Que as comam eles!
João Roque Dias, CT
Tradutor
www.jrdias.com
Numa terra cujo nome não vem agora ao caso,
havia – sempre houve – uma mercearia. O
proprietário do estabelecimento, o Sr.
António, sempre danado para o negócio,
oferecia aos seus clientes de tudo e do melhor
que podia encontrar. E se havia algo que
levava os fregueses a fazerem bicha à sua
porta, era o chouriço. Aquele chouriço que
vinha direitinho das matanças de outras terras,
todas vizinhas da sua mercearia. Era chegar e
andar, que os fregueses não o deixavam ficar
nas prateleiras por muito tempo. Depois, acho
que por causa de um "brasileiro" que por lá
viveu, o Sr. António começou também a
vender "linguiça brasileira". Coisa fina.
Diferente, mas também muito apreciada.
Afinal, o pessoal do outro lado do mundo aprendeu a fazê-la com as receitas antigas
de gentes das terras do lado de cá, a que foram acrescentando os seus gostos.
Diferente, sim, mas com bom tempero. O Sr. António dizia até que só não vendia
petróleo de Angola em garrafas, porque não o deixavam...
Com o negócio a medrar, o nosso merceeiro resolveu diversificar a oferta e, em
espaço bem arranjado, abriu um restaurante. A Florência, cabo-verdiana de
nascimento, mas portuguesa no coração e nos papéis, tomou conta da cozinha. Foi
mais uma roda-viva lá na terra. Nas mesas sempre cheias comia-se, lado a lado,
bacalhau com todos a preceito, cachupa de chorar por mais, moamba de lamber os
dedos, picanha assada no melhor ponto e, para as sobremesas, a genial cozinheira
preparava um leite-creme de fazer corar os anjos, mas também coisas que
desencantava noutras paragens, como as cocadas do Brasil.
Um dia, acho que por inícios dos anos 90 do século passado, sem que se saiba bem
porquê, alguns cozinheiros de países onde se fala e escreve o português – de modo tão
variado como a comida que por lá se come – sentaram-se à mesa com o firme
propósito, asseguravam eles, de uniformizar, por meio de um miraculoso acordo, o
aspecto das comidas desses países. Foi o desassossego! Para acalmar os que não
acreditaram em tal propósito (há sempre os "saudosistas" da comida tradicional), os
cozinheiros-acordistas juraram piamente que só o aspecto dos pratos iria ser
uniformizado, que não, que o sabor continuaria a ser o de cada um, que sim, que cada
um poderia continuar a cozinhar com os seus próprios ingredientes, que obviamente,
os cozinheiros artísticos poderiam continuar a empratar como quisessem, que,
evidentemente, a coisa era absolutamente necessária para inundar o mundo inteiro
com a comida portuguesa (então as pizzas italianas e os hambúrgueres americanos
não o tinham feito?) e para as criancinhas (de 6 ou 7 anos, esclareceram até os
cozinheiros-acordistas) poderem escolher mais facilmente os pratos nas ementas
ilustradas das cantinas escolares e que a coisa se impunha mesmo, porque nos
refeitórios das Nações Unidas andava tudo louco (juravam eles...), porque os
portugueses e os brasileiros insistiam em pedir pratos diferentes, apesar de
confeccionados com ingredientes muito parecidos, que o novo aspecto, depois de
uniformizado, iria abrir as portas a uma política gastronómica a sério, e que não, que
ninguém queria mudar os pratos, mas apenas o seu aspecto exterior, e porque sim, que
sim, e porque sim senhor. Os que não viam na coisa vantagem, ou até piada alguma,
continuavam a querer comer bacalhau a parecer bacalhau, picanha com cara de
picanha e moamba que, só pelo aspecto, só podia ser moamba! Diziam até que o
aspecto da comida faz também parte do seu paladar e que os olhos também comem! E
avançaram com pareceres de gente entendida em coisas de comer a dizer que a ideia
era disparatada. Qual quê? Alguns adeptos da nova salgalhada gastronómica
começaram a chamar-lhes até “fundamentalistas” e “salazaristas”!
Os cozinheiros-acordistas da tal comida de fusão, toda nouvelle, perderam a cabeça e,
um a um, com os passaportes bem levantados acima das suas cabeças, gritaram, numa
patética e ridícula profissão-de-fé: nós não somos os donos da comida! Nós não
podemos obrigar (como se alguém alguma vez tivesse obrigado alguém...) os
brasileiros a comer chouriço português, os portugueses a comer linguiça brasileira, os
timorenses a comer galinha à moçambicana e os cabo-verdianos a comer moamba
angolana. Temos que fundir isto tudo em pratos de aspecto unificado, em que todos os
de fora podem mexer na panela de cada um dos de dentro.
E até arranjaram uma regra muito simples (números sempre são números, não é?):
quem tiver mais pessoas à mesa fica com o direito de mandar na cozinha de todos os
outros! Quando passaram tudo a escrito, sim, que estes cozinheiros-acordistas gostam
de escrever, sob o título “Acordo Gastronómico da Comida Portuguesa" a regra ficou
ainda mais clara: quando a comida brasileira era diferente da portuguesa, os pratos
poderiam, facultativamente, ser confeccionados à moda brasileira ou à moda
portuguesa; mas quando a comida portuguesa era diferente da brasileira, os pratos
teriam que ser apresentados à moda brasileira.
Sobre a comida dos outros países, o acordo era mudo, cego e paralítico: que
comessem a comida feita nas cozinhas brasileiras e portuguesas, para, depois, quem
sabe, poderem olhar orgulhosos para a expansão de uma comida que, não sendo só
deles, também podem chamar deles. Na regra dos milhões, os que são mais podem
mexer nos tachos de todos. As virtualidades desta mixórdia repelente à vista e
sensaborona na boca não são claras para ninguém, mas têm uma vantagem: como o
Brasil quer um lugar de cozinheiro nos refeitórios das Nações Unidas, sempre se pode
candidatar com um livro de receitas de “comida lusófona unificada”. Os outros países
do mundo, que sempre gostaram de provar os sabores de todos nós, hão-de admitir o
candidato para confeccionar a nova comida “fundida”, defendem os cozinheiros-
acordistas! Sem esquecer, claro, a outra vantagem, essa mais domesticamente
lusófona: acaba-se com as casas de pasto e os talhos que os portugueses mantêm
cordatamente nos outros países que comem português e substituem-se por botequins e
açougues brasileiros. Sim, dizem os cozinheiros do acordo, que isto não é só vosso e
"eles" são muitos milhões a mais...
Na mercearia do Sr. António (o pobre anda até a pensar mudar a tabuleta da loja para
Antônio, para não perder o trem da grande expansão do negócio que lhe
prometeram...) vende-se agora uma “chouguiça” desenxabida, talvez por causa dos
temperos tropicais, como manda a lei dos cozinheiros-acordistas! A cozinheira
Florência está a dar em doida: tem que cozer a chanfana em leite de coco e servi-la
com tucupi, a moamba tem que a fazer com óleo de oliva, os panados são agora
preparados com farinha de rosca, a cachupa deve parecer-se com o cozido à
portuguesa-moda-do-Recife e as sobremesas têm que levar sempre um toque de leite
moça. O António e a Florência não perceberam ainda é como é que esta nova comida
travestida e de fusão lhes vai aumentar o negócio a nível internacional e andam
seriamente preocupados com os quase 100 000 comensais portugueses, outrora fiéis
da boa mesa portuguesa, brasileira, cabo-verdiana, angolana, moçambicana e
macaense, que já declararam que não irão pôr mais os pés no novo restaurante!
Comidas daquelas? Que as comam eles!
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