ELEMENTOS VISUAIS DE TRANSGRESSÃO DE GÊNERO E SEXUALIDADE EM
VILÕES DE ANIMAÇÕES LONGA METRAGEM DOS ESTÚDIOS DISNEY
Luís Paulo Piassi - Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São
Paulo (EACH/USP)
Caynnã de Camargo Santos - Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade
de São Paulo (EACH/USP)
1. INTRODUÇÃO
Desde seu surgimento, a enunciação fílmica caracteriza-se como sendo uma forma de
manifestação cultural capaz de fascinar crianças e adultos através da ação concomitante entre
som, imagem e texto. Com o desenvolvimento e consolidação no decorrer da primeira metade
do século XX, os filmes tornaram-se além de produtos de entretenimento extremamente
presentes na vida cotidiana, objetos culturais capazes de retratar a realidade e difundir valores
e ideologias, figurando assim como instâncias veiculadoras e criadoras de novos sentidos.
Apesar da grande atenção dada por pesquisadores às produções cinematográficas em
geral, os filmes de animação longa metragem (um dos gêneros cinematográficos de maior
aceitação por parte do público), permaneceram durante muito tempo relegados a subprodutos
da Indústria Cultural, sendo assim marginalizados por estudiosos da cultura. A partir de
propostas inovadoras tais quais as da Escola dos Estudos Culturais, que propõe uma visão
mais democrática acerca da cultura, ressaltando a importância da análise das mais diversas
formas de expressão cultural visando a compreensão dos fenômenos vivenciados pela
sociedade, tal gênero passou a despertar atenção do meio acadêmico, transformando-se em
objeto de pesquisa científica. Essa virada deveu-se em grande parte ao reconhecimento
acadêmico da importância dos filmes infantis de animação enquanto instrumentos de
educação moral não-formal (SABAT, 2003), capazes de veicular discursos ideológicos acerca
de padrões estéticos e de conduta, construindo assim o senso de normatividade social, ou seja,
apresentando ao público infantil os padrões aceitos e não aceitos pela sociedade em um
determinado momento.
No presente trabalho, iremos abordar o fenômeno cultural de comunicação, através das
mídias, de discursos hegemônicos que prescrevem normas de gênero e sexualidade restritivas
e que reiteram preconceitos tradicionais em relação a determinados grupos. Entendemos aqui
as identidades de gênero socialmente aceitas e a heterossexualidade não como elementos
naturais, mas sim como condições histórica e culturalmente construídas. Dessa forma,
concebemos que diferentes mecanismos são utilizados constantemente na tentativa de garanti-
las como condições normativas. Em meio a tantos mecanismos, tomaremos como objeto de
análise os filmes de animação longa metragem dos estúdios Disney, observando
especificamente o processo pelo qual os filmes infantis veiculam discursos ideológicos que
atribuem teor de negatividade a identidades de gênero e sexuais1 alternativas, através da
atribuição à figura do vilão - alegoricamente representante do “socialmente indesejado” - de
elementos que remetem à homossexualidade ou à ambigüidade sexual.
A homofobia é um fenômeno particularmente em voga e que se opõe radicalmente aos
discursos políticos e culturais da pós-modernidade, baseados na emancipação individual e na
promoção da diversidade (LIPOVETSKY, 2005). Neste cenário pós-moderno, as mídias
atuam diretamente sobre as definições e atitudes do indivíduo acerca do que significa ser
masculino ou feminino e seu senso de sexualidade, principalmente quando tratamos de
artefatos culturais direcionados ao público infantil. As imagens expostas pelos meios de
comunicação contribuem para a elaboração de visões de mundo e dos valores mais profundos
da criança, demonstrando à mesma quais grupos sociais detêm poder e quais são desprovidos
do mesmo, assim como demarcando claramente espaços socialmente aceitos e espaços de
negação (KELLNER; 2011 p.7). Sendo assim, vislumbramos a importância social de estudos
que buscam analisar a presença, em artefatos culturais centrais para a cultura popular
contemporânea e para o público infantil em específico, de discursos que atuam de forma a
contribuir com a marginalização de determinados grupos e identidades.
2. IDENTIDADES, MÍDIAS E OS ESTUDOS CULTURAIS
De acordo com Nancy Fraser (1997), a partir da década de 1960 vivenciou-se o
movimento de transposição das temáticas culturais para os espaços de centralidade nas
discussões políticas e sociais, de forma que questões de gênero, reconhecimento, sexualidade,
religiosas, étnicas e estéticas passaram a suplantar o antigo aparato unicamente econômico
com o qual estudiosos abordavam os mecanismos de dominação social. 1 Apesar de intimamente relacionadas, as identidades de gênero e sexuais não são uma “coisa” única. Como
aponta Guacira Louro (1997), enquanto a identidade de gênero refere-se à identificação histórica e social dos
sujeitos, que se reconhecem como femininos ou masculinos, a identidade sexual diz respeito às diversas formas
pelas quais os indivíduos vivenciam seus desejos corporais: com parceiros do mesmo sexo ou não, sozinhos, etc.
Como parte desse processo pode-se apontar o surgimento, no mesmo período, de
novas propostas teóricas e políticas pautadas pela ampliação do conceito de cultura. Dentre
tais propostas destacam-se os Estudos Culturais, que desde seu surgimento enquanto campo
de estudos organizado2, a partir da fundação do Centre for Contemporary Cultural Studies em
1964, têm atribuído especial relevância às práticas midiáticas de representação de classe,
gênero, raça, etnia e nacionalidade, tomando-as enquanto objetos de estudo centrais para o
entendimento das dinâmicas e conflitos entre discursos dominantes e marginais.
Como aponta Maria Manuel Baptista (2009, p.24), ao analisar as principais linhas de
desenvolvimento da investigação em Estudos Culturais, os estudos relativos aos modos de
construção política e social das “identidades” - concernentes às questões de nação, raça,
etnicidade, sexo, gênero, etc - têm sido das temáticas mais presentes nos últimos anos no
campo dos estudos da cultura, originando uma “importante massa de resultados de grande
qualidade e importância fora e dentro das academias” (idem).
O crescimento da importância atribuída às temáticas de gênero e sexualidade dentro do
campo dos Estudos Culturais remonta a meados da década de 70, sendo este processo
profundamente influenciado pela expansão do movimento feminista para além de seu sentido
reivindicatório, não só exigindo a igualdade de direitos políticos e sociais, mas constituindo-
se também em crítica teórica (ESCOSTEGUY, 2008). Como aponta Stuart Hall (1997), os
estudos de gênero introduziram aspectos totalmente novos no campo dos Estudos Culturais ao
questionarem a explicação dos comportamentos de homens e mulheres com base no
determinismo biológico. Sob a nova perspectiva das relações de gênero, o importante é o
entendimento dos processos de construção histórica, lingüística e social dos papéis atribuídos
a homens e mulheres, meninos e meninas.
Visando reconstituir uma narrativa histórica acerca dos interesses e temáticas
predominantes no campo dos Estudos Culturais, Escosteguy (2008) aponta a segunda metade
da década de 70 como o período a partir do qual se percebe a importância crescente dos meios
de comunicação de massa, vistos não apenas como entretenimento, mas como aparelhos
ideológicos centrais para o entendimento do processo de construção de identidades, sejam
2 Apesar de utilizarmos o termo “campo de estudos organizado”, vale ressaltar o caráter diverso, heterogêneo e
muitas vezes conflitante dos Estudos Culturais, aproximando-o mais de uma noção de “campo gravitacional” do
que da idéia de uma disciplina academicamente “policiada”, com paradigmas consensualmente estabelecidos
(BAPTISTA, 2009).
estas de gênero, sexuais, classe, etc. A visão dos estudiosos da cultura acerca das inter-
relações entre mídias e identidades é explicitada por Kellner (2011, p.7):
[…] media provides materials out of which we forge our very identities: […] our
notion of what it means to be male or female; our sense of class, of ethnicity and
race, of nationality, of sexuality. […] Media images help shape our view of the
world and our deepest values: what we consider good or bad, positive or negative,
moral or evil. Media stories provide the symbols, myths, and resources through
which we constitute a common culture and through the appropriation of which we
insert ourselves into this culture. Media spectacles demonstrate who has power
and who is powerless, who is allowed to exercise force and violence, and who is
not.
Kellner (2001) aponta para a existência nas sociedades de consumo (posteriores à
Segunda Guerra) de um processo de identificação mediado pelas produções de massa da
mídia contemporânea. Para tanto, primeiramente o autor contrapõe a noção essencialista e
racionalista de identidade, própria da modernidade, de uma noção construtivista, mais
adequada para o cenário pós-moderno. Kellner (2001, p. 296) coloca que as identidades do
sujeito moderno eram pautadas por uma noção clara do “eu” centrado, de forma a se
mostrarem relativamente substanciais e fixas, sendo elaboradas com base em grupos
previamente definidos de papéis sociais com os quais o indivíduo poderia se identificar.
Já na pós-modernidade, a problemática da identidade é radicalizada. Por conta das
grandes mudanças e o aumento das complexidades vivenciadas pelas sociedades, as
identidades tornam-se cada vez mais instáveis e frágeis. Nas sociedades da informação e da
mídia, o processo constante de formulação e reformulação das identidades do individuo se dá
de forma dialógica, entre sujeitos e os meios de comunicação de massa que o cercam. Para
Kellner, a cultura da mídia - neste cenário pós-moderno de fragmentação e instabilidade
identitária (HALL, 1997) -, é uma fonte eficiente de novas identidades, substituindo espaços
tradicionais de ancoragem do indivíduo como a nação, religião, etc. Dessa forma, o autor
afirma ainda o caráter educativo e normativo da mídia que, ao fornecer modernas fábulas
morais, apresenta “qual é o comportamento certo e o errado, o que deve ou não ser feito, o
que é ou não „a coisa certa‟” (KELLNER, 2001, p.212)
Tendo em mente a extrema importância dos meios de comunicação de massa no
processo de ensinar papéis sociais e posições-de-sujeito na contemporaneidade, focamos
nossas análises nos filmes infantis de animação longa metragem produzidos pelos estúdios
Disney. Tal opção se deu devido a diversos fatores, dentre eles o grande apelo que estes
exercem sobre o público infantil. Outro fator importante refere-se ao fato de tais instrumentos
de “pedagogia cultural” anularem em suas construções cinematográficas questões complexas,
como diferenças culturais e questões sociais, apresentando uma visão de mundo conservadora
que pode influir de forma negativa sobre o processo de constituição da identidade da criança e
suas impressões acerca de determinados grupos (GIROUX, 1995, p.52). Aprofundaremos
nossas discussões acerca destes temas a seguir.
3. O CINEMA E O PÚBLICO INFANTIL: Novas máquinas de ensinar
De acordo com Sabat (2003 p.27), as animações infantis caracterizam-se como
importantes espaços perpassados pelas relações de poder, onde ocorrem “lutas e contestações
dos processos de significação produzidos pelo conhecimento hegemônico”. Para Giroux
(1995), tais artefatos culturais contribuem significativamente com o processo de constituição
de identidades e posições-de-sujeito, sendo estas elaboradas a partir de discursos sobre raça,
classe, gênero e sexualidade presentes nas animações, em um processo que o autor chama de
“pedagogia da inocência”. Giroux acentua ainda o papel das animações enquanto
instrumentos de aprendizagem persuasiva junto ao público infantil. Segundo o autor,
É desnecessário dizer que a importância dos filmes animados opera em muitos
registros, mas um dos mais persuasivos é o papel que eles exercem como novas
“máquinas de ensinar”. (...) Esses filmes inspiram no mínimo tanta autoridade
cultural e legitimidade para ensinar papéis específicos, valores e ideais quanto
locais mais tradicionais de aprendizagem, tais como escolas públicas, instituições
religiosas e a família. (GIROUX, 1995, p. 50)
Observada assim a natureza “eminentemente pedagógica” dos filmes infantis, cabe
problematizarmos os conteúdos expostos por tais artefatos culturais. No tocante
especificamente aos discursos sobre gênero e sexualidade, que caracterizam as preocupações
centrais do presente estudo, observamos um claro tradicionalismo, que atua de forma a
reforçar normas socialmente aceitas, sobre as quais são sustentados preconceitos. Como
aponta Sabat (2003, p.14):
[...] os filmes infantis têm cumprido a função de ensinar modos de ser masculino e
feminino, de reiterar a heterossexualidade como norma e, desse modo, tornar
anormal o que não se enquadra nesse campo.
Ao tratarmos de filmes infantis, invariavelmente nos vêm à mente as produções
Disney, objetos culturais quase onipresentes no imaginário infantil que, revestidos de
autoridade e legitimidade, ensinam o que é supostamente “bom, correto e justo” desde o início
do século XX a gerações de crianças em todo o mundo.
As animações Disney constituem-se em sua maioria de narrativas de romances
invariavelmente heterossexuais, onde as definições de “masculino” e “feminino” são
apresentadas de forma clara e restritiva, desvalorizando identidades de gênero e sexuais que
não se reconhecem em um destes pólos (COCA, 2000). Estudos anteriores encontraram nas
animações Disney a forte prevalência de estereótipos de gênero, sendo mulheres retratadas
como submissas e voltadas para o lar, enquanto personagens masculinos são apresentados
como sociáveis e provedores (WIERSMA, 2001; BERES, 1999). No que diz respeito à
sexualidade, estudos mostram que as animações dos estúdios Disney tendem a representar
negativamente transgressores de gênero, relacionando a presença de comportamentos
tradicionalmente atribuídos ao sexo oposto com vilania.
3.1.Disney e Homonegativismo:“Nobody likes a sissy” 3
Diversos estudos analisaram a presença de “homonegativismo” nas animações dos
estúdios Disney. Li-Vollmer e LaPointe (2003) definem o termo enquanto um processo de
representação de homossexuais como estereotipados, maus e unidimensionais, criando
imagens negativas acerca do grupo no imaginário do público.
Devido à imagem tradicional dos estúdios Disney enquanto repositório dos bons-
costumes e valores éticos próprios da classe-média branca e heterossexual norte-americana
(GIROUX,1995), em suas animações longa metragem os personagens transgressores de
padrões de gênero não são diretamente identificados como homossexuais, porém
performatizam o gênero de forma a, como definido pelos trabalhos vinculados à Teoria
Queer 4 , desestabilizar as normas socialmente aceitas. Enquanto heróis e heroínas são
apresentados como “tipos ideais” de masculinidade e feminilidade, há elementos visuais e de
3 RUSSO, V. The celluloid closet. New York: Harper & Row. 1987
4 De forma geral, a Teoria Queer trata-se de uma corrente de pesquisa acadêmica originada na Inglaterra e
Estados Unidos na década de 1990, que busca transpor as teorias baseadas na oposição homens/mulheres e
também aprofundar os estudos sobre minorias sexuais (gays, lésbicas, transgêneros), dando maior atenção aos
processos sociais amplos que reforçam a heterossexualidade como norma.
conduta que não condizem com os papéis de gênero tradicionalmente aceitos em quase todos
os vilões dos filmes Disney (COCA, 2000). De acordo com a mesma autora, existe uma
tendência dos anti-heróis apresentarem características visuais e de comportamento
normalmente atribuídas ao gênero oposto ou super-representarem seus papéis de gênero.
Diversos outros estudos acentuaram o potencial de determinados personagens Disney para
uma leitura queer (BYRNE e MCQUILLAN, 1999; GRIFFIN, 2000).
Tratando especificamente de vilões do gênero masculino (foco de análise deste
estudo), pesquisas sugeriram a existência de um processo de criação do arquétipo de “vilão
afeminado5”. Os anti-heróis Disney apresentam características comportamentais e estéticas
socialmente atribuídas às mulheres, como sofisticação, fraqueza física, estruturas faciais
femininas, indumentárias e gestualidade afeminada, sugerindo assim a homossexualidade dos
mesmos.
No presente estudo, norteados pelos pressupostos pós-estruturalistas que privilegiam a
instabilidade de sentido e a centralidade do discurso para entendimento das relações sociais,
iremos nos dedicar à análise dos vilões Jafar e Scar, anti-heróis das animações longa
metragem dos estúdios Disney Aladdin (1992) e O Rei Leão (1994), respectivamente.
4. METODOLOGIA
Visando analisar o processo de desvalorização de identidades de gênero e sexuais
transgressoras dos padrões socialmente aceitos com base na caracterização visual dos vilões
Disney, empregamos a metodologia de análise de discurso, mais especificamente a
abordagem da semiótica discursiva de linha francesa, derivada dos trabalhos de Greimas
(1973).
Analisamos os personagens Jafar e Scar, vilões das animações longa metragem
Aladdin (1992) e O Rei Leão (1994), respectivamente. A escolha de dois personagens
masculinos se deve ao fato das produções Disney mais recentes terem evitado antagonistas do
gênero feminino (LI-VOLLMER; LAPOINTE, 2003). Dessa forma, os resultados alcançados
no presente estudo serão mais representativos dos padrões gerais apresentados pelos vilões
Disney nas últimas décadas. Além disso, analisamos apenas a homossexualidade masculina,
5 Tradução livre do termo “villain-as-sissy”, empregado por Li-Vollmer e LaPointe (2003) para nomear tal
fenômeno.
dada a especial desvalorização social da mesma, em comparação com a homossexualidade
feminina (CARRARA; SIMÕES, 2007).
Cabe ressaltar ainda que optamos propositalmente por analisar um personagem
“humano” (Jafar) e um personagem “animal” (o leão Scar), buscando assim observar a
permanência de padrões de feminilidade nos diversos formatos de vilões Disney.
A semiótica greimasiana considera que todo texto pode ser analisado a partir de três
níveis: discursivo, narrativo e fundamental, sendo que a articulação entre estes níveis dá
origem ao chamado “percurso gerativo de sentido”.
No nível discursivo, considerado mais superficial e diretamente atingível pelo leitor,
ocorre a actorialização, a espacialização e a temporalização (PIASSI, 2012), sendo que tais
elementos caracterizam a materialização do projeto narrativo do texto. Como aponta Piassi
(2011), o nível discursivo trata-se do mais concreto e também do mais complexo dentre os
três níveis do texto.
No nível narrativo, mais abstrato e profundo que o anterior, há a construção de um
modelo narrativo no qual um actante busca algo de valor. O actante não se refere à figura do
personagem, sendo que este último trata-se de uma materialização específica, ao passo que o
actante pode ser qualquer agente que realiza ou sofre uma ação.
Finalmente, o nível fundamental do discurso é o mais abstrato dentre todos. Nele são
consideradas as aproximações e afastamentos entre o sujeito e seu objeto de valor,
considerando as oposições de sentido profundas do texto e o trajeto entre os pólos dessas
dicotomias (PIASSI, 2011).
No presente estudo, enfatizamos a análise das características visuais dos vilões, sendo
estes elementos mais diretamente relacionados com o nível discursivo do texto.
Aprofundamo-nos em três dimensões do discurso: (1) os figurinos dos personagens; (2) seus
códigos de gestualidade e; (3) suas conformações físicas.
Os figurinos dos personagens caracterizam uma importante dimensão do discurso. Os
trajes de indumentária, de acordo com Barthes (2006), constituem uma sintagma, ou seja, uma
articulação de elementos que visam expressão. A opção do autor por determinadas peças e
não outras, em um conjunto amplo de vestimentas possíveis, mostra que suas escolhas não são
arbitrárias, reforçando a noção de que a opção por determinados trajes é parte integrante da
mensagem que se pretende passar.
No âmbito da análise gestual, temos que como os gestos utilizados por personagens
não são aleatórios, é possível perceber que, assim como o figurino e os atributos físicos, a
gestualidade é pensada visando transmitir conceitos sobre o personagem. Como coloca
Greimas, “a gestualidade estabelece diferenças entre culturas, sexos e grupos sociais,
funcionando como uma dimensão semiótica da cultura” (BARROS, 2010, p. 2-5). Barros
(2010) distingue duas formas de gestualidade: a práxis gestual e a comunicação gestual. No
âmbito do enunciado, tanto a práxis quanto a comunicação gestual são vistas como processos
narrativos. Dessa forma, a gestualidade prática caracteriza-se como uma tradução figurativa
de uma narração. Por outro lado, a comunicação gestual se mostra como uma tradução
figurativa das relações de comunicação ou manipulação entre sujeitos e de suas respectivas
interações (BARROS, 2010, p. 2-5).
Por fim, no tocante à aparência física dos personagens, temos que há um potencial
simbólico em suas fisionomias e atributos. No caso das animações longa metragem, os
autores têm uma grande liberdade na escolha de atributos físicos dos personagens visando
comunicar determinados conceitos sobre estes. Isso se deve ao fato de não ser necessário
limitar-se a fisionomias estritamente verossímeis e humanas nas animações, de forma que as
intencionalidades do autor na construção física dos personagens tornam-se ainda mais
explícitas e seus corpos, ainda mais carregados de significados.
5. ANÁLISE DOS PERSONAGENS
5.1. Conformação Física
A transgressão de gênero na caracterização visual de ambos os vilões pode ser
observada através de suas características físicas, que evocam padrões tradicionais de beleza
feminina. Contrastando com a estrutura facial larga e retilínea dos heróis, os antagonistas
apresentam maxilares e mandíbulas estreitos, rostos finos e queixos pontiagudos. As
características faciais afeminadas dos vilões são acentuadas através do uso de cores e
sombras, que em conjunto atuam de forma a aparentar uso de cosméticos. Tanto Jafar quanto
Scar apresentam pálpebras coloridas em roxo e sobrancelhas bem delineadas, elementos
encontrados apenas nos demais personagens femininos das animações (Ver Figura 1).
Figura 1 – A caracterização facial dos vilões Scar e Jafar.
O personagem Scar apresenta ainda uma espécie de “penteado” que difere dos padrões
tradicionalmente atribuídos a indivíduos do sexo masculino. Sua juba apresenta grande
movimento e fluidez, ao passo que as jubas de Mufasa e Simba, os heróis da trama, quase não
se movimentam.
As demais partes do corpo dos vilões também conotam formas afeminadas. Jafar
apresenta corpo alto e esbelto, com graciosos membros longos e cintura fina, em consonância
com os atuais padrões de beleza feminina. Um elemento importante a ser salientado diz
respeito às mãos dos antagonistas. No caso de Jafar, temos mãos longas e pulsos finos. Como
nenhum dos personagens de Aladdin têm unhas, os animadores atribuíram ao vilão dedos
pontudos que sugerem unhas longas. Por se tratar de um vilão animal, Scar não tem mãos,
porém as unhas de suas patas são excepcionalmente longas e mantêm-se à mostra durante
todo o tempo, em oposição às garras dos heróis Simba e Mufasa, mostradas apenas em
situações de luta.
A estrutura corpórea de ambos os personagens estudados é particularmente magra, em
oposição aos corpos robustos dos protagonistas masculinos. Jafar, em especial, é uma figura
extremamente franzina, sugerindo uma fraqueza física tradicionalmente relacionada a
estereótipos femininos.
5.2. Figurinos
Por se tratar de um personagem animal, Scar não apresenta vestimentas, de forma que
a dimensão de indumentária, em seu caso, está indissociavelmente relacionada às suas
características corporais, estas quais já analisadas na seção anterior.
No concernente às vestimentas de Jafar (Figura 2), observamos roupas longas,
similares a vestidos femininos, em oposição à indumentária mais simples e inequivocamente
masculina do herói Aladdin. Destacamos ainda o fato de Jafar ser o único personagem
masculino a não usar calças, um dos elementos mais tradicionalmente relacionados à
masculinidade.
Figura 2 – As vestimentas de Jafar.
A presença de uma exuberante capa e a impecável ornamentação do chapéu sugerem
seu zelo estético e uma inerente vaidade, características estas tradicionalmente atribuídas às
mulheres, contribuindo assim para a materialização, no nível discursivo, de sua sexualidade
ambígua.
5.3. Gestualidade
Os movimentos corporais e posições de ambos os vilões comunicam suas
feminilidades transgressoras. Hollander (1998 apud LI-VOLLMER; LAPOINTE, 2003)
aponta em seu estudo acerca de performances de gênero na televisão que a gestualidade das
mulheres se dá através de movimentos contidos e sutis. Tanto Jafar quanto Scar
movimentam-se de forma contida, sendo que o anti-herói de Aladdin raramente gesticula de
forma a movimentar seus ombros. As partes inferiores de seu corpo também apresentam
movimentos mínimos, escondidos sob suas vestes longas.
A postura de Jafar é ereta, com costas retas e ombros para trás, se assemelhando ao
posicionamento corporal tradicional sugerido pelas regras de etiqueta feminina.
Scar apresenta o mesmo padrão de movimentação suave, contrastando com os gestos
firmes e expansivos dos protagonistas masculinos. É interessante observarmos que para
comunicar uma imagem afeminada, ao sentar Scar mantém seus ombros eretos e
cuidadosamente cruza as patas dianteiras. (ver Figura 3)
Figura 3 – A gestualidade afeminada de Scar ao sentar.
As partes do corpo mais expressivas em ambos os personagens são suas mãos ou
patas. Os antagonistas apresentam mãos moles, gesticulando sem firmeza nos pulsos, em
oposição aos gestos dos protagonistas.
6. CONCLUSÃO
Os resultados do estudo apontam para a existência de uma tendência nas animações
Disney à representação do vilão enquanto transgressor dos padrões tradicionais de
masculinidade, apresentando em suas caracterizações visuais elementos que sugerem traços
de homossexualidade ou sexualidade ambígua. As vestimentas, corpos e gestos dos vilões de
sexo masculino contribuem para a construção do arquétipo de “vilão-afeminado” (LI-
VOLLMER; LAPOINTE, 2003)
Com base nestes resultados, podemos argumentar que as animações Disney atuam de
forma a reiterar o negativismo atribuído à homossexualidade ao relacioná-la com os
antagonistas das tramas. Podemos afirmar ainda que as animações estudadas tomam como
parâmetros para “afeminar” seus vilões, estereótipos femininos. Dessa forma, ao sugerir
fraqueza física e excesso de vaidade enquanto características próprias de mulheres, os filmes
reforçam uma imagem estereotipada de feminilidade que, em última instância, contribui com
o mantimento de hierarquias sociais que privilegiam qualidades masculinas.
O presente estudo teve como um de seus objetivos centrais motivar análises mais
profundas das animações infantis, em detrimento de visões acríticas que usualmente tomam
tais artefatos culturais enquanto construções inocentes e essencialmente benéficas para a
formação das crianças. Como coloca Giroux (1995 apud KINDEL, 2003), tendo em vista o
caráter pedagógico das animações Disney, cabe aos estudiosos da cultura questionar os
significados que estas produzem, os papéis que legitimam e as narrativas que constróem. Os
presentes resultados apontam para uma potencial influencia negativa desses artefatos culturais
junto ao público infantil, em especial no processo de construção de visões acerca de
identidades de gênero alternativas.
Por fim, salientamos a importância de estudos críticos futuros dedicados à análise de mais
personagens - em especial antagonistas femininas -, buscando assim observar de maneira mais
ampla se o homonegativismo permeia as demais produções dos estúdios Disney.
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