Pensando o Direito Relatorio 2009

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  • Srie Pensando o Direito

    N 09/2009 verso integral

    Temas de Direito Urbanstico

    Convocao 01/2007

    Universidade So Judas Tadeu

    Faculdade de Direito Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo

    Coordenao Acadmica: Solange Gonalves Dias

    Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia (SAL)

    Esplanada dos Ministrios, Bloco T, Edifcio Sede 4 andar, sala 434 CEP: 70064-900 Braslia DF

    www.mj.gov.br/sal

    e-mail: [email protected]

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    CARTA DE APRESENTAO INSTITUCIONAL

    A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia (SAL) tem por objetivo

    institucional a preservao da ordem jurdica, dos direitos polticos e das garantias

    constitucionais. Anualmente so produzidos mais de 500 pareceres sobre os mais diversos

    temas jurdicos, que instruem a elaborao de novos textos normativos, a posio do governo

    no Congresso, bem como a sano ou veto presidencial.

    Em funo da abrangncia e complexidade dos temas analisados, a SAL formalizou,

    em maio de 2007, um acordo de colaborao tcnico-internacional (BRA/07/004) com o

    Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que resultou na estruturao

    do Projeto Pensando o Direito.

    Em princpio os objetivos do Projeto Pensando o Direito eram a qualificao tcnico-

    jurdica do trabalho desenvolvido pela SAL na anlise e elaborao de propostas legislativas e

    a aproximao e o fortalecimento do dilogo da Secretaria com a academia, mediante o

    estabelecimento de canais perenes de comunicao e colaborao mtua com inmeras

    instituies de ensino pblicas e privadas para a realizao de pesquisas em diversas reas

    temticas.

    Todavia, o que inicialmente representou um esforo institucional para qualificar o

    trabalho da Secretaria, acabou se tornando um instrumento de modificao da viso sobre o

    papel da academia no processo democrtico brasileiro.

    Tradicionalmente, a pesquisa jurdica no Brasil dedica-se ao estudo do direito positivo,

    declinando da anlise do processo legislativo. Os artigos, pesquisas e livros publicados na

    rea do direito costumam olhar para a lei como algo pronto, dado, desconsiderando o seu

    processo de formao. Essa cultura demonstra uma falta de reconhecimento do Parlamento

    como instncia legtima para o debate jurdico e transfere para o momento no qual a norma

    analisada pelo Judicirio todo o debate pblico sobre a formao legislativa.

    Desse modo, alm de promover a execuo de pesquisas nos mais variados temas, o

    principal papel hoje do Projeto Pensando o Direito incentivar a academia a olhar para o

    processo legislativo, consider-lo um objeto de estudo importante, de modo a produzir

    conhecimento que possa ser usado para influenciar as decises do Congresso, democratizando

    por conseqncia o debate feito no parlamento brasileiro.

    Este caderno integra o conjunto de publicaes da Srie Projeto Pensando o Direito e

    apresenta a verso na ntegra da pesquisa denominada Temas de Direito Urbanstico,

    conduzida pela Universidade So Judas Tadeu (USJT).

    Dessa forma, a SAL cumpre seu dever de compartilhar com a sociedade brasileira os

    resultados das pesquisas produzidas pelas instituies parceiras do Projeto Pensando o

    Direito.

    Pedro Vieira Abramovay

    Secretrio de Assuntos Legislativos do Ministrio da Justia

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    CARTA DE APRESENTAO DA PESQUISA

    A apresentao deste Relatrio constitui a etapa final de execuo do Projeto

    Pensando o Direito, desenvolvido por grupo de pesquisadores da Universidade So Judas

    Tadeu, tendo como escopo a anlise de temas compreendidos pelo direito urbanstico.

    Na primeira fase dos trabalhos produziram-se textos que expressavam reflexes

    iniciais do grupo de pesquisa acerca dos seguintes temas: 1) operaes urbanas consorciadas;

    2) funo social da propriedade imvel e combate aos vazios urbanos; 3) regularizao

    fundiria em zonas de especial interesse social; 4) direito de superfcie; e 5) estudo de

    impacto de vizinhana.

    No decorrer dos trabalhos, foram atendidas solicitaes especficas da Secretaria de

    Assuntos Legislativos referentes apreciao de propostas legislativas em tramitao no

    Congresso Nacional, em especial ao Projeto de Lei n 3.057, de 2000 (apensos: PL 5.894/01,

    PL 2.454/03, PL 20/07, PL 31/07, PL 846/07 e PL 1.092/07) que dispe sobre o parcelamento

    do solo para fins urbanos e sobre a regularizao fundiria sustentvel de reas urbanas e d

    outras providncias, tudo conforme previsto no edital de chamamento para a adeso ao

    Projeto.

    Em cumprimento das atividades previstas para a concluso dos trabalhos, os textos

    apresentados no Primeiro Relatrio foram revisados, ampliados e/ou complementados com

    novos estudos que sugerem perspectivas diferentes daquelas inicialmente propostas.

    Ainda, em atendimento solicitao da SAL, produziu-se um novo texto que aborda

    os novis instrumentos urbansticos previstos no Projeto de Lei 3.057/2000, quais sejam, a

    interveno, a demarcao urbanstica e a legitimao de posse. A autora, Profa. Cacilda

    Lopes dos Santos, passou a integrar o grupo de pesquisa dos professores da So Judas aps a

    sada do Prof. Jos Ronal Moura de Santa Inez, que recentemente deixou o quadro de

    docentes da USJT.

    Assim, apresentam-se cinco temas em artigos revisados e ampliados, alguns dos quais

    acompanhados de novos textos complementares, mais um trabalho indito tratando do assunto

    supra-referido.

    So Paulo, outubro de 2009.

    Solange Gonalves Dias

    Coordenadora

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    Universidade So Judas Tadeu

    Faculdade de Direito Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo

    Coordenao Acadmica: Solange Gonalves Dias

    SRIE PENSANDO O DIREITO

    TEMAS DE DIREITO URBANSTICO

    Profa. Dra. Cacilda Lopes dos Santos

    Prof. Ms. Camilo Onoda Luiz Caldas

    Prof. Ms. Fernando Guilherme Bruno Filho

    Prof. Ms. Irineu Bagnariolli Jnior

    Prof. Ms. Jos Ricardo Carrozzi

    Prof. Dr. Jos Ronal Moura de Santa Inez

    Prof. Ms. Paulo Srgio Miguez Urbano

    Prof. Ms. Silvio Luiz de Almeida

    Acadmico Florisvaldo Cavalcante de Almeida

    Acadmico Leonardo de Souza Moldero

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    I OPERAES URBANAS CONSORCIADAS

    I.1. AS OPERAES URBANAS CONSORCIADAS COMO INTRUMENTO

    INDUTOR DO DESENVOLVIMENTO URBANO ATRAVS DA PARCERIA

    PBLICO-PRIVADA: CONSIDERAES HISTRICO-JURDICAS

    Irineu Bagnariolli Junior

    1. Introduo

    Desde meados do Sculo 20, o mundo vem atravessando um crescente e contnuo

    processo de urbanizao. Com a intensificao da tecnologia agrcola, diminui

    consideravelmente a necessidade de mo-de-obra intensiva no campo, e o processo que teve

    incio com a Revoluo Industrial e o cercamento das terras comunais no sculo XVIII,

    acabou por promover a migrao de milhes de pessoas dos campos para as cidades,

    transformando-as assim no principal centro das aes humanas.

    No Brasil, como se sabe de sobejo, a partir da dcada de 50, o pas sofreu um processo

    acelerado de urbanizao, e nessa primeira dcada do sculo 21, atingimos uma mdia de

    cerca 73% de concentrao demogrfica urbana, segundo o IBGE (em nmeros aproximados,

    cerca de 138 milhes de pessoas na cidade, contra cerca de 32 milhes de pessoas no campo

    Censo 2000).

    O chamado milagre econmico da dcada de 70 trouxe um novo fenmeno. Com o

    fomento ao desenvolvimento da construo civil e a industrializao, milhares de migrantes

    deixaram as condies precrias das cidades nordestinas mudando-se para os grandes centros

    industriais do sudeste, agravando os problemas de moradia nas cidades e adensando as

    periferias desses centros com loteamentos ilegais e favelas. As grandes cidades tornaram-se

    ento principal motivo de preocupao do regime militar, uma vez que o agravamento das

    condies de vida, em especial locomoo moradia e saneamento, tornavam a populao de

    baixa renda, insatisfeitas com a gesto governamental at ento bastante popular, fazendo

    com que o Governo Federal trouxesse o assunto ordem do dia.

    A elite intelectual que subsidiou o aparato ideolgico-estratgico do regime militar,

    no era nem de longe obtusa. Cedo percebeu que as questes urbanas poderiam vir a ser

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    determinantes, para a manuteno de seu projeto poltico. Desta compreenso decorrem duas

    aes de grande importncia na formao urbana, que se estendem at nossos dias.

    De um lado so os prprios idelogos, estrategistas e administradores do regime que

    estimulam a discusso do tema urbano, inicialmente em frum partidrio, como forma de

    tentar dar respostas quele estado de coisas, e com isso trazendo baila, para alm de grupos

    restritos, questes ligadas ao desenvolvimento urbano, urbanismo, concentrao nas cidades,

    migrao, habitao e metropolitanismo, cujas formulaes h poca, nos parecem

    fundamentais para a compreenso da realidade contempornea, de vez que, muitos dos

    articuladores e avalizadores daquelas proposituras, continuam frente do aparelho de Estado,

    imprimindo seu ponto de vista atravs de aes administrativas. De outro, o Governo Federal

    toma medidas extremamente categricas, no sentido de criar normas de desenvolvimento

    urbano que padronizem, uniformizem, e controlem o crescimento catico das cidades e

    regies metropolitanas brasileiras.

    A criao do II PND, durante o governo Geisel, vai modificar de maneira radical as

    relaes entre o Estado Federal e a gesto urbana, reafirmando a disposio efetiva desta

    esfera de governo em centralizar as iniciativas tambm no campo de desenvolvimento e

    planejamento dos municpios, em especial das metrpoles, como alis j havia feito com um

    sem nmero de setores outros da administrao pblica.

    A idia do Estado centralizador, normatizador, absoluto, paternalista e controlador,

    permeia toda a administrao federal durante o regime militar, e esconde sob o aparente

    manto de modernidade estatizante, princpios historicamente consolidados e anacrnicos,

    como a preservao da ordem e segurana nacional, o clientelismo de Estado, e a tutela e

    curatela pblicas. Tudo aquilo que no se apresenta sob os ditames da norma estabelecida,

    ou foge aos rgidos padres cartesianos de paradigmas criados pelo liberal-conservadorismo

    nacional, anomia, devendo, portanto ser reconduzido, ainda que compulsoriamente, ao rumo

    preestabelecido pelos estrategistas governamentais.

    Concomitantemente, difunde-se no pas, consubstanciada nas posturas federais, e

    auxiliado por tcnicos, a tica de que o Planejamento Urbano antes de mais nada, elemento

    fundamental no controle da expanso das cidades, at ento entregues a sua prpria e catica

    sorte, e que deve ser organizado a partir dos bons princpios do urbanismo europeu e norte-

    americano, criando regras estticas Planos Diretores pr-elaborados, por exemplo

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    unicamente atravs dos quais, possvel propor um crescimento aceitvel e controlvel da

    malha urbana, ignorando os problemas e conflitos da cidade real. Planos urbansticos formais

    e criados a partir de concepes e modelos tcnico-profissionais tornam-se smbolos de

    probidade e capacidade administrativa, mesmo que, via de regra, tais planos, independente de

    suas qualidades profissionais, pouco tenham a dizer aos reais problemas e questes

    especficas dos municpios brasileiros.

    De forma prematura em relao aos acontecimentos que se desencadeariam mais

    frente, mas sem dvida premida por um razovel senso de oportunidade, a Fundao Milton

    Campos, brao intelectual da ARENA, ao detectar a queda do potencial eleitoral de seu

    partido nos grandes aglomerados, define a realizao de um simpsio sobre poltica urbana,

    denominado O homem e a Cidade, que reuniu em Braslia, no perodo de 25 a 28 de

    Novembro de 1975, algumas das mais proeminentes lideranas partidrias, personagens de

    expresso na histria recente do pas. A abertura contou com a participao pessoal do Gen.

    Ernesto Geisel, ento Presidente da Repblica, demonstrando claramente, que a direo

    partidria pretendia estimular e compungir os polticos, intelectuais e administradores

    pblicos da situao, a debater e propor solues para os problemas urbanos, antes que esta se

    transformasse numa bandeira claramente identificada com a ao oposicionista. Enquanto se

    tomava esta iniciativa, intelectuais e polticos de perfil no conservador j vinham se

    ocupando da questo.

    A leitura atenta e a anlise crtica de algumas destas intervenes nos parece muito

    interessante, para uma compreenso mais clara da realidade atual no que se refere a poltica

    institucional nos campos urbano e habitacional. A histria oficial, via de regra, apresenta

    exclusivamente a verso dos vencedores, portanto, no bojo da critica generalizada ao projeto

    estratgico dos governos militares, caracterizados por seu autoritarismo, conservadorismo,

    anacronismo e cegueira social que se inserem todas as proposituras apresentadas, relegando-

    as ao limbo do pensamento retrgrado.

    Deve-se lembrar, no entanto, que o projeto estratgico de governo, em curso, vem

    permeado da contribuio de uma parcela expressiva dos mesmos articuladores que poca se

    reuniam para discutir a sustentao ao regime de exceo, e que, portanto, tais proposituras

    influenciam de forma decisiva na atual configurao da poltica urbana e habitacional aonde

    ela exista. Alis, muitos dos debatedores, continuaram de forma efetiva frente do cenrio

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    poltico-institucional nacional, como o caso do Senador Marco Maciel, ento Presidente da

    Fundao Milton Campos.

    A exposio do Presidente da Repblica precedida por uma rpida exposio de

    Marco Maciel, na qual explicita as razes e objetivos do simpsio:

    No espao de uma gerao no mais do que isso o Brasil deixou de ser um pas essencialmente agrcola para se transformar numa sociedade preponderantemente urbana, pois de acordo, com

    projees estatsticas, estima-se que j em 1980 dois teros da populao estejam nas cidades, algumas

    das quais verdadeiras megalpoles...

    ... as migraes para as cidades tem como se sabe, multivariadas origens: sejam econmicas,

    consequncia da racionalizao da agricultura ou, contrariamente, pela continuidade de prticas

    rudimentares de manejo do solo, incapazes de sustentar comunidades rurais em nmeros

    acentuadamente maiores; sejam psicolgicas, vale dizer, pela atrao que as cidades exercem sobre

    diferentes camadas da populao...

    Ningum desconhece que o grande desafio do nosso desenvolvimento a que os governos da Revoluo tem respondido com determinao, realismo e criatividade consiste em realizar em alguns anos o que muitas naes construram ao longo de sculos. Ora se isso verdade com relao ao processo de

    desenvolvimento como um todo, tanto mais o , face ao problema urbano, porque, diversamente do que

    ocorreu em pases do ocidente, a populao brasileira est-se deslocando sem que a tecnologia tenha

    criado um excedente de alimento nos campos ou oportunidades de emprego nas cidades estas, recorde-se nem sempre providas de um mnimo de equipamentos sociais... (FUNDAO MILTON

    CAMPOS, 1979)

    E referindo-se funo social dos partidos Polticos e aos objetivos do simpsio:

    Todo esse trabalho vem certamente, em arrimo da prpria ao partidria, que no pode ser orientada

    apenas pelo intuitivo ou conduzida pelo empirismo, mas antes deve ajustar-se a uma estratgia prvia e

    racionalmente estabelecida... (FUNDAO MILTON CAMPOS, 1979)

    Em seguida, a exposio de Geisel clarifica as posies assumidas pelo Governo

    Federal frente questo:

    Em certo sentido, a expanso urbana, por excelncia, o grande tema do Brasil moderno, em nossa

    poca.

    Basta que se considere que tendo representado 31% da populao total em 1940 ou seja, h trs dcadas e meia, quando muitos de ns j ramos vivos a populao urbana , na altura de 1980, j ser cerca de 2/3 do total dos habitantes do Pas, correspondendo a quase 80 milhes de pessoas.

    A cidade passou a responder pelo grosso da populao nacional (85% do PIB) e constituiu a

    vanguarda do processo de industrializao e modernizao do Pas.

    Mais ainda, permitiu que vingasse a mentalidade reformista, predominante na classe mdia urbana e

    que sustenta o avano pacfico das leis trabalhistas, das leis sociais, das instituies econmicas,

    sociais e polticas.

    Por outro lado, tal processo de urbanizao, rpido e descontrolado, descontrolado talvez porque

    rpido demais, se caracterizou por um complexo de desequilbrios: desequilbrio entre o poderio

    econmico das cidades, principalmente no caso das reas metropolitanas, e sua infra-estrutura em

    particular, a social; desequilbrio, igualmente entre o ritmo acelerado do crescimento das metrpole,

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    de forma prematura talvez, de um lado e, de outro lado, a excessiva pulverizao de pequenas cidades,

    desprovidas de substncia econmica e do mnimo indispensvel de servios.... (FUNDAO

    MILTON CAMPOS, 1979)

    Fica claro pelos pronunciamentos que, a esta altura, j se tinha elaborado um razovel

    diagnstico da situao: o processo artificial de crescimento acelerado, patrocinado pelos

    governos ps-golpe, alicerado na criao do mercado interno, na produo de bens de

    consumo durveis, e no estmulo a construo civil, havia acentuado, mais cedo do que se

    imaginava o desequilbrio estrutural existente entre o campo e os ncleos urbanos, face

    ausncia de uma poltica de fixao do homem a suas regies de origem e criao de

    mecanismos de suporte a correo da atratibilidade que o emprego industrial, exercia sobre a

    massa rural depauperada. O xodo crescente e a migrao exacerbada foram omitidos

    inadvertidamente num erro ttico do plano de crescimento estratgico do regime militar,

    tratando-se, pois, com urgncia, da formulao de aes especficas que viessem a corrigir a

    omisso.

    No transcorrer das avaliaes, em nenhum momento se aventa a possibilidade da

    existncia de falhas estruturais do prprio plano, enquanto suporte poltica

    desenvolvimentista, mas to-somente a identificao da anomia conjuntural a carncia de

    medidas de correo de rumos, que resguardassem e garantissem o prosseguimento do

    processo de desenvolvimento. A viso predominante a de que o crescimento urbano

    desenvolve-se de forma aleatria e catica, fundamentalmente pela ausncia de um controle

    central, tratando-se em ltima anlise de aplicar o quanto antes, as medidas necessrias para

    que este monitoramento saneador se estabelea com a rapidez e a eficcia necessrias.

    Tendo em vista esta expanso descontrolada, A Unio toma vrias providncias de

    carter administrativo, mas que s atingem o status de formulao jurdico-institucional com a

    promulgao Lei Federal n 6766 de 1979, que, entretanto permaneceu como iniciativa

    isolada. o que veremos a seguir.

    2. Planejamento urbano municipal e regional

    A soluo das grandes questes urbanas seja nas metrpoles, nas cidades-plo, ou

    satlites, como o destino de resduos slidos, o transporte e circulao, a logstica, as bacias

    hidrogrficas, a drenagem, o abastecimento, as cadeias produtivas, a revitalizao urbana, o

    mercado de trabalho, a habitao, a incluso social, a sade pblica, a evaso e

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    descentralizao industrial, etc. reporta impreterivelmente, articulao regional. Em nossos

    dias, quaisquer que sejam as solues propostas aos integrantes de espaos territoriais comuns

    ou interdependentes, orientam-se invariavelmente pela capacidade dos municpios em agir de

    maneira coletiva e articulada.

    O debate em torno do planejamento regional, apesar de permear reincidentemente

    todos os debates sobre a problemtica urbana, via de regra, sobrepujado, ou mesmo

    truncado, pela relevncia de questes conjunturais que remetem ao individual. O histrico

    das experincias de gesto regional demonstra de maneira eficiente que a competitividade seja

    econmica, seja poltica entre municpios interdependentes, prevaleceu uniformemente sobre

    a ao cooperativa. A ausncia de um ordenamento jurdico que determine as competncias

    legais e as remisses hierrquicas, que estabelea instrumentos operacionais de gesto

    compartilhada, e que determine objetivamente formas e procedimentos do processo decisrio

    regional, deixa espao aberto que as aes regionais sejam permeadas por relaes de carter

    efmero e circunstancial, e articulaes de carter extra-institucional, em especial de vis

    poltico.

    Por outro lado, os interesses locais que permeiam de maneira pouco transparente e

    preponderante os debates regionais, coibiram o desenvolvimento de aparatos normativos

    institucionais de gesto compartilhada, porque estes, via de regra, no se constituem em

    instrumentos efetivos de cooperao, com participao ampla, democrtica e equnime dos

    envolvidos nas tomadas de deciso, mas, antes, foram utilizados, quando funcionaram, como

    meios de coao para restringir a ao de interesses opostos aos daqueles que detm o poder

    poltico-institucional numa conjuntura determinada. Essa experincia, muitas vezes repetida,

    gerou uma falta de confiana estrutural na eficincia do processo, levando as administraes

    municipais a rechaar de plano qualquer tentativa de resolver questes regionais, a partir de

    um processo de tomada de deciso coletivo.

    Apesar de algumas experincias importantes, e das insistentes tentativas dos

    gegrafos, urbanistas, e outros profissionais da rea, em colocar a questo da gesto regional

    na ordem do dia das reformas legais, a resistncia por parte dos municpios em abrir mo de

    autonomia conquistada a duras penas, e de seus interesses especficos, alm da desconfiana

    histrica nas instituies, tem prevalecido sobre a necessidade urgente de promover novas

    formas de gesto, num pas que a cada dia se configura mais como tipicamente urbano.

  • 10

    3. Desenvolvimento local

    Do Imprio Repblica, e at os nossos dias, o perfil do Estado brasileiro sempre

    apresentou em maior ou menor grau um forte vis centralizador. Entretanto, em nenhum

    perodo, com exceo talvez do primeiro governo Vargas, esta tendncia explicitou-se tanto

    quanto no perodo do regime autoritrio.

    Em meados da dcada de 70, cresce a insatisfao popular com o regime e seu partido

    de sustentao. A ARENA sofre, de forma indita, sucessivas derrotas eleitorais para o nico

    partido de oposio (de vez que o bi-partidarismo estava em vigor), o PMDB, cujo perfil, at

    ento, caracterizava-se pela mera oposio formal, sem expresso eleitoral, cuja nica cuja

    funo prevista, quando de sua criao compulsria, foi legitimar a institucionalidade do

    partido governante. Essa insatisfao, conforme constataram os estrategistas do poder, tinha

    origem nas grandes cidades, e decorria em grande medida das pssimas condies de vida das

    camadas mais pobres da populao, cuja expresso mais visvel foi o acelerado crescimento

    desordenado das cidades.

    Tendo como pressuposto esse diagnstico, o crescimento urbano desordenado passa a

    constituir-se no inimigo pblico nmero um do Estado, na viso governamental. Para um

    regime cuja abordagem racionalista no admitia incongruncias extra-cartesianas na lgica

    postular do desenvolvimento sistemtico, evolutivo, e ininterrupto da foras produtivas,

    causou perplexidade a constatao de que o principal vetor visvel da ideologia do nacional-

    desenvolvimentismo, o crescimento econmico acelerado, seria o embrio de sua prpria

    derrocada. Por outro lado, na viso dos artfices do regime, era improvvel que a expanso

    natural das grandes cidades, vista como expresso simblica e aparente do sucesso da

    revoluo fosse, de per si, responsvel pelas agruras eleitorais da ARENA.

    A responsabilidade recai ento, no sobre o crescimento em si, mas, sobre as

    conseqncias do crescimento irracional e desordenado. O prefeito da capital paulista

    Figueiredo Ferraz, um dos mais expressivos quadros da inteligncia arenista, sintetiza este

    ponto de vista, quando define que se anteriormente So Paulo era a cidade que no podia

    parar, agora So Paulo tem que parar, para refletir sobre seu futuro!

    Essa lgica previsvel decorre novamente da concepo cartesiana de que os

    pressupostos estruturais do desenvolvimento, estabelecidos como postulados inquestionveis,

  • 11

    no estariam vulnerveis s variveis incongruentes do sistema, como a concentrao da

    renda, a disputa pelo solo urbano, e o crescimento, fraturas scio-territoriais urbanas, mas to

    somente carecia de uma maior adequao estrutural ao modelo, a ser concebida pelo poder

    central e imposta ao conjunto dos entes federativos.

    A idiossincrasia, para no cair em tentaes simplificadoras, que, de fato, o

    ordenamento jurdico do pas, em todos os nveis, carecia h muito de um aparato normativo

    que definisse claramente as atribuies dos entes federativos no que tange ao planejamento e

    gesto das questes urbanas e regionais. O regime autoritrio, entretanto, premido pelas

    questes de ordem eleitoral e por diagnsticos que indiscutivelmente demonstravam as falhas

    e as incongruncias de um modelo de desenvolvimento tido como irretocvel, cria uma

    estrutura normativa arbitrria e artificial, expresso modelar da obsesso militar pelo controle

    absoluto dos processos decisrios.

    Na viso do governo revolucionrio, planejar as cidades, dentro do racionalismo

    ttico-estratgico do regime, no era tarefa a ser desenvolvida pelos atores locais, que

    prescindiam de uma viso macro-estrutural do processo, apresentavam vulnerabilidade

    metodolgica, e no estavam imunes ao jogo de interesses econmicos e poltico-ideolgicos

    da regionalidade. Por isso a estrutura proposta, desenhava-se fortemente hierarquizada,

    delegando poderes quase absolutos aos Estados na gesto das regies metropolitanas, e no

    controle estratgico do territrio municipal, excluindo configuraes regionais anmicas,

    transformando os fruns de debate, como a Cmara Metropolitana, em simples figuraes

    anmicas do processo decisrio, e preterindo tambm como figurantes legitimadores, os

    agentes do poder local.

    Esse pressuposto fundava-se, na constatao de que os executivos e os legislativos

    municipais, via de regra, utilizavam-se do precrio controle que o municpio exercia sobre o

    uso, a ocupao e o controle do solo urbano, para auferir vantagens adicionais, ou como

    objeto de barganha visando obter favores da sociedade civil. Em 1982, quando pela primeira

    vez o Partido dos Trabalhadores disputou cargos eletivos, nos foi dada a oportunidade de

    pertencer aos quadros do legislativo em Santo Andr, pudemos verificar que o controle do

    solo urbano constitua-se, de fato, at ento, quase que exclusivamente em moeda de troca,

    nas relaes extra-institucionais com o executivo e com setores do mercado.

  • 12

    Esta prtica s foi, ainda que parcialmente, coibida quando a legislao federal

    determinou que o legislativo no pudesse propor mais do que duas alteraes do zoneamento

    anualmente, e que qualquer propositura nesse sentido s seria aprovada com quorum

    qualificado. A sazonalidade proposta acabou por agregar ainda mais valor s decises do

    legislativo. Por fim, os legisladores municipais quedaram impossibilitados de propor

    quaisquer alteraes do zoneamento.

    Convm ressalvar que, em alguns casos essa legislao, ainda que tenha em sua

    origem o pressuposto de um totalitarismo normativo, acabou de fato por permitir que alguns

    Estados e Municpios, com vis mais progressista, pudessem desenvolver importantes e

    histricas aes na gesto e planejamento de cidades e regies, como foi o caso do IPUC de

    Curitiba, (Jaime Lerner foi um dos artfices da legislao federal), o IPUR, no Rio de Janeiro,

    e a EMPLASA em So Paulo. Entretanto, os exemplos citados, ainda que importantes,

    constituem-se na exceo que confirma a regra.

    Durante o processo de consolidao dos avanos democrticos que sucedeu o perodo

    de exceo, este quadro foi drasticamente transformado. Na elaborao da Constituio de

    1988, a participao da sociedade civil foi expressiva, mas, acima de tudo, o momento foi

    particularmente propcio a mudanas estruturais. Os municpios at ento alijados

    involuntariamente do pacto federativo, em especial no que se refere ao normativa,

    conseguiram ineditamente unificar o discurso pela re-fundao da autonomia municipal e

    pelo aprimoramento de seu papel institucional, e o que a principio parecia ser uma difcil

    conquista, revelou-se quase que uma ao consensual.

    Como se fora uma herana indesejada do perodo de exceo, a idia do planejamento

    regional foi equivocadamente associada forma autoritria pela qual o regime havia imposto

    as relaes entre os entes federativos, em especial a lgica primria de que os municpios,

    caso dispusessem de autonomia normativa, promoveriam o caos urbano e a desordem

    estrutural de seu territrio.

    Os Estados, at ento gestores da ao regional, no dedicaram especial ateno

    reformulao do papel institucional das cidades no pacto federativo, premidos por questes de

    ordem econmica, em especial quelas referentes s questes tributrias, permitindo que as

    foras municipalistas, que atuavam concomitantemente, como sustentculo poltico dos

    pleitos dos governadores, interferissem decisivamente no processo, em prol de uma

  • 13

    autonomia local, que desconsiderava de forma acintosa as questes relativas a regionalidade,

    em oposio direta concepo autoritria que prevaleceu anteriormente. A constituio de

    1988 definiu, portanto, um novo patamar normativo no qual o planejamento regional perdeu

    elementos substanciais de sua j precria institucionalidade.

    4. A Constituio de 1988 e o Municpio

    No perodo subseqente, ou seja, aps a aprovao da Constituio de 1988, coube aos

    municpios adequarem-se ao seu novo papel de protagonistas do planejamento e controle do

    territrio, bem como outras atribuies at ento, historicamente delegadas a outras instncias

    de poder, como o caso da educao fundamental e da sade.

    O longo perodo, em que os municpios foram alijados dos processos decisrios do

    micro e macro planejamento, definiu um pesado tributo ao desenvolvimento de aes locais

    ou regionais. A exigncia de elaborao de Planos Diretores para grandes e mdios

    municpios do incio da dcada de 90, no logrou o xito esperado, seja pela ausncia da

    cultura do planejamento urbano, seja pela inexistncia de meios institucionais adequados a

    plenitude dessa normatizao. A carncia de equipes institucionais formadas para planejar, a

    incipincia dos processos de participao, a concomitncia com a elaborao das Leis

    Orgnicas em cada municpio, foram alguns dos entraves encontrados na elaborao desses

    planos. Para tornar ainda mais complexa esta conjuntura, o perodo de elaborao dos PDs

    coincidiu com os ltimos anos de mandato dos governos municipais, o que conferiu a seu

    processo de elaborao um sentido de urgncia normativa incompatvel com processos

    decisrios participativos, e a contaminao poltico-eleitoral nociva a processos de

    planejamento a longo prazo.

    A ausncia de paradigmas e referncias institucionais, exceto os vinculados ao perodo

    de exceo, e principalmente a falta de definies claras quanto ao efetivo escopo e contedo

    desses planos, alm das interferncias j mencionadas anteriormente, contribuiu para que os

    projetos apresentados ao legislativo de maneira geral ficassem mais parecidos com Planos de

    Governo, do que como um conjunto de pressupostos para a ordenao territorial. Alm disso,

    a questo regional no se constituiu em objeto de normatizao, ou em tema de debate, tendo

    em vista que os Planos Diretores do perodo foram elaborados quase como libelos coletivos

    autonomia municipal.

  • 14

    Nas administraes progressistas, a disputa pela incluso de conceitos e pressupostos

    ligados a bandeiras histricas dos urbanistas, acabaram por definir a tnica do debate,

    concentrando os confrontos em questes de cunho terico-ideolgicos, em especial quelas

    nas quais a confrontao entre a liberdade plena de atuao do mercado se contrapunha a

    normas de controle estatal, e processos regulatrios rgidos, o acabou por inibir a introduo

    das questes regionais no debate.

    Exemplo pertinente o do Plano Diretor do Municpio de So Paulo, elaborado entre

    91 e 92 e apresentado ao legislativo ao final do Governo de Luiza Erundina, coordenado pela

    urbanista Raquel Rolnik. A questo do ndice nico transformou-se no centro do embate entre

    progressistas e conservadores, defensores do mercado e do controle do Estado, o que acabou

    por impedir que as demais questes de relevncia viessem tona, como marcos regulatrios

    para a metropolizao e a gesto regional.

    Nas administraes mais conservadoras, no houve interesse real em promover

    instrumentos de planejamento, de vez que, via de regra, este tipo de cultura pressupe que o

    poder do Estado deve ser exercido em sua plenitude, institucionalizando-se a relao direta

    entre o poder pblico e o mercado, ou a sociedade civil, em negociando concesses ou

    benefcios que atendam os interesses especficos econmicos ou poltico-ideolgicos dos

    detentores do poder local. Tendo em vista esta conjuntura, poucos municpios conseguiram

    aprovar seus PDs, nesse perodo.

    No ABCD, no foi diferente, em Santo Andr, por exemplo, a elaborao do PD,

    transformou-se num centro de articulao para as reivindicaes dos movimentos sociais e

    grupos de interesse, em especial os emergentes, incorporando bandeiras de luta importantes

    da sociedade civil, mas prescindindo de requisitos tcnico-urbansticos, que pudessem

    transform-lo num instrumento vivel de ordenao e regulao do territrio.

    importante considerar que, com raras excees, as primeiras administraes

    progressistas eleitas logo aps o perodo militar, como foi o caso da maioria dos municpios

    do ABCD, concentraram seus esforos na poltica de inverso de prioridades, destinando a

    maior parte dos recursos e de sua ao institucional, a construo de polticas compensatrias

    no assistenciais, entendidas como o resgate do papel do Estado na ao distributiva e

    desconcentradora, e na construo do bem estar e da incluso social. A idia corrente durante

    o regime de exceo de que administrar edificar com visibilidade, foi substituda pela nfase

  • 15

    na reestruturao dos servios pblicos, como sade e educao e na criao das bases infra-

    estruturais para aes de incluso social, como o provimento de moradias, urbanizao de

    favelas, transporte pblico, saneamento etc.

    Nessa conjuntura, mesmo que tendo em vista a provocao permanente das reas

    tcnicas em prol do aprofundamento dessa questo, pouco espao restou para aes de

    planejamento a longo prazo e intervenes urbansticas desenvolvimentistas, e

    conseqentemente, para gerar polticas inovadoras no campo da gesto territorial. Contribuiu

    ainda, para que esse debate no protagonizasse a ao administrativa a necessidade emergente

    de solidificar o papel assumido pelos municpios no novo pacto federativo, responsvel pela

    transferncia de parcela considervel dos servios pblicos essenciais para o poder local.

    Uma importante questo, que a nosso ver ainda no mereceu o esforo de uma

    reflexo sistemtica, foi a reao conservadora que precedeu a expressiva vitria eleitoral das

    foras progressistas, que, entre 1989 e 1992, conquistaram o direito de administrar milhares

    de municpios em todo pas. Num grande nmero de municpios, administraes progressistas

    ligadas a uma grande diversidade de foras polticas e partidrias foram derrotadas, cedendo

    espao para administraes de carter conservador, e modelos tradicionais de ao poltica

    local, caracterizados por um clientelismo imobilista e retrgrado.

    Em muitas cidades, como em Santo Andr e Diadema, em So Paulo, a retomada do

    poder local por foras reacionrias ou extremamente conservadoras, promoveram um

    retrocesso especialmente danoso ao avano dos processos de incluso social, planejamento e

    participao. Esse processo pernicioso teve, entretanto, algum mrito ao provocar, por um

    lado, a reflexo dos progressistas quanto validade ou confiabilidade dos paradigmas que

    orientaram sua ao pblica, e, de outro, permitindo populao em geral, testar

    comparativamente as vantagens e desvantagens da efetiva e caricata alternncia de poder, h

    muitos anos coibida pelo regime de exceo. Mas em relao consolidao dos instrumentos

    institucionais de planejamento, o prejuzo foi considervel.

    Sem transparncia ou maior debate, os projetos de Plano Diretor no aprovados foram

    redesenhados e transformados em esqulidos receptculos de conceitos anacrnicos,

    superficiais e sem aplicabilidade. Premidos pelos prazos legais, os executivos entregaram aos

    legislativos projetos de lei, que se constituam em peas formais de carter meramente

    institucional. Todos esses fatores, acrescidos de outros que sero abordados mais frente,

  • 16

    contriburam de maneira decisiva para a ausncia das condies histrico-conjunturais

    necessrias para o desenvolvimento de polticas inovadoras de integrao, planejamento e

    gesto regional, ressalvadas raras e episdicas experincias isoladas.

    5. O Estatuto da Cidade

    A tentativa de construo de um novo marco regulatrio, a nvel federal, para a

    poltica urbana remonta aos anos 70, quando o ento Conselho Nacional de Poltica Urbana,

    prope o PL n 775/83, que, no entanto, no logrou xito em sua aprovao. Como resultado

    de uma luta histrica dos profissionais ligados questo urbana, a Constituio de 1988,

    graas inclusive a seu vis municipalista, incorporou algumas das reivindicaes mais caras

    aos urbanistas e aos movimentos populares ligados habitao, como a utilizao social da

    propriedade urbana, o direito cidade, e a democratizao da gesto e do planejamento. Estes

    princpios constitucionais, entretanto, dependiam de legislao especfica, ou seja, ainda no

    eram passveis de utilizao direta pelos municpios.

    A tentativa de, por lei ordinria, criar um captulo complementar dos princpios

    urbansticos da Constituio de 1988 arrastou-se por mais de dez anos de idas e vindas e

    culminou com a criao do projeto de lei n 5.788/90, que s conseguiu ser aprovado com

    rigorosas modificaes, em 2001, j com o nome de Estatuto da Cidade, Lei Federal n

    10.257 de Julho de 2001. O Estatuto, alm de regular os artigos 182 e 183 da Constituio

    Federal, traz em seu bojo a concepo primria de induzir assim como pretendiam de

    maneira enviesada os artfices do planejamento centralizado do regime militar a ocupao

    mais racional, economicamente sustentvel, arquitetonicamente racional e socialmente justa

    das cidades, mas dessa vez com o vis correto.

    Alm disso, pretende, assim como o fez de maneira pioneira a Lei n. 6766/79 com os

    loteamentos populares, promover uma lgica mais racional e sustentvel para a expanso

    urbana das cidades, em especial de grande e mdio porte, onde grassava a especulao

    imobiliria desenfreada, uma vez que o paradigma, at ento, foi o da lgica do capital

    privado que tem como pressuposto capturar valor na terra a partir dos investimentos pblicos

    e coletivos (valorizao imobiliria). Para isso, promoveu a criao de instrumentos que

    dotaram o poder pblico, em especial o local, de poderes jurdicos at ento inditos, para

    promover a regulao do uso e ocupao do solo, orientando o crescimento urbano para

    objetivos que vo alm da simples lgica de mercado.

  • 17

    Alguns desses instrumentos, como veremos mais adiante, j existiam em diversos

    pases, e o Brasil, tendo em vista seu estgio de desenvolvimento e nvel de urbanizao, de

    fato, tardou excessivamente a aplic-los, promovendo uma considervel queda na qualidade

    de vida de muitas de nossas cidades. Princpios como o solo criado, (arts. 28 a 31) j de

    sobejo utilizado em pases desenvolvidos, se consolidaram atravs de instrumentos como a

    outorga onerosa do direito de construir. Alm disso, o Estatuto da Cidade foi redigido

    claramente com o pressuposto absoluto de democratizar a gesto do urbano, induzindo os

    poderes pblicos, em especial os locais, a estimular a ampla participao dos interessados nos

    processos decisrios, como pressupem os incisos I, II, e III do art. 40 e os arts. 43, 44, e 45

    da Lei.

    6. As cidades e a globalizao

    Muito alm de seus problemas infra-estruturais crnicos, as metrpoles brasileiras

    sofreram, como todos os grandes centros urbanos mundiais, as mazelas advindas das

    mudanas paradigmticas dos processos produtivos e culturais que permearam as dcadas de

    80 e 90.

    A descentralizao produtiva, caracterstica tpica da valorizao do toyotismo nas

    formas produtivas internacionais, promoveu uma desagregao da tradicional forma de

    organizar o espao industrial. Muitas indstrias abandonaram os centros industriais

    tradicionais, fixando-se em reas esparsas com maiores vantagens comparativas, promovendo

    um verdadeiro abandono de cidades antes prsperas o que demandou a mudana do meio

    antes caracterstico desses locais, transformando-os em reduto de desemprego e degradao

    urbana, cujo maior exemplo Chicago da dcada de 80 nos EUA. Como nos demonstra

    CASTELLS:

    No fim do segundo milnio da Era Crist, vrios acontecimentos de importncia histrica

    transformaram o cenrio social da vida humana. Uma revoluo tecnolgica concentrada nas

    tecnologias da informao comeou a remodelar a base material da sociedade em ritmo acelerado.

    Economias por todo o mundo passaram a manter interdependncia global, apresentando uma nova

    forma de relao entre a economia, o Estado e a sociedade em um sistema de geometria varivel. O

    colapso do estatismo sovitico e o subseqente fim do movimento comunista internacional

    enfraqueceram, por enquanto, o desafio histrico do capitalismo, salvaram as esquerdas polticas (e a

    teoria marxista) da atrao fatal do marxismo-leninismo, decretaram o fim da Guerra Fria, reduziram

    o risco de holocausto nuclear e, fundamentalmente, alteraram a geopoltica global. O prprio

    capitalismo passa por um processo de profunda reestruturao caracterizado por maior flexibilidade

    de gerenciamento; descentralizao das empresas e sua organizao em redes tanto internamente

    quanto em suas relaes com outras empresas; considervel fortalecimento do papel do capital vis--

    vis o trabalho, com o declnio concomitante da influncia dos movimentos de trabalhadores;

    individualizao e diversificao cada vez maior das relaes de trabalho; incorporao macia das

  • 18

    mulheres na fora de trabalho remunerada, geralmente em condies discriminatrias; interveno

    estatal para desregular os mercados de forma seletiva e desfazer o estado do bem-estar social com

    diferentes intensidades e orientaes, dependendo da natureza das foras e instituies polticas de

    cada sociedade; aumento da concorrncia global em um contexto de progressiva diferenciao dos

    cenrio geogrficos e culturais para a acumulao e a gesto de capital. (2003)

    Alm disso, esse processo foi acompanhado pela crescente suburbanizao das

    grandes cidades, ou seja, a populao de maior poder aquisitivo abandona o centro das

    cidades, antes sinnimo de qualidade urbana, e passam a morar nas regies mais perifricas

    das cidades em busca de novos paradigmas de qualidade de vida. Os centros das cidades

    entram e deteriorao, prejudicando a atratividade desses centros como fomentadores de

    negcios e geradores de renda.

    Some-se a isso, a necessidade dessas cidades verem-se repentinamente obrigadas a

    entrar no selvagem processo competitivo global pela atratividade de novos investimentos e

    capitais:

    Assim, as regies, sob o impulso dos governos e das elites empresariais, estruturam-se para competir

    na economia global e estabelecerem redes de cooperao... assim as regies e localidades no

    desaparecem, mas ficam integradas nas redes internacionais que ligam seus setores mais

    dinmicos. (CASTELLS, 2003)

    Na tentativa de recuperar os espaos degradados, as cidades, regies e localidades,

    buscam formas de promover a revitalizao do espao urbano. Grandes projetos com ncoras

    arquitetnicas ou culturais so propostos pelo Poder Pblico, no sentido de recuperar a viabilidade da

    cidade ou regio como agente de desenvolvimento e sobrevivncia de seus usurios.

    Entretanto, os poderes pblicos locais no possuem via de regra capacidade de investimento

    para arcar sozinhos com os valores envolvidos nesse tipo de empreendimento. A soluo

    encontrada foi compartilhar com a iniciativa privada os seus custos.

    J na dcada de 70, nos EUA, onde a participao do capital privado sempre foi muito

    presente, desenvolveu-se o conceito de Urban Renewall ou renovao urbana, com a

    substituio de antigos prdios em bairros, por novas construes com maior interesse

    urbanstico e comercial. Dois exemplos so os ocorridos em Baltimore e em Nova Yorque

    com o Pier 17.

    Na Europa, no caso francs, foram criadas a ZAC (Zones Damena Concertegement),

    de 1967 com intensa aplicao na dcada de 70 e 80. Na Inglaterra em 1992, cria-se o Private

  • 19

    Finance Institute PFI, visando injetar dinheiro no mercado imobilirio, e obrigando o

    Estado a promover aes de implantao de infra-estrutura, de maneira a combinar os capitais

    pblico e privado, em complexos sistemas de parceria.

    No Canad aproveitou-se o instituto do benefit shering (contribuio de melhoria),

    constituindo-se num mecanismo alternativo em que o setor privado complementa o

    investimento tradicional do Estado, em especial no transporte coletivo. Ainda no Canad, em

    especial na cidade de Vancouver, foram criados BIDs Business Improvement Districts, que

    so planos regionais, adaptados em especial as zonas centrais das cidades, nas quais parte dos

    recursos auferidos pela arrecadao local (tributos como o IPTU, por exemplo), naquele

    regio so fundidos ao capital privado e redirecionados para benfeitoria no prprio local. Os

    BIDs, com especificidades um pouco diferentes, foram tambm empregados com o mesmo

    sucesso nos EUA:

    There is another important reason for the emergence of the BIDs, far more significant then the loss of

    federal aid for the services. American standards of acceptable commercial environments have

    drastically over 20 years and business leaders in older commercial areas recognized that something

    had to be done to maintain and enhance their competitive position. This was as true for the office and

    hotel industries as for most famously retail environments. The highway office park might prove to be a mind-numbingly boring place to work, but is well-lighted, well-maintained, and landscape space

    remains eminently leasable. The environment of highway hotel may be marginal, but guests need not

    worry that they will find a drunk asleep outside the door to their room. (HOUSTON, 1997)

    Nos EUA, observamos tambm a implementao do Land Pouling, ou urbanizao

    consorciada, que consiste em que proprietrios de uma rea se consorciem, para promover

    empreendimentos de impacto urbano:

    O mecanismo prope a cesso por parte dos proprietrios para o Poder Pblico das reas necessrias

    implantao de propostas urbansticas, com a contrapartida na forma da outorga onerosa do direito de construir. (SAVELLI, 2003)

    A idia da revitalizao urbanstica como passaporte de ingresso era competicional

    disseminou-se com grande rapidez. Nas regies mais desenvolvidas do planeta, entre as

    dcadas de 80 e 90, grandes projetos foram paulatinamente fazendo parte do dia a dia das

    cidades. Nos EUA, em regies porturias, como aquelas prximas cidade de So Francisco

    na Califrnia, foram implementados projetos de grande porte, visando a recuperaes de

    antigos plos industriais metropolitanos, sempre por iniciativa do Poder Pblico, mas com

    intensa participao do capital privado. Antigas reas industriais abandonadas foram

    substitudas incluindo unidades porturias pela forte presena de setores tecnolgicos, de

    servios, de turismo, de cultura, etc.

  • 20

    Na cidade de Nova Iorque, pequenas operaes de parceria visando capturar a renda

    da terra, ou implementar programas sociais, foram to bem sucedidas que se transformaram

    em ferramentas institucionais, incorporando-se legislao urbanstica municipal e ao

    processo de planejamento da cidade, inclusive com uma maior participao formal atravs

    de Conselhos, por exemplo tanto do prprio mercado como da populao interessada.

    Princpios jurdico- urbansticos como o as of right o direito de pagar protocolarmente

    pela criao de solo vertical adicional, alm do estabelecido pelo zoneamento convencional,

    at o limite determinado pela legislao consolidaram-se como elementos integrantes da

    prpria legislao, tendo em vista a necessidade de recursos adicionais para suprir o aumento

    da demanda, conseqncia direta do adensamento. Nos EUA, obviamente auxiliou muito no

    processo a longa tradio liberal do Estado norte-americano, onde os limites institucionais

    entre o pblico e o privado so muito mais tnues do que nos Estados europeus tradicionais.

    Entretanto, a reconhecida liberdade do capital em promover a lucratividade a partir do

    investimento coletivo tambm se rendeu necessidade de compartilhar parte da lucratividade

    auferida com o poder pblico, para promover o desenvolvimento local e a melhoria da

    qualidade de vida. Tambm acompanharam essas iniciativas o aumento do crdito na

    aquisio de imveis que de certa maneira substitui a ao do Estado na produo de

    moradias, liberando recursos para iniciativas e obras urbanas que funcionassem como plos

    atratores de novos negcios.

    Na Europa, bero do urbanismo moderno, de maneira um pouco diferente dos EUA,

    graas diversificao de seu territrio, esses processos ocorreram simultaneamente: a

    descentralizao industrial, a urbanizao dispersa com a criao de regies suburbanas e o

    abandono de algumas das mais antigas regies centrais das cidades:

    Gottidiener separa claramente as caractersticas do processo europeu, mais recente, contrastando-o

    com o norte americano, que faz remontar aos anos 40, 50 e 60. Naquela poca, segundo esse autor,

    investimentos estatais de grande porte, inclusive de carter militar, distribudos de modo desigual no

    territrio, estimularam a formao de programas habitacionais destinados s faixas de renda mdia e

    alta, ao redor das metrpoles americanas. A essa expanso seguiram-se a descentralizao dos

    servios, em busca dos consumidores de maior renda (1985) e depois a descentralizao industrial e de

    escritrios. Os programas oficiais visariam estimular o desenvolvimento industrial dos estados do oeste

    e do sul, mas suas prticas introduziram ao mesmo tempo a urbanizao dispersa. (REIS, 2006)

    Na Europa, especialmente diante do processo de unificao, a disputa entre cidades

    tornou condio essencial do desenvolvimento a implementao de projetos de revitalizao.

    Praticamente todos os centros tradicionais da Europa central, e mesmo das regies mais

  • 21

    perifricas ingressaram na era das parcerias pblico-privadas, tendo em vista a consolidao

    de grandes projetos, vrios deles extremamente bem-sucedidos, como o caso das cidades de

    Barcelona e Bilbao na Espanha. Tambm Paris com La Defense, entre outros, procurou

    tornar-se ainda mais atrativa aos novos investimentos do capital turstico, financeiro e

    tecnolgico. Amsterd e Roterd, na Holanda tambm revitalizaram suas regies porturias.

    Berlin moderniza todo o seu centro tradicional, processo ainda em andamento. No final da

    dcada de 90, at mesmo na conservadora Lisboa, em Portugal, grandes operaes

    fomentadas a partir de inverses expressivas da Unio Europia (calcula-se que durante dois

    anos, chegou-se a investir um milho de euros por dia em obras urbanas), mudaram o aspecto

    urbano da orla, em empreendimentos como o Parque das Naes, o terminal ferrovirio, a

    ponte Vasco da Gama, permitindo seu ingresso na competitiva disputa por um lugar ao sol

    na globalizao.

    A questo central para que este tipo de operao se realize o ingresso do poder

    pblico na operao, em especial, com a regulao, o gerenciamento e, principalmente, com a

    predisposio implantao de infra-estrutura e/ou cesso de parte das terras pblicas para a

    implantao do projeto. No Brasil, vrios problemas emperravam (alguns persistem at hoje)

    a implantao de projetos de parceria pblico-privada, entre eles:

    a) At o advento do Estatuto da Cidade, no havia legislao especfica, que

    permitisse ao Poder Pblico ou ao capital privado, promover esse tipo de parceria.

    b) Na maior parte dos grandes centros urbanos inexistem reas disponveis, pois a

    tradio patrimonialista-cartorial da cultura administrativa de origem lusa privatiza os espaos

    disponveis no resguardados por lei.

    c) Alm da no-existncia da cultura da revitalizao, o maior obstculo a uma

    participao efetiva dos investidores a profunda desconfiana da iniciativa privada em

    relao a qualquer processo de gesto pblica. Tendo em vista, entretanto, a necessidade

    como j visto anteriormente, de promover o desenvolvimento local, a legislao tem evoludo

    historicamente, muitas vezes a partir de iniciativas isoladas de prefeituras especficas, e vai

    culminar com a Lei das Parcerias Pblico-Privadas - PPPs (LEI N 11.079, DE 2004) para a

    implantao de infra-estrutura bsica, e com o instituto das Operaes Urbanas Consorciadas

    (Arts. 32 a 34 da Lei N 10.257 de 2001), para a revitalizao urbana.

  • 22

    7. Brasil: desenvolvimento do conceito e implementabilidade

    O Estado Brasileiro sofre por uma carncia crnica de recursos. Assim, com a

    globalizao que criou a competio entre cidades e regies, os municpios viram-se premidos

    a captar recursos de outras fontes que no as formas arrecadatrias convencionais. Voltaram-

    se ento para o mercado privado, em busca da recuperao de parte das mais-valias

    incorporadas ao capital imobilirio, uma vez que a ao pblica, no desenvolvimento urbano,

    pauta-se via de regra por obras estruturantes, que se por um lado elevam a qualidade

    territorial, por outro, valorizam o patrimnio dos proprietrios locais.

    No final da dcada de 80, quando se iniciava mundialmente este processo, antes da

    promulgao do Estatuto da Cidade, os municpios recorreram a todos os instrumentos legais

    disponveis para promover projetos especiais, em reas especficas da cidade. Estes

    instrumentos, ainda bastante engessados pelo zoneamento urbano formal da dcada de 70,

    trataram inicialmente de viabilizar programas sociais como urbanizao de favelas,

    regularizao de reas ocupadas, loteamentos irregulares, construo de moradias populares

    etc. A legislao utilizada foi primordialmente a Lei 6766/79, que permitia a urbanizao

    especial de reas especficas da cidade a critrio do poder pblico, para implantao de

    programas. No foi fcil vencer a resistncia burocrtica dos planejadores tradicionais. Na

    maior parte dos municpios as reas de favela ou de ocupao sequer apareciam na planta da

    cidade, pois no eram parte da cidade formal. Mas, graas a esse princpio legal, criaram-se

    pela primeira vez no pas, no final dos anos 80, (salvo engano, o pioneirismo cabe ao

    municpio de Jaboato, na regio Metropolitana do Recife), as Zonas de Especial Interesse

    Social, reas da cidade destinadas a urbanizaes especiais, voltadas para o desenvolvimento

    social.

    No rastro dessas iniciativas, alguns municpios de tendncia progressista,

    interessados em inserir a cidade nos novos processos competitivos, criaram dentro das

    competncias municipais legislaes que permitiam a flexibilizao (termo posteriormente

    duramente criticado por alguns setores) das normas edilcias e de uso e ocupao do solo,

    visando atravs deste expediente capturar renda para a promoo do desenvolvimento

    territorial e a atrao de investimentos.

    O Plano Diretor da Cidade de So Paulo de 1988, atravs da Lei 10.676/88, j previa

    instrumentos como as Operaes Urbanas Consorciadas como exceo ao rigor do

  • 23

    Zoneamento no uso e ocupao do solo em regies adensveis, incentivo aos

    empreendimentos privados que assumem investimentos para o melhoramento da infra-

    estrutura urbana ou para a eliminao das causas da desqualificao ambiental. (SAVELLI,

    2003)

    Durante o governo Jnio Quadros, implementou-se no Municpio de So Paulo a

    primeira lei que permitia formalmente a captura de parte do lucro imobilirio dos

    empreendimentos de porte, atravs da instituio das Operaes Interligadas (Lei 10.209/86),

    dando inicio a uma produo legislativa disseminada pelas grandes capitais do pas, que j

    previam instrumentos posteriormente incorporados pelo Estatuto da Cidade, como o solo

    criado, a outorga onerosa etc.

    Muitos municpios, a partir da legislao local, de competncia exclusiva ou

    concorrente, assim como o proposto em So Paulo j no governo de Luiza Erundina

    (1990/93) foi implementada a operao urbana do Vale do Anhangaba (Lei 11.090/91)

    conseguiram desenvolver grandes projetos urbansticos em parceria com a iniciativa privada,

    e auferir considervel captura de renda para o tesouro local, reinvestidos via de regra em

    melhorias urbansticas e requalificao urbana.

    Aps a promulgao do Estatuto da Cidade, e a partir da aprovao dos Planos

    Diretores dos municpios, o instrumento disseminou-se e realizaram-se, com mais ou menos

    sucesso, operaes urbanas consorciadas em Belo Horizonte, Natal, Recife, Rio de Janeiro,

    entre outros.

    Apenas no municpio de So Paulo, em trs das operaes urbanas: Faria Lima, gua

    Branca e Urbana Centro, o municpio auferiu uma renda mais do que expressiva, mesmo para

    um oramento do porte dessa capital seja em recursos pagos pelos empreendedores, seja pela

    emisso de CEPACS ou benefcios urbansticos.

    8. Concluso

    O instrumento das operaes urbanas consorciadas, previsto no Estatuto da Cidade,

    propiciou ao ordenamento jurdico de carter urbanstico uma importante evoluo na captura

    de recursos para o desenvolvimento urbano, bem como introduziu, de maneira formal, o

  • 24

    conceito de associao e cooperao entre o Estado e a sociedade em especial em trs

    aspectos a destacar:

    a) Sob o ponto de vista do mercado imobilirio, a Operao Urbana Consorciada cria

    condies normativas para que se promova a parceria pblico- privada na requalificao do

    espao urbano, garantindo a participao ordenada e regulada dos agentes, combatendo a

    especulao imobiliria, e estimulando a participao social do capital privado nos

    investimentos, sob a tutela da Poder Pblico e com a fiscalizao da sociedade.

    b) Ao exigir a ampla publicidade e garantir a efetiva participao da comunidade local

    e das foras vivas da cidade na tomada de decises, planejamento e gesto dos grandes

    projetos de requalificao, democratiza o espao urbano, e garante a transparncia das aes

    pblicas e privadas.

    c) Possibilita ao gestor pblico, inserir a questo urbana nos grandes debates sob os

    vetores de desenvolvimento local contemporneo.

    O instituto das Operaes Urbanas Consorciadas, entretanto, deve ser resguardado,

    fiscalizado e acautelado para que cumpra seus objetivos precpuos, e concretize sem

    distores os preceitos para os quais foi criado. Para isso a sociedade e em especial o mundo

    jurdico, deve acautelar-se na fiscalizao da aplicabilidade do instrumento, profilaticamente

    evitando que seja utilizado para funes pouco nobres e avessas ao interesse coletivo, como

    nos alerta em artigo o douto Ministrio Pblico do estado de Santa Catarina:

    V-se, portanto, que a operao urbana consorciada medida de utilizao restrita e acautelada, no

    como pensam alguns, destinada a regularizar toda e qualquer obra indiscriminadamente.

    Importante frisar que a operao contar com forma de controle, obrigatoriamente compartilhado com

    representao da sociedade civil, o que d respaldo democrtico importante medida.

    Assim, a consecuo das operaes ser de perto fiscalizada no s pela administrao, mas tambm

    pela sociedade civil o que, certamente, inibir qualquer desvio de finalidade.

    Registre-se, ainda, que o Estatuto ao disciplinar os requisitos que devem conter o plano da operao

    urbana consorciada o fez de forma meramente enumerativa, abrindo-se oportunidade ao Poder Pblico

    Municipal exigir ainda outros requisitos como, por exemplo, estudo de impacto ambiental para

    acautelar a medida, quando se mexer com a questo ambiental.

    O beneficiado com a regularizao de seu imvel prestar contrapartida em dinheiro que ser utilizada

    exclusivamente na consecuo da operao urbana consorciada ( 1 do art. 33) e seu controle

    obrigatoriamente compartilhado com representao da sociedade civil.

  • 25

    Assim, abre-se oportunidade de sua aplicao em outra atividade da operao que necessite da quantia

    para sua implementao.

    Por exemplo, proprietrios de casas (de classe mdia/alta) construdas em rea de preservao

    permanente (topo de morro - art. 2, "d", do Cdigo Florestal, Lei 4771/65). No havendo mais outra

    alternativa a ser tomada - j que no h mais vegetao naquela rea a ser preservada, estando as

    casas construdas h anos - elaborado estudo de impacto de vizinhana e de impacto ambiental

    (recomendvel no caso em tela), e sendo estes favorveis, os proprietrios interessados na

    regularizao de suas propriedades que contrariam a legislao ambiental podero prestar

    contrapartida em dinheiro ao poder pblico municipal que a utilizar em favor da populao de baixa

    renda, no saneamento bsico, no tratamento de lixo, ou quando em rea de risco, na transferncia

    dessas famlias.

    Outra questo que merece ateno questo do termo "legislao vigente" previsto no inciso II do

    pargrafo 2 do art. 32. Com certeza, o Estatuto da Cidade quis englobar nesta definio toda a

    legislao vigente no Pas - o Cdigo Florestal, a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, etc. - no

    havendo como se aceitar a interpretao dada por alguns de que o termo se refere exclusivamente

    legislao municipal, por que se assim quisesse, o legislador teria feito a ressalva.

    No cabe, pois, ao intrprete reduzir o alcance da Lei, sob pena de ilegalidade.

    O Estatuto da Cidade possui fora de Lei nacional, segundo se infere do mandamento constitucional

    previsto no art. 182 da CRFB/88 e ainda do preceituado nos arts. 21, XX, 24, incisos VI, VII e VIII, e

    1 da CRFB c/c art. 3 da Lei n. 10.257/2001. lei especfica e posterior s demais leis ordinrias que

    deve prevalecer existindo conflito aparente de normas (antinomia jurdica). Entretanto, este no o

    caso.

    que na hiptese vertente no preciso sequer se utilizar dos critrios de soluo de antinomias

    jurdicas, porquanto aplica-se no caso concreto to somente as disposies especficas da lei

    (possibilidade de regularizao de obras em desacordo com a legislao), permanecendo em vigor a

    legislao proibitiva, segundo a inteligncia do 2 do art. 2 da Lei de Introduo ao Cdigo Civil

    (Decreto-Lei 4.657/42) que dispe:

    2. A lei nova, que estabelea disposies gerais ou especiais a par das j existentes, no revoga nem

    modifica a anterior.

    Ou seja, no h norma ilegal, uma no suplanta a outra. Ambas as legislaes so aplicadas, tanto as

    proibitivas quanto o Estatuto.

    que a faculdade prevista no Estatuto no sentido da regularizao das obras ilegais no retira a carga

    de eficcia dos mandamentos proibitivos previstos por lei. Tais condutas continuam sendo irregulares

    ou ilegais. O Estatuto prev somente uma alternativa prevista quelas propriedades que, se encaixando

    nos requisitos do art. 33, podem ser regularizadas mediante contraprestao a ser conferida

    administrao.

    V-se, portanto, que a possibilidade criada pelo Estatuto da Cidade de regularizao de construes,

    reformas ou ampliaes em desacordo com a legislao vigente, instrumento de grande valia na

    ordenao do pleno desenvolvimento das funes sociais da cidade e da propriedade urbana. Pode ser

    considerado como poltica pblica de interesse social, que alcana todas as camadas sociais da

    populao e as mobiliza no sentido da conscientizao ambiental.

    Prev o Estatuto que a partir da aprovao da lei especfica de que trata o caput, do art. 33 so nulas

    as licenas e autorizaes a cargo do Poder Pblico municipal expedidas em desacordo com o plano

    de operao urbana consorciada.

    Esta providncia se justifica porquanto a partir da aprovao da operao, determinadas reas da

    cidade sero submetidas a novas regras. Desse modo, impe-se que licenas e autorizaes estejam de

    acordo com o novo disciplinamento e no com o anteriormente disposto no plano diretor, sob pena de

    inviabilizao da operao. (FIGUEIREDO E SILVA, s/d)

  • 26

    I.2. O PLANO DENTRO DO PLANO: CONSIDERAES ACERCA DAS

    OPERAES URBANAS CONSORCIADAS

    Fernando Guilherme Bruno Filho

    A anlise encetada acima, em especial em sua segunda metade, nos d um bom

    panorama das iniciativas que se espalharam, a partir dos pases centrais (dcadas de 70 e 80),

    visando estabelecer formas de articular esforos comuns entre os setores pblico e privado

    (leia-se, num primeiro momento, o setor econmico) visando intervir nos processos de

    urbanificao, revitalizando ou potencializando o uso de reas especficas dentro da malha

    urbana. Com efeito, anlises empricas acerca de uma ou algumas experincias genericamente

    tratadas como operaes urbanas elevaram tal instrumento a um dos de maior interesse da

    parte de urbanistas e gestores pblicos, chegando mesmo a acaloradas discusses sobre sua

    natureza, como positivas ou negativas ao desenvolvimento de uma poltica urbana

    sustentvel e inclusiva, em especial nas grandes metrpoles.

    Tais debates j se davam antes mesmo do Estatuto da Cidade, dado que a figura da

    operao urbana constava, mesmo timidamente, das agendas do movimento pela reforma

    urbana desde os anos 80 e, antes mesmo dos planos diretores da dcada seguinte, uma

    primeira tentativa concreta de viabilizao aconteceu no Municpio de So Paulo (Lei

    10.209/86, depois incorporada ao Plano Diretor de 1988- Lei 10.676), na forma de operao

    interligadai, onde simplesmente se permitia o uso de coeficientes de aproveitamento

    superiores ao admissvel para uma dada regio, desde que houvesse a oferta de contrapartida

    equivalente, na forma de habitao de interesse social (VAN WILDERODE, 1994).

    No entanto, o que mais salta aos olhos que, tanto as (escassas) modelagens

    construdas para o instrumento, quanto as discusses acerca de sua aplicao, privilegiam

    enormemente o carter financeiro, qual seja, a alavancagem de recursos, em especial para o

    provimento de infra-estrutura. No entanto, o que tentaremos demonstrar adiante, a construo

    realizada pelo estatuto da cidade apresenta outras oportunidades, dentre elas, especialmente, a

    de aperfeioamento da gesto da poltica urbana.

  • 27

    1) O conceito de operao urbana consorciada no Estatuto da Cidade.

    A Lei 10.267/01 (Estatuto da Cidade) apartou, de um lado, tanto a outorga onerosa do

    direito de construir e da mudana de uso (artigo 28 a 30) e bem assim a transferncia do

    direito de construir (artigo 35), institutos mais prximos das operaes interligadas, de um

    outro, mais rico e complexo, por ele denominado operao urbana consorciada:

    Art. 32. Lei municipal especfica, baseada no plano diretor, poder delimitar rea para aplicao de

    operaes consorciadas.

    1 Considera-se operao urbana consorciada o conjunto de intervenes e medidas coordenadas

    pelo Poder Pblico municipal, com a participao dos proprietrios, moradores, usurios permanentes

    e investidores privados, com o objetivo de alcanar em uma rea transformaes urbansticas

    estruturais, melhorias sociais e a valorizao ambiental.

    2 Podero ser previstas nas operaes urbanas consorciadas, entre outras medidas:

    I - a modificao de ndices e caractersticas de parcelamento, uso e ocupao do solo e subsolo, bem

    como alteraes das normas edilcias, considerado o impacto ambiental delas decorrente;

    II - a regularizao de construes, reformas ou ampliaes executadas em desacordo com a legislao

    vigente.

    Como se denota, o Estatuto no aponta para nenhuma caracterstica especfica da rea

    urbana em relao qual a operao urbana consorciada seja mais apropriada, ou

    vocacionada. Mas deixa claro que h um ponto de partida, que pode mesmo ser uma

    irregularidade disseminada, muitas vezes produto de gesto ineficaz ao longo dos anos, dado

    o relevo do inciso II, e um ponto de chegada, sendo o percurso entre ambos traado por

    transformaes urbansticas estruturais, profundas e necessrias.

    Da mesma forma, no h como privilegiar uma certa categoria de partcipe; dos

    proprietrios aos usurios permanentes (quem eventualmente pela rea circula, ou dela usufrui

    sob qualquer aspecto), quem quer que interaja com tal (ais) permetro(s), est, a priori,

    habilitado a participar do processo de deciso e implementao acerca das tais

    transformaes estruturais, aliceradas num plano especfico, como fica claro no artigo

    seguinte:

    Art. 33. Da lei especfica que aprovar a operao urbana consorciada constar o plano de operao

    urbana consorciada, contendo, no mnimo:

    I - definio da rea a ser atingida;

    II - programa bsico de ocupao da rea;

  • 28

    III - programa de atendimento econmico e social para a populao diretamente afetada pela

    operao;

    IV - finalidades da operao;

    V - estudo prvio de impacto de vizinhana;

    VI - contrapartida a ser exigida dos proprietrios, usurios permanentes e investidores privados em

    funo da utilizao dos benefcios previstos nos incisos I e II do 2 do art. 32 desta Lei;

    VII - forma de controle da operao, obrigatoriamente compartilhado com representao da sociedade

    civil.

    1 Os recursos obtidos pelo Poder Pblico municipal na forma do inciso VI deste artigo sero

    aplicados exclusivamente na prpria operao urbana consorciada.

    2 A partir da aprovao da lei especfica de que trata o caput, so nulas as licenas e autorizaes a

    cargo do Poder Pblico municipal expedidas em desacordo com o plano de operao urbana

    consorciada.

    Note-se que mesmo a exigncia de contrapartida no est vinculada a uma expresso

    monetria, podendo at se caracterizar como condutas de fazer (obrigao) ou no-fazer

    (absteno) de parte dos partcipes ou atingidos pelo plano da operao. E, o que se nos

    afigura ainda mais importante, h a exigncia deste plano, cujas caractersticas tentaremos

    delinear mais adiante.

    Por fim, mesmo que no esteja vedada a outorga onerosa do direito de construir,

    apenas se lhe exigindo que os recursos sejam aplicados no(s) prprio(s) permetro(s), o artigo

    34 qualifica ainda mais as formas de financiamento da operao urbana, atravs dos

    chamados CEPACs (certificados de potencial adicional de construo):

    Art. 34. A lei especfica que aprovar a operao urbana consorciada poder prever a emisso pelo

    Municpio de quantidade determinada de certificados de potencial adicional de construo, que sero

    alienados em leilo ou utilizados diretamente no pagamento das obras necessrias prpria operao.

    1 Os certificados de potencial adicional de construo sero livremente negociados, mas

    conversveis em direito de construir unicamente na rea objeto da operao.

    2 Apresentado pedido de licena para construir, o certificado de potencial adicional ser utilizado

    no pagamento da rea de construo que supere os padres estabelecidos pela legislao de uso e

    ocupao do solo, at o limite fixado pela lei especfica que aprovar a operao urbana consorciada.

    Observe-se que a quantidade determinada de CEPACs claramente uma

    facilitadora do planejamento e gesto da operao, haja vista que, de antemo, se estipula o

    mximo de volumetria que ser possvel abrigar naquele(s) espao(s), permitindo, portanto

    um dimensionamento adequado das intervenes e, eventualmente, se lhes estipulado um

  • 29

    prazo de validade, at mesmo do horizonte de tempo necessrio para finalizar a operao

    urbana.

    A partir destes comentrios iniciais, apontaremos os aspectos que consideramos mais

    relevantes a serem explorados pelos municpios quando da aplicao do instrumento (que

    denominaremos doravante de OUC) o qual, alis, tem sido previsto na maioria dos Planos

    Diretores elaborados aps o estatuto da Cidadeii.

    2) OUCs na sistemtica do Estatuto da Cidade.

    Como todo instrumento a ser apropriado pela poltica urbana, dentre aqueles regulados

    pelo estatuto ou no, a OUC deriva e guarda estreita relao com as diretrizes gerais

    estampadas no artigo 2, nas quais preferimos enxergar verdadeiramente os princpios de

    direito urbanstico. Em especial, o inciso III, o qual estabelece a cooperao entre os

    governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanizao,

    em atendimento ao interesse social.

    Por outro lado, fica evidente o dilogo estreito que a OUC deve ter com o Plano

    Diretor (PD). Com efeito, e conforme estatudo pelo artigo 42, inciso II, do Estatuto da

    Cidade, caber ao PD estipular a possibilidade de adoo da OUC, determinando, dentro do

    quadro de possibilidades dadas pelo artigo 32, quais sero os objetivos da(s) operaes e,

    eventualmente, avanando mesmo no sentido de detalhar os critrios para sua implementao,

    para quais pores do territrio ou sob quais condies.

    No entanto, o PD no poder (i) alterar o conceito estipulado pelo 1 do artigo 32,

    haja vista que ele deriva e d concretude ao citado inciso III do artigo 2, alm de outros

    princpios que, conjugados s permitiriam alargar, e nunca restringir o alcance do instrumento

    (ii) substituir a lei especfica referida no caput, visto que a ela cabe o papel, com

    exclusividade, de estabelecer as condies peculiares desta interveno. Em outras palavras, e

    ao analisarmos de forma sistemtica a expresso lei especfica no ordenamento jurdico

    nacional, fica patente que tal sempre ocorre quando ela deva ser objeto de processo legislativo

    especfico, bem como tratar de uma nica matriaiii

    , face relevncia ou complexidade, ainda

    que aparentada ou derivada de outra.

  • 30

    Como j comentado anteriormente, a OUC poder apontar para duas (dentre outras)

    possibilidades: a alterao das regras de uso, ocupao, edificao e parcelamento do solo,

    mas tambm para a regularizao, quando tais regras no foram observadas (artigo 32, 2).

    E, seqencialmente, no inciso VI do artigo 33, exige contrapartida dos beneficirios de tal

    flexibilizao ou regularizao. Ora, no h nenhuma referncia ao fato de que tais

    contrapartidas devam ser financeiras; no entanto, se o forem (ou mesmo se puderem ser

    traduzidas economicamente, como, por exemplo, no investimento privado, na gerao de

    novos postos de trabalho, etc.) tal deve se dar no(s) permetro(s) da prpria OUC. Como se

    depreende, tais contrapartidas vo muito alm da outorga onerosa do direito de construir e da

    alterao de uso, pelo menos no sentido com que tais institutos so regulados pelo estatuto da

    Cidade; ainda que no descartadas, a primeira tornaria mais difcil ou complexa a

    implementao dos CEPACs, o que comentaremos adiante.

    Evidentemente, no se est a defender que tal contrapartida, quando as alteraes ou

    regularizaes implicarem, num caso, ou j apontarem, em outro, para qualquer impacto na

    infra-estrutura, no deva ser prestada. Muito ao contrrio. Apenas se est a argumentar que as

    OUC podem ir alm de um simples encadeamento de obras ou servios pblicos.

    Por fim, o artigo 33 exige, do plano da OUC, dentre outros, um Estudo de Impacto de

    Vizinhana (EIV), instrumento regulado pelos artigos 36 a 38 do prprio estatuto. No fica

    claro, primeira vista, se (i) o EIV ser parte integrante do plano, como elemento de

    diagnstico acerca das conseqncias que adviro da OUC s regies lindeiras ou mesmo

    daquelas abrangidas pela operao, ou ainda (ii) o plano dever exigir que se realize o EIV

    sempre quando da implementao das j citadas transformaes urbansticas estruturais

    (obras pblicas ou privadas, mudanas ou regularizao de uso, etc.).

    Inclinamo-nos pela primeira hiptese, pois, caso contrrio, teria o Estatuto estipulado

    uma ligao direta com o artigo 36 o qual, ademais, no faz qualquer referncia

    obrigatoriedade de EIV nas intervenes decorrentes do plano da OUC. Isso no quer dizer,

    evidentemente, que os dois instrumentos no possam ser conjugados, caso a legislao

    municipal assim o estipule; alm disso, o EIV que precede a implementao da OUC deve

    obedincia aos mesmos ditames do artigo 36, pois no se trata de um instrumento distinto ou

    especfico para a OUC.

  • 31

    3) Intervenes especiais: afronta isonomia?

    Em especial junto aos urbanistas e socilogos urbanos, sempre foi viva a polmica

    acerca do potencial excludente que intervenes pontuais no territrio, ainda mais quando

    realizados com viva participao do capital privado. Evidentemente, este s adere a um

    programa que lhe possibilite o exerccio de seu mister, qual seja, o de obter lucro, agregando

    valor e transacionando esse plus.

    Neste sentido, tambm entendemos como feliz a construo dada pelo estatuto OUC,

    quando permite a incorporao de todos os segmentos, econmicos, polticos e sociais,

    interessados ou atingidos, na elaborao e acompanhamento da OUC. No obstante, voltando

    ao artigo 2 e aos princpios de direito urbanstico (incisos I, IX e X) percebemos que uma

    OUC que redunde em segregao e expulso ser claramente ilegal, talvez no em suas

    premissas, mas claramente em seus efeitos.

    Mas a questo que se coloca se de outra ordem: a OUC seria um privilgio, na

    medida em que estabelece regras diversas, eventualmente mais vantajosos, afrontando,

    portanto o princpio da justa distribuio dos nus e benefcios decorrentes do processo de

    urbanizao? Ela poderia caracterizar uma valorizao excessiva, induzida por decises

    polticas margem da funo social da cidade?

    A fim de responder tal questo, fundamental um outro questionamento: quais as

    reas podem e devem sofrer a interveno de uma OUC, sem ferir os princpios relacionados

    acima?

    Com efeito, h de ser um permetro cuja transformao urbanstica estrutural

    repercuta em benefcios para toda cidade, sob qualquer aspecto, seja econmico (com a

    ampliao de possibilidades comerciais ou de prestao de servios), social (ajudando a

    eliminar focos de pobreza ou criminalidade), cultural (preservando o patrimnio paisagstico

    ou histrico) e mesmo urbanstico stricto sensu (facilitando a circulao viria, ou adensando

    uma regio com oferta de infra-estrutura), como j desenvolvemos em outro estudo (BRUNO

    F e PINHO, 2002: 219-229).

    Ao contrrio das BIAs, experincias dos EUA e Canad apontadas no estudo anterior,

    as OUC no permitem a reverso dos tributos arrecadados no(s) permetro(s) para obras ou

  • 32

    inverses financeiras nele(s) prprio(s), sob pena de afronta isonomia tributria, salvo,

    evidentemente, a contribuio de melhoria, dada sua tipificao e quando observado o critrio

    de valorizao decorrente da obra pblica. No obstante, e como decorrncia deste princpio,

    a prpria Constituio Federal veda, em seu artigo 167, inciso III, a vinculao da receita de

    impostos a rgo, fundo ou despesa, com as ressalvas estipuladas por ela prpria (sade,

    educao, etc.)

    Restam portanto, os preos pblicos, dos quais o mais relevante aquele decorrente

    dos CEPACs, que comentaremos a seguir.

    4) Financiamento das OUCs

    Como comentamos acima, ainda que no vedada, a outorga onerosa, como regrada

    pelo Estatuto da Cidade, no se afigura como o melhor instrumento de contrapartida

    financeira, dado que s franqueada quando do interesse manifesto pelo beneficirio. Ademais

    (o que no comentamos e mereceria um estudo especfico) a outorga se presta a uma nica

    situao, qual seja, a da utilizao de coeficientes de aproveitamento mais elevados ou adoo

    de usos no admissveis. Ora, as irregularidades que poderiam ser sanadas mediante a OUC

    podem ir alm disso (recuos, gabaritos, uso de fachadas, ocupao de reas pblicas, etc.).

    Note-se que o artigo 32, 2, inciso II, trata da modificao de ndices e caractersticas de

    parcelamento, uso e ocupao do solo, ao passo que a outorga onerosa se volta

    exclusivamente ampliao do coeficiente de aproveitamento ou adoo de usos diversos

    do previsto na legislao ordinria.

    Por outro lado, no se vislumbram impedimentos adoo de outras fontes de

    financiamento (contribuies voluntrias, multas, etc.), alm dos prprios recursos

    oramentrios, quando patente o interesse social em tais inverses.

    No entanto, o recurso financeiro por excelncia so os CEPACs (certificados de

    potencial adicional de construo).

    Os CEPACs constituem, de fato um tertius genus, como outros figuras trazidas

    lume pelo Estatuto da Cidade. Representam ttulos de crdito pblicos ao portador; portanto

    sua emisso e alienao deve obedecer s regras do direito financeiro, ainda que no

    contabilizados dvida pblica. Mas, da mesma forma que estes, significam uma antecipao

  • 33

    de receita; no obstante, a despesa a ser enfrentada (implementao de obras de infra-estrutura

    no permetro da OUC) j so tambm definidas. Sua alienao deve se dar em oferta pblica

    (leilo); porm, e suas caractersticas os tipificam como ttulos de valores mobilirios, estando

    sujeitos ao registro e regulamentao por parte da Comisso de valores Mobilirios, rgo

    do Ministrio da Fazenda (AFONSO, 2007). No nos alongaremos neste tpico, mas tal

    regulamentao, a nosso ver, s agrega ainda maior transparncia e segurana jurdica s

    transaes com CEPACs .

    Por cautela, h de haver uma modulao correta na emisso de CEPACs, sob pena de

    se substituir a especulao imobiliria (repudiada pelo artigo 2 do Estatuto da Cidade, em

    especial nos incisos VI, e e XI, dentre outros dispositivos) pela especulao financeira. Em

    cada caso, possvel realizar as ofertas pblicas em fraes, eventualmente medida em que

    a infra-estrutura se desenvolve, ou at mesmo estipular um prazo mximo de resgate de tais

    ttulos, na forma de exerccio do direito de construir.

    Mas, queremos crer, tanto quanto instrumento de financiamento, os CEPACs

    constituem excelente ferramenta ao planejamento e gesto, como desenvolveremos a seguir.

    5) Planejamento e gesto

    Com o perfil que lhe foi dado pelo Estatuto da Cidade, o fenmeno operao urbana

    (acrescido, de maneira apropriada, do qualificativo consorciada) se autonomiza, e ganha

    contornos de instrumento voltando implementao daquilo que SILVA (2008: 133)

    denomina de planos urbansticos especiais, ou seja, voltados renovao urbana ou

    implantao de formas diferenciadas de ocupao.

    Mais do que isso, oferece uma oportunidade mpar superao da defasagem

    que, de regra, acontece entre o planejamento urbano e a gesto urbana, de regra gerada

    pela falta de capacidade da administrativa pblica para fazer a implementao da segunda

    conforme os ditames do primeiro. Indo alm, constitui um espao privilegiado para o que se

    pode considerar a escala microlocal (SOUZA, 2003: 108) do planejamento e da gesto, no

    obstante mais eficaz, mas tambm cenrio pedaggico da participao cidad na discusso e

    implementao de solues ao quotidiano.

  • 34

    O Plano da OUC deve ser parte integrante da lei especfica que aprovar sua

    implementao, lembrando que o artigo 33 estabelece seu contedo mnimo. No entanto, nada

    impede que seu contedo se amplie, ora adotando outros instrumentos, como o direito de

    preempo, fundo(s) especficos voltados ao aporte de recursos ou aos dispndios no mbito

    da OUC. Ademais, dada sua caracterstica de plano urbanstico, alguns outros elementos nos

    parecem obrigatrios, por fora de dispositivos esparsos do prprio estatuto da Cidade e da

    legislao correlata.

    Dentre eles, destacamos a necessidade de um diagnstico seguro da situao que

    enseja a adoo do instrumento. Ainda que no integre o corpo da lei especfica, o processo

    (administrativo e mesmo legislativo) que lhe antecede se caracteriza como ato administrativo.

    Como tal, constitui dele parte integrante a fundamentao, de fato e de direito, como

    imperativo verificao da legalidade, da convenincia e da oportunidade do ato (DI

    PIETRO, 2007:201). Tal fundamentao, no campo das normas urbansticas, se concretiza

    como a anlise da situao que justifica a implantao de uma OUC, como forma mais eficaz

    de alcanar os objetivos propugnados pelo Plano Diretor, num especfico contexto territorial,

    social ou econmico.

    Como j comentado, o volume de CEPACs (ou de rea que poder ser edificada

    mediante o pagamento com tais ttulos) autorizados deve guardar relao lgica com tal

    planejamento. Em outras palavras, este ser limitado ao total de rea construda que ser

    admissvel para o permetro da operao, ainda que eventualmente a eles se somem os dficits

    de coeficiente de aproveitamento permitidos pela legislao ordinria, mas no

    implementados at um certo momento pelos proprietrios. Mesmo com tais nuan