O HOMEM DELINQUENTE ― PREFÁCIO DO AUTOR
PREFÁCIO DE
O HOMEM DELINQUENTE
César Lombroso
César Beccaria, nos dias de arbítrio, disse ao homem: conhece a
justiça; César Lombroso, na época em que se está aferrado às fórmulas
clássicas do Direito Penal, disse à justiça: conhece o homem.
Van Hamel
http://meusacaros.blogspot.com
Nota:
Aqui a tradução integral do prefácio do autor à 5ª
ed. Italiana e à 2ª Francesa da obra O HOMEM
DELINQUENTE, a partir da edição francesa publicada por
Felix Alcan em 1895, mesma obra que deu origem à edição
comercial que apareceu no Brasil em Porto Alegre, 2001,
Ricardo Lenz Editor.
Como muitos ainda falam, comentam e citam
Lombroso, sem dúvida é oportuno que leiam o que ele
próprio pensava sobre suas descobertas, explicando seu
modo de observar o fenômeno criminal. Daí ocorrer-me a
idéia de disponibilizar parte da obra, tão conhecida quanto
pouco lida, sem omitir notas e comentários que têm por
objetivo atualizar e orientar o leitor frente a uma
terminologia e linguagem típicas do século XIX.
Estou certa de que não é uma leitura sem proveito,
inclusive porque Lombroso se comunicava bem, e porque
suas idéias, seja como for, foram idéias que transformaram
o mundo.
Em anexo, ao final, também a tradução do prefácio
escrito por Letourneau para a edição francesa de 1887,
esta última baseada na 4ª edição italiana.
2
Uma contradição singular reina neste mundo: o juiz,
de um lado, separa de algum modo o delinquente do delito
para julgar, como se o delito fosse um fato completo em si
mesmo e como se formasse, na vida do agente, um incidente
que não suspeita repetir-se. O criminoso, de outro lado, faz
tudo o que pode para provar ao juiz precisamente o
contrário ― pela raridade do arrependimento, pela ausência
do remorso, pela reincidência reiterada de 30 a 55, até 80%.
Isso não é sem perigo e sem despesa para a sociedade, nem
sem humilhação para essa infeliz justiça que se transforma,
muito frequentemente, num jogo de esgrima ilusória contra
o crime. Em vão aqueles que se aproximam, ou que
estudam os delinquentes encontram-nos diferentes dos
outros homens, fracos de espírito e quase sempre incapazes
de se corrigirem; em vão, os alienistas declaram não poder,
na maioria dos casos, diferenciar o crime da loucura: os
legisladores persistem em não admitir, senão por exceção,
nos criminosos, as alterações do livre arbítrio e apenas
quando essas são assaz gritantes, de modo a constituírem a
alienação mental propriamente dita.
3
As causas dessas contradições contínuas são muitas:
os legisladores, os filósofos, homens que têm a alma nutrida
de especulações, as mais sublimes do gênero humano,
julgam os outros de acordo com eles mesmos. Repugnando
ao mal, acreditam que todos o repugnam. Não querem nem
podem descer das nebulosas regiões da metafísica ao terreno
humilde e árido das casas penais. De seu lado, o juiz
sucumbe naturalmente a essas preocupações momentâneas
comuns a todos nós nas vicissitudes da vida e que nos
surpreendem de tal modo, por seu interesse atual, que nos
tiram a percepção de sua conexidade com as leis gerais da
natureza.
Eu acredito (e não apenas eu, mas Holtzendorf,
Thompson, Wilson, Despine têm acreditado comigo e antes
de mim) que, para reconciliar tantas divergências, para
resolver o problema de se existe ou não uma verdadeira
necessidade do crime e se o homem criminoso pertence a
um mundo todo seu, seria preciso deixar de lado todas as
teorias filosóficas e estudar, em suma, mais que o crime, os
criminosos.
Esse conhecimento não o poderíamos obter senão por
meio de pesquisas patentes e completas sobre as condições
materiais e morais desses infelizes, sobre suas faculdades
intelectuais, sobre suas disposições naturais, assim como
sobre a educação que eles recebem, sobre as influências
4
físicas que sofrem e sobre as inclinações onde uma
hereditariedade malfazeja põe neles um germe tão fecundo.
O fruto dessas pesquisas está recolhido neste livro.
Este livro, todavia, parece-se com o humilde inseto
que transporta, sem saber, o pólen fecundante; não poderia
vivificar um germe, se não houvessem, talvez, conduzido
seus frutos por longos anos. Ele deu nascimento à nova
escola, graças aos trabalhos de Liszt, Kraepelin, Biliakow,
Troiski, Knecht, Holtzendorf, Sommer, Mendel, Pulido,
Echeverria, Brill, Kowalewshi, Likaceff, Minzloff,
Kolokoloff, Espinas, Letourneau, Tonnini, Reinach, Soury,
Sorel, Motet, Marandon, Fioretti, Le Bon, Bordier, Tarde,
Roussel, Heger, Albrecht, Warnott, Tamburini, Frigerio,
Laschi, Mayor, Majno, Benelli, Fulci, Pavia, Aguglia, Sergi,
Tanzi, Lessona C., Cosenza, Lestingi, Turati, Venezian, e,
sobretudo, graças a Laurent, Marro, Flesch, Benedickt,
Beltrani-Scalia, Virgilio, Morselli, Garofalo, Puglia,
Sighele, Ferri, a Senhora Tarnowski, Ottolenghi, Dotto,
Carrara, Roncoroni e Kurella, que completaram diversas
lacunas de minhas primeiras edições, ao mesmo tempo em
que determinaram aplicações práticas do ponto de vista
jurídico.
Eu não seria tão reconhecido se não fossem esses
ilustres sábios.
5
Graças a eles, pela primeira vez, pude distinguir, com
exatidão, o criminoso nato1 do de ocasião, mais ainda, do
criminoso louco2 e do alcoólatra a quem consagrei
monografias especiais. Graças a esses sábios ainda, pude
estender minhas pesquisas sobre as formas primordiais do
crime entre os selvagens, as crianças e os animais,
1 CRIMINOSO NATO – Segundo a classificação dos criminosos de Ferri,
os criminosos natos seriam aqueles que apresentariam, em maior número, as
anomalias orgânicas e psíquicas descobertas pela antropologia criminal.
Precoces, reincidentes no crime, estariam preferencialmente entre os
assassinos e os ladrões, arrastados por tendências congênitas. Distinguir-se-
iam pela ausência ou fraqueza hereditária do senso moral, pela não
repugnância à idéia e à ação delituosa antes de cometê-la, pela falta de
remorso após a execução, pela imprevidência das consequências de seus
atos, pela imprudência, pela impulsividade, determinando a precocidade, a
reincidência e, finalmente, a incorrigibilidade. Em Principii di Diritto
Criminale, pg. 266, Turim, 1928, Ferri coloca que o criminoso nato
caracteriza-se, antes de tudo, pela grande vontade, isto é, por sua
impulsividade que, na fraqueza congênita das energias de inibição, passa
precipitadamente da idéia à ação e por motivos absolutamente
desproporcionados à gravidade do delito. Especifica-se pela falta ou
fraqueza do senso moral que, nos homens normais, é a força de repulsão ao
delito e não é um sentimento particular (de simpatia, como diria
BENTHAN), mas, sim, toda tonalidade sentimental do indivíduo que
determina seu modo pessoal de reagir aos estímulos do ambiente nas
relações sociais – daí eu preferir chamá-lo de “senso social”. Antônio
MONIZ SODRÉ de Aragão, As três escolas penais – estudo
comparativo, Livraria Freitas Bastos, 1955. (N. dos TT).2 CRIMINOSO LOUCO – Os criminosos loucos apresentariam muitas
variedades, entre elas o louco moral, vítima da imbecilidade moral de
6
completando o estudo anatômico e começando o estudo
fisiológico, sobretudo no que toca às anomalias da
sensibilidade, da reação vascular e reflexa, fenômenos que
nos explicam essa superabundância paradoxal de saúde que
encontramos, bem frequentemente, entre indivíduos que,
todavia, são enfermos desde o nascimento, como os
criminosos natos.
Foi assim que pude demonstrar como a doença se
agrava neles pelo atavismo e que pude operar a fusão de
dois conceitos: do criminoso nato e do louco moral, fusão já
entrevista e afirmada por Mendel, Bonvecchiato, Sergi,
Virgilio, mas que não puderam admiti-la com certeza, pois,
por longo tempo, seus contornos permaneceram imprecisos,
faltando uma verdadeira descrição científica.
Se não posso senão louvar-me de meus críticos e de
meus colaboradores, não fui menos feliz com meus
PRICHARD, a loucura raciocinante (VERGA), etc. Teríamos aqui a
ausência ou a atrofia do senso moral, quase sempre congênita, às vezes
adquirida, coexistindo com uma aparente integridade do raciocínio lógico.
Psicologicamente, seriam idênticos ao criminoso nato. Além dos criminosos
verdadeiramente loucos que são o exagero do tipo do delinquente nato, essa
categoria compreende também os criminosos que, não sendo nem
completamente doentes nem completamente sãos, pertencem ao que
MAUDSLEY chamava zona intermediária. São distinguidos por
LOMBROSO sob o nome de matóides. Antônio MONIZ SODRÉ de
Aragão, As três escolas penais – estudo comparativo, Livraria Freitas
Bastos, 1955. (N. dos TT).
7
adversários, entre os quais não me furtaria de citar Tarde,
Baer, Manouvrier, Oettingen, Brusa, Ungern-Sternberg. É
bom ser combatido e mesmo ser vencido por tais homens.
Também acreditaria faltar a todas as conveniências, se não
tentasse lhes responder:
“Vós abusais muito, em vossas deduções, de fatos
isolados”, objetam-me esses sábios eminentes. “Se
encontrardes, por exemplo, um crânio assimétrico, orelhas
afastadas, etc., num indivíduo, vós vos apressaríeis em
concluir pela loucura ou pelo crime. Ora, eles não têm
qualquer relação direta com semelhantes anomalias”. ― Eu
não responderia que não encontrei jamais, no cristal
humano, uma formação anormal que não tivesse razão de
ser, sobretudo na parada de desenvolvimento. Eu não diria,
não mais, que existe uma escola de sábios alienistas que não
temiam fundamentar, muitas vezes sobre uma só dessas
anomalias, um diagnóstico de loucura degenerativa. Eu me
contentaria em observar que não faço tais deduções a priori,
mas só depois de havê-las visto em proporção maior entre
os criminosos do que entre os homens normais. Eu diria
que, para mim, as anomalias isoladas não são mais que um
indício, uma nota musical, da qual não pretendo nem posso
tirar um acorde senão após havê-la encontrado junto a
outras notas físicas ou morais.
8
É verdade que me objetarão: “Como podeis falar de
um tipo entre os criminosos, quando, em vossos próprios
trabalhos, ele resulta faltar em 60% completamente?” ―
Mas a cifra de 40% não é de desdenhar. A passagem
insensível de um caráter a outro se manifesta em todos os
seres orgânicos. Manifesta-se mesmo de uma espécie a
outra, pela mais forte razão de que é assim no campo da
antropologia, onde a variabilidade individual cresce na
razão direta do aperfeiçoamento e da civilização, parecendo
apagar o tipo completo. É difícil, por exemplo, em 100
italianos, encontrar 5 que apresentem o tipo da raça; os
demais não têm senão frações que se manifestam apenas
quando se os compara a estrangeiros. Todavia, ninguém
pensa em negar o tipo italiano.
A meu ver, deve-se acolher o tipo com a mesma
reserva com que nos colocamos a apreciar as médias na
estatística. Quando se diz que a vida média é de 32 anos e
que o mês mais fatal à vida é o de dezembro, ninguém
entende por isso que todos os homens devem morrer aos 32
anos e no mês de dezembro.
Longe de levar a cabo a aplicação prática de nossas
conclusões, essa tarefa restringe-se a divisar o tipo. A
detenção perpétua, a pena capital, que são as últimas
expressões de nossas pesquisas, seriam impraticáveis ao ver
de um grande número de homens, enquanto se lhes pode
9
muito bem aplicar a um número restrito e ver como um
indício de criminalidade a presença desse tipo entre os
indivíduos suspeitos.
Outra objeção grave que se ergue a propósito desse
tipo é que nós o deduzimos do exame de alguns milhares de
criminosos, enquanto que os malfeitores existem aos
milhões; e que uma lei não pode ser considerada como bem
fundamentada se não se apoiar sobre grandes números
(OEttingen).
Mas pode-se responder, com Ferri, que: “Em geral, os
dados biológicos da mais alta importância são aqueles que
experimentam as variações menos consideráveis: enquanto
que o comprimento dos braços pode variar, de homem a
homem, em vários centímetros, a largura da fronte não pode
variar senão alguns milímetros. Daí resulta com evidência
que, nas questões de antropologia, a necessidade de cifras
expressivas está na razão direta da variabilidade dos
caracteres estudados e, por consequência, na razão inversa
de sua importância biológica” (Sociologia criminelle, Paris,
1893).
As cifras mais fortes são úteis quando nos ocupamos
do que qualquer um pode registrar; mas, quando se trata de
conhecer, não o sexo, nem a idade, nem a profissão, mas o
caráter psíquico ou a conformação craniana de um grupo de
criminosos, é impossível jogar com cifras elevadas.
10
Nessas questões delicadas, que exigem uma cultura
especial, os grandes números recolhidos pela estatística
oficial – tarefa consumada, a maior parte do tempo, por
empregados ignorantes – têm bem menor valor que as
observações, raras é verdade, mas dadas por homens
competentes. Aqui, a segurança das pesquisas vale bem
mais que sua quantidade.
Vejamos a que teve lugar, por exemplo, para um fato,
todavia muito simples de observar: a reincidência. Se nos
ativermos a uma estatística de mais de 80.000 condenados
empreendida por um homem, o mais competente da Itália
nesse gênero, Beltrani-Scala, ela se limitaria a 18% nas
prisões de forçados, a 27% nas prisões, cifras
prodigiosamente inferiores àquelas que fornece a França
(42%) e a Holanda (80%). E não é tudo: a reincidência
sempre – segundo esse sábio – pareceria perder terreno em
regiões da Itália onde se cometem mais crimes. Enquanto
encontramos, no antigo reino lombardo-veneziano, a
proporção de 59 a 51%, reduz-se, no Sul, a 10, a 14%.
Felizmente, casos pouco numerosos, é verdade, mas
absolutamente seguros, fazem conhecer o malfeitor e
lançam grande luz sobre as associações de criminosos,
permitindo corrigir aqui, como Oettingen já o fez na Rússia,
11
o erro que cometeríamos baseando-nos unicamente sobre os
grandes números3.
“Vós negais – objeta-me Tarde – que haja a menor
analogia entre o criminoso nato e o alienado; e depois, vós
acabais por confundir o primeiro com o louco moral. Mas,
assim, vós perdeis de vista o atavismo que nada tem haver
com a doença”4. – Não há contradição. O louco moral nada
tem em comum com o alienado. Não é, para dizer a
verdade, um enfermo real, mas um cretino do senso moral.
De resto, nesta edição, demonstrei, além de caracteres
verdadeiramente atávicos, os adquiridos e completamente
patológicos: a assimetria facial, por exemplo, que não existe
no selvagem, o estrabismo, a desigualdade das orelhas, a
discromatopsia5, a paresia6 unilateral, os impulsos
irresistíveis, a necessidade de fazer o mal pelo mal, etc. e
essa alegria sinistra que se faz notar na gíria dos criminosos
e que, alternada com uma certa religiosidade, encontra-se
tão frequente entre os epilépticos. Acrescentem-se as
meningites, os amolecimentos do cérebro que não provém,
3 GAROFALO, Archivio di psichiatria e scienze penali, VII, fasc. IV,
1886.4 TARDE, em seu belo livro Criminalité compareé. – Paris, Alcan, 1886.5 Discromatopsia – Cegueira parcial para as cores. (N. dos TT.).6 Paresia – paralisia de nervo ou músculo que não perdeu completamente a
sensibilidade e o movimento; paralisia incompleta; desfalecimento. Indica,
quase sempre, existência de lesões dos nervos ou dos centros motores.
Enciclopédia Brasileira Mérito (N. dos TT.).
12
certamente, de atavismo. É por isso que venho a relacionar
o louco moral e o criminoso nato na família dos epileptóies7.
De resto, o atavismo é, desde já, um fenômeno
doentio.
7 Em sua obra a respeito de Medicina Legal – psicopatologia forense –
Afrânio Peixoto discorre sobre epilepsia. Destacamos: “O problema da
epilepsia é talvez o mais sério e difícil da medicina pública: porque a doença
é muito divulgada; porque os doentes, nos intervalos de suas crises, às vezes
espaçadas, gozam de uma mentalidade aparentemente regular; porque ainda
numerosos deles conseguem posições elevadas nas letras, na política, na alta
administração e valem-se ainda de numerosos exemplos ilustres na história;
porque todos eles estão na iminência de mal fazer, o que lhes cria uma
degeneração que corrompe o corpo e o caráter, sem que existam ou possam
talvez existir os recursos sociais contra a possível e eventual temibilidade
deles.” E prossegue o ilustre catedrático, cuja tese de doutoramento
intitulou-se “Epilepsia e Crime”. – “É já de emprego vezeiro em psicologia
mórbida essa expressão: caráter epiléptico. Que é isso? Esses doentes têm
um humor vário, incoerente, móvel. Otimistas, entusiastas, generosos,
passarão por pouco ao pessimismo do cansaço, ao egoísmo dos desiludidos,
à perversidade requintada. Alegres, ruidosos, gentis, num momento
próximo, são desconfiados, grosseiros, sombrios, odientos, impulsivos.
Obstinados numa idéia, cedem-na por pouco, quando não lha disputam;
religiosos com fervor ou hipocrisia, irão do zelo ardente e da mais crua
mortificação ao tartufismo impudente; altivos até a arrogância, de cima de
um orgulho intratável, caem numa submissão humilde, numa adulação
mesquinha, comprazendo-se em contrastes. Contudo essa imobilidade é
muitas vezes combatida no epiléptico por uma pertinácia incansável em que
a vontade tenaz colabora com o esforço irredutível. Tudo neles é porém
13
“A incapacidade – escreve Nordau8 - de coordenação
da atividade muscular é chamada de ataxia pela Medicina.
Entre as crianças, corresponde a um estado natural e são.
Essa mesma ataxia é uma doença grave quando aparece no
adulto como sintoma principal de lesões da medula espinal.
A identificação da ataxia doentia e da ataxia sã da criança
de peito é tão completa que o Dr. S. Frenkel pode
fundamentar, sobre ela, um tratamento que consiste,
essencialmente, em que os doentes aprendam de novo a
caminhar e a manter-se de pé9. Veja-se, pois, que um estado
pode ser, ao mesmo tempo, patológico e, não obstante, o
simples retorno a uma maneira de ser originalmente normal.
É uma leviandade culpável acusar Lombroso de
contradição, vendo, às vezes, a degenerescência e o
atavismo no instinto criminal. O lado doentio da
degenerescência consiste, precisamente, em que o
organismo não percorre penosamente o nível de evolução já
atingido pela espécie, mas pára num nível qualquer situado
mais ou menos abaixo. A recaída na degeneração pode ir
violento: o desejo, o sentimento, a idéia, como o tédio, a depressão, a
impulsão: culminam as provas na história dos comiciais célebres, sejam
César, Mahomet, Napoleão ou Calígula, Torquemada, Iwan, o Terrível”.
AFRÂNIO PEIXOTO, Medicina Legal, vol. II, Livraria Francisco
Alves, 1938. (N. dos TT.). 8 Dégénerescence, por MAX NORDAU. – Paris, Alcan, 1894.9 DR. S. FRENKEL, La thèrapeutique des troubles ataxiques du
mouvement (Gazzette hebdomadaire médicale de Munich, nº 52, 1892).
14
até a mais vertiginosa profundidade. Do mesmo modo que
decai, somaticamente, até a escala dos peixes, mais ainda,
até aquela dos artrópodes e mesmo dos rizópodes, não ainda
sexualmente diferenciados, quando se renova, pelas fissuras
do maxilar superior, nos lábios sêxtuplos dos insetos, pelas
fístulas do pescoço, nas brânquias dos peixes, precisamente
os mais inferiores, pelos dedos em excesso (polidactilia),
nas barbatanas múltiplas dos peixes talvez mesmo pelo
hermafroditismo, a assexualidade dos rizópodes. Assim,
renova-se intelectualmente, no melhor dos casos, como
degeneração superior, o tipo do homem primitivo da Idade
da Pedra Bruta. No pior caso, como idiota, aquele de um
animal muito anterior ao homem.10”
10 PARADAS E ATRASOS DE DESENVOLVIMENTO PSÍQUICO:
IDIOTIA, IMBECILIDADE, DEBILIDADE MENTAL. – Afrânio
Peixoto (op. Cit.) define-os como “distúrbios da evolução cerebral durante a
concepção ou nos primeiros anos de vida acompanhados de numerosas
anomalias somáticas e que produzem um déficit intelectual mais ou menos
considerável segundo o tipo clínico estudado: idiotia, imbecilidade,
debilidade mental.” Quanto à sintomatologia e o comportamento dos
indivíduos afetados por essas condições, deve-se considerar, principalmente,
nestas agenesias e disgenesias cerebrais, a gradação que vai da idiotia
absoluta à imbecilidade, à debilidade mental ou pobreza de espírito
congênitas ou adquiridas nos primeiros anos, por uma causa que impediu ou
retardou o desenvolvimento cerebral. Somaticamente, revelam-se por vícios
de conformação de toda ordem, desproporção, deformidade, pequenez da
cabeça, talhe, membros, anomalias dos olhos, orelhas, dentes, órgãos
genitais. Além das alterações elementares das funções psíquicas, várias
desordens patológicas se enxertam, como a surdo-mudez, vícios de elocução,
15
À objeção muito justa de Tarde, de que os selvagens
não são sempre morenos nem de uma altura elevada, e de
que a fosseta occipital se pode encontrar entre povos pouco
inclinados ao crime, como os árabes, e falta entre outros
mais bárbaros, já a respondi, em citando esta lei sobre a qual
os antropólogos deveriam melhor meditar.
tiques, movimentos coreiformes, hemiplegia, paraplegia, paralisia,
convulsões, epilepsia. As primeiras manifestações revelam-se pela
dificuldade de tomar o seio, pelo caráter violento, contínuo e infundado dos
gritos e choro, impossibilidade de fixar o olhar, falta de expressão na
fisionomia, atrofia da atenção, retardo do crescimento, da marcha, da
palavra, do sistema piloso (SOLLIER). O movimento é pobre e
estereotipado (MEYERSON). Intelectualmente, domina a impossibilidade, a
dificuldade e a instabilidade, nos graus mais atenuados, de fixar a atenção.
A memória é fraca, infiel, sujeita a cada momento a falsificações, seja pela
impressão do momento, seja pela sugestão. Em relação aos reflexos dessa
constelação de anomalias na vida psíquica do indivíduo, constataríamos
sério prejuízo das funções de crítica e juízo, de sorte que a aceitação das
idéias estranhas, por sugestão, é extrema. Os falsos testemunhos, as ações
malévolas podem ser facilmente aceitas e executadas por ordem ou imitação.
As funções éticas não têm vestígios: a indiferença moral é completa; não há
pudor, decência, noção do dever; apenas a imitação atua em casos restritos
pela memória limitada das experiências congêneres. A irritabilidade é
considerável. Em uma palavra, a situação psíquica dos idiotas e imbecis é
inferior a dos animais superiores, na maior parte das funções intelectuais;
nos débeis, elas se esboçam todas numa pobreza de relevo em que apenas os
excedem. Todavia – observa o autor – já se viu alguns idiotas e imbecis
possuírem faculdades superiores: os talentos musical e matemático têm-se
encontrado em mais de um desses degenerados, incapazes de outras e mais
simples operações do espírito. A vaidade é sua fraqueza: ela os conduz “às
16
As anomalias atávicas não se encontram todas, com a
mesma abundância, nas raças mais selvagens, mas, mais
frequentes, não obstante, entre eles que entre os povos mais
civilizados, elas variam na proporção e podem faltar em
parte, sem que sua ausência ou sua presença possa ser vista
como uma marca de maior superioridade ou inferioridade da
últimas humilhações para obterem um arrebique de toilette, uma
condecoração, um título nobiliárquico, um lugar decorativo. As mulheres
vendem-se por uma jóia; e, por uma fita na botoeira do casaco, por um
baronato, por uma cadeira no parlamento, por um simples cargo de juiz de
confraria, os homens submetem-se a toda sorte de imposições degradantes e
a todos os exageros das despesas. A vaidade fá-los ter na maior estima a
faculdade de mandar, de que sempre abusam, torturando os que são forçados
a obedecer-lhes. Os imbecis são quase sempre prepotentes” (JÚLIO DE
MATTOS). São muito irritáveis e dados a cóleras violentas que terminam às
vezes nas impulsões das vias de fato: conheço um, de boa roda,
elegantíssimo, que se presume das melhores capacidades e que por pouco se
excede em ímpetos desproporcionados, pelo desforço muscular. Gaba-se,
depois, de resolver a muque todas as discussões em que se empenha.
Entretanto, podem ser tímidos, medrosos, vingando-se nas fanfarronadas –
“um dos aspectos de sua vaidade” (JÚLIO DE MATTOS). São crédulos e
desconfiados, “aceitam o maravilhoso e o sobrenatural, não prestam adesão
aos resultados das ciências. Os inventores de milagres e os charlatães
recrutam entre os imbecis – que aliás não acreditam em micróbios – uma
larga e segura clientela. São matéria amorfa nas mãos de exploradores de
toda ordem, seja política, religiosa ou mercantil. Mas não os prejudica
menos a irraciocinada desconfiança que sempre experimentam em face das
coisas novas, que neles atinge as proporções de uma fobia: misoneísmos.”
(JÚLIO DE MATTOS). A preguiça, a imprevidência com que facilmente
vão à mendicidade e à prostituição, depois de parasitas e vagabundos, não
17
raça. Assim, duas anomalias atávicas, aquela do osso dos
incas e a da fosseta occipital, encontram-se juntas em raças
semicivilizadas, como a americana, e são raras nos negros,
todavia mais bárbaros (Anoutchine, Bull. Soc., Moscou,
1881).
lhes priva de um rudimento de vontade, obstinada às vezes, numa tenacidade
que nada pode vencer e por isso não é nem lógica nem contingente.
“Conheço um – prossegue Afrânio Peixoto – que adquiriu um posto
científico, inventando, enredando, corrompendo, agradando, sem poupar
esforços, sem atender a razões, tanto que, afinal, para se verem livres dele,
houve uma convergência de esforços para o satisfazerem, isto é, para a paz
de cada qual. Esta obstinação é de tal força que, um outro, teimando em
submeter-se às provas de um concurso para o professorado, decorou, com
um inaudito esforço, páginas e páginas de compêndios que reproduziu mal,
num psitacismo que iludiu alguns dos juízes, conseguindo o que pretendia,
isto é, a aprovação. Agora já não se lembra de nada, pois que essas
aquisições passaram, no esquecimento fácil; mas ele lá está vitorioso.”
Aplicações Forenses – Com essa ausência de imaginação, juízo, crítica,
senso moral, sujeitos ao domínio dos reflexos e do automatismo
subconsciente, não são raros os atos violentos – incêndios, estupros, furtos –
praticados por esses deficientes: em qualquer hipótese, a estas ações faltará
premeditação, preparo, ajuste, pois exigem operações de espírito que lhes
fazem falta. Às solicitações corporais – de fome, sede, apetite de álcool ou
de fumo – eles obedecem procurando a mais pronta satisfação, pelo furto, se
é o caso, sem qualquer embaraço por uma reflexão das consequências que
não existe. A satisfação sexual tampouco os detém: masturbam-se ou
dirigem propósitos obscenos sem resguardo. Um débil mental, por ocasião
de obras e reparos no Hospício Nacional, e que escapara à vigilância num
momento, entrou na sala comum dos enfermos, pouco depois, a mostrar
18
De resto, sem reiterar que a doença, bem
freqentemente, obscurece todo traço de atavismo, é
necessário lembrar que, quando se reencontram as leis do
atavismo nos fenômenos humanos, mesmo onde eles são
menos estáveis, na embriologia, por exemplo, há risco
frequente de nos extraviarmos. É como em certos contornos
figurados nas nuvens que desaparecem quando se os olha de
muito perto; ou como esses quadros modernos: vistos de
perto, eles vos dão a impressão de crostas sobrecarregadas
de tinta; à distância, apresentam admiráveis retratos. Em
ambos os casos, todavia, a linha existe, somente que, para
vê-la, é preciso recuar o ponto de vista. Quereis a prova?
Adotai esta opinião e vereis, no mesmo instante, abrirem-se
diante de vós milhares de novas vias que se iluminam umas
às outras, iluminando, ao mesmo tempo, o tema, enquanto
umas moedas de níquel que obtivera por ter tido relações com um
trabalhador: dizia inocentemente o que fizera, ou que provocara. Assim
tantas e tantas se prostituem por pouco ou coisa nenhuma; muitos violam até
as próprias irmãs com quem convivem (IDELER, FRIEDREICH, GIRAUD,
KRAFF-EBING). A irritabilidade fácil e as cóleras incoercíveis, agressivas
e desproporcionadas podem levá-los à violência, às lesões corporais, ao
homicídio, ao incêndio. CASPER cita a observação de um até antropófago.
Finalmente, uma sugestionabilidade fácil, por desprevenida simplicidade,
torna-os capazes de se prestarem, admirados e dóceis, às incitações alheias
(os imbecis formam a corte dos paranóicos: JACOBY), como os expõe a
vítimas de muitos delitos. AFRÂNIO PEIXOTO, Medicina Legal, vol. II,
Livraria Francisco Alves, 1938. (N. dos TT.).
19
que o contrário é que se deveria produzir, caso se tratasse de
ilusão pura.
Eu responderei, agora, a uma outra acusação que
consinto, com Turati (Archivio, III), encontrar bem singular:
“Esta escola – dizem alguns adversários – foi fundada por
homens estranhos à ciência do Direito, por verdadeiros
intrusos”. – Mas esses contraditores que censuram os
médicos legistas de haverem aplicado a Medicina Legal, os
antropólogos de haverem aplicado a Antropologia às
questões sociais ou jurídicas, esquecem que os químicos
fizeram a indústria, os mecânicos, a hidráulica e a
tecnologia. Eles esquecem que, pela primeira vez, Buckle e
Taine fizeram a História positiva, quando a fundamentaram
na cronologia histórica, na economia política, na etnologia
comparada e na psicologia. Eles esquecem, enfim, que a
fisiologia moderna não é outra coisa senão uma série de
aplicações da ótica, da hidráulica, etc.! Enquanto os mesmos
críticos protestam contra toda tentativa feita para suprimir o
perigo de legislar sem haver estudado o homem e sem
conhecê-lo – e isso unicamente por horror a uma aliança
com uma ciência estranha – vemos a maior parte deles
suportar, mesmo procurar, não apenas uma aliança, mas a
ditadura de uma ciência alheia ao Direito e talvez alheia
ainda a todas as outras ciências: vou falar da Metafísica. E
têm eles a coragem de estabelecer sobre ela, mesmo sobre
20
suas hipóteses mais combatidas – aquela do livre arbítrio,
por exemplo - as leis das quais depende a segurança social!
Aqui, vejo-me embaraçado por outros juristas que me
censuram haver reduzido o Direito Criminal a um capítulo
da Psiquiatria e de arruinar a penalidade, o regime das
prisões! Isso não é verdade senão em parte. Para os
criminosos de ocasião, conformo-me com a esfera das leis
comuns e contento-me em reclamar seu alcance a métodos
preventivos. Quanto aos criminosos natos e loucos morais,
as mudanças propostas por mim não fariam senão aumentar
a segurança social, pois reclamo, para eles, uma detenção
perpétua.
A novidade de nossas conclusões mais combatidas é
assim tão grande? Não de todo. Vós encontrareis
conclusões análogas na antiguidade, em Homero quando fez
o retrato de Thersite, em Salomão (Ecles., XIII, 31) quando
proclamou que o coração muda a feição dos malvados.
Aristóteles e Avicena, G. B. Porta e Polemão descreveram a
fisionomia do homem criminal. Os dois últimos foram
mesmo mais longe que nós. Citarei ainda provérbios que,
veremos adiante, chegaram a conclusões bem mais radicais
que as minhas e nos vêm, evidentemente, dos antigos?
Há séculos já o povo sinalou a incorrigibilidade dos
culpados, sobretudo dos ladrões, e a inutilidade das
prisões11.11 Archivio di psichiatria, III, pág. 451.
21
Aquelas de nossas teorias que parecem mais ousadas
foram mesmo postas em prática em tempos bem distantes de
nós. Valerio e Loyseau citam um édito medieval
prescrevendo: no caso de dois indivíduos serem suspeitos,
aplica-se a tortura ao mais feio dos dois. A Bíblia já
distingue o criminoso nato e ordena sua condenação à morte
desde a juventude. Solon encontrou no Dictérion um
preventivo social contra a violação e a pederastia.
Observemos que, para todas essas descobertas, como
de resto para tudo o que é verdadeiramente novo no campo
experimental, nada pior que a lógica, o senso comum, o
maior inimigo das grandes verdades. É que, nos estudos
iniciais, deve-se trabalhar bem mais com o telescópio do
que com a lupa.
Com os silogismos e a lógica, com o senso comum,
vós provaríeis que é o Sol que se move e a Terra permanece
fixa. E foram astrônomos que se enganaram!
Manouvrier nos diz, com efeito, numa lógica muito
segura (Actes du Congrès d’Anthropologie Criminelle,
Paris, 1890), que não se deveria comparar os criminosos aos
soldados, porque estes já passaram por uma seleção; mas se
esquece de que comparamos os criminosos aos estudantes e
às pessoas comuns; que Marro os comparou aos operários
da cidade de Turin e que a Senhora Tarnowsky pôs em
paralelo as mulheres criminosas, as camponesas e as damas
22
russas. Ultimamente, Brancaleone-Ribaudo comparou
soldados criminosos a soldados honestos da mesma região.
É bem verdade que nos dizem que deveríamos fazer nossa
comparação com homens virtuosos, mas poderíamos
responder que a virtude, neste mundo, é já uma grande
anomalia. Eu não precisaria senão citar Charcot, Legrand
de Saulle e eu mesmo (se me permitem juntar-me a eles) no
Homme de Génie (pág. 180), para provar que a santidade –
que é a virtude mais completa – não é senão, bem
frequentemente, histeria ou ainda loucura moral.
Vós vereis que, à força da lógica, nós nos
encontraremos como o pai, o filho e o asno da fábula, na
impossibilidade de fazer qualquer escolha e de avançar um
só passo.
Manouvrier nos acusa de não haver exibido senão
criminosos monstruosos “que não provam que os
criminosos sejam monstros anatômicos”.
Verdadeiramente, é estranha tal censura da parte de
um anatomista tão distinto quanto Manouvrier, porque,
como no mundo nada ocorre por acidente, do mesmo modo,
não há monstros na natureza, e todos os fenômenos são
efeito de uma lei - os monstros talvez mais que os outros,
porque não são senão o efeito destas mesmas leis
exageradas.
23
Mas estas censuras, aliás, caem logo que se passa à
segunda crítica, pela qual: “relatei muitos exemplos sem
havê-los selecionado”.
Nesse reproche há, entretanto, verdades. É certo que,
em progredindo, vimos que não há um só tipo de criminoso,
mas muitos tipos especiais (o ladrão, por exemplo, o
escroque, o homicida), e que as mulheres criminosas têm
um mínimo de anomalias degenerativas – quase tantas
quanto as honestas.
É ainda verdadeiro que reuni (estudando crânios e
cérebros) as observações de muitos sábios assaz
discordantes entre elas. Tais diferenças se explicam muito
bem, porque cada observador detém-se com predileção
sobre algumas anomalias e negligencia outras. Foi apenas
depois que Corre chamou a atenção sobre a assimetria,
Albecht sobre o apêndice lemuriano da mandíbula e depois
que sinalei o orifício occipital médio, que a atenção dos
antropólogos se dirigiu a essas anomalias que se observam
entre os criminosos. É sempre a análise que precede a
síntese. Poderiam bem me acusar de má-fé, se eu houvesse
esquecido todos os meus antecessores.
Manouvrier esquece, a seu turno, que, dando
importância aos resultados de outros observadores, tive em
conta 617 crânios de criminosos que analisei eu mesmo,
24
reportando todos os detalhes em cifras na 1ª edição italiana
de meu Homme Criminell. Foi a esses crânios que dei mais
importância.
Mas Manouvrier ignora também que, para os vivos,
nossos estudos, longe de se restringirem a alguns monstros,
aplicam-se já a 27.915 criminosos comparados a 28.021
normais.
E ele não é exato ao afirmar que não se estudou o tipo
particular de cada espécie de criminoso. Eu não o fiz, é
verdade, senão de passagem; mas Ferri, o primeiro, depois
Ottolenghi, Frigério e, sobretudo, Marro e, na Rússia, a
Senhora Tarnowsky, fizeram-no com uma abundância de
detalhes verdadeiramente maravilhosa.
É natural que, nos primeiros trabalhos, não se visse
senão o conjunto de linhas e que, apenas depois,
estudássemos os subgrupos de cada espécie. É assim toda
criação: passamos sempre do simples ao composto, do
homogêneo ao heterogêneo.
O Professor Magnan combate minha opinião segundo
a qual, desde a infância, há uma predisposição natural ao
crime. Com tal objetivo, começa por enumerar duas ou três
páginas de Meynert sobre as sensações da criança recém
nascida. Verdadeiramente, tais citações são inúteis, porque
não há, nos primeiros dias de vida em que estudei a criança,
25
tendências criminosas. Há então um estado vegetativo que
se poderia de todo comparar àquele dos zoófitos, sem
qualquer analogia com os criminosos. Depois de insistir
numa comparação que em nada influi aqui, Magnan, a
seguir, tangencia sobre duas palavras a propósito de outro
período sobre o qual deveria deter-se.
A criança – diz ele – da vida vegetativa passa à vida
instintiva. Roguei-lhe que desenvolvesse um pouco as idéias
que resumiu nestas duas linhas, pois encontraria a chave do
enigma. Encontraria, com Perez, entre as crianças, a
precocidade da cólera que as conduz a bater nas pessoas, a
tudo destruir de modo semelhante ao selvagem que enfurece
quando mata o bisão.
Ele ouvirá Moreau dizer que muitas crianças não
podem esperar um instante por aquilo que vos pediram sem
cair numa cólera extraordinária. Ele encontrará nelas o
ciúme, a ponto de exibirem uma faca a seus genitores,
porque matam seus rivais; encontrará crianças mentirosas,
sobre a quais Bourdin escreveu uma obra notável;
encontrará, em todas, uma emoção que dura alguns
momentos e se desvanece a seguir; encontrará, com La
Fontaine, que esta idade é sem piedade. Encontrará, com
Broussais, que se comprazem em ferir animais, em
atormentar os fracos. Encontrará, entre elas, tudo como
entre os criminosos, a mais completa preguiça que não
26
exclui a atividade, desde que se trate de seu prazer ou de
suas brincadeiras, e a vaidade que as torna ufanas de suas
botinas, de seus chapéus novos, de sua mínima
superioridade.
Eis o que Magnan deveria encontrar e não encontrou
em Perez, Moreau, Bourdin, Broussais, Spencer e Taine,
que disseram tudo isso bem antes de mim: os impulsos
cruéis, as sevícias dirigidas contra os animais não se
encontram senão nas crianças completamente más,
desequilibradas.
Naturalmente, nas crianças degeneradas, taradas por
herança, tais tendências se manifestam com toda intensidade
e durante toda vida: elas eclodem na primeira ocasião e bem
antes da puberdade, porque oportunidades para praticar o
mal não faltam nunca, mesmo nessa idade. A educação
nada pode; dar-lhes-ia, no máximo, um falso verniz que é a
fonte de nossas ilusões a esse respeito. Ao contrário, nos
jovens honestos, a educação é muito eficaz; ela ajuda sua
metamorfose – sua passagem ao estado fisiológico que se
pode chamar puberdade ética – que não se manifestaria se
uma má educação a impedisse. É o caso dos girinos que
não conseguem, num meio muito frio, completar sua
metamorfose.
Mas talvez Magnam, ele mesmo, admita-o, quando
diz que não se deve ver nisso uma predisposição natural
27
aos atos delituosos, mas, sim, uma tara patológica, uma
degenerescência que perturba as funções cerebrais.
Roguei-lhe apenas que me permitisse aqui uma justa
observação.
Se fosse um jurista da velha escola metafísica que
falasse assim, eu compreenderia muito bem essas distinções
sutis, esses jogos bizantinos de palavras. Eu não os
compreendo num médico tão distinto quanto ele.
Ele não compreende que é justamente nesta tara, que
torna duráveis, que perpetua as tendências embrionárias
para o crime, que reside a natureza teratológica e mórbida
do criminoso nato; quando esta tara patológica, hereditária,
não existe, as tendências criminosas embrionárias atrofiam-
se, como se atrofiam num corpo bem munido de órgãos
embrionários – o timo, por exemplo. Magnam, depois de
haver negado os criminosos natos, apresenta-nos, ele
mesmo, uma série de casos. Não acredito que o faça para
colocar-se, ele próprio, em falta. Certamente, se é para
demonstrar que são hereditárias, nos filhos de alcoólatras,
não faz senão repetir o que já afirmei em minha edição
italiana e o que disse, antes de mim e melhor do que eu,
Saury, Knetch, Jacoby, Motet e o primeiro de todos, Morel.
E como o estimo, tanto por seu talento quanto por seu
caráter, rogo-lhe que nos confesse se tais degenerados sem
tara física não foram escolhidos por uma verdadeira seleção,
28
em meio a centenas de outros12 que eram tarados e que não
nos apresentou. Eu, todavia, não empreendi semelhante
seleção. Ofereci ao público 400 criminosos de um álbum
criminal germânico sem qualquer escolha.
Ele nos afirma ainda que nossos caracteres são
insuficientes para os magistrados. Mas quando médicos tão
clarividentes quanto ele chegam a negar fatos tão evidentes
e pôr em dúvida mesmo aqueles que descobriram eles
mesmos, certamente não podem ter a pretensão de persuadir
magistrados que teriam uma razão a mais para desconfiar de
nós. A falha está em nós.
Aliás, não é apenas para as aplicações judiciais que
estudamos; os sábios fazem a ciência pela ciência e não para
aplicações que não se poderiam estabelecer de imediato.
Quem não vê que a diagnose física terá sempre uma
chance mais segura de fazer seu caminho, de ser mais exata
que a diagnose psicológica que pode padecer, de todos os
lados, pela simulação?
Magnam está, assim como muitos sábios, ocupado
demais com suas próprias pesquisas para admitir e conhecer
as dos outros. Ele teria de saber que não são apenas os
12 No exame desses degenerados, segundo o ilustre clínico de Saint-Anne,
encontraram-se muitos desses caracteres, ainda que em menor número que
entre os criminosos. Encontrou-se o apêndice lemuriano e a assimetria num
ladrão, os incisivos laterais e o maxilar hipertrofiados numa ninfomaníaca.
Em todos, obtusidade do tato, etc.
29
caracteres fisionômicos (que às vezes podem faltar), mas os
biológicos e os funcionais, que apreciamos no criminoso
nato. Ora, esses últimos caracteres não faltam quase nunca
no verdadeiro criminoso: por exemplo, o mancinismo13, as
anomalias dos reflexos e da sensibilidade.
Pode ele afirmar que essas anomalias faltam também
entre os degenerados?
Tarde e Colajanni negam as relações entre órgão e
função, o que a priori subtrairia sua importância à
Antropologia Criminal.
“A relação entre o órgão e a função – escreve
Colajanni – é muito incerta. Não saberíamos com certeza
da existência de um órgão subordinada àquela da função: há
órgãos sem função atual” (pág. 160). Mas esta afirmação,
responde-lhe muito bem Sergi (Revue internacionale, 1889,
p. 513). É tudo simplesmente uma enormidade! Que fazem
tais órgãos sem função no organismo humano? Seriam, por
13 Afrânio Peixoto questiona o mancinismo como característica do criminoso
nato. “O uso da mão esquerda seria corrente, se a disciplina, logo nos
primeiros anos, não obrigasse a uma estúpida preferência pela mão direita: o
ambidestrismo malsinado seria o ideal de um desenvolvimento regular.
Pedagogos suíços e americanos reagem nesse sentido, restituindo à mão
prejudicada uma usurpação tamanha que ainda se atribui à outra a
normalidade exclusiva. Não há prova estatística que seja mais frequente nos
criminosos e loucos do que nos normais”. AFRÂNIO PEIXOTO,
Medicina Legal, vol. II, Livraria Francisco Alves, 1938. (N. dos TT.).
30
acaso, órgãos de reserva, devendo substituir aqueles que o
uso teria destruído, como as vestes novas substituem as
velhas? E se - segundo ele – a função engendra o órgão,
como teria nascido o órgão privado de função?
E se é verdade que os órgãos se reforçam e se
hipertrofiam em funcionando, não é menos verdade (e disso
se esquecem Tarde e Colajanni) que, para que eles
funcionem, é necessário que estejam em condições. A
barriga das pernas das dançarinas (dizia-nos, muito
espirituosamente Brouardel)14 engrossa, sem dúvida, pela
dança, mas, para isso, deve ser, antes de tudo, uma barriga
da perna.
Colajanni tenta nos abater, sem esperança de êxito,
onde entende estarmos em contradição. Mas é mais fácil
descobrir contradições no que ele mesmo escreve, tomando
duas afirmativas destacadas de um de seus livros. Nada
mais fácil, especialmente em nosso caso, do que encontrar
diversos observadores em falta. Os grupos de indivíduos
observados eram diferentes; os resultados não poderiam ser
idênticos. Isso é conhecido por todos os que se ocupam de
observações antropológicas. Se eu medisse 100 crânios de
Auvergne, por exemplo, encontraria tal cifra e tal
quantidade; se medisse 100 outros, encontraria, em muitos
elementos medidos e calculados, cifras e quantidades
diferentes, em grande parte ao menos. Por que não se daria 14 Actes du Congrès d’anthropologie criminelle. – Paris, 1890.
31
o mesmo nas observações sobre a capacidade do crânio, o
peso do cérebro, o peso do corpo, a estatura, os sinais de
degenerescência dos criminosos de diferentes regiões e
também do mesmo país? Mas a habilidade do observador
consiste em encontrar a diversidade na homogeneidade, e
não há observador superficial ou adversário de boa ou má-fé
que possa encontrar aí incoerência e contradição15.
Féré (Dégénérescense et criminalité, 1888) nega
também minha conclusão de que “os germes da loucura
moral e do crime se encontram numa feição normal nos
primeiros anos do homem, como se encontram,
constantemente, no embrião, certas formas que, no adulto,
são monstruosidades”. E isso porque, segundo ele, a
humanidade não se constitui de indivíduos com as
tendências antisociais das crianças. Em escrevendo tais
palavras, não cuida ele dos ... selvagens. Mas talvez aqui
nós não nos entendamos. Quando Preyer demonstra que
encontrou, no discurso de crianças, a logorréia, a disfrasia, a
ecolalia, bradifrasia, a parafrasia, a acatafasia dos loucos,
dos idiotas, não afirma que as crianças sejam loucas ou
idiotas; mas ele nos sinala o ponto de referência atávico
dessas anomalias16. Ele nos mostra que esses fenômenos
15 SERGI, L’Anthropologie criminelle et ses critiques. – Revue
internationale, 25 de novembro, 1889.16 “A palavra defeituosa por vícios de pronúncia é desleixada na sintaxe e
pobre no conteúdo intelectual. Entre os vícios de pronúncia, convém
32
estranhos, anormais nos loucos, são normais numa certa
idade do homem e explica assim a teratologia pela
embriologia.
Não é justo, aliás, afirmar que a degenerescência dos
criminosos exclui a existência de um tipo, porque muitos
desses caracteres são comuns a todos os degenerados: isto é
verdadeiro muitas vezes, mais certo ainda é o fato de que
cada degenerescência (cretinismo, escrofulose, etc.) tem seu
tipo especial, mesmo o gênio. Compreende-se facilmente
lembrar: a blesidade (HAMON DU FOUGERAY) – substituição de uma
consoante forte por uma fraca ou vice-versa, da qual há muitas variedades:
rotacismo: má pronúncia do r ou seu uso em vez de l (sarto, recramação);
lambdarismo – troca do r e n por l (caloça, solvete); sigmatismo ou sicio –
troca do j, ch por ss ou z (zantar, sapéu); a fagolalia – palavras e sílabas
omitidas, principalmente no fim das frases e vocábulos (reposta, clamidade,
juntá, corredô); a embolalia (MERKE) – letras e sílabas ajuntadas
(arrespondeu, quelemente, mele, fulole); a gagueira – hesitação, silabação
precedida e intercalada dos fonemas quê, qui, guê, gui; o tartamudeio –
idem, idem, relativamente ao fonema ta...ta; o tataranho ou tatibitate –
troca, atrapalhação ou mistura de sílabas; a mogilalia – incapacidade de
pronunciar certos sons; a paralalia – troca de sons; a bradilalia – lentidão na
execução da fala. A sintaxe é descuidada: há falta de concordância e
supressão das partículas de articulação. Não podem compreender as
variações pronominais nem as flexões verbais e falam sem elas – pelos
nomes e infinitivos.” Afrânio Peixoto, com bom humor, observa que “este
estilo telegráfico foi posto em moda pelos ‘novos’ escritores: estilo
esfarinhado, solto, ‘picadinho’. O conteúdo das idéias é pobre e pouco vai
além dos trocos miúdos da vida corrente, sem nenhuma ilação mais alta ou
pensamento mais largo.” AFRÂNIO PEIXOTO, Medicina Legal, vol. II,
Livraria Francisco Alves, 1938. (N. dos TT.).
33
tudo isso, quando se pensa na associação constante das más
conformações – assim a polidactilia se encontra
frequentemente combinada a alterações da íris, a retinite
pigmentosa – a espinha bífede com a hidrocefalia, com
deformidades dos membros inferiores – a hérnia com a
estreiteza das fossas nasais e com as ectopias testiculares – o
albinismo com a irregularidade da face, das orelhas, o
epicanto17, o pé chato18.
Liszt19, tendo adotado, como vimos, nossas
conclusões práticas, escreve que não pode aceitar nossas
teorias. Diz não aceitá-las porque muitas pessoas as
criticam e as combatem. Eis o destino de todos os que
ousam traçar novos caminhos no mundo científico: chocar
os sentimentos do público; enquanto que os ecléticos
adocicados, semelhantes a esponjas, absorvem tudo e, não
negando nada ou quase nada, deixam qualquer um satisfeito
dele mesmo, não encontrando quem os combata, estão
prontos a serem esquecidos de imediato.
Adolphe Guillot, em seu livro notável Les prisons de
Paris et les prisonniers, afirma que não crê, como eu, que a
fatalidade física domine o criminoso: “Se se estudasse o
17 EPICANTO – Prega no canto dos olhos produzida por excesso de pele na
base do nariz, como nos mongóis. Também chamada prega epicântica.
Enciclopédia Brasileira Mérito (N. dos TT.).18 FÉRÉ, La famille névropatique, 1876.19 Zeitschr. F. Strafsrecht, 1889.
34
homem bem antes que se tornasse criminoso, ele estaria
marcado por mudanças que o crime e suas consequências
aportam mesmo a sua personalidade física”. Mas ele
esquece que estudamos essas anomalias nas crianças e que,
mesmo nelas, encontramos uma quantidade maior que entre
os adultos.
Guillot estabelece, com a ajuda de numerosas
observações pessoais, que o criminoso, nove vezes sobre
dez, raciocina seu crime. Eu sou quase de sua opinião:
muitas vezes, mas não tão frequentemente quanto ele
acredita, ele raciocina seu crime, ele o medita, mas não pode
evitar cometê-lo, quando o mais frágil raciocínio deveria ser
suficiente para dissuadi-lo. Ora, eis a anomalia; e as
meditações do criminoso são – veja-se! – bem pouco
profundas: têm sempre uma falha que os faz descobertos,
cedo ou tarde, pela justiça, porque casos de delinquentes
astuciosos a ponto de apagarem todas as pistas de seus
crimes são uma rara exceção.
A falha cabe, de preferência, à justiça, tão pouco
armada contra o crime, justamente por sua falta de
conhecimentos psicológicos e antropológicos. Quando
juizes de instrução, tão esclarecidos quanto Guillot,
acreditam sinceramente nos remorsos de criminosos tais
com Abbadie, Gamahut e Marchandon, quando levam na
conta do arrependimento as novas perversões que cometem
35
após o crime, não é de estranhar que, bem frequentemente,
permaneçam impotentes para descobrir criminosos, mesmo
os mais estúpidos.
Para apoiar sua tese, Guillot cita um fato que seria
verdadeiramente decisivo. Roukavitchikoff, um dos
maiores filantropos da humanidade, que criou uma vila, a
Vila Roukavitchikoff para jovens detentos, narrou, no
Congresso de Roma, que, comparando as fotografias de seus
jovens criminosos na entrada e na saída, notou um
melhoramento da fisionomia que corresponderia a um
melhoramento da conduta: seus traços perderam, entre a
maior parte deles, aquilo que tinham de ameaçador, de
feroz, de bravio, para tomarem uma expressão que nos
pareceria mais doce. Ora, ele se enganou; não que mentisse,
sendo um dos filantropos mais angelicais, mais sinceros.
Foi sugestionado por sua grande obra que, todavia, não
creio inútil. Ele nos ofereceu, em Roma, um álbum
fotográfico. Eu o fiz nomear uma comissão da qual ele
mesmo fizesse parte para estudar esse álbum. Do relatório
dessa comissão resultou que, sobre 61 casos:
22 melhoraram sua fisionomia;
14 pioraram;
25 permaneceram estacionários.
Ora, dos 14 que pioraram fisionomicamente, 3
melhoraram moralmente e, dos 22 primeiros, certamente 3
36
pioraram também moralmente. Essas cifras nos foram
dadas pelo próprio Roukavitchikoff. Mas como Guillot está
em contato direto com os fatos, é mais fácil discutir com
ele. Seria suficiente citar as páginas que escreveu, onde se
vê muito bem descritos os criminosos natos que se revelam
desde a primeira juventude.
“Entre todos esses criminosos, onde o nome adquiriu
uma notoriedade que lhes permite citar sem faltar aos
deveres da discrição profissional, não conheço nenhum que,
malgrado sua juventude, não tenha sido hóspede das prisões,
ou, ao menos, que não houvesse merecido lá estar.
Primeiramente a falta havia sido leve ou superficial, depois
deu lugar a atos mais graves e mais refletidos, os quais, a
seu turno, deram nascimento ao crime. Aos 17 anos,
Marchandon, o doméstico assassino, principiou cometendo
um roubo na casa de seus patrões; os pobres ficaram em
falta. A impunidade não fez mais que o encorajar. Os 17
dias de prevenção a que foi submetido não o corrigiram e,
tão logo em liberdade, roubou outra casa. Desta vez, foi
condenado a três meses de prisão e, mais tarde, a treze, por
outro roubo ainda mais importante.
“Os quatro jovens, dentre os quais o mais velho tinha
20 anos, que se apresentaram a Senhora Ballerich,
precipitaram-se sobre ela no momento em que abria a porta,
37
estrangularam-na e esfaquearam-na. Foram todos
condenados.
“No dia em que o jovem rapaz vendedor de vinho,
Foulloy, surpreendeu seu patrão na adega, fraturando-lhe o
crânio a golpes de garrafa para roubá-lo, não apareceu
diante de nenhum tribunal; mas a instrução estabeleceu que,
antes de chegar a Paris, cometera, nas granjas onde
trabalhara, muitos pequenos roubos, pelos quais não fora
perseguido. As pessoas de sua região que o ouviram
disseram: ele é ladino, tem vícios, é extremamente astucioso
para defender-se; inteligente, sabia bem arranjar seu
negócio. Logo que fazia qualquer coisa, retirava-se muito
subtilmente. Muitas vezes – narrou um deles – predisse que
acabaria na prisão de forçados... Os jovens de sua idade
fugiam dele, que amava a leitura de maus livros, fazendo
chegar de Paris os Bandidos Célebres, manifestando sempre
o desejo de ter dinheiro.
“Citarei ainda um homem de 50 anos, pai de 17
crianças, sedutor de sua própria filha. A Corte condenou-o
a alguns anos por infanticídio e aborto. Nenhuma
condenação figuraria em sua ficha judicial, mas sua vida
não é mais que uma longa sequência de más ações.
Começou por ser um jogador, um homem de prazeres;
depois, por negócios necessariamente mal dirigidos,
procurou distrações nos vícios mais vergonhosos. Era um
38
homem de notável inteligência e indomável energia. A
devassidão o perdeu e fez dele um feroz sectário.
Testemunhas relataram que, durante a Comuna, fez-se notar
por sua violência, querendo fazer explodir Paris, gritando
pelas ruas: Enquanto houver padres, estará tudo perdido. E,
erguendo a cabeça, respondia: Fui o primeiro a abrir fogo e
o último a retirar-me.”
Proal20 cai nos mesmos erros quando sustenta que os
criminosos não são jamais fracos de espírito, degenerados,
porque, numa coletânea de causas célebres, “ao lado de
camponeses e trabalhadores, vêem-se figurar homens que
exercem funções liberais com talento, ocupando cargos
elevados, ministros (Teste, Despan-Cubière, Clement
Duvernois, etc.), deputados, senadores, pares de França;
sobre esta lista de criminosos, vemos mesmo médicos e
magistrados. Os debates e a instrução não revelam qualquer
sinal de degenerescência física e de fraqueza de espírito
entre os doutores Palmer e La Pommerais, não mais que
sobre os doutores C. e X., há pouco condenado pela Corte
de Seine-et-Oise, e de Vaucluse, por haver, em substituindo
um cadáver, ajudado um escroque a enriquecer em
detrimento de uma companhia de seguros, outro por haver,
por rivalidade profissional, tentado envenenar seu colega. O
Presidente de Entrecastraux que cortou o pescoço de sua
mulher para desposar a amante, o Duque de Choiseul-20 Le crime et la peine, 1890.
39
Praslin que cometeu um crime análogo, etc., nenhum deles
jamais foi visto como um degenerado. Fiz parte, diz ainda
Proal, há algum tempo, de uma câmara correcional que
condenou a muitos anos de prisão um velho subsecretário de
Estado do Ministério da Justiça e um advogado muito
famoso numa grande cidade, ambos levados a ações
criminosas por má conduta, amor ao luxo e aos prazeres.”
“Vice-versa – acrescenta ele – os simplórios estão
preservados do vício por seu espírito limitado (Nouvelle
Revue, 1890)”.
Ele esquece que a degenerescência não exclui o
talento nem mesmo o gênio, bem ao contrário21. Ele
esquece que nós mesmos admitimos, ao lado de criminosos
21 LOMBROSO, L’Homme de génie, 1ª ed., pág. 91, 305 e 464.
40
natos, os criminosos de ocasião22 e os criminosos por
paixão23 que não são degenerados.
E, se Proal houvesse conhecido nosso criminoso
passional, teria melhor considerado esses casos muito raros,
tais como o de Entrecastraux que, após haver matado sua
22 CRIMINOSOS DE OCASIÃO – posto que predispostos
hereditariamente ao crime “não receberam da natureza uma tendência ativa
ao delito, mas aí chegam impelidos antes pelo aguilhão das tentações que lhe
oferecem, ou seu estado pessoal, ou o meio físico e social em que vivem, e
não reincidiriam se tais tentações desaparecessem”. São excessivamente
imprevidentes, mas seu senso moral é menos obtuso do que o do criminoso
nato. Neste, “o incidente que provoca o delito é simplesmente o ponto de
aplicação, por assim dizer, de um instinto já existente; é menos uma ocasião
do que um pretexto: no criminoso de ocasião, ao contrário, é o estimulante
verdadeiro que faz germinar em um terreno, sem dúvida favorável, germes
criminosos que não estavam desenvolvidos.” Antônio MONIZ SODRÉ de
Aragão. As três escolas penais – estudo comparativo, Livraria Freitas
Bastos, 1955. (N. dos TT).
23 CRIMINOSOS POR PAIXÃO – são indivíduos cuja vida anterior foi até
sem mancha, de um temperamento sanguíneo ou nervoso e de uma
sensibilidade exagerada. Cometem o crime, quase sempre na mocidade,
arrebatados pela violência excessiva de um sentimento indomável,
arrastados pelos vendavais da paixão – paixão sempre social, útil à
coletividade, como o amor, a honra, afeição à família, o sentimento
patriótico. Têm uma constituição que possui mesmo, por vezes, alguma
coisa da constituição do louco ou do epiléptico e seu transporte criminoso
pode ser uma manifestação disfarçada do temperamento destes. São homens
que “tendo uma força suficiente para resistir às tentações ordinárias e pouco
41
mulher para desposar outra, não apenas se denunciou, como
ainda reclamou ele próprio sua condenação, quando poderia
aproveitar-se do direito de asilo, tanto fora nele potente o
remorso. Isto é o contrário do que fazem os verdadeiros
criminosos que querem subtrair-se à pena. Um magistrado
experiente não deveria acreditar nos propósitos e nas
declarações contrárias dos criminosos já na prisão, os quais
simulam arrependimento para zombar das pessoas honestas
e obter seu perdão. Lembremo-nos de Lacenaire que, no
último dia de sua vida, escrevia:
Bebamos à sabedoria
À virtude que a sustenta.
Tu podes, sem temer a embriaguez,
Ver todas as pessoas de bem
Joly e Proal criticam a teoria da hereditariedade do
crime, pois, muito frequentemente, os acusados têm
enérgicas, não na tem bastante para resistir às tempestades psicológicas que,
às vezes, atingem tal grau de violência, que pessoa alguma, por mais forte
que seja, poderia resistir.” Mostram-se “violentamente comovidos antes,
durante e depois do crime que não cometem (salvo limitadíssimas exceções)
às ocultas nem de emboscada, mas abertamente e, muitas vezes, com meios
impróprios, os primeiros que lhes vêm às mãos”. O delito é neles sempre
um fim e “não um meio de cometerem outro crime”; é sempre acompanhado
de remorso sincero que os leva a confissões completas e, não raro, ao
suicídio. Antônio MONIZ SODRÉ de Aragão, op. cit. (N. dos TT).
42
parentes honestos. Mesmo entre os grandes criminosos, faz-
se esta constatação.
Tudo isso é verdade, mas é verdade também que o
maior número de criminosos vem de criminosos, ou de
alcoólatras ou de tísicos, etc. e retornam todos à
degenerescência sob outro nome. É sempre a exceção que
Proal toma por regra: conhecendo as tribos dos Lemaires,
dos Tanre, dos Chrétien, dos Jucke, dos Motgare, se o
número fosse tão pequeno, o carrasco, às vezes, e a
degeneração, sempre, se encarregariam de provocar sua
esterilidade.
Mas a este propósito, Proal, na Nouvelle revue, e Joly,
em seu Crime, esquecem suas primeiras reservas e chegam a
demonstrar que, entre os povos antigos, a moralidade era tão
grande quanto a presente, o que destruiria a teoria do
atavismo do crime.
“Onde existem – diz ele – sociedades que viveram
durante séculos fundadas sobre o que nós reprovamos, o
roubo, o incesto, o adultério, e desprezando o que nós
louvamos, a castidade, a propriedade, a família, a
caridade?”. Em toda parte o adultério é punido, o roubo é
um crime castigado com penas severas, mesmo entre os
antigos árias (Pictet, Les origines indo-européennes, III,
pág. 152), entre os antigos hindus (Manou, VIII, 302), entre
os hebreus (Êxodo, XII, 2), entre os antigos chineses (Chou-
43
Kinh, parte III, cap. VII, II, § 15), entre os persas (id.,
Lajard, 485), entre os gregos, os romanos e os bárbaros.
Alguns crimes, o parricídio notadamente, parecem mesmo
haver sido menos cometidos que em nossos dias. “Os
persas, diz Heródoto, asseguram que jamais pessoa alguma
matou seu pai ou sua mãe” (L. I, § 137). Rômulo não
estabeleceu nenhuma pena contra o parricídio, porque tal
crime lhe parecia impossível; Plutarco diz que, durante seis
séculos, nenhum parricídio foi conhecido em Roma (Vie de
Romulus).
“Seguramente, ao lado de leis muito sábias,
encontramos, entre os povos antigos, leis iníquas, ao lado de
máximas morais muito puras, de costumes muito imorais.
Mas a violação da lei moral não supõe a ausência de sentido
moral. De outra parte, os costumes mais extravagantes,
sobretudo em matéria religiosa, não excluem o sentimento
da justiça”.
Proal não compreende que toma aqui a exceção pela
regra.
E, às exceções, ele deve procurá-las em tempos
relativamente modernos; porque o parricídio, ou ao menos a
morte dos velhos, era um verdadeiro rito religioso entre os
antigos.
Deveria ele, pois, demonstrar a moralidade nos povos
primitivos, porque o passado de 4 a 5 mil anos não
44
corresponde ao homem primitivo que data de 100.000 anos
e do qual uma pálida imagem nos é dada pelos nativos de
Daomé, pelos hotentotes, pelos australianos de hoje.
Enfim, Proal acredita que invocamos contra o livre
arbítrio os resultados das estatísticas criminais, em
apresentando o número de homicídios, assassinatos,
incêndios, envenenamentos, roubos, etc., como o mesmo a
cada ano. Ele nos prova, justamente, que não é verdade.
Mas jamais pretendemos que o fosse. Acreditamos
que o número da cota de crimes é sempre o mesmo, quando
as circunstâncias exteriores são idênticas, e que ele muda
quando mudam as circunstâncias. Os roubos crescem em
tempos de penúria; as violações, em anos bons. Mas o que é
que isso prova em favor do livre arbítrio24? Se a vontade 24 LIVRE ARBÍTRIO – A Pena e a Escola Clássica – “A Escola Clássica
do Direito Penal, que recebeu do empirismo a noção da responsabilidade a
que a pena correspondia praticamente, tentou dar-lhe uma razão filosófica.
Todos os indivíduos infratores da lei divina ou humana eram passíveis de
pena: milhares de alienados, na Idade Média, e ainda nos tempos modernos,
responderam, na prisão, na fogueira, no suplício, aos crimes praticados, às
vezes apenas de serem loucos; mas, já recentemente, o espírito público
mudara, e PINEL, CHIARUGUI e outros conseguiram, no começo do século
passado, considerá-los doentes. Os juristas estabeleceram então que o
apanágio antigo, que filósofos e teólogos nos legaram, de um livre arbítrio,
isto é, a propriedade de nos decidirmos, por nós, sem interferência estranha,
pelo bem ou pelo mal, seria a causa, a razão de ser da responsabilidade. A
pena seria devida, quando responsável o culpado, porque, em condições de
saúde, não alienado (isto é, não alheio a si mesmo), gozava do seu livre
arbítrio. Se os códigos penais feitos segundo esse critério jurídico e
45
humana varia segundo as ocasiões, não é ela,
evidentemente, escrava?25
Não responderemos aqui a certas críticas que nos
ridicularizam, porque estudamos muito certos detalhes da
vida somática dos criminosos, tais como as secreções, o
nariz, os cabelos, etc. – Não é uma censura que erguem
contra nós, mas talvez uma peça de acusação de depõe
filosófico não se exprimiram com clareza, pondo os nomes em todas as
letras, elas eram implícitas e os doutrinadores o declaravam sem
discrepância. Entretanto, o livre arbítrio, a liberdade, não existe, ao menos
nesse conceito filosófico absoluto, e seria absurdo fundar sobre ele o direito
de punir. Mais uma vez, filósofos, teólogos e juristas complicaram, sem
necessidade, a compreensão de um problema fácil, que lhes legara,
resolvido, a experiência de todos os tempos da humanidade. A pena
preexistiu a todas as hipóteses científicas, mais ou menos infelizes, que
tentaram explicá-la”. .” AFRÂNIO PEIXOTO, Medicina Legal, vol. II,
Livraria Francisco Alves, 1938. Observe-se que o autor em questão não era
adepto das teorias de César Lombroso. A obra citada é prenhe de críticas
contundentes ao tipo, às características dos criminosos, etc. Todavia, em
muitos trechos, a identificação de conceitos é quase completa. (N. dos TT.).
25 O número – escreve ele – de acusados de infanticídio dobrou de 1830 a
1860. De 1826 a 1830 era de 113; durante 30 anos, elevou-se; de 1856 a
1860 encontramos 252. Depois, desceu a 219 de 1876 a 1880 e, em 1887,
encontramos 176.
O número de acusados de abortamento, que não era maior que 12 de 1826
a 1830, elevou-se rapidamente a 48 de 1846 a 1850. Foi ainda acrescido do
dobro durante os cinco anos seguintes; é então de 88. A partir de 1861
produziu-se a mesma diminuição que já assinalei. Em 1885, o número
desses acusados não foi maior que 47; foi de 63 em 1886 e de 54 em 1887.
46
contra eles mesmos. Eles nos recordam os gracejos dos
médicos de antigamente contra a auscultação, a percussão e
o estudo termométrico das doenças. Se eles não percebem a
importância desses detalhes não cabe a nós fazê-los
perceber. Do mesmo modo, quando Brunetière louva Tarde
de não opor cifras a nossas estatísticas, não é ele mais de
nosso século, nem mesmo do século passado; porque foi
assim, em deixando de lado o desnecessário, em calculando
tudo o que se pode calcular, para triunfo do número e do
metro, que nossa era científica ultrapassou as precedentes.
As variações são sobretudo muito consideráveis no número de violações e
de atentados ao pudor cometidos contra crianças. De 1826 a 1830,
contavam-se 139 acusados. Esse número, aumentando sensivelmente quase
a cada ano, foi de 809 de 1876 a 1880. Após alguns anos, uma notável
diminuição se produziu. Com efeito, enquanto o número desses acusados era
de 809 de 1876 a 1880, não foi mais que 732 em 1884, de 628 em 1885;
subiu um pouco em 1886 (645) e, na última estatística, aquela de 1887,
desceu de maneira sensível a 594.
O número de acusados de adultério ficou 20 vezes maior a partir de
1830. Até esta época, era de 92; elevou-se a 824 de 1876 a 1880. A lei do
divórcio dobrou o número. Com efeito, era de 1.274 em 1884, de 1.601 em
1885, de 1.687 em 1886 e de 1.720 em 1887.
Resulta das estatísticas que desde há 50 anos o número de crimes
inspirados pela cupidez aumentou em muito. Era de 87 em 1838 para
100.000 habitantes; de 149 em 1887. Coisa digna de notar, é que de 1838 a
1848, houve menos crimes que tivessem por móvel a cupidez. Quanto não
se escreveu, todavia, sobre o espírito de cupidez da geração de 1830 a 1848!
A estatística criminal vem para retificar a lenda.
47
Assim é que me vanglorio de haver enriquecido esta
edição com novos estudos sobre as anomalias do esqueleto,
dos músculos, do nariz, sobre o criminoso louco, passional e
o de ocasião, sobre o campo visual, o gosto, o olfato, as
secreções; sobre os trabalhos artísticos e literários dos
criminosos.
Eu sou – dizem – um revolucionário. Isto me importa
pouco; porque, a esta acusação, posso opor outra igualmente
erguida contra mim: aquela de haver, em minhas últimas
conclusões (necessidade do crime, teoria da defesa social),
ressuscitado uma teoria ultrapassada ou que, ao menos, não
está mais em voga comparativamente àquelas dos que eu
chamaria, de bom grado, pequenos mestres da ciência que,
de ordinário, aguardam, para formar uma boa opinião
científica, a última moda da Sorbonne ou a Feira de
Leipizig. Esta acusação, aliás, cai em falso, porque sábios
ilustres – Breton, Ortolan, Tarde, Ribot, Despine na França
– Holtzendorf, Grollmann, Hoffmann, Hommel, Ruf,
Feuerbach na Alemanha – Wilson, Thompsonn, Bentham,
Hobbes na Inglaterra – Ellero, Poletti, Serafini na Itália –
sustentam todos, com novas armas, a antiga tradição, graças
à iniciativa vigorosa de Beccaria, de Carmignani e de
Romagnosi.
Mas admitamos que essa acusação seja
fundamentada; seria este motivo para rejeitar uma verdade?
48
A verdade não tem, como principal caráter, o de subsistir
eternamente? Reaparecer, mais forte e mais viva,
justamente quando a acreditam sufocada sob os ouropéis da
moda e sob os obstáculos acumulados pelos retóricos ou
pelos estéreis esforços de alguns grandes espíritos
extraviados? Não estão as teorias do movimento
49
molecular26, da eternidade da matéria27, mesmo hoje, vivas e
atuais, ainda que remontem aos tempos de Pitágoras?
Essas objeções, todavia, são sérias; elas têm por
autores sábios respeitáveis; mas há uma outra, lançada por
homens bem inferiores em saber e em boa fé, e que, por ser
26 No Século XIX, a especulação sobre a natureza da matéria deu origem às
mais variadas obras de cunho científico. É de notar que, a partir de
constatações de ordem física, eram tiradas conclusões de ordem metafísica,
ao sabor do maior rigorismo lógico-formal. Senão vejamos: ‘O
MOVIMENTO ESTÁ POR TODA PARTE, O REPOUSO ABSOLUTO
NÃO EXISTE EM PARTE ALGUMA. – Por movimento deve-se entender
não apenas o movimento visível das massas totais, mas ainda o movimento
das moléculas componentes das massas; este movimento que, no presente,
escapa a nossos olhos assim como a nossos instrumentos, é posto fora de
dúvida pelas verificações experimentais’. FERRIÈRE, Émile. La cause
première d’après les donnèes expérimentales, Alcan, Paris, 1897. (N. dos
TT.).27 À época, a teoria da eternidade da matéria era assim sustentada: ‘A
MATÉRIA NÃO PODE SER DESTRUÍDA NEM CRIADA; ELA NÃO
SOFRE SENÃO TRANSFORMAÇÕES. – A Química tem demonstrado
experimentalmente, com certeza absoluta que: 1º) É impossível criar a
menor porção de matéria; 2º) É impossível destruir a menor porção de
matéria; 3º) Quaisquer que sejam as variações de estado ou de combinações,
o peso* da matéria é invariável. Daí resultam os três teoremas metafísicos
seguintes: 1º - A matéria não teve começo, pois que não pode ser criada; 2º -
A matéria não terá fim, pois que não pode ser destruída; 3º - A matéria não
faz senão experimentar mudanças de forma, pois que, em todas as
combinações, seu peso* permanece invariável. As palavras criação,
destruição perderam seu sentido primitivo; elas não significam mais hoje
50
anônima, vaga impalpável e pouco digna de resposta. Não
é, entretanto, menos perigosa: é aquela que chamarei de
objeção da lenda.
A lenda pretende que esses trabalhos tendem a
destruir o código penal, a deixar toda liberdade aos
bandidos, a solapar a liberdade humana.
Não vêem, todavia, que, se diminuímos a
responsabilidade do indivíduo, nós a substituímos por
àquela da sociedade que é bem mais exigente e mais severa?
Que, se reduzimos a responsabilidade de um grupo de
criminosos, longe de pretender amenizar sua condição, nós
reclamamos para eles uma detenção perpétua? Esta
detenção perpétua, a sociedade moderna a repele, para
senão passagem de uma forma à outra forma. Quando o espírito fixa sua
atenção sobre uma forma que começa, ele dirá que há criação; ele chama
destruição ao fim desta mesma forma, a qual dá lugar a uma outra. Quanto à
eternidade material, seu peso*, através de suas metamorfoses indefinidas,
permanece absolutamente invariável. Em Química, essas verdades são assim
formuladas: Nada se perde, nada se cria; não há senão mudanças de forma.
Dá-se a esta lei o nome assaz impróprio, mas consagrado pelo uso, de Lei da
Conservação da Matéria. É a Lavoisier que se deve a demonstração
experimental desta lei capital. O instrumento de medida da matéria é a
balança*. Em Metafísica, como chamamos eterno àquilo que não pode ser
criado nem destruído, a expressão exata é Lei da Eternidade da Matéria”.
FERRIÈRE, Émile. La cause première d’après les donnèes
expérimentales, Alcan, Paris, 1897. * Note-se que, mais tarde, as mesmas
premissas deveriam ser expressas com a palavra massa vez de peso. (N. dos
TT.).
51
render homenagem a princípios teóricos; mas não sem se
expor, neste ponto, a grandes perigos. E, além disso, não a
vemos adotar, com infinitamente mais de incerteza, de
irregularidade e de injustiça, uma semicontinuidade da pena,
sob a forma de colônia penal, de vigilância, de residência
forçada, etc., medidas incompletas, de eficácia duvidosa,
mas em meio as quais ela se jacta de obter a segurança que
as leis ordinárias não podem fornecer?
As novas medidas penais que propomos excluem a
nota infamante, eu concordo; mas aquela que nossos
próprios juristas não crêem mais necessária; eles a
consideram como uma transformação atávica, um resto da
antiga vingança que vai desaparecendo em nossos dias. E
quem, pois, ousaria repelir tais vantagens com o objetivo
único de justificar um sentimento tão odioso? Quem não vê
que nosso tempo tem por evangelho a máxima da Senhora
de Staël: Tudo compreender e tudo perdoar!
Resta o argumento tirado do exemplo. Mas o
exemplo subsistiria, já que a detenção perpétua significa
alguma coisa bem penosa; aliás, o exemplo não é mais o
objetivo principal que persegue o legislador.
Teme-se atentar contra a moral, em reduzindo, de um
lado, a estima, de outro, o desprezo que se liga a esses atos
subtraídos ao livre arbítrio. Má razão! Primeiramente,
parece pouco sério estabelecer um freio desta importância
52
sobre um fato controverso; a seguir, ninguém pensa em
abalar o mundo do sentimento nem o conseguiria.
O critério do mérito não transformará este ponto,
quando a maior parte das virtudes e dos vícios forem
reconhecidos como efeitos de uma troca molecular.
Recusa-se admirar a beleza quem nela vê um fenômeno
completamente material e independente da vontade
humana? O diamante não tem qualquer mérito em brilhar
mais que o carvão; que mulher, todavia, rejeitaria seus
diamantes, sob o pretexto de não serem eles mais que
carvão?
Considerai todos os antropólogos; nenhum deles
gostaria de apertar a mão de um celerado; nenhum poria, no
mesmo nível, o cretino e o homem de gênio, ainda que saiba
que a estupidez de um e a inteligência de outro não são mais
que resultados orgânicos. Julgai, pois, o que fará o povo
que nada compreende dessas idéias.
Nós coroaremos sempre de flores os túmulos dos
grandes homens e atiraremos ao vento as cinzas dos
malfeitores.
Pretender que se destrói a liberdade humana, em
negando certos princípios de moral, é renovar o exemplo
daqueles que acusaram Galileu e Copérnico de perturbar e
de destruir o sistema solar, quando ensinavam que a Terra
gira, e o Sol permanece móvel. O sistema solar dura
53
sempre; será o mesmo como o mundo moral, qualquer que
seja o critério empregado para o examinar. As doutrinas
permanecem nos livros, os fatos percorrem seu curso. Os
fatos não são senão provados.
Acrescentarei mesmo que o desprezo não se liga
sempre ao crime nem à pena. Desprezamos a mulher
adúltera; admiramos – quase – o homem que se encontra na
mesma situação. Às escroquerias dos banqueiros poderosos,
chamam-se belos golpes. Os crimes e delitos políticos não
merecem nenhum desprezo e todavia são visados pelo
código penal; a pena que se lhes aplica é legitimada pelo
misoneísmo que está no coração do homem e pela
necessidade de defesa social28.
De outro lado, o desprezo pode bem contribuir para
desviar do crime um homem não ainda corrompido, mas os
criminosos natos, os criminosos de hábito não dão a isso
qualquer importância; sentem-se, de preferência, excitados
pelo rumor, mesmo pela oposição, que se faz em torno
deles.
É, aliás, bem verdade que, em se admitindo a
identidade do louco moral e do criminoso nato, se
reconheceria a existência dos semiloucos e dos criminosos
atingidos de loucura sistemática. O advogado hábil,
lamentando-se perante um juiz que faz do livre arbítrio o
fundamento da penalidade, poderia paralisar a obra da 28 LOMBROSO E LASCHI, Il delito politico. – Fratelli Bocca, 1890.
54
justiça, mostrando um doente onde outros veriam um
culpado.
Mas quê? Deveremos falsificar, rejeitar a verdade,
porque a lei, em lugar de admiti-la, engaja-se numa falsa via
pela qual se estuda o crime sem estudar o culpado? Não é
mais justo, nesta alternativa, modificar as leis conforme os
fatos, do que falsificar os fatos para acomodá-los às leis, e
isso com o único objetivo de não perturbar a tranquilidade
serena de alguns homens a quem desagrada conceder sua
atenção a esse novel elemento com que foi enriquecido o
campo de nossos estudos?
Aguardemos ainda se as medidas tomadas fora de
nossas conclusões, e em oposição a elas, resolverão, ao
menos, a seguridade social, objetivo supremo de todo
legislador. Mas quem não sabe que os penalistas mais
honestos e inteligentes concordam, na prática, que a obra da
justiça é, de qualquer sorte, um trabalho de Sísifo, uma
imensa fadiga que não chega a qualquer resultado, que os
meios sugeridos pelas escolas mais modernas, a liberdade
provisória, o júri, a liberdade condicional, em lugar de
diminuir crime, aumentam-no e, muitas vezes, limitam-se a
transformá-lo?
Que pensar, igualmente, dessas outras medidas que se
dão pela última palavra da ciência e que são, ao contrário, a
mais clara demonstração de falta absoluta de senso prático?
55
Vou falar, aqui, do abrandamento das penas aplicadas aos
reincidentes, da impunidade imposta às simples tentativas
delituosas, da extensão do júri às transações correcionais.
Pode-se dizer o mesmo das conclusões práticas
sustentadas por nossa escola? Dir-se-á que ela não conjura
em nada o perigo, que é absurda quando propõe criar asilos
criminais, prisões para seres incorrigíveis e a substituição da
primeira condenação por uma multa ou por um castigo
corporal? Cuida-se, da mesma maneira, de projetos de lei
sobre o divórcio, sobre o trabalho de crianças, sobre abuso
do álcool, que têm por objetivo prevenir a violação, o
adultério e o homicídio? Dir-se-á que erramos em pedir que
o culpado seja constrangido a reparar o dano causado na
razão de sua força ou de sua riqueza?
Negareis também que, nos processos de pederastia, de
envenenamento, de homicídio, onde as provas
frequentemente faltam, a introdução do critério
antropológico possa ser de uma utilidade bem maior que um
simples traço anatômico ou que uma dessas reações
químicas das quais, a cada ano, vemos a queda e a
ressurreição?
Quem pode negar, por exemplo, que, em certos casos,
a tatuagem, pela obscenidade do desenho, pela parte do
corpo onde é praticada, revela o crime de pederastia bem
56
melhor do que todas as lesões anatômicas, como nos
demonstra Lacassagne?
Mesmo nas questões de direto puro, esses estudos
encontram uma larga aplicação. Assim, a teoria que
substitui o direito de defesa social pela doutrina religiosa do
pecado representada pelo livre arbítrio, pela crença nos
perigos que pode fazer correr o culpado, fornece uma base
sólida à filosofia penal que até aqui oscila, sem cessar, de
um lado a outro, sem produzir qualquer resultado. Sigais
com boa fé, por critério, o temor do culpado; por indício, os
caracteres físicos e morais do criminoso nato; e tereis a
solução do problema relativo à tentativa, em termos da
inércia culpável seguida de morte que se deve punir quando
se trata de um desses miseráveis (Garofalo, Criminologie,
1885).
Vós aprendereis também, por esse meio, que, se os
coeficientes do crime variam segundo os climas, a natureza
dos castigos deve sofrer uma variação análoga, na falta da
qual a lei, posta em contradição com a opinião pública,
restará letra morta. É daí que resultam essas absolvições
que, no fundo, constituem um novo código regional em
oposição ao escrito: há nisso uma demonstração prática,
infelizmente muito reproduzida e muito perigosa, da
influência do clima sobre a moral. Os jurados das regiões
meridionais olham certos tipos de crimes com um olhar bem
57
diferente daquele do Norte. “Na província d’Aosta –
escreve Moran – o júri faz mais caso da vida que da bolsa;
no vale de Mazzara, é mais indulgente para com atentados à
mão armada; segue-se daí que os jurados pronunciam
veredictos os mais diversos nas duas regiões”.
Poder-se-ia dizer o mesmo da violação, da Camorra e
da Máfia que são julgados com muito mais indulgência no
Sul que no Norte da Itália.
E isso responde àqueles meus adversários que, sem
negar o resultado de minhas pesquisas, pretendem que elas
não podem ser aplicadas nem às ciências jurídicas nem às
ciências sociais.
Quanto àqueles que nos acusam, tão docemente, de
procurar por esta novidade os aplausos populares, fingem
eles ignorar que os loucos – venham eles das academias ou
das ruas – têm sido e serão sempre os inimigos mais
obstinados de toda novidade. O progresso não se efetua
senão às expensas de seu autor. Eles fingem ignorar que
temos sido expostos aos ressentimentos dos reacionários, às
zombarias dos pequenos mestres, aos olhos dos quais uma
coisa nova não é boa, se não for tão superficial quanto a
moda que não exige nem fadiga nem trabalho sério.
E é ainda mais espantoso ver tais adversários darem-
se por defensores da liberdade, sob o pretexto de defesa do
livre arbítrio. Eu não tenho senão uma palavra para lhes
58
responder: que lancem os olhos em torno deles e que
neguem a seguir que a teoria do livre arbítrio não seja a
doutrina preferida dos inimigos do livre pensamento e de
toda igreja ortodoxa! Oh! Que eles neguem, se puderem,
que seus discípulos se encontram, frequentemente, menos
entre as vítimas do que entre os cúmplices do despotismo!
Não me posso vangloriar de haver alcançado, mesmo
de longe, a solução ideal do problema. Por mais que avance
no caminho que tracei, por mais que pareça ao homem, de
pé sobre a montanha, ver o horizonte alargar-se diante dele,
mais se desfazem, ao mesmo tempo, os contornos da
planície.
Assim, entre o criminoso de gênio e a loucura dos
malfeitores, há um intervalo que seria bem difícil de
preencher. A mesma distância separa o mundo dos
escroques daquele dos assassinos.
De outra parte, estranho à ciência do Direito, não me
posso jactar de haver entrevisto todas as aplicações que se
podem fazer de minhas pesquisas; e eu não ignoro que
apenas a prática consagra as teorias.
Mas tais lacunas são amplamente preenchidas por um
certo número de revistas: os Archives d’anthropologie
criminelle, de Lacassagne; a Zeitsch f. gedammte
Strafsrecht, de Liszt; a Rivista sperimentale di freniatria, de
Reggio; a Rivista di filosofia scientifica, de Morselli; meu
59
Archivio di psichiatria, scienzia penali e antropologia
criminale, de Turin; os Archives psychiatriques et légales,
de Kowalewski; o Messager de psychiatrie, de
Mierzeiewski; o Bulletin de la société d’anthropologie, de
Bruxelas; a Revue philosophique, de Paris; a Revue
scientifique, de Richet. Todas essas publicações sinalam ao
público as descobertas feitas dia a dia por esses homens de
talento que têm muito desejado vir em minha ajuda.
Para completar e consolidar ainda o edifício, tenho a
minha disposição uma biblioteca inteira: a Criminologie, de
Garofalo; o Omicidio, de Ferri e sua Sociologia criminelle,
1894; o estudo antropológico e jurídico, Sull’aborto ed
infanticidio, de Balestrini; o estudo de Marro, Sur les
caracteres des criminels; aquele de Lacassagne sobre Le
Tatouage; a Criminalité comparée, de Tarde; as Maladies
de la volonté, de Ribot; as Sociétés animales, de Espinas; os
Symbolismes dans le droit, de Ferrero; a Foule criminelle,
de Sighele e seu Crime à deux; os trabalhos de Flesch, de
Sommer e de Knetch; de Drill, de Roussel, de Kurella, Baer,
Dotto, Ottolenghi, etc.
Mas, mais ainda do que com esses sábios, conto com
o apoio daquele que marcou o pensamento moderno, diante
do qual empalidecem as sombras lívidas dos críticos,
perdendo a respiração – conto com o apoio de Taine, desse
mestre de nós todos, desse grande mestre
60
...da cui io tolsi
Lo... stile che mi ha fatto onore
(Dante).
É por isso que quero consagrar por essas linhas, como
que com um amuleto científico, as primeiras páginas dessa
obra.
Turin, 31 de dezembro de 1894.
C. Lombroso.
ANEXO
Prefácio do Dr. Ch. LetourneauEste prefácio acompanha a edição francesa, Alcan, Paris, 1887, baseada na 4ª edição Italiana.
Os editores desta obra fizeram bem em encarregar-me
de apresentá-la ao público francês, mas foi tomar um tomar
uma precaução quase inútil. O Homem Delinquente teve três
61
edições na Itália e é conhecido na Europa por todos aqueles
a quem interessa a filosofia do Direito Penal. No entanto,
procurarei reconhecer a honra que me foi feita, resumindo a
idéia geral do livro de Lombroso.
Para bem compreender essa idéia, contudo, é
necessário conhecer a origem e a evolução do sentimento de
justiça, hoje inato na maior parte dos civilizados. Como
todas as origens, esta é muito simples. O primeiro móvel
que suscitou, na consciência de nossos ancestrais selvagens,
um vago sentimento de justiça foi simplesmente a
necessidade de defender-se, a resposta reflexa que, no
homem e no animal, faz, de maneira instintiva, devolver
golpe por golpe. No animal, resulta em ações
mecanicamente executadas, não deixando, na consciência,
senão traços fugidios; no homem, por grosseiro que ele seja,
mas vivendo em sociedade, a repetição das agressões e das
resistências acaba por dar a idéia de contrabalançar, mais ou
menos exatamente, os golpes recebidos e as vinganças
satisfeitas. Formulou-se então a grande lei da justiça
primitiva, a lei do talião29, tão bem resumida no adágio
29 “O instinto reflexo de defesa, – diz Letourneau, – é a raiz biológica das
idéias de Direito, de justiça, pois que ele é, evidentemente, a base da
primeira das leis, da lei do talião”. Que as noções de que ele trata tenham
uma base biológica, nada de mais verdadeiro; mas que esta raiz seja
unicamente, ou principalmente, o instinto reflexo de defesa, eis que está
muito pouco demonstrado. Em nossa opinião é também, – e antes de tudo, –
o instinto de simpatia, condição primeira e indispensável a todo grupo social,
62
semítico: olho por olho, dente por dente. Esta lei do talião,
nós a reencontramos no tempo e no espaço em todas as
raças pouco desenvolvidas. Na Austrália, resgata-se um
crime, antes, uma injustiça, permitindo à pessoa ofendida ou
aos seus parentes devolver ao ofensor golpes de lança em tal
ou qual parte do corpo, segundo a natureza e a importância
do dano causado. Com maior ou menor simplicidade, esta
forma primitiva de justiça existe em todas as sociedades
selvagens ou bárbaras. O talião não é apenas um direito: ele
é um dever. Vergonha e desonra àquele que não vinga as
injustiças, danos ou ofensas infligidas a ele ou aos seus.
Quando a comunidade ou, antes, os chefes que a
representam reivindicam ou se arrogam o direito de punir e,
sobretudo, de receber as compensações consideradas como
os equivalentes dos delitos e dos crimes, a consciência
pública protesta longo tempo e os costumes prejudicam a
justiça legal. O direito de vingança pessoal deixou, de resto,
traços na maior parte dos códigos escritos. O artigo 324 do
Código de Napoleão declara ainda que o ofendido pode
atacar e matar, sem outras formas de processo, o homem
pela comunicação contagiosa de emoções, de desejos e de idéias. TARDE,
Gabriel. As Transformações do Direito, Capitulo I, Direito Criminal,
página 13, 7ª edição, Paris, 1912. (N. da T.).
63
que encontrar fechado em sua casa com a mulher, a filha ou
a irmã do dito ofendido.
Mas, mesmo quando o direito de vingança foi
subtraído aos particulares, o poder legal substituiu-se às
suas reivindicações, comportando-se quase como o fariam
os próprios ofendidos; a lei não é, assim, senão a expressão
da vingança social. O que importa é castigar o delinquente,
fazê-lo sofrer. As penalidades legais começam por ser
atrozes; a morte é prodigalizada, mas a morte não é o
bastante; é necessário que o homem considerado culpado
sofra. Em nossa Idade Média européia, prodigalizavam-se
sem medida as mutilações e as torturas: a amputação do
nariz, das orelhas, dos lábios, da língua, a roda, a fogueira, o
esquartejamento. Os falsificadores de dinheiro eram
fervidos em óleo; os culpados de alta traição tinham o
ventre aberto e as entranhas arrancadas e queimadas. As
prisões eram terríveis. Os detentos, às vezes encerrados em
jaulas de ferro propositadamente muito pequenas, eram
sobrecarregados por correntes de enorme peso, coleiras de
ferro, etc; não se lhes devia e não se lhes dava senão pão e
água. Enfim, fazia-se do processo um jogo; a tortura era
aplicada, muitas vezes, com base em simples indícios.
Castigava-se por castigar. Mas todo esse tenebroso passado
é recente, e seu espírito vive ainda nos códigos modernos e
na consciência dos juízes que os aplicam.
64
Foram as doutrinas metafísicas, – virtualmente
arruinadas pelos progressos da ciência, – que colocaram à
vontade a consciência dos juízes e dos legisladores. A
despeito dos fatos que protestam com estrondo, ensina-se e
afirma-se que o homem é livre, sempre livre, para realizar
ou não tal ou qual ação. Cometa ele atos reputados como
imorais ou ilegais, trata-se de maldade pura, e a transgressão
cometida exige uma punição, uma vingança de preferência.
Esta vingança seria útil, inútil ou mesmo nociva ao corpo
social; eis aí questões com as quais não havia preocupação,
com as quais, até agora, não há preocupação. Sem dúvida, a
penalidade tornou-se menos selvagem graças, em geral, ao
abrandamento dos costumes, mas não se tornou, por isso,
mais perspicaz; inspira-se sempre num vago sentimento de
justiça, numa cólera legal, eco enfraquecido do antigo talião
da ancestralidade.
Quero falar, bem entendido, da justiça oficial, porque
a grande evolução intelectual que rapidamente nos arrebata
faz-se sentir nesse domínio, como em todos os outros. A
investigação científica examinou atentamente e pôs a nu as
origens de nossas idéias, de nossos sentimentos de justiça e
das leis repressivas que disso resultam. A antiga filosofia do
direito penal inspira-nos, hoje, piedade. O livre-arbítrio e a
vingança: tal constitui uma base bem frágil e um objetivo
bem miserável. Nós sabemos que, o que quer que aconteça e
65
o que quer que seja, o homem obedece, sempre e
fatalmente, ao motivo mais forte; pensamos, de outra parte,
que, se a sociedade tem, de modo incontestável, o direito de
defender-se, é, em qualquer caso, indigno dela vingar-se;
que a repressão penal não pode e não deve ser ditada senão
por razões de utilidade social cientificamente demonstrada.
A antiga ciência jurídica limitava-se a compilar e a
comentar os textos. Uma nova escola nasceu, a escola
antropológica que, deixando de lado os códigos e as
fórmulas, pôs-se a estudar o homem do ponto de vista da
criminalidade. Trata-se da escola antropológica jurídica ou
criminal. Ela tem notáveis representantes em todos os países
da Europa; ela os tem, sobretudo na Itália, onde Lombroso,
Garofalo, Ferri, etc. criaram toda uma literatura especial e,
para sempre, arruinaram as veneráveis e carcomidas teorias
da antiga criminalidade.
Essa enquete científica, minuciosamente feita e por
longo tempo continuada, trouxe à luz um fato da mais alta
importância: a existência de um tipo humano voltado ao
crime por sua própria organização; de um criminoso nato,
constituindo o grosso batalhão daquilo que,
metaforicamente, se tem chamado “o exército do crime”. É
à descrição, ao estudo deste criminoso nato, do triplo ponto
de vista físico, moral e intelectual, que é consagrada a
presente obra.
66
O criminoso completo, reunindo a maior parte dos
caracteres de seu tipo, tem, em geral, uma pequena
capacidade craniana, uma mandíbula pesada e desenvolvida,
uma grande capacidade orbital e índice orbital análogo
àquele dos cretinos, arcadas superciliares salientes. Seu
crânio é quase sempre anormal, assimétrico. A barba é rala
ou ausente, mas a cabeleira é abundante. A inserção das
orelhas é comumente em asa. Muito frequentemente o nariz
é torcido ou achatado. A fisionomia é, de ordinário,
feminina no homem, viril na mulher. A saliência mongólica
das arcadas zigomáticas não é rara.
Os criminosos são sujeitos ao daltonismo; a
proporção de canhotos é tripla entre eles. Sua força
muscular é fraca na mão e na tração, mas eles são,
frequentemente, de uma extraordinária agilidade.
As degenerescências alcoólicas ou epilépticas
atingem-nos em altas proporções.
Os elementos histológicos de seus centros nervosos
são, em larga medida, atingidos por pigmentações,
degeneração calcária, esclerose, etc.
Eles enrubescem dificilmente, e todas as variedades
da sensibilidade são, entre eles, muito obtusas.
Sua miséria moral corresponde à sua miséria
orgânica; são loucos morais.
67
Suas tendências criminosas manifestam-se desde a
infância, pelo onanismo, a crueldade, a tendência ao roubo,
uma excessiva vaidade, a astúcia, a mentira, sua aversão aos
hábitos de família, sua resistência à educação, seu caráter
impulsivo. Esses traços morais persistem e dão ao criminoso
adulto uma fisionomia mental toda particular. O criminoso
nato é invejoso, vingativo; ele odeia por odiar; ele é
indiferente às punições e sujeito a acessos de fúria sem
causa, às vezes, periódicas.
O criminoso nato é preguiçoso, devasso,
imprevidente, impulsivo e poltrão; jogador.
Ele não é susceptível de remorso e frequentemente
abandona-se com alegria aos seus instintos culpáveis.
Os criminosos têm um vivo e precoce amor pela
tatuagem que é, muitas vezes, cínica e praticada mesmo
sobre os órgãos sexuais.
Sua escrita, quando eles sabem escrever, é
frequentemente toda particular; sua assinatura, complicada,
ornada de arabescos.
As gírias criminais, muito difundidas e muito
análogas em diversos países, têm por principais caracteres
as abreviaturas e a tendência a designar os objetos por um
de seus atributos; malgrado sua aparente inconstância, estas
gírias são cheias de arcaísmos.
68
Em suas associações, os criminosos retornam às
formas sociais primitivas, à ditadura e aos códigos
draconianos.
Eu resumi, tão brevemente quanto possível, os
amplos resultados dos belos estudos contidos no livro de
Lombroso. Que, por muitas características, o retrato do
criminoso nato lembre aquele das raças inferiores, não se o
poderia negar. A quais causas gerais deve-se atribuir a
persistência, no seio das sociedades ditas civilizadas, deste
tipo inferior, o criminoso? Ao atavismo? Seguramente. Não
é mais duvidoso que descendemos de ancestrais tão
grosseiros, tão selvagens quanto as mais atrasadas raças
contemporâneas; e nós sabemos que, nas sociedades
primitivas, a maior parte das ações, hoje reputadas
criminais, é perfeitamente lícita, e tais ações são mesmo
admiradas às vezes. No sânscrito, diz-nos Pictet, existe uma
centena de raízes apenas para exprimir a idéia de matar e de
roubar. O atavismo, porém, não explica tudo. Muitos traços
característicos do criminoso nato são patológicos, são
paradas de desenvolvimento ou degenerescências.
Estamos desarmados contra os retornos atávicos, mas
seria o mesmo quanto à degeneração alcoólica ou
epiléptica? De modo algum. Aqui os fatores nocivos são de
ordem social e, consequentemente, podemos dominá-los.
69
Vimos primeiro quais consequências práticas
Lombroso e sua escola tiraram de suas interessantes
pesquisas.
Primeiramente, constataram a impotência das
medidas repressivas e do regime penitenciário em vigor na
maior parte dos países civilizados. Nada, com efeito,
proclama mais alto esta impotência que o número de
reincidências, sempre crescente, na medida em que se é
mais hábil e mais cuidadoso em registrá-las e na medida em
que atingem 40% na França (1877-78) e 70% na Bélgica.
Considerando o criminoso nato como absolutamente
incorrigível, a nova escola de antropologia jurídica reclama
para ele, corajosamente, a detenção perpétua e, ao mesmo
tempo, a abolição das liberdades provisórias e do direito de
graça. Parece-me aqui ir um pouco longe. Importa, eu creio,
não substituir a selvagem e pouco inteligente crueldade dos
velhos códigos por uma sorte de dureza impiedosa decretada
em nome da ciência. A incurabilidade de um bom número
de criminosos não está ainda suficientemente demonstrada e
não o será antes que, – segundo o desejo muito sensato de
Lombroso, – se cuidem e se tratem dos criminosos natos em
asilos especiais análogos aos nossos asilos de alienados.
Atualmente, diz Lombroso, a instrução dada em
nossos estabelecimentos penitenciários não tem outro efeito
senão que o de melhor armar o criminoso e o de aumentar o
70
número de reincidências, porque é uma instrução puramente
alfabética e totalmente insuficiente. Sobre esse ponto,
Lombroso parece-me ter toda razão e sua crítica vai além
das escolas penitenciárias. A maior proporção dos delitos de
fraude, dos envenenamentos, etc., no seio das classes ditas
esclarecidas, prova bastante que o alfabeto não faz milagres
e que a educação intelectual tem necessidade de ser
redobrada pela educação moral.
A nova escola propõe ainda, – e, aqui, não se saberia
senão aprová-la, – corrigir a insuficiência das medidas
repressivas atuais, por aquilo que Ferri chama os sustitutivi
penali, a saber: através de boas leis sobre a produção e a
venda a varejo do álcool, sobre o divórcio, pela difusão de
escolas laicas com professores casados, por recompensas
concedidas às ações virtuosas, por taxas impostas aos
relatórios dos processos criminais, pelo estabelecimento de
asilos para a infância, etc.
Seguramente, tudo isso é tão louvável quanto
desejável, mas é preciso acrescentar uma reforma profunda
e inteligente do regime penitenciário e reformas sociais não
menos radicais, caso se queira combater o mal ao mesmo
tempo em que seus efeitos e suas causas.
A nova escola parece-me muito levada a considerar a
reincidência como uma ferida incurável. Todavia Lombroso
constata, ele mesmo, mas sem aí se deter, que o sistema de
71
penalidade gradual e individualizada (Zwickau-Irlande)
reduz a proporção das reincidências a 10%, e mesmo a
menos, a 2,68%. Mas remanejar a proporção das
reincidências a 2,68%, isso equivale quase a fazê-las
desaparecer; demonstra, além disso, que os criminosos
natos, absolutamente incorrigíveis, são em número bastante
pequeno.
A esse respeito, não pude senão reproduzir algumas
reflexões que me foram inspiradas outrora por uma visita à
penitenciária de Neuchâtel (Suíça): “Nossos criminalistas
fanáticos, nossos legisladores inexperientes, para quem a
punição do criminoso é uma represália, uma vingança
social, todos esses espíritos levianos ou estreitos, aos quais
não se deve deixar de repetir, segundo a expressão de
Quételet, que é a sociedade que prepara os crimes; todos
esses pilotos cegos dos Estados modernos, para os quais o
homem não é modificável nem educável, que colocam em
toda parte a sentimentalidade e a rotina em lugar da
utilidade social, poderiam ver, bem perto de nós, na
penitenciária de Neuchâtel, aquilo que se pode obter com
sistema, – tão humano e tão científico, – de W. Crofton. Ali,
muito longe de considerar o condenado como um
reprovado, aplica-se em despertar, no seu coração, a
esperança, a mostrar-lhe que não se sente, contra ele, nem
ódio nem cólera, a persuadi-lo de que ele é, em ampla
72
medida, o árbitro de seu destino. Ele é tratado, não como um
monstro que deve sofrer e expiar, mas como um doente,
como um amigo extraviado que se quer reconduzir ao bom
caminho. Ele é instruído, ensinado moralmente, uma
profissão lhe é dada; faz-se-o passar, gradualmente, da
prisão celular à liberdade condicional com vigilância
benévola. Em uma palavra, faz-se dele um homem. Apenas,
para essa necessidade, são necessários filantropos
esclarecidos; e é mais cômodo não ter senão carcereiros.”
Eis aí o regime curativo. O verdadeiro regime
preventivo não poderia consistir senão que em profundas
reformas sociais. O criminoso nato seria seguramente muito
raro, se não fosse criado pela sociedade, ela própria. Seus
grandes fatores são a miséria e o alcoolismo. Ora, estes dois
flagelos estão em estreita correlação com a desigual
repartição das riquezas, consideravelmente agravada pelo
triunfo e pela extensão da grande indústria.
Em um relatório quase oficial, Cardani e Massara nos
ensinam que o camponês lombardo, o famiglio, não tem
senão um salário diário de 0,80 francos, com o qual ele
precisa viver, ele e sua família. Nós sabemos, de outra parte,
que existem, na Lombardia, centenas de milhares de
mulheres fiando oito horas por dia e ganhando um franco
por semana. Romuzzi, de Milão, afirma que, na província de
Côme, 1.900 crianças com menos de nove anos trabalham
73
até quinze horas por dia mediante um salário de 10 a quinze
cêntimos.
Tais fatos não são especiais à Itália. Nada seria mais
fácil que encontrar outros equivalentes e em maior número
em outros países civilizados, onde o regime industrial
triunfa mais cruelmente ainda.
A estatística nos ensina que milhões de proletários
europeus não consomem, a cada ano, 25 kg de carne por
pessoa, que o número de indigentes cresce sempre e, ao
mesmo tempo, a cifra do consumo de álcool.
Em resumo, sabemos todos que nosso assalariado
moderno é frequentemente mais abandonado, mais
miserável, mais sacrificado que o escravo antigo. Na falta
de sentimentos humanitários, o proprietário deste último
prestava-lhe, ao menos, o gênero de interesse que se tem por
um animal doméstico, representando um certo valor.
Detenho-me, nada mais tendo a insistir sobre essas
graves questões.
Que o número de criminosos natos possa ser mais ou
menos diminuído através de medidas preventivas ou
curativas, nem por isso ele deixa de existir menos, e todo
mundo ficará convencido após ver os belos, os minuciosos,
engenhosos e conscienciosos estudos de Lombroso.
Eu acreditei dever indicar, de passagem, algumas
reflexões que não puderam deixar de ser suscitadas por essa
74
interessante leitura que pode, todavia, suscitar ainda muitas
outras. A falta de espaço detém-me. Elas nascerão, aliás,
espontaneamente no espírito dos leitores deste livro.
Letourneau
75
Top Related