CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM LITERATURA -‐ MÓDULO II – Formas do Lírico no Romantismo
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I INVOCAÇÃO AO ANJO DA POESIA A VOZ DE MINHA ALMA Quando da noite o véu caliginoso Do mundo me separa, E da terra os limites encobrindo, Vagar deixa minha alma no infinito, Como um subtil vapor no aéreo espaço, Uma angélica voz misteriosa Em torno de mim soa, Como o som de uma frauta harmoniosa, Que em sagradas abóbadas reboa. Donde vem esta voz? — Não é de virgem, Que ao prazo dado o bem-‐amado aguarda, E mavioso canto aos céus envia; Esta voz tem mais grata melodia! Donde vem esta voz? — Não é dos Anjos, Que leves no ar adejam, E com hinos alegres se festejam, Quando uma alma inocente Deixa do barro a habitação escura, E na sidérea altura, Como um astro fulgente Penetra de Adonai o aposento; A voz que escuto tem mais triste acento.
Como d’ara turícrema se exalça Nuvem de grato aroma que a circunda, E lenta vai subindo Em faixas ondeantes, Nos ares espargindo Partículas fragrantes, E sobe, e sobe, até no céu perder-‐se, Tal de mim esta voz parece erguer-‐se. Sim, esta voz do peito meu se exala! Esta voz é minha alma que se espraia, É minha alma que geme, e que murmura, Como um órgão no templo solitário; Minha alma, que o infinito só procura, E em suspiros de amor a seu Deus se ala. Como surdo até hoje Fui eu a tão angélica harmonia? Porventura minha alma muda esteve? Ou foram porventura meus ouvidos Até hoje rebeldes? Perdoa-‐me, oh meu Deus, eu não sabia! Eram Anjos do céu que me inspiravam, E outras vozes meus lábios modulavam. (...) (Gonçalves de Magalhães. Suspiros poéticos e saudades, 1836)
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O Canto do Guerreiro
I Aqui na floresta Dos ventos batida, Façanhas de bravos Não geram escravos, Que estimem a vida Sem guerra e lidar. -‐ Ouvi-‐me, Guerreiros. -‐ Ouvi meu cantar.
II Valente na guerra Quem há, como eu sou? Quem vibra o tacape Com mais valentia? Quem golpes daria Fatais, como eu dou? -‐ Guerreiros, ouvi-‐me; -‐ Quem há, como eu sou?
III Quem guia nos ares A frecha imprumada, Ferindo uma presa, Com tanta certeza, Na altura arrojada Onde eu a mandar? -‐ Guerreiros, ouvi-‐me, -‐ Ouvi meu cantar.
IV Quem tantos imigos Em guerras preou? Quem canta seus feitos Com mais energia? Quem golpes daria Fatais, como eu dou? -‐ Guerreiros, ouvi-‐me: -‐ Quem há, como eu sou?
V Na caça ou na lide, Quem há que me afronte?! A onça raivosa Meus passos conhece, O imigo estremece, E a ave medrosa Se esconde no céu. -‐ Quem há mais valente, -‐ Mais destro do que eu?
VI Se as matas estrujo Co os sons do Boré, Mil arcos se encurvam, Mil setas lá voam, Mil gritos reboam, Mil homens de pé Eis surgem, respondem Aos sons do Boré! -‐ Quem é mais valente,
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-‐ Mais forte quem é?
VII Lá vão pelas matas; Não fazem ruído: O vento gemendo E as malas tremendo E o triste carpido Duma ave a cantar, São eles -‐ guerreiros, Que faço avançar.
VIII E o Piaga se ruge No seu Maracá, A morte lá paira Nos ares frechados, Os campos juncados De mortos são já: Mil homens viveram, Mil homens são lá.
IX E então se de novo Eu toco o Boré; Qual fonte que salta De rocha empinada, Que vai marulhosa, Fremente e queixosa, Que a raiva apagada De todo não é,
Tal eles se escoam Aos sons do Boré. -‐ Guerreiros, dizei-‐me, -‐ Tão forte quem é? (Gonçalves Dias. Primeiros cantos, 1847)
O Canto do Índio Quando o sol vai dentro d'água Seus ardores sepultar, Quando os pássaros nos bosques Principiam a trinar; Eu a vi, que se banhava... Era bela, ó Deuses, bela, Como a fonte cristalina, Como luz de meiga estrela. Ó Virgem, Virgem dos Cristãos formosa, Porque eu te visse assim, como te via, Calcara agros espinhos sem queixar-‐me, Que antes me dera por feliz de ver-‐te. O tacape fatal em terra estranha Sobre mim sem temor veria erguido; Dessem-‐me a mim somente ver teu rosto Nas águas, como a lua, retratado. Eis que os seus loiros cabelos Pelas águas se espalhavam,
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Pelas águas, que de vê-‐los Tão loiros se enamoravam. Ela erguia o colo ebúrneo, Por que melhor os colhesse; Níveo colo, quem te visse, Que de amores não morresse! Passara a vida inteira a contemplar-‐te, Ó Virgem, loira Virgem tão formosa, Sem que dos meus irmãos ouvisse o canto, Sem que o som do Boré que incita à guerra Me infiltrasse o valor que m'hás roubado, Ó Virgem, loira Virgem tão formosa. As vezes, quando um sorriso Os lábios seus entreabria, Era bela, oh! mais que a aurora Quando a raiar principia. Outra vez -‐ dentre os seus lábios Uma voz se desprendia; Terna voz, cheia de encantos, Que eu entender não podia. Que importa? Esse falar deixou-‐me n'alma Sentir d'amores tão sereno e fundo, Que a vida me prendeu, vontade e força Ah! que não queiras tu viver comigo, Ó Virgem dos Cristãos, Virgem formosa!
Sobre a areia, já mais tarde, Ela surgiu toda nua; Onde há, ó Virgem, na terra Formosura como a tua!? Bem como gotas de orvalho Nas folhas de flor mimosa, Do seu corpo a onda em fios Se deslizava amorosa. Ah! que não queiras tu vir ser rainha Aqui dos meus irmãos, qual sou rei deles! Escuta, ó Virgem dos Cristãos formosa. Odeio tanto aos teus, como te adoro; Mas queiras tu ser minha, que eu prometo Vencer por teu amor meu ódio antigo, Trocar a maça do poder por ferros E ser, por te gozar, escravo deles. (Gonçalves Dias. Primeiros cantos, 1847)
Delírio Quando dormimos o nosso espírito vela. Ésquilo A noite quando durmo, esclarecendo As trevas do meu sono, Uma etérea visão vem assentar-‐se Junto ao meu leito aflito! Anjo ou mulher? não sei. -‐ Ah! se não fosse Um qual véu transparente, Como que a alma pura ali se pinta
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Ao través do semblante, Eu a crera mulher... -‐ E tentas, louco, Recordar o passado, Transformando o prazer, que desfrutaste, Em lentas agonias?! Visão, fatal visão, por que derramas Sobre o meu rosto pálido A luz de um longo olhar, que amor exprime E pede compaixão? Por que teu coração exala uns fundos, Magoados suspiros, Que eu não escuto, mas que vejo e sinto Nos teus lábios morrer? Por que esse gesto e mórbida postura De macerado espírito, Que vive entre aflições, que já nem sabe Desfrutar um prazer? Tu falas! tu que dizes? este acento, Esta voz melindrosa, Noutros tempos ouvi, porém mais leda; Era um hino d'amor. A voz, que escuto, é magoada e triste, -‐ Harmonia celeste, Que à noite vem nas asas do silêncio Umedecer as faces Do que enxerga outra vida além das nuvens. Esta voz não é sua; É acorde talvez d'harpa celeste, Caído sobre a terra!
Balbucias uns sons, que eu mal percebo, Doridos, compassados, Fracos, mais fracos; -‐ lágrimas despontam Nos teus olhos brilhantes... Choras! tu choras!... Para mim teus braços Por força irresistível Estendem-‐se, procuram-‐me; procuro-‐te Em delírio afanoso. Fatídico poder entre nós ambos Ergueu alta barreira; Ele te enlaça e prende... mal resistes... Cedes enfim. . . acordo! Acordo do meu sonho tormentoso, E choro o meu sonhar! E fecho os olhos, e de novo intento O sonho reatar. Embalde! porque a vida me tem preso; E eu sou escravo seu! Acordado ou dormindo, é triste a vida Dês que o amor se perdeu. Há contudo prazer em nos lembrarmos Da passada ventura, Como o que educa flores vicejantes Em triste sepultura. (Gonçalves Dias. Primeiros cantos, 1847)
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SONETO Pálida, a luz da lâmpada sombria, Sobre o leito de flores reclinada, Como a lua por noite embalsamada, Entre as nuvens do amor ela dormia! Era a virgem do mar! na escuma fria Pela maré das águas embalada... — Era um anjo entre nuvens d’alvorada Que em sonhos se banhava e se esquecia! Era mais bela! O seio palpitando... Negros olhos as pálpebras abrindo... Formas nuas no leito resvalando... Não te rias de mim, meu anjo lindo! Por ti — as noites eu velei chorando Por ti — nos sonhos morrerei sorrindo! (Álvares de Azevedo. Lira dos vinte anos) LEMBRANÇA DE MORRER No more! O never more! SHELLEY Quando em meu peito rebentar-‐se a fibra, Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nem uma lágrima Em pálpebra demente. E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento. Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poento caminheiro... Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro... Como o desterro de minh’alma errante, Onde fogo insensato a consumia, Só levo uma saudade — é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia. Só levo uma saudade — e dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas... E de ti, ó minha mãe! pobre coitada Que por minhas tristezas te definhas! De meu pai... de meus únicos amigos, Poucos, — bem poucos! e que não zombavam Quando, em noites de febre endoudecido, Minhas pálidas crenças duvidavam. Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda, É pela virgem que sonhei!... que nunca Aos lábios me encostou a face linda! Ó tu, que à mocidade sonhadora Do pálido poeta deste flores...
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Se vivi... foi por ti! e de esperança De na vida gozar de teus amores. Beijarei a verdade santa e nua, Verei cristalizar-‐se o sonho amigo... Ó minha virgem dos errantes sonhos, Filha do céu! eu vou amar contigo! Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz! e escrevam nela: — Foi poeta, sonhou e amou na vida. — Sombras do vale, noites da montanha, Que minh’alma cantou e amava tanto, Protejei o meu corpo abandonado, E no silêncio derramai-‐lhe um canto! Mas quando preludia ave d’aurora E quando, à meia-‐noite, o céu repousa, Arvoredos do bosque, abri as ramas... Deixai a lua pratear-‐me a lousa! (Álvares de Azevedo. Lira dos vinte anos) “SPLEEN” E CHARUTOS I Solidão Nas nuvens cor de cinza do horizonte A lua amarelada a face embuça;
Parece que tem frio e, no seu leito, Deitou, para dormir, a carapuça. Ergueu-‐se... vem da noite a vagabunda Sem xale, sem camisa e sem mantilha, Vem nua e bela procurar amantes... — É doida por amor da noite a filha. As nuvens são uns frades de joelhos, Rezam adormecendo no oratório... Todos têm o capuz e bons narizes E parecem sonhar o refeitório. As árvores prateiam-‐se na praia, Qual de uma fada os mágicos retiros... Ó lua, as doces brisas que sussurram Coam dos lábios teus como suspiros! Falando ao coração... que nota aérea Deste céu, destas águas se desata? Canta assim algum gênio adormecido Das ondas mortas no lençol de prata? Minh’alma tenebrosa se entristece, É muda como sala mortuária... Deito-‐me só e triste sem ter fome Vendo na mesa a ceia solitária. Ó lua, ó lua bela dos amores, Se tu és moça e tens um peito amigo, Não me deixes assim dormir solteiro,
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À meia-‐noite vem ceiar comigo! (Álvares de Azevedo. Lira dos vinte anos) Mocidade e Morte Oh! Eu quero viver, beber perfumes Na flor silvestre, que embalsama os ares; Ver minh'alma adejar pelo infinito, Qual branca vela n'amplidão dos mares. No seio da mulher há tanto aroma... Nos seus beijos de fogo há tanta vida... Árabe errante, vou dormir à tarde A sombra fresca da palmeira erguida. Mas uma voz responde-‐me sombria: Terás o sono sob a láje fria. Morrer... quando este mundo é um paraíso, E a alma um cisne de douradas plumas: Não! o seio da amante é um lago virgem... Quero boiar à tona das espumas. Vem! formosa mulher—camélia pálida, Que banharam de pranto as alvoradas. Minh'alma é a borboleta, que espaneja O pó das asas lúcidas, douradas... E a mesma vez repete-‐me terrível, Com gargalhar sarcástico: —impossível! Eu sinto em mim o borbulhar do gênio. Vejo além um futuro radiante:
Avante! —brada-‐me o talento n'alma E o eco ao longe me repete— avante!— O futuro... o futuro... no seu seio... Entre louros e bênçãos dorme a glórial Após—um nome do universo n'alma, Um nome escrito no Panteon da história. E a mesma voz repete funerária: — Teu Panteon—a pedra mortuária! Morrer—é ver extinto dentre as névoas O fanal, que nos guia na tormenta: Condenado — escutar dobres de sino, —Voz da morte, que a morte lhe lamenta— Ai! morrer —é trocar astros por círios, Leito macio por esquife imundo, Trocar os beijos da mulher — no visco Da larva errante no sepulcro fundo. Ver tudo findo... só na lousa um nome, Que o viandante a perpassar consome E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito Um mal terrível me devora a vida: Triste Ahasverus, que no fim da estrada, Só tem por braços uma cruz erguida. Sou o cipreste, qu'inda mesmo flórido, Sombra de morte no ramal encerra! Vivo— que vaga sobre o chão da morte, Morto—entre os vivos a vagar na terra. Do sepulcro escutando triste grito
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Sempre, sempre bradando-‐me: maldito! — E eu morro, ó Deus! na aurora da existência, Quando a sede e o desejo em nós palpita... Levei aos lábios o dourado pomo, Mordi no fruto podre do Asfaltita. No triclínio da vida— novo Tântalo — O vinho do viver ante mim passa... Sou dos convivas da legenda Hebraica, O 'stilete de Deus quebra-‐me a taça. É que até minha sombra é inexorável, Morrer! morrer! soluça-‐me implacável. Adeus, pálida amante dos meus sonhos! Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos! Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga Os prantos de meu pai nos teus cabelos. Fora louco esperar! fria rajada Sinto que do viver me extingue a lampa... Resta-‐me agora por futuro — a terra, Por glória—nada, por amor—a campa. Adeus! arrasta-‐me uma voz sombria Já me foge a razão na noite fria!.. (Castro Alves. Espumas flutuantes, 1870) O "Adeus" de Teresa A vez primeira que eu fitei Teresa, Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus... E amamos juntos... E depois na sala "Adeus" eu disse-‐lhe a tremer co'a fala... E ela, corando, murmurou-‐me: "adeus." Uma noite... entreabriu-‐se um reposteiro... E da alcova saía um cavaleiro Inda beijando uma mulher sem véus... Era eu... Era a pálida Teresa! "Adeus" lhe disse conservando-‐a presa... E ela entre beijos murmurou-‐me: "adeus!" Passaram tempos... sec'los de delírio Prazeres divinais... gozos do Empíreo... . . . Mas um dia volvi aos lares meus. Partindo eu disse — "Voltarei!... descansa!... Ela, chorando mais que uma criança, Ela em soluços murmurou-‐me: "adeus!" Quando voltei... era o palácio em festa!... E a voz d'Ela e de um homem lá na orquesta Preenchiam de amor o azul dos céus. Entrei! . . . Ela me olhou branca . . . surpresa! Foi a última vez que eu vi Teresa!... E ela arquejando murmurou-‐me: "adeus!" (Castro Alves. Espumas flutuantes, 1870)
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