Ser que desta vez diferente?
O anterior primeiro-ministro portugus chocou muita gente ao
afirmar, num colquio em Paris, que a dvida pblica no para
se pagar, para se gerir. Ao homem que levou o pas a um res-
gate internacional, os portugueses no admitem este tipo de
comentrios. Foram muitas as vozes que o atacaram de imedi-
ato, considerando que estava a defender o no pagamento da
dvida ao dizer que seria uma criancice pensar em pagar.
A verdade que foi na segunda e no na primeira parte da frase
que Jos Scrates borrou a pintura. Tal como as empresas, os
Estados tm permanentemente dvida pblica que vo refinan-
ciando com nova dvida. Uma rpida ronda pelas estatsticas do
Fundo Monetrio Internacional mostra que, num conjunto de
171 pases para os quais tem estatsticas, apenas um (o Brunei)
no tinha dvida pblica em 2011. Todos os restantes tm, em-
bora vrios com pesos no produto interno bruto inferiores a
10%, como Om (4%), Estnia (5,9%), Arbia Saudita (7,1%)
ou Kuwait (8,1%).
Trata-se, na maior parte dos casos, de economias ligadas ao
petrleo que tm enormes volumes de receitas e que, por isso,
acabam por no necessitar de recorrer tanto ao endividamento.
J as economias avanadas tm tradicionalmente dvidas supe-
riores. A mais alta a japonesa que se situava em 233% do PIB
no ano passado. Portugal tinha 106%.
A parte realmente ofensiva das palavras de Scrates foi a se-
gunda, aquela em que diz que as dvidas so para gerir. Ora foi
isso precisamente que o anterior governo no conseguiu fazer e,
de um momento para o outro, viu os mercados virarem-lhe as
costas. As dvidas gerem-se mas, por falta de engenho, arte ou
sorte, Portugal no o conseguiu fazer e foi o terceiro pas do
euro a cair num resgate internacional.
Este Portugal na Bancarrota Cinco Sculos de Historia da D-
vida Soberana Portuguesa, de Jorge Nascimento Rodrigues,
um concentrado de informao histrica. E no apenas de hist-
ria das bancarrotas como, primeira vista, poderia parecer. Em
poucas pginas diz-nos (quase) tudo sobre a histria econmica
portuguesa. Os falhanos so muitas vezes mais esclarecedores
do que os sucessos, e estes oito momentos dizem muito sobre
como Portugal chegou aqui. Como perdeu o comboio da revolu-
o industrial, como a tendncia de viver de rendas j coisa
antiga ou como a poltica nunca foi muito rigorosa no que res-
peita s contas pblicas.
O tempo muda mas a lgica das finanas mantm-se. Um pas ou
um Estado que durante um perodo de tempo gasta mais do que
produz ou tem despesas superiores s suas receitas no caso das
contas pblicas tem obrigatoriamente que arrepiar caminho, a
certa altura, sob pena de entrar em colapso. As causas prximas
podem ser de diversos tipos, mas o problema de base semelhante.
Portugal na Bancarrota fala-nos da forma como o esgotamento
de um modelo econmico conduz inevitavelmente ao colapso a
prazo e de como os governos, de uma forma ou de outra, por
presso ou distraco, tentam sempre fingir que tudo continua
como dantes at ao ponto em que a realidade demasiado vis-
vel para no ser vista.
Pode-se sempre analisar ao detalhe a realidade econmica de
cada poca, as decises polticas e as suas motivaes, entre
vrias outras coisas. Mas uma certeza existe: seja por que razo
for, esta falncia de modelo significa que, a partir de certo pon-
to, o crescimento econmico deixou de ser suficiente para ga-
rantir o servio da dvida e o pas entrou naquilo a que, pelos pa-
dres actuais, se chamaria, uma trajectria insustentvel da dvida.
Percorrer estas pginas reencontrar semelhanas assustadoras
com a actualidade europeia. Nas oito bancarrotas portuguesas
esto muitos dos ingredientes que hoje encontramos na Grcia e
at em Portugal. As questes de soberania, a dvida ilegtima (no
caso do emprstimo de D. Miguel), as contas especiais (a exi-
gncia de alemes e franceses de consignar as receitas aduanei-
ras ao pagamento de juros e dvida na reestruturao de 1902),
o cerco dos credores ou a inexistncia de vcuo em geopoltica
(como aconteceu no final do sculo XIX e incio do sculo XX
quando ingleses se opuseram a alemes e franceses na reestru-
turao da dvida nacional).
Este livro chega-nos num momento em que os portugueses vi-
vem um resgate do FMI e da Unio Europeia e em que a Grcia
corre srios riscos de ter que sair do euro. Olhar para trs uma
forma de abrir uma janela para o futuro. Os comportamentos
repetem-se e nada como compreender o passado. Como disse
um dia o filsofo grego Aristteles, se queres compreender
qualquer coisa, observa o seu incio e o seu desenvolvimento. A
histria das bancarrotas a histria portuguesa. a histria de
como, por vrias vezes no passado, Portugal viu o cho fugir-lhe
sob os ps.
Neste momento, Portugal no est em bancarrota nem prximo
dela mas sabe-se como estes processos podem ser longos e sinu-
osos. A discusso agora se Portugal segue a tragdia grega ou
se consegue recompor-se com o programa da troika. Tambm no
passado antes do colapso houve tentativas infrutferas de evitar
o pior. Ser que desta vez diferente?
JOO SILVESTRE, jornalista do Expresso
Este livro um grito imperativo, chamando a ateno para os
vcios crnicos da nossa gesto governamental, inevitveis sem o
firme controlo do sistema financeiro, que o principal respons-
vel pela crise actual. Em 2011, fecharam, em Portugal, perto de
40 mil empresas. Se no forem tomadas medidas adequadas,
fecharo muitas mais
O autor historia os ltimos cinco sculos da dvida portuguesa.
Em perodos de crise, para encontrar solues, indispensvel o
conhecimento da Histria e tambm capacidade de intuio,
inovando. No condicionalismo actual, imposto pelo Euro, no se
vislumbra caminho para uma moeda refgio A ameaa do
perigo de bancarrota uma realidade. Da, o mrito deste livro
dando o alerta.
ADRIANO VASCO RODRIGUES, arquelogo e etngrafo
PORTUGAL NA BANCARROTA CINCO SCULOS DE HISTRIA DA DVIDA SOBERANA PORTUGUESA
Autor Jorge Nascimento Rodrigues
Editor Centro Atlntico
Coleco Desafios
Reviso Centro Atlntico
Capa Helder Oliveira
1. edio Maro de 2012
ISBN 978-989-615-174-4
Dep. Legal 341847/12
Impresso Papelmunde SMG, Lda
Centro Atlntico, Lda., 2012 Ap. 413 4760-056 V. N. Famalico Portugal Tel. 808 20 22 21 [email protected] www.centroatlantico.pt
RESERVADOS TODOS OS DIREITOS POR CENTRO ATLNTICO, LDA.
Qualquer reproduo, incluindo fotocpia, s pode ser feita com autorizao expressa dos editores da obra.
Em memria do meu pai,
que faria a mesma idade da Repblica no prximo 5 de Outubro
ndice
AGRADECIMENTOS 15
PREFCIO 17
INTRODUO 23 Europa: o bero das bancarrotas soberanas 24 O esgotar de dois modelos econmicos 26
Cinco ciclos da histria da dvida 29 O golpe de Nixon e a desmaterializao
acelerada da finana 32 Duas vagas de globalizao 33
PAINEL I: As primeiras bancarrotas na Europa 35
CAPTULO 1. NO ESTAMOS SOZINHOS 45 A diplomacia do Imperialismo 47 PAINEL II: As 8 bancarrotas do Estado portugus 49
CAPTULO 2. 1384-1422: MESTRE DE AVIZ O CAMPEO DA
HIPERINFLAO 53
CAPTULO 3. 1544: A QUASE BANCARROTA DECLARADA
NA FLANDRES 59 A troca desigual entre Lisboa e Anturpia 60 A herana manuelina deixada a um jovem de 19 anos 63 Inundados de papis aflitos 64 PAINEL III: As Descobertas Martimas e o nascimento
do Capitalismo Moderno 65
CAPTULO 4. 1560: A HERANA QUE A VIVA RECEBEU
O PRIMEIRO DEFAULT OFICIAL 71 Juros perigosos para a conscincia de quem empresta 72 A condio de reexportador 73 O analfabetismo em contabilidade 75 Os caminhos da prata 77 PAINEL IV: A Revoluo Financeira que Lisboa perdeu 78
CAPTULO 5. 1605: O DEFAULT COM SABOR CASTELHANO 85 O envolvimento voluntrio dos credores 86 Dois sculos de vaca leiteira 88 Uma perda que no estava nos planos liberais 93 A herana reformista liberal 94
CAPTULO 6. 1828-1834: A FACTURA DO MIGUELISMO 97 A guerra dos emprstimos 99
CAPTULO 7. 1837 A 1852: O CALVRIO DE QUATRO
INCUMPRIMENTOS NO REINADO DE MARIA DA GLRIA 103 Entram em cena os melhoramentos materiais 105 Dvida supera 100% em percentagem do PIB 107 A ascenso da nova nobreza da classe burguesa 108 Um take off que no ocorreu 111 As armadilhas em que se aprisionaram os industriais 114
CAPTULO 8. 1892-1902: A LONGA REESTRUTURAO DA DVIDA
SOBERANA NO FINAL DA MONARQUIA 117 Os avisos da revista The Economist 118 A originalidade do sistema oramental portugus 121 Do pacoto de Oliv. Martins deciso de Dias Ferreira 125 Rivalidades geopolticas evitam protectorado 128 Ditadura militar vai a Genebra 132
CONCLUSO: DO CAPITALISMO MONRQUICO PORTUGUS
ECONOMIA LIBERAL FINANCISTA 135 O capitalismo monrquico port. entre 1412 e 1600 135 O colapso do papel reexportador do capitalismo
monrquico portugus 142 A primeira tentativa de take off e o novo modelo
econmico nascente a partir de 1850 143
BIBLIOGRAFIA 149
APNDICE: BREVE HISTRIA DAS BANCARROTAS NA GRCIA 151 Mergulhada em guerras e sujeita a ocupaes 152 Episdios de incumprimento 153
Agradecimentos
Ao meu primo Adriano Vasco Rodrigues que cultivou na famlia,
desde h mais de cinco dcadas, o interesse pela Histria. A
primeira edio da sua obra Histria Geral da Civilizao faz
este ano meio sculo. Foi ao estudar por ela que tomei contacto,
pela primeira vez, com o capitalismo monrquico portugus.
Naturalmente, sem imaginar o seu papel vrias dcadas no fu-
turo.
Ao Ricardo Cabral, professor da Universidade da Madeira, que
partilha do interesse pelo tema dos incumprimentos da dvida
soberana e a quem agradeo a disponibilidade para ler o traba-
lho e escrever o Prefcio.
Ao Pedro Lima, editor do caderno de Economia do Expresso, que
incentivou a investigao e a publicao de O Ba das Bancar-
rotas, o artigo naquele semanrio que daria origem a este livro.
Ao Joo Silvestre, jornalista do Expresso, pelo tempo que dedi-
cou leitura do trabalho e pelas palavras enviadas.
Finalmente, ao editor, que, uma vez mais, arriscou publicar mais
um trabalho na linha de investigao iniciada com Portugal O
Pioneiro da Globalizao e 1509 A Batalha que mudou o Do-
mnio do Comrcio Global, obras em co-autoria com Tessaleno
Devezas, o fsico brasileiro a quem devemos a reabertura do
interesse pelo papel da Expanso portuguesa nos ciclos longos
da Economia Mundial e da Geopoltica.
Prefcio Ricardo Cabral*
Dificilmente se encontraria nos ltimos 120 anos de histria do
pas momento mais oportuno para recapitular, em livro, a hist-
ria dos eventos de incumprimento (vulgo bancarrota) do Portu-
gal monrquico e republicano.
A histria repete-se, primeiro como tragdia e depois como
farsa, refere Karl Marx. E c estamos, nesse barco que Portu-
gal, a repetir uma farsa da histria.
Brinquei no passado com o Jorge Nascimento Rodrigues, di-
zendo-lhe que passaria a ser associado, em anos vindouros, te-
se defaultista. Com esta obra, o Jorge contribui para informar
os portugueses, da mesma forma que tem contribudo nos lti-
mos dois anos com os seus artigos e entrevistas no Expresso e no
Expresso Online, para o debate sobre a possibilidade de incum-
primento e reestruturao da dvida pblica portuguesa.
O autor, com a sua capacidade para questionar a ortodoxia do-
minante, teve um contributo nico e notvel a nvel nacional.
Hoje, j no escandaliza falar em reestruturao de dvida
tornou-se um tema respeitvel e no tabu, ao contrrio do que
ocorria h dois anos. Foi o Jorge que introduziu esse tema, sem
temor, junto da opinio pblica do pas. E o facto tanto mais
relevante quanto certo que, como jornalista, se absteve, e se
abstm tambm nesta obra, de se pronunciar a favor ou contra
uma reestruturao de dvida.
PORTUGAL NA BANCARROTA
18
A histria minuciosamente relatada neste livro ensina-nos que o
progresso econmico contnuo e linear no algo assegurado.
Ocorreram perodos em que a economia portuguesa regrediu ou
estagnou durante dcadas, em particular no ltimo quartel do
sculo XIX, quando um Portugal sobreendividado ao exterior
procurou, tal como hoje, recorrer a austeridade e cortes de sal-
rios dos funcionrios pblicos para tentar cumprir as suas obri-
gaes financeiras ao exterior. O resultado foi a degradao
econmica seguida de incumprimento.
No final do sculo XIX, relata-nos o autor, alguns dos credores
do pas procuraram, sem sucesso, que este abdicasse da sobera-
nia nacional em matrias como a colecta de impostos alfandeg-
rios, confiando a sua administrao a credores estrangeiros e
atravs de clusulas secretas nos acordos firmados com os seus
credores. Os responsveis polticos da altura decidiram privati-
zar e indirectamente oferecer o monoplio nacional dos tabacos
aos credores, como contrapartida para um emprstimo.
Vemos agora, em 2011 e 2012, tantos anos passados, o pas
optar por abdicar da soberania nacional em relao quase
totalidade da sua poltica econmica, delegando-a numa troika
de tecnocratas da Comisso Europeia, Banco Central Europeu e
Fundo Monetrio Internacional (FMI). Vemos o pas decidir
completar a privatizao do quase-monoplio na gerao de
electricidade, EDP, a um grupo estatal chins, que oferece, entre
outras contrapartidas, um emprstimo a esse grupo empresarial.
O responsvel por esse grupo estatal chins, ainda a tinta no
estava seca no contrato, prontamente avisou o Estado Portugus
para no rever, de forma desfavorvel a essa empresa recm-
-privatizada, as regras de apoio gerao elctrica de fontes
renovveis, regras essas que so consideradas por muitos como
PREFCIO
19
encarecendo os custos da electricidade e gerando rendas para os
produtores de electricidade. Vemos privatizar tambm 40% de
outro monoplio, a Rede Elctrica Nacional, a empresas estatais
estrangeiras.
E, olhando para a Grcia, bero da civilizao ocidental, verifi-
camos que as condies impostas pela Unio Europeia (UE) e
pelo FMI ao segundo resgate, vo ainda mais longe, incluindo,
entre outras medidas: uma delegao permanente da troika em
Atenas para controlar in loco a receita e a despesa pblica; prio-
ridade ao pagamento da dvida em relao a toda outra despesa
pblica consagrada na Constituio; e, referido na imprensa
internacional, o acesso prioritrio dos credores s reservas de
ouro do Banco Central da Grcia. Estas condies draconianas
so um srio precedente para um provvel segundo resgate a
Portugal. Pouco diferem, alis, das condies exigidas pela Soci-
edade das Naes para a concesso de um emprstimo a Portu-
gal em 1928 que, de acordo com o referido neste livro, entre
outros aspectos, impunha a localizao em Lisboa de um agente
de ligao. Essas condies impostas pela Sociedade das Na-
es no foram aceites pelos responsveis polticos portugueses
da altura.
A descrio histrica contida neste livro permite compreender
que as restries soberania nacional consagradas nos actuais
pacotes de resgate Grcia, Irlanda e Portugal, exigidas pelos
parceiros na UE e no FMI, vo muito para alm daquelas tenta-
das e executadas nos episdios de incumprimento de Portugal,
no passado. Os credores no aprenderam nada com o passado.
Os devedores, no entanto, menos ainda. Os actuais responsveis
polticos dos pases devedores demonstram, com as suas deci-
ses, estar dispostos a abdicar de muito mais soberania e a sub-
PORTUGAL NA BANCARROTA
20
meter-se aos credores a um grau que os lderes polticos de ou-
trora jamais aceitariam.
Este livro cita Rui Pedro Esteves, docente na Universidade de
Oxford, investigador de histria econmica, referindo que aps
a entrada em incumprimento, o pas passa de um dfice para um
excedente oramental. Rui Pedro Esteves atribui-o a uma maior
disciplina oramental. Eu entendo, pelo contrrio, que essa me-
lhoria do saldo oramental foi, em larga medida, o resultado da
declarao de incumprimento parcial que ocorreu nessa altura.
Dvida externa elevada causa dfices oramentais elevados. A
deciso do governo portugus da altura em reduzir unilateral-
mente em 66% os juros pagos sobre a dvida externa e, posteri-
ormente, em proceder reduo negociada do capital em d-
vida, foi o que causou, de forma automtica, a substancial me-
lhoria do saldo oramental.
Se o pas suspendesse hoje pagamentos sobre a sua dvida, en-
trando em incumprimento, ao invs de um elevado dfice ora-
mental passaria a registar um excedente oramental. No neces-
sitaria de qualquer ajuda externa desde que implementasse as
medidas necessrias e adequadas.
Parafraseando Winston Churchill, nunca o bem-estar econmico
de tantos portugueses presentes e futuros foi to ameaado pe-
las decises de to poucos.
No h nenhum fado que nos obrigue a repetir os erros da Hist-
ria. Portugal tem, hoje, mais hipteses de escapar aos ciclos
peridicos de subdesenvolvimento to bem descritos nesta obra.
De facto, fruto do investimento em infra-estruturas e capital
humano realizado nos ltimos 30 anos, possui melhores condi-
es para enfrentar a concorrncia internacional e trilhar, no
mbito da UE e da Zona Euro, o seu prprio caminho. Louvvel
PREFCIO
21
seria por isso que os actuais responsveis polticos lessem e reti-
rassem os ensinamentos da histria de incumprimentos de Por-
tugal apresentada nesta obra.
* Professor Auxiliar, Universidade da Madeira e CEEAplA
Introduo
O tema da crise da dvida soberana no uma inveno recente
na histria do capitalismo, nem a Europa era um continente
virgem at ao rebentar das situaes de pr-bancarrota em al-
guns pases da zona euro na sequncia da crise financeira de
2008.
Para muitos leitores, falar de incumprimentos traz memria
episdios na Amrica Latina em dcadas recentes ou na Europa
de Leste e na Rssia, depois da queda do Muro de Berlim. O
episdio mais vivo na memria o da Argentina, em Dezembro
de 2001, um default em quase 200 mil milhes de dlares de
dvida soberana.
Os acontecimentos em torno das situaes de quase-bancarrota
da Grcia, Portugal e Irlanda nos ltimos anos, e a ameaa de
contgio no seio da zona euro, reabriram a porta do sto onde
estavam guardados no ba da histria vrios episdios que mar-
cam a trajectria da dvida soberana na Europa.
Os incumprimentos das dvidas soberanas tm, na verdade, uma
histria de mais de 650 anos. E, ao contrrio do que se possa
imaginar, a Europa est, desde o incio, profundamente ligada
ao tema.
PORTUGAL NA BANCARROTA
24
Europa: o bero das bancarrotas soberanas
A primeira crise aguda da dvida soberana ocorreu na Inglaterra
do sculo XIV sim, leu bem, ainda na Idade Mdia! O prevari-
cador foi Eduardo III (governou entre 1327 e 1377), que teve
que declarar default em 1340 e proceder a uma reestruturao
da dvida, uma das primeiras na histria.
Os alimentadores do despesismo guerreiro ingls eram os gru-
pos financeiros italianos, no caso, florentinos, que emprestavam
na Europa aos monarcas de pases belicosos e subdesenvolvidos,
naturalmente a taxas de juro na ordem dos 40% ao ano. Na
poca, desde o final da dcada de 1290, o centro financeiro eu-
ropeu estava em Florena. As compagnie florentinas como
eram conhecidos os grupos financeiros e de mercadores dos
Bardi, Cerchi, Frescobaldi, Pazzi e Peruzzi estavam na van-
guarda do financiamento dos soberanos europeus que passavam
a vida em guerra uns contra os outros.
O rei ingls envolveu-se numa srie de fracassos militares e as
notcias chegaram rapidamente a Florena, como conta Carlo
Cipolla em The Monetary Policy of Fourteenth Century Flo-
rence. Em Florena gerou-se o pnico um pnico financeiro
tpico, com a corrida s casas bancrias. A perda dos credores,
durante a reestruturao da dvida levada a cabo por Eduardo
III, andou entre 54% no caso dos Bardi e 64% para os Peruzzi.
Este ltimo grupo financeiro teve de declarar falncia em 1343 e
o outro em 1346. Em 1472, a Inglaterra voltaria a ser notcia,
com outro incumprimento nos tempos de outro Eduardo, o IV,
que inaugurou uma nova dinastia, a da Casa de York. A situao
seria salva pela ento poderosa Liga Hansetica, dos Mares do
Norte e Bltico, que apoiou financeiramente a Casa de York
contra a Casa de Lencastre na guerra civil inglesa conhecida
INTRODUO
25
como Guerra das Rosas. Segundo outros historiadores, a Co-
roa britnica voltaria a entrar em incumprimento, desta vez
parcial, em 1671 e 1685.
A Europa regressaria, em fora, ao palco dos incumprimentos a
partir de 1557 at 1796. Primeiro, Felipe II de Espanha em
1557, depois Frana em 1558 e Portugal em 1560, um dos epi-
sdios a que nos vamos referir. Fala-se que a bancarrota espa-
nhola de 1557 teve um efeito de contgio.
Ocorreram, desde 1340 at 1796, vinte eventos de incumpri-
mento na Europa, com destaque para a Frana com 8, Espanha
com 6, Portugal com 2 (em 1560 e 1605), Inglaterra com 2,
Prssia com 1 e ustria com 1, segundo dados da investigao
realizada pelos acadmicos norte-americanos Carmen Reinhart
e Kenneth Rogoff publicados em This Time is Different. Outros
historiadores apontam para uma galeria ainda mais vasta: 12
incumprimentos totais e parciais em Frana entre 1559 e 1797 e
13 eventos em Espanha entre 1557 e 1696.
De novo no sculo XIX, a Europa assiste a uma vaga de incum-
primentos 34 episdios , mas desta vez seria ultrapassada
pela Amrica Latina, sada das revolues independentistas,
com 47 episdios. Entre 1822 e 1825, oito naes latino-ameri-
canas pediram emprestado mais de 20 milhes de libras na
praa londrina, com destaque para a Gr Colmbia (que, ento,
juntava a Colmbia, o Equador e a Venezuela) e o Mxico. Dois
casos surgem em frica, no Egipto e na Tunsia. Portugal
arrecadaria seis episdios (1828, 1837, 1841, 1846, 1850 e
1892).
Finalmente, o sculo XX trouxe a diversificao. Os quatro con-
tinentes foram abrangidos por episdios de default. Portugal
escapou sina, em trs momentos chave: no decurso e aps a 1
CONCLUSO
Do capitalismo monrquico portugus economia liberal
financista
No final desta breve histria dos incumprimentos da dvida so-
berana portuguesa at ao sculo XX, justifica-se ensaiar uma
periodizao que aponte hipteses sobre o processo evolutivo da
economia portuguesa e da sua insero na globalizao.
O capitalismo monrquico portugus entre 1412 e
1600
Muitos historiadores e economistas continuam a falar do per-
odo de Expanso portuguesa como de uma sociedade e de uma
estrutura econmica tpicas de "Antigo Regime", decalcando de
uma anlise herdada da Revoluo Francesa. A expresso An-
tigo Regime tornou-se popular com Alexis de Tocqueville, autor
do ensaio O Antigo Regime e a Revoluo, publicado em 1856.
O reconhecimento do papel fulcral portugus no nascimento do
capitalismo moderno , em geral, ignorado. Ora, na realidade,
depois das Repblicas Martimas italianas e do seu capitalismo
mercantil e financeiro dominarem, entre os sculos XIII a XV, o
APNDICE
Breve histria das bancarrotas na Grcia
Em 190 anos, a histria da Grcia moderna, desde o incio da
guerra de libertao contra o domnio turco-otomano em 1821,
esteve em turbulncia, envolvida em guerras e sofrendo ocupaes
ou ditadura em mais de 130 anos, e viveu perodos de bancarrota
durante 50 anos. Esta breve histria um complemento nar-
rativa sobre o caso portugus.
O tema do incumprimento no novo na histria da Grcia mo-
derna. Segundo o estudo de dois acadmicos norte-americanos,
Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, publicado no livro This
Time is Different, a Grcia, desde a sua independncia do imp-
rio turco-otomano, entrou em bancarrota quatro vezes, em
1843, 1860, 1893 e 1932 (quando abandonou, tambm, o pa-
dro ouro).
Recorde-se que a Grcia esteve sob domnio turco-otomano
desde 1453 aquando da conquista de Constantinopla e da
queda do ento designado Imprio Bizantino at 1829. Entrou
em bancarrota em 1826 antes inclusive da independncia, ainda
durante a guerra de libertao do domnio turco, em virtude de
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