PEDAGOGIAS DA NOITE - UM ESTUDO SOBRE A MODELAGEM DA VIDA
URBANA NOTURNA
Eloenes Lima da Silva – UFRGS/PPGEdu
Suave é a noite,
é a noite que eu saio.
Pra conhecer a cidade,
e me perder por aí!
Engenheiros do Hawaii (1986)
Marco Polo descrevia cidades para o imperador Kublai Khan. Inventava cidades
ocultas, cidades-olhos, cidades-memória, cidades-símbolos. Criava cidades invisíveis e
fantásticas na imensa geografia comandada pelo imperador. Poderes, saberes, territórios e
sonhos confundiam-se na narrativa imaginativa do escritor Italo Calvino (1990). Efetuar
pesquisas nas metrópoles contemporâneas também exige certas doses de invenção, seja para
criar percursos, selecionar o que será investigado ou para escolher quais teorias e
metodologias levaremos em nossa caminhada na procura dos espaços e tempos que existem
dentro dos múltiplos territórios urbanos.
Uma procura que, em grande parte, iniciou-se através da pesquisa de mestrado em que
problematizei as práticas culturais juvenis de grafiteiros e pichadores de determinadas regiões
de Porto Alegre – RS entre os anos de 2008 e 2010. A socialização e a demarcação de
territórios através das práticas do grafite e da pichação, a constante interação nos espaços
urbanos, além de uma crescente institucionalização dessas práticas culturais em escolas,
museus e galerias de arte apontaram para uma “pedagogização” do grafite. O estudo
demonstrou que grafiteiros e pichadores atuam em redes plurais móveis e dinâmicas,
atestando as condições e situações das culturas juvenis em contextos contemporâneos. No
entanto, ao concluir tal pesquisa, percebi que a multiplicidade cultural presente nos ambientes
urbanos continua oferecendo um vasto campo para estudos.
Sendo assim, este trabalho se configura como um primeiro movimento investigativo
de meu atual estudo de doutorado que procura lançar um olhar mais apurado em direção as
pedagogias que são colocadas em circulação nas metrópoles contemporâneas. De maneira
ainda preliminar, estou denominando a temática trabalhada neste momento da pesquisa como
pedagogias da noite. Para tanto, o texto está dividido em duas partes distintas:
primeiramente– por se tratar da fase inicial de pesquisa–, apresento um levantamento das
produções acadêmicas que investem em temas como cidades e metrópoles contemporâneas,
urbanismo e modos de vida. Teses e dissertações acadêmicas cujas propostas se colocam de
perspectivas variadas e multidisciplinares para compor investigações, problematizações e
análises que me auxiliam para a definição de contornos em minha pesquisa. Na segunda parte
do texto, apresento excertos dos diários de campo e as escolhas teórico-metodológicas que
embasam as abordagens iniciais nos espaços e tempos noturnos em que se misturam os modos
de vida urbana. Busco com isso, arrolar alguns dados que permitam identificar determinadas
pedagogias que operam e são colocadas em circulação nos espaços noturnos das cidades.
Parte 1: O Estado “transdisciplinar” da arte
A realização de um levantamento inicial para a temática pretendida se revelou tão
amplo quanto às possibilidades de pesquisar nas metrópoles. Romanowski e Ens (2006, p.
39), ao discutirem os procedimentos e limites de estudos denominados “estados da arte”, nos
auxiliam e indicam alguns caminhos metodológicos para o mapeamento de um determinado
tema. Para as autoras (id. Ibidem), a realização do “estado da arte” procura apontar as
restrições da pesquisa, bem como “as suas lacunas de disseminação, identificar experiências
inovadoras investigadas que apontem alternativas de solução para os problemas da prática e
reconhecer as contribuições da pesquisa na constituição de propostas na área focalizada”. Um
mapeamento preliminar composto de teses de doutorado, dissertações de mestrado que além
de apresentar conceitos, autores e demonstrar outras possibilidades analíticas, discutem
teorias e apontam caminhos metodológicos que auxiliam na definição dos contornos de minha
pesquisa.
Assim, a partir da definição de palavras-chave como cidades, metrópoles, noite,
modos de vida e pedagogias, dei inicio às buscas nos portal da CAPES e nas bibliotecas
virtuais de universidades como UFRGS, USP e UERJ. Destacaram-se produções nas áreas da
educação, da comunicação, da geografia, da história, da psicologia, da arquitetura e do
urbanismo. No entanto, se levarmos em conta que nas teses e dissertações selecionadas,
encontramos referências, autores e a utilização teórica e metodológica dos campos das artes,
da sociologia, da antropologia e da filosofia, observa-se que nas diversas áreas do
conhecimento a temática urbana e seus modos de vida tem se tornado um interesse de
pesquisa.
No campo da educação, a dissertação de mestrado Educação do Lugar: Saúde Mental
e Pedagogias da Cidade articula a educação como um desafio para abalar a “zona de
fronteira” entre o serviço de atenção psicossocial, as ruas, a cultura da cidade, as zonas de
resistir e criar nas redes sociais contemporâneas (SILVA, 2008, p.01). Para a autora (id.), o
encontro da saúde com a educação, em uma pedagogia da cidade, é uma aposta na construção
de aprendizagens por encontro, exposições e interações para a emergência de laços sociais em
uma educação do lugar que não se impõe, já que emerge das forças de resistir e criar. Outro
trabalho que possui como temática cidade e educabilidade e como objeto de pesquisa
pedagogias da cidade é a tese de doutorado em educação Cidade, sociabilidades e
educabilidades (Príncipe, Rio Grande do Norte – século XIX). Nela, Olivia Morais de
Medeiros Neta (2011) problematiza como a relação entre cidade e sociabilidade constitui
educabilidades a partir de espaços considerados pedagógicos na cidade de Príncipe do século
XIX, uma vez que o modus vivendi do habitante da urbe, composto de práticas sociais,
valores da vida material e simbólica é enredado por sociabilidades conferindo à cidade uma
instância pedagógica. Um trabalho que se inscreve na dimensão da história cultural enquanto
estudo dos processos de produção de sentido em um tempo e espaço próprios.
Destaco duas produções acadêmicas, que mesmo de diferentes áreas do conhecimento,
se ocupam da construção de sentidos e a relação dos habitantes com e nos espaços da cidade.
Na área literária, a dissertação Andar nas ruas do Rio de Janeiro, a Arte de Rubem Fonseca
analisa as formas que o espaço urbano de uma metrópole assume quando observado pela
perspectiva de seus usuários. Neste trabalho, a autora estabelece uma relação com espaço
urbano representado em alguns contos de Rubem Fonseca, como em “A arte de andar nas ruas
do Rio de Janeiro”. Na tese de doutorado em Ciências da Comunicação A praça dos sentidos:
comunicação, imaginário social e espaço público, Daniela Palma (2010) observa como se
constroem sentidos sociais de um espaço público, no caso a Praça Roosevelt, localizada no
centro da cidade de São Paulo.
Seleciono também, tanto pelo seu método ensaístico de escrita, quanto pela forma que
foi organizada (a partir de cadernos-verbetes que podem ser lidos e consultados de modo não
linear), a tese de Aline Couri Fabião (2011) intitulada Incons[ciências] do olhar: por outras
cartografias do espaço. Neste trabalho, vinculado à arquitetura e urbanismo, a autora explora
as relações entre as práticas de “diagnóstico urbano” e suas “representações gráficas e
visuais”. “Diagnósticos urbanos” são instrumentos do urbanismo pouco questionáveis
enquanto exercícios de descrição, montagem e apresentação das cidades, uma vez que na
diversidade material e de formas sociais e culturais que constituem as cidades, “diagnosticar”
implica interpretar e discriminar o que se considera como objeto do “olhar”, de um “juízo” e
de “projetos de mudança.” (FABIÃO, 2011). Insiste-se assim, para que as práticas
articuladoras de representações e de sentidos, próprias de um discurso contemporâneo sobre o
direito à cidade, envolvam todo aquele que vive, experimenta e constrói, cotidianamente, o
espaço urbano.
A dissertação Práticas sensíveis sobre o espaço comum, de Marcelo Reis, onde o
autor parte das práticas (sensíveis) para pensar o papel do arquiteto e do designer enquanto
propositor de uma cultura urbana, sem ser mero espectador e reprodutor de correntes e
tendências da cultura. Fotografias digitais, vídeos, músicas e registros sonoros práticos são
linguagens eletrônicas utilizadas para perceber, intervir, experimentar e impulsionar a
sensibilidade em espaços urbanos. A tese de doutorado em Teoria e História da Arquitetura e
Urbanismo A Cidade sob a Poética do Andar: as Deambulações de Hélio Oiticica investiga
as proximidades entre as proposições de Helio Oiticica e os conceitos como “construção de
situação”, “deriva”, e “urbanismo unitário” desenvolvidos pelo movimento Internacional
Situacionista (1957-1972). A partir da reconstituição das caminhadas urbanas de Hélio
Oiticica, a tese procura relacionar as ações que refletem as críticas do artista à cidade e aos
seus modos de vida, com a crítica social e urbana desenvolvida pelos situacionistas. Para
tanto, foram consultados arquivos, manuscritos, cartas, entrevistas e demais documentos do
artista e os boletins da Internacional Situacionista. Tais trabalhos, ligados ao campo da
arquitetura, além de destacarem o uso do tema do ambiente urbano como cenário de releitura
crítica do espaço e do tempo na sociedade urbana, servem de inspiração teórico-metodológica,
já que possibilitam analisar e reconstituir de distintos pontos de vista os diferentes modos de
estabelecer relações com as metrópoles contemporâneas.
Arte, corpo e cartografias do desejo na cidade, são temas destacados na dissertação de
mestrado em Psicologia Institucional Entre corpos e cidades: pensamentos e interferências
sobre a construção de cidades e modos de vida. Analisando a cidade como corpo social,
projetado e em construção, este trabalho – que surge quase como um desabado de seu autor
arquiteto e urbanista ao perceber que tais campos não necessitam estar desvinculados da
política e da filosofia – parte de dois pontos de ação/reflexão: primeiramente, investiga como
o movimento de institucionalização age sobre o saberes e o poderes do corpo-cidade, e em
segundo lugar, busca entender como as potências subjetivantes presentes nos objetos
arquitetônicos e urbanístico participam da fabricação de subjetividade e da experiência
urbana. A potência ética-estética-política, presente no trabalho, busca contribuir para a
produção de subjetividades comprometida com a construção coletiva e comum.
A noite e seus espaços de lazer são destacados na dissertação de mestrado Do Bom
Fim à Cidade Baixa: O uso dos Espaços de Lazer Noturno (1964-2006), de Vanessi
Reis(2013), que reconstituiu os espaços de lazer noturnos dos Bairros Cidade Baixa e Bom
Fim na cidade de Porto Alegre – RS. A partir de fontes históricas como entrevistas,
reportagens e depoimentos de pessoas que vivenciaram os acontecimentos na vida noturna
daqueles locais, a autora mostra a migração do público de um bairro para outro. Alegre – RS.
Entender o fenômeno da iluminação urbana em sua relação com o espaço físico, dos
comportamentos humanos e seus significados, é a proposta da dissertação de mestrado
Cenários Noturnos: sobre a espacialidade e os significados da iluminação urbana na área
central da cidade do Rio de Janeiro. A partir dos conhecimentos advindos da geografia, da
arquitetura e da teoria teatral, o trabalho propõe uma leitura da paisagem como cenário para a
classificação de cenas noturnas. Tais produções, ao demonstrarem a importância dos espaços
de lazer, da vivência noturna e da organização espacial (no caso da iluminação, que vai
instaurar outros significados para a noite da cidade), permitem vincular os valores políticos,
sociais e culturais de uma sociedade com a formatação e condução de sujeitos em
determinadas épocas
A partir da seleção dos trabalhos, foi possível observar produções oriundas de distintas
áreas do conhecimento científico. Este primeiro mapeamento revelou algumas questões
importantes para auxiliar na definição dos contornos de minha pesquisa. São eles: a percepção
de que a educação nas metrópoles é feita de encontros em espaços públicos; a relação entre
cidade e sociabilidade para a produção de educabilidade; relevância das práticas sociais e das
vivências urbanas; preponderância da tecnologia multimidiática nos contextos pesquisados;
valorização da arquitetura, da memória e da história e a importância das narrativas e discursos
para os constantes processos de significação e ressignificação nos espaços e tempos urbanos.
Entendo as cidades e a noite urbana como ambientes contemporâneos por onde
circulam as pedagogias do nosso tempo, na sessão seguinte, procuro esboçar quais
ferramentas teóricas e metodológicas permitem aproximações com a temática proposta e
possibilitam abordagens aos espaços e tempos de uma metrópole. Trata-se de uma
investigação inicial aos diferentes ambientes que compõe a noite urbana da cidade de Porto
Alegre – RS, mas, desde já permitem observações, registros, na busca das possíveis relações
entre as pedagogias e os distintos modos de vida que habitam essa metrópole contemporânea.
Parte 2: Quando estranhos se encontram: em busca das pedagogias da noite.
Chego ao local do show por volta das dez horas da noite de sábado. Filas de
carros, de flanelinhas e de vendedores ambulantes se aglomeram pelas
redondezas do local que já foi uma fábrica e agora é um espaço para shows
patrocinado por uma famosa marca de refrigerantes. A apresentação da noite:
três bandas que investem em um estilo de rock “pesado”, tipo heavymetal e
punkhardcore. Entro no local. Uma imensidão de pessoas, vestidas em sua grande
maioria de roupas pretas, toma conta do espaço. O som produzido pelos músicos é
ensurdecedor, mesmo assim, muitos sobem no palco e se jogam de volta para a
platéia. Durante a apresentação da segunda banda é o próprio guitarrista e
vocalista que se junta ao seu público. Observo a reação de alguns que perambulam
pelo local, bebem cerveja, conversam. Embora, em sua maioria, desconhecidos
entre si, as sensações proporcionadas e presentes naquele ambiente parece
promover uma interessante união. Todos separados, mas ao mesmo tempo juntos,
numa estranha e intensa comunhão coletiva. Ao final do evento, saem em grupos
ou individualmente, seguindo tão dispersos quanto chegaram àquele local.
Inclusive eu!
(Excerto do diário de campo, novembro de 2014)
No excerto acima, que compõe meu diário de campo, procuro destacar abordagens e
observações em um dos múltiplos cenários noturnos presentes na noite da cidade de Porto
Alegre - RS. Como afirmam Almeida e Tracy (2003), ao ser entendida como uma experiência
espacial, a noite das metrópoles transformou-se em circuito para pesquisas e uma categoria
fundamental para estudos. Assim, me coloco nestes cenários como um pesquisador-
observador e neles transito com um olhar acurado para observar ambientes, sujeitos, registrar
locais e situações onde as urbanidades noturnas acontecem.
Ao adentrar na metrópole como um pesquisador, é preciso estar atento em suas
transformações e perceber seus ritmos. O próprio trabalho de campo se configura nômade,
transitando entre visualizações dos espaços urbanos, registros de pesquisa, diálogo com os
habitantes e, articulado com tudo isso, o uso de teorias e metodologias que nos permitam
apreender e descrever aspectos das dinâmicas que acontecem na metrópole. É preciso levar
em conta que o próprio pesquisador já se encontra muitas vezes inserido em campo, fazendo
parte do cenário, interagindo com os sujeitos pesquisados.
Nesse sentido, opto por trabalhar com, a metodologia etnográfica pós-moderna, pois
segundo Gottschalk (1994, p. 3), ela difere de uma etnografia ‘tradicional’ por exigir que seu
autor permaneça constante e criticamente atento às subjetividades e aos “[...] movimentos
retóricos e aos problemas da voz, poder, política textual, limites à autoridade, asserções de
verdade, desejos inconscientes e assim por diante”. Para Gottschalk (1994), esta bricolagem
crítica e autoreflexiva é pertinente, pois a criatividade, a flexibilidade e a adaptação ética ao
campo deveriam contar mais do que a submissão a regras produzidas alhures por outra pessoa,
em outro tempo, e com propósitos diferentes. A possibilidade do pesquisador de experimentar
a sensação de ser “menos estrangeiro”, misturar-se com hábitos, valores, crenças dos grupos
ou indivíduos de sua pesquisa pode evidenciar “[...] uma compreensão através do
reconhecimento, identificação, experiências pessoais, emoção e formas de comunicação que
comprometam o leitor com planos outros que não unicamente o racional”. (GOTTSCHALK
1994, p. 9).
Nas metrópoles, desde a própria arquitetura, passando pelos lugares públicos e
privados até a dinâmica social que institui os ritmos, o habitante urbano é educado a cada
passo ou movimento que executa na cidade. Nesse ponto, é fundamental destacar os
movimentos e transformações dos processos educativos na contemporaneidade, e
especificamente da pedagogia, que atinge todos os âmbitos da sociedade, não se restringindo
apenas aos espaços escolares. Costa e Camozzato (2013) entendem que as múltiplas
condições culturais contemporâneas acionam um conjunto de forças para intensificar e
refinar, por via das pedagogias, as aprendizagens necessárias para nos tornarmos sujeitos
desse tempo. Na modernidade líquida, as pedagogias encontram uma necessidade constante
de se transformar e de se reinventar para acompanhar as verdades. Assim, os espaços e
tempos em que as pedagogias atuam se multiplicam e se pluralizam (id., ibid.).
Para Margulis (2005, p. 12), assim como a geografia urbana se descentralizou, também
a cultura da noite se transformou num cenário de intensa atividade. Nos espaços e tempos da
noite “a cidade renasce na madrugada e se povoa [principalmente] de jovens de ambos os
sexos. Durante a noite muitos territórios urbanos carregam um significado diferente e também
complexos itinerários se cruzam”. Para o mesmo autor (2005), uma das oposições que permite
aproximar a significação do espaço urbano é a de dia-noite, a oposição entre luz e escuridão,
ou o tempo processado socialmente que regula a vida urbana, os horários de trabalho e
descanso. Segundo o autor (id. Ibid.), “as atividades da população estão regidas por marcos
institucionais que estabelecem os usos possíveis dos lugares em distintas horas, a
institucionalização espacial e temporal das praticas sociais”.
As horas, uma invenção da modernidade industrial para regular o tempo, é utilizada
como amparo e refúgio pela urbanidade noturna. As obscuridades ressurgem a cada final de
dia, de expediente de trabalho. Enquanto alguns se dirigem para suas residências, outros
ocupam os espaços noturnos. Ao refugiar-se na noite, o sujeito possui a ilusão de resignificar
a cidade e o tempo, de não mais estar colonizado pelo poderes constituídos, nem por eles
controlado (MARGULIS, 2005). No entanto, se outra cidade se apresenta para os habitantes
noturnos, também outras relações de poder se estabelecem e outros saberes são colocados em
ação, emergindo assim outras práticas sociais.
Isso nos permite refletir sobre os “processos de educação dos corpos e das
subjetividades humanas que se passam fora do recinto das escolas”, como aponta
Albuquerque Junior (2010, p.01). Ao ampliar o leque para as possibilidades de pensar outras
formas de educação e pedagogias que são engendradas na contemporaneidade, o autor (id.,
ibid.) adverte que a transformação da pedagogia em curso escolar
dificulta a percepção que vivemos em sociedades e culturas em que
uma multiplicidade de pedagogias opera no cotidiano, visando
elaborar subjetividades, produzir identidades, adestrar e dirigir corpos
e gestos, interditar, permitir e incitar ou ensinar hábitos, costumes e
habilidades, traçar interditos, marcar diferenças entre o admitido e o
excluído, valorar diferencialmente e hierarquicamente gostos,
preferências, opções, pertencimentos, etc.
A vida urbana contemporânea pode ser observada a partir de muitas perspectivas. E, se
os processos pedagógicos operam em diversos âmbitos socioculturais, acredito que as lentes
que estou colocando para analisar práticas sociais contemporâneas possibilitam perceber que
os modos de viver e de se constituir como sujeitos nas cidades estão engendrados com as
pedagogias encontradas nos ambientes urbanos.
Sabemos, a partir de Hall (1997), que a cultura se tornou constitutiva em todos os
aspectos da vida social do nosso tempo. Nesse sentido, para Camozzato (2014), as
transformações culturais fazem com que a pedagogia entre num processo constante de
atualização para conectar-se com exigências e as necessidades contemporâneas. E, nesse
entendimento, podemos salientar uma multiplicação dos lugares em que se ancoram e operam
as pedagogias. “Multiplicação dos modos de olhar e ser olhado, e falar e ser falado [...],
multiplicação mesma das diferenças” (CAMOZZATO, 2014, p. 574).
A sensação de não ser controlado, de afastar-se dos poderes instituídos, parece liberar
o sujeito para práticas sociais no espaço-tempo noturno. No entanto, a noite pode estar eivada
de pedagogias que, de uma forma ou de outra, conduzem, produzem e enleiam os seus
habitantes. Como argumenta Camozzato (2013), se os ambientes contemporâneos estão em
constante transformação, as pedagogias deste tempo presente operam e produzem em muitos
lugares. Argumenta a autora (id., p. 584):
a pedagogia parece-me ser o ponto de articulação importante quando
se trata de produzir e incitar uma injunção entre os valores e
significados expressos e colocados como mais fortes num tempo-
espaço preciso – evidenciando embates pela significação, por ser
próprio de uma vontade de pedagogia querer estruturar o campo de
ação dos outros nesse mesmo movimento [...].
Colocado em posição direta com os saberes, os valores, os significados e as verdades
que determinam suas práticas sociais, o sujeito se constitui através desses processos de
subjetivação constantes no espaço e no tempo. A pedagogia, ou pedagogia(s), presentes na
noite, encontram condições de operar nos sujeitos, de conduzi-los, de moldá-los. No entanto,
é importante destacar a partir de Larrosa (1994, p. 36), que nessas práticas pedagógicas “[...] o
mais importante é que não se aprenda algo ‘exterior’, um corpo de conhecimentos, mas que se
elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva do ‘educando’ consigo mesmo.
Diante do argumento de Larrosa (1994, p. 36), podemos inferir que as vivências, as
experiências e as múltiplas formas de interações adquiridas em meio aos ambientes noturnos e
urbanos são processos pedagógicos. Se considerarmos que práticas pedagógicas são “[...]
aquelas nas quais se produz ou se transforma a experiência que as pessoas têm de si mesmas”
( id., ibid.), podemos atribuir aos espaços e tempos noturnos uma constante elaboração das
relações do sujeito para consigo mesmo.
Nesse sentido, as vestimentas, os locais noturnos com sua arquitetura e ambientação,
os gestos corporais, a música, possibilitam observar e registrar que na noite urbana se
modificam e se transformam as relações dos sujeitos para consigo e para os outros. Estar no
espaço-tempo da noite, além de conectar-se com práticas sociais de toda ordem é provocar
intensas sensações em que corpo e mente estão a todo tempo sendo conduzidos, moldados,
resignificados. Na noite, o sujeito se faz em contato com o outro, mede sua aparência, está
constantemente, para usar um termo contemporâneo, conectado com o outro. À noite, os
sujeitos estabelecem modos de viver distintos àqueles do dia. Na cultura da noite urbana e
contemporânea, os sujeitos são conduzidos para a execução de determinadas ações e atitudes
nos seus espaços. Processos pedagógicos que, através dessas relações estabelecidas, governam
vontades, regulam práticas e comportamentos e produzem verdades de ser e estar na noite. No
espaço-tempo noturno a obscuridade é um disfarce ambivalente, ao mesmo tempo em que
possibilita esconderijos permite-se reveladora de desejos. Diante de tudo isso, fica a questão:
se o sujeito se constitui através do outro, os estranhos que se cruzam na noite das cidades se
fazem sujeitos?
Considerações finais
Por se tratar de uma pesquisa em estágio inicial, como foi possível observar, selecionei
na primeira seção deste texto algumas produções acadêmicas que se ocuparam de temáticas
semelhantes. Estudos de diferentes áreas do conhecimento que ao proporcionar reflexões,
inspirações e descobertas, possibilitam direcionamentos no caminho da pesquisa.
Posteriormente, a partir de abordagens iniciais em um dos locais onde as praticas sociais
noturnas e urbana acontecem, apontei os possíveis caminhos metodológicos da pesquisa e um
esboço analítico em que procurei demonstrar como estou entendo e operando com o tema
pedagogias da noite. Um caminho inicial que, se por um lado parece possuir uma perspectiva
ampla em se tratando de metrópoles contemporâneas, por outro, ao abordar praticas sociais de
determinados modos de vida urbana e noturna, segue afinando seus contornos de pesquisa.
Sendo assim, foi possível perceber que as pedagogias contemporâneas podem ser colocadas
em ação a partir de determinadas práticas sociais, modos de vida e condutas individuais ou
coletivas encontradas em espaços e tempos da noite da metrópole porto-alegrense. .
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