O TEXTO LITERÁRIO INFANTIL COMO INSTRUMENTO PARA O DESENVOLVIMENTO DA ORALIDADE
Maria Socorro Silva AlmeidaUniversidade Federal do Ceará
RESUMO
O artigo recorte do trabalho de Mestrado fundamentase na teoria sóciointeracionista. A pesquisa aconteceu em três Instituições de Educação Infantil: a primeira que trabalha de modo sistemático com a Literatura Infantil; a segunda que trabalha assistematicamente e a terceira que ainda não desenvolve trabalho com o texto literário infantil. Os sujeitos são quinze crianças, cinco de cada instituição, indicadas como as mais falantes de cada turma pela professora. Neste trabalho, apresentaremos o resultado apenas da primeira instituição. O estudo qualitativo configurase como estudo de casos múltiplos com a técnica de observação participante, teve como estratégia de coleta de dados a contação de histórias pela professora e reconto coletivo pelas crianças, mediado pela pesquisadora. Após a contação coletiva da história, as cinco crianças eram convidadas a um ambiente reservado em companhia da pesquisadora e de uma de suas professoras para o reconto coletivo. Os instrumentos de coleta de dados foram: filmadora, gravador, diário de campo, fantoches e livros de Literatura Infantil. No que se refere aos aspectos narrativos, a análise está fundamentada em Adam (1992), que estabelece critérios mínimos para se considerar a estrutura narrativa de um texto. A análise dos aspectos narrativos indicou que o acesso sistemático à Literatura Infantil favorece o desenvolvimento oral, a capacidade de narrar os fatos em sequências temporal e causal com riqueza de detalhes e negociações por parte dos sujeitos envolvidos. Assim, o trabalho sistemático com o texto literário infantil parece proporcionar o desenvolvimento do discurso narrativo oral, a capacidade de negociar, discordar e reconstruir coletivamente o texto narrativo, além de favorecer outras aprendizagens.
Palavraschave: literatura infantil. Oralidade. narrativa.
1 INTRODUÇÃO
A preocupação com a aprendizagem da oralidade é recente, uma vez que se
postulava que essa era uma modalidade da linguagem que se aprendia espontaneamente.
Assim, durante muitos anos, a prática escolar centrouse no ensinoaprendizagem das
regras gramaticais, na correção escrita e na internalizarão da língua padrão, como
modelo único, independentemente da classe social dos sujeitos em processo de
aprendizagem (MARCUSCHI, 2001 TRAVAGLIA, 2005; TARALLO, 1985; BAGNO,
1999). Atualmente, com os estudos da Sociologia e Filosofia da Linguagem, dentre
outros, compreendese que é fundamental considerar o contexto de produção de fala,
valorizar os conhecimentos espontâneos dos sujeitos, a variação linguística, função
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social da linguagem; e que, se a linguagem é produto ideológico, não pode ser
desvinculada do seu contexto de produção imediato, mas considerada e agregada à
prática escolar.
A relação entre literatura infantil, escola e linguagem oral constituem o objeto
desse trabalho. Pesquisas diversas já foram realizadas (BETTELHEIM, 1980;
COELHO, 1991; AMARILHA, 1997; TEBEROSKY e COLOMER, 2003 dentre
outros), tratando sobre o tema, contudo, a prática escolar ignora estudos como os de
Amarilha (1997) e utiliza o texto literário para contenção disciplinar, extração de
exercícios escolares, o que não favorece o gosto pela leitura nem o desenvolvimento da
oralidade. O nosso enfoque se restringe especificamente a relação entre texto literário e
desenvolvimento da oralidade, pois consideramos como Antunes que “não há
conhecimento lingüístico suficiente (lexical ou gramatical) que supra a deficiência de
não ter o que dizer” (2003: p. 45). A competência discursiva não é natural e extrapola as
regras gramaticais. A palavra como instrumento de comunicação há que ser discutida,
pois a produção oral, como a escrita, depende da qualidade, da quantidade e do
tratamento das informações às quais os sujeitos falantes têm acesso.
A pesquisa se enquadra na abordagem qualitativa, configurandose como um
estudo de casos múltiplos com a técnica de observação participante, realizado em três
instituições de Educação Infantil. Neste artigo, utilizamos os dados de um reconto de
uma das instituições. Os sujeitos são crianças com três anos de idade, indicados pela
professora como os mais “falantes” da turma, sendo cinco de cada instituição,
compondo a amostra de quinze sujeitos.
Os procedimentos utilizados foram a contação de história Chapeuzinho Vermelho
(PENTEADO, 1996), na versão dos Irmãos Grimm, contada pela professora e
recontado, coletivamente, pelas crianças sob a mediação da pesquisadora. Os
instrumentos utilizados foram livros de histórias, gravador, filmadora e diário de campo.
A base teórica recaiu sobre o sóciointeracionismo no que concerne à
compreensão das relações entre os sujeitos: criançacriança; criançaprofessor, criança
pesquisadora e o contexto social mais amplo onde estão inseridas a escola e a família.
No que se refere aos aspectos narrativos, a análise está fundamentada em Adam (1992),
que estabelece critérios mínimos para se considerar a estrutura narrativa de um texto:
Orientação em que são apresentadas as personagens, podendo referenciar o lugar e o tempo e ser acompanhada ou não por situações tensas. Complicação conjunto de motivos que violam o equilíbrio inicial;
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Resolução processo responsável pela transformação da narrativa e pelo restabelecimento do estado inicial de equilíbrio;Situação final apresenta a situação final das personagens, a retomada do equiílibrio. Fecha o mundo da narrativa.Coda ou Avaliação que marca um retorno ao mundo exterior à narrativa, ou seja, emitir uma opinião, um fechamento da história. (ADAM, 1992; GONDIM, 2004).
2 ERA UMA VEZ... A VOZ DAS CRIANÇAS...
Orientação010:S5: era uma vez... ((sussurrando e em movimento)).Complicação021:S1: foi pra floresta...023:S1: pra pegar flores pa pa carregar pa vovozinha...025:S1: foi... foi pela floresta pegar...026:S5:veio o lobo mau... 027:S1: foi... foi o lobo mau foi lá...029:S1:aí... aí... aí... aí comeu a vovozinha e o caçador...Resolução029:S1: (...) e o caçador...089:S2:ah há ... agora que te enconTEI:::090:S5: assim... ó ((teatralizando))...091:P:aí ele fez o que mais...092:S2:aí ele pegou o negócio do revolver dele e MATOU...093:S5: não...094:P: não... e como foi...095:S3: pegou a faca...097:S2:cortou a barriga dele e morreu...098:S1: não... botou uma pedrinha e costurou até::: morrer...099:S1: até::: morrer...100:S4: e bufo... caiu na cama...Situação Final Coda ou Avaliação101: e acabou a história...
As crianças contemplam todos os aspectos narrativos, mesmo com a supressão
de alguns detalhes importantes, como a troca de identidade, por exemplo.
A Orientação é contemplada de forma canônica situando o tempo: “era uma
vez...” As ações que iniciam a sequência narrativa são construídas em ordem causal.
Desse modo, os narradores constroem um mundo narrativo onde uma cadeia causal
pode se desenvolver e convergir para um fim (ADAM, 1992).
Na Complicação, as crianças elegem os elementos iniciais próprios do conflito
e os narra em sequência temporal e causal. Ainda que não explicitando o nome ou os
papéis, como a ausência dos nomes “Vovó e Chapeuzinho”, porém, presentes, pelo
sentido compartilhado entre os interlocutores e pela “cooperação interpretativa”, de
acordo com (ECO apud ADAM; REVAZ, 1997 p 39).
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Os narradores constroem todo o cenário da intriga carregandoo de tensão e
mencionam a razão primeira do desequilíbrio “foi pela floresta” e justificam a ação
da personagem – “pra pegar flores pa pa carregar pa vovozinha” e introduzem o
elemento perturbador – “Veio o lobo mau” , e a consequência: “Aí... aí... aí... aí comeu
a vovozinha e o caçador...”.
Na Resolução, a presença da personagem pacificadora garante o retorno ao
estado de equilíbrio inicial. Os narradores registram que “029:S1: (...) e o caçador...
095:S3: pegou a faca... 097:S2:cortou a barriga dele ((do lobo)) e morreu... 098:S1:
não... botou uma pedrinha e costurou até::: morrer...” Desse modo, a punição do lobo
ameaçador é garantida: morrer com a barriga cheia de pedras.
Assim, apesar de os narradores omitirem a Situação Final, ela fica implícita
pela ausência da personagem ameaçadora.
A Coda é contemplada encerrando a narrativa: “e acabou a história...”
Consideramos a abundância de linguagem dessas crianças, sua fluência verbal
e competência em recriar o texto escrito na modalidade oral, coletivamente.
Desse modo, as crianças conservam a noção de gênero pelo início canônico das
narrativas de fadas a partir da sequência começo, meio e fim. As elipses decorrem das
características do pensamento da criança dessa faixa etária, e, apesar disso, o
encadeamento causal é mantido pelo sentido compartilhado e pela sequência que os
narradores imprimem ao reconto coletivo, ou seja, uma ação decorre da outra, mantendo
elo coesivo entre os eventos. Assim, a estrutura narrativa é observada e o texto muito
rico em detalhes. (ADAM e REVAZ, 1997; REUTER, 2002).
3 ALGUMAS CONCLUSÕES
Discorrendo sobre a interação e apropriação do objeto de conhecimento por
parte do sujeito, Bruner (1997) nos adverte queA linguagem é adquirida não no papel de espectador, mas através do uso. Ser exposto a um fluxo de linguagem está longe de ser tão importante quanto usála em meio ao “fazer”. Aprender uma língua, tomando emprestada a célebre frase de John Austin, é aprender a “como fazer coisas com palavras”. A criança não está aprendendo simplesmente o que dizer, mas como, onde, para quem e sob que circunstâncias. (p. 67).
As crianças, ao participarem de uma prática pedagógica sistematizada com o
texto literário infantil, apresentam capacidade discursiva reconstruindo, coletivamente,
elementos da narrativa de modo complexo mediante negociação e interação com os
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pares. Elas apresentam, inclusive, a articulação começo meio e fim, ou seja, critérios
estabelecidos por Adam (1992) para se considerar a conservação da estrutura narrativa
de um texto.
Desse modo, evidenciamos a importância do trabalho com a Literatura Infantil
para o desenvolvimento da oralidade, do discurso narrativo e como meio de formação
do pensamento lógico, do poder de argumentação, da capacidade de atenção, de escuta e
de negociação dos pontos de vistas, propiciadas pelo intercâmbio com o texto literário, a
mediação da professora e a interação com os pares.
REFERÊNCIAS
ADAM, JeanMichel. O propósito da seqüência narrativa. In: Os textos: tipos e protótipos. Trad. De Mônica Magalhães Cavalcante e Vicência Maria Freitas Jaguaribe. Paris: Edições Nathan, 1992.
______ ; REVAZ, F. R. A análise da narrativa. Tradução de Maria Adelaide Coelho da Silva; Maria de Fátima Aguiar. Lisboa: Gradativa, 1997. (Coleção Memo).
AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Petrópolis: RJ: Vozes, 1997.
ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. O que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
BRUNER, Jerome. Atos de Significação. Tradução: Sandra Costa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
COELHO, Betty. Contar histórias: Uma Arte sem idade. – São Paulo: Ática. 1991.
GONDIM, Meire Virginia Cabral. Conta outra Vez...: O texto literário como suporte mediador do desenvolvimento de narrativas orais. Dissertação, UFC 2004.
MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita – atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.
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PENTEADO, Maria Heloísa. Contos de Grimm: Chapeuzinho Vermelho (texto em Português) Ilustrações de Anastassija Aarchipowa. São Paulo: Ática, 1996.
TARALLO, Fernando. A pesquisa Sociolingüística. São Paulo: Ática, 1985.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Os avanços nos estudos da língua falada. Entrevista concedida em março de 2005. Por Artarxerxes Modesto. www.letramagna.com/travagliaentre.htm 29/04/2006.
TEBEROSKY, Ana & COLOMER, Tereza. Aprender ler e escrever: uma proposta construtivista. Porto Alegre: Artmed, 2003.
REUTER, YVES. A análise da narrativa. O texto, a ficção e a narração. Tradução Mario Pontes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
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