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Educar também é derrubar muros: Desafios à educação para e
na diversidade
Pâmela Marconatto Marques
Em 1950, o aclamado escritor argentino Jorge Luís Borges escreveu um
ensaio intitulado “A Muralha e os livros”. Logo no inicio, Borges revela que
escreverá, nesse ensaio, sobre a estória do Imperador chinês Che Huang-
Ti, uma personalidade que lhe desconcerta e Borges nos explica por que.
Che Huang-Ti é o imperador que ordenou a construção da gigantesca
muralha da China, uma estrutura descomunal construída para separar o
Império Chinês das tribos vizinhas, para impedir o ingresso de qualquer
estrangeiro naquele território. Há uma visão muito clara, a partir dessa
decisão de Huang Ti de construir a muralha, de que aqueles que ficariam
de fora eram “diferentes” dos chineses de dentro e, não apenas isso, mas
também “inferiores” a eles. Na verdade, o Imperador precisava que a
população do recém formado Império Chines acreditasse nessa
superioridade, caso contrário a muralha não teria sentido e nem valor.
Pois bem, Borges segue seu ensaio trazendo uma outra informação
importante e absolutamente desconhecida: a de que esse mesmo
Imperador que ordenou a construção da Muralha decretou também que
TODOS os livros escritos sobre ou pelos povos que ficaram de fora
deveriam ser queimados. Imaginem, minhas amigas e amigos, centenas de
anos de história, poesia, canções, ilustrações, sendo queimados. O que
justifica essa atitude de Huang-ti? Afinal, ele já tinha a Muralha para
separar os povos! A resposta de Borges é a seguinte: uma muralha, por
mais alta que seja, não é capaz de conter um ser humano obstinado em
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ultrapassá-la. É preciso mais do que a garantia física, material da
separação: é preciso erguer uma barreira psicológica, um muro invisível,
que seja capaz de matar todo o desejo de relacionar-se com esse outro
excluído, de conhece-lo, matar toda a possibilidade de admirá-lo, de
compreendê-lo, de vê-lo como um igual. E como se faz isso? Destruindo os
indícios de sua humanidade, de sua sabedoria, da riqueza de sua cultura,
que atestariam que merecem não somente serem conhecidos, mas
respeitados e admirados, que é possível aprender com eles! É isso que
significa queimar esses livros! O Imperador foi tão vil, tão terrível quando
perspicaz ao ordenar, concomitantemente, a construção da muralha e a
queima dos livros. Ambos assegurariam que o “outro” do lado de fora
seguisse desconhecido, que fosse possível ignorá-lo, inventar estórias,
espalhar mentiras sobre ele, que fossem demonizado, apresentado como
ignorante, impotente, bárbaro, inferior!
E por que escolhi essa estória, minhas amigas e meus amigos, para
começar a fala de hoje, numa programação do fórum da mulher que se
dispõe a falar sobre educação e diversidade? Porque acredito
profundamente, como indica o titulo dessa palestra, que educar significa
derrubar muros, essas paredes imaginárias que fomos ensinadas a
construir em casa, na escola e em todos os espaços onde um ser humano
pode ser educado, formado, preparado para pensar e agir nesse mundo.
Por que acredito que assim como Huang-Ti fez na China, nós também
temos sistematicamente criado muralhas que servem para justificar nossa
ignorância a respeito da diversidade, que garantem que sigamos
separados e distantes, pensando que somos melhores, propagando
estereótipos falsos a respeito de nossos “outros”, sejam eles comunidades
indígenas, negras, ciganas, pobres, sejam mulheres, homossexuais,
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pessoas com necessidades especiais, imigrantes, idosos, prostitutas,
transexuais (ufa! Temos dezenas de outros!) e garantem, enfim, que
sigamos alimentando nosso preconceito, intolerância, ignorância e
desrespeito em relação a eles. E garanto a vocês, amigas e amigos que me
ouvem, que o que mantem essa nossa desprezível muralha interna, assim
como pensou o Imperador chinês para garantir a eficácia de sua muralha,
é nosso total e vergonhoso desconhecimento da riqueza, da beleza, da
sabedoria de todos esses grupos excluídos. Minha convicção, como
educadora é que, uma vez que os conheçamos mais de perto, essa
muralha já não poderá ser mantida. É por isso que escolhi contar algumas
estórias para vocês na manhã de hoje, estórias que são testemunho da
sabedoria, da riqueza e da potência da diversidade, e outras que indicam o
oposto disso: a alienação que pode ser resultado de uma educação que
não atente para diversidade.
A importância de falar isso para uma plateia constituída, em sua maioria,
por mulheres, é imensa, minhas amigas e amigos. Se pensarmos que,
segundo dados do INEP, entre os formados em pedagogia no Brasil de
2000 e 2010, 91% são mulheres e que em casa (a despeito de todas as
conquistas que realizamos em relação ao mercado de trabalho) são elas
que passam a maior parte do tempo com as crianças (seja como babá, que
historicamente se afirmou como um trabalho feminino, seja cuidando de
seus próprios filhos), vemos que nos principais espaços de formação de
uma criança o adulto de referência é uma mulher. E se há tanto
machismo, preconceito racial e todo tipo de intolerância nesse país, temos
de concordar que também é porque nós, como mães e professoras, temos
falhado na tarefa de educar na e para a diversidade.
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Em um livro muito bonito e delicado chamado “Tomo conta do mundo:
conficções de uma psicanalista” Diana Corso conta estórias que ouviu de
pacientes ao longo dos anos como psicanalista em Porto Alegre. Entre
elas, conta uma que ilustra bem o que acabo de dizer sobre o poder de
transformação que temos ao educar uma criança.
Trata-se da estória de uma mulher que conta à Diana um episódio
marcante em sua vida. Ela lembra que por volta dos 5 anos, vivendo com
seus pais no campo, viu que se armava uma forte chuva. Ela nunca tinha
ouvido tantos raios e trovões, nunca tinha visto as árvores se balançarem
tanto e o céu ficar tão escuro. Essa senhora lembra que no momento em
que viu aquilo pela janela da casa em que vivia, preparou-se para ter uma
crise de choro, fugir e esconder-se de medo, terror e desamparo diante
daquele fenômeno desconhecido, quando de repente sua mãe se
aproximou da pequena paralisada e lhe disse no ouvido: vai ter uma
grande festa na floresta, as plantas todas vão agradecer a chuva que vai
fazê-las crescer!
Diante dessas palavras, a criança se acalmou, e o medo foi transformado
em poesia, segundo Diana. A ameaça do mau tempo transformou-se de
filme de terror em conto de fadas fascinante, a despertar-lhe a
curiosidade e não o medo. Nas palavras de Diana “uma simples frase
pronunciada pela mãe fez toda a diferença. Impactou o modo como essa
criança cresceu e tornou-se uma mulher corajosa e madura, capaz de
descobrir beleza e aprendizado nas tempestades da vida e não fugir ou
esconder-se a cada nova ameaça de vento”. Não consigo deixar de me
emocionar diante dessas palavras. Elas são um indício do poder imenso
que já temos como mulheres e que talvez não estejamos sabendo utilizar
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com beleza e potência na formação de pessoas mais corajosas, tolerantes,
livres de preconceitos.
Outro exemplo do impacto de uma frase pronunciada em um momento
de incerteza, desamparo e medo eu ouvi da atual Ministra da Igualdade
Racial, Nilma Gomes, que também foi a primeira reitora negra de uma
universidade brasileira. Nilma contou, em um evento de que participava
como palestrante e que tive o prazer de ouvir no ano passado, que
quando pequena, por volta dos 7 anos, logo que ingressou na escola, viveu
a primeira situação de racismo de que podia lembrar-se. Ela estava no
recreio, procurando uma turma para brincar, quando viu um grupo de
meninas. Aproximou-se e pediu para participar daquela brincadeira
quando uma menina loira, de cabelos muito lisos, que era supostamente
“a dona da brincadeira” lhe disse que não poderia brincar porque era
muito feia com aqueles cabelos de Bombril. Nilma contou à plateia que
naquele momento ficou paralisada de vergonha e tristeza. Nunca, até
aquele momento, tinha ouvido essa comparação. Em casa sempre tinha
ouvido ser uma princesa linda e achava seu cabelo crespo e cheio
maravilhoso. A primeira coisa que fez ao chegar em casa foi procurar o
Bombril que a mãe usava para esfregar as panelas. Conta que ficou
chocada ao ver quão diferente do seu cabelo aquela palha de aço era. Foi
nesse momento que, desamparada, perplexa e cheia de vergonha e raiva
que sua irmã mais velha a encontrou. Essa irmã ouviu a estória da menor e
sua resposta fez toda a diferença. Ela disse: Nilma, coitada dessa menina.
Ela disse isso porque nunca tocou no seu cabelo e provavelmente nunca
tocou num Bombril. Ela não conhece nem um e nem outro. Não tinha
como saber que são diferentes, que não tem nada a ver um com o outro,
que falou uma grande besteira. Agora, você, Nilma, você conhece os dois.
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Você sabe muito mais sobre isso do que sua coleguinha. Não pode ficar
com raiva dela e nem ficar triste. Tem é que ensinar pra ela a diferença.
Naquele momento, a irmã vários anos mais velha não sabia, mas suas
palavras acompanhariam a menina Nilma Gomes pela vida, contribuindo
para fazer dela uma pedagoga brilhante, escritora de inúmeros livros
infantis que contam estórias da África, verdadeira entusiasta da educação
como instrumento para a formação de pessoas mais generosas, tolerantes
e capazes de celebrar a diversidade e a vivência inter-racial.
Mas a irmã poderia ter dado respostas diferentes dessa, adotando duas
posturas igualmente danosas: 1ª) ficar com tanta pena da irmã mais nova
a ponto de somente conseguir lamentar com ela a injustiça sofrida e assim
reforçar a condição de vitimização da pequena. 2ª) ter induzido uma
resposta igualmente dura à menina loira que insultou Nilma e com isso
teria ensinado à irmã menor a reagir com o mesmo ódio racial,
intolerância e rancor que sua agressora. Poderia até ter induzido a
violência, como já vi acontecer muitas vezes. Na primeira hipótese, Nilma
se entenderia como vítima impotente e na segunda como potencial
agressora ela própria. Nas duas hipóteses não haveria paz para Nilma, não
haveria possibilidade de vivencia harmoniosa e horizontal entre as
diferentes crianças envolvidas.
No lugar disso, a irmã deu uma resposta absolutamente inteligente e
generosa, capaz de empoderar a irmã menor e produzir transformação.
Com sua resposta a menina deixava de ser vítima e também não era
impelida a lutar com a mesma crueldade de sua agressora!
Isso tudo foi conquistado com a mesma arma poderosa mencionada pela
psicanalista Diana Corso no caso da mãe que faz a menina superar o medo
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do temporal: a palavra potente, criativa, generosa, libertadora,
transformadora! São essas palavras que fazem a diferença no processo de
formação de uma criança. Quando, por exemplo, ela vive pela primeira
vez uma situação de preconceito na escola (seja como vítima, seja como
agressora, seja como testemunha) a leitura da situação feita pelos adultos
de referência em sua vida será mais do importante, será fundamental,
transformadora.
E é por isso que não podemos nos ausentar dessa tarefa. Não podemos
ignorá-la, não temos o direito de sermos omissas! O mundo em que
vivemos, o país em que estamos, a cidade em que escolhemos construir
nossas vidas nos pedem desesperadamente para que abandonemos o
conforto de nossa omissão diária, de nossa resignação diante da injustiça
e que nos engajemos nessa luta, que ousemos fazer a diferença,
pronunciar as palavras capazes de empoderar, de transformar!
E quando falo isso, minhas amigas, falo com a triste certeza de quem sabe
que estamos fazendo pouco. De 2012 a 2014 integrei o time de
professores e pesquisadores da especialização em Educação para a
Diversidade, oferecida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul a
professores e professoras de escolas públicas de todo o RS. O curso foi um
verdadeiro sucesso de inscrições, com mais de 1000 inscritos, mas tinha
apenas 400 vagas a oferecer.
Logo que ingressaram no curso, esses professores e professoras foram
convidados a responder um questionário elaborado pelo núcleo de
pesquisa e avaliação do curso, coordenado por mim. Esse questionário
tinha por objetivo conhecer o modo como esses professores pensavam e
agiam em suas escolas diante de situações delicadas envolvendo
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preconceito contra negros, indígenas, mulheres e homossexuais. As
respostas foram bastante preocupantes, como mostrarei agora a vocês.
GRAFICOS
Por que essas respostas são preocupantes, minhas amigas?
Por que em situações críticas nas salas de aula do Rio Grande do Sul, nós,
adultos de referência, estamos intervindo da maneira errada! Estamos
perdendo a chance de nos posicionarmos contra o preconceito de todos
os tipos, a favor da diversidade, estamos desperdiçando momentos
críticos, em que as palavras podem fazer diferença e criar novas
realidades!
Respondendo dessa maneira contribuimos para que situações como a que
apresentarei agora se multipliquem e perpetuem:
Trata-se de um experimento feito pelo psicólogo americano Kenneth Clark
com cerca de 300 crianças negras em escolas dos EUA. A experiência
consistia em apresentar às crianças duas bonecas idênticas, a única
diferença entre ambas era o fato de uma ser negra e a outra ser branca.
Diante das duas bonecas o psicólogo fazia uma série de perguntas às
crianças, como veremos a seguir:
VÍDEO BONECAS
Muitas pessoas que viram e comentaram esse vídeo acreditam que se
trate de uma prova do racismo que as próprias crianças negras têm em
relação à sua cor. Essa é uma resposta tão terrível e cruel quanto falsa.
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Depois de receber de presente bonecas brancas, ter uma professora
branca na escola, presenciar elogios Aos cabelos loiros e olhos claros de
crianças brancas, de que modo essa criança negra poderia comportar-se?
Pensem nas suas crianças, sejam elas seus filhos, irmãos, alunos. A
resposta seria diferente? Mais: de que modo cada uma de vocês tem
contribuído ou poderia contribuir para uma resposta diferente na mesma
situação?
Aqui no Rio Grande do Sul a pedagoga Fernanda Moraes de Souza acaba
de realizar experimento semelhante ao do vídeo que acabamos de assistir
em sua tese de doutorado em Educação da UFRGS. Fernanda conta que
vestiu uma boneca negra de fada e apresentou-a a crianças da educação
infantil, negras e brancas. O modo como essas crianças reagiram causou
estranheza à pesquisadora e ela reproduz algumas falas em sua tese: As
crianças diziam: “- Ela não pode ser fada. Fada negra não existe. Ela só
pode ser do mal”. “- Ela não é de verdade, tem que trocar a pele dela por
uma pele branca”. “- Ela não pode ser fada. Ela é preta, as fadas são loiras
e de olhos azuis”. “- O vestido é rosa e ela é negra, nada combina”. “- Não
gostei do cabelo e nem da pele, porque é preta”.
O que podemos dizer sobre isso?
A criança apreende o mundo em que ela acabou de chegar sob fortíssima
influencia do significado que os adultos à sua volta atribuem ao que lhes
cerca. Não há uma definição anterior, inata, genética do que é bom e do
que é belo. Há séculos viemos construindo, como civilização, essas
definições.
Um exemplo é o valor que hoje atribuímos à magreza como algo belo e
bom. Isso é muito recente, do final do século XX. Durante muito tempo ser
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magra era sinal de doença, de fraqueza e de má alimentação. Com isso,
minhas amigas, quero afirmar muito veementemente que como adultos
de referência, ensinamos a nossos filhos e filhas, irmãos e irmãs, alunos e
alunas, o que é necessário para ser belo e bom cada vez que fazemos um
elogio a um determinado estereótipo e tecemos comentários maldosos e
depreciativos em relação a outro. A boneca é um exemplo muito vivo
disso que acabo de afirmar. Ela é mais do que um brinquedo, é um
artefato cultural, pois é produto de uma determinada visão do bebê
normal, do bebê bonito, do bebê desejável. Cada vez que presenteamos
nossas crianças reafirmamos esses padrões ao descartarmos alguns tipos
de bebê como indesejáveis e selecionarmos outro, o bebê perfeito.
Façamos um teste: Quantas de nós, aqui nesse salão, já presenteamos
bonecas negras às crianças de nossa vida? Quantas de nós já se deram ao
trabalho de procurar por bonecas negras nas lojas da cidade?
Vejam que interessante a experiência de uma artista carioca, Ingrith
Calazans, que passou a trabalhar com customização de bonecas depois de
procurar e não encontrar bonecas negras nas lojas da cidade. Ela fala que
até encontrou um ou outro bebezão, mas que a variedade era tão pouca
que parecia que eles estavam lá para cumprir cotas. Não havia princesas
negras, fadas negras, barbies negras em um país cuja maioria da
população é negra!
FOTOS BONECAS INGRITH
O que Ingrith passou a fazer para transformar isso foi comprar bonecas
brancas em lojas convencionias de brinquedos customizá-las ela própria.
Dar-lhes traços negros, modificando olhos, nariz, cabelos. E depois dessa
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fase de customização, Ingrith realiza um trabalho social incrível,
distribuindo bonecas a crianças de classes populares que se pareçam com
elas. Vejam que incrível resultado. Isso não é só bonitinho, queridas
amigas, não é uma brincadeira bonitinha, isso é potente e transformador.
Isso é trabalhar com o imaginário, com identidade e com
representatividade. É possibilitar à criança não branca que ela se veja na
sua boneca preferida e crie uma imagem bela de si. E também possibilitar
à criança branca que tenha um imaginário ampliado e diversificado de
beleza, que mais à frente a ajudará a relacionar-se com crianças não
brancas de uma outra maneira.
Eu mesma posso atestar a potência disso pois quando tinha 4 anos ganhei
minha primeira boneca negra de meu pai, que na época era viajante
comercial. Meu pai já faleceu há alguns anos e ainda hoje me pego
pensando nesse gesto. Em como ele foi ousado ao escolher essa boneca
para me presentear. Minha mãe conta que todos na loja pararam para
comentar aquela compra improvável no final da década de 80, mesmo em
minha família, de origem alemã, houve resistência e perplexidade quando
eu me apresentava com a Dida no colo em festas familiares. De qualquer
modo, essa linda boneca impactou tão forte no meu imaginário que ainda
hoje quando penso em um bebezinho a imagem que me vem à cabeça é a
daquela linda bebê negra.
Para minha felicidade, uma de minhas orientandas no curso de
Especialização em Educação para a Diversidade escolheu realizar em sua
escola, como projeto de intervenção (que foi a avaliação final do curso)
localizada na periferia de Porto Alegre, uma oficina de bonecas. Lá ela
trabalhou com a confecção de bonecas de pano negras com seus alunos
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do 8º ano. As bonecas, ao final da oficina, foram expostas e depois doadas
à pré-escola do Colégio.
Fotos projeto escola
Essa é mais uma estória em que o reconhecimento vence o desrespeito.
Explico a vocês. Um filosofo alemão chamado Axel Honneth propôs, em
seus estudos sobre justiça e identidade que há apenas duas formas de
lidarmos com a diferença, ou com a diversidade: o reconhecimento ou o
desrespeito. E ele diz mais: diz que o reconhecimento pode se dar de três
modos: pelo amor, pela solidariedade ou pelo direito. Como exemplo de
reconhecimento pelo amor temos todas as relações afetivas inter-raciais,
mas eu diria sobretudo a relação romântica. O amor envolve admiração,
respeito, reciprocidade, eu não me apaixono por alguém que considero
inferior. Apaixonar-se, amar, é ver o outro como igual. Por isso essa é uma
das formas mais potentes de reconhecimento (e por isso intuitivamente
perguntamos às pessoas, quando queremos nos certificar de que ela não é
preconceituosa “mas você casaria com um negro, ou um indígena, ou
alguém de classe social mais baixa”). A segunda é muito interessante: o
reconhecimento pela solidariedade. Vou usar como exemplo a estória que
outra aluna minha, professora de uma escola pública de Frederico
Westfalen contou-me aqui mesmo em Palmeira das Missões, quando
estive aqui para dar aula na especialização em Gestão Pedagógica, no ano
de 2013. Essa aluna, descendente de alemães, casou-se com um negro da
Guiné Bissau. Ela conta que teve com ele 2 filhos, ambos com fenótipo
negro bem marcado. Quando as crianças estavam maiorzinhas, resolveu
coloca-las no CTG da cidade. No entanto, pra sua revolta, as crianças não
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foram aceitas, com a desculpa de que os grupos estavam lotados.
Entretanto, era facilmente perceptível que não havia crianças negras em
nenhum deles. Ao contar o acontecido para suas vizinhas, elas
lamentaram o ocorrido, mas não agiram como poderiam, com a força que
uma resposta de grupo, solidária pode ter. Se todas elas retirassem seus
próprios filhos daquele CTG e garantissem que eles somente voltariam a
dançar quando os filhos de sua amiga também pudessem faze-lo isso seria
um exemplo de reconhecimento por solidariedade social. Vocês vêem a
força de um ato desses? A potência disso? Eu me emociono quando falo
nessa forma de reconhecimento porque ela implica em sentir o
desrespeito sofrido por nosso vizinho como algo nosso, que também nos
diz respeito. No inicio do ano passado eu fazia cópias de minha tese em
uma empresa de cópias de Porto Alegre. Um homem com seus 40 e
poucos anos me atendia quando uma moça negra, também funcionária da
loja, passou por ele, levando alguns papeis em direção à lixeira. O homem
não pensou duas vezes: amaçou varias folhas de papel que estavam ao
seu lado e pra meu espanto jogou na moça dizendo “ah, desculpa fulana,
eu ia jogar no lixo mas me confundi porque os dois são pretinhos”. Assim
que ele disse isso não pensei duas vezes e anotei o nome desse
funcionário (que estava no crachá) e também da moça agredida. Ao
chegar em casa liguei para a gerência daquela empresa contando o
ocorrido e garantindo que se eles não tomassem providencias eu e todos
os meus colegas, alunos e professores deixaríamos de fazer cópias ali. No
mesmo dia divulguei no facebook e mandei email a todos os meus
conhecidos relatando o episódio e pedindo um boicote à empresa. O
gerente respondeu-me que apuraria a situação e, depois de receber vários
e-mails meus e de meus amigos cobrando alguma atitude, na semana fui
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informada que o funcionário não integrava mais o time da empresa e que
dali em diante haveria um treinamento nesse sentido para os
funcionários. O gerente que me respondeu também agradeceu dizendo
que até aquele momento nunca imaginou que isso pudesse acontecer em
sua empresa pois nunca havia recebido qualquer reclamação. Essa é a
força da solidariedade como forma de garantir o reconhecimento contra o
desrespeito.
O terceiro tipo, o reconhecimento pelo direito, se auto-explica. Trata-se
de garantir o reconhecimento pela aplicação da lei quando todos os
outros âmbitos falham. Na minha opinião esse tipo de reconhecimento
não é integral, pois aquele que desrespeitou, o agressor, não é
sensibilizado, transformado, ele apenas é forçado a dobrar-se à lei.
Na gramatica moral de Honneth, quem não reconhece o outro,
automaticamente o desrespeita. Assim, amigas e amigos, lhes convido a
refletir sobre o modo como vocês tem se posicionado ou omitido diante
da diversidade: vocês tem promovido reconhecimento ou desrespeito?
Pensem nas vezes em que presenciaram situações de discriminação e se
omitiram, preferiram voltar tranquilamente à sua casa e não se envolver
em confusão... (não é assim que muitas vezes pensamos?)
Têm ensinado com suas falas, com suas ações, seus filhos, irmãos mais
novos, alunos, a reconhecer ou a desrespeitar a diversidade? Tem
construido ou tem derrubado muros em direção a quem é diferente de
você?
Além dessa pergunta, que gostaria que vocês mantivessem em suas
mentes, como uma forma de auto-vigilância, acabo minha fala com a
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estória de minha experiência na comunidade indígena Mbiá Guaraní, que
vive na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre.
Visitei essa comunidade em 2012, com outras professoras, alunos e
funcionários da UFRGS. Na oportunidade, fomos recebidos pelo Cacique
Verá, de 24 anos e apresentados à vida da comunidade. Havia muitas
crianças brincando livremente e sendo observadas por todos,
indistintamente, não apenas por suas mães e nem somente pelas
mulheres. Comentei isso com Verá, que me respondeu, como se falasse de
algo bastante óbvio pra ele, que todos são responsáveis pelos adultos que
aquelas crianças se tornarão, que a sobrevivência da comunidade
depende delas e por isso é claro que a responsabilidade é e tem de ser de
todos. Disse mais: que até os 7 anos as crianças não recebem seus nomes
sagrados pois até aquela idade elas podem ser qualquer coisa, tudo vai
depender das experiências que terão e do que aprenderão. Os Mbiá
Guaraní chamam essa fase de formação das crianças de nemboê, que
significa: tempo de colocar a alma para dentro. “Educação é toda a vida do
guaraní”, ele me disse e não só a escola.
Lembremos dos Guaraní, meus amigos. Nossas crianças podem ser
qualquer coisa, dependendo do que ouvirem, do que presenciarem, do
que aprenderem. Tenhamos a sensibilidade necessária para perceber os
momentos críticos e efetivamente educa-las, tenhamos coragem e
ousadia e sejamos mãe que ensinam a derrubar muros.
Muito obrigada.
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