Srie Pensando o Direito
N 09/2009 verso integral
Temas de Direito Urbanstico
Convocao 01/2007
Universidade So Judas Tadeu
Faculdade de Direito Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo
Coordenao Acadmica: Solange Gonalves Dias
Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia (SAL)
Esplanada dos Ministrios, Bloco T, Edifcio Sede 4 andar, sala 434 CEP: 70064-900 Braslia DF
www.mj.gov.br/sal
e-mail: [email protected]
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CARTA DE APRESENTAO INSTITUCIONAL
A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia (SAL) tem por objetivo
institucional a preservao da ordem jurdica, dos direitos polticos e das garantias
constitucionais. Anualmente so produzidos mais de 500 pareceres sobre os mais diversos
temas jurdicos, que instruem a elaborao de novos textos normativos, a posio do governo
no Congresso, bem como a sano ou veto presidencial.
Em funo da abrangncia e complexidade dos temas analisados, a SAL formalizou,
em maio de 2007, um acordo de colaborao tcnico-internacional (BRA/07/004) com o
Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que resultou na estruturao
do Projeto Pensando o Direito.
Em princpio os objetivos do Projeto Pensando o Direito eram a qualificao tcnico-
jurdica do trabalho desenvolvido pela SAL na anlise e elaborao de propostas legislativas e
a aproximao e o fortalecimento do dilogo da Secretaria com a academia, mediante o
estabelecimento de canais perenes de comunicao e colaborao mtua com inmeras
instituies de ensino pblicas e privadas para a realizao de pesquisas em diversas reas
temticas.
Todavia, o que inicialmente representou um esforo institucional para qualificar o
trabalho da Secretaria, acabou se tornando um instrumento de modificao da viso sobre o
papel da academia no processo democrtico brasileiro.
Tradicionalmente, a pesquisa jurdica no Brasil dedica-se ao estudo do direito positivo,
declinando da anlise do processo legislativo. Os artigos, pesquisas e livros publicados na
rea do direito costumam olhar para a lei como algo pronto, dado, desconsiderando o seu
processo de formao. Essa cultura demonstra uma falta de reconhecimento do Parlamento
como instncia legtima para o debate jurdico e transfere para o momento no qual a norma
analisada pelo Judicirio todo o debate pblico sobre a formao legislativa.
Desse modo, alm de promover a execuo de pesquisas nos mais variados temas, o
principal papel hoje do Projeto Pensando o Direito incentivar a academia a olhar para o
processo legislativo, consider-lo um objeto de estudo importante, de modo a produzir
conhecimento que possa ser usado para influenciar as decises do Congresso, democratizando
por conseqncia o debate feito no parlamento brasileiro.
Este caderno integra o conjunto de publicaes da Srie Projeto Pensando o Direito e
apresenta a verso na ntegra da pesquisa denominada Temas de Direito Urbanstico,
conduzida pela Universidade So Judas Tadeu (USJT).
Dessa forma, a SAL cumpre seu dever de compartilhar com a sociedade brasileira os
resultados das pesquisas produzidas pelas instituies parceiras do Projeto Pensando o
Direito.
Pedro Vieira Abramovay
Secretrio de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia
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CARTA DE APRESENTAO DA PESQUISA
A apresentao deste Relatrio constitui a etapa final de execuo do Projeto
Pensando o Direito, desenvolvido por grupo de pesquisadores da Universidade So Judas
Tadeu, tendo como escopo a anlise de temas compreendidos pelo direito urbanstico.
Na primeira fase dos trabalhos produziram-se textos que expressavam reflexes
iniciais do grupo de pesquisa acerca dos seguintes temas: 1) operaes urbanas consorciadas;
2) funo social da propriedade imvel e combate aos vazios urbanos; 3) regularizao
fundiria em zonas de especial interesse social; 4) direito de superfcie; e 5) estudo de
impacto de vizinhana.
No decorrer dos trabalhos, foram atendidas solicitaes especficas da Secretaria de
Assuntos Legislativos referentes apreciao de propostas legislativas em tramitao no
Congresso Nacional, em especial ao Projeto de Lei n 3.057, de 2000 (apensos: PL 5.894/01,
PL 2.454/03, PL 20/07, PL 31/07, PL 846/07 e PL 1.092/07) que dispe sobre o parcelamento
do solo para fins urbanos e sobre a regularizao fundiria sustentvel de reas urbanas e d
outras providncias, tudo conforme previsto no edital de chamamento para a adeso ao
Projeto.
Em cumprimento das atividades previstas para a concluso dos trabalhos, os textos
apresentados no Primeiro Relatrio foram revisados, ampliados e/ou complementados com
novos estudos que sugerem perspectivas diferentes daquelas inicialmente propostas.
Ainda, em atendimento solicitao da SAL, produziu-se um novo texto que aborda
os novis instrumentos urbansticos previstos no Projeto de Lei 3.057/2000, quais sejam, a
interveno, a demarcao urbanstica e a legitimao de posse. A autora, Profa. Cacilda
Lopes dos Santos, passou a integrar o grupo de pesquisa dos professores da So Judas aps a
sada do Prof. Jos Ronal Moura de Santa Inez, que recentemente deixou o quadro de
docentes da USJT.
Assim, apresentam-se cinco temas em artigos revisados e ampliados, alguns dos quais
acompanhados de novos textos complementares, mais um trabalho indito tratando do assunto
supra-referido.
So Paulo, outubro de 2009.
Solange Gonalves Dias
Coordenadora
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Universidade So Judas Tadeu
Faculdade de Direito Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo
Coordenao Acadmica: Solange Gonalves Dias
SRIE PENSANDO O DIREITO
TEMAS DE DIREITO URBANSTICO
Profa. Dra. Cacilda Lopes dos Santos
Prof. Ms. Camilo Onoda Luiz Caldas
Prof. Ms. Fernando Guilherme Bruno Filho
Prof. Ms. Irineu Bagnariolli Jnior
Prof. Ms. Jos Ricardo Carrozzi
Prof. Dr. Jos Ronal Moura de Santa Inez
Prof. Ms. Paulo Srgio Miguez Urbano
Prof. Ms. Silvio Luiz de Almeida
Acadmico Florisvaldo Cavalcante de Almeida
Acadmico Leonardo de Souza Moldero
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I OPERAES URBANAS CONSORCIADAS
I.1. AS OPERAES URBANAS CONSORCIADAS COMO INTRUMENTO
INDUTOR DO DESENVOLVIMENTO URBANO ATRAVS DA PARCERIA
PBLICO-PRIVADA: CONSIDERAES HISTRICO-JURDICAS
Irineu Bagnariolli Junior
1. Introduo
Desde meados do Sculo 20, o mundo vem atravessando um crescente e contnuo
processo de urbanizao. Com a intensificao da tecnologia agrcola, diminui
consideravelmente a necessidade de mo-de-obra intensiva no campo, e o processo que teve
incio com a Revoluo Industrial e o cercamento das terras comunais no sculo XVIII,
acabou por promover a migrao de milhes de pessoas dos campos para as cidades,
transformando-as assim no principal centro das aes humanas.
No Brasil, como se sabe de sobejo, a partir da dcada de 50, o pas sofreu um processo
acelerado de urbanizao, e nessa primeira dcada do sculo 21, atingimos uma mdia de
cerca 73% de concentrao demogrfica urbana, segundo o IBGE (em nmeros aproximados,
cerca de 138 milhes de pessoas na cidade, contra cerca de 32 milhes de pessoas no campo
Censo 2000).
O chamado milagre econmico da dcada de 70 trouxe um novo fenmeno. Com o
fomento ao desenvolvimento da construo civil e a industrializao, milhares de migrantes
deixaram as condies precrias das cidades nordestinas mudando-se para os grandes centros
industriais do sudeste, agravando os problemas de moradia nas cidades e adensando as
periferias desses centros com loteamentos ilegais e favelas. As grandes cidades tornaram-se
ento principal motivo de preocupao do regime militar, uma vez que o agravamento das
condies de vida, em especial locomoo moradia e saneamento, tornavam a populao de
baixa renda, insatisfeitas com a gesto governamental at ento bastante popular, fazendo
com que o Governo Federal trouxesse o assunto ordem do dia.
A elite intelectual que subsidiou o aparato ideolgico-estratgico do regime militar,
no era nem de longe obtusa. Cedo percebeu que as questes urbanas poderiam vir a ser
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determinantes, para a manuteno de seu projeto poltico. Desta compreenso decorrem duas
aes de grande importncia na formao urbana, que se estendem at nossos dias.
De um lado so os prprios idelogos, estrategistas e administradores do regime que
estimulam a discusso do tema urbano, inicialmente em frum partidrio, como forma de
tentar dar respostas quele estado de coisas, e com isso trazendo baila, para alm de grupos
restritos, questes ligadas ao desenvolvimento urbano, urbanismo, concentrao nas cidades,
migrao, habitao e metropolitanismo, cujas formulaes h poca, nos parecem
fundamentais para a compreenso da realidade contempornea, de vez que, muitos dos
articuladores e avalizadores daquelas proposituras, continuam frente do aparelho de Estado,
imprimindo seu ponto de vista atravs de aes administrativas. De outro, o Governo Federal
toma medidas extremamente categricas, no sentido de criar normas de desenvolvimento
urbano que padronizem, uniformizem, e controlem o crescimento catico das cidades e
regies metropolitanas brasileiras.
A criao do II PND, durante o governo Geisel, vai modificar de maneira radical as
relaes entre o Estado Federal e a gesto urbana, reafirmando a disposio efetiva desta
esfera de governo em centralizar as iniciativas tambm no campo de desenvolvimento e
planejamento dos municpios, em especial das metrpoles, como alis j havia feito com um
sem nmero de setores outros da administrao pblica.
A idia do Estado centralizador, normatizador, absoluto, paternalista e controlador,
permeia toda a administrao federal durante o regime militar, e esconde sob o aparente
manto de modernidade estatizante, princpios historicamente consolidados e anacrnicos,
como a preservao da ordem e segurana nacional, o clientelismo de Estado, e a tutela e
curatela pblicas. Tudo aquilo que no se apresenta sob os ditames da norma estabelecida,
ou foge aos rgidos padres cartesianos de paradigmas criados pelo liberal-conservadorismo
nacional, anomia, devendo, portanto ser reconduzido, ainda que compulsoriamente, ao rumo
preestabelecido pelos estrategistas governamentais.
Concomitantemente, difunde-se no pas, consubstanciada nas posturas federais, e
auxiliado por tcnicos, a tica de que o Planejamento Urbano antes de mais nada, elemento
fundamental no controle da expanso das cidades, at ento entregues a sua prpria e catica
sorte, e que deve ser organizado a partir dos bons princpios do urbanismo europeu e norte-
americano, criando regras estticas Planos Diretores pr-elaborados, por exemplo
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unicamente atravs dos quais, possvel propor um crescimento aceitvel e controlvel da
malha urbana, ignorando os problemas e conflitos da cidade real. Planos urbansticos formais
e criados a partir de concepes e modelos tcnico-profissionais tornam-se smbolos de
probidade e capacidade administrativa, mesmo que, via de regra, tais planos, independente de
suas qualidades profissionais, pouco tenham a dizer aos reais problemas e questes
especficas dos municpios brasileiros.
De forma prematura em relao aos acontecimentos que se desencadeariam mais
frente, mas sem dvida premida por um razovel senso de oportunidade, a Fundao Milton
Campos, brao intelectual da ARENA, ao detectar a queda do potencial eleitoral de seu
partido nos grandes aglomerados, define a realizao de um simpsio sobre poltica urbana,
denominado O homem e a Cidade, que reuniu em Braslia, no perodo de 25 a 28 de
Novembro de 1975, algumas das mais proeminentes lideranas partidrias, personagens de
expresso na histria recente do pas. A abertura contou com a participao pessoal do Gen.
Ernesto Geisel, ento Presidente da Repblica, demonstrando claramente, que a direo
partidria pretendia estimular e compungir os polticos, intelectuais e administradores
pblicos da situao, a debater e propor solues para os problemas urbanos, antes que esta se
transformasse numa bandeira claramente identificada com a ao oposicionista. Enquanto se
tomava esta iniciativa, intelectuais e polticos de perfil no conservador j vinham se
ocupando da questo.
A leitura atenta e a anlise crtica de algumas destas intervenes nos parece muito
interessante, para uma compreenso mais clara da realidade atual no que se refere a poltica
institucional nos campos urbano e habitacional. A histria oficial, via de regra, apresenta
exclusivamente a verso dos vencedores, portanto, no bojo da critica generalizada ao projeto
estratgico dos governos militares, caracterizados por seu autoritarismo, conservadorismo,
anacronismo e cegueira social que se inserem todas as proposituras apresentadas, relegando-
as ao limbo do pensamento retrgrado.
Deve-se lembrar, no entanto, que o projeto estratgico de governo, em curso, vem
permeado da contribuio de uma parcela expressiva dos mesmos articuladores que poca se
reuniam para discutir a sustentao ao regime de exceo, e que, portanto, tais proposituras
influenciam de forma decisiva na atual configurao da poltica urbana e habitacional aonde
ela exista. Alis, muitos dos debatedores, continuaram de forma efetiva frente do cenrio
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poltico-institucional nacional, como o caso do Senador Marco Maciel, ento Presidente da
Fundao Milton Campos.
A exposio do Presidente da Repblica precedida por uma rpida exposio de
Marco Maciel, na qual explicita as razes e objetivos do simpsio:
No espao de uma gerao no mais do que isso o Brasil deixou de ser um pas essencialmente agrcola para se transformar numa sociedade preponderantemente urbana, pois de acordo, com
projees estatsticas, estima-se que j em 1980 dois teros da populao estejam nas cidades, algumas
das quais verdadeiras megalpoles...
... as migraes para as cidades tem como se sabe, multivariadas origens: sejam econmicas,
consequncia da racionalizao da agricultura ou, contrariamente, pela continuidade de prticas
rudimentares de manejo do solo, incapazes de sustentar comunidades rurais em nmeros
acentuadamente maiores; sejam psicolgicas, vale dizer, pela atrao que as cidades exercem sobre
diferentes camadas da populao...
Ningum desconhece que o grande desafio do nosso desenvolvimento a que os governos da Revoluo tem respondido com determinao, realismo e criatividade consiste em realizar em alguns anos o que muitas naes construram ao longo de sculos. Ora se isso verdade com relao ao processo de
desenvolvimento como um todo, tanto mais o , face ao problema urbano, porque, diversamente do que
ocorreu em pases do ocidente, a populao brasileira est-se deslocando sem que a tecnologia tenha
criado um excedente de alimento nos campos ou oportunidades de emprego nas cidades estas, recorde-se nem sempre providas de um mnimo de equipamentos sociais... (FUNDAO MILTON
CAMPOS, 1979)
E referindo-se funo social dos partidos Polticos e aos objetivos do simpsio:
Todo esse trabalho vem certamente, em arrimo da prpria ao partidria, que no pode ser orientada
apenas pelo intuitivo ou conduzida pelo empirismo, mas antes deve ajustar-se a uma estratgia prvia e
racionalmente estabelecida... (FUNDAO MILTON CAMPOS, 1979)
Em seguida, a exposio de Geisel clarifica as posies assumidas pelo Governo
Federal frente questo:
Em certo sentido, a expanso urbana, por excelncia, o grande tema do Brasil moderno, em nossa
poca.
Basta que se considere que tendo representado 31% da populao total em 1940 ou seja, h trs dcadas e meia, quando muitos de ns j ramos vivos a populao urbana , na altura de 1980, j ser cerca de 2/3 do total dos habitantes do Pas, correspondendo a quase 80 milhes de pessoas.
A cidade passou a responder pelo grosso da populao nacional (85% do PIB) e constituiu a
vanguarda do processo de industrializao e modernizao do Pas.
Mais ainda, permitiu que vingasse a mentalidade reformista, predominante na classe mdia urbana e
que sustenta o avano pacfico das leis trabalhistas, das leis sociais, das instituies econmicas,
sociais e polticas.
Por outro lado, tal processo de urbanizao, rpido e descontrolado, descontrolado talvez porque
rpido demais, se caracterizou por um complexo de desequilbrios: desequilbrio entre o poderio
econmico das cidades, principalmente no caso das reas metropolitanas, e sua infra-estrutura em
particular, a social; desequilbrio, igualmente entre o ritmo acelerado do crescimento das metrpole,
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de forma prematura talvez, de um lado e, de outro lado, a excessiva pulverizao de pequenas cidades,
desprovidas de substncia econmica e do mnimo indispensvel de servios.... (FUNDAO
MILTON CAMPOS, 1979)
Fica claro pelos pronunciamentos que, a esta altura, j se tinha elaborado um razovel
diagnstico da situao: o processo artificial de crescimento acelerado, patrocinado pelos
governos ps-golpe, alicerado na criao do mercado interno, na produo de bens de
consumo durveis, e no estmulo a construo civil, havia acentuado, mais cedo do que se
imaginava o desequilbrio estrutural existente entre o campo e os ncleos urbanos, face
ausncia de uma poltica de fixao do homem a suas regies de origem e criao de
mecanismos de suporte a correo da atratibilidade que o emprego industrial, exercia sobre a
massa rural depauperada. O xodo crescente e a migrao exacerbada foram omitidos
inadvertidamente num erro ttico do plano de crescimento estratgico do regime militar,
tratando-se, pois, com urgncia, da formulao de aes especficas que viessem a corrigir a
omisso.
No transcorrer das avaliaes, em nenhum momento se aventa a possibilidade da
existncia de falhas estruturais do prprio plano, enquanto suporte poltica
desenvolvimentista, mas to-somente a identificao da anomia conjuntural a carncia de
medidas de correo de rumos, que resguardassem e garantissem o prosseguimento do
processo de desenvolvimento. A viso predominante a de que o crescimento urbano
desenvolve-se de forma aleatria e catica, fundamentalmente pela ausncia de um controle
central, tratando-se em ltima anlise de aplicar o quanto antes, as medidas necessrias para
que este monitoramento saneador se estabelea com a rapidez e a eficcia necessrias.
Tendo em vista esta expanso descontrolada, A Unio toma vrias providncias de
carter administrativo, mas que s atingem o status de formulao jurdico-institucional com a
promulgao Lei Federal n 6766 de 1979, que, entretanto permaneceu como iniciativa
isolada. o que veremos a seguir.
2. Planejamento urbano municipal e regional
A soluo das grandes questes urbanas seja nas metrpoles, nas cidades-plo, ou
satlites, como o destino de resduos slidos, o transporte e circulao, a logstica, as bacias
hidrogrficas, a drenagem, o abastecimento, as cadeias produtivas, a revitalizao urbana, o
mercado de trabalho, a habitao, a incluso social, a sade pblica, a evaso e
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descentralizao industrial, etc. reporta impreterivelmente, articulao regional. Em nossos
dias, quaisquer que sejam as solues propostas aos integrantes de espaos territoriais comuns
ou interdependentes, orientam-se invariavelmente pela capacidade dos municpios em agir de
maneira coletiva e articulada.
O debate em torno do planejamento regional, apesar de permear reincidentemente
todos os debates sobre a problemtica urbana, via de regra, sobrepujado, ou mesmo
truncado, pela relevncia de questes conjunturais que remetem ao individual. O histrico
das experincias de gesto regional demonstra de maneira eficiente que a competitividade seja
econmica, seja poltica entre municpios interdependentes, prevaleceu uniformemente sobre
a ao cooperativa. A ausncia de um ordenamento jurdico que determine as competncias
legais e as remisses hierrquicas, que estabelea instrumentos operacionais de gesto
compartilhada, e que determine objetivamente formas e procedimentos do processo decisrio
regional, deixa espao aberto que as aes regionais sejam permeadas por relaes de carter
efmero e circunstancial, e articulaes de carter extra-institucional, em especial de vis
poltico.
Por outro lado, os interesses locais que permeiam de maneira pouco transparente e
preponderante os debates regionais, coibiram o desenvolvimento de aparatos normativos
institucionais de gesto compartilhada, porque estes, via de regra, no se constituem em
instrumentos efetivos de cooperao, com participao ampla, democrtica e equnime dos
envolvidos nas tomadas de deciso, mas, antes, foram utilizados, quando funcionaram, como
meios de coao para restringir a ao de interesses opostos aos daqueles que detm o poder
poltico-institucional numa conjuntura determinada. Essa experincia, muitas vezes repetida,
gerou uma falta de confiana estrutural na eficincia do processo, levando as administraes
municipais a rechaar de plano qualquer tentativa de resolver questes regionais, a partir de
um processo de tomada de deciso coletivo.
Apesar de algumas experincias importantes, e das insistentes tentativas dos
gegrafos, urbanistas, e outros profissionais da rea, em colocar a questo da gesto regional
na ordem do dia das reformas legais, a resistncia por parte dos municpios em abrir mo de
autonomia conquistada a duras penas, e de seus interesses especficos, alm da desconfiana
histrica nas instituies, tem prevalecido sobre a necessidade urgente de promover novas
formas de gesto, num pas que a cada dia se configura mais como tipicamente urbano.
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3. Desenvolvimento local
Do Imprio Repblica, e at os nossos dias, o perfil do Estado brasileiro sempre
apresentou em maior ou menor grau um forte vis centralizador. Entretanto, em nenhum
perodo, com exceo talvez do primeiro governo Vargas, esta tendncia explicitou-se tanto
quanto no perodo do regime autoritrio.
Em meados da dcada de 70, cresce a insatisfao popular com o regime e seu partido
de sustentao. A ARENA sofre, de forma indita, sucessivas derrotas eleitorais para o nico
partido de oposio (de vez que o bi-partidarismo estava em vigor), o PMDB, cujo perfil, at
ento, caracterizava-se pela mera oposio formal, sem expresso eleitoral, cuja nica cuja
funo prevista, quando de sua criao compulsria, foi legitimar a institucionalidade do
partido governante. Essa insatisfao, conforme constataram os estrategistas do poder, tinha
origem nas grandes cidades, e decorria em grande medida das pssimas condies de vida das
camadas mais pobres da populao, cuja expresso mais visvel foi o acelerado crescimento
desordenado das cidades.
Tendo como pressuposto esse diagnstico, o crescimento urbano desordenado passa a
constituir-se no inimigo pblico nmero um do Estado, na viso governamental. Para um
regime cuja abordagem racionalista no admitia incongruncias extra-cartesianas na lgica
postular do desenvolvimento sistemtico, evolutivo, e ininterrupto da foras produtivas,
causou perplexidade a constatao de que o principal vetor visvel da ideologia do nacional-
desenvolvimentismo, o crescimento econmico acelerado, seria o embrio de sua prpria
derrocada. Por outro lado, na viso dos artfices do regime, era improvvel que a expanso
natural das grandes cidades, vista como expresso simblica e aparente do sucesso da
revoluo fosse, de per si, responsvel pelas agruras eleitorais da ARENA.
A responsabilidade recai ento, no sobre o crescimento em si, mas, sobre as
conseqncias do crescimento irracional e desordenado. O prefeito da capital paulista
Figueiredo Ferraz, um dos mais expressivos quadros da inteligncia arenista, sintetiza este
ponto de vista, quando define que se anteriormente So Paulo era a cidade que no podia
parar, agora So Paulo tem que parar, para refletir sobre seu futuro!
Essa lgica previsvel decorre novamente da concepo cartesiana de que os
pressupostos estruturais do desenvolvimento, estabelecidos como postulados inquestionveis,
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no estariam vulnerveis s variveis incongruentes do sistema, como a concentrao da
renda, a disputa pelo solo urbano, e o crescimento, fraturas scio-territoriais urbanas, mas to
somente carecia de uma maior adequao estrutural ao modelo, a ser concebida pelo poder
central e imposta ao conjunto dos entes federativos.
A idiossincrasia, para no cair em tentaes simplificadoras, que, de fato, o
ordenamento jurdico do pas, em todos os nveis, carecia h muito de um aparato normativo
que definisse claramente as atribuies dos entes federativos no que tange ao planejamento e
gesto das questes urbanas e regionais. O regime autoritrio, entretanto, premido pelas
questes de ordem eleitoral e por diagnsticos que indiscutivelmente demonstravam as falhas
e as incongruncias de um modelo de desenvolvimento tido como irretocvel, cria uma
estrutura normativa arbitrria e artificial, expresso modelar da obsesso militar pelo controle
absoluto dos processos decisrios.
Na viso do governo revolucionrio, planejar as cidades, dentro do racionalismo
ttico-estratgico do regime, no era tarefa a ser desenvolvida pelos atores locais, que
prescindiam de uma viso macro-estrutural do processo, apresentavam vulnerabilidade
metodolgica, e no estavam imunes ao jogo de interesses econmicos e poltico-ideolgicos
da regionalidade. Por isso a estrutura proposta, desenhava-se fortemente hierarquizada,
delegando poderes quase absolutos aos Estados na gesto das regies metropolitanas, e no
controle estratgico do territrio municipal, excluindo configuraes regionais anmicas,
transformando os fruns de debate, como a Cmara Metropolitana, em simples figuraes
anmicas do processo decisrio, e preterindo tambm como figurantes legitimadores, os
agentes do poder local.
Esse pressuposto fundava-se, na constatao de que os executivos e os legislativos
municipais, via de regra, utilizavam-se do precrio controle que o municpio exercia sobre o
uso, a ocupao e o controle do solo urbano, para auferir vantagens adicionais, ou como
objeto de barganha visando obter favores da sociedade civil. Em 1982, quando pela primeira
vez o Partido dos Trabalhadores disputou cargos eletivos, nos foi dada a oportunidade de
pertencer aos quadros do legislativo em Santo Andr, pudemos verificar que o controle do
solo urbano constitua-se, de fato, at ento, quase que exclusivamente em moeda de troca,
nas relaes extra-institucionais com o executivo e com setores do mercado.
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Esta prtica s foi, ainda que parcialmente, coibida quando a legislao federal
determinou que o legislativo no pudesse propor mais do que duas alteraes do zoneamento
anualmente, e que qualquer propositura nesse sentido s seria aprovada com quorum
qualificado. A sazonalidade proposta acabou por agregar ainda mais valor s decises do
legislativo. Por fim, os legisladores municipais quedaram impossibilitados de propor
quaisquer alteraes do zoneamento.
Convm ressalvar que, em alguns casos essa legislao, ainda que tenha em sua
origem o pressuposto de um totalitarismo normativo, acabou de fato por permitir que alguns
Estados e Municpios, com vis mais progressista, pudessem desenvolver importantes e
histricas aes na gesto e planejamento de cidades e regies, como foi o caso do IPUC de
Curitiba, (Jaime Lerner foi um dos artfices da legislao federal), o IPUR, no Rio de Janeiro,
e a EMPLASA em So Paulo. Entretanto, os exemplos citados, ainda que importantes,
constituem-se na exceo que confirma a regra.
Durante o processo de consolidao dos avanos democrticos que sucedeu o perodo
de exceo, este quadro foi drasticamente transformado. Na elaborao da Constituio de
1988, a participao da sociedade civil foi expressiva, mas, acima de tudo, o momento foi
particularmente propcio a mudanas estruturais. Os municpios at ento alijados
involuntariamente do pacto federativo, em especial no que se refere ao normativa,
conseguiram ineditamente unificar o discurso pela re-fundao da autonomia municipal e
pelo aprimoramento de seu papel institucional, e o que a principio parecia ser uma difcil
conquista, revelou-se quase que uma ao consensual.
Como se fora uma herana indesejada do perodo de exceo, a idia do planejamento
regional foi equivocadamente associada forma autoritria pela qual o regime havia imposto
as relaes entre os entes federativos, em especial a lgica primria de que os municpios,
caso dispusessem de autonomia normativa, promoveriam o caos urbano e a desordem
estrutural de seu territrio.
Os Estados, at ento gestores da ao regional, no dedicaram especial ateno
reformulao do papel institucional das cidades no pacto federativo, premidos por questes de
ordem econmica, em especial quelas referentes s questes tributrias, permitindo que as
foras municipalistas, que atuavam concomitantemente, como sustentculo poltico dos
pleitos dos governadores, interferissem decisivamente no processo, em prol de uma
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autonomia local, que desconsiderava de forma acintosa as questes relativas a regionalidade,
em oposio direta concepo autoritria que prevaleceu anteriormente. A constituio de
1988 definiu, portanto, um novo patamar normativo no qual o planejamento regional perdeu
elementos substanciais de sua j precria institucionalidade.
4. A Constituio de 1988 e o Municpio
No perodo subseqente, ou seja, aps a aprovao da Constituio de 1988, coube aos
municpios adequarem-se ao seu novo papel de protagonistas do planejamento e controle do
territrio, bem como outras atribuies at ento, historicamente delegadas a outras instncias
de poder, como o caso da educao fundamental e da sade.
O longo perodo, em que os municpios foram alijados dos processos decisrios do
micro e macro planejamento, definiu um pesado tributo ao desenvolvimento de aes locais
ou regionais. A exigncia de elaborao de Planos Diretores para grandes e mdios
municpios do incio da dcada de 90, no logrou o xito esperado, seja pela ausncia da
cultura do planejamento urbano, seja pela inexistncia de meios institucionais adequados a
plenitude dessa normatizao. A carncia de equipes institucionais formadas para planejar, a
incipincia dos processos de participao, a concomitncia com a elaborao das Leis
Orgnicas em cada municpio, foram alguns dos entraves encontrados na elaborao desses
planos. Para tornar ainda mais complexa esta conjuntura, o perodo de elaborao dos PDs
coincidiu com os ltimos anos de mandato dos governos municipais, o que conferiu a seu
processo de elaborao um sentido de urgncia normativa incompatvel com processos
decisrios participativos, e a contaminao poltico-eleitoral nociva a processos de
planejamento a longo prazo.
A ausncia de paradigmas e referncias institucionais, exceto os vinculados ao perodo
de exceo, e principalmente a falta de definies claras quanto ao efetivo escopo e contedo
desses planos, alm das interferncias j mencionadas anteriormente, contribuiu para que os
projetos apresentados ao legislativo de maneira geral ficassem mais parecidos com Planos de
Governo, do que como um conjunto de pressupostos para a ordenao territorial. Alm disso,
a questo regional no se constituiu em objeto de normatizao, ou em tema de debate, tendo
em vista que os Planos Diretores do perodo foram elaborados quase como libelos coletivos
autonomia municipal.
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Nas administraes progressistas, a disputa pela incluso de conceitos e pressupostos
ligados a bandeiras histricas dos urbanistas, acabaram por definir a tnica do debate,
concentrando os confrontos em questes de cunho terico-ideolgicos, em especial quelas
nas quais a confrontao entre a liberdade plena de atuao do mercado se contrapunha a
normas de controle estatal, e processos regulatrios rgidos, o acabou por inibir a introduo
das questes regionais no debate.
Exemplo pertinente o do Plano Diretor do Municpio de So Paulo, elaborado entre
91 e 92 e apresentado ao legislativo ao final do Governo de Luiza Erundina, coordenado pela
urbanista Raquel Rolnik. A questo do ndice nico transformou-se no centro do embate entre
progressistas e conservadores, defensores do mercado e do controle do Estado, o que acabou
por impedir que as demais questes de relevncia viessem tona, como marcos regulatrios
para a metropolizao e a gesto regional.
Nas administraes mais conservadoras, no houve interesse real em promover
instrumentos de planejamento, de vez que, via de regra, este tipo de cultura pressupe que o
poder do Estado deve ser exercido em sua plenitude, institucionalizando-se a relao direta
entre o poder pblico e o mercado, ou a sociedade civil, em negociando concesses ou
benefcios que atendam os interesses especficos econmicos ou poltico-ideolgicos dos
detentores do poder local. Tendo em vista esta conjuntura, poucos municpios conseguiram
aprovar seus PDs, nesse perodo.
No ABCD, no foi diferente, em Santo Andr, por exemplo, a elaborao do PD,
transformou-se num centro de articulao para as reivindicaes dos movimentos sociais e
grupos de interesse, em especial os emergentes, incorporando bandeiras de luta importantes
da sociedade civil, mas prescindindo de requisitos tcnico-urbansticos, que pudessem
transform-lo num instrumento vivel de ordenao e regulao do territrio.
importante considerar que, com raras excees, as primeiras administraes
progressistas eleitas logo aps o perodo militar, como foi o caso da maioria dos municpios
do ABCD, concentraram seus esforos na poltica de inverso de prioridades, destinando a
maior parte dos recursos e de sua ao institucional, a construo de polticas compensatrias
no assistenciais, entendidas como o resgate do papel do Estado na ao distributiva e
desconcentradora, e na construo do bem estar e da incluso social. A idia corrente durante
o regime de exceo de que administrar edificar com visibilidade, foi substituda pela nfase
15
na reestruturao dos servios pblicos, como sade e educao e na criao das bases infra-
estruturais para aes de incluso social, como o provimento de moradias, urbanizao de
favelas, transporte pblico, saneamento etc.
Nessa conjuntura, mesmo que tendo em vista a provocao permanente das reas
tcnicas em prol do aprofundamento dessa questo, pouco espao restou para aes de
planejamento a longo prazo e intervenes urbansticas desenvolvimentistas, e
conseqentemente, para gerar polticas inovadoras no campo da gesto territorial. Contribuiu
ainda, para que esse debate no protagonizasse a ao administrativa a necessidade emergente
de solidificar o papel assumido pelos municpios no novo pacto federativo, responsvel pela
transferncia de parcela considervel dos servios pblicos essenciais para o poder local.
Uma importante questo, que a nosso ver ainda no mereceu o esforo de uma
reflexo sistemtica, foi a reao conservadora que precedeu a expressiva vitria eleitoral das
foras progressistas, que, entre 1989 e 1992, conquistaram o direito de administrar milhares
de municpios em todo pas. Num grande nmero de municpios, administraes progressistas
ligadas a uma grande diversidade de foras polticas e partidrias foram derrotadas, cedendo
espao para administraes de carter conservador, e modelos tradicionais de ao poltica
local, caracterizados por um clientelismo imobilista e retrgrado.
Em muitas cidades, como em Santo Andr e Diadema, em So Paulo, a retomada do
poder local por foras reacionrias ou extremamente conservadoras, promoveram um
retrocesso especialmente danoso ao avano dos processos de incluso social, planejamento e
participao. Esse processo pernicioso teve, entretanto, algum mrito ao provocar, por um
lado, a reflexo dos progressistas quanto validade ou confiabilidade dos paradigmas que
orientaram sua ao pblica, e, de outro, permitindo populao em geral, testar
comparativamente as vantagens e desvantagens da efetiva e caricata alternncia de poder, h
muitos anos coibida pelo regime de exceo. Mas em relao consolidao dos instrumentos
institucionais de planejamento, o prejuzo foi considervel.
Sem transparncia ou maior debate, os projetos de Plano Diretor no aprovados foram
redesenhados e transformados em esqulidos receptculos de conceitos anacrnicos,
superficiais e sem aplicabilidade. Premidos pelos prazos legais, os executivos entregaram aos
legislativos projetos de lei, que se constituam em peas formais de carter meramente
institucional. Todos esses fatores, acrescidos de outros que sero abordados mais frente,
16
contriburam de maneira decisiva para a ausncia das condies histrico-conjunturais
necessrias para o desenvolvimento de polticas inovadoras de integrao, planejamento e
gesto regional, ressalvadas raras e episdicas experincias isoladas.
5. O Estatuto da Cidade
A tentativa de construo de um novo marco regulatrio, a nvel federal, para a
poltica urbana remonta aos anos 70, quando o ento Conselho Nacional de Poltica Urbana,
prope o PL n 775/83, que, no entanto, no logrou xito em sua aprovao. Como resultado
de uma luta histrica dos profissionais ligados questo urbana, a Constituio de 1988,
graas inclusive a seu vis municipalista, incorporou algumas das reivindicaes mais caras
aos urbanistas e aos movimentos populares ligados habitao, como a utilizao social da
propriedade urbana, o direito cidade, e a democratizao da gesto e do planejamento. Estes
princpios constitucionais, entretanto, dependiam de legislao especfica, ou seja, ainda no
eram passveis de utilizao direta pelos municpios.
A tentativa de, por lei ordinria, criar um captulo complementar dos princpios
urbansticos da Constituio de 1988 arrastou-se por mais de dez anos de idas e vindas e
culminou com a criao do projeto de lei n 5.788/90, que s conseguiu ser aprovado com
rigorosas modificaes, em 2001, j com o nome de Estatuto da Cidade, Lei Federal n
10.257 de Julho de 2001. O Estatuto, alm de regular os artigos 182 e 183 da Constituio
Federal, traz em seu bojo a concepo primria de induzir assim como pretendiam de
maneira enviesada os artfices do planejamento centralizado do regime militar a ocupao
mais racional, economicamente sustentvel, arquitetonicamente racional e socialmente justa
das cidades, mas dessa vez com o vis correto.
Alm disso, pretende, assim como o fez de maneira pioneira a Lei n. 6766/79 com os
loteamentos populares, promover uma lgica mais racional e sustentvel para a expanso
urbana das cidades, em especial de grande e mdio porte, onde grassava a especulao
imobiliria desenfreada, uma vez que o paradigma, at ento, foi o da lgica do capital
privado que tem como pressuposto capturar valor na terra a partir dos investimentos pblicos
e coletivos (valorizao imobiliria). Para isso, promoveu a criao de instrumentos que
dotaram o poder pblico, em especial o local, de poderes jurdicos at ento inditos, para
promover a regulao do uso e ocupao do solo, orientando o crescimento urbano para
objetivos que vo alm da simples lgica de mercado.
17
Alguns desses instrumentos, como veremos mais adiante, j existiam em diversos
pases, e o Brasil, tendo em vista seu estgio de desenvolvimento e nvel de urbanizao, de
fato, tardou excessivamente a aplic-los, promovendo uma considervel queda na qualidade
de vida de muitas de nossas cidades. Princpios como o solo criado, (arts. 28 a 31) j de
sobejo utilizado em pases desenvolvidos, se consolidaram atravs de instrumentos como a
outorga onerosa do direito de construir. Alm disso, o Estatuto da Cidade foi redigido
claramente com o pressuposto absoluto de democratizar a gesto do urbano, induzindo os
poderes pblicos, em especial os locais, a estimular a ampla participao dos interessados nos
processos decisrios, como pressupem os incisos I, II, e III do art. 40 e os arts. 43, 44, e 45
da Lei.
6. As cidades e a globalizao
Muito alm de seus problemas infra-estruturais crnicos, as metrpoles brasileiras
sofreram, como todos os grandes centros urbanos mundiais, as mazelas advindas das
mudanas paradigmticas dos processos produtivos e culturais que permearam as dcadas de
80 e 90.
A descentralizao produtiva, caracterstica tpica da valorizao do toyotismo nas
formas produtivas internacionais, promoveu uma desagregao da tradicional forma de
organizar o espao industrial. Muitas indstrias abandonaram os centros industriais
tradicionais, fixando-se em reas esparsas com maiores vantagens comparativas, promovendo
um verdadeiro abandono de cidades antes prsperas o que demandou a mudana do meio
antes caracterstico desses locais, transformando-os em reduto de desemprego e degradao
urbana, cujo maior exemplo Chicago da dcada de 80 nos EUA. Como nos demonstra
CASTELLS:
No fim do segundo milnio da Era Crist, vrios acontecimentos de importncia histrica
transformaram o cenrio social da vida humana. Uma revoluo tecnolgica concentrada nas
tecnologias da informao comeou a remodelar a base material da sociedade em ritmo acelerado.
Economias por todo o mundo passaram a manter interdependncia global, apresentando uma nova
forma de relao entre a economia, o Estado e a sociedade em um sistema de geometria varivel. O
colapso do estatismo sovitico e o subseqente fim do movimento comunista internacional
enfraqueceram, por enquanto, o desafio histrico do capitalismo, salvaram as esquerdas polticas (e a
teoria marxista) da atrao fatal do marxismo-leninismo, decretaram o fim da Guerra Fria, reduziram
o risco de holocausto nuclear e, fundamentalmente, alteraram a geopoltica global. O prprio
capitalismo passa por um processo de profunda reestruturao caracterizado por maior flexibilidade
de gerenciamento; descentralizao das empresas e sua organizao em redes tanto internamente
quanto em suas relaes com outras empresas; considervel fortalecimento do papel do capital vis--
vis o trabalho, com o declnio concomitante da influncia dos movimentos de trabalhadores;
individualizao e diversificao cada vez maior das relaes de trabalho; incorporao macia das
18
mulheres na fora de trabalho remunerada, geralmente em condies discriminatrias; interveno
estatal para desregular os mercados de forma seletiva e desfazer o estado do bem-estar social com
diferentes intensidades e orientaes, dependendo da natureza das foras e instituies polticas de
cada sociedade; aumento da concorrncia global em um contexto de progressiva diferenciao dos
cenrio geogrficos e culturais para a acumulao e a gesto de capital. (2003)
Alm disso, esse processo foi acompanhado pela crescente suburbanizao das
grandes cidades, ou seja, a populao de maior poder aquisitivo abandona o centro das
cidades, antes sinnimo de qualidade urbana, e passam a morar nas regies mais perifricas
das cidades em busca de novos paradigmas de qualidade de vida. Os centros das cidades
entram e deteriorao, prejudicando a atratividade desses centros como fomentadores de
negcios e geradores de renda.
Some-se a isso, a necessidade dessas cidades verem-se repentinamente obrigadas a
entrar no selvagem processo competitivo global pela atratividade de novos investimentos e
capitais:
Assim, as regies, sob o impulso dos governos e das elites empresariais, estruturam-se para competir
na economia global e estabelecerem redes de cooperao... assim as regies e localidades no
desaparecem, mas ficam integradas nas redes internacionais que ligam seus setores mais
dinmicos. (CASTELLS, 2003)
Na tentativa de recuperar os espaos degradados, as cidades, regies e localidades,
buscam formas de promover a revitalizao do espao urbano. Grandes projetos com ncoras
arquitetnicas ou culturais so propostos pelo Poder Pblico, no sentido de recuperar a viabilidade da
cidade ou regio como agente de desenvolvimento e sobrevivncia de seus usurios.
Entretanto, os poderes pblicos locais no possuem via de regra capacidade de investimento
para arcar sozinhos com os valores envolvidos nesse tipo de empreendimento. A soluo
encontrada foi compartilhar com a iniciativa privada os seus custos.
J na dcada de 70, nos EUA, onde a participao do capital privado sempre foi muito
presente, desenvolveu-se o conceito de Urban Renewall ou renovao urbana, com a
substituio de antigos prdios em bairros, por novas construes com maior interesse
urbanstico e comercial. Dois exemplos so os ocorridos em Baltimore e em Nova Yorque
com o Pier 17.
Na Europa, no caso francs, foram criadas a ZAC (Zones Damena Concertegement),
de 1967 com intensa aplicao na dcada de 70 e 80. Na Inglaterra em 1992, cria-se o Private
19
Finance Institute PFI, visando injetar dinheiro no mercado imobilirio, e obrigando o
Estado a promover aes de implantao de infra-estrutura, de maneira a combinar os capitais
pblico e privado, em complexos sistemas de parceria.
No Canad aproveitou-se o instituto do benefit shering (contribuio de melhoria),
constituindo-se num mecanismo alternativo em que o setor privado complementa o
investimento tradicional do Estado, em especial no transporte coletivo. Ainda no Canad, em
especial na cidade de Vancouver, foram criados BIDs Business Improvement Districts, que
so planos regionais, adaptados em especial as zonas centrais das cidades, nas quais parte dos
recursos auferidos pela arrecadao local (tributos como o IPTU, por exemplo), naquele
regio so fundidos ao capital privado e redirecionados para benfeitoria no prprio local. Os
BIDs, com especificidades um pouco diferentes, foram tambm empregados com o mesmo
sucesso nos EUA:
There is another important reason for the emergence of the BIDs, far more significant then the loss of
federal aid for the services. American standards of acceptable commercial environments have
drastically over 20 years and business leaders in older commercial areas recognized that something
had to be done to maintain and enhance their competitive position. This was as true for the office and
hotel industries as for most famously retail environments. The highway office park might prove to be a mind-numbingly boring place to work, but is well-lighted, well-maintained, and landscape space
remains eminently leasable. The environment of highway hotel may be marginal, but guests need not
worry that they will find a drunk asleep outside the door to their room. (HOUSTON, 1997)
Nos EUA, observamos tambm a implementao do Land Pouling, ou urbanizao
consorciada, que consiste em que proprietrios de uma rea se consorciem, para promover
empreendimentos de impacto urbano:
O mecanismo prope a cesso por parte dos proprietrios para o Poder Pblico das reas necessrias
implantao de propostas urbansticas, com a contrapartida na forma da outorga onerosa do direito de construir. (SAVELLI, 2003)
A idia da revitalizao urbanstica como passaporte de ingresso era competicional
disseminou-se com grande rapidez. Nas regies mais desenvolvidas do planeta, entre as
dcadas de 80 e 90, grandes projetos foram paulatinamente fazendo parte do dia a dia das
cidades. Nos EUA, em regies porturias, como aquelas prximas cidade de So Francisco
na Califrnia, foram implementados projetos de grande porte, visando a recuperaes de
antigos plos industriais metropolitanos, sempre por iniciativa do Poder Pblico, mas com
intensa participao do capital privado. Antigas reas industriais abandonadas foram
substitudas incluindo unidades porturias pela forte presena de setores tecnolgicos, de
servios, de turismo, de cultura, etc.
20
Na cidade de Nova Iorque, pequenas operaes de parceria visando capturar a renda
da terra, ou implementar programas sociais, foram to bem sucedidas que se transformaram
em ferramentas institucionais, incorporando-se legislao urbanstica municipal e ao
processo de planejamento da cidade, inclusive com uma maior participao formal atravs
de Conselhos, por exemplo tanto do prprio mercado como da populao interessada.
Princpios jurdico- urbansticos como o as of right o direito de pagar protocolarmente
pela criao de solo vertical adicional, alm do estabelecido pelo zoneamento convencional,
at o limite determinado pela legislao consolidaram-se como elementos integrantes da
prpria legislao, tendo em vista a necessidade de recursos adicionais para suprir o aumento
da demanda, conseqncia direta do adensamento. Nos EUA, obviamente auxiliou muito no
processo a longa tradio liberal do Estado norte-americano, onde os limites institucionais
entre o pblico e o privado so muito mais tnues do que nos Estados europeus tradicionais.
Entretanto, a reconhecida liberdade do capital em promover a lucratividade a partir do
investimento coletivo tambm se rendeu necessidade de compartilhar parte da lucratividade
auferida com o poder pblico, para promover o desenvolvimento local e a melhoria da
qualidade de vida. Tambm acompanharam essas iniciativas o aumento do crdito na
aquisio de imveis que de certa maneira substitui a ao do Estado na produo de
moradias, liberando recursos para iniciativas e obras urbanas que funcionassem como plos
atratores de novos negcios.
Na Europa, bero do urbanismo moderno, de maneira um pouco diferente dos EUA,
graas diversificao de seu territrio, esses processos ocorreram simultaneamente: a
descentralizao industrial, a urbanizao dispersa com a criao de regies suburbanas e o
abandono de algumas das mais antigas regies centrais das cidades:
Gottidiener separa claramente as caractersticas do processo europeu, mais recente, contrastando-o
com o norte americano, que faz remontar aos anos 40, 50 e 60. Naquela poca, segundo esse autor,
investimentos estatais de grande porte, inclusive de carter militar, distribudos de modo desigual no
territrio, estimularam a formao de programas habitacionais destinados s faixas de renda mdia e
alta, ao redor das metrpoles americanas. A essa expanso seguiram-se a descentralizao dos
servios, em busca dos consumidores de maior renda (1985) e depois a descentralizao industrial e de
escritrios. Os programas oficiais visariam estimular o desenvolvimento industrial dos estados do oeste
e do sul, mas suas prticas introduziram ao mesmo tempo a urbanizao dispersa. (REIS, 2006)
Na Europa, especialmente diante do processo de unificao, a disputa entre cidades
tornou condio essencial do desenvolvimento a implementao de projetos de revitalizao.
Praticamente todos os centros tradicionais da Europa central, e mesmo das regies mais
21
perifricas ingressaram na era das parcerias pblico-privadas, tendo em vista a consolidao
de grandes projetos, vrios deles extremamente bem-sucedidos, como o caso das cidades de
Barcelona e Bilbao na Espanha. Tambm Paris com La Defense, entre outros, procurou
tornar-se ainda mais atrativa aos novos investimentos do capital turstico, financeiro e
tecnolgico. Amsterd e Roterd, na Holanda tambm revitalizaram suas regies porturias.
Berlin moderniza todo o seu centro tradicional, processo ainda em andamento. No final da
dcada de 90, at mesmo na conservadora Lisboa, em Portugal, grandes operaes
fomentadas a partir de inverses expressivas da Unio Europia (calcula-se que durante dois
anos, chegou-se a investir um milho de euros por dia em obras urbanas), mudaram o aspecto
urbano da orla, em empreendimentos como o Parque das Naes, o terminal ferrovirio, a
ponte Vasco da Gama, permitindo seu ingresso na competitiva disputa por um lugar ao sol
na globalizao.
A questo central para que este tipo de operao se realize o ingresso do poder
pblico na operao, em especial, com a regulao, o gerenciamento e, principalmente, com a
predisposio implantao de infra-estrutura e/ou cesso de parte das terras pblicas para a
implantao do projeto. No Brasil, vrios problemas emperravam (alguns persistem at hoje)
a implantao de projetos de parceria pblico-privada, entre eles:
a) At o advento do Estatuto da Cidade, no havia legislao especfica, que
permitisse ao Poder Pblico ou ao capital privado, promover esse tipo de parceria.
b) Na maior parte dos grandes centros urbanos inexistem reas disponveis, pois a
tradio patrimonialista-cartorial da cultura administrativa de origem lusa privatiza os espaos
disponveis no resguardados por lei.
c) Alm da no-existncia da cultura da revitalizao, o maior obstculo a uma
participao efetiva dos investidores a profunda desconfiana da iniciativa privada em
relao a qualquer processo de gesto pblica. Tendo em vista, entretanto, a necessidade
como j visto anteriormente, de promover o desenvolvimento local, a legislao tem evoludo
historicamente, muitas vezes a partir de iniciativas isoladas de prefeituras especficas, e vai
culminar com a Lei das Parcerias Pblico-Privadas - PPPs (LEI N 11.079, DE 2004) para a
implantao de infra-estrutura bsica, e com o instituto das Operaes Urbanas Consorciadas
(Arts. 32 a 34 da Lei N 10.257 de 2001), para a revitalizao urbana.
22
7. Brasil: desenvolvimento do conceito e implementabilidade
O Estado Brasileiro sofre por uma carncia crnica de recursos. Assim, com a
globalizao que criou a competio entre cidades e regies, os municpios viram-se premidos
a captar recursos de outras fontes que no as formas arrecadatrias convencionais. Voltaram-
se ento para o mercado privado, em busca da recuperao de parte das mais-valias
incorporadas ao capital imobilirio, uma vez que a ao pblica, no desenvolvimento urbano,
pauta-se via de regra por obras estruturantes, que se por um lado elevam a qualidade
territorial, por outro, valorizam o patrimnio dos proprietrios locais.
No final da dcada de 80, quando se iniciava mundialmente este processo, antes da
promulgao do Estatuto da Cidade, os municpios recorreram a todos os instrumentos legais
disponveis para promover projetos especiais, em reas especficas da cidade. Estes
instrumentos, ainda bastante engessados pelo zoneamento urbano formal da dcada de 70,
trataram inicialmente de viabilizar programas sociais como urbanizao de favelas,
regularizao de reas ocupadas, loteamentos irregulares, construo de moradias populares
etc. A legislao utilizada foi primordialmente a Lei 6766/79, que permitia a urbanizao
especial de reas especficas da cidade a critrio do poder pblico, para implantao de
programas. No foi fcil vencer a resistncia burocrtica dos planejadores tradicionais. Na
maior parte dos municpios as reas de favela ou de ocupao sequer apareciam na planta da
cidade, pois no eram parte da cidade formal. Mas, graas a esse princpio legal, criaram-se
pela primeira vez no pas, no final dos anos 80, (salvo engano, o pioneirismo cabe ao
municpio de Jaboato, na regio Metropolitana do Recife), as Zonas de Especial Interesse
Social, reas da cidade destinadas a urbanizaes especiais, voltadas para o desenvolvimento
social.
No rastro dessas iniciativas, alguns municpios de tendncia progressista,
interessados em inserir a cidade nos novos processos competitivos, criaram dentro das
competncias municipais legislaes que permitiam a flexibilizao (termo posteriormente
duramente criticado por alguns setores) das normas edilcias e de uso e ocupao do solo,
visando atravs deste expediente capturar renda para a promoo do desenvolvimento
territorial e a atrao de investimentos.
O Plano Diretor da Cidade de So Paulo de 1988, atravs da Lei 10.676/88, j previa
instrumentos como as Operaes Urbanas Consorciadas como exceo ao rigor do
23
Zoneamento no uso e ocupao do solo em regies adensveis, incentivo aos
empreendimentos privados que assumem investimentos para o melhoramento da infra-
estrutura urbana ou para a eliminao das causas da desqualificao ambiental. (SAVELLI,
2003)
Durante o governo Jnio Quadros, implementou-se no Municpio de So Paulo a
primeira lei que permitia formalmente a captura de parte do lucro imobilirio dos
empreendimentos de porte, atravs da instituio das Operaes Interligadas (Lei 10.209/86),
dando inicio a uma produo legislativa disseminada pelas grandes capitais do pas, que j
previam instrumentos posteriormente incorporados pelo Estatuto da Cidade, como o solo
criado, a outorga onerosa etc.
Muitos municpios, a partir da legislao local, de competncia exclusiva ou
concorrente, assim como o proposto em So Paulo j no governo de Luiza Erundina
(1990/93) foi implementada a operao urbana do Vale do Anhangaba (Lei 11.090/91)
conseguiram desenvolver grandes projetos urbansticos em parceria com a iniciativa privada,
e auferir considervel captura de renda para o tesouro local, reinvestidos via de regra em
melhorias urbansticas e requalificao urbana.
Aps a promulgao do Estatuto da Cidade, e a partir da aprovao dos Planos
Diretores dos municpios, o instrumento disseminou-se e realizaram-se, com mais ou menos
sucesso, operaes urbanas consorciadas em Belo Horizonte, Natal, Recife, Rio de Janeiro,
entre outros.
Apenas no municpio de So Paulo, em trs das operaes urbanas: Faria Lima, gua
Branca e Urbana Centro, o municpio auferiu uma renda mais do que expressiva, mesmo para
um oramento do porte dessa capital seja em recursos pagos pelos empreendedores, seja pela
emisso de CEPACS ou benefcios urbansticos.
8. Concluso
O instrumento das operaes urbanas consorciadas, previsto no Estatuto da Cidade,
propiciou ao ordenamento jurdico de carter urbanstico uma importante evoluo na captura
de recursos para o desenvolvimento urbano, bem como introduziu, de maneira formal, o
24
conceito de associao e cooperao entre o Estado e a sociedade em especial em trs
aspectos a destacar:
a) Sob o ponto de vista do mercado imobilirio, a Operao Urbana Consorciada cria
condies normativas para que se promova a parceria pblico- privada na requalificao do
espao urbano, garantindo a participao ordenada e regulada dos agentes, combatendo a
especulao imobiliria, e estimulando a participao social do capital privado nos
investimentos, sob a tutela da Poder Pblico e com a fiscalizao da sociedade.
b) Ao exigir a ampla publicidade e garantir a efetiva participao da comunidade local
e das foras vivas da cidade na tomada de decises, planejamento e gesto dos grandes
projetos de requalificao, democratiza o espao urbano, e garante a transparncia das aes
pblicas e privadas.
c) Possibilita ao gestor pblico, inserir a questo urbana nos grandes debates sob os
vetores de desenvolvimento local contemporneo.
O instituto das Operaes Urbanas Consorciadas, entretanto, deve ser resguardado,
fiscalizado e acautelado para que cumpra seus objetivos precpuos, e concretize sem
distores os preceitos para os quais foi criado. Para isso a sociedade e em especial o mundo
jurdico, deve acautelar-se na fiscalizao da aplicabilidade do instrumento, profilaticamente
evitando que seja utilizado para funes pouco nobres e avessas ao interesse coletivo, como
nos alerta em artigo o douto Ministrio Pblico do estado de Santa Catarina:
V-se, portanto, que a operao urbana consorciada medida de utilizao restrita e acautelada, no
como pensam alguns, destinada a regularizar toda e qualquer obra indiscriminadamente.
Importante frisar que a operao contar com forma de controle, obrigatoriamente compartilhado com
representao da sociedade civil, o que d respaldo democrtico importante medida.
Assim, a consecuo das operaes ser de perto fiscalizada no s pela administrao, mas tambm
pela sociedade civil o que, certamente, inibir qualquer desvio de finalidade.
Registre-se, ainda, que o Estatuto ao disciplinar os requisitos que devem conter o plano da operao
urbana consorciada o fez de forma meramente enumerativa, abrindo-se oportunidade ao Poder Pblico
Municipal exigir ainda outros requisitos como, por exemplo, estudo de impacto ambiental para
acautelar a medida, quando se mexer com a questo ambiental.
O beneficiado com a regularizao de seu imvel prestar contrapartida em dinheiro que ser utilizada
exclusivamente na consecuo da operao urbana consorciada ( 1 do art. 33) e seu controle
obrigatoriamente compartilhado com representao da sociedade civil.
25
Assim, abre-se oportunidade de sua aplicao em outra atividade da operao que necessite da quantia
para sua implementao.
Por exemplo, proprietrios de casas (de classe mdia/alta) construdas em rea de preservao
permanente (topo de morro - art. 2, "d", do Cdigo Florestal, Lei 4771/65). No havendo mais outra
alternativa a ser tomada - j que no h mais vegetao naquela rea a ser preservada, estando as
casas construdas h anos - elaborado estudo de impacto de vizinhana e de impacto ambiental
(recomendvel no caso em tela), e sendo estes favorveis, os proprietrios interessados na
regularizao de suas propriedades que contrariam a legislao ambiental podero prestar
contrapartida em dinheiro ao poder pblico municipal que a utilizar em favor da populao de baixa
renda, no saneamento bsico, no tratamento de lixo, ou quando em rea de risco, na transferncia
dessas famlias.
Outra questo que merece ateno questo do termo "legislao vigente" previsto no inciso II do
pargrafo 2 do art. 32. Com certeza, o Estatuto da Cidade quis englobar nesta definio toda a
legislao vigente no Pas - o Cdigo Florestal, a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, etc. - no
havendo como se aceitar a interpretao dada por alguns de que o termo se refere exclusivamente
legislao municipal, por que se assim quisesse, o legislador teria feito a ressalva.
No cabe, pois, ao intrprete reduzir o alcance da Lei, sob pena de ilegalidade.
O Estatuto da Cidade possui fora de Lei nacional, segundo se infere do mandamento constitucional
previsto no art. 182 da CRFB/88 e ainda do preceituado nos arts. 21, XX, 24, incisos VI, VII e VIII, e
1 da CRFB c/c art. 3 da Lei n. 10.257/2001. lei especfica e posterior s demais leis ordinrias que
deve prevalecer existindo conflito aparente de normas (antinomia jurdica). Entretanto, este no o
caso.
que na hiptese vertente no preciso sequer se utilizar dos critrios de soluo de antinomias
jurdicas, porquanto aplica-se no caso concreto to somente as disposies especficas da lei
(possibilidade de regularizao de obras em desacordo com a legislao), permanecendo em vigor a
legislao proibitiva, segundo a inteligncia do 2 do art. 2 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil
(Decreto-Lei 4.657/42) que dispe:
2. A lei nova, que estabelea disposies gerais ou especiais a par das j existentes, no revoga nem
modifica a anterior.
Ou seja, no h norma ilegal, uma no suplanta a outra. Ambas as legislaes so aplicadas, tanto as
proibitivas quanto o Estatuto.
que a faculdade prevista no Estatuto no sentido da regularizao das obras ilegais no retira a carga
de eficcia dos mandamentos proibitivos previstos por lei. Tais condutas continuam sendo irregulares
ou ilegais. O Estatuto prev somente uma alternativa prevista quelas propriedades que, se encaixando
nos requisitos do art. 33, podem ser regularizadas mediante contraprestao a ser conferida
administrao.
V-se, portanto, que a possibilidade criada pelo Estatuto da Cidade de regularizao de construes,
reformas ou ampliaes em desacordo com a legislao vigente, instrumento de grande valia na
ordenao do pleno desenvolvimento das funes sociais da cidade e da propriedade urbana. Pode ser
considerado como poltica pblica de interesse social, que alcana todas as camadas sociais da
populao e as mobiliza no sentido da conscientizao ambiental.
Prev o Estatuto que a partir da aprovao da lei especfica de que trata o caput, do art. 33 so nulas
as licenas e autorizaes a cargo do Poder Pblico municipal expedidas em desacordo com o plano
de operao urbana consorciada.
Esta providncia se justifica porquanto a partir da aprovao da operao, determinadas reas da
cidade sero submetidas a novas regras. Desse modo, impe-se que licenas e autorizaes estejam de
acordo com o novo disciplinamento e no com o anteriormente disposto no plano diretor, sob pena de
inviabilizao da operao. (FIGUEIREDO E SILVA, s/d)
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I.2. O PLANO DENTRO DO PLANO: CONSIDERAES ACERCA DAS
OPERAES URBANAS CONSORCIADAS
Fernando Guilherme Bruno Filho
A anlise encetada acima, em especial em sua segunda metade, nos d um bom
panorama das iniciativas que se espalharam, a partir dos pases centrais (dcadas de 70 e 80),
visando estabelecer formas de articular esforos comuns entre os setores pblico e privado
(leia-se, num primeiro momento, o setor econmico) visando intervir nos processos de
urbanificao, revitalizando ou potencializando o uso de reas especficas dentro da malha
urbana. Com efeito, anlises empricas acerca de uma ou algumas experincias genericamente
tratadas como operaes urbanas elevaram tal instrumento a um dos de maior interesse da
parte de urbanistas e gestores pblicos, chegando mesmo a acaloradas discusses sobre sua
natureza, como positivas ou negativas ao desenvolvimento de uma poltica urbana
sustentvel e inclusiva, em especial nas grandes metrpoles.
Tais debates j se davam antes mesmo do Estatuto da Cidade, dado que a figura da
operao urbana constava, mesmo timidamente, das agendas do movimento pela reforma
urbana desde os anos 80 e, antes mesmo dos planos diretores da dcada seguinte, uma
primeira tentativa concreta de viabilizao aconteceu no Municpio de So Paulo (Lei
10.209/86, depois incorporada ao Plano Diretor de 1988- Lei 10.676), na forma de operao
interligadai, onde simplesmente se permitia o uso de coeficientes de aproveitamento
superiores ao admissvel para uma dada regio, desde que houvesse a oferta de contrapartida
equivalente, na forma de habitao de interesse social (VAN WILDERODE, 1994).
No entanto, o que mais salta aos olhos que, tanto as (escassas) modelagens
construdas para o instrumento, quanto as discusses acerca de sua aplicao, privilegiam
enormemente o carter financeiro, qual seja, a alavancagem de recursos, em especial para o
provimento de infra-estrutura. No entanto, o que tentaremos demonstrar adiante, a construo
realizada pelo estatuto da cidade apresenta outras oportunidades, dentre elas, especialmente, a
de aperfeioamento da gesto da poltica urbana.
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1) O conceito de operao urbana consorciada no Estatuto da Cidade.
A Lei 10.267/01 (Estatuto da Cidade) apartou, de um lado, tanto a outorga onerosa do
direito de construir e da mudana de uso (artigo 28 a 30) e bem assim a transferncia do
direito de construir (artigo 35), institutos mais prximos das operaes interligadas, de um
outro, mais rico e complexo, por ele denominado operao urbana consorciada:
Art. 32. Lei municipal especfica, baseada no plano diretor, poder delimitar rea para aplicao de
operaes consorciadas.
1 Considera-se operao urbana consorciada o conjunto de intervenes e medidas coordenadas
pelo Poder Pblico municipal, com a participao dos proprietrios, moradores, usurios permanentes
e investidores privados, com o objetivo de alcanar em uma rea transformaes urbansticas
estruturais, melhorias sociais e a valorizao ambiental.
2 Podero ser previstas nas operaes urbanas consorciadas, entre outras medidas:
I - a modificao de ndices e caractersticas de parcelamento, uso e ocupao do solo e subsolo, bem
como alteraes das normas edilcias, considerado o impacto ambiental delas decorrente;
II - a regularizao de construes, reformas ou ampliaes executadas em desacordo com a legislao
vigente.
Como se denota, o Estatuto no aponta para nenhuma caracterstica especfica da rea
urbana em relao qual a operao urbana consorciada seja mais apropriada, ou
vocacionada. Mas deixa claro que h um ponto de partida, que pode mesmo ser uma
irregularidade disseminada, muitas vezes produto de gesto ineficaz ao longo dos anos, dado
o relevo do inciso II, e um ponto de chegada, sendo o percurso entre ambos traado por
transformaes urbansticas estruturais, profundas e necessrias.
Da mesma forma, no h como privilegiar uma certa categoria de partcipe; dos
proprietrios aos usurios permanentes (quem eventualmente pela rea circula, ou dela usufrui
sob qualquer aspecto), quem quer que interaja com tal (ais) permetro(s), est, a priori,
habilitado a participar do processo de deciso e implementao acerca das tais
transformaes estruturais, aliceradas num plano especfico, como fica claro no artigo
seguinte:
Art. 33. Da lei especfica que aprovar a operao urbana consorciada constar o plano de operao
urbana consorciada, contendo, no mnimo:
I - definio da rea a ser atingida;
II - programa bsico de ocupao da rea;
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III - programa de atendimento econmico e social para a populao diretamente afetada pela
operao;
IV - finalidades da operao;
V - estudo prvio de impacto de vizinhana;
VI - contrapartida a ser exigida dos proprietrios, usurios permanentes e investidores privados em
funo da utilizao dos benefcios previstos nos incisos I e II do 2 do art. 32 desta Lei;
VII - forma de controle da operao, obrigatoriamente compartilhado com representao da sociedade
civil.
1 Os recursos obtidos pelo Poder Pblico municipal na forma do inciso VI deste artigo sero
aplicados exclusivamente na prpria operao urbana consorciada.
2 A partir da aprovao da lei especfica de que trata o caput, so nulas as licenas e autorizaes a
cargo do Poder Pblico municipal expedidas em desacordo com o plano de operao urbana
consorciada.
Note-se que mesmo a exigncia de contrapartida no est vinculada a uma expresso
monetria, podendo at se caracterizar como condutas de fazer (obrigao) ou no-fazer
(absteno) de parte dos partcipes ou atingidos pelo plano da operao. E, o que se nos
afigura ainda mais importante, h a exigncia deste plano, cujas caractersticas tentaremos
delinear mais adiante.
Por fim, mesmo que no esteja vedada a outorga onerosa do direito de construir,
apenas se lhe exigindo que os recursos sejam aplicados no(s) prprio(s) permetro(s), o artigo
34 qualifica ainda mais as formas de financiamento da operao urbana, atravs dos
chamados CEPACs (certificados de potencial adicional de construo):
Art. 34. A lei especfica que aprovar a operao urbana consorciada poder prever a emisso pelo
Municpio de quantidade determinada de certificados de potencial adicional de construo, que sero
alienados em leilo ou utilizados diretamente no pagamento das obras necessrias prpria operao.
1 Os certificados de potencial adicional de construo sero livremente negociados, mas
conversveis em direito de construir unicamente na rea objeto da operao.
2 Apresentado pedido de licena para construir, o certificado de potencial adicional ser utilizado
no pagamento da rea de construo que supere os padres estabelecidos pela legislao de uso e
ocupao do solo, at o limite fixado pela lei especfica que aprovar a operao urbana consorciada.
Observe-se que a quantidade determinada de CEPACs claramente uma
facilitadora do planejamento e gesto da operao, haja vista que, de antemo, se estipula o
mximo de volumetria que ser possvel abrigar naquele(s) espao(s), permitindo, portanto
um dimensionamento adequado das intervenes e, eventualmente, se lhes estipulado um
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prazo de validade, at mesmo do horizonte de tempo necessrio para finalizar a operao
urbana.
A partir destes comentrios iniciais, apontaremos os aspectos que consideramos mais
relevantes a serem explorados pelos municpios quando da aplicao do instrumento (que
denominaremos doravante de OUC) o qual, alis, tem sido previsto na maioria dos Planos
Diretores elaborados aps o estatuto da Cidadeii.
2) OUCs na sistemtica do Estatuto da Cidade.
Como todo instrumento a ser apropriado pela poltica urbana, dentre aqueles regulados
pelo estatuto ou no, a OUC deriva e guarda estreita relao com as diretrizes gerais
estampadas no artigo 2, nas quais preferimos enxergar verdadeiramente os princpios de
direito urbanstico. Em especial, o inciso III, o qual estabelece a cooperao entre os
governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanizao,
em atendimento ao interesse social.
Por outro lado, fica evidente o dilogo estreito que a OUC deve ter com o Plano
Diretor (PD). Com efeito, e conforme estatudo pelo artigo 42, inciso II, do Estatuto da
Cidade, caber ao PD estipular a possibilidade de adoo da OUC, determinando, dentro do
quadro de possibilidades dadas pelo artigo 32, quais sero os objetivos da(s) operaes e,
eventualmente, avanando mesmo no sentido de detalhar os critrios para sua implementao,
para quais pores do territrio ou sob quais condies.
No entanto, o PD no poder (i) alterar o conceito estipulado pelo 1 do artigo 32,
haja vista que ele deriva e d concretude ao citado inciso III do artigo 2, alm de outros
princpios que, conjugados s permitiriam alargar, e nunca restringir o alcance do instrumento
(ii) substituir a lei especfica referida no caput, visto que a ela cabe o papel, com
exclusividade, de estabelecer as condies peculiares desta interveno. Em outras palavras, e
ao analisarmos de forma sistemtica a expresso lei especfica no ordenamento jurdico
nacional, fica patente que tal sempre ocorre quando ela deva ser objeto de processo legislativo
especfico, bem como tratar de uma nica matriaiii
, face relevncia ou complexidade, ainda
que aparentada ou derivada de outra.
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Como j comentado anteriormente, a OUC poder apontar para duas (dentre outras)
possibilidades: a alterao das regras de uso, ocupao, edificao e parcelamento do solo,
mas tambm para a regularizao, quando tais regras no foram observadas (artigo 32, 2).
E, seqencialmente, no inciso VI do artigo 33, exige contrapartida dos beneficirios de tal
flexibilizao ou regularizao. Ora, no h nenhuma referncia ao fato de que tais
contrapartidas devam ser financeiras; no entanto, se o forem (ou mesmo se puderem ser
traduzidas economicamente, como, por exemplo, no investimento privado, na gerao de
novos postos de trabalho, etc.) tal deve se dar no(s) permetro(s) da prpria OUC. Como se
depreende, tais contrapartidas vo muito alm da outorga onerosa do direito de construir e da
alterao de uso, pelo menos no sentido com que tais institutos so regulados pelo estatuto da
Cidade; ainda que no descartadas, a primeira tornaria mais difcil ou complexa a
implementao dos CEPACs, o que comentaremos adiante.
Evidentemente, no se est a defender que tal contrapartida, quando as alteraes ou
regularizaes implicarem, num caso, ou j apontarem, em outro, para qualquer impacto na
infra-estrutura, no deva ser prestada. Muito ao contrrio. Apenas se est a argumentar que as
OUC podem ir alm de um simples encadeamento de obras ou servios pblicos.
Por fim, o artigo 33 exige, do plano da OUC, dentre outros, um Estudo de Impacto de
Vizinhana (EIV), instrumento regulado pelos artigos 36 a 38 do prprio estatuto. No fica
claro, primeira vista, se (i) o EIV ser parte integrante do plano, como elemento de
diagnstico acerca das conseqncias que adviro da OUC s regies lindeiras ou mesmo
daquelas abrangidas pela operao, ou ainda (ii) o plano dever exigir que se realize o EIV
sempre quando da implementao das j citadas transformaes urbansticas estruturais
(obras pblicas ou privadas, mudanas ou regularizao de uso, etc.).
Inclinamo-nos pela primeira hiptese, pois, caso contrrio, teria o Estatuto estipulado
uma ligao direta com o artigo 36 o qual, ademais, no faz qualquer referncia
obrigatoriedade de EIV nas intervenes decorrentes do plano da OUC. Isso no quer dizer,
evidentemente, que os dois instrumentos no possam ser conjugados, caso a legislao
municipal assim o estipule; alm disso, o EIV que precede a implementao da OUC deve
obedincia aos mesmos ditames do artigo 36, pois no se trata de um instrumento distinto ou
especfico para a OUC.
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3) Intervenes especiais: afronta isonomia?
Em especial junto aos urbanistas e socilogos urbanos, sempre foi viva a polmica
acerca do potencial excludente que intervenes pontuais no territrio, ainda mais quando
realizados com viva participao do capital privado. Evidentemente, este s adere a um
programa que lhe possibilite o exerccio de seu mister, qual seja, o de obter lucro, agregando
valor e transacionando esse plus.
Neste sentido, tambm entendemos como feliz a construo dada pelo estatuto OUC,
quando permite a incorporao de todos os segmentos, econmicos, polticos e sociais,
interessados ou atingidos, na elaborao e acompanhamento da OUC. No obstante, voltando
ao artigo 2 e aos princpios de direito urbanstico (incisos I, IX e X) percebemos que uma
OUC que redunde em segregao e expulso ser claramente ilegal, talvez no em suas
premissas, mas claramente em seus efeitos.
Mas a questo que se coloca se de outra ordem: a OUC seria um privilgio, na
medida em que estabelece regras diversas, eventualmente mais vantajosos, afrontando,
portanto o princpio da justa distribuio dos nus e benefcios decorrentes do processo de
urbanizao? Ela poderia caracterizar uma valorizao excessiva, induzida por decises
polticas margem da funo social da cidade?
A fim de responder tal questo, fundamental um outro questionamento: quais as
reas podem e devem sofrer a interveno de uma OUC, sem ferir os princpios relacionados
acima?
Com efeito, h de ser um permetro cuja transformao urbanstica estrutural
repercuta em benefcios para toda cidade, sob qualquer aspecto, seja econmico (com a
ampliao de possibilidades comerciais ou de prestao de servios), social (ajudando a
eliminar focos de pobreza ou criminalidade), cultural (preservando o patrimnio paisagstico
ou histrico) e mesmo urbanstico stricto sensu (facilitando a circulao viria, ou adensando
uma regio com oferta de infra-estrutura), como j desenvolvemos em outro estudo (BRUNO
F e PINHO, 2002: 219-229).
Ao contrrio das BIAs, experincias dos EUA e Canad apontadas no estudo anterior,
as OUC no permitem a reverso dos tributos arrecadados no(s) permetro(s) para obras ou
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inverses financeiras nele(s) prprio(s), sob pena de afronta isonomia tributria, salvo,
evidentemente, a contribuio de melhoria, dada sua tipificao e quando observado o critrio
de valorizao decorrente da obra pblica. No obstante, e como decorrncia deste princpio,
a prpria Constituio Federal veda, em seu artigo 167, inciso III, a vinculao da receita de
impostos a rgo, fundo ou despesa, com as ressalvas estipuladas por ela prpria (sade,
educao, etc.)
Restam portanto, os preos pblicos, dos quais o mais relevante aquele decorrente
dos CEPACs, que comentaremos a seguir.
4) Financiamento das OUCs
Como comentamos acima, ainda que no vedada, a outorga onerosa, como regrada
pelo Estatuto da Cidade, no se afigura como o melhor instrumento de contrapartida
financeira, dado que s franqueada quando do interesse manifesto pelo beneficirio. Ademais
(o que no comentamos e mereceria um estudo especfico) a outorga se presta a uma nica
situao, qual seja, a da utilizao de coeficientes de aproveitamento mais elevados ou adoo
de usos no admissveis. Ora, as irregularidades que poderiam ser sanadas mediante a OUC
podem ir alm disso (recuos, gabaritos, uso de fachadas, ocupao de reas pblicas, etc.).
Note-se que o artigo 32, 2, inciso II, trata da modificao de ndices e caractersticas de
parcelamento, uso e ocupao do solo, ao passo que a outorga onerosa se volta
exclusivamente ampliao do coeficiente de aproveitamento ou adoo de usos diversos
do previsto na legislao ordinria.
Por outro lado, no se vislumbram impedimentos adoo de outras fontes de
financiamento (contribuies voluntrias, multas, etc.), alm dos prprios recursos
oramentrios, quando patente o interesse social em tais inverses.
No entanto, o recurso financeiro por excelncia so os CEPACs (certificados de
potencial adicional de construo).
Os CEPACs constituem, de fato um tertius genus, como outros figuras trazidas
lume pelo Estatuto da Cidade. Representam ttulos de crdito pblicos ao portador; portanto
sua emisso e alienao deve obedecer s regras do direito financeiro, ainda que no
contabilizados dvida pblica. Mas, da mesma forma que estes, significam uma antecipao
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de receita; no obstante, a despesa a ser enfrentada (implementao de obras de infra-estrutura
no permetro da OUC) j so tambm definidas. Sua alienao deve se dar em oferta pblica
(leilo); porm, e suas caractersticas os tipificam como ttulos de valores mobilirios, estando
sujeitos ao registro e regulamentao por parte da Comisso de valores Mobilirios, rgo
do Ministrio da Fazenda (AFONSO, 2007). No nos alongaremos neste tpico, mas tal
regulamentao, a nosso ver, s agrega ainda maior transparncia e segurana jurdica s
transaes com CEPACs .
Por cautela, h de haver uma modulao correta na emisso de CEPACs, sob pena de
se substituir a especulao imobiliria (repudiada pelo artigo 2 do Estatuto da Cidade, em
especial nos incisos VI, e e XI, dentre outros dispositivos) pela especulao financeira. Em
cada caso, possvel realizar as ofertas pblicas em fraes, eventualmente medida em que
a infra-estrutura se desenvolve, ou at mesmo estipular um prazo mximo de resgate de tais
ttulos, na forma de exerccio do direito de construir.
Mas, queremos crer, tanto quanto instrumento de financiamento, os CEPACs
constituem excelente ferramenta ao planejamento e gesto, como desenvolveremos a seguir.
5) Planejamento e gesto
Com o perfil que lhe foi dado pelo Estatuto da Cidade, o fenmeno operao urbana
(acrescido, de maneira apropriada, do qualificativo consorciada) se autonomiza, e ganha
contornos de instrumento voltando implementao daquilo que SILVA (2008: 133)
denomina de planos urbansticos especiais, ou seja, voltados renovao urbana ou
implantao de formas diferenciadas de ocupao.
Mais do que isso, oferece uma oportunidade mpar superao da defasagem
que, de regra, acontece entre o planejamento urbano e a gesto urbana, de regra gerada
pela falta de capacidade da administrativa pblica para fazer a implementao da segunda
conforme os ditames do primeiro. Indo alm, constitui um espao privilegiado para o que se
pode considerar a escala microlocal (SOUZA, 2003: 108) do planejamento e da gesto, no
obstante mais eficaz, mas tambm cenrio pedaggico da participao cidad na discusso e
implementao de solues ao quotidiano.
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O Plano da OUC deve ser parte integrante da lei especfica que aprovar sua
implementao, lembrando que o artigo 33 estabelece seu contedo mnimo. No entanto, nada
impede que seu contedo se amplie, ora adotando outros instrumentos, como o direito de
preempo, fundo(s) especficos voltados ao aporte de recursos ou aos dispndios no mbito
da OUC. Ademais, dada sua caracterstica de plano urbanstico, alguns outros elementos nos
parecem obrigatrios, por fora de dispositivos esparsos do prprio estatuto da Cidade e da
legislao correlata.
Dentre eles, destacamos a necessidade de um diagnstico seguro da situao que
enseja a adoo do instrumento. Ainda que no integre o corpo da lei especfica, o processo
(administrativo e mesmo legislativo) que lhe antecede se caracteriza como ato administrativo.
Como tal, constitui dele parte integrante a fundamentao, de fato e de direito, como
imperativo verificao da legalidade, da convenincia e da oportunidade do ato (DI
PIETRO, 2007:201). Tal fundamentao, no campo das normas urbansticas, se concretiza
como a anlise da situao que justifica a implantao de uma OUC, como forma mais eficaz
de alcanar os objetivos propugnados pelo Plano Diretor, num especfico contexto territorial,
social ou econmico.
Como j comentado, o volume de CEPACs (ou de rea que poder ser edificada
mediante o pagamento com tais ttulos) autorizados deve guardar relao lgica com tal
planejamento. Em outras palavras, este ser limitado ao total de rea construda que ser
admissvel para o permetro da operao, ainda que eventualmente a eles se somem os dficits
de coeficiente de aproveitamento permitidos pela legislao ordinria, mas no
implementados at um certo momento pelos proprietrios. Mesmo com tais nuan
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