teve com seu filho, o futuro
Afonso IV, já no final do seu reinado, por motivos que envolviam o tratamento preferencial que o
rei dava ao seu filho bastardo, Afonso Sanches.
3 MATTOSO, José. História de Portugal. Vol. II. Lisboa: Estampa, s/d. p. 134. 4 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal – 1080 a 1415. Vol. I. Lisboa: Verbo, 1990, p.247
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2.1 - Questões fraternas: D. Dinis x Infante Afonso
O primeiro problema surge logo nos primeiros anos do reinado de D. Dinis. Seu irmão, o
infante Afonso, não reconhecia a legitimidade do primeiro, devido ao nascimento de Dinis ter
ocorrido durante a excomunhão papal que atingia Portugal, em função do casamento de Afonso III
com D. Beatriz de Castela, sendo este seu segundo matrimônio.5 Como Afonso nascera após a
publicação das bulas In nostra e Qui Caelestia, que suspendiam o interdito, acreditava este ser o
sucessor legítimo do trono português. Esse argumento de Afonso se enquadrava no Direito
Canônico. Na verdade, a briga iniciada por D. Afonso servira apenas para justificar a animosidade
já existente entre os dois irmãos.6
Tratava-se, portanto, de uma rivalidade senhorial, desencadeada por uma herança que o rei
Afonso III teria deixado para Afonso, que envolvia as vilas de Marvão, Portalegre, castelos de Vide
e Lourinha e a quantia de 20.000 libras. Essa antiga questão volta à tona por volta de 1286, quando
D. Dinis impede que suas sobrinhas, filhas de Afonso, recebam a herança paterna, devido ao fato do
irmão do rei Dinis ter se casado com D.Violante de Castela, temendo assim que esta herança, que se
tratava de terras e castelos em território português, viessem a parar em mãos castelhanas. Essa
medida de proibição do rei tinha como objetivo manter a integridade do reino português. D. Dinis
sempre estava preocupado com as intenções castelhanas sobre Portugal. A forma que o rei
encontrou para contornar esse problema foi o acerto com Sancho IV de Castela, no matrimônio de
seu filho, o futuro Afonso IV, com a infanta D. Beatriz, e de sua filha, D. Constança com o herdeiro
do trono castelhano, D. Fernando.7
2.2 - Questões religiosas: monarquia portuguesa x papado
As questões relacionadas ao interdito da Igreja sofrido por Portugal remetem-nos às raízes
do problema, ainda no reinado do rei Afonso III. O problema surge quando o bispo de Coimbra
queixa-se ao Papa de que o rei tinha destruído os castelos de Avô e Coja, que o mesmo tinha se
apoderado de diversas casas e senhorios e que também havia executado nomeações de clérigos, sem
acordo prévio. Por causa dessas reclamações, o Papa fez uma censura ao rei através de uma bula,
publicada em 1254. 8
5 A primeira esposa de Afonso III ainda era viva no momento do segundo casamento. 6 SERRÃO, Joaquim Veríssimo,Op. Cit., p.248 7 Idem p.249 8 MATTOSO, José, Op. Cit., p.135
11
Mas podemos dizer que a crise com a Igreja só se instala em Portugal a partir do final de
1267 e início de 1268, quando praticamente todos os bispos do reino apresentam ao Papa um
conjunto de 43 artigos contendo uma infinidade de acusações contra Afonso III, destas podemos
destacar:
“desprezo pelas sanções eclesiásticas por parte dos juízes e meirinhos régios; a resistência das autoridades régias e conselhos contra a implantação do dízimo pelo clero, nos lugares que ainda não o pagavam, e que eram muitos; a oposição a uma extensão dos privilégios eclesiásticos previstos no direito canônico e que as autoridades seculares procuravam reduzir ao mínimo; a oposição régia à extensão da propriedade e da jurisdição eclesiástica em detrimento das terras e dos direitos da coroa.”9
Além da apresentação das questões ao Papa, o primeiro movimento de ataque ao rei feito
pelos bispos portugueses foi a realização do interdito que cada um realizou em sua diocese, com
exceção de Lisboa. Como forma de se defender, Afonso III enviou à cúria papal dois delegados
seus, com o objetivo de apresentarem cartas de vários conselhos portugueses, onde elogiavam o
governo de seu rei e mais uma proposta para combater nas cruzadas pela Terra Santa. Com isso,
Afonso III consegue do então Papa, Clemente IV, que julgou as acusações dos bispos um tanto
exageradas e contando com a participação do rei nas cruzadas, levantar por seis meses o interdito
lançado pelos bispos.
A questão ficou em suspenso por aproximadamente 10 anos até que o novo Papa, Gregório
X, retomasse a questão junto ao rei Afonso III. O novo Papa não apenas retomou o tema, mas
também emitiu uma bula com uma série de exigências e prazos para Afonso III obedecer, mas que
não foram colocadas em prática por causa do falecimento do pontífice. Por volta de 1277, após uma
série de outros papas, os prazos determinados por Gregório X são colocados em prática e a
autoridade de Afonso III não é reconhecida pela Igreja Católica, seguindo as ordens contidas na
bula do Papa Clemente V.10 O caminho para a suspensão do interdito só será alcançado após a
morte do rei português, no reinado de seu filho, D. Dinis.
Após uma série de negociações com a Igreja e de constantes alterações nos documentos, o
interdito termina no dia 31 de Junho de 1290, vinte e dois anos depois de seu início, sendo o
acontecimento registrado como um dos mais notáveis da época, pelo Livro de Noa de Santa Cruz de
Coimbra.11
9 Idem, p. 143. 10 Idem, p. 144-145. 11 Idem, p. 148.
12
2.3 - Conflitos entre pai e filho ou descontentamentos na nobreza
A questão da Guerra Civil que Portugal viu ocorrer no final do reinado de D. Dinis, entre
1319 e 1324, teve como personagens principais o príncipe D. Afonso e o filho bastardo do rei, D.
Afonso Sanches, envolvendo também a nobreza de Portugal. As desavenças nasceram com o
descontentamento dentro da nobreza de corte, que acabou tendo como aliadas a nobreza média e a
inferior. O problema se inicia com um conflito que ocorre entre os genros e herdeiros de João
Afonso de Albuquerque e o filho bastardo de D. Dinis, Afonso Sanches e o alferes-mor, Martim Gil
de Sousa.
Martim Gil ficou com o título de conde de Barcelos e Afonso Sanches ficou com a fortuna
de João Afonso, que incluía o senhorio e o Castelo de Albuquerque. Revoltado com a decisão,
fixada através de um tribunal régio de 1312, Martim Gil se exila em Castela até sua morte no
mesmo ano. O testamenteiro de Martim Gil foi Raimundo de Cardona, que era mordomo-mor do
príncipe D. Afonso.
Após o exílio de Raimundo de Cardona para Castela, o descontentamento do príncipe D.
Afonso se acentua, já somada à sua revolta pelos favorecimentos que o rei D. Dinis dava ao seu
filho bastardo. Esses fatos levam definitivamente D. Afonso para o lado da nobreza de corte
descontente com o governo do rei.
O conflito entre pai e filho vai se delineando e as notícias chegam ao Papa João XXII, que
encarrega o arcebispo de Compostela de os reconciliar. Essa reconciliação não ocorre, acarretando
em desfechos que se distanciam cada vez mais dessa direção. Afonso Sanches passa a ser alvo
definitivo dos adversos à política do rei Dinis, tendo inclusive como aliado, outro bastardo régio,
chamado Pedro Afonso, Conde de Barcelos, que beneficiando-se dessa posição, coordena uma
ofensiva contra partidários de Afonso Sanches12, derrotando-os. Consegue com esse movimento, o
descontentamento do rei português e termina se exilando em Castela. O infante D. Afonso ainda faz
a exigência de que seu pai lhe desse o poder jurídico do reino, alegando que o rei exercia excessos
em sua administração e na condução de questões relacionadas à forma de repressão dos abusos
senhoriais. 13
12
Ao lado do irmão, o futuro Afonso IV. 13
MATTOSO, José. , Op. Cit., p. 162.
13
D. Dinis se mostra disposto a perdoar o filho pelos conflitos que se lhes opõem e lança um
manifesto em 1 de Julho de 1320, onde diz:
Todas as cousas e outras muytas que el fez contra a coontade e contra o serviço dEl Rey ata aqui
sofrendo e encobrindo, atendendo que se corregesse e que tornasse aquele camyo que el devya de teer e por
non descobrir tal fama de seu sanguy mayormente del que á de teer o seu logar, querendo Deos, depoys dos
dias dEl Rey. Mays agora veendo el Rey que tanto é ja o seu mal e que se non quer correger, antes vay de
cada dia pera peor, e que perfia en esto mays e mays, que non pode ja estar hu lhy tangen o estado e a onrra,
que o non aja de dizer e de pubricar aos seus poboos e aos seus naturaes, porque he certo que taes som eles e
tam leaes que lhys pesará e que se sentiram ende em seus corações com de feito tam estranho come este...14
A nobreza julgou ser o príncipe D. Afonso a pessoa mais adequada para administrar nas
questões jurídicas do reino, tendo novamente como argumento os grandes favorecimentos que o rei
dava ao seu filho bastardo, D. Afonso Sanches. Na verdade, a nobreza buscava um aliado contra as
políticas que lhe desfavoreciam no reinado de D. Dinis.
D. Dinis, ficando revoltado com as acusações contra ele e contra seu filho bastardo, declara
publicamente um conflito contra o príncipe, que mandou comunicar em Santarém, em 1 de Julho de
1320. Conseguiu, ainda, com o Papa João XXII a condenação de todos os que apoiassem as idéias
do príncipe. Após esses eventos, D. Afonso inicia uma série de ocupações em solo português,
começando pela cidade de Leiria, enquanto que Dinis angariava apoio público para sua ação de
repressão que já estava sendo preparada, começava portanto a Guerra Civil. O príncipe se apodera
das cidades de Coimbra, Montemor-o-Velho, os castelos da Feira e Vila Nova de Gaia, Porto,
Guimarães, onde tinha se refugiado o meirinho-mor do rei, Mem Rodrigues de Vasconcelos, que lá
dirigia uma resistência. A contra-ofensiva do rei segue-se com a ocupação de Leiria, onde castiga
severamente seus habitantes e, logo após, apodera-se também de Coimbra. O príncipe vai ao
encontro do rei, saindo de Guimarães em direção a Coimbra, onde se iniciam as negociações.15
Nestas negociações de paz, vemos a importante presença da rainha D. Isabel, que conduz
pessoalmente os acordos, com a ajuda do conde D. Pedro de Barcelos. Chegando finalmente a um
acordo, o infante D. Afonso fica com o senhorio dos lugares que tinha ocupado e mantém
homenagem ao rei.16
14 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Op. Cit., p.264 15 MATTOSO, José, Op. Cit., p. 162-163 16 Idem, p. 163.
14
O envolvimento da rainha D. Isabel teve um preço, sendo esta posteriormente desterrada
pelo rei em Alenquer e tendo congelado seus bens, acreditando o rei ter sua esposa algum tipo de
envolvimento com o lado do príncipe D. Afonso. Provavelmente pelo grande descontentamento que
teve com este fato, a rainha D. Isabel tenha mais tarde se recolhido à vida de clausura, quando da
morte do rei D. Dinis em 1325. Vale lembrar que o recolhimento de D. Isabel não seria algo de se
estranhar, dado a sua ligação com a ordem franciscana. A rainha entra para o Convento de Santa
Clara-a-Velha, em Coimbra, onde ali se inicia o culto à Rainha Santa.17
2.4 - Governação e relações com o reino vizinho
Outras questões destacam o reinado de D. Dinis. Entre elas podemos citar a preocupação que
o rei sempre teve com a autonomia portuguesa em relação ao reino de Castela. Relacionado a esse
tema, temos o caso da “nacionalização” das ordens militares, em que D. Dinis tanto se empenhou,
conseguindo resultados decisivos para a definição de Portugal como reino independente de Castela.
As ordens militares portuguesas, até o século XIV, estavam vinculadas ao reino castelhano
através do mestre-geral, sediado no citado reino. Isto para o rei de Portugal constituía um problema
para os seus objetivos políticos. D. Dinis inicia uma série de negociações com a Igreja, relacionadas
com a Ordem de Santiago, que possuía terras em região de fronteira com Castela, sendo esta
corporação, portanto, um problema administrativo. O rei português consegue, após o envio de uma
diligência a Roma, uma bula emitida pelo Papa Nicolau IV (Pastoralis Officii), de 17 de Setembro
de 1288, em que seriam escolhidos cavaleiros do reino de Portugal e Algarve, através de um mestre
provincial.18
Esta estratégia de D. Dinis surte resultado positivo, com a eleição do frei português João
Fernandes, assegurando uma administração portuguesa nas questões da ordem de Santiago. Porém,
por meio de pressão castelhana, o decreto do Papa Nicolau IV é revogado e, através de confirmação
do novo papa, Bonifácio VIII, o comando da ordem volta para mãos castelhanas, obrigando uma
obediência dos freis portugueses ao reino vizinho. Mesmo considerando como um problema
político, D. Dinis não teve como reagir em um primeiro momento. Ele só retomaria a questão em
1313, quando do falecimento do Papa Clemente V.19
17 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Op. Cit.p.263 18 Idem, p.255 19 Idem, p.256
15
Em 1314 é eleito Lourenço Eanes para o governo privincial da Ordem de Santiago,
voltando, portanto, a administração para mãos portuguesas. No final de 1318, D. Dinis consegue
uma permissão do Papa João XXII, com base na bula de Nicolau V, definindo a “nacionalização”
da Ordem de Santiago. O problema já havia ultrapassado o campo religioso e não envolvia apenas o
processo de Reconquista das terras ocupadas pelos infiéis, mas estava em curso um rompimento
entre Portugal e Castela.
Com esse acordo, D. Dinis tornou-se o primeiro monarca a conseguir construir uma noção
de conjunto no que se refere ao reino português, questão fundamental para uma melhor
administração. É o momento definitivo em que vemos Portugal se desvencilhar das últimas malhas
em que se achava atado a Castela, caminhando definitivamente para a consolidação de um reino
independente. O segundo passo foi a criação de uma ordem própria: a Ordem de Cristo. A criação
desta ordem ia na contra-corrente do que ocorria no reino francês de Filipe, o Belo (1285-1314), que
havia conseguido a extinção dos Templários em seu reino.
D. Dinis não compactuava desta política de aniquilação e podemos compreender esta atitude
do rei português de forma rápida, ao verificarmos que a importância dos Templários em Portugal foi
muito diferenciada em relação à França, visto que esta ordem foi fundamental no processo de
Reconquista das terras ocupadas pelos Mouros. A estratégia de Filipe visava criar um descrédito
dos Templários, extinguindo esta ordem, para se apoderar de seus bens. Através de um decreto do
Papa Clemente V em 1312 esta ordem é realmente extinta na França.
Em relação à Ordem dos Templários em Portugal, D. Dinis tinha grande interesse por ela,
por tratar-se de uma ordem militar, fundamental para o seus interesses de consolidação régia. Para
isso era necessário impedir que os bens desta ordem, já extinta na França, fossem encaminhados
para a Ordem do Hospital, o que poderia criar problemas senhoriais na fronteira sul do reino.
Assim, a estratégia do rei português surte efeito e, em 14 de março de 1319, é criada a Ordem de
Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo20. O grande argumento de D. Dinis, aceito pelo Papa João
XXII, era a necessidade da presença de uma ordem, visto ainda haver terras para serem
reconquistadas aos mouros. Com isso, D. Dinis consegue manter todas as doações de castelos, vilas,
fortalezas e todos os outros bens, antes feitos à Ordem dos Templários, em território português, sob
domínio da coroa. A atuação da Ordem de Cristo seria vista de forma mais ativa no processo de
Reconquista, entretanto, apenas no século XV.
20 Idem, p.257
16
Poucos são os relatos de expedições militares feitas por D. Dinis. Podemos verificar
expedições marítimas com objetivo de proteção da costa portuguesa contra a presença moura. A
falta de grandes envolvimentos de D. Dinis nas questões de reconquista pode ser explicada pelos
problemas que o rei teve em seus últimos anos de governo, por questões de sucessão ao trono,
desencadeadas pelo príncipe D. Afonso, conforme citado.
As expedições marítimas foram resultado da criação de uma força naval criada por D. Dinis
que visava principalmente à proteção da costa portuguesa. O primeiro a comandar a frota naval foi
Nuno Fernando Cogominho, provavelmente em 1307, que depois é substituído pelo genovês
Manuel Pessanha. Vemos em Pessanha um navegador de muita confiança do rei, o qual lhe destina
grande quantidade de verbas para construção de uma armada forte e eficaz. Tal foi o interesse de D.
Dinis nesta empreitada marítima que, em 1320, conseguiu de João XXII, uma bula na qual obrigava
por três anos, a doação do dízimo eclesiástico de todo o reino para financiar o projeto naval do rei
português. O principal objetivo do projeto era o de combater os mouros, além de combater também
a pirataria sarracena que atacava as costas portuguesas.21
D. Dinis ficou conhecido como “O Rei Lavrador”. Isto se deveu, em grande parte, pelas
ações que fez pelo interior do país, nas zonas rurais, onde exerceu grande poder administrativo,
incentivando o povoamento de terras ainda não ocupadas, controle sobre as comunidades judaicas e
mouras, aforamentos de cartas de povoação para territórios antes insalubres, onde houve um
trabalho de drenagem de pântanos, abertura de matas, incentivo na atividade pesqueira e criação de
povoados em regiões litorâneas.
Não se pode negar que todas estas medidas de povoamento visavam um igual aumento nos
rendimentos oriundos de impostos, mas, como se observa nas fontes, D. Dinis também buscava um
incentivo à ocupação territorial do reino, através dos 80 forais22 que este rei emitiu durante o
período entre 1282 e 1290, e também comercial, como vemos nas cartas de privilégio das feiras
francas. 23Com relação às citadas feiras francas, D. Dinis buscava com isso um fortalecimento das
regiões em que concentrou tal expediente. As regiões em que mais incentivou essas práticas
concentraram-se em zonas de fronteira com os reinos vizinhos, onde podemos destacar Douro e
estrada da Beira, e zonas de forte comércio como Trás-os-Montes, Beira Alta e Estremadura.
21 Idem, p.259-260 22 Os forais eram documentos que reuniam um conjunto de leis, determinadas pelo rei, que serviam para a administração das cidades medievais. 23 MATTOSO, José, Op. Cit., p. 158.
17
Como podemos observar, o rei D. Dinis criou uma estrutura que propiciou a Portugal uma
consolidação como reino peninsular independente, através de ações como: forte legislação interna;
acordos com a igreja visando sempre o melhor para Portugal; incentivos à ocupação de terras
despovoadas e melhorias nas regiões já habitadas; criação de uma marinha de guerra eficiente para
proteção da costa portuguesa; criação de uma rede comercial em regiões de forte movimentação de
negócios, buscando ao mesmo tempo, a fortificação das mesmas, principalmente nas regiões de
fronteira.
Mas as ações de fundo comercial desempenhadas por D. Dinis não se concentraram apenas
em solo português. Podemos verificar uma atividade comercial em território estrangeiro, como no
caso da bolsa de mercadores portugueses em entrepostos em Flandres, Inglaterra, Normandia,
Bretanha e La Rochelle. A proteção do rei a empresários que trabalharam na exploração de ferro e
mercúrio, ouro, alumínio e sódio também se fez.24
Essas ações demonstram em D. Dinis uma visão de futuro na área de negócios, que iam além
das ações que desempenhou no campo rural, o que transcende o epíteto de “O Rei Lavrador” que
recebeu. As questões de comércio externo mostram sua preocupação e integração com o restante da
Europa.
2.5 - O Rei Letrado
Outro epíteto que D. Dinis recebeu foi o de “O Rei Letrado”. Seu talento de trovador, sua
erudição, seu incentivo aos estudos superiores o singularizam. Muitas são as ações no campo
cultural que podemos destacar. Por volta de 1296, D. Dinis ordenou à chancelaria de seu reino que
os documentos oficiais fossem registrados na língua vulgar (o Português), substituindo a língua
oficial, no caso o Latim.
Este movimento do rei português teve grande força simbólica ao olharmos para um reino
que buscava consolidar-se, uma vez que a língua falada pelo o povo passa a ser também a língua
que registra os documentos oficiais daquele reino. Deixa-se de lado as influências anteriores,
inclusive a influência da própria Igreja, a qual tinha o Latim como língua oficial e substitui-se esse
elemento específico, sem as sombras de Castela e da Igreja Católica. Na área educacional veremos
também uma preocupação de D. Dinis que buscava favorecer um corpo docente formado por
religiosos e juristas, para a Igreja e para a administração do reino, evitando, assim, a necessidade de
se recorrer a reinos estrangeiros para tal objetivo.25 A criação da primeira universidade portuguesa
acontece no reinado de D. Dinis, na cidade de Lisboa, por volta de 1288. Posteriormente esta se
deslocou para a cidade de Coimbra, em 1309.26
24 Idem, p. 158. 25 Apesar da iniciativa, a universidade portuguesa nunca conheceu o brilho de suas irmãs coevas. 26
MATTOSO, José, Op. Cit., p.155.
18
O corpo docente e os alunos da universidade de Coimbra sobreviviam dos donativos feitos
pela própria corte e pelas ordens religiosas. D. Dinis transferiu a universidade para Coimbra, devido
à tradição para as letras que aquela cidade já possuía através da escola claustral de Santa Cruz.
Porém, a população da cidade passou a reagir de forma negativa aos privilégios com que o corpo
docente e os alunos se beneficiavam. Os moradores de Coimbra eram obrigados, por exemplo, a
alugar suas casas para os estudantes. 27
Dom Denis, pela graça de Deus, rej de Portugal e do Alguarue, a quantos esta carta virem faço saber que eu recebo em mjnha guarda e e minha encomeda e so meu defendimeto todollos scollares que steuerem no Studo de Cojmbra e os que pêra elle veerem emquamto forem e veerem pêra elle, por que mando e defendo que nenhuu nom faca mal a esses scollares nem os feira ne os traga mall, ca aquelle que o ffizesse peitar-me-já os meus ençoutos de seis Mill soldos e o sseu corpo staria aa mjnha merçee. E em testemunho d’esto dei a Uniuersidade dos scollares d’esse Studo esta mjnha carta. Dante em Lixboa, quinze dias de Feuereiro. El-rej o mandou per o custodio; Afomso Martjnz, a fez. Era de mjl e trezentos e quorenta e sete años.28
Já no reinado de Afonso IV, veremos o retorno da universidade para Lisboa, alegando o
então rei que, quando este se deslocava no inverno para Coimbra, não conseguia lá a estrutura
desejada. O motivo mais provável para a mudança de cidade deve-se mais a razões políticas do que
de outra natureza.
Com todas as questões que foram discutidas, podemos verificar, portanto, a importância do
rei português Dom Dinis e a sua grande contribuição para Portugal no campo político, como vimos
em suas ações estratégicas junto aos reinos vizinhos, principalmente com relação a Castela e nos
seus sucessos junto à Igreja, ao suspender o interdito, herança ainda de seu pai, Afonso III. Também
nas questões administrativas do reino, em suas ações pelo interior, estruturando e criando povoados,
incentivando o comércio, na defesa territorial, criando a marinha de guerra, nacionalizando as
ordens militares, criando a Ordem de Cristo, o rei trovador destacou seu nome.
O seu envolvimento e incentivo no campo cultural, oficializando a Língua Portuguesa,
criando a universidade do reino, a tradução de documentos árabes para o português e seu próprio
envolvimento com a produção literária, nas suas cantigas de amor, amigo e de escárnio e mal-dizer,
nos interessam particularmente.
Enfim, um dos reis portugueses que desempenhou um papel de incentivador da cultura, de
um sentimento de pertença a um solo que estava se definindo, sendo considerado como um rei
letrado que apenas seria comparado a outros príncipes da dinastia de Avis, como D. Duarte (1433-
1438) e o infante Pedro, Duque de Coimbra (1439-1448).
27 Este tipo de queixa era comum em outras cidades universitárias do Ocidente medieval, como Paris, por exemplo. 28 Fragmento encontrado no Livro Verde da Universidade de Coimbra. Apud OLIVEIRA, MACHADO, p. 417.
19
3 - O RISO MEDIEVAL
Podemos notar no imaginário medieval uma característica marcante: os extremos. Segundo
José Rivair Macedo, o comportamento emocional da Idade Média circulava com muita facilidade e
rapidez entre o humor aberto e a forte tristeza. Esse seria, portanto, o tipo de riso característico da
Europa Medieval, o riso típico desta cultura, diferente do riso contemporâneo. Um temperamento
medieval, muito próprio, com suas oscilações bruscas entre a violência e a compaixão, não separava
temas sérios dos jocosos, os de grandeza espiritual dos de explícita baixaria e escatologia.
Ainda assim, vemos também no riso medieval transformações. A transformação do riso
cortês, por exemplo, a partir de uma mudança de comportamento vinda dos cavaleiros. Na Baixa
Idade Média eles se voltam para um aprimoramento de seus modos, que incluem novas habilidades
além das relacionadas ao bom guerreiro. O domínio no campo da literatura e dos bons modos, a
ética aristocrática que vincula a aventura ao amor e o ideal da cortesia fazem surgir pessoas
delicadas e educadas, com habilidade no falar, trazendo oportunidade para o surgimento dos jogos
de palavras, daí o surgimento das sátiras.
A partir desse universo podemos observar o surgimento das categorias de jogos satíricos,
onde brilham situações cômicas. A sátira é uma representação carregada de humor, tendo como
alvo a própria sociedade medieval com os seus principais representantes: o clero e a nobreza. Nos
contos burlescos, temos uma paródia aos gêneros literários medievais mais prestigiados. São peças
intercaladas por canto e narração e desenvolvidas em estrofes.29
O riso medieval, no que diz respeito à teatralidade, tem em suas raízes o teatro do cerimonial
da Igreja. Não há nesse momento influências do teatro grego, que só será redescoberto no
Renascimento.30 Toda parte cênica que acompanhava o cerimonial religioso, ou seja, o canto, as
roupas, a dramaticidade, que procurava um envolvimento emocional daqueles que assistiam aos
espetáculos, tudo isso é aproveitado para as representações profanas do período medieval.
Como exemplo da forma multifacetada que assumia o riso na Idade Média, dentro da
estrutura dramática conferida ao ritual católico, teremos os Milagres e os Mistérios. Os Milagres são
peças teatrais curtas, cuja estrutura se baseia no Evangelho. Já os Mistérios são representações de
longa duração, baseadas no Novo e no Velho Testamento. Essas representações se localizam no
século XV.31
29 MACEDO, José Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média. Editora UNESP: São Paulo, 2000. p. 212 30 Idem, p. 208 31 Idem, p. 210
20
Nesses tipos de teatralidade sacra, verificamos o elemento cômico na figura do Diabo, que
faz o papel do zombeteiro. Na encenação dos Mistérios havia no mínimo quatro personagens do
Diabo participando e gerando provavelmente a conhecida expressão da Língua Portuguesa “o diabo
a quatro”. Nessas representações, a figura diabólica surge com meias colantes, asas de morcego,
falsos chifres e é o único personagem a usar máscara.
Também no século XV veremos na Farsa outro gênero satírico medieval. Trata-se de uma
pequena peça cômica com motivos vulgares e grosseiros. Esse estilo se caracteriza pelo gestual
vulgar como chutes, pontapés, injúrias e termos obscenos. O seu propósito é a exposição ao
ridículo, proporcionando uma zombaria generalizada. Assim como o Diabo, existiam os Loucos,
personagens que transgrediam as regras sociais, as normas da vida. Eles faziam parte do teatro
profano, responsáveis por performances como as cambalhotas e os malabarismos. Enquanto os
loucos eram os transgressores da vida social, responsáveis pelo plano terrestre, os Diabos eram os
transgressores da vida celeste, no plano espiritual.32
Uma das principais festividades de origem pagã do período medieval, e que incorpora
elementos satíricos, era o Carnaval. Esta festa não surge como uma, mas como a reunião de diversas
festividades pagãs. Sua origem está no ambiente clerical, servindo como uma válvula de escape
para as pressões hierárquicas internas da Igreja. De modo geral, servia com um desvio em relação a
uma sociedade controladora e repressora. Há uma relação direta com o período da Quaresma, que
antecede à Páscoa. O próprio nome da festividade já sugere que se trata de um momento de
tolerância, onde comer a carne é permitido, daí o termo Carnaval, derivado de Carnevale, o fim do
jejum.
O cerimonial religioso medieval apropria-se dos elementos dos rituais pagãos, pertencentes
à cultura popular. Vemos na Idade Média outra característica desse universo do sagrado e do
profano, que é o mundo às avessas. É possível observarmos nas festividades e também na tradição
oral e escrita, diversos tipos de inversões, como no mundo de “Turelure”, onde a personagem
feminina é quem vai para a batalha, enquanto seu marido, que se encontra “grávido”, espera-a em
casa. 33
Nas festividades da Igreja, veremos também as inversões dos postos do clero, onde os altos
membros se transformam em padres ou monges de baixo escalão, o mesmo acontecendo ao
contrário. Essa era uma tática que tinha como objetivo diminuir as tensões hierárquicas da
instituição.
32 Idem, p. 212 33 Essa é uma tradição que tem uma narrativa famosa, Alcacino e Nicoleta.
21
A escatologia é outro traço marcante do universo satírico medieval. Pessoas que habitam em
um mundo mergulhadas em fezes não são cenas difíceis de serem lidas em obras do período. Todos
esses elementos, portanto, compõem um tipo de riso muito próprio, ainda que multifacetado, e
original. Nas cantigas de escárnio e mal-dizer iremos observar essas características.
4 - AS CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MAL-DIZER
Antes de definir o que são as cantigas de escárnio e mal-dizer, há que se considerar alguns
aspectos da produção literária da Península Ibérica entre os séculos XIII e XIV. A tradição literária
ibérica nos conduz às produções orais que circularam pela região muito antes do período analisado
aqui. Elas tinham no entretenimento o seu objetivo, sendo recitadas ou cantadas. Mas é apenas a
partir desse período que surgem os registros escritos daquelas produções literárias. 34
Existiram alguns tipos de executantes desses gêneros poéticos e entre eles poderíamos
destacar três: o Jogral, o Trovador e o Segrel. O Jogral era uma espécie de intérprete dos gêneros de
cantigas existentes. Sua profissão era a de recitar tais cantigas, um serviço que era prestado nas
cortes da Península Ibérica, em troca de pagamentos ou favores. Os Trovadores merecem maior
destaque, pois esses compunham as cantigas. Geralmente seus autores eram fidalgos e clérigos que
tinham mais acesso às letras. Esses não faziam das composições o seu sustento, mas mero prazer. Já
o Segrel, que circulava a cavalo pelas cortes alugando os seus serviços, cantando suas composições,
poderia ser também Trovador. O Segrel pode ser definido como uma espécie de híbrido entre o
Jogral e o Trovador.35
Invariavelmente veremos as cantigas registradas no idioma da região entre Portugal e a
Galiza, o galego-português. Quanto aos estilos, existem três classificações para as cantigas, onde há
uma variação tanto na intenção como no eu que a recita. Os gêneros de cantigas são: de amor, de
amigo e escárnio e mal-dizer. Nas cantigas de amor temos o eu masculino, que canta o seu amor, às
vezes não correspondido. Vemos o elogio da dama e a coita36 também presente nesse gênero. Há
nas composições desse estilo uma idéia de prazer na própria impossibilidade de realização de tal
amor, o que não quer dizer que sempre ele se apresente irrealizado. As cantigas de amigo são
faladas pelo eu feminino, que geralmente é uma campesina, lamentando a ausência do seu amigo,
ou amado, por motivos que podem ser uma guerra, uma proibição familiar, ou até mesmo a morte
do namorado. Neste estilo, o eu feminino trama sempre um encontro com o amigo, e o sujeito
poético pode ter como cúmplices suas amigas ou suas irmãs.37 Embora o eu lírico seja feminino, a
voz autoral é masculina.
34 SARAIVA, Antônio José / LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto Editora: Porto, 2000. p. 46 35 VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia medieval: literatura portuguesa. Global: São Paulo, 1987. p. 11 36 Coita = sofrimento amoroso. 37 VIEIRA, Yara Frateschi. , Op. Cit., p. 15
22
Já as cantigas de escárnio e mal-dizer são de natureza satírica e buscam criticar aspectos da
sociedade circundante. Elas sempre são narradas por um eu masculino. Podem criticar tanto um
grupo social como o clero ou a nobreza, ou também podem ter um alvo individual, adotando para
esse, um nome real ou fictício. Seu objetivo é a ironia, o ridículo, a situação cômica, mas também
podem se revestir de caráter moral ou religioso.
Podemos ver nas cantigas deste gênero representações da sociedade medieval: o cavaleiro
medroso ou desastrado; o padre que é efeminado ou namorador; o homem falastrão; o outro que é
azarado; ou aquele que é uma pessoa má “por natureza”. Nas cantigas de escárnio e mal-dizer,
vemos esta sociedade no seu estado mais autêntico, mostrando suas várias faces. O trágico e o
cômico, a brincadeira e a seriedade, o moral e o imoral, fatores antagônicos que, como vimos,
caracterizam o riso do período.
A sua leitura revela-nos, além do resto, uma sociedade boémia em que entravam jograis de corte, cantadeiras, soldadeiras (bailarinas), fidalgos. O jogral e a sua companheira tinham um estatuto social de marginais. Eram “artistas” da boémia, e por isso mesmo permitiam-se-lhes liberdades de costumes e de fala vedadas no mundo regularmente constituído. Isto explica que os vícios mais íntimos, as aventuras mais pícaras destes heróis truanescos surjam assoalhados escandalosamente: as andanças e percalços de uma bailarina versátil, os sapatos dourados de um fidalgo pretencioso, a voz de um cantor enrouquecida pelos abusos do álcool, etc., não faltando mesmo uma abadessa elogiada ou satirizada por um segrel quanto à sua experiência sexual. Mas estes marginais fraternizavam com fidalgos, clérigos e até reis no mundo da boémia; vemo-los misturados nos mesmos mexericos, usando a mesma linguagem, com grande abundância de termos hoje considerados obscenos. É uma explosão carnavalesca com raízes antiquíssimas e típica da Idade Media.38
As cantigas evidenciam o comportamento de extremos da sociedade medieval. Nesse estilo
podemos ver tipos de perseguições a determinados personagens, que podem ser vistos em
seqüências de três ou mais cantigas. A essas perseguições é dado o nome de Ciclo Satírico. Nesse
momento, o trovador se detém em um personagem, mas variando as situações em que o mesmo se
envolve.39
Como é sabido, e se exceptuarmos o chamado sirventês moral, uma cantiga de escárnio e maldizer é, regra geral, uma composição circunstancial que brinca com ou ataca o comportamento de uma personagem do círculo onde se move o seu autor. Nesta medida, a variedade de temas e de motivos é o princípio básico da sua composição. Mas acontece que, nalguns casos, um trovador ou um jogral se fixa, a um dado momento, numa personagem, compondo a seu respeito uma série de cantigas satíricas.40
38 SARAIVA, Antônio José / LOPES, Oscar. , Op. Cit., p. 65. 39 LOPES, Graça Videira. “os ciclos satíricos nos cancioneiros peninsulares” in Ondas do Mar de Vigo, Actas do
Simpósio Internacional sobre a Lírica Medieval Galego- Portuguesa. University of Birmingham, 1998. p. 2 40 Idem, p. 3
23
As cantigas de escárnio e mal-dizer foram a válvula de escape para os trovadores medievais,
que colocaram nessas composições o que não era permitido nos demais gêneros de cantiga. Ao
mesmo tempo, porém, elas não perdem o seu valor lírico e de pertença à arte trovadoresca. Nas
cantigas de escárnio e mal-dizer produzidas pelo rei D. Dinis, observaremos alguns dos ciclos
satíricos citados e buscaremos uma interpretação para os mesmos.
4.1 - 1o Ciclo Satírico: “OS PECADOS DE MELION GARCIA”
O primeiro ciclo satírico que analisaremos é formado por duas cantigas de escárnio e mal-
dizer feitas pelo rei D. Dinis41, onde encontramos o personagem Melion Garcia. Nas duas, o
personagem é apontado como sendo um grande pecador, uma pessoa má.
Ou é Melion Garcia queixoso,
ou non faz come ome de parage
encontra duas meninas que trage,
contra que non cata ben nen fremoso:
ca lhas vej’eu trager, ben dês antano.
ambas vestidas de mui mao pano:
nunca mais feo vi nen mais lixoso.
Andam ant’el chorando mil vegadas,
por muito mal que an con el levado;
el[e], come desmesurado
contra elas, que andam mui coitadas,
non cata ren do que catar devia;
e, poi-las ten [côn]sigo noit’e dia,
seu mal é tragê-las mal lazeradas.
E pois el sa fazenda tan mal cata
Contra elas, que faz viver tal vida,
Que nen del nen doutren non [a]n guarida,
Eu non lho tenho por bõa barata
de as trager como trag’en en concelho,
chorosas e minguadas de conselho,
ca Demo lev’a prol que xi lh’en ata.42
Na primeira cantiga desse ciclo, o eu critica a pessoa chamada Melion Garcia, pelos maus
tratos que este oferece a duas meninas que vivem supostamente sob sua guarda. Segundo a cantiga,
estariam as meninas mal vestidas e sofrendo por terem de viver em tal situação. O eu lírico lamenta
a situação das jovens. O que pode também ser observado é que o eu avisa que tal atitude de Melion
Garcia está por ser observada pelo demônio e que este dará conta disso.
41 Conferir quadro descritivo, em que se levanta a possibilidade de um terceiro identificado desta forma. 42 Cantiga n. 88, p. 146
24
Esta cantiga, como observado anteriormente, traz consigo um outro aspecto que pode ser
encontrado nas cantigas de escárnio e mal-dizer, que seria a crítica moral. O eu poético mostra ao
leitor/ouvinte como Melion Garcia trata mal as meninas citadas. Elas andam mal cuidadas e o
sofrimento dessas é também observado.
Não há nenhuma característica satírica, pelo contrário, o eu faz uma condenação por tal tipo
de comportamento e ainda diz que o personagem da cantiga terá de prestar suas contas ao demônio.
O que vemos, portanto, é uma crítica de fundo moral, uma crítica pela má conduta do personagem e
pela sua maldade em tratar as meninas citadas daquele jeito.
Assim, neste caso, vemos que o universo das cantigas de escárnio e mal-dizer abriga mais
elementos que os causadores de riso desbragado. Na segunda cantiga teremos a confirmação de uma
perseguição poética, pois novamente encontramos Melion:
Tan’t é Melion pecador
e tan’t é fazedor de mal
e tan’t é un ome infernal,
que eu sôo ben sabedor,
quanto o mais posso seer,
que nunca poderá veer
a face de Nostro Senhor.
Tantos son os pecados seus
e tan muit’ é de mal talan,
que sõo certo, de pran,
quant’ aquest’ é, amigos meus,
que, por quanto mal en el á,
que já mais nunca veerá
en ne un temp’ a face de Deus.
El fez sempre mal e cuidou
e já mais nunca fez o ben;
[e] eu sõo certo poren
del que sempr’en mal andou;
que nunca já, pois assi é;
pode veer, per bõa fé,
a face do que nos comprou.43
Tendo como principal mote a má pessoa que é Melion Garcia, vemos o eu lírico fazer
comentários sobre o personagem, um pecador e um homem infernal, que nunca verá a face de Deus.
Pela forma como o eu fala do personagem, podemos verificar que há um conhecimento sobre quem
é Melion Garcia e que ele é uma pessoa que sempre fez o mal, nunca o bem. Isso é comprovado na
cantiga anterior, pelo tratamento que ele oferece às meninas citadas. Novamente uma característica
de fundo moral muito forte, pela forma com que o eu condena o caráter ruim do personagem e
reprova suas atitudes. Verificamos também um julgamento de fundo religioso.
43 Cantiga n. 89, p. 147
25
Nesta cantiga, o personagem é criticado fortemente pelo eu, que afirma que ele não verá a
face de Deus. Na cantiga anterior o aspecto religioso também é visto, mas de forma mais branda,
quando se comenta que o demônio observava o comportamento malévolo de Melion Garcia. Nesta,
o eu diz que, devido ao mal comportamento do personagem, ele não verá “a face de Nostro
Senhor”, conseqüentemente Melion Garcia irá para o Inferno ao morrer, por ter sido uma pessoa
má. Portanto, a característica desse ciclo não é de fundo satírico, mas sim moral e religioso, pois
não vemos nessas uma intenção do riso, mas um julgamento a partir da má conduta de uma pessoa.
O que vale a pena ser comentado é que, pelo grau de conhecimento que o eu apresenta, de
quem seria Melion Garcia, podemos deduzir que se trata de um membro da nobreza, próximo ao rei.
Segundo Manuel Rodrigues Lapa, Melion Garcia poderia ser pessoa responsável pelas finanças na
administração do rei D. Dinis, ou seja, poderia integrar a nobreza de serviço.44
4.2 - 2o Ciclo Satírico: “AS DESVENTURAS DE JOÃO BOLO” Neste ciclo temos o personagem João Bolo, que se vê em diversas situações que poderiam
ser definidas como ridículas:
Joan Bolo jouv’en ua pousada
ben des ogano que da era passou,
con medo do meirinho, que lh’achou
u amua que tragia negada;
pero diz el que, se lhi for mester,
que provará ante quel juiz quer
que a touxe sempre, des que foi nada.
Esta mua pod’el provar por sua,
que a non pod’ome dele levar
pelo dereito, se a non forçar;
ca moran ben cento naquela rua,
per que el poderá provar mui ben
que aquela mua, que ora ten,
que a teve sempre, mentre foi mua.
Nõna perderá, se ouver bon vogado,
pois el pode per enquisas põer
como lha viron criar e trager
en cas sa madr[e], u foi el criado;
e provará, per maestre Reinel,
que lha guardou ben dez meses daquel
cerro, ou ben doze, que trag’ inchado.45
44 LAPA, Manoel Rodrigues. Cantigas d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses. Ed. Galáxia: 1965. p. 159. 45 Cantiga n. 90, p. 149
26
Cantiga protagonizada pelo personagem João Bolo. Este se diz com medo de um meirinho,
que estaria querendo lhe subtrair uma mula, a qual João afirma ter sido sempre sua. O mesmo diz
poder provar perante qualquer juiz que o dito animal sempre foi seu, desde nascido.
É provável que o personagem pertença a uma condição de pouco prestígio social, pois este
tipo de situação dificilmente seria vivenciada pela alta nobreza.
Verificamos nesta cantiga uma situação satírica, porém ela nos apresenta também questões
que provavelmente nos remetem aos hábitos daquela época e ao mesmo tempo trata de questões
morais, pois vemos um possível excesso de autoridade por parte do meirinho.
Por ser um cargo ligado diretamente à administração do reino, disso poderia provir de algum
tipo de abuso de poder.46 Aqui começamos, portanto, a ver o riso medieval em ação. Uma situação
em que um homem precisa provar que a mula é sua, por ter medo de que um funcionário régio
aparentemente mal intencionado a leve. O eu lírico nos mostra, talvez em um acontecimento
pertencente à rotina da sociedade medieval, elementos que serviriam para uma sátira de costumes e
para o entretenimento geral, para causar o riso a partir de uma situação cômica reconhecível,
portanto. Nesta cantiga se inicia a perseguição poética a um personagem que, iremos verificar,
constantemente se envolve em situações embaraçosas. O eu lírico se aproveita disso para suas
produções.
De Joan Bolo and’eu maravilhado:
u foi sen siso ome tan pastor
e led’e ligeiro cavalgador,
que tragia rocin bel’ e loução,
e disse-m’ ora aqui un seu vilão
que o avia por mua cambiado.
E deste câmbio foi el anganado:
d’ir dar [un] rocin feit’e corredor
por ua muacha revelador,
que non sei oj’ome que tirasse
fora da vila, pero o provasse:
se x’el non for, non será tan ousado.
Mais non foi esto seu pecado,
que el mereceu a Nostro Senhor:
ir seu rocin, de que el gran sabor
avia, dar por mua mal manhada,
que non queria, pero mi a doada
dessen, nen andar dela ambargado.
46 Sobre o meirinho, conferir verbete “Meirinho” em Dicionário de História de Portugal, direção – José Serrão. Livrarias Figueirinhas: Porto.
27
Melhor fora dar o rocin doado
ca por tal muacha remusgador,
que lh’ome non guardará, se non for
el, que x’a vai já quanto conhecendo;
mais se el fica, per quant’eu entendo,
sen cajon dela, est’aventurado.
Mui mais queria, besta nona vendo,
ant’ir de pé ca del’ encavalgado.47
Neste caso, vemos na segunda cantiga protagonizada pelas desventuras de João Bolo, o eu
lírico ser informado de que o personagem teria trocado seu belo cavalo por uma mula muito
teimosa. O eu se diz surpreso por saber de tal troca, pois considera João um cavaleiro e parece não
acreditar em uma atitude estúpida como essa. O eu ainda satiriza a situação de João Bolo em relação
à mula, ao dizer que prefere andar a pé a estar em uma mula teimosa e manhosa como a de João.
Por ser apresentado em um enredo embaraçoso pela segunda vez, podemos ver reforçada a idéia de
que se trata de pessoa simples, mas isso pode ser questionado. O dístico final desta cantiga poderia
nos remeter ao mote aproveitado depois por Gil Vicente, para sua Farsa de Inês Pereira. Não
sabemos se essas cantigas podem nos revelar o cotidiano medieval através dessas situações, ou se
elas seriam produzidas apenas para o divertimento dos seus ouvintes. O que nos interessa,
entretanto, é que essa situação foi representada pelo imaginário da época.
Há ainda uma crítica de fundo moral por parte do eu poético, que condena o personagem por
ter cometido o erro da troca. Não se trata, portanto, de uma cantiga com o simples objetivo do
entretenimento. Há uma intenção à reflexão sobre esse tipo de conduta impensada do personagem.
Uma linha de construção muito parecida com as cantigas do personagem Melion Garcia.
Joan Bol’ anda mal desbaratado
e anda trist’e faz muit’t aguisado,
ca perdeu quant’t avia guaanhado
e o que lhi deixou a madre sua:
uu rapaz, que era seu criado,
levou-lh’o rocin e leixou-lh’a mua.
Se el a mua quisesse levar
a Joan Bol’ e o rocin leixar,
non lhi pesara tant’, a meu cuidar,
nen ar semelhara cousa tan crua;
mais o rapaz, por lhi fazer pesar,
levou-lh’o rocin e leixou-lh’a mua.
47 Cantiga n. 91, p. 151
28
Aquel rapaz, que lh’o rocin levou,
se lhi levass’a mua que lhi ficou
a Joan Bolo, como se queixou,
non se queixar’, andando pela rua;
mais o rapaz, por mal que lhi cuidou,
levou-lh’o rocin e leixou-lh’a mua.48
Na última cantiga desse ciclo, temos novamente uma situação embaraçosa para João Bolo,
que teve o seu cavalo, herança de sua mãe, roubado por um criado seu, que deixa no lugar uma
mula. Notamos que nas três cantigas do ciclo, João Bolo sempre está envolvido em situações onde
aparece ou um cavalo ou uma mula. A insistência não teria o efeito satírico esperado se não se
remetesse a uma situação reconhecível aos ouvintes, ou seja, a uma situação compreensível ou
possível no contexto. O personagem é ingênuo e atrapalhado, pois se vê novamente em uma
situação complicada em que mais uma vez é passado para trás em algum tipo de negociação ou
trapaça. Desta vez, João Bolo é vítima de um criado seu.
Trata-se de um personagem, real ou não, de predileção do eu lírico, devido as vezes em que
o mesmo surge nas cantigas de escárnio e mal-dizer. O divertimento aparece nas repetições de
situações cômicas em que vemos o personagem envolvido, criando um tipo de expectativa, ao surgir
o nome de João Bolo em uma nova cantiga, que certamente será uma nova situação satírica.
Investindo na idéia de que essas três cantigas constituem um ciclo satírico, poderíamos
entendê-las também como peças de uma narrativa protagonizada por João Bolo.49 A primeira
poderia ser a que traz a dúvida do eu que ouviu dizer que João havia trocado os animais; a segunda
traria a versão definitiva da troca, que seria sim um roubo; a última, já nos traria a questão exclusiva
da mula (sem o cavalo) ameaçada pela cobiça do meirinho.
4.3 - 3o Ciclo Satírico: “O FALASTRÃO”
Se presenciamos até agora nos ciclos satíricos a pessoa má, como Melion Garcia, e o
trapalhão que se envolve em situações embaraçosas, como João Bolo, agora veremos no último
ciclo satírico do rei D. Dinis, o falastrão. Este apresentado com um codinome Don Foan:
U noutro dia Don Foan
disse ua cousa que eu sei,
andand’ aqui en cas del-Rei,
boa razon mi deu de pran
per que lhi trobasse. Non quis,
e fiz mal por que o non fiz.
48 Cantiga n. 92, p. 153 49 Outros trovadores construíram peças seqüenciais, como Martim Codax.
29
Falou migo o que quis falar
e con outros mui sen razon;
e do que nos i diss’enton
boa razon mi par foi dar
per que lhi trobasse. Non quis,
e fiz mal por que o non fiz.
Ali u comigo falou
do casamento seu e d’al,
en que mi falou muit’e mal,
que de razões i mostrou
per que lhi trobasse! Non quis,
e fiz mal por que o non fiz.
E sempre m’eu mal acharei
por que lh’eu enton non trobei;
ca, se lh’enton trobara ali,
vingara-me do que lh’oi.50
Nesta cantiga, vemos uma carga satírica muito clara. Trata-se de um Don Foan que faz
lamentações ao eu lírico sobre sua vida e seu casamento e pede ao eu que faça uma cantiga sobre
suas desventuras. Porém há durante a cantiga uma negativa do eu para a realização de tal, ao mesmo
tempo em que ironicamente esta já está sendo produzida, ou seja, aqui D. Dinis se serve da
preterição. O eu ridiculariza o hábito de Don Foan de falar demais, inclusive de seu casamento. O
personagem, no uso do dom e na ambição de inspirar cantigas, parece um cortesão inconveniente,
como deveria haver muitos na corte portuguesa. Esta cantiga demonstra uma habilidade irônica
muito interessante e um senso de humor apurado.
O jogo que presenciamos, ao ser negado o pedido de se compor uma cantiga, enquanto
vemos sua produção acontecer, pode ser denominado como sendo um fingimento poético. É uma
cantiga de costumes, que nos mostra relações de pessoas ligadas à corte, em que as situações
criadas, verdadeiras ou não, se revestem de um ridículo, com o claro objetivo do entretenimento,
nos dando pistas sobre o universo do riso medieval.
50 Cantiga n. 93, p. 154
30
U noutro dia seve Don Foan,
a mi começou gran noj’a crecer
de muitas cousas que lh’ói dizer.
diss’el: - Ir-m’-ei, ca já se deitar na.
E dix’eu: - Boa ventura ajades,
por que vos ides e me leixades.
E muit’ enfadado de seu parlar,
sêvi gran peça, se mi valha Deus,
e tosquiavan estes olhos meus.
E quand’el disse: - Ir-me quer’ eu deitar,
e dix’eu: - Boa ventura ajades,
por que vos ides e me leixades.
El seve muit’ e diss’e parfiou,
e a min creceu gran nojo poren,
e non soub’ el se x’era mal, se ben.
E quand’el disse: - Já m’eu deitar vou,
Dixi-lh’eu: - Boa ventura ajades,
por que vos ides e me leixades.51
Nesta segunda cantiga do ciclo, o eu lírico recebe Don Foan em sua casa mas, a partir de
determinado tempo, o eu se diz já enjoado da conversa e, quando Don Foan diz que já vai embora, o
eu comemora essa partida, mas ela não acontece e a conversa se alonga mais ainda no desenrolar da
composição. A todo o momento há uma esperança no eu lírico, de que a sua visita vá embora, mas
essa partida demora muito a acontecer, mesmo o anfitrião já se mostrando com muito sono, o que
cria uma situação cômica.
Novamente uma cantiga que nos mostra costumes. Uma pessoa inconveniente em uma nova
investida, que não percebe já ter ultrapassado um tempo razoável para uma visita. Vemos também
humor, ao ser criado o cenário em que, de um lado há o sonolento anfitrião, preso a uma situação
desagradável, e do outro o falastrão na pessoa de Don Foan, insensível aos seus apelos. A figura do
falastrão em Don Foan vai se estabelecendo durante a perseguição poética que se delineia.
Pelo grau de proximidade com o eu lírico, a acreditarmos que ele se identifica com o rei,
poderíamos deduzir tratar-se de pessoa pertencente ao círculo da nobreza.
51 Cantiga n. 95, p. 156
31
Disse-m’oj um cavaleiro
que jazia feramente
un seu amigo doente,
e buscava-lhi lorbaga.
Dixi-lh’eu: - Seguramente
Comeu praga por praga.
Que el mutas vezes disse
per essa, per que a come,
quantas en nunca diss’ome;
e o que disse beno paga:
ca, come can que á fome,
comeu praga por praga,
Que el muitas vezes disse;
e jaz ora o astroso
mui doente, mui nojoso,
e, comendo, per si caga;
ca, come lobo raivoso,
comeu praga por praga.52
A última cantiga do ciclo fala sobre a notícia que o eu lírico recebe de um cavaleiro, de que
um amigo seu estaria doente e que o cavaleiro buscava um remédio chamado lorbaga para tratá-lo.
Percebemos, ao longo da cantiga, que o eu sabe quem é o doente. Por saber disso, critica-o
ferozmente ao dizer que este está pagando pela sua língua. Segundo Manuel R. Lapa, seria essa
pessoa a mesma das cantigas anteriores, sob o codinome de Don Foan, devido às suas
características de falastrão, que nos conduz a encerrar um ciclo satírico com três cantigas sobre esse
personagem. Há por parte do eu lírico, uma condenação ao comportamento do doente, reforçando
junto com as outras cantigas uma crítica de fundo moral. Outra observação importante é que vimos
até agora em todas as cantigas que os homens são os acusados de falar demais. As fofocas residem
no universo masculino.
O que podemos concluir no segundo e terceiro ciclos satíricos analisados é que há
certamente o lugar para o humor mas, no caso das produções satíricas do rei D. Dinis, vemos
também questões religiosas e de fundo moral também presentes. Percebemos tanto as situações
engraçadas como as que existem condenações sobre pessoas que seriam maus cristãos, pessoas de
mau caráter, perversas e que provavelmente iriam para o inferno por suas condutas. Mas vemos
também aquelas que não são más, mas que apenas são ingênuas, ignorantes ou inconvenientes que
se colocam em situações embaraçosas. Um tipo de humor criado a partir do cotidiano medieval da
Península Ibérica, com todos os seus personagens e suas situações ridículas, podendo haver uma
presença ou ausência de narrativa.
52 Cantiga n. 95, p. 157
32
4.4 – Fora dos Ciclos Satíricos
As duas próximas cantigas de escárnio e mal-dizer encontram-se fora dos ciclos satíricos,
devido a não existir, pelo menos nos materiais que chegaram aos dias de hoje, nenhuma perseguição
poética que permitisse caracterizar assim essas obras.
Melhor ca m’eu governo
quen revolv’o caderno
governa-[s]’ e d’inverno
o vesten ben de brou;
e jaz eno inferno
o que o guaanhou.
Andam o seu comendo
e mal o despendendo
e baratas fazendo,
que el nunca cuidou;
e jaz no fog’ardendo
[o] que o guaanhou.
O que seu – mal pecado! –
foi, é desbaratado;
e anda [b]en guisado
quen sempr’o seu guardou;
e jaz atormentado
[o] que o guaanhou.53
A cantiga manifesta uma preocupação com aspectos materiais, de poupança e registro de
bens. A cantiga avança, ao afirmar que os descendentes do “poupador” podem dilapidar o que foi
conseguido ao longo de uma vida. Não existe nessa cantiga nenhuma referência nominal; segundo
Manuel R. Lapa, haveria a possibilidade de o personagem ser o responsável pelas finanças do reino,
e dos seus herdeiros fazerem uma má administração da herança deixada pelo dito funcionário.54 É
sabido também que se tratou de uma vítima que em vida foi um criminoso. Essa cantiga trata de
valores morais e religiosos. Sobre como deve ser um comportamento cristão correto e sobre como
devemos agir com nossas finanças na vida. Aqui, mais um elemento, ao lado das questões de
conduta, de moral, de religiosidade, que o eu lírico faz questão de reforçar.
53 Cantiga n. 96, p. 159 54 LAPA, Manuel Rodrigues., Op. Cit., p.160.
33
Deus! Com’ora perdeu Joan Simion
três bestas – non vi de maior cajon
nen perdudas nunca tan sem razon!
Ca, teendo-as sãas e vivas
e ben sangradas com [boa] sazon,
morreron-lhi todas con olivas.
Des aquel[e] dia en que naci,
nunca bestas assi perdudas vi,
ca as fez ant’el sangrar ante si;
e ante que saissen daquel mês,
per com’eu a Joan Simion oi,
con olives morreron todas três.
Benas cuidara de morte guardar
todas três, quando as fez[o] sangrar;
mais avia-lhas o Dem’a levar,
pois se par [a]tal cajon perderon;
e Joan Simion quer-s’ ora matar,
por que lhi con olivas morreron.55
A cantiga aborda a má sorte do personagem chamado Joan Simion, sobre quem o eu lírico
reclama por ter sacrificado três bestas enquanto deveria tratá-las. O eu fica surpreso, pois as bestas,
que estavam “sãs e vivas”, aparecem mortas, o que causa raiva contra Joan Simion. Na cantiga
vemos uma pista sobre costumes medievais no que cabia ao tratamento dado aos animais, conforme
o tipo de enfermidade. Vemos o eu lírico relatar sobre a perda de três animais e por criticar a forma
como o personagem Joan Simion resolveu o problema, ao sacrifica-los, achando até mesmo uma
burrice o que o mesmo cometeu. É um outro tipo de situação, complementando os temas das
cantigas dos ciclos satíricos anteriores, onde vemos questões morais, éticas e religiosas sendo
apontadas pelo eu lírico.
55 Cantiga n. 97, p. 161
34
5. – DO QUE RIU O REI?
As cantigas de escárnio e mal-dizer provocavam o riso, através de situações reais ou
imaginárias que invariavelmente tinham por personagens os grupos sociais dominantes na Idade
Média: clero e nobreza. Mas, no caso das produções do rei D. Dinis, que chegaram aos dias de
hoje, percebemos a ausência do clero. Já sabemos que, da trajetória tanto de D. Dinis quanto de seu
pai, Afonso III, sobressaem as desavenças oriundas de desacertos com a Igreja ao longo dos dois
reinados. O segundo casamento de Afonso III não é reconhecido pela Igreja, o que causou uma
longa crise política.
Portugal chegou a sofrer interdito também devido às estratégias políticas de Afonso III com
relação à apreensão de bens pertencentes à Igreja para serem transferidos para a Coroa Portuguesa.
A própria legitimidade de D. Dinis como rei foi questionada por ter nascido este em um período em
que o segundo casamento de seu pai estava invalidado. Outra questão a ser relembrada nas relações
com a Igreja foi no momento em que D. Dinis promoveu a nacionalização das ordens militares de
Portugal, antes vinculadas ao reino de Castela, quando conseguiu junto ao Papa Nicolau IV, a
transferência do cargo de mestre provincial para os cavaleiros do reino de Portugal e Algarve. Outro
fator de envolvimento entre D. Dinis e a Igreja ocorre no momento da criação da Ordem de
Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando o rei português consegue junto à Igreja, que os
bens pertencentes à Ordem dos Templários que existiam em Portugal permanecessem em solo luso.
Conquista esta também, fruto de longas negociações.
Por esses motivos, surpreende que D. Dinis não tenha elaborado cantigas de escárnio e mal-
dizer tendo como mote membros pertencentes à Igreja, o que não vemos pelo menos nas produções
que chegaram aos nossos dias. A bibliografia sobre D. Dinis aborda um homem muito religioso,
casado com a Rainha Isabel, que mais tarde se transformaria na Rainha Santa dos portugueses. Fica
a dúvida se houve produções satíricas sobre a Igreja feitas por D. Dinis, ou se realmente foi um
tema evitado pelo rei português, por motivos religiosos e políticos que poderiam envolver o próprio
rei e também sua esposa. Do cancioneiro que constituiu o rol de fontes dessa monografia,
percebemos que D. Dinis não riu de negócios eclesiásticos.
35
Entretanto, a religiosidade em D. Dinis pode ser comprovada em alguns dos ciclos satíricos
que foram analisados, no momento em que o eu lírico condena certos comportamentos tidos como
não-cristãos. O eu condena os personagens presentes em suas cantigas, afirmando inclusive que
alguns deles “não verão a face de Nosso Senhor”, em outras a acusação de “pessoa infernal”, e em
outros casos, há a crença em uma punição divina por atitudes condenadas.
O que facilmente pode ser detectado na totalidade das cantigas de escárnio e mal-dizer
produzidas por D. Dinis é a presença da nobreza, sendo satirizada na criação ou relato de diferentes
situações que circulam entre o humor e a condenação moral. Membros de uma nobreza de segunda
e também pertencentes a uma alta nobreza surgem como personagens dotados, ora de uma falta de
caráter, de comportamento cristão, ou destituídos de razão e discernimento das coisas, de uma certa
estupidez, devido ao tipo de situações ridículas em que o eu lírico os envolve.
Através dos versos, dos tipos de situações apresentadas, vemos no que esta sociedade
achava motivos para o riso. A poesia satírica foi uma das formas para retratar traços de
comportamento, de atitudes e de questões de fundo moral. Criações literárias da época, que nos
ajudam a entender melhor o período. Enquanto que as cantigas de amigo e de amor seguiam a
atitude do amor cortês, fruto da mudança de comportamento social na passagem da Alta para a
Baixa Idade Média, as cantigas de escárnio e mal-dizer eram o contra-ponto dessa linha de
comportamento. Na produção de D. Dinis vemos, assim, que o mesmo segmento que protagoniza a
criação, a trama e a inspiração nas cantigas de amor e de amigo, aparece aqui ridicularizado por
certos hábitos.
Sabemos que D. Dinis não foi o único rei a fazer tais tipos de cantigas; seu avô Afonso X, o
Sábio, rei de Castela, também foi um grande trovador e amante da cultura. Este rei compôs cantigas
de escárnio e mal-dizer a partir de diversos temas. Dentre eles, destacam-se os ciclos satíricos sobre
os soldados do reino, pela sua covardia nas campanhas de Reconquista na Península Ibérica.56
D. Dinis não riu da Igreja, por exemplo. Pelos motivos analisados anteriormente, não
faltariam a ele, motivos para composições que atacassem o clero. Não verificamos também de
forma clara, como nas cantigas de seu avô, um ataque explícito aos cavaleiros de forma geral. Em
algumas cantigas satíricas é possível deduzir que a vítima talvez seja um cavaleiro, mas não de
forma evidente. A Reconquista é um tema também ausente nas cantigas satíricas de D. Dinis.
D. Dinis riu do quotidiano, das situações simples que ou era testemunha, ou cuja informação
chegava aos seus ouvidos. Estas situações poderiam ser: o homem que falava demais; o que teve
seu cavalo trocado por uma mula; o que teve a herança da mãe perdida por causa de um criado mal
intencionado; a visita mal desejada ou o mal administrador de seu dinheiro.
56 LOPES, Graça Videira., Op. Cit. p. 9.
Excluído: através dos seus diversos alvos como
Excluído: também
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Excluído: entre
Excluído: eles podemos destacar o momento que ele cria
Excluído: ,
Excluído: poderíamos destacar a Igreja, a
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36
São temas que podem servir como um testemunho de época sobre determinados tipos de
comportamentos da sociedade medieval dos séculos XIII e XIV na Península Ibérica. Parece que D.
Dinis quis provocar o riso nessas situações corriqueiras, em que outros também poderiam se ver.
Dentre os personagens não satirizados pelo rei Dinis, há a figura feminina. As soldadeiras57,
personagens presentes em várias cantigas de escárnio e mal-dizer do período, por exemplo, não são
vistas nas cantigas feitas pelo rei português que chegaram aos nossos dias.
Para chegarmos a essa delimitação de temas que teriam ou não provocado o riso em D.
Dinis, é necessário considerar duas possibilidades: ou existiram cantigas escritas pelo rei que
trataram de outros temas, mas não chegaram aos dias de hoje; ou, de uma forma ou de outra, não
houve interesse de sua parte em produzir cantigas fora dos temas apresentados.
Sabemos que Dinis foi tido como um dos reis mais importantes que Portugal teve. Temos
conhecimento de seu talento administrativo nas ações que foram desenvolvidas no seu reinado,
ajudando no processo de consolidação do reino na Península Ibérica; sobre as suas medidas de
incentivo à implantação da Língua Portuguesa na documentação oficial do reino, e do seu apoio à
cultura, ao criar a primeira universidade de Portugal, na cidade de Coimbra. Percebemos se tratar de
um rei bem preparado e suficientemente esclarecido para sua época. Em meio a todo esse preparo
intelectual, o que o fazia rir eram as situações mais corriqueiras, com personagens que poderiam
pertencer, em alguns casos, à alta nobreza com quem privava na corte ou a condições menos
prestigiadas.
57 Dançarinas que geralmente acompanhavam as execuções das cantigas em público.
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6. - CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta monografia permitiu um exercício de interpretação de fontes, que a princípio poderiam
não ser consideradas apropriadas para um trabalho historiográfico, mas que se mostraram como
possíveis de nos apontar características que no diz respeito aos costumes, religiosidade, códigos
morais e principalmente sobre como funcionou o humor da Idade Média. Através do estudo das
cantigas de escárnio e mal-dizer, foi possível perceber esses aspectos presentes nas composições, o
que permitiu observarmos e levantarmos algumas reflexões para estudos posteriores sobre o tema.
Através do estudo das fontes, também percebemos que, no caso do rei D. Dinis, apesar dos
problemas tanto de ordem pessoal, tanto nas crises com seu irmão como com seu filho já ao final de
seu reinado, como os problemas políticos como o interdito papal e as negociações para manter os
bens da Ordem dos Templários em solo português, D. Dinis ainda encontrou incentivo para a
produção de suas cantigas nos seus variados estilos. As fontes analisadas se revelaram de grande
contribuição para o campo histórico por nos trazer informações sobre os aspectos já mencionados
da sociedade medieval da Península Ibérica entre os séculos XIII e XIV, sobretudo em relação ao
riso.
Com relação ao riso medieval, uma das conclusões a que chegamos é a de que o tipo de
humor produzido, com a sua carga de dramaticidade apropriada do ritual do clero; de sua
escatologia; da valorização do fálico; do mundo às avessas, e de todos os outros elementos que o
completavam, evidencia uma sociedade com uma grande carga de criatividade e, ao mesmo tempo,
com um nível de liberdade que surpreende devido ao forte controle que o clero exercia sobre esta.
Com D. Dinis, vemos uma sociedade que ri de si mesma, dos principais atores da vida real, que cria
mecanismos para que as pressões sociais sejam aliviadas, como vemos na festividade do Carnaval,
uma festa de permissividade temporária e controlada.
É desse universo que brotam os trovadores, aqueles que traduziam esses diversos
sentimentos nas suas cantigas, que poderiam circular entre o amor cortês, angustiante e sublime, à
sátira, onde esse universo cede lugar a um outro, onde não há espaço para as qualidades ou virtudes,
mas para os defeitos, os medos, o mau caratismo, o pecado e a doença. D. Dinis, com a visão desse
mundo em que viveu, nos deixa seu legado poético. Um homem que liderou um reino, mas que não
abriu mão de querer enxergá-lo à sua maneira. Um rei poeta, um rei trovador.
38
7. – BIBLIOGRAFIA
VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia medieval: literatura portuguesa. São Paulo: Global, 1987. MATTOSO, José. História de Portugal. Vol. II, Estampa: Lisboa, s/d. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal – 1080 a 1415. Vol. I, Verbo: Lisboa, 1990. SERRÃO, José. Dicionário de História de Portugal. Livrarias Figueirinhas: Porto. MACEDO, José Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média. Editora UNESP: São Paulo, 2000. SARAIVA, Antônio José / LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto Editora: Porto, 2000. LOPES, Graça Videira. “os ciclos satíricos nos cancioneiros peninsulares” in Ondas do Mar de
Vigo, Actas do Simpósio Internacional sobre a Lírica Medieval Galego-
Portuguesa. University of Birmingham, 1998. LAPA, Manuel Rodrigues. Cantigas D’escarnho e Mal Dizer dos cancioneiros medievais galego-
portugueses – Edição Crítica. Editorial Galáxia, 1965. D. Dinis, 1261-1325. Do Cancioneiro de D. Dinis: Livro do Professor. São Paulo: FTD, 1995. – Coleção Grandes Leituras). GIMENEZ, José Carlos. “Alianças matrimoniais como estratégias políticas na Península Ibérica” in Instituições, Poderes e Jurisdições. I Seminário Argentina, Brasil, Chile de História Antiga e Medieval. Juruá Editora: Curitiba, 2007. MARTINS, Adriana Fernandes Morais. A crítica social à nobreza portuguesa através das
“Cantigas de escárnio e de mal-dizer”. Monografia (Curso de Licenciatura e Bacharelado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2003. OLIVEIRA, C., MACHADO, S. Textos portugueses medievais. Coimbra: Ed. Coibra, 1964. OLIVEIRA MARQUES, A. H. Breve História de Portugal. Lisboa:Presença, 2001.
LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. V. I e II. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. PEDRERO – SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média – Textos e Testemunhas. São Paulo: Editora da UNESP, 2000. SODRÉ, Paulo Roberto. Fenhedor, Precador... Profaçador?. Trabalho publicado originalmente em ALVES, Ida Ferreira et al. (Org.). No limite dos sentidos. Anais do XX Encontro de Professores
Brasileiros de Literatura Portuguesa. Niterói: L. Christiano, 2005. Cd-rom.
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