Palestra Educar também é derrubar muros

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1 Educar também é derrubar muros: Desafios à educação para e na diversidade Pâmela Marconatto Marques Em 1950, o aclamado escritor argentino Jorge Luís Borges escreveu um ensaio intitulado “A Muralha e os livros”. Logo no inicio, Borges revela que escreverá, nesse ensaio, sobre a estória do Imperador chinês Che Huang- Ti, uma personalidade que lhe desconcerta e Borges nos explica por que. Che Huang-Ti é o imperador que ordenou a construção da gigantesca muralha da China, uma estrutura descomunal construída para separar o Império Chinês das tribos vizinhas, para impedir o ingresso de qualquer estrangeiro naquele território. Há uma visão muito clara, a partir dessa decisão de Huang Ti de construir a muralha, de que aqueles que ficariam de fora eram “diferentes” dos chineses de dentro e, não apenas isso, mas também “inferiores” a eles. Na verdade, o Imperador precisava que a população do recém formado Império Chines acreditasse nessa superioridade, caso contrário a muralha não teria sentido e nem valor. Pois bem, Borges segue seu ensaio trazendo uma outra informação importante e absolutamente desconhecida: a de que esse mesmo Imperador que ordenou a construção da Muralha decretou também que TODOS os livros escritos sobre ou pelos povos que ficaram de fora deveriam ser queimados. Imaginem, minhas amigas e amigos, centenas de anos de história, poesia, canções, ilustrações, sendo queimados. O que justifica essa atitude de Huang-ti? Afinal, ele já tinha a Muralha para separar os povos! A resposta de Borges é a seguinte: uma muralha, por mais alta que seja, não é capaz de conter um ser humano obstinado em

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Palestra ministrada pela socióloga Pâmela Marques por ocasião do Forum da Mulher "Educação para a Diversidade"

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Educar também é derrubar muros: Desafios à educação para e

na diversidade

Pâmela Marconatto Marques

Em 1950, o aclamado escritor argentino Jorge Luís Borges escreveu um

ensaio intitulado “A Muralha e os livros”. Logo no inicio, Borges revela que

escreverá, nesse ensaio, sobre a estória do Imperador chinês Che Huang-

Ti, uma personalidade que lhe desconcerta e Borges nos explica por que.

Che Huang-Ti é o imperador que ordenou a construção da gigantesca

muralha da China, uma estrutura descomunal construída para separar o

Império Chinês das tribos vizinhas, para impedir o ingresso de qualquer

estrangeiro naquele território. Há uma visão muito clara, a partir dessa

decisão de Huang Ti de construir a muralha, de que aqueles que ficariam

de fora eram “diferentes” dos chineses de dentro e, não apenas isso, mas

também “inferiores” a eles. Na verdade, o Imperador precisava que a

população do recém formado Império Chines acreditasse nessa

superioridade, caso contrário a muralha não teria sentido e nem valor.

Pois bem, Borges segue seu ensaio trazendo uma outra informação

importante e absolutamente desconhecida: a de que esse mesmo

Imperador que ordenou a construção da Muralha decretou também que

TODOS os livros escritos sobre ou pelos povos que ficaram de fora

deveriam ser queimados. Imaginem, minhas amigas e amigos, centenas de

anos de história, poesia, canções, ilustrações, sendo queimados. O que

justifica essa atitude de Huang-ti? Afinal, ele já tinha a Muralha para

separar os povos! A resposta de Borges é a seguinte: uma muralha, por

mais alta que seja, não é capaz de conter um ser humano obstinado em

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ultrapassá-la. É preciso mais do que a garantia física, material da

separação: é preciso erguer uma barreira psicológica, um muro invisível,

que seja capaz de matar todo o desejo de relacionar-se com esse outro

excluído, de conhece-lo, matar toda a possibilidade de admirá-lo, de

compreendê-lo, de vê-lo como um igual. E como se faz isso? Destruindo os

indícios de sua humanidade, de sua sabedoria, da riqueza de sua cultura,

que atestariam que merecem não somente serem conhecidos, mas

respeitados e admirados, que é possível aprender com eles! É isso que

significa queimar esses livros! O Imperador foi tão vil, tão terrível quando

perspicaz ao ordenar, concomitantemente, a construção da muralha e a

queima dos livros. Ambos assegurariam que o “outro” do lado de fora

seguisse desconhecido, que fosse possível ignorá-lo, inventar estórias,

espalhar mentiras sobre ele, que fossem demonizado, apresentado como

ignorante, impotente, bárbaro, inferior!

E por que escolhi essa estória, minhas amigas e meus amigos, para

começar a fala de hoje, numa programação do fórum da mulher que se

dispõe a falar sobre educação e diversidade? Porque acredito

profundamente, como indica o titulo dessa palestra, que educar significa

derrubar muros, essas paredes imaginárias que fomos ensinadas a

construir em casa, na escola e em todos os espaços onde um ser humano

pode ser educado, formado, preparado para pensar e agir nesse mundo.

Por que acredito que assim como Huang-Ti fez na China, nós também

temos sistematicamente criado muralhas que servem para justificar nossa

ignorância a respeito da diversidade, que garantem que sigamos

separados e distantes, pensando que somos melhores, propagando

estereótipos falsos a respeito de nossos “outros”, sejam eles comunidades

indígenas, negras, ciganas, pobres, sejam mulheres, homossexuais,

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pessoas com necessidades especiais, imigrantes, idosos, prostitutas,

transexuais (ufa! Temos dezenas de outros!) e garantem, enfim, que

sigamos alimentando nosso preconceito, intolerância, ignorância e

desrespeito em relação a eles. E garanto a vocês, amigas e amigos que me

ouvem, que o que mantem essa nossa desprezível muralha interna, assim

como pensou o Imperador chinês para garantir a eficácia de sua muralha,

é nosso total e vergonhoso desconhecimento da riqueza, da beleza, da

sabedoria de todos esses grupos excluídos. Minha convicção, como

educadora é que, uma vez que os conheçamos mais de perto, essa

muralha já não poderá ser mantida. É por isso que escolhi contar algumas

estórias para vocês na manhã de hoje, estórias que são testemunho da

sabedoria, da riqueza e da potência da diversidade, e outras que indicam o

oposto disso: a alienação que pode ser resultado de uma educação que

não atente para diversidade.

A importância de falar isso para uma plateia constituída, em sua maioria,

por mulheres, é imensa, minhas amigas e amigos. Se pensarmos que,

segundo dados do INEP, entre os formados em pedagogia no Brasil de

2000 e 2010, 91% são mulheres e que em casa (a despeito de todas as

conquistas que realizamos em relação ao mercado de trabalho) são elas

que passam a maior parte do tempo com as crianças (seja como babá, que

historicamente se afirmou como um trabalho feminino, seja cuidando de

seus próprios filhos), vemos que nos principais espaços de formação de

uma criança o adulto de referência é uma mulher. E se há tanto

machismo, preconceito racial e todo tipo de intolerância nesse país, temos

de concordar que também é porque nós, como mães e professoras, temos

falhado na tarefa de educar na e para a diversidade.

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Em um livro muito bonito e delicado chamado “Tomo conta do mundo:

conficções de uma psicanalista” Diana Corso conta estórias que ouviu de

pacientes ao longo dos anos como psicanalista em Porto Alegre. Entre

elas, conta uma que ilustra bem o que acabo de dizer sobre o poder de

transformação que temos ao educar uma criança.

Trata-se da estória de uma mulher que conta à Diana um episódio

marcante em sua vida. Ela lembra que por volta dos 5 anos, vivendo com

seus pais no campo, viu que se armava uma forte chuva. Ela nunca tinha

ouvido tantos raios e trovões, nunca tinha visto as árvores se balançarem

tanto e o céu ficar tão escuro. Essa senhora lembra que no momento em

que viu aquilo pela janela da casa em que vivia, preparou-se para ter uma

crise de choro, fugir e esconder-se de medo, terror e desamparo diante

daquele fenômeno desconhecido, quando de repente sua mãe se

aproximou da pequena paralisada e lhe disse no ouvido: vai ter uma

grande festa na floresta, as plantas todas vão agradecer a chuva que vai

fazê-las crescer!

Diante dessas palavras, a criança se acalmou, e o medo foi transformado

em poesia, segundo Diana. A ameaça do mau tempo transformou-se de

filme de terror em conto de fadas fascinante, a despertar-lhe a

curiosidade e não o medo. Nas palavras de Diana “uma simples frase

pronunciada pela mãe fez toda a diferença. Impactou o modo como essa

criança cresceu e tornou-se uma mulher corajosa e madura, capaz de

descobrir beleza e aprendizado nas tempestades da vida e não fugir ou

esconder-se a cada nova ameaça de vento”. Não consigo deixar de me

emocionar diante dessas palavras. Elas são um indício do poder imenso

que já temos como mulheres e que talvez não estejamos sabendo utilizar

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com beleza e potência na formação de pessoas mais corajosas, tolerantes,

livres de preconceitos.

Outro exemplo do impacto de uma frase pronunciada em um momento

de incerteza, desamparo e medo eu ouvi da atual Ministra da Igualdade

Racial, Nilma Gomes, que também foi a primeira reitora negra de uma

universidade brasileira. Nilma contou, em um evento de que participava

como palestrante e que tive o prazer de ouvir no ano passado, que

quando pequena, por volta dos 7 anos, logo que ingressou na escola, viveu

a primeira situação de racismo de que podia lembrar-se. Ela estava no

recreio, procurando uma turma para brincar, quando viu um grupo de

meninas. Aproximou-se e pediu para participar daquela brincadeira

quando uma menina loira, de cabelos muito lisos, que era supostamente

“a dona da brincadeira” lhe disse que não poderia brincar porque era

muito feia com aqueles cabelos de Bombril. Nilma contou à plateia que

naquele momento ficou paralisada de vergonha e tristeza. Nunca, até

aquele momento, tinha ouvido essa comparação. Em casa sempre tinha

ouvido ser uma princesa linda e achava seu cabelo crespo e cheio

maravilhoso. A primeira coisa que fez ao chegar em casa foi procurar o

Bombril que a mãe usava para esfregar as panelas. Conta que ficou

chocada ao ver quão diferente do seu cabelo aquela palha de aço era. Foi

nesse momento que, desamparada, perplexa e cheia de vergonha e raiva

que sua irmã mais velha a encontrou. Essa irmã ouviu a estória da menor e

sua resposta fez toda a diferença. Ela disse: Nilma, coitada dessa menina.

Ela disse isso porque nunca tocou no seu cabelo e provavelmente nunca

tocou num Bombril. Ela não conhece nem um e nem outro. Não tinha

como saber que são diferentes, que não tem nada a ver um com o outro,

que falou uma grande besteira. Agora, você, Nilma, você conhece os dois.

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Você sabe muito mais sobre isso do que sua coleguinha. Não pode ficar

com raiva dela e nem ficar triste. Tem é que ensinar pra ela a diferença.

Naquele momento, a irmã vários anos mais velha não sabia, mas suas

palavras acompanhariam a menina Nilma Gomes pela vida, contribuindo

para fazer dela uma pedagoga brilhante, escritora de inúmeros livros

infantis que contam estórias da África, verdadeira entusiasta da educação

como instrumento para a formação de pessoas mais generosas, tolerantes

e capazes de celebrar a diversidade e a vivência inter-racial.

Mas a irmã poderia ter dado respostas diferentes dessa, adotando duas

posturas igualmente danosas: 1ª) ficar com tanta pena da irmã mais nova

a ponto de somente conseguir lamentar com ela a injustiça sofrida e assim

reforçar a condição de vitimização da pequena. 2ª) ter induzido uma

resposta igualmente dura à menina loira que insultou Nilma e com isso

teria ensinado à irmã menor a reagir com o mesmo ódio racial,

intolerância e rancor que sua agressora. Poderia até ter induzido a

violência, como já vi acontecer muitas vezes. Na primeira hipótese, Nilma

se entenderia como vítima impotente e na segunda como potencial

agressora ela própria. Nas duas hipóteses não haveria paz para Nilma, não

haveria possibilidade de vivencia harmoniosa e horizontal entre as

diferentes crianças envolvidas.

No lugar disso, a irmã deu uma resposta absolutamente inteligente e

generosa, capaz de empoderar a irmã menor e produzir transformação.

Com sua resposta a menina deixava de ser vítima e também não era

impelida a lutar com a mesma crueldade de sua agressora!

Isso tudo foi conquistado com a mesma arma poderosa mencionada pela

psicanalista Diana Corso no caso da mãe que faz a menina superar o medo

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do temporal: a palavra potente, criativa, generosa, libertadora,

transformadora! São essas palavras que fazem a diferença no processo de

formação de uma criança. Quando, por exemplo, ela vive pela primeira

vez uma situação de preconceito na escola (seja como vítima, seja como

agressora, seja como testemunha) a leitura da situação feita pelos adultos

de referência em sua vida será mais do importante, será fundamental,

transformadora.

E é por isso que não podemos nos ausentar dessa tarefa. Não podemos

ignorá-la, não temos o direito de sermos omissas! O mundo em que

vivemos, o país em que estamos, a cidade em que escolhemos construir

nossas vidas nos pedem desesperadamente para que abandonemos o

conforto de nossa omissão diária, de nossa resignação diante da injustiça

e que nos engajemos nessa luta, que ousemos fazer a diferença,

pronunciar as palavras capazes de empoderar, de transformar!

E quando falo isso, minhas amigas, falo com a triste certeza de quem sabe

que estamos fazendo pouco. De 2012 a 2014 integrei o time de

professores e pesquisadores da especialização em Educação para a

Diversidade, oferecida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul a

professores e professoras de escolas públicas de todo o RS. O curso foi um

verdadeiro sucesso de inscrições, com mais de 1000 inscritos, mas tinha

apenas 400 vagas a oferecer.

Logo que ingressaram no curso, esses professores e professoras foram

convidados a responder um questionário elaborado pelo núcleo de

pesquisa e avaliação do curso, coordenado por mim. Esse questionário

tinha por objetivo conhecer o modo como esses professores pensavam e

agiam em suas escolas diante de situações delicadas envolvendo

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preconceito contra negros, indígenas, mulheres e homossexuais. As

respostas foram bastante preocupantes, como mostrarei agora a vocês.

GRAFICOS

Por que essas respostas são preocupantes, minhas amigas?

Por que em situações críticas nas salas de aula do Rio Grande do Sul, nós,

adultos de referência, estamos intervindo da maneira errada! Estamos

perdendo a chance de nos posicionarmos contra o preconceito de todos

os tipos, a favor da diversidade, estamos desperdiçando momentos

críticos, em que as palavras podem fazer diferença e criar novas

realidades!

Respondendo dessa maneira contribuimos para que situações como a que

apresentarei agora se multipliquem e perpetuem:

Trata-se de um experimento feito pelo psicólogo americano Kenneth Clark

com cerca de 300 crianças negras em escolas dos EUA. A experiência

consistia em apresentar às crianças duas bonecas idênticas, a única

diferença entre ambas era o fato de uma ser negra e a outra ser branca.

Diante das duas bonecas o psicólogo fazia uma série de perguntas às

crianças, como veremos a seguir:

VÍDEO BONECAS

Muitas pessoas que viram e comentaram esse vídeo acreditam que se

trate de uma prova do racismo que as próprias crianças negras têm em

relação à sua cor. Essa é uma resposta tão terrível e cruel quanto falsa.

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Depois de receber de presente bonecas brancas, ter uma professora

branca na escola, presenciar elogios Aos cabelos loiros e olhos claros de

crianças brancas, de que modo essa criança negra poderia comportar-se?

Pensem nas suas crianças, sejam elas seus filhos, irmãos, alunos. A

resposta seria diferente? Mais: de que modo cada uma de vocês tem

contribuído ou poderia contribuir para uma resposta diferente na mesma

situação?

Aqui no Rio Grande do Sul a pedagoga Fernanda Moraes de Souza acaba

de realizar experimento semelhante ao do vídeo que acabamos de assistir

em sua tese de doutorado em Educação da UFRGS. Fernanda conta que

vestiu uma boneca negra de fada e apresentou-a a crianças da educação

infantil, negras e brancas. O modo como essas crianças reagiram causou

estranheza à pesquisadora e ela reproduz algumas falas em sua tese: As

crianças diziam: “- Ela não pode ser fada. Fada negra não existe. Ela só

pode ser do mal”. “- Ela não é de verdade, tem que trocar a pele dela por

uma pele branca”. “- Ela não pode ser fada. Ela é preta, as fadas são loiras

e de olhos azuis”. “- O vestido é rosa e ela é negra, nada combina”. “- Não

gostei do cabelo e nem da pele, porque é preta”.

O que podemos dizer sobre isso?

A criança apreende o mundo em que ela acabou de chegar sob fortíssima

influencia do significado que os adultos à sua volta atribuem ao que lhes

cerca. Não há uma definição anterior, inata, genética do que é bom e do

que é belo. Há séculos viemos construindo, como civilização, essas

definições.

Um exemplo é o valor que hoje atribuímos à magreza como algo belo e

bom. Isso é muito recente, do final do século XX. Durante muito tempo ser

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magra era sinal de doença, de fraqueza e de má alimentação. Com isso,

minhas amigas, quero afirmar muito veementemente que como adultos

de referência, ensinamos a nossos filhos e filhas, irmãos e irmãs, alunos e

alunas, o que é necessário para ser belo e bom cada vez que fazemos um

elogio a um determinado estereótipo e tecemos comentários maldosos e

depreciativos em relação a outro. A boneca é um exemplo muito vivo

disso que acabo de afirmar. Ela é mais do que um brinquedo, é um

artefato cultural, pois é produto de uma determinada visão do bebê

normal, do bebê bonito, do bebê desejável. Cada vez que presenteamos

nossas crianças reafirmamos esses padrões ao descartarmos alguns tipos

de bebê como indesejáveis e selecionarmos outro, o bebê perfeito.

Façamos um teste: Quantas de nós, aqui nesse salão, já presenteamos

bonecas negras às crianças de nossa vida? Quantas de nós já se deram ao

trabalho de procurar por bonecas negras nas lojas da cidade?

Vejam que interessante a experiência de uma artista carioca, Ingrith

Calazans, que passou a trabalhar com customização de bonecas depois de

procurar e não encontrar bonecas negras nas lojas da cidade. Ela fala que

até encontrou um ou outro bebezão, mas que a variedade era tão pouca

que parecia que eles estavam lá para cumprir cotas. Não havia princesas

negras, fadas negras, barbies negras em um país cuja maioria da

população é negra!

FOTOS BONECAS INGRITH

O que Ingrith passou a fazer para transformar isso foi comprar bonecas

brancas em lojas convencionias de brinquedos customizá-las ela própria.

Dar-lhes traços negros, modificando olhos, nariz, cabelos. E depois dessa

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fase de customização, Ingrith realiza um trabalho social incrível,

distribuindo bonecas a crianças de classes populares que se pareçam com

elas. Vejam que incrível resultado. Isso não é só bonitinho, queridas

amigas, não é uma brincadeira bonitinha, isso é potente e transformador.

Isso é trabalhar com o imaginário, com identidade e com

representatividade. É possibilitar à criança não branca que ela se veja na

sua boneca preferida e crie uma imagem bela de si. E também possibilitar

à criança branca que tenha um imaginário ampliado e diversificado de

beleza, que mais à frente a ajudará a relacionar-se com crianças não

brancas de uma outra maneira.

Eu mesma posso atestar a potência disso pois quando tinha 4 anos ganhei

minha primeira boneca negra de meu pai, que na época era viajante

comercial. Meu pai já faleceu há alguns anos e ainda hoje me pego

pensando nesse gesto. Em como ele foi ousado ao escolher essa boneca

para me presentear. Minha mãe conta que todos na loja pararam para

comentar aquela compra improvável no final da década de 80, mesmo em

minha família, de origem alemã, houve resistência e perplexidade quando

eu me apresentava com a Dida no colo em festas familiares. De qualquer

modo, essa linda boneca impactou tão forte no meu imaginário que ainda

hoje quando penso em um bebezinho a imagem que me vem à cabeça é a

daquela linda bebê negra.

Para minha felicidade, uma de minhas orientandas no curso de

Especialização em Educação para a Diversidade escolheu realizar em sua

escola, como projeto de intervenção (que foi a avaliação final do curso)

localizada na periferia de Porto Alegre, uma oficina de bonecas. Lá ela

trabalhou com a confecção de bonecas de pano negras com seus alunos

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do 8º ano. As bonecas, ao final da oficina, foram expostas e depois doadas

à pré-escola do Colégio.

Fotos projeto escola

Essa é mais uma estória em que o reconhecimento vence o desrespeito.

Explico a vocês. Um filosofo alemão chamado Axel Honneth propôs, em

seus estudos sobre justiça e identidade que há apenas duas formas de

lidarmos com a diferença, ou com a diversidade: o reconhecimento ou o

desrespeito. E ele diz mais: diz que o reconhecimento pode se dar de três

modos: pelo amor, pela solidariedade ou pelo direito. Como exemplo de

reconhecimento pelo amor temos todas as relações afetivas inter-raciais,

mas eu diria sobretudo a relação romântica. O amor envolve admiração,

respeito, reciprocidade, eu não me apaixono por alguém que considero

inferior. Apaixonar-se, amar, é ver o outro como igual. Por isso essa é uma

das formas mais potentes de reconhecimento (e por isso intuitivamente

perguntamos às pessoas, quando queremos nos certificar de que ela não é

preconceituosa “mas você casaria com um negro, ou um indígena, ou

alguém de classe social mais baixa”). A segunda é muito interessante: o

reconhecimento pela solidariedade. Vou usar como exemplo a estória que

outra aluna minha, professora de uma escola pública de Frederico

Westfalen contou-me aqui mesmo em Palmeira das Missões, quando

estive aqui para dar aula na especialização em Gestão Pedagógica, no ano

de 2013. Essa aluna, descendente de alemães, casou-se com um negro da

Guiné Bissau. Ela conta que teve com ele 2 filhos, ambos com fenótipo

negro bem marcado. Quando as crianças estavam maiorzinhas, resolveu

coloca-las no CTG da cidade. No entanto, pra sua revolta, as crianças não

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foram aceitas, com a desculpa de que os grupos estavam lotados.

Entretanto, era facilmente perceptível que não havia crianças negras em

nenhum deles. Ao contar o acontecido para suas vizinhas, elas

lamentaram o ocorrido, mas não agiram como poderiam, com a força que

uma resposta de grupo, solidária pode ter. Se todas elas retirassem seus

próprios filhos daquele CTG e garantissem que eles somente voltariam a

dançar quando os filhos de sua amiga também pudessem faze-lo isso seria

um exemplo de reconhecimento por solidariedade social. Vocês vêem a

força de um ato desses? A potência disso? Eu me emociono quando falo

nessa forma de reconhecimento porque ela implica em sentir o

desrespeito sofrido por nosso vizinho como algo nosso, que também nos

diz respeito. No inicio do ano passado eu fazia cópias de minha tese em

uma empresa de cópias de Porto Alegre. Um homem com seus 40 e

poucos anos me atendia quando uma moça negra, também funcionária da

loja, passou por ele, levando alguns papeis em direção à lixeira. O homem

não pensou duas vezes: amaçou varias folhas de papel que estavam ao

seu lado e pra meu espanto jogou na moça dizendo “ah, desculpa fulana,

eu ia jogar no lixo mas me confundi porque os dois são pretinhos”. Assim

que ele disse isso não pensei duas vezes e anotei o nome desse

funcionário (que estava no crachá) e também da moça agredida. Ao

chegar em casa liguei para a gerência daquela empresa contando o

ocorrido e garantindo que se eles não tomassem providencias eu e todos

os meus colegas, alunos e professores deixaríamos de fazer cópias ali. No

mesmo dia divulguei no facebook e mandei email a todos os meus

conhecidos relatando o episódio e pedindo um boicote à empresa. O

gerente respondeu-me que apuraria a situação e, depois de receber vários

e-mails meus e de meus amigos cobrando alguma atitude, na semana fui

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informada que o funcionário não integrava mais o time da empresa e que

dali em diante haveria um treinamento nesse sentido para os

funcionários. O gerente que me respondeu também agradeceu dizendo

que até aquele momento nunca imaginou que isso pudesse acontecer em

sua empresa pois nunca havia recebido qualquer reclamação. Essa é a

força da solidariedade como forma de garantir o reconhecimento contra o

desrespeito.

O terceiro tipo, o reconhecimento pelo direito, se auto-explica. Trata-se

de garantir o reconhecimento pela aplicação da lei quando todos os

outros âmbitos falham. Na minha opinião esse tipo de reconhecimento

não é integral, pois aquele que desrespeitou, o agressor, não é

sensibilizado, transformado, ele apenas é forçado a dobrar-se à lei.

Na gramatica moral de Honneth, quem não reconhece o outro,

automaticamente o desrespeita. Assim, amigas e amigos, lhes convido a

refletir sobre o modo como vocês tem se posicionado ou omitido diante

da diversidade: vocês tem promovido reconhecimento ou desrespeito?

Pensem nas vezes em que presenciaram situações de discriminação e se

omitiram, preferiram voltar tranquilamente à sua casa e não se envolver

em confusão... (não é assim que muitas vezes pensamos?)

Têm ensinado com suas falas, com suas ações, seus filhos, irmãos mais

novos, alunos, a reconhecer ou a desrespeitar a diversidade? Tem

construido ou tem derrubado muros em direção a quem é diferente de

você?

Além dessa pergunta, que gostaria que vocês mantivessem em suas

mentes, como uma forma de auto-vigilância, acabo minha fala com a

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estória de minha experiência na comunidade indígena Mbiá Guaraní, que

vive na Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre.

Visitei essa comunidade em 2012, com outras professoras, alunos e

funcionários da UFRGS. Na oportunidade, fomos recebidos pelo Cacique

Verá, de 24 anos e apresentados à vida da comunidade. Havia muitas

crianças brincando livremente e sendo observadas por todos,

indistintamente, não apenas por suas mães e nem somente pelas

mulheres. Comentei isso com Verá, que me respondeu, como se falasse de

algo bastante óbvio pra ele, que todos são responsáveis pelos adultos que

aquelas crianças se tornarão, que a sobrevivência da comunidade

depende delas e por isso é claro que a responsabilidade é e tem de ser de

todos. Disse mais: que até os 7 anos as crianças não recebem seus nomes

sagrados pois até aquela idade elas podem ser qualquer coisa, tudo vai

depender das experiências que terão e do que aprenderão. Os Mbiá

Guaraní chamam essa fase de formação das crianças de nemboê, que

significa: tempo de colocar a alma para dentro. “Educação é toda a vida do

guaraní”, ele me disse e não só a escola.

Lembremos dos Guaraní, meus amigos. Nossas crianças podem ser

qualquer coisa, dependendo do que ouvirem, do que presenciarem, do

que aprenderem. Tenhamos a sensibilidade necessária para perceber os

momentos críticos e efetivamente educa-las, tenhamos coragem e

ousadia e sejamos mãe que ensinam a derrubar muros.

Muito obrigada.