Resumo: GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, pp. 1-40.
PARTE I: A ALTERNATIVA: NATUREZA OU CONVENÇÃO. O CHOQUE DE DOIS
DOGMATISMOS
CAPITULO I: A TRADIÇÃO JUSNATURALISTA E SUA AMBIVALÊNCIA
O Jusnaturalismo clássico e suas questões filosófico-políticas;
A emergência da ordem jurídica: promessas e dificuldades;
A inesgotável força de uma polêmica: o jusnaturalismo como anti-
convencionalismo.
Andréa da Conceição Pires França
Como a própria Simone Goyard-Fabre, ao final do Preâmbulo, propõe, é
necessário, para encontrar a “razão de ser do direito”, “superar as discussões doutrinárias e
as perspectivas antinômicas nas quais (...) se encerram as filosofias do direito de tipo
dogmático”(FABRE, 2002, p.XLIII). E é dessa forma, nos apresentando o embate entre
duas correntes dogmáticas, que cercam ainda hoje a grande maioria das concepções sobre o
direito, que a autora inicia a primeira parte. Sendo o capítulo I referente às tradições
jusnaturalistas e suas ambivalências, e o capítulo II, sobre as teorias juspositivistas
jurídicas e suas pretensões cientificistas.
Ela inicia seus estudos sobre o jusnaturalismo salientando que, apesar das muitas
condenações feitas ao direito natural, esse resiste na brecha deixada pelo positivismo,
quando este pretende uma neutralidade axiológica impossível. E apesar da expansão
positivista do século XIX, que em grande medida é cruel na crítica às teorias do direito
natural, essas últimas renascem constantemente, principalmente quando invocados os
direitos humanos.
Assim constitui-se uma discussão eterna, em que pensamentos diversificados e
hesitações conceituais do jusnaturalismo conflitam com as ambiguidades e imprecisões do
positivismo. Porém não conduzindo a ideia de um dualismo simplista, haja vista a
complexidade da questão fundamental que discutem: as fundações do universo jurídico.
As concepções jusnaturalistas de direito natural, no entanto, abarcam sentidos
diversificados, sendo a princípio possível separa-las em clássicas, mais vinculadas a ideia
de “natureza das coisas” (ontologicamente fundada e associada a problemática da
cosmologia), e em modernas, ligada a “natureza humana” (marcada pela obsessão
individualista e associada aos problemas da antropologia). Nesse sentido a autora concorda
que as polêmicas suscitadas pela evolução do conceito de direito natural se deu
principalmente em razão da mudança de forma e sentido que esse conceito ganhou com o
advento da modernidade, e pela resistência que ele opõe ao positivismo jurídico.
O jusnaturalismo clássico, desde o início, nas sociedades gregas, apresentou o
conceito de direito natural repleto de significações políticas e isso criou a dicotomia entre
ele e o convencionalismo. Sendo o questionamento principal: “a natureza é a autoridade
suprema a qual o direito político dos homens implica referir para munir-se de valor e força,
ou então a natureza desaparece diante da importância das convenções que os homens
erigem em regras organizadoras de suas cidades?” (FABRE, 2002, p.6).
Daí ser essencial o “vínculo originário entre direito político e história” (FABRE,
2002, p.8). A autora chama atenção para dois momentos: a criação das cidades, quando
surge a política e por consequência a Lei, para organizar a vida na Polis, por volta do
século VIIIa.C; e a invenção da escrita que permitiu a elaboração e estabilização de normas
comuns (religiosas, familiares, de caráter consuetudinário).
Mas é na genealogia da palavra Lei que a autora encontra a primeira ambiguidade:
a palavra nomos, usada a partir do século V para designar as leis, apresentava dupla
significação, que não comportava referência explicita e que acabou consagrando uma
maneira de agir, assumindo a aparência de costume – lei laica e positiva (determinada) e lei
divina que regia o universo, “a “lei civil” e a “lei natural, que não tinham nem a mesma
origem nem a mesma significação”. (FABRE, 2002, p.9). Assim torna-se evidente, aos
olhos da autora, o momento do nascimento da dualidade entre o que é normativo e o que é
positivado, entre o dever ser e o ser, entre valores e fatos.
Para os gregos a lei se firmou com a lei escrita, no entanto reconheciam a existência
de regras não escritas de forte influencia e cunho político-social. Essa lei não-escrita “se
confunde com uma regra moral de justiça; é transcendente aos homens, mas imanente ao
grande Todo do mundo. (...) Ou a lei escrita das Cidades é a imitação ou o reflexo dessa lei
divina (...); ou a lei que os legisladores “determinam” é como o próprio homem, frágil e
mutável” (FABRE, 2002, p.10). E é a partir dessa postulação valorativa que nasce conflito
de deveres em relação à lei positiva ou a lei moral, pensada por Antígona e Sófocles.
Nesse contexto, a lei divina aparece como reflexo do justo, é eterna, universal e
ninguém é marginalizado ou excluído por ela, tem valor absoluto e é imutável (Vide
história de Antígona). Em Sófocles fica ainda mais claro que religião e moral, por seu
caráter transcendental, são axiologicamente falando, superiores à política, logo, à lei
escrita.
Hegel reconhece nesse conflito entre a consciência ética de Antigona e a
consciência jurídico política de Creonte, entre lei divina e lei humana, a coexistência de
duas vontades e duas consciências, que recusam reconhecimento mútuo, aderindo cada um
à sua própria lei. Hegel observa no declínio da individualidade a superação desse momento
do direito, nascendo consequentemente “direito real ético” (FABRE, 2002, p.11).
E mesmo diante dos antagonismos que se apresentaram, como a relação entre lei
escrita e não-escrita, lei natural e lei positiva, justiça transcendente e direito positivo,
Simone Goyard insiste que o maior problema do mundo grego e que se estende ao longo
dos séculos é a acepção do termo nomos em oposição à physis estabelecida pelos sofistas, e
discutida incansavelmente por Heinimann e Pohlenz. Nomos se consolida como
“expressão, numa regra, consuetudinária ou escrita, de valores próprios de um grupo de
homens que os põem em prática”, enquanto “afirma-se a ideia de physis , introduzindo uma
fissura na autoridade da lei ou do costume” (FABRE, 2002, p.13).
O pensamento sofista, não monolítico, propõe doutrinas diferenciadas, no entanto
“insistem sempre na superioridade do estado civil em comparação ao estado selvagem: os
nomoi são artifícios que servem para preservar a vida dos homens; são úteis para sua
conservação e fazem par com a virtude civil” (FABRE, 2002, p.15). Os nomoi apresentam-
se dessa forma como regras civilizadoras, muito mais do que como leis em sentido estrito.
São, nas palavras da autora, regras-convenções, que vão de encontro ao interesse comum e
ao interesse individual, sendo desprovidas de qualquer caráter axiológico ou dentológico,
logo não podendo haver naquele momento histórico outro critério de justiça senão a
conformidade. E daí, as condutas do homem ou obedecem a necessidade natural ou
obedecem a regras que são obra dos homens? É a partir dessa perspectiva dualista dos
sofistas que ocorre a separação entre a filosofia jurídica e a filosofia política.
Dando prosseguimento a análise, Simone Goyard-Fabre cita Platão, dizendo que a
problema pensado por esse não reitera o mesmo dos sofistas (antinomia entre nomos e
physis), tratando a “relação entre a lei/convenção (ou lei positiva) e a lei cósmica (ou lei
natural)” (FABRE, 2002, p.17). Platão acredita que é a necessidade que aproxima os
homens, logo que as cidades se formam com a finalidade de proteção dos indivíduos.
Apesar de Platão mostrar em seus estudos a relação da lei política (lei da Cidade) com a
ética e a metafísica, suas reflexões são concretas e vinculadas à vida política cotidiana.
Apesar de seu idealismo, em A República Platão confere ao filosofo o único com
capacidade para legislar e governar as cidades, visto que diante da ciência compreendeu o
que é ordem e inteligibilidade. Assim, “a legislação não é uma questão de convenção
arbitrária ou de decisão gratuita; é questão de capacidade e de competência apoiada numa
ciência. Em outras palavras, o direito que o filósofo tem de fazer leis, códigos e
constituições, portanto seu direito de governar, baseia-se no conhecimento dos valores
inteligíveis, das ideias em sua idealidade, e, sobretudo, do bem, Ideia ou Valor supremo
entre todos. Sua competência cria uma obrigação; seu saber, um dever. Na Cidade, legislar
não é um privilégio; é prerrogativa que o conhecimento confere; e o exercício dessa
prerrogativa é um ofício, um serviço” (FABRE, 2002, p.19). Para Platão, a natureza da lei
se fazia assim transcendental, decorrentes da inteligência e compreensão do mundo.
Negando a posição sofista que pensava as leis como convenções decorrentes de uma
técnica, com caráter puramente utilitarista.
E se a natureza da lei para Platão é transcendental, a finalidade é bem concreta,
visto que confere unidade à Cidade, faz reinar a ordem e estabelece um vínculo
indissolúvel entre moral e política. “O direito das cidades tem de ser pensado sobre um
fundo de ser e de valor” (FABRE, 2002, p.20). Assim, as leis antecedidas por um
preâmbulo e acompanhadas de uma sanção são, para Platão, a “vitória” da razão sobre a
necessidade.
Nesse sentido, “as leis não são simples decretos, entregues ao discernimento do
legislador: só são leis se impedem os danos e as divisões na vida da Cidade” (FABRE,
2002, p.23). Logo, em Platão, lei e justiça caminham juntas. E entenda-se justiça como
uma organização na qual o papel de cada parte é determinado pelas exigências da
totalidade; supondo, ao contrário dos sofistas, a desigualdade (diferenças que formam a
complementariedade no pensamento organicista).
Atentemos para o fato de que Platão faz todas essas análises observando a
democracia ateniense, que preza o individualismo e por isso estaria fadada ao fracasso. Em
A República e em As Leis, Platão apresenta o modelo de república perfeita, fundada na
ideia de um filósofo-rei e de um sistema organicista, crítico do individualismo e do
tecnicismo das leis convencionadas (sofismo). E em todo esse contexto o filósofo em
questão apresenta a necessidade de uma Constituição na República, que além de preservar
os homens, possa torná-los melhores. Assim, a lei seria imbuída de virtude ética, o que
reforça o civismo (“zelo em contribuir para o progresso da pátria”). A ordem jurídica das
Repúblicas é, portanto, constituída de instituições que “não são boas “em si e por si”, mas
só encontram seu valor no além da dimensão sensível. É por isso que, por sua própria
natureza, elas permitem afastar o que, no mundo dos homens, é o pior, ou seja, a anarquia
ou a tirania que é sempre ausência de ordem” (FABRE, 2002, p.25).
A Lei, de forma intermediária, mostra-se como uma ponte que liga o mundo das
ideias (natureza transcendental) ao mundo da experiência (finalidade concreta). E a relação
que se perfaz entre direito natural (inteligível, universal e de ordem cósmica) e direito
positivo é a de dependência do segundo para com o primeiro. “Ele [direito natural] é prego
ao qual todas [construções do direito positivo] estão presas” (FABRE, 2002, p.26).
Hegel captou em Platão o caráter holista e organicista da legislação das repúblicas,
em que é defendida a importância da compreensão integral dos fenômenos e não a analise
isolada dos seus constituintes, e de que a Cidade, coesa, como unidade orgânica significa o
respeito pelas normas naturais.
Simone Goyard-Fabre parece mostrar-se defensora dos ideais platônicos, quando
em um único parágrafo desfigura as críticas feitas à Platão no período entre-guerras (século
XX), alegando deslocamento inadequado dos fundamentos inteligíveis da organização
jurídica da República, tanto espacialmente com temporalmente. Busca na sequência
legitimar com argumentos de Aristóteles a fonte fundante da ordem jurídica de Platão em
que a “natureza das coisas” está expressa na “natureza das leis” da Cidade.
Aristóteles reforça a natureza como fonte fundamental da lei, de onde essa última
retira seu poder de impor obediência. “É por isso que a lei jamais é expressão de ciência, e
sim dessa sabedoria prática que Aristóteles denomina phronesis ou prudência” (FABRE,
2002, p.29). E tal prudência é inseparável da virtude moral, que é a disposição para
escolher o bem, logo conforme a ordem natural das coisas. Assim, a politeia (regime)
“designa o fundamento ou a fonte das leis positivas, isto é, a organização ou o gênero de
vida que, segundo a política certa, é conforme a ordem da natureza” (FABRE, 2002, p.30).
“O cerne do problema é que a virtude moral implica conformidade à natureza ou
obediência à universal lei natural. Segundo Aristóteles assim como segundo Platão, a
consequência disso é que a desigualdade natural fornece uma justificação suficiente para o
caráter não igualitário das condições na Cidade. Essa ideia leva Aristóteles a legitimar a
escravidão” (FABRE, 2002, p.30).
Para entender essa filosofia deve-se dar contornos à concepção de justiça de
Aristóteles, que partimentaliza o justo político em natural (physicon) e legal (nomikon). A
relação entre essas partes se apresenta pela necessidade de particularizar e relativizar a
parte natural pelas decisões do legislador, por seu caráter universal e invariável. Assim as
leis se apresentam segundo os lugares e os tempos adaptando-se as diferenças presentes na
natureza do homem.
A inovação em Aristóteles está em ampliar a dimensão da lei natural, que “já não
pode ser compreendida como arquétipo transcendente ou o modelo abstrato das leis
positivas: por mais diferentes que sejam as leis das cidades em sua contingência e em sua
relatividade, todas comportam um elemento formal comum que é seu modo de traduzir ou
transcrever politicamente a lei natural. A lei natural é portanto a norma imanente à
realidade objetiva diversificada das leis positivas das cidades. Assim sendo, as leis
positivas revelam sua verdadeira natureza: não são fins, mas meios graças aos quais as
intenções da natureza se estendem e concretizam. Sua finalidade é a harmonia da
comunidade política, pois essa harmonia é a condição de realização do homem no seio da
grande Natureza” (FABRE, 2002, pp.31-32). Aristóteles, ao contrário de Platão que
encontrava o fundamento do direito na ordem da transcendência (natureza), conferiu ao
direito positivo valor fundante e sentido a partir do “Todo do mundo” (concretude). E
seguindo os ideais aristotélicos que Cícero dirá que “é da lei que se deve partir para falar
do direito. A lei é de fato a força da natureza, é o espírito, o princípio condutor do homem
que vive com retidão, a regra do justo e do injusto” (FABRE, 2002, p.34).
E observando até aqui o fio condutor da tradição jusnaturalista clássica, indagadora
da origem essencial do direito (e não de sua origem histórica), Simone Goyard-Fabre
sintetiza os pensadores acima trabalhados em três correntes de pensamento:
1) O convencionalismo preconizado pelos sofistas, em que as leis devem estar voltadas
para o cumprimento do bem, em particular do bem comum. Convencionalismo esse contra
o qual se ergueram Platão e Aristóteles.
2) A visão ética da ordem jurídica, em que o bem do homem é o que convém à sua
natureza, porém para determinação dessa conveniência é necessário situar o homem no
lugar certo na ordem imanente do cosmos. O que nos remete ao holismo e organicismo
socrático-platônico.
3) A necessidade de o direito (que organiza e estrutura a vida da cidade) se enraizar na
ordem natural do mundo, visto que é a política o campo onde se pode manifestar a
excelência humana. Teorias defendidas por Aristóteles e Cícero.
Porém, o ponto de convergência dessas percepções clássicas do direito é o
naturalismo, ou seja “a lei natural é o fundamento de todas as leis positivas que, no mundo
dos homens são uma tradução ou transposição dela” (FABRE, 2002, p.36).
Ao longo da Idade Média, a substituição do cosmologismo pelo teologismo não
alterou o locus do direito natural, que para os pensadores cristãos “continuou sendo a
norma universal do justo” (FABRE, 2002, p.36). As reflexões de Santo Agostinho, São
Tomás e Tomás de Aquino leva crer que a ordem jurídico-civil supõe a ordem natural
divina, que a funda e a guia a luz da razão. Nesse sentido, o direito natural acaba sendo
teologizado, o que lhe agrega maior significado.
Os filósofos do jusnaturalismo, apesar de suas discordâncias estão interligados pelo
fato de encontrarem na transcendência, seja da natureza, seja de deus, o fundamento
essencial da ordem jurídica; o que agrega ao direito uma ideia de horizonte ideal. Essa
perspectiva futura é essência da crítica ao artificialismo e historicismo dos sofistas, não
admitindo o direito como meras convenções.
Assim a autora assinala quanto ao direito natural: “longe de ser sua fraqueza, essa é
sua inesgotável força: propõe ao direito dos homens um “modelo” que tem a permanência
do inteligível. O importante é que a ideia do direito natural deixa o espírito ver as
exigências a que deve atender o direito positivo de que as cidades necessitam” (FABRE,
2002, p.40).
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