1
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Sagas do “comércio justo” e percepções da modernidade na
selva central peruana
Ricardo Luiz Cruz
Rio de Janeiro
2010
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ii
Sagas do “comércio justo” e percepções da modernidade na selva central peruana
Ricardo Luiz Cruz
Tese de doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título
de Doutor em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Federico Neiburg
Rio de Janeiro
2010
iii
Sagas do “comércio justo” e percepções da modernidade na selva central peruana
Ricardo Luiz Cruz
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social
Aprovada por:
________________________________________________
Prof. Dr. Federico Neiburg (Orientador, PPGAS/MN/UFRJ)
________________________________________________
Profa. Dra. Lúcia Helena Alves Muller (PUC-RS)
________________________________________________
Prof. Dr. Mauro William Barbosa de Almeida (UNICAMP)
________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto (PPGAS/MN/UFRJ)
________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Rabossi (IFCS/UFRJ)
________________________________________________
Profa. Dra. Giralda Seyferth (Suplente, PPGAS/MN/UFRJ)
________________________________________________
Prof. Dr. John Comerford (Suplente, CPDA/UFRRJ)
Rio de Janeiro
2010
iv
Cruz, Ricardo Luiz.
Sagas do “comércio justo” e percepções da modernidade na selva central peruana/ Ricardo Luiz Cruz. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 2010.
xiii, 277 p.
Tese (doutorado) – UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, 2010.
1. Antropologia social 2. Antropologia da Economia. 3. Modernidade. 4. Comércio Justo 5. Selva central peruana I. Neiburg, Federico II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.
v
AGRADECIMENTOS
Este trabalho tem a minha assinatura, mas certamente não seria possível de ser
feito sem o apoio que recebi de duas instituições e diversas pessoas ao longo dos
últimos anos. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), agradeço pela bolsa de doutorado que me foi concedida. Já ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, sou grato por ter me
oferecido um ambiente acadêmico de alta qualidade.
Federico Neiburg, fique sabendo que desde nosso primeiro encontro, depois de
uma palestra sua em São Paulo, continuo em débito contigo pelo que vem me
ensinando. Não falo apenas de um ofício que você exerce com bastante maestria, mas
também de uma seriedade diante do pensamento alheio. Obrigado pela orientação e pelo
respeito, qualquer retribuição aos seus ensinamentos deve ser entendida como uma
forma de manter uma amizade que tanto estimo.
Ao Fernando Rabossi, Carlos Fausto, Mauro Almeida e Lucia Müller meus
sinceros agradecimentos por terem aceitado compor a banca examinadora. Um
agradecimento especial, aos dois últimos, por virem de tão longe participar da defesa e,
aos dois primeiros, por estarem por perto ao longo dos últimos anos.
Ao professor Otávio Velho e à saudosa professora Lygia Sigaud, agradeço pelos
melhores cursos de antropologia que já tive.
Junto dos alunos e alunas do PPGAS minha estadia no Rio de Janeiro não
poderia ter sido melhor. Obrigado meus amigos, acima de tudo, pela agradável
companhia. Seria injusto nomear cada um de vocês que estiveram ao meu lado nestes
anos de mestrado e doutorado, pois poderia me esquecer de alguém. É verdade que teve
vi
uma aluna que marcou ainda mais a minha vida, mas prefiro citar o nome dela no final
desses agradecimentos.
Minha pesquisa de campo no Peru não poderia ter sido possível sem a
receptividade que encontrei entre os membros da Cooperativa La Florida. Obrigado, do
fundo do meu coração, por terem me deixado participar de suas vidas e poder contar
suas histórias. Espero que esta tese sirva para ressaltar ainda mais o papel de vocês
como verdadeiros heróis dentro da selva central peruana. Em especial, gostaria de
agradecer ao Abiel, Edinson, Rachel e sua mãe, Madeleine, Heber, David, os irmãos
Pérez, Aldo, Chipana, Dario, Julia e Felix Marin.
Aos técnicos da Cooperativa Huadquiña, agradeço por permitirem que os
acompanhasse no seu trabalho junto aos produtores.
Aos membros das demais organizações de cafeicultores que pude conhecer
durante minha estadia no Peru, obrigado pela atenção e confiança.
Aos irmãos Gonzáles e aos que, assim como eu, tiveram o privilégio de se
hospedar na sua casa ao longo de 2006, em especial, aos meus amigos Sven, Stephan e
Jena, agradeço pelos bons momentos em Lima e em nossas viagens pelo país. Obrigado
também ao Lucho, que esteve conosco em muitas destas ocasiões e que gentilmente me
hospedou em Madri.
Ao Beto, mi hermano en el Perú, agradeço pelas risadas, acima de tudo.
Não posso deixar de agradecer aos meus “padrinhos”, Gomes e Márcia, e aos
meus “amigos da escola” que, apesar da distância, continuaram presentes nos momentos
mais importantes. À Claudia, obrigado pelas deliciosas refeições ao longo da reta final
do doutorado.
À Mirca e ao Theo, agradeço pela acolhida e pelo divertimento.
vii
Aos meus pais, obrigado pelo apoio material, afetivo, existencial e tudo mais.
Ao meu irmão, com quem compartilho o privilégio de fazer parte de uma família
maravilhosa, e à Bruna, sua futura esposa, agradeço pela prazerosa convivência.
Flávia, meu amor, saiba que a escrita desta tese somente deixou saudades porque
esteve intercalada com a sua presença ao meu lado. Obrigado por fazer com que a
feitura deste trabalho fosse permeada de tantos momentos inesquecíveis. Só estes
momentos já compensaram todo o esforço aqui empregado.
viii
Os homens não fazem apenas
“sobreviver”: eles sobrevivem de
certa maneira. (Marshall Sahlins)
ix
RESUMO
A selva central é uma região peruana situada entre a cordilheira andina e a
floresta amazônica. Trata-se de uma zona de “selva alta” organizada economicamente
ao redor da produção e do comércio de produtos agrícolas, com destaque para o café.
Esta tese focaliza os cafeicultores da selva central envolvidos com o sistema de
“comércio justo” regulado pela chamada Fair Trade Labelling Organizations
International (FLO). As histórias desses sujeitos se constituem em verdadeiras sagas e
têm como direção o que estes vêem como seu “progresso” ou “desenvolvimento”
individual e coletivo. O objetivo aqui é entender estas histórias. Isso significa discutir
como ocorrem, na prática, a constituição das percepções locais da modernidade, as
transformações nos seus significados e suas relações com as percepções estrangeiras da
modernidade.
Palavras-chave: Antropologia da economia, modernidade, comércio justo, selva central
peruana.
x
ABSTRACT
The Peruvian central jungle region is situated between the Andes and the
Amazon rainforest. It´s an area of "high jungle" economically organized around the
production and trade of agricultural products, especially coffee. This thesis focuses on
the central jungle growers involved with what is called the "fair trade" system governed
by the Fair Trade Labelling Organizations International (FLO). The stories of these
individuals constitute themselves into true sagas and have the direction of what they
regard as their individual and collective "progress" or "development". The goal here is
to understand these stories. This means discussing how occur, in practice, the
constitution of local perceptions of modernity, the transformation in their meanings and
their relations with foreign perceptions of modernity.
Key-words: Anthropology of economy, modernity, fair trade, Peruvian central jungle.
xi
Dedico este trabalho aos heróis da
La Florida e à minha avó Nina (in
memoriam), uma pessoa também
exemplar.
xii
SUMÁRIO
Introdução ...................................................................................................................... 1
Capítulo 1 – A pedagogia em torno da agricultura orgânica certificada................ 21
1.1 Introdução............................................................................................................ 21
1.2 A agricultura orgânica certificada ...................................................................... 25
1.3 Em campo ........................................................................................................... 29
1.4 Santa Teresa ........................................................................................................ 33
1.5 As “visitas de campo” ......................................................................................... 39
1.6 Minhas primeiras visitas ..................................................................................... 41
1.7 De volta a Sahuayaco ......................................................................................... 50
1.8 Lucmabamba ...................................................................................................... 54
1.9 A realização de um ideal em torno de um mercado global certificado .............. 64
Capítulo 2 – As sagas de um grupo de migrantes andinos na selva central............ 68
2.1 Introdução ........................................................................................................... 68
2.2 Modernos e atrasados ......................................................................................... 70
2.3 A modernidade da Cooperativa La Florida ........................................................ 77
2.4 Entre os moradores do povoado ......................................................................... 85
2.5 O êxodo andino ................................................................................................. 100
2.6 De peões a cafeicultores ................................................................................... 103
2.7 Uma comunidade de migrantes ........................................................................ 111
2.8 Comunidade como modernidade ......................................................................121
2.9 O ocaso e a “refundação” da cooperativa ......................................................... 127
2.10 Identidades e diferenças .................................................................................. 132
2.11 O sucesso da cooperativa através do comércio justo ...................................... 138
Capítulo 3 – Novos sentidos da ascensão social e do desenvolvimento coletivo.... 146
3.1 Introdução ......................................................................................................... 146
xiii
3.2 Desenvolvimento como competitividade ......................................................... 150
3.3 Os Santos .......................................................................................................... 156
3.4 A precariedade das escolas e das condições de vida dos moradores ................ 161
3.5 Os esforços em prol da educação ..................................................................... 168
3.6 Os nativos ......................................................................................................... 174
3.7 A desigualdade entre os colonos andinos ......................................................... 180
3.8 Os “mais antigos” ............................................................................................. 183
Capítulo 4 – Para além do “raio de ação” da cooperativa...................................... 191
4.1 Introdução ......................................................................................................... 191
4.2 A chegada à selva central e o encontro com Leonel ........................................ 193
4.3 O foco de Abiel no comércio de café ............................................................... 196
4.4 A conversa com o presidente ............................................................................ 199
4.5 O trabalho de Leonel na cooperativa ................................................................ 205
4.6 A Ecologic Chanchamayo ................................................................................ 213
4.7 FENCOCAFE à JNC ........................................................................................ 228
4.8 Contatos ............................................................................................................ 237
4.9 O concurso ........................................................................................................ 240
4.10 Entre a Cooperativa La Florida e a Ecologic Chanchamayo .......................... 243
4.11 A dedicação exclusiva de Leonel à Ecologic Chanchamayo ......................... 248
4.12 A nova geração ............................................................................................... 257
Conclusões finais ........................................................................................................ 264
Bibliografia ................................................................................................................. 272
1
Introdução
Vivemos num mundo em que os países são comumente classificados como
“desenvolvidos” ou “em desenvolvimento”. Mas a idéia de progresso, por detrás dessa
classificação, também permeia diversas outras experiências dos habitantes desses
países. Por exemplo, é normal que dêem sentido às suas ações através de narrativas que
envolvam noções como “melhoria das condições de vida”, “redução da pobreza” e
“modernização”. Tais concepções têm em comum o fato de representarem expectativas
ou esperanças de um futuro melhor, mesmo que os significados desse porvir e dos
meios para atingi-lo sejam os mais distintos possíveis. Elas são parte do que pode ser
chamado de campo semântico da modernidade.1
Esta pesquisa focaliza um conjunto de cafeicultores peruanos integrados ao
sistema de “comércio justo” regulado pela Fair Trade Labelling Organizations
International (FLO).2 Trata-se de tomar essa integração enquanto uma conjuntura
significativa para se pensar as sagas que dão sentido à vida destes agricultores. Isso
porque estas histórias dizem respeito ao que eles vêem como seu “desenvolvimento” ou
“progresso” individual e coletivo. O recurso a estas narrativas implica em olhar para o
comércio justo através de outros referenciais que não apenas o que seus organizadores e
estudiosos definem como a “melhoria das condições de vida” dos produtores.
1 James Ferguson (2005), por exemplo, afirma que a modernidade é capaz de ser percebida como uma “categoria nativa” compartilhada por uma vasta e heterogênea população. 2 De acordo com a FLO: “Fairtrade is an alternative approach to conventional trade and is based on a partnership between producers and consumers. Fairtrade offers producers a better deal and improved terms of trade. This allows them the opportunity to improve their lives and plan for their future. Fairtrade offers consumers a powerful way to reduce poverty through their every day shopping. When a product carries the Fairtrade Mark it means the producers and traders have met Fairtrade standards. The standards designed to address the imbalance of power in trading relationships, unstable markets and the injustices of conventional trade.” (www.fairtrade.net/about_fairtrade.html)
2
As quedas acentuadas e prolongadas no preço internacional do café marcaram a
sua comercialização ao longo das últimas duas décadas. Após o final do Acordo
Internacional do Café, em 1989, não houve nenhum arranjo político global em torno da
construção de condições mais favoráveis para os cafeicultores.3 Vale ressaltar que estes
indivíduos vivem em países tropicais geralmente incapazes de lhes proporcionar
quaisquer garantias mais substanciais para se manterem sem depender de uma dinâmica
mercantil. Não é sem razão que cada vez mais agricultores vêm participando dos novos
mercados de café difundidos justamente durante os últimos vinte anos e que
aparentemente têm lhes garantindo um maior retorno econômico.
O Peru é um dos principais países exportadores de café através do sistema de
comércio justo regulado pela FLO. Essa destacada participação dos cafeicultores
peruanos naquilo que, do ponto de vista de muitos habitantes dos países desenvolvidos,
há de mais moderno em termos comerciais, se constituí num caso privilegiado para se
observar, no âmbito das regiões cafeicultoras peruanas, as experiências em relação às
concepções estrangeiras de modernidade. Tais regiões se espalham através do que é
conhecido no país como sendo a “selva alta”; um amplo espaço geográfico situado
basicamente entre a cordilheira andina e a floresta amazônica.4
A pesquisa de campo que fundamentou esta tese de doutorado teve como
objetivo inicial entender o comércio justo (regulado pela FLO) da perspectiva dos
3 Os Acordos Internacionais do Café, em vigor entre 1962 e 1989, formaram uma série de convênios firmados, sob os auspícios das Nações Unidas (ONU), entre os ditos países produtores e os países consumidores do grão e que resultaram na regulação do mercado global do produto “em prol da oferta”, ao estabelecerem “cotas de exportação” para as nações produtoras. A vigência destes acordos se deu notadamente através de uma convergência entre os interesses dos EUA, maior país consumidor de café, e os interesses do Brasil, principal produtor do grão. (Lafer, 1979) Segundo Topik & Samper (2006), a participação dos Estados Unidos nesses convênios deve ser entendida como uma estratégia política tomada a partir do contexto que se seguiu à revolução cubana de 1959. Isso porque a manutenção de preços relativamente altos para o café supostamente ajudaria a conter o “clima revolucionário” que passou a permear as nações produtoras. Para estes autores, não foi por acaso que a saída dos EUA destes acordos se deu logo após a derrubada do muro de Berlim, isto é, com o final da chamada Guerra Fria. 4 No norte do país existe uma pequena porção de selva alta entre a cordilheira andina e o litoral do oceano pacífico. Trata-se também de uma zona economicamente organizada ao redor da cafeicultura.
3
cafeicultores peruanos integrados a esse sistema comercial. Após uma breve
permanência numa região cafeicultora localizada no sul do país, acabei me dirigindo
para a chamada selva central. Foi então neste último cenário que conduzi a maior parte
do meu trabalho de campo. Minha inserção entre os produtores de café da selva central
acabou me colocando em contato com diversos significados a respeito de fenômenos
que, sob determinados pontos de vista, eram associados ao campo semântico da
modernidade.
Um exemplo evidente desses fenômenos é o comércio justo, pelo menos da
perspectiva dos seus organizadores e estudiosos. Mas como dito acima, as incursões dos
agricultores da selva central nesse sistema comercial faziam parte de verdadeiras sagas
que marcavam suas vidas e eram igualmente pensadas com base em noções que
envolviam a expectativa ou esperança de um futuro melhor. Com o passar do tempo,
meu interesse inicial em observar a presença do comércio justo entre eles se desdobrou
numa preocupação em entender as suas histórias. Esta preocupação se transformou na
principal questão desta tese e dela derivam outras três questões que também permeiam o
presente trabalho: (1) a constituição das percepções da modernidade entre os
cafeicultores; (2) as transformações nos significados dessas percepções e (3) as relações
entre percepções locais e estrangeiras da modernidade.
Apesar dos quatro capítulos abordarem estes assuntos, cada um deles reflete
sobre um em especial. O primeiro focaliza as relações entre percepções locais e
estrangeiras da modernidade e, ao contrário dos demais capítulos, não retrata os
produtores de café da selva central, mas de outra região cafeicultora. De qualquer modo,
os problemas que levanta igualmente aparecem entre os agricultores deste primeiro
espaço e também de outros lugares. Já o capítulo seguinte, de caráter mais histórico,
aborda a constituição das percepções da modernidade entre um conjunto de
4
cafeicultores da selva central. Os dois últimos capítulos continuam tendo como
referência estes sujeitos, só que com o foco nas transformações dos significados das
suas percepções da modernidade.
O primeiro capítulo se apóia na minha experiência entre os membros de uma
cooperativa de cafeicultores situada no sul do país. Ele procura entender a adoção de
uma prática bastante comum entre os produtores de café que participam do comércio
justo: a agricultura orgânica certificada. Trata-se de uma análise focada nos funcionários
da cooperativa e nas suas ações que visam ensinar aos agricultores as regras que
caracterizam os “certificados orgânicos” que acompanham ou acompanharão seus cafés.
Tais ações são vistas ao longo do capítulo como um elemento central por detrás da
crença dos produtores na agricultura orgânica certificada enquanto um meio legítimo
para atingirem melhores condições de vida.
O segundo capítulo retrata as sagas de um grupo de migrantes andinos no
interior da selva central. Tais “colonos” fazem parte da cooperativa peruana que mais
exporta café dentro e fora do comércio justo. Através da reconstituição das histórias
destes sujeitos, procuro mostrar como a transformação deles em cafeicultores envolveu
a constituição de duas grandes narrativas capazes de dar sentido às suas ações ao longo
do tempo. Uma destas narrativas pode ser identificada com o “desenvolvimento” da
cooperativa e a outra com o “progresso” ou “ascensão social” dos produtores e seus
descendentes. Trata-se de dois referenciais temporais interdependentes que envolvem o
que é capaz de ser visto como as sagas que marcam a vida dessas pessoas.
Já o terceiro capítulo focaliza o presente vivido pelos agricultores evocados no
capítulo anterior. O objetivo é entender as mudanças nos significados que acompanham
as duas grandes narrativas que dão sentido às suas ações ao longo do tempo. Isso
implica em levantar as características dos agentes que vêm conduzindo as alterações nas
5
suas noções de “desenvolvimento” coletivo e de “progresso” individual e familiar. O
foco é, primeiramente, no gerente da cooperativa e em seu nacional e
internacionalmente reconhecido projeto de torná-la “competitiva”. Em seguida, procuro
mostrar como os produtores que vivem no território onde atua essa organização
percebem suas diferenças. A partir dessa descrição, é possível entender o
reconhecimento local dos agricultores que enfatizaram no passado o que chamam do
“investimento” na educação dos filhos e que hoje em dia se tornou um valor dominante
entre os cafeicultores.
O quarto capítulo focaliza a trajetória profissional do filho de um dos
agricultores associados à cooperativa destacada nos dois capítulos anteriores. Pude
acompanhar de perto um período crucial da vida desse sujeito e que girou em torno da
sua transformação de funcionário desta organização em um comerciante “privado” de
café. O interesse em retratar essa etapa de sua vida reside, de um lado, no fato dele ter
feito com que o comércio privado de café, então basicamente visto como contrário às
noções que os produtores associavam ao campo semântico da modernidade, passasse a
ser identificado com base nessas noções.
Por outro lado, ele é um exemplo, entre outros ao seu redor, de alguém que pode
ser identificado como parte de uma nova geração de pessoas ligadas à cooperativa de
seus pais e que, para além do território onde os sócios dela vivem, vêm se apoiando nas
conquistas dessa organização de cafeicultores para com base nelas promover a melhoria
das condições de vida de outros produtores de café. Tal movimento pressupõe uma
“objetivação” e uma “incorporação” destas conquistas enquanto os principais meios
através dos quais estes descendentes dos agricultores exercem o que vêem como uma
“missão” e uma “vocação” em prol das pessoas dedicadas à cafeicultura.
6
Nas conclusões retomo a questão mais geral da tese e as três questões dela
derivadas que igualmente permeiam os quatro capítulos. Nela procuro ressaltar as duas
grandes narrativas que dão sentido às ações dos cafeicultores da selva central e de seus
descendentes focalizados ao longo do texto. Além disso, enfatizo novamente que não só
os significados dessas histórias vão sendo alterados, na medida em que são repensados
no decorrer das circunstâncias contingentes vividas por estas pessoas, como também se
relacionam com as percepções da modernidade oriundas de outros lugares, como é o
caso do comércio justo. Igualmente discuto com as visões dos organizadores e
estudiosos desse sistema comercial e que tendem a encará-lo com base em narrativas
nas quais se pressupõem que as ações dos produtores derivam basicamente das suas
situações “materiais” ou econômicas.
Por fim, procuro discutir o fato de que as histórias dos indivíduos focalizados
nesta tese podem ser percebidas como verdadeiras sagas. Isso porque a “mitologia” ou
“cosmologia” da modernidade existente entre eles acaba positivando as dificuldades
com as quais se defrontam, na medida em que os modos como determinados agentes as
superaram fazem deles verdadeiros modelos a serem seguidos. Trata-se de uma
historicidade calcada numa visão dos “sujeitos exemplares” enquanto os principais
responsáveis pelas mudanças nos significados das narrativas que dão sentido às ações
das pessoas ao longo do tempo.
A seguir apresento o caminho que me levou em direção aos indivíduos e ao tema
sobre os quais se debruçou a pesquisa de campo que fundamenta esta tese.
* * *
7
Em julho de 2000, me dirigi ao Peru com o propósito de participar de um
encontro latino-americano de estudantes de antropologia e arqueologia na cidade de
Lima. Mas o ponto alto da viagem se deu após o término desse evento. Foi quando
segui até Cuzco, antiga capital do Império Inca e parada quase que obrigatória para
quem visita o país, onde me juntei a um grupo de turistas que empreenderia nos
próximos quatro dias uma fascinante caminhada até as ruínas de Machu Picchu. Nesse
trajeto, é possível contemplar não apenas impressionantes monumentos arqueológicos,
como também a incrível paisagem de transição entre os Andes e a Amazônia; um
espaço de selva alta no qual se localiza o destino turístico por excelência do Peru. Logo
depois estaria visitando o entorno menos conhecido de Cuzco e compartilhando, mesmo
que por breves momentos, o cotidiano de seus habitantes descendentes de povos pré-
hispânicos.5 O contato com o interior peruano e sua gente marcou-me profundamente
desde então. Cinco anos se passariam até meu regresso ao Peru. A justificativa principal
dessa segunda viagem também tinha a ver com questões acadêmicas, na medida em que
havia escolhido esse país como cenário do trabalho de campo que deveria fundamentar
minha tese de doutorado.
Finalizada a dissertação de mestrado (Cruz, 2005), passei a navegar pelas
páginas eletrônicas da internet em busca de algo que inspirasse um novo objeto de
pesquisa e que, de algum modo, me levasse para longe do universo estudado
anteriormente. É verdade que, do mestrado a respeito de um mercado financeiro,
pretendia manter o foco nos mercados.6 Mas isso estava aliado ao desejo de se afastar
5 Vale ressaltar que também explorei o dia e a noite de Cuzco como qualquer turista que visita essa cidade. Foi em Cuzco que notei, pela primeira vez e de modo bastante claro, a superestima que os peruanos depositam naqueles que vêm de fora, algo incomparável com o que tinha experimentado em outros países. 6 O interesse principal da minha dissertação de mestrado se concentrou no entendimento de um mercado
organizado com base no ideal da auto-regulação e no qual eram comercializados contratos de compra e venda futura de gado pronto para o abate.
8
do mundo das finanças e de seus personagens, cujo modo de vida acabou não
despertando suficientemente minha curiosidade, a ponto de continuar investigando-o
por mais tempo. Dada a conjuntura acadêmica que vivenciei naquele momento, era
tanto possível quanto valorizado conduzir um trabalho de campo fora do país. Foi então,
nesse contexto, que me deparei com o anúncio, numa página da internet, de uma marca
inglesa de café chamada Cafedirect Organic Machu Picchu Fresh Ground.
Na embalagem desse produto é assim destacada uma belíssima foto das ruínas
com as montanhas ao seu redor. Para quem, depois de dias caminhando, pôde observar
o nascer do sol do alto de uma dessas montanhas, a imagem de Machu Picchu talvez
fique para sempre gravada na memória. Essa lembrança, trazida à tona pela fotografia,
me levou, em certo sentido, de volta às paisagens e pessoas que conheci no Peru.
Imediatamente me imaginei conduzindo um trabalho de campo entre os produtores do
café em questão, mesmo sem saber ao certo quem eram eles. Havia chegado até esse
produto através de uma pesquisa na internet sobre os bens identificados com
certificados de comércio justo. Um selo em cima da foto na embalagem atestava a
9
participação dos referidos cafeicultores no sistema regulado pela FLO. A justificativa
que encontrei para o retorno ao país seria justamente entender a presença desse sistema
de comércio justo entre esses agricultores. Mal sabia que meu trabalho de campo iria
também envolver outras regiões cafeicultoras peruanas.
Acontece que durante minha breve estadia de duas semanas entre um grupo de
cafeicultores situados no entorno de Machu Picchu, decidi visitar o que estes
consideravam como sendo a mais conhecida zona produtora de café do país:
Chanchamayo. Apesar de participarem com bastante afinco do comércio justo, não
encontrei entre estes agricultores do sul do Peru uma recepção suficientemente calorosa
que me deixasse confortável para visitá-los novamente no ano seguinte, tendo em vista
uma permanência mais prolongada. Havia estado entre eles desde o começo de julho de
2005; em meados desse mês parti então para outro local onde também deveria encontrar
um ambiente propício para se observar a presença desse sistema comercial, de acordo
com o que estes sujeitos me informaram.
As duas semanas que permaneci em Chanchamayo, uma das três províncias que
formam a selva central, acabaram me permitindo estabelecer um contato bastante
consistente com um de seus habitantes e a partir do qual pude acessar, ao longo de sete
intermitentes meses do ano seguinte, uma rede de relações sociais que abarcava as mais
distintas regiões cafeicultoras do país. Isso porque este sujeito era funcionário da
cooperativa peruana que mais exportava café dentro e fora do comércio justo. Tal
posição de destaque dessa cooperativa fazia com que muitos de seus membros, como
era o caso desse indivíduo, intermediassem a participação de outras entidades similares
nesse sistema comercial então em voga entre as organizações de produtores de café do
país. Contudo, essa intermediação se realizava com maior vigor dentro da selva central
10
e foi justamente nessa região que permaneci mais tempo conduzindo meu trabalho de
campo.
Para além da “observação participante”, também me apoiei numa série de
publicações e documentos produzidos por distintas organizações peruanas de
cafeicultores.7 A isso se deve somar o recurso a uma bibliografia sobre o Peru e, mais
especificamente, a respeito da selva central. Como deve ficar claro ao longo das
próximas páginas, não se trata de uma tese produzida por um especialista nesse país ou
nessa região. O uso de qualquer material escrito esteve basicamente subordinado a uma
melhor compreensão das histórias das pessoas da selva central envolvidas com o
comércio justo.
* * *
É possível afirmar que a produção e o comércio de produtos agrícolas, como é o
caso do café, em especial, se constituem nos eixos em torno dos quais gira a vida
econômica da selva central. (Santos & Barclay, 1995) Nesse sentido, os mercados se
colocam como os principais meios através dos quais os seus habitantes dispõem, não só
para adquirir seu sustento, como para atingirem melhores condições de vida.8
A colonização maciça da selva central, um espaço ocupado primeiramente por
indígenas amazônicos de língua aruaque, se deu a partir da segunda metade do século
passado e, em grande medida, por pessoas das mais diferentes localidades andinas do
7 Entre as publicações utilizadas nesta pesquisa se destacam as revistas Café Peru e El Cafetalero. A primeira se trata de um “órgão informativo” da antiga Central de Organizações Cafeicultoras “Café Peru” e cuja circulação se deu entre os anos de 1977 e 1988. Já a segunda revista é uma publicação da Junta Nacional do Café e vem sendo produzida desde meados de 1997. 8 “Si algo caracteriza a los productores agrarios de la selva central es la marcada lógica mercantil de su producción y su fuerte dependencia respecto del mercado para la venta de sus productos y la adquisición de medios de subsistencia. No se trata ya de productores campesinos, sino de pequeños y medianos parceleros y agricultores que, como se ha visto, dedican la mayor parte de su trabajo y de sus tierras a una producción mercantil. Por ello la reproducción de estas unidades domésticas depende enteramente de su relación con el mercado.” (Santos & Barclay 1995 p. 333 – 334)
11
país.9 Muitos vieram trabalhar na colheita de café e se estabeleceram definitivamente na
região enquanto produtores do grão. Encontraram assim um ambiente agrícola
organizado ao redor de um produto geralmente mais valorizado economicamente do que
os que eram cultivados nos Andes. Mas estes agricultores igualmente se depararam com
o que viam como uma situação caracterizada pela presença incipiente e precária de
serviços públicos (hospitais e escolas, por exemplo) e de infra-estrutura (estradas, em
especial).
Dado o foco inicial da minha pesquisa de campo nas pessoas ligadas ao
comércio justo regulado pela FLO, era de se esperar que me aproximasse das
organizações de cafeicultores que dele participassem. Em certa medida por ter
planejado, e em parte por acaso, acabei me envolvendo mais de perto com as
organizações de produtores de café, de diversas partes do país, mas principalmente da
selva central, que se destacavam nesse tipo de comércio. Isso acabou fazendo com que
também entrasse em contato com outras entidades com as quais elas se relacionavam.
Desse modo, me deparei com relações baseadas na importância concedida nas regiões
cafeicultoras ao comércio justo, pois muitos agricultores encontravam nesse sistema
uma meio crucial para colocarem em prática suas concepções de progresso e
desenvolvimento.
O foco da pesquisa nas pessoas ligadas, de alguma maneira, com as
organizações de produtores de café envolvidas no comércio justo teve como referência
uma realidade cafeicultora bastante específica. Em 2005, por exemplo, somente 28%
dos cafeicultores do país estavam associados a alguma destas organizações. (Castillo, 9 Até a reforma agrária de 1969, a produção agrícola mercantil na selva central era dominada pelo latifúndio e o qual estava sob controle das elites do país e também de estrangeiros. Desde então, o minifúndio predomina nessa região e tem nos migrantes andinos e seus descendentes os seus principais proprietários. (Barclay & Santos, 1991) Os indígenas amazônicos, hoje minoria na selva central, sempre estiveram à margem dos processos econômicos mais amplos que perpassaram esse cenário e que foram dominados, primeiro, pelo cultivo da cana-de-açúcar, a partir de meados do século XIX, e depois pela produção de café desde o final desse século.
12
2006) Das quase trezentas destas entidades então existentes, apenas 23 exportavam seus
cafés e todas estas o faziam principalmente através do comércio justo regulado pela
FLO. Assim, é importante ter em mente que minha pesquisa focalizou uma pequena
porção do universo cafeicultor peruano. No entanto, esta pequena porção se destacava
justamente através de seu contato com um sistema comercial que passou a ser bastante
valorizado em grande parte desse universo.
Existem ao redor de 150.000 famílias que se dedicam à produção de café no
Peru. (JNC, 2005) Por volta de 90% dessas famílias têm entre meio a cinco hectares de
terra e a esmagadora maioria delas é formada por migrantes andinos e seus
descendentes. (idem) Tais características dessas famílias se refletem na própria
configuração das organizações de produtores de café. Em outras palavras, estamos
diante de entidades, criadas desde meados da década de 1960, que dão continuidade ao
processo de colonização andina das regiões cafeicultoras peruanas. A integração destas
entidades no comércio justo regulado pela FLO se coloca como uma etapa mais recente
desse processo.
* * *
A FLO é a entidade que atualmente se responsabiliza pela regulação do principal
canal global de comercialização do café e de outros produtos através de um certificado
ou selo de comércio justo. A primeira experiência de comercialização de um produto
qualquer com base num selo de comércio justo foi feita em 1988. Nesse ano, uma
organização não-governamental holandesa passou a garantir que um certificado,
presente nos cafés cultivados por um grupo de agricultores mexicanos, realmente
indicava que estes produtores tinham recebido um “preço justo” com a venda desses
13
grãos. Esta organização não-governamental holandesa e outras quinze experiências
nacionais semelhantes, criadas na América do Norte e Europa depois dela, iriam fundar
a FLO em 1997.10 O início dessas práticas de certificação, em torno do comércio justo,
pode ser entendido enquanto um movimento de ampliação da oferta de determinados
produtos para espaços tais como as grandes redes de supermercados, o que por sua vez
se relaciona com a expansão do chamado consumo ético na Europa e nos Estados
Unidos.11
Desde pelo menos a década de 1960, ou talvez antes, existem no continente
europeu e nos EUA produtos que são vendidos, em feiras e bazares “solidários”, como
provenientes de “organizações de pequenos produtores do terceiros mundo”. (Raynolds,
Murray & Wilkinson, 2007 p.7) Seus consumidores estariam supostamente dispostos a
pagar um preço considerado “justo” por estes produtos. Estamos assim diante de novos
hábitos que são colocados e vistos, principalmente nos países do chamado primeiro
mundo, como o que há de mais “moderno” em matéria de consumo.
10 Desde a criação da FLO até 2008, o preço mínimo de exportação de um café “arábico lavado convencional” no comércio justo foi de US$ 121,00 a saca (de 46 kg). Um café lavado, comumente encontrado no Peru, é aquele que passou por um beneficiamento através de água e não de tipo seco, como costuma acontecer no Brasil, por exemplo. Beneficiamento é, basicamente, o processo de separação do grão de café da polpa que o envolve. Por sua vez, a variedade arábica é aquela predominante no Peru (onde praticamente não se encontra café robusta, a outra variedade própria para o consumo humano). Dentro do comércio justo regulado pela FLO, os cafés de tipo lavado e da variedade arábica, certificados como orgânicos, recebiam por saca, até junho de 2007, um acréscimo (ao preço mínimo) de US$ 15,00 que, a partir dessa data, subiu para US$ 20,00. Também foi aumentado, nessa ocasião, o “prêmio social” por cada saca de café vendida, independentemente da variedade e beneficiamento do café. Esse bônus, que era de US$ 5 e foi para US$ 10, deve ser usado pelas próprias organizações de produtores na construção de escolas e postos médicos para a coletividade, ou na melhora da infra-estrutura da organização, por exemplo, melhorias estas feitas supostamente a critério das decisões comuns dos sócios em assembléia, tal como estabelecem as regras da FLO. 11
Em 2007, as chamadas “redes de produtores” passaram a ser também, ao lado das ditas “iniciativas certificadoras nacionais” (situadas nos países do primeiro mundo e responsáveis pela promoção do comércio justo nestes países), os controladores da FLO. Uma rede de produtores da América Latina e do Caribe, uma da África e outra da Ásia compõem atualmente, junto de 20 iniciativas certificadoras nacionais, a direção executiva da FLO, a qual se reúne através de assembléias anuais. É difícil encontrar processos de transformação social de dimensões internacionais que sejam conduzidos por produtores de café. A participação destes na direção da FLO (através das redes de produtores) é um caso raro no qual podem influir na regulação das transações de café numa escala que vai além dos limites nacionais. Vale ressaltar que foram eles que pressionaram pelo aumento nos preços pagos aos cafeicultores dentro do comércio justo.
14
Atualmente a FLO concede seu selo de comércio justo para “organizações de
pequenos produtores” e/ou “órgãos conjuntos de trabalhadores” ligados aos seguintes
produtos: banana, cacau, café, algodão, flores, frutas frescas, mel, sucos, nozes, arroz,
pimentas/ervas, bolas esportivas, açúcar, chá, vinho e “produtos alimentícios
compostos” (de diferentes tipos desses bens certificados pela FLO). No caso do café, o
comércio justo regulado pela FLO se constitui num nicho do mercado internacional no
qual os cafeicultores só podem participar se estiverem filiados a alguma cooperativa ou
associação e em tese não utilizarem mão-de-obra permanentemente contratada em suas
plantações (o que, de acordo com a FLO, faz deles “pequenos produtores”). Uma vez
certificada, por um “inspetor”, as “organizações de pequenos produtores de café”
podem então vender seus grãos para “compradores” igualmente certificados e que as
remunerem de acordo com as normas estipuladas pela FLO. Essa remuneração se baseia
tanto num “preço mínimo”, acima dos custos médios globais de produção do café, que
proporciona aos seus produtores certa margem de lucro (de 10 a 20 por cento), quanto
num “prêmio social” a ser investido em suas organizações (e não repartido entre eles).
Os compradores de tais cafés são as entidades responsáveis pela torrefação dos mesmos,
para daí, embalados, receberem o selo do comércio justo da FLO.12 O consumo de café
certificado pela FLO encontra assim no selo impresso na embalagem do produto um
sinal de distinção.
As organizações de pequenos produtores, os órgãos conjuntos de trabalhadores e
os compradores, uma vez certificados pela FLO, são então anualmente revisitados por
seus inspetores, os quais verificam se estão correspondendo com os critérios do
12 As torrefadoras que trabalham exclusivamente com cafés certificados pela FLO são bem críticas com relação às outras, geralmente de grande porte, como é o caso da Nestlé, por exemplo, cujas vendas de café desse tipo representam uma pequena porcentagem das suas vendas totais do grão. Algo em torno de um por cento dos cafés vendidos globalmente são certificados pela FLO, sendo que respondem por aproximadamente um quarto dos valores gerados com a venda dos produtos certificados por esta entidade, fazendo desse grão o principal item negociado com base num selo de comércio justo.
15
comércio justo. Todas estas inspeções são pagas pelos que recebem os certificados. As
inspeções nos compradores procuram saber se estão pagando às organizações de
pequenos produtores ou aos órgãos conjuntos de trabalhadores os preços mínimos e
prêmios sociais e, além disso, se estão cumprindo seus contratos com estas entidades. Já
as inspeções nas organizações de pequenos produtores ou nos órgãos conjuntos de
trabalhadores verificam se estão remunerando corretamente os seus associados e
investindo de maneira apropriada o prêmio social. Além disso, os inspetores que visitam
qualquer uma dessas duas entidades demandam um entendimento, por parte de seus
membros, dos chamados “critérios genéricos” do comércio justo certificado pela FLO.13
O “braço” da FLO responsável pelas certificações é uma empresa que se sustenta
através dos pagamentos aos seus inspetores. O restante da FLO funciona graças à
“cooperação” internacional (holandesa, irlandesa e, em menor medida, alemã) e tem
como propósito estabelecer padrões internacionais de comércio justo, desenvolver e
promover esse mercado.
As agências responsáveis pelas certificações, com base em princípios da
agricultura orgânica, são entidades que adotam critérios públicos ou privados. São os
certificados outorgados por estas agências que devem embasar os cafés orgânicos que
circulam no comércio justo regulado pela FLO. Na verdade, o comercio justo
certificado está intimamente conectado com a agricultura orgânica certificada. Isso
porque grande parte dos produtos que circulam identificados com um selo da FLO é
classificada como orgânica pelas agências certificadoras.14 Por exemplo, o logotipo
13 Estes critérios genéricos giram em torno dos seguintes temas: desenvolvimento social, desenvolvimento sócio-econômico, desenvolvimento ambiental e condições laborais. 14 Daniel Jaffee (2007) afirma que por volta de 60% dos cafés vendidos nos EUA através do comércio justo são certificados como orgânicos. Em se tratando das exportações de café do Peru, no ano de 2004, por exemplo: “El café orgánico conforma la fracción mas importante (71%) de los cafés especiales, seguido por cafés de comercio justo (14%), sostenibles (11%), y gourmet (4%). En el año de 2004 se exportaron 560.000 quintales al mercado de cafés especiales, lo que representa un 13,48% de la producción total de 4 millones 153 mil qq.” (Schwarz, 2005 p. 33)
16
presente no canto esquerdo inferior da imagem de uma embalagem de café reproduzida
anteriormente representa uma certificação orgânica.
Mas meu interesse inicial pelo comércio justo esteve relacionado com o fato de
que queria investigar um mercado organizado com base num ideal de solidariedade. Já
no começo da minha pesquisa no Peru, pude entrar em contato com pessoas que
trabalhavam na intermediação das relações dos cafeicultores com as demandas das
empresas torrefadoras de café autorizadas pela FLO para vender o grão identificado
com o selo dessa entidade. Entre essas demandas se destacava justamente a necessidade
dos cafés serem certificados como orgânicos.15
Os Estados Unidos e os países europeus são os principais compradores de café
do Peru. (JNC, 2005) Para se vender um produto identificado como orgânico nos EUA é
preciso que o mesmo seja certificado com o selo USDA/NOP (United States
Department of Agricultural/National Organic Program) ou que acompanhe uma
certificação “privada” credenciada pelo ministério da agricultura desse país. A União
Européia também tem um selo que deve acompanhar os produtos demarcados como
orgânicos que circulam entre seus membros, caso estes bens não sejam etiquetados com
um certificado privado validado pelo órgão europeu que regula a agricultura orgânica.
Todos estes selos são outorgados por agências que atuam em diversos países.16 Na
verdade, diversos certificados se encontram difundidos entre as organizações peruanas
de produtores de café. Tais entidades que comercializam cafés certificados costumam
15 Outro fator importante é a qualidade dos grãos. Isso porque o comércio justo certificado pela FLO é um sistema que prima pela qualidade dos produtos que comercializa, mas que de modo algum faz dele um mercado de cafés “finos” ou “gourmet”, como geralmente são chamados os grãos diferenciados pela “qualidade da taça” que produzem. O principal critério internacional de classificação de um café com base na sua degustação é o da Associação Norte-Americana de Cafés Especiais. 16 Tais agências também oferecem os certificados “sustentáveis”. Trata-se de selos baseados em normas que mesclam critérios sociais e ambientais, mas que são consideradas menos exigentes do que aquelas presentes nos certificados orgânicos e de comércio justo, por exemplo. Vale também ressaltar que, fora do comércio justo, os cafés certificados como orgânicos são pagos com base nos preços correntes do grão no seu mercado internacional, acrescido de um valor determinado, chamado plus (acréscimo, em inglês), variável de acordo com a oferta e a procura por esse tipo de café.
17
possuir um “sistema de controle interno” que procura adequar os agricultores e seus
cultivos às normas dos selos que devem acompanhar seus grãos. Isso lhes permite estar
preparados para as visitas dos representantes das agências certificadoras.
* * *
A literatura sobre o comércio justo é bastante recente. Grande parte dela gira em
torno dos chamados estudos sobre o “impacto” desse sistema comercial entre os
produtores.17 Estes textos se baseiam em visões essencialmente normativas; não é à toa
que são produzidos por pessoas, em sua maioria, vinculadas a organizações não-
governamentais. Tais investigações procuram verificar se o comércio justo “contribui”
para a “melhoria das condições de vida” e a “redução da pobreza” entre os agricultores.
Já as obras sociológicas e antropológicas a respeito desse mercado se concentram nas
condições sociais, econômicas, políticas e culturais por detrás da sua realização. De
qualquer maneira, nelas não há uma preocupação mais consistente em compreender a
participação dos produtores no comércio justo com base nas narrativas que eles se
utilizam para dar sentido às suas ações ao longo do tempo.
O livro Fair Trade – The challenges of transforming globalization trata-se de
um trabalho organizado pelos sociólogos Laura T. Raynolds, Douglas Murray e John
Wilkinson (2007) e que reúne outros 13 pesquisadores. Seu objetivo é oferecer uma
visão da dinâmica global mais recente do comércio justo enquanto um “mercado” e um
17 Como exemplos desses estudo podem ser citados: The Impact of Fair Trade on producers and their organizations: A case study with Coocafé in Costa Rica, de Loraine Ronchi (2002); Confronting the Coffee Crisis: Can Fair Trade, Organic, and Specialty Coffees Reduce Small-Scale Farmer Vulnerability in Northern Nicaragua?, de Chritopher Bacon (2005); Etude d´impact du commerce equitable sur les organizations et familles paysannes et leurs territories dans la filiere café des Yungas de Bolive, de Nicolas Eberhart (2006); The effects of Fair Trade on marginalized producers: an impact analysis on Kenyan farmers, de Leonardo Becchetti e Marco Constantino (2006) e Assessing the Potential of Fair Trade for Poverty Reduction and Conflict Prevention: A Case Study of Bolivian Coffee Producers, de Sandra Imhof e Andrew Lee (2007).
18
“movimento” em contínua interação. Apesar de contemplar diversos “estudos de caso”
envolvendo os ativistas, compradores e produtores, esta obra procura destacar a
emergência de um período em que a expansão desse mercado estaria sendo controlada
com mais intensidade pelo seu movimento. Esta expansão se realizou, em grande
medida, através das empresas multinacionais que passaram a vender seus produtos com
o certificado outorgado pela FLO. Contudo, mediante uma maior ênfase no seu
controle, o comércio justo despontaria mais do que nunca como um meio para uma
“nova globalização” da economia, isto é, que não esteja subordinada às empresas
multinacionais.
Um olhar bastante parecido com este permeia o livro Brewing Justice – Fair
trade coffee, sustainability, and survival, de Daniel Jaffee (2007). Isso porque seu autor
também vê o comércio justo como um meio para transformar o comércio internacional e
igualmente acredita que uma transformação dessa magnitude é o principal caminho para
se alcançar um futuro melhor para os produtores. Jaffee morou durante dois anos numa
região cafeicultura mexicana e através dessa sua experiência, realizada no que chamou
de um contexto de “crise nos preços do café”, chegou à conclusão de que os agricultores
que estavam vinculados ao comércio justo se encontravam numa melhor situação do que
os demais diante dessa crise. Para este sociólogo, os benefícios ainda restritos desse
sistema comercial só podem ser maximizados se os seus participantes se congregarem
com o que ele denomina de “movimentos de justiça global”.
Farmers of the Golden Bean: Costa Rican Households, Global Coffee, and Fair
Trade é um livro escrito pela antropóloga Deborah Sick (2008) a partir do seu trabalho
de campo entre um conjunto de cafeicultores costa-riquenhos. Ela adota uma concepção
genérica de racionalidade, centrada na noção de estratégia, para dar sentido às ações dos
agricultores ao longo do tempo. Seu argumento mais geral é de que a diversificação dos
19
ingressos econômicos foi a saída encontrada pelos produtores para a “crise nos preços
do café” que os assola desde o final da década de 80. O comércio justo é entendido
como uma opção a mais para as “estratégias familiares de sobrevivência e mobilidade”
e que, como as outras opções, seria avaliada em termos dos “custos percebidos, dos seus
riscos e benefícios”.
Em Fair trade and a global commodity – Coffee in Costa Rica, o antropólogo
Peter Luetchford (2008) focaliza o universo simbólico que serve de referência para um
grupo de cafeicultores envolvidos com o comércio justo. Isso porque ele enxerga na
“cultura ocidental” e suas raízes cristãs às razões por detrás da persistência de uma
determinada economia moral no mundo moderno. Essa cultura valorizaria a relação do
produtor com seu produto e veria com olhos negativos qualquer intermediação
mercantil. Haveria então uma ambivalência imanente à participação dos agricultores no
comércio justo, na medida em que dependeriam sempre de uma estrutura burocrática
responsável pela comercialização.
Nestes quatro livros sobre o comércio justo, assim como em outros trabalhos a
respeito das transações de café (Clarence-Smith & Topik, 2003), a noção de “cadeia
mercantil” é utilizada nas análises que fazem dos intercâmbios desse produto. Segundo
estas investigações, a organização de uma cadeia mercantil reproduziria as hierarquias
decorrentes da distribuição desigual de poder entre seus participantes. Nessa
perspectiva, os cafeicultores ocupariam um lugar subalterno dentro de um mercado de
dimensões internacionais. Isso se refletiria no fato de ficarem com a menor porcentagem
do valor embutido no grão ao longo de sua produção e comercialização.
Os esforços dos participantes da “cadeia mercantil do café” para se apropriarem
de uma maior parte do valor gerado por esse produto aparecem nas pesquisas citadas
acima como uma “meta-narrativa” capaz de dar sentido às ações desses agentes ao
20
longo do tempo. Desse ponto de vista, a criação de cooperativas e o ingresso no
comércio justo são como que os principais “meios” ou “instrumentos” à disposição dos
cafeicultores para exercerem essa apropriação. Contudo, ao não focalizar as meta-
narrativas que os agricultores adotam para pensar suas ações ao longo do tempo, essa
abordagem não consegue enxergar os sentidos historicamente construídos destes
“meios” ou “instrumentos” e os acabam essencializando tendo em vista um objetivo
mais geral: a apropriação de valor pelos produtores.
Estamos assim diante de uma entre tantas outras noções que se encontram
associadas ao campo semântico da modernidade.18 Já o propósito desta tese é olhar para
as narrativas que os próprios agricultores utilizam para dar sentido às suas ações ao
longo do tempo. Tal como descobri durante meu trabalho de campo entre eles, estas
narrativas se apoiavam em noções que faziam parte do campo semântico da
modernidade. Mas a particularidade do modo como as vivenciavam imprimiam no
comércio justo outros significados para além dos que seus organizadores e estudiosos
tem em mente.
18 Tendo em vista esse ideal de apropriação do valor pelos produtores, não é à toa que muitas pessoas consideram que a modernidade se realizará de maneira mais acabada ou completa somente através do controle generalizado dos produtores em cima dos valores gerados pelo produto de seu trabalho.
21
Capítulo 1 – A pedagogia em torno da agricultura orgânica certificada
1.1 Introdução
A agricultura orgânica é, por definição, um modelo de cultivo que se contrapõe
ao uso de fertilizantes e pesticidas inorgânicos nas plantações. Trata-se de um ideal que
enfatiza a utilização de materiais facilmente degradáveis no meio ambiente enquanto
uma maneira de preservá-lo de qualquer transformação mais radical produzida pela
intervenção humana. Existem diversas normas, tanto públicas quanto privadas, que
servem de parâmetro para que as chamadas agências certificadoras identifiquem uma
mercadoria como oriunda de um cultivo orgânico. Cada norma é representada por um
selo que acompanha os produtos certificados por essas agências. Isso permite aos
consumidores se deparar com um sistema que controla a relação dos agricultores com os
insumos produzidos sinteticamente. Este capítulo tem como objetivo analisar o que
chamo de uma pedagogia em torno da agricultura orgânica certificada entre um grupo
de cafeicultores associados a uma cooperativa situada nas redondezas de Machu Picchu.
O foco da análise é na relação que estes produtores mantêm com os “técnicos”
que trabalham nessa cooperativa. Parte do trabalho desses técnicos envolve o controle
das práticas dos agricultores, tendo em vista as inspeções dos representantes das
agências responsáveis pela certificação das plantações como orgânicas. Contudo,
olhando de perto esse papel desempenhado pelos funcionários da cooperativa é possível
perceber que suas indicações feitas aos cafeicultores também procuram criar e reforçar
um sentimento de que a agricultura orgânica é uma alternativa viável. Neste sentido, se
focaliza aqui um processo vivenciado por muitos dos sujeitos retratados nos próximos
22
capítulos, na medida em que durante meu trabalho de campo eles se encontravam
certificados como “orgânicos” ou estavam em vias de receber essa certificação.
Um fato comum entre as inúmeras organizações de produtores de café que
visitei no Peru era de que seus funcionários se constituíam, em sua esmagadora maioria,
de filhos de cafeicultores. Tais pessoas empregadas pelas cooperativas tinham
geralmente concluído o segundo grau e cursaram ou pretendiam cursar uma faculdade.
Já seus pais eram basicamente migrantes andinos que por razões notadamente
econômicas não foram muito além do ensino primário, apesar de valorizarem bastante
os indivíduos que progrediram no sistema educacional. Outro dado comum entre os
progenitores destes funcionários era de que eram “sócios” das entidades onde seus
filhos trabalhavam.
Contudo, essa descendência certamente se colocava como uma variável menos
importante do que a escolarização quando se tratava da seleção dos empregados das
cooperativas. Assim, não era raro haver cargos nestas entidades ocupados por sujeitos
sem nenhuma relação de parentesco com seus associados. De qualquer maneira, a
familiaridade com o universo cafeicultor era algo que os sócios prezavam bastante em
um funcionário que trabalhava na organização à qual eram filiados. Tal familiaridade
envolvia principalmente uma maneira respeitosa e paciente de se comportar perante os
produtores e a qual estes diziam não estar presente nas pessoas das camadas mais alta da
sociedade peruana.
Em suma, a mediação da relação dos agricultores com os novos mercados de
café era conduzida basicamente por filhos de produtores desse grão. Essa mediação não
pode ser entendida sem levar em conta o processo histórico de ascensão social entre os
migrantes andinos que afluíram em massa para a selva alta peruana a partir de meados
do século passado. Isso porque são os descendentes desses migrantes que se constituem
23
basicamente nos funcionários das cooperativas de cafeicultores. Os capítulos seguintes
retratam os quadros temporais mais amplos que permeiam as sagas destes sujeitos. O
curto período de tempo que permaneci entre os agricultores retratados no presente
capítulo não permitiu que me aprofundasse nas suas histórias.
Sem sombra de dúvida que o cargo de gerente era o mais remunerado e
prestigiado em qualquer organização de cafeicultores do país. Todos os ocupantes desse
cargo que conheci tinham completado o terceiro grau e o mesmo se dava com os
“engenheiros” responsáveis pelos “programas de cafés orgânicos” das cooperativas. Os
técnicos, funcionários por excelência destes programas, muitas vezes também chamados
de engenheiros pelos agricultores, nem sempre tinham freqüentado o ensino superior.
Porém, era bastante comum encontrar um técnico que havia cursado uma faculdade e,
entre os que nem chegaram a se matricular no terceiro grau, praticamente todos que
conheci tinham em mente fazer isso o mais rápido possível, na medida em que já
haviam terminado o ensino médio.
Outros funcionários comumente encontrados nas cooperativas também tinham,
em geral, freqüentado o terceiro grau, como era o caso, por exemplo, do
“administrador” de seus bens, da secretária do gerente e das pessoas responsáveis pelo
controle da qualidade dos cafés. Por outro lado, a educação não era um diferencial em
se tratando dos sujeitos que trabalhavam com o armazenamento e o transporte dos
grãos. O presidente e demais “dirigentes” de uma cooperativa, ou seja, os
“representantes” dos seus associados, igualmente exerciam funções que podiam ser
desempenhadas por indivíduos sem um grau de escolarização mais expressivo. Nesse
sentido, o elemento fundamental para ocuparem esses cargos era o de serem bem vistos
pelos sócios; sem falar que os dirigentes se constituíam basicamente de agricultores
mais velhos do que os empregados da organização. Porém, ser um dirigente não era algo
24
que despertava o interesse da maioria dos produtores, mesmo porque se tratava de uma
posição que não conferia nenhum prestígio mais expressivo e não proporcionava
nenhuma remuneração excepcional.
Além das características descritas acima, os técnicos das cooperativas eram em
geral jovens do sexo masculino, solteiros e que ambicionavam alcançar o que pode ser
chamado de uma típica vida de classe média peruana. Nesse caso, seus salários ao redor
de 1.200 soles (US$ 400) por mês não eram capazes de lhes proporcionar esse tipo de
vida; ao que se deve somar o fato de que se encontravam geralmente nesse emprego
através de “contratos temporários”. Em resumo, eles não se viam num estagio mais
avançado de um processo de ascensão social, como era o caso, por exemplo, da situação
vivida pelos gerentes das cooperativas.
Mas o foco desse capítulo no trabalho dos técnicos tem como objetivo ressaltar
seu papel em mediar as relações dos agricultores com a produção orgânica. A questão
aqui é mostrar como através de certas práticas e determinadas propriedades socialmente
reconhecidas, estes funcionários conseguiam fazer com que os produtores se
interessassem por essa forma de cultivo. Isso nos permite perceber como uma
concepção estrangeira de modernidade entra num universo cafeicultor, um processo
que, de um modo mais geral, se repetia entre a maioria dos agricultores peruanos que
conheci.
Apesar dos consumidores de café viverem praticamente do outro lado do mundo,
é possível então dizer que presença dos pontos de vista destes sujeitos sobre a
modernidade é algo que se faz presente entre os cafeicultores. Em grande medida,
como este capítulo procura mostrar, esta presença se dá através do trabalho
desempenhado pelos técnicos das cooperativas. Isso não significa dizer, obviamente,
que os agricultores não tenham suas próprias perspectivas a respeito do que
25
genericamente pode ser chamado de modernidade; os próximos capítulos focalizam
justamente estas visões. Entretanto, é preciso ter em mente que outros olhares habitam o
universo desses sujeitos e são partes da sua vida cotidiana, mesmo quando esses olhares
são oriundos de indivíduos que não estão presente entre eles.
1.2 A agricultura orgânica certificada
Como dito na introdução da tese, meu trabalho de campo no Peru teve como
propósito inicial investigar a presença do comércio justo certificado pela Fair Trade
Labelling Organizations International (FLO) entre os cafeicultores desse país.
Igualmente fora assinalado que a íntima relação entre esse sistema comercial e a
agricultura orgânica se assenta no fato de que grande parte dos produtos que circulam
identificados com um selo da FLO é classificada como orgânica.19 Contudo, não é de se
estranhar que as experiências dos produtores diante do comércio justo se dêem
principalmente através de um comprometimento com as normas de produção orgânica
exigidas pelas agências que certificam as plantações. Isso porque os inspetores da FLO
visitam basicamente a burocracia das organizações de cafeicultores e apenas abordam
os agricultores para lhes perguntar a respeito dos chamados critérios genéricos do
comércio justo.20
19 Essa classificação, como comentado anteriormente, é feita com base em diversos selos que, por sua vez, representam normas de cultivo estabelecidas por instituições públicas ou privadas. De qualquer maneira, cabe às autoridades de cada país definir quais selos podem identificar como “orgânicos” os produtos, supostamente dessa natureza, que venham a circular em seu território. Em geral, as organizações peruanas de cafeicultores, que participam do comércio justo regulado pela FLO, procuram que seus associados sejam certificados com os selos vigentes nos Estados Unidos, Japão e Europa. Isso porque os compradores de seus produtos se encontram basicamente nesses lugares. Cabe então às organizações de produtores contatarem as agências responsáveis pela certificação de tais selos e, conseqüentemente, prepararem seus associados para as “inspeções” conduzidas por estas agências. 20 Como enfatizado na introdução da tese, estes critérios giram em torno dos seguintes temas: desenvolvimento social, desenvolvimento sócio-econômico, desenvolvimento ambiental e condições laborais. Igualmente fora assinalado que as inspeções na burocracia das organizações de produtores verificam se estão repassando corretamente a remuneração das vendas aos seus associados e investindo de maneira apropriada o “prêmio social”.
26
Tal como retratado neste primeiro capítulo, durante a fase inicial da minha
pesquisa no Peru, pude acompanhar as “visitas de campo” dos funcionários de uma
cooperativa junto aos produtores associados a esta entidade. Isso permitiu com que
visualizasse o controle feito em cima desses agricultores, que os preparava para as
“visitas” dos inspetores do comércio justo e também das certificações orgânicas. Com
base na etnografia que permeia o presente capítulo, é possível afirmar que os
cafeicultores são preparados mais intensamente para receber as inspeções das agências
que emitem os certificados orgânicos do que a da própria FLO.
É um dado comum não só ao Peru o fato de que, normalmente, os produtores de
café, filiados às organizações que participam do comércio justo, afirmem não estar
familiarizados com esse mercado.21 Para aqueles que dizem ter ouvido falar do
comércio justo, este é freqüentemente associado com a produção orgânica de café, algo
obviamente mais próximo da realidade cotidiana dos agricultores que não se envolvem
no dia-a-dia da burocracia das suas organizações.22 Como dito acima, a FLO tem
cobrado, através de seus inspetores, o reconhecimento, por parte dos cafeicultores, dos
critérios genéricos do comércio justo. Caso esse reconhecimento não seja verificado, a
entidade inspecionada recebe uma “advertência”.
Mas olhando de perto o trabalho dos “técnicos” retratados nas próximas páginas,
também é possível perceber que suas ações visam conquistar os interesses dos
produtores em prol dos cultivos orgânicos.23 A participação dos agricultores nos
21 Murray, Raynolds & Taylor (2003) discutem sete estudos de caso a respeito de cooperativas de cafeicultores do México e da América Central que participam do comércio justo regulado pela FLO. Eles chegaram à conclusão de que existe um desconhecimento generalizado desse sistema por parte dos produtores de café e que só quem esta na liderança das cooperativas parece compreendê-lo.
22 Daniel Jaffee (2007 p. 91), por exemplo, constata isso entre um grupo de cafeicultores mexicanos. 23 O processo de certificação de um agricultor como “produtor orgânico” leva geralmente de dois a três anos, dependendo do(s) certificado(s) em questão. Não é então a organização de produtores que é certificada, mas sim seus associados que se interessam em participar dos dois ou três anos de “transição” para se tornar “orgânico”. Nesse sentido, muitos “sócios” não se preocupam em serem “certificados” e outros que não cumprem com os pré-requisitos são rebaixados durante ou depois do processo de transição ou mesmo eliminados desse processo.
27
mercados onde se comercializa café orgânico, como é o caso do comércio justo
regulado pela FLO, envolve assim tanto a certificação e, conseqüentemente, o controle
de suas práticas quanto a cooptação de seus interesses, ou seja, um esforço para levá-los
a se interessar em produzir “organicamente”. Considerar esse duplo movimento nas
ações dos técnicos focalizados a seguir é extremamente importante. A preocupação
principal deste capítulo, em torno da compreensão dos procedimentos de
convencimento que levam os produtores a adotar a agricultura orgânica, não deve
encobrir o fato de que, desprovidos de suas devidas certificações, a circulação dos cafés
em determinados mercados se vê comprometida.
Porém, o ponto aqui é o de que sem nos perguntarmos pelos elementos que
envolvem esse convencimento não é possível entender os motivos que levam os
cafeicultores, abordados no presente capítulo, a praticar a agricultura orgânica, de
acordo com as indicações advindas dos funcionários da cooperativa da qual fazem parte.
É verdade que, dentro e fora do sistema de comércio justo regulado pela FLO, os cafés
certificados como orgânicos são geralmente mais remunerados do que aqueles sem essa
certificação. Mas será que o valor pago pelos grãos é o único motivo capaz de
convencer os cafeicultores a adotarem a produção orgânica? Não haveria outras
mediações que atuariam em prol desse convencimento? Quais seriam então os
elementos da crença na agricultura orgânica?
É importante, antes de qualquer coisa, apontar que essa maneira considerada
ecologicamente correta de produzir café é colocada aos cafeicultores como um processo
que, com o passar do tempo, tende a apresentar resultados mais positivos. A ausência
generalizada de recursos que os produtores têm para investir em seus cafezais orgânicos
é justamente a principal explicação que lhes vêm à mente do porquê de não se
beneficiarem, de modo mais consistente e imediato, das supostas vantagens desses
28
cultivos. Vigoram assim, junto aos agricultores, determinadas indicações que buscam
reforçar a crença na produção orgânica. Tais indicações são conduzidas por certas
pessoas, comumente chamadas de técnicos, e se realizam com base em práticas e
representações, acionadas por estes sujeitos, a partir de um repertório simbólico
reconhecido pelos cafeicultores e que deriva do mundo social no qual se encontram
inseridos.
Certamente que qualquer acompanhamento cotidiano do trabalho desses técnicos
vai perceber que a intenção de suas indicações é também enquadrar as ações dos
produtores dentro das normas de produção que referenciam as inspeções das agências
certificadoras, cabendo aos “inspetores” (os representantes dessas agências) verificarem
o cumprimento desses parâmetros de plantio. Não é nenhum mistério a noção de que
sem suas devidas certificações os cafés não podem circular em determinados mercados.
Mas a participação dos agricultores nesses mercados envolve igualmente a criação e o
reforço de certos hábitos em torno do aprimoramento dos seus cultivos orgânicos. A
adoção desses hábitos realça de tal maneira essas práticas produtivas, mesmo quando
não se mostram economicamente vantajosas diante das alternativas disponíveis.24
Existe um sentimento de prazer, capaz de ser claramente percebido entre os
produtores, quando comentam a respeito da sua produção ecologicamente correta.25 Ao
incorporarem o que, com base em Pierre Bourdieu, poderia ser chamado do habitus ou
24 Entre as alternativas comumente disponíveis aos cafeicultores peruanos estão não apenas as diferentes estratégias de comercialização e produção de café como também o trabalho informal nos centros urbanos e a dedicação a outros produtos agropecuários. É claro que estas atividades podem ser conduzidas, em diferentes momentos, por uma mesma pessoa; o que não impede que esta concentre suas energias em determinada direção. Também é evidente que para a minoria dos produtores que teve acesso ao ensino superior as opções de trabalho são menos restritas. 25
Jaffee (2007 p. 147) comenta o seguinte a respeito dos membros da Cooperativa Michiza (entre os quais residiu durante seu trabalho de campo no México): “Either way, the level of dedication to organic coffee practices visible among some Michiza members cannot be explained by economics alone – especially given that their net cash return from the additional investment of time and labor is not great. Something else, something intangible, seems to be at work here: a kind of labor of love, backed by a quasi-spiritual fervor. Marcos Levya, the executive director of the NGO EDUCA in Oaxaca City and a longtime unpaid adviser to Michiza, says the organization has developed what he terms ‘una mística de café orgánico’ – a mysticism of organic coffee”.
29
“sentido do jogo” da agricultura orgânica, estes sujeitos passam, dessa maneira, a
acreditar numa própria racionalidade desse cultivo, a despeito das evidências que lhes
parecem mostrar o contrário.26 O que é uma imposição dos compradores de café aparece
entre os cafeicultores também como uma escolha, ou seja, como algo que
corresponderia aos ditames de suas próprias consciências. Por exemplo, alguns
agricultores me disseram que a produção orgânica era uma “nova proposta de
desenvolvimento” com a qual felizmente haviam entrado em contato.
Mas antes de entrar nos pormenores dos procedimentos de convencimento que
levam os produtores a adotar a agricultura orgânica, vejamos como cheguei a tomar
contato com estes cafeicultores peruanos e, conseqüentemente, com os profissionais que
os animam quanto à adoção dessa forma de cultivo. A narrativa da minha inserção em
campo igualmente nos ajuda a entender a recepção entusiasmada que eles têm dos que
vêem como possíveis compradores de seus cafés.
1.3 Em campo
A presença marcante, nas páginas eletrônicas da internet, de uma organização de
produtores de café filiada ao sistema de comércio justo regulado pela FLO, e
aparentemente situada nas proximidades de Machu Picchu, direcionou minha ida ao
Peru logo no primeiro ano do doutorado. Assim, em julho de 2005 parti do Brasil tendo
apenas um destino certo: a XXII feira anual da Central de Cooperativas Agrarias
26 “Sendo o produto da incorporação da necessidade objetiva, o habitus, necessidade tornada virtude, produz estratégias que, embora não sejam produto de uma aspiração consciente de fins explicitamente colocados a partir de um conhecimento adequado das condições objetivas, nem de uma determinação mecânica de causas, mostram-se objetivamente ajustados à situação. A ação comandada pelo ‘sentido do jogo’ tem toda a aparência da ação racional que representaria um observador imparcial, dotado de toda informação útil e capaz de controlá-la racionalmente. E, no entanto, ela não tem a razão como princípio.” (Bourdieu, 1990 p. 23)
30
Cafeteleras COCLA.27 Este evento se realizou entre os dias 25 e 28 desse mês na cidade
de Quillabamba; pólo comercial da região de selva do departamento de Cuzco e um
lugar praticamente apartado dos fluxos de turistas. Da cidade de Cuzco até Quillabama
foram 14 horas dentro de um ônibus viajando por uma precária estrada de terra sobre as
montanhas andinas, até quase que literalmente despencar na Amazônia peruana, um
trajeto bastante apreciado pelos ciclistas estrangeiros mais radicais, mas que de qualquer
modo não chegam até Quillabamba.
Antes, um trem vindo de Cuzco, margeando o rio Urubamba, parava em
Quillabamba. Mas uma enchente, em 1998, varreu os trilhos a partir da cidade de Santa
Teresa, numa das fronteiras da província cuzquenha de La Convención. O transporte
terrestre na província passou então a ser feito apenas por estradas, todas de terra. Em
certos lugares é apenas possível se chegar de barco ou helicóptero, como é o caso das
instalações de extração de gás natural em Camisea, um projeto comandado por
empresas estrangeiras em plena selva peruana e aclamado pelo governo federal. Apesar
deste projeto render um aporte considerável de tributos para La Convención, a
economia desta província de pouco mais de 200.000 habitantes gira basicamente em
torno da agricultura. Em 2004, por exemplo, foram produzidas aproximadamente 9.000
toneladas métricas de batata e 7.000 de milho, produtos esses característicos da dieta
andina. Mas é o café, produzido exclusivamente para o mercado internacional, que vai
dar o tom do comercio local. Se no mercado central de Quillabamba – capital de La
Convención e onde mais de 70% do comércio desta província é realizado – podemos ver
os pequenos comerciantes vendendo os produtos básicos da dieta andina lado a lado das
cholas (senhoras camponesas) que trocam esses mesmos alimentos via trueque (uma
27 No Peru, as organizações de produtores de café podem ser tanto cooperativas quanto associações, uma distinção eminentemente legal, mas com suas repercussões no funcionamento de cada uma delas. As “centrais” de organizações de produtores de café são entidades legais de “segundo grau”, isto é, ao contrário das duas primeiras, cujos membros são os próprios cafeicultores, nestas os associados são suas organizações.
31
espécie de escambo), tal como acontece em qualquer mercado andino, são nas
dependências da COCLA e da AIKASA (uma empresa privada exportadora local) que
vão passar a maior parte da produção de café da região (25.000 toneladas métricas em
2004 ou aproximadamente dezessete por cento da produção total do país).28
Ao longo da minha estadia em Quillabamba, transitei basicamente pelas barracas
(ou stands) da feira da COCLA, onde as 23 cooperativas filiadas a esta entidade
expunham seus cafés (entre outros produtos de menor importância econômica), e
procurei dessa maneira estabelecer contatos com os expositores (funcionários e sócios
dessas cooperativas, basicamente). Pude acessar o discurso oficial sobre esse evento
tanto através de um informe entregue ao público quanto por meio das cerimônias de
abertura e encerramento. A necessidade de se impulsionar o turismo na província de La
Convención era um leitmotiv desses discursos e um dos sentidos principais da feira. Na
cerimônia de abertura, os dirigentes da COCLA enfatizaram a importância do
cooperativismo e da “busca de mercados” por parte dessa organização enquanto uma
“empresa social” que procura sua “eficiência administrativa” e a “união dos seus
cafeicultores associados”; isso num contexto de “ausência de apóio estatal ao
cooperativismo”. “Mantemo-nos sem a ajuda do governo”, reiteraria o presidente da
COCLA durante o encerramento da feira. Na platéia da abertura havia autoridades do
governo regional de Cuzco e compradores estrangeiros de cafés especiais. Todos estes
eram cortejados pelos dirigentes da central também durante as refeições e momentos de
lazer.
Os moradores de Quillabamba e dos distritos vizinhos pareciam participar da
feira com o propósito principal de assistir aos shows musicais que aconteciam à noite,
quando então o evento atingia seu público mais numeroso. Nas minhas visitas aos
28 Estas informações foram obtidas através de um pequeno e singelo livro (San Martin, 1994) sobre a província de La Convención. Adquiri esse exemplar na própria cidade de Quillabamba.
32
stands das cooperativas, era sempre confundido com os “gringos do comércio justo”,
isto é, com um dos não mais do que 10 compradores estrangeiros de café certificado que
também perambulavam pela feira. Assim que me apresentava e desfazia o mal
entendido, uma enxurrada de perguntas sobre o café brasileiro, vindas dos expositores,
caía sobre mim. Em questão de minutos me tornei especialista no café do Brasil e isso
continuou até o final da viagem. Na verdade, as perguntas eram em sua maioria
genéricas e de respostas fáceis, mesmo para um leigo no assunto. Obviamente que a
simpatia de ambos os lados facilitava a continuidade das interações, pelo menos
momentaneamente.
Foto 1 – Interior da Feira COCLA Foto 2 – Stand da Cooperativa Huadquiña
No stand de uma cooperativa em particular, de nome Huadquiña, me chamaram
a atenção determinadas amostras de café nele expostas, cada uma demarcada com o
nome de seu produtor e o selo de certificação do produto. Sete amostras estampavam a
certificação orgânica própria da união européia e outra um selo de sustentabilidade de
uma organização não-governamental, ambos outorgados por agências certificadoras. Da
conversa com os expositores surgiu, logo de cara, o convite do presidente da
cooperativa para uma visita às dependências da organização. Mas quando este dirigente
se deu conta de que estava diante de alguém interessado na condução de uma pesquisa e
33
não em comprar café, mesmo não desfazendo o convite, me questionou sobre os
benefícios que a pesquisa os traria. Disse-lhe que isso era uma questão pertinente, mas
difícil de ser respondida naquele momento.29 Mesmo assim me apresentou ao “técnico”
Juan Carlos, com o qual fiquei de me encontrar no dia 2 de agosto na cidade sede da
cooperativa. O contato com Juan e outros membros da organização permaneceu
constante até o final da feira; fui o fotógrafo “oficial” da cooperativa durante a
premiação do concurso no qual a entidade (na verdade, um de seus associados) alcançou
o primeiro lugar pela qualidade de seus grãos de café, numa competição que envolvia as
outras cooperativas (e seus respectivos sócios) também filiadas à COCLA. Adiantando
o expediente, parti com Juan no dia 30 até a cidade de Santa Teresa, um povoado
arrasado por uma enchente em 1998 e reconstruído precariamente morro acima com a
presença do então presidente Alberto Fujimori.
1.4 Santa Teresa
O descontentamento com o governo foi o tema principal da conversa entre os
passageiros na van que nos levou até Santa Teresa e, assim como acontecia nas minhas
viagens pelas estradas do país, nessa ocasião também ressaltaram que o sistema
rodoviário só não estava em piores condições por conta dos investimentos feitos pelo
ex-presidente Fujimori. Já em Santa Teresa, este era rememorado por sua visita durante
a fase de reconstrução da cidade após a enchente que a arrasou por inteira. De qualquer
modo, o caráter outrora provisório das habitações desse povoado aparecia então como
aquilo que enfim seus habitantes tinham de conviver. Residi numa das três ou quatro
29 Esse mesmo senhor aludiu ao fato de que muitas pessoas vão até eles conduzir suas pesquisas e nunca mais dão qualquer tipo de satisfação; “vocês escrevem suas teses e se esquecem de nós”, me disse. Vale ressaltar que encontrei ao longo das minhas andanças entre os cafeicultores peruanos pelo menos quatro estudantes estrangeiros pesquisando o comércio justo.
34
hospedagens, igualmente precárias, disponíveis aos turistas advindos de uma trilha
alternativa a Machu Picchu que passava por Santa Teresa. A diária de um quarto com
cama de casal, mais um chuveiro coletivo com água quente, era de 12 soles ou quatro
dólares.
No meu segundo dia na cidade, acordei logo de manhã cedo e fui procurar pelo
técnico Juan Carlos em sua casa, conforme havíamos combinado no dia anterior.
Chamei-o algumas vezes e um senhor que vivia em frente informou-me que deveria
procurá-lo na sede da Cooperativa Huadquiña. Gentilmente este mesmo senhor me
acompanhou até lá. Cortamos o caminho através de sua chacra (nome comumente
usado pelos peruanos para falar das propriedades agrícolas de pequena extensão) que
ficava entre esta entidade e o povoado, numa área bastante pendente.30 A cooperativa,
por sua vez, se localizava numa região próxima ao rio Salkantay e era nas margens
desse rio que estava Santa Teresa antes de ser devastada pelas águas.
Descendo até a cooperativa, fui tomando contato, pela primeira vez na minha
vida, com uma plantação de café. Realmente o lugar era bastante agradável e bonito, ao
contrário do povoado logo acima. A pluralidade de cultivos dessa chacra me fez
entender a diversidade de produtos expostos no stand da cooperativa na feira em
Quillabamba. Seu proprietário ia me informando sobre a perfeita adequação da mesma
às normas de produção orgânica. Ele era um dos ex-presidentes da cooperativa e
trabalhava na plantação de café com a ajuda da sua família e a de seu irmão. A extensão
do seu terreno era de três hectares (cada hectare corresponde a 10.000 metros
quadrados; vale lembrar que um campo de futebol “oficial”, isto é, de 90 metros de
largura e 120 de comprimento, tem 1.08 hectares ou 10.800 metros quadrados).
30 As propriedades agrícolas de maior extensão são chamadas de fincas, fondos ou haciendas.
35
Foto 3 – A Sede da Cooperativa Huadquiña
Chegamos às dependências da cooperativa e imediatamente nos juntamos a um
grupo de sócios e seus dirigentes (que também eram sócios) reunidos no local.
Conversamos todos por mais de uma hora e acredito que, com bastante simpatia,
consegui contornar minha ignorância e tornar o diálogo agradável. Disseram-me,
inicialmente, que a cooperativa tinha 420 associados. Através da COCLA, vendiam café
para as companhias estrangeiras Cafédirect e Twin Tradind (o nome da cooperativa e do
próprio sócio, dado que a certificação orgânica recaía sobre ele, iam impressos nas sacas
exportadas).31 Nesse sentido, concluíram meus interlocutores, o papel da COCLA era
apenas o de conquistar mercados, cabendo aos sócios, auxiliados pelas cooperativas, o
cuidado com a produção.
31 Essas duas empresas são torrefadoras de café que trabalham apenas dentro do comércio justo. Em comparação com outros países, o consumo per capita de café no Peru é bastante baixo, ao redor de 450 gramas para cada habitante ou 200.000 sacas de café verde por ano, segundo me disse um especialista no assunto. Os cafés mais consumidos no país são os solúveis, produzidos por empresas multinacionais, com exceção de uma tradicional marca nacional, de uma companhia que também é a principal exportadora de “café verde” ou “não-torrado”. O café solúvel comercializado no Peru é geralmente vendido em pequenos saches, pois de acordo com os responsáveis pela venda desse tipo de café no país, essa é a forma mais adequada que encontraram para corresponder ao baixo poder aquisitivo da população nacional. A Nestlé, por exemplo, fechou sua fábrica no Peru e abastece o mercado a partir de suas instalações na Colômbia, usando inclusive café peruano como matéria-prima. O Peru, ao contrário de diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento, não é considerado um exportador de cafés solúveis, muito menos de cafés torrados e moídos e torrados e em grãos, geralmente de maior valor agregado e os quais são vendidos principalmente pelas nações do primeiro mundo. A COCLA não é apenas a organização de cafeicultores que mais exporta no país como também a única que alcançou algum destaque com a venda de café torrado. Recentemente essa entidade passou a oferecer cafés torrados e moídos de qualidade superior numa rede nacional de supermercados destinada a um público de renda elevada e na qual vinha ocupando o segundo lugar na preferência dos consumidores desses grãos.
36
No momento da minha visita, três técnicos trabalhavam na Cooperativa
Huadquiña e tinham como obrigação “monitorar” os sócios. Meus interlocutores
citaram, como um exemplo desse monitoramento, os “cursos de capacitação”.
Informaram-me, em seguida, que a cooperativa dispunha, no total, de 20 funcionários e
quatro caminhões. Disseram que o tamanho médio das chacras dos associados era de
três hectares, variando entre dois a cinco. Segundo eles, em torno de quatro assembléias
aconteciam por ano com todos os membros, sendo que a última se destaca das demais,
na medida em que era nela que o resultado de todas as vendas era enfim anunciado.
Estes associados enfatizaram a necessidade de seguir as normas das agências
certificadoras. Afirmaram que, no geral, os sócios cumpriam com essas exigências;
“apenas um ou outro foi expulso da cooperativa”.
Discutindo com eles o cronograma das atividades junto aos associados, falaram
das “inspeções internas” que antecedem as “inspeções externas” conduzidas pelos
inspetores das agências certificadoras.32 As primeiras inspeções eram feitas pelos
técnicos de uma “cooperativa base” da COCLA e entre 15 a 20 sócios “capacitados”
dessa mesma cooperativa.33 Estes visitavam, em dois ou três dias, todas as chacras dos
associados de outra cooperativa base. Isso se passava com as 23 cooperativas bases em
dezembro, dado que em março começavam as inspeções externas. Estas atingiam em
torno de 30% dos membros das cooperativas, escolhidos ao acaso pelos inspetores
considerados externos.34 Entre estes últimos, os do comércio justo seriam os mais
exigentes; “eles pedem para não discriminarmos os sócios que produzem pouco, apesar
32 Um cronograma organizado em torno das inspeções “internas” e “externas” é comum às organizações de produtores que comercializam cafés especiais no Peru. Participei de alguns encontros e congressos envolvendo estas entidades e nos quais intercambiavam suas experiências com relação ao “sistema de controle interno” (responsável justamente pelas inspeções internas). A partir de 2007, a FLO passou a exigir, das organizações que participam ou queiram participar do comércio justo, a existência de um sistema de controle interno. 33 Vale lembrar que a COCLA é uma “organização de segundo grau” e, conseqüentemente, cujos sócios são as cooperativas e não os produtores. 34 Ser um inspetor externo não significa necessariamente ser um estrangeiro ou ter vindo de fora do país. Muitos peruanos trabalham para as agências certificadoras e algumas destas têm seus escritórios no Peru.
37
destes também usarem da mesma forma a assistência técnica”, exemplificou um dos
agricultores presentes.
É possível dizer que o cronograma de atividades da cooperativa girava em torno
das chamadas inspeções externas. Mas é preciso ter em mente, como deve ficar claro ao
longo do capítulo, que o ponto de vistas dos “inspetores externos” acompanhava o dia-
a-dia dos sócios, notadamente daqueles cujas plantações eram certificadas como
“orgânicas” ou que se encontravam “em transição” (de “convencional” para
“orgânico”). Nesse caso, é preciso se perguntar pelas mediações envolvidas no processo
de interiorização dessa perspectiva “externa”. O trabalho dos técnicos, retratado nas
próximas páginas, se coloca justamente como um lócus privilegiado para se observar
estas mediações.
No final da minha conversa com os sócios, ouvi algumas reclamações. Disseram
que antes o preço do café (certificado como) “orgânico” era alto, mas que agora, com o
aumento da oferta, caiu bastante. “Mas as empresas certificadoras vivem disso”,
ponderou um deles aos demais, “afinal estas empresas cobram por café certificado”.
Reclamaram também da “total falta de apoio do governo” para com eles; “o Estado só
nos oferece imposto”, acrescentou um dos produtores mais exaltado.
Segui com um dos sócios até sua chacra, a uns 30 minutos a pé da sede da
cooperativa, também na parte “baixa” ou “antiga” da cidade, outrora arrasada pela
enchente do rio local. A chacra tinha dois hectares e estava a quinze anos em suas mãos.
Oito anos atrás, antes do início do “programa de café orgânico” e do comércio justo na
cooperativa, sua chacra era completamente diferente, segundo me informou. Enquanto
conversávamos, ao longo de uma estrada ao lado de sua propriedade, ele recolhia os
poucos lixos (latas e garrafas de plástico) deixados por pessoas que passaram por ali. O
local por onde andávamos era extremamente agradável, a tal ponto que se pudesse me
38
hospedar nele nem sequer subiria até a cidade, mas o risco e principalmente o medo de
uma nova enchente faziam com que até mesmo esse sócio vivesse morro acima, onde
por sinal ele tinha uma loja.
Diversos assuntos ligados ao café apareceram em nossa conversa. Ele se
mostrava extremamente orgulhoso de sua “chacra orgânica”, de modo que meu único
elogio era referente à beleza da mesma.35 Explicou-me sobre o princípio de ayni, no
qual as famílias cooperam entre si na colheita do café, numa relação não-monetizada e
que, segundo ele, seria valorizado pelo comércio justo (na verdade, eram os
funcionários da cooperativa que se interessavam em obter esse tipo de informação a
respeito do trabalho nas chacras).36 Por outro lado, também utilizava trabalhadores
assalariados durante a colheita, mas foi enfático quando disse que “o comércio justo
proíbe o trabalho de crianças”. Perguntei por que não havia, aparentemente, cultivo de
coca naquela região, e ele me respondeu que isto não era bem visto pelos americanos.37
35 Durante minhas estadias mais prolongadas entre os cafeicultores de outra região peruana, ouvi freqüentemente deles um elogio bastante enfático à produção orgânica, na medida em que também permitiria uma maior presença dos pássaros. Isso porque estes animais traziam distintas sementes consigo que, ao germinarem, criavam um ambiente considerado extremamente agradável pelos produtores. 36 Sobre as trocas recíprocas de trabalho na cultura andina, ver a coletânea Casa, Chacra y Dinero de Enrique Mayer (2004). Estas trocas podem ser encontradas na construção de uma casa ou na abertura de uma plantação, por exemplo, e se constituem num contraponto secular às transações monetárias e uma linguagem preferencial na constituição de grupos. 37 No dia 28 de julho de 2005, assisti do quarto do hotel, em Quillabamba, um evento que se mostrou bastante significativo para compreender o clima político do país naquele momento. Nesse dia os peruanos comemoram sua independência e o presidente ritualmente pronuncia do congresso um discurso transmitido pelo rádio e televisão. Previamente à fala presidencial, um renomado analista político expunha (no canal que sintonizei) sua visão de que o Peru “pode ser pobre e corrupto, mas não é desunido”, se referindo especificamente às recentes atitudes do governo regional de Cuzco em prol do aumento do espaço legal dedicado ao cultivo de coca nesse departamento. Isso ia de encontro com as diretrizes do governo nacional e a constituição do país, além de contrariar os interesses norte-americanos, reforçados naquele período com a visita do secretario de estado dos EUA. No seu discurso, o presidente Alejandro Toledo ressaltou o “incremento substantivo das exportações” e junto disso o fato de que o país não exportava mais apenas minérios, mas também produtos agrícolas. Ele estava se referindo ao incremento das exportações de produtos agrícolas “não-tradicionais”, notadamente o de aspargos, cultivados em grandes propriedades irrigadas na costa peruana, movimento este impulsionado por um acordo de livre comércio com os EUA e assentado no combate ao narcotráfico.
39
Foto 4 – O sócio e seu cafezal
Enquanto me contava sobre a necessidade do “sócio orgânico” providenciar uma
“barreira” de oito metros de distância em relação a um “vizinho não orgânico”, um
vizinho seu, “sócio e orgânico”, passou e nos cumprimentou. Ao se referir a esse
senhor, assim que este se afastou de nós, me disse que mesmo não compreendendo as
normas, era capaz de praticá-las. De aparência menos citadina que meu interlocutor, ele
vivia em sua chacra afastado do núcleo populacional.
1.5 As “visitas de campo”
As seções seguintes apresentam o trabalho dos técnicos da Cooperativa
Huadquiña juntos aos produtores associados a esta entidade. Obviamente que as praticas
desses profissionais visam controlar e, conseqüentemente, educar os cafeicultores, tendo
em vista as inspeções das agências certificadoras. Mas ao longo da narrativa que se
segue é possível perceber alguns comportamentos dos técnicos, em prol do
aprimoramento das atitudes dos agricultores, com o objetivo manifesto de capacitá-los
para um uso “mais racional” de seus recursos. Essa racionalização das práticas dos
produtores certamente deve corresponder aos critérios próprios das certificações
orgânicas. Acontece que esse processo de racionalização (presente nas “visitas de
campo” focalizadas a seguir) também pode ser percebido como uma espécie de ritual de
40
convencimento que procura criar e reforçar a crença na racionalidade das praticas
orgânicas. Os técnicos incentivam os sócios do mesmo modo como um técnico de
futebol incentiva seus jogadores, ao incutir neles a possibilidade e os meios de
superação. A crença nesses incentivos os afasta, em certa medida, das demais
alternativas de conduta nas quais poderiam concentrar ainda mais suas energias. O
ponto é que essa crença se sustenta, principalmente, apoiada na autoridade dos técnicos,
na legitimidade de suas práticas e no reconhecimento das representações que acionam
em suas falas.
A autoridade dos técnicos se assenta, basicamente, sobre seus graus de
escolarização, estudos e experiências. Já a legitimidade de suas práticas decorre
fundamentalmente do caráter técnico das mesmas, em oposição a um senso comum
visto não apenas como improdutivo, mas também prejudicial ao meio ambiente. As
representações que estes profissionais acionam em suas falas, tendo em vista a
motivação dos produtores em prol da agricultura orgânica, se apóiam tanto nas
expectativas do retorno financeiro quanto no ideal de preservação da natureza.38 Isso
significa dizer que o trabalho desses técnicos pressupõe uma socialização anterior dos
cafeicultores numa sociedade dominada pelas relações mercantis, onde o espírito
técnico-científico é valorizado e também que percebe o esgotamento dos recursos
naturais como uma realidade evidente.39 Mas esse trabalho deve igualmente levar em
38 A importância de se preocuparem com a qualidade dos grãos de cafés a serem vendidos é algo visto pelos produtores como um fator de ordem eminentemente econômica. Isso porque os mesmos, enquanto eventuais consumidores de café, não se preocupam de modo algum com a questão da qualidade, tal como vem sendo colocada recentemente entre os consumidores situados principalmente nos grandes centros urbanos dos países desenvolvidos. 39 Ver Neiburg (2007) para uma discussão a respeito da importância dos processos de socialização para o entendimento das práticas que são desempenhas pelos que este autor entende como sendo os “profissionais da economia”. Evidentemente que os cafeicultores, enquanto tais, já se encontram, por definição, em contato com uma economia de mercado. Também é natural que, ao fazerem parte de uma sociedade que tem na ascensão social através da educação escolar um dos seus pilares fundamentais, vejam um valor crucial na ciência e na tecnologia. Já o desgaste generalizado dos solos das regiões cafeicultoras é um dos sinais mais evidentes, para os produtores, da inviabilidade de suas práticas tradicionais de cultivo.
41
conta determinadas mediações, próprias do universo simbólico dos agricultores,
adquiridas pelos técnicos com base no convívio nesse meio. Isso pode ser tanto o uso da
língua nativa (o quéchua, no caso) quanto um determinado tipo de comportamento que
envolva o estabelecimento de uma relação de confiança ou proximidade com os
produtores (o que pode acarretar num convite destes para um almoço, por exemplo).
Estes pormenores, na verdade, são muitas vezes extremamente imprescindíveis para
captar a atenção dos cafeicultores. Vejamos então tudo isso mais de perto.
1.6 Minhas primeiras visitas
No meu terceiro dia na cidade de Santa Teresa, acordei ainda de madrugada e fui
encontrar o técnico Juan Carlos na cooperativa, para então acompanhá-lo em suas
“visitas de campo”, de acordo como havíamos combinado. Cheguei lá antes dele e,
enquanto aguardava-o, um senhor (que se identificou como sócio da cooperativa) sentou
ao meu lado. Ele também esperava por Juan. Outrora funcionário da Huadquiña, estava
em “fase de transição dois (para café orgânico)”.40 Apesar de já vender há tempos “café
planta” (café não-certificado) para a cooperativa, havia se tornado sócio há apenas dois
anos. Café planta era como o “café convencional”, nome mais usado em todo o Peru,
também era chamado nessa região, e cujo preço tendia a ser menor que o café dito
certificado.41 A chacra desse senhor tinha um hectare e nela seria possível encontrar
bananeiras, árvores de frutas cítricas, entre outros cultivos.
40 A transição de “produtor convencional” para “produtor orgânico” leva três anos no caso da Cooperativa Huadquiña. De qualquer maneira, mesmo após certificado, o agricultor continua sendo “inspecionado”. 41 Neste ano de 2005, a produção de café no país foi demasiadamente baixa, em decorrência da escassez de chuva, o que fez com que os preços do café convencional aumentassem e não diferissem muito do que era pago aos cafés certificados como orgânicos. Os chamados comerciantes intermediários ou as “empresas privadas exportadoras” tendem a receber cafés de qualidade inferior do que os aceitos pelas organizações de cafeicultores que trabalham com o comércio justo. Quando o preço internacional do café convencional aumenta acima dos valores do comércio justo, estes últimos têm de acompanhar o primeiro, segundo as próprias regras da FLO. Acontece que, ao verem equiparados os preços desses dois tipos de
42
Fui dar uma volta pelas dependências da cooperativa enquanto ele conversa com
Juan e Raul (um técnico também chamado de “Russo”), que tinham acabado de chegar
(ambos eram de Quillabamba e dividiam uma mesma moradia em Santa Teresa). Entrei
no armazém e vi a seguinte classificação escrita na parede: café orgânico, café
sustentável (sostenible) e café planta.42 Abaixo de café orgânico, havia uma segunda
classificação, só que com relação ao local de origem do café ou sua cuenca (bacia
hidrográfica, em espanhol): Quellomay, Yanatile e Suriray. O armazém também
funcionava como uma sala de reunião, de acordo como podia ser percebido através da
lousa num de seus cantos e dos diversos bancos empilhados uns nos outros.
Sou chamado para subir até o escritório dos técnicos e encontro Juan escrevendo
seu relatório da feira da COCLA, no qual constava, por exemplo, quantos produtos
foram vendidos pela Cooperativa Huadquiña. Começo então a “fuçar” nos arquivos
referentes aos sócios da cooperativa. Em cada pasta de “registro de dados do agricultor”
havia inúmeras “fichas de recomendações”, “fichas de visita de campo”, “contratos de
compra e venda”, “compromissos de produção de café orgânico”, entre outros
documentos. Tratava-se de um imenso mecanismo integrado de controle por parte da
burocracia da Huadquiña. Não é à toa que ela participava de um “sistema de controle
interno” entre as cooperativas que faziam parte da COCLA. Eu estava diante de todo
um aparato que visava, acima de tudo, preparar as organizações e seus associados para
as “visitas” dos “inspetores externos”. Vale ressaltar que cheguei a participar de alguns
café, muitos produtores podem se sentir tentados em vender para os comerciantes intermediários ou às empresas privadas exportadoras e não às organizações filiadas ao comércio justo, por conta dos critérios mais rígidos dessas últimas entidades. Os comerciantes intermediários e as empresas privadas exportadoras aceitam cafés mais úmidos e com mais impurezas (tais como folhas, gravetos e terra), o que faz com que o peso destes aumente e, conseqüentemente, o valor pago aos agricultores também. 42 Como dito na introdução da tese, no Peru os cafés considerados sostenibles são os identificados com selos que mesclam critérios sociais e ambientais. Trata-se de cafés produzidos de acordo com normas supostamente menos exigentes do que aquelas presentes nos certificados orgânicos e de comércio justo. Os principais selos de sustentabilidade são o Utz Kapeh e o Rainforest Alliance. Os cafés demarcados com esses certificados são pouco valorizados economicamente, se comparados com os que acompanham os outros selos.
43
eventos envolvendo as cooperativas peruanas de cafeicultores e nos quais fora
enfatizado a possibilidade de se utilizar do “sistema de controle interno” para um
planejamento mais racional das atividades destas entidades, e não apenas como um
instrumento de fiscalização.
Foto 5 – Os técnicos no seu escritório
Mario, o único dos três técnicos que era casado e que não havia freqüentado uma
universidade, além de ser o mais velho dos três, passou a me explicar detalhadamente a
“ficha de visita de campo”. Ele propôs que eu também aplicasse essa ficha, mas recusei
a idéia, não só por não ter a competência, mas porque queria observá-los em ação. Meu
interesse era perceber, entre outras coisas, como esse artefato era construído. Mas não se
tratava de me restringir às práticas de “tradução dos interesses” por parte dos sujeitos
envolvidos nessa construção, de acordo como Bruno Latour (1998) propõe que se
investigue o processo de constituição dos “fatos científicos” e dos “artefatos técnicos”,
para se entender a “estabilidade” nas interações humanas que se mantém através desses
objetos.43 Isso porque as representações desses sujeitos, e sobre eles, também deveriam
indicar os elementos que legitimavam sua autoridade. Do contrário, como explicar a
crença nos seus discursos sem levar em conta o lugar que ocupam no imaginário que 43 Estabilidade para Latour significa a ausência de “controvérsias” entre as pessoas.
44
compartilham com aqueles que os ouvem? E se as pessoas não acreditarem em seus
discursos, como então agirão de acordo com eles?
Foto 6 – Os registros de dados do agricultor Foto 7 – Registro de dados do agricultor
Partimos nas duas motos da cooperativa para fazer as visitas de campo; eu fui
com Raul, Juan e Mario seguiram na outra moto. Depois de quarenta minutos de
viagem, chegamos ao local onde as motocicletas ficaram estacionadas. Desse lugar,
fomos a pé visitar as chacras dos sócios localizados na região, conhecida como
Sahuayaco, um dos 20 “comitês” da cooperativa nos quais estavam agrupados. Na área
onde deixamos as motos, havia uma escola, um campo de futebol, um restaurante e
algumas barracas que vendiam bebidas engarrafadas e guloseimas para os diversos
turistas que descansavam da caminhada até Machu Picchu. Após os técnicos decidirem
quais associados iriam visitar, segui com Raul morro acima à direita e os outros dois
foram pela esquerda. Cada um deles visitaria dois sócios (eles costumam visitá-los
sozinhos, e não em duplas). Deixamos o local às 11 da manhã e o combinado era de se
encontrar nesse mesmo lugar às três da tarde.
Raul tinha 27 anos, cinco a mais que Juan, sendo que ambos eram formados em
agronomia por uma universidade pública localizada em Quillabamba. Mario era um
45
“técnico florestal” formado em um instituto, “e não numa universidade”, me disse Raul
no caminho até a chacra do primeiro sócio que iríamos visitar. Ele também me contou
que trabalhava há um ano na Cooperativa Huadquiña, além de ser dono de uma chacra
situada nas proximidades de Quillabamba. Na verdade, era como produtor que dizia
querer se “desenvolver”, o que o levou a apontar para o fato de que não pretendia ficar
por muito tempo trabalhando como técnico. Ganhava 1.200 soles mensais
(aproximadamente US$ 400) exercendo essa profissão, além de uma ajuda
complementar para o transporte.
Antes de chegarmos à chacra do primeiro sócio que iríamos visitar, passamos em
frente da propriedade de seu vizinho, que não era associado à cooperativa. O que
encontramos pelo caminho foi uma quantidade impressionante de lixo espalhado entre
as árvores. Na área do sócio, a situação era completamente diferente; sem falar que o
café do produtor não-associado era “heterogêneo demais” (decorrente de uma “colheita
e beneficiamento tradicional” e não de uma “colheita seletiva e beneficiamento
técnico”, me informou Raul) e estava sendo secado numa lona preta de plástico próxima
ao chão de terra (e não numa laje de concreto, de acordo como a cooperativa exigia de
seus sócios). Na ocasião, lembrei imediatamente do que um membro da Huadquiña
havia me dito no dia anterior: “o mercado quer homogeneidade”.
Foto 8 – Café secado “próximo ao chão” Foto 9 – Café secado numa “laje de concreto”
46
Chegando à propriedade do associado em questão (propriedade inclusive no seu
sentido jurídico, pois a área era reconhecida legalmente), Raul foi logo conversando, em
quéchua, com a mulher do proprietário. Ela explicou que a ausência de seu marido se
devia ao fato dele estar trabalhando no reparo da estrada logo abaixo. Seguimos então
adiante e entramos na área de outro não-sócio; o lixo e o modo de secar não permitido
pela cooperativa mais uma vez me chamaram a atenção. Nas chacras dos associados
pelas quais íamos passando, era possível perceber uma variedade impressionante de
árvores frutíferas e outros cultivos, entre eles a granadilla, uma fruta local de sabor
indescritível e que havia provado na feira de Quillabamba justamente pelas mãos de
Raul.44 Chegamos enfim na chacra de outro sócio que ficamos de visitar, mas que, em
decorrência do seu falecimento, estava sob responsabilidade da sua viúva. O técnico
conversou em quéchua com ela e comentou comigo em seguida: “primeiro as
observações e conversas, depois as recomendações de acordo com as potencialidades da
chacra”.
São estas recomendações, assim como os planos de produção e demais
indicações, que, além de servirem para controlar as práticas dos agricultores com base
nas certificações, também podem ser pensados como elementos fundamentais para a
criação e o reforço do comprometimento deles com a produção orgânica. O importante,
acima de tudo, é ter em mente que o contato prolongado dos produtores com essas
indicações pode incutir neles um determinado hábito. Isso os torna pré-dispostos para
aceitar a agricultura orgânica, a despeito das supostas desvantagens desse cultivo que
possam aparecer. Essa interiorização de um hábito, adaptado a uma determinada
44 Existe um discurso, comumente presente entre as organizações peruanas de cafeicultores, a respeito da importância de seus associados diversificarem suas fontes de ingressos econômicos. No caso da Cooperativa Huadquiña, como deve ficar claro ao longo do texto, a ênfase no cultivo da granadilla é colocada pelos técnicos como algo que, antes do que contradizer seus discursos em torno da produção orgânica de café, serve justamente para garantir esse tipo de produção entre os agricultores que apresentam certas desvantagens produtivas com relação aos seus pares.
47
condição objetiva, no caso, às demandas dos compradores de café certificado como
orgânico, é o que deve explicar a socialização dos cafeicultores nos mercados onde esse
produto circula. O controle das práticas dos agricultores, tomado como um processo
isolado, apenas garantiria a circulação desse bem.
Esta última chacra que visitei com Russo tinha cinco hectares. A proprietária e
seu filho mais velho usavam roupas com a marca Adidas estampada; eu também. Eles
escutavam pelo rádio as mesmas músicas em voga nas cidades do país e que nada mais
eram do que huaynos bastante populares em todo o Peru.45 Numa barraca de lona no
quintal da chacra, um parente bastante enfermo da sócia parecia apenas esperar por sua
morte, tendo ao lado sua mulher. Crianças brincavam no quintal e junto delas as
galinhas cuidavam dos seus pintinhos. Entrei na cozinha – repleta de porquinhos da
índia (cuyes), uma iguaria no Peru – e encontrei Raul pedindo os “documentos” à sócia.
Estes documentos, cujas cópias compunham o “registro de dados do agricultor” em
mãos da Huadquiña, eram: “declaração jurada”, “fichas de recomendação” (de visitas
anteriores) e “plano de produção”.46 Outro filho da sócia se aproximou de nós vestindo
uma camisa de time de futebol local, boné e tênis de uma marca internacional. Os filhos
mais novos andavam sujos e rasgados, os mais velhos não. Todos conversavam em
quéchua.
A sócia em questão ainda não era “orgânica”; estava em (fase de) “transição
dois”. Raul reclamou para eles dos (poucos, no meu entender) lixos que tínhamos visto
pelo caminho, já dentro da propriedade. Um dos filhos disse que iria juntá-los e
depositá-los na “lixeira inorgânica”. O técnico os lembrou que essa lixeira estava cheia,
e a família imediatamente se comprometeu em construir uma nova. Eles também
45 Na ocasião, o huayno mais tocado era o da cantora Sônia Morales, em cujo refrão a mesma repetia: “quero morrer, quero morrer”. Essa música fala de um amor fracassado, um tema recorrente nas canções desse estilo. As músicas de huayno se utilizam de instrumentos tanto de origem européia quanto andina. 46 Vale ressaltar que eram feitas, por ano, de três a quatro visitas a cada sócio, por isso as inúmeras fichas nas pastas dos agricultores que tinha visto na sala dos técnicos.
48
afirmaram que iriam erguer uma laje de concreto (para a secagem dos grãos), mas só em
janeiro, pois no momento não teriam dinheiro suficiente. Russo lhes perguntou se o
lucro da família vinha mais do café ou da granadilla; o filho da dona respondeu que era
a granadilla a fonte principal de dividendos deles.
Foto 10 – Raul conferindo os documentos Foto 11 – Transmitindo as “recomendações”
Raul também os questionou a respeito da quantidade de patos e galinhas que
possuíam, entre outras perguntas do gênero, as quais poderia observar diretamente.
Tudo que anotava na ficha de visita de campo era fruto de perguntas e não de
observações. Indagado mais tarde sobre isso, me respondeu: “o importante é observar a
produção de café”. Mas como ele e Juan supostamente já conheciam bem a propriedade,
dessa vez essa observação foi bastante superficial: “quando o técnico visita uma chacra
nova, ele olha atentamente todo o cafezal”, apontou. Enfim, a visita me pareceu bastante
burocrática. No final, Raul e o filho mais velho desenharam um croqui da propriedade.
O técnico também fez uma estimativa da inclinação da chacra e repassou suas
recomendações através de uma cópia da ficha de visita de campo. “Em setembro os
técnicos regressam a essa propriedade”, avisou. Eles eram sócios da cooperativa há
49
treze anos, mas só recentemente estavam “virando orgânicos” (como dito anteriormente,
muitos associados não eram “orgânicos”).
Segui com Raul de volta à propriedade do sócio que estava ausente durante
nossa visita à sua chacra. Logo que entramos, novamente, no sítio desse agricultor, o
técnico cavou até a raiz de uma árvore de café e encontrou uma praga chamada pria-
pria. Segundo ele, esta praga era bastante comum e prejudicial. Numa segunda planta
verificada, não a encontrou. Ele também foi me mostrando as diversas árvores frutíferas
que compunham o local. De qualquer maneira, constatamos, através de sua mulher, que
o sócio ainda não havia retornado. “O produtor pode entregar menos, mas nunca acima
de sua cota”, me disse Raul no caminho de volta até as motos (essa cota aparece na
“declaração jurada do produtor” e é uma maneira de não permitir que os cafés não
certificados sejam vendidos sob o rótulo de “orgânico”).
Durante o jantar, no restaurante que a esposa de um associado mantinha em
Santa Teresa, Raul comentou com os dois técnicos e outro funcionário da cooperativa
(Frei, o “chefe dos empregados”) sobre o doente que havíamos encontrado na chacra de
uma sócia. Conversamos também sobre outros assuntos (futebol e café brasileiro, em
especial) e depois cada um seguiu para sua casa. Raul e Juan moravam juntos em frente
ao restaurante. A casa deles era pequena, sem fogão, tanque e outros utensílios que
também não havia em minha casa no Rio de Janeiro.47 Vivíamos os três uma típica vida
de estudante solteiro saído da graduação e isso nos aproximava. De qualquer modo, a
autoridade destes técnicos perante os produtores parecia ocorrer de maneira
incontestada. Chamados freqüentemente de “engenheiros” pelos agricultores, estes
empregados da cooperativa eram, dessa maneira, associados ao ensino superior e a uma
profissão extremamente respeitada entre os cafeicultores.
47 Contudo, os padrões de higiene eram bastante distintos. Na verdade, a falta de higiene era algo com o qual freqüentemente me depararia nas habitações dos jovens solteiros no Peru. Em certo sentido, a limpeza doméstica é nesse país basicamente associada ao trabalho feminino.
50
1.7 De volta a Sahuayaco
O dia seguinte foi também dedicado às visitas de campo com os técnicos.
Cheguei à cooperativa e, mais uma vez, um sócio os esperava no andar de baixo do
sobrado. Subi e o agricultor veio em seguida. Ele queria marcar uma data para a visita
de campo em sua chacra, dado que estava ausente quando da última visita. Sua conversa
com os técnicos foi feita em quéchua, mas pedi para um deles traduzi-la para o
espanhol; entre outras coisas, Mario lembrou esse cafeicultor para estar com os
documentos em mãos no dia da visita.
Voltamos os quatro para Sahuayaco, o mesmo comitê cujos moradores visitamos
no dia anterior. O programado era encontrar os produtores de granadilla dessa região
para uma reunião que, dado à ausência destes, não aconteceu. Os três técnicos
debateram então quais sócios iriam visitar. Segui com Juan morro acima.
A mais de dois mil metros de altura (medidos com o GPS da cooperativa em
mãos de Juan), podemos encontrar as árvores de granadilla, uma fruta cujo sabor, como
já disse, é indescritível. Tais frutas eram vendidas, em geral, aos comerciantes, mas a
idéia da cooperativa era criar uma associação de produtores para assim “organizar um
mercado do produto”, conforme Juan comentou comigo. Esse projeto deveria começar
no ano seguinte. Acontece que acima de dois mil e duzentos metros o terreno não se
torna vantajoso para o cultivo de café, pois como informou Juan aos sócios que
visitaríamos nesse dia, apesar de nessa altura a qualidade do produto ser ótima, sua
“produtividade” é pequena.48
48 Dialogando, no dia anterior, com um dos filhos mais novos da sócia que visitei com Raul, esse menino me disse que o volume da produção tem a ver com os “despachos” feitos “à terra”. É evidente que, numa certa altura, as plantas de café vão produzir menos frutos. Mas o uso da categoria “produtividade”, num contexto onde a relação do homem com a natureza não é meramente técnica, mas também envolve dons e contra-dons, certamente coloca algumas questões. No décimo segundo item da “ficha de campo (documento sobre a produção)”, intitulado “Aspectos Culturais”, encontra-se a seguinte pergunta: “Que
51
Conversando com Juan sobre sua função na cooperativa, escutei que ele e Raul
eram “assistentes técnicos em café e granadilla”; Mario era “apenas assistente técnico
em café”. Ainda segundo ele, os dois eram “engenheiros” (agrônomos), enquanto Mario
seria um “técnico”. Apesar de não existirem cursos de granadilla, afirmou que sua
experiência com o produto vinha da leitura de livros e do contato com os produtores.
Também comentou sobre o fato de que o “curso de capacitação para sócios” durava
sempre um dia. Por exemplo, um curso dado em Sahuayaco ia juntar não só os sócios
desse “comitê” como também aqueles do comitê vizinho de Lucmabamba (e vice-
versa). Desse modo, um mesmo sócio freqüentava de dois a três cursos por ano. O
regulamento da cooperativa exigia a presença do associado nesses cursos, nos quais
entre 30 a 50 produtores participavam. Eles eram realizados pelos três técnicos da
cooperativa e mais um da COCLA.
Perguntei para Juan o que ele queria dizer quando se referia a uma aprendizagem
mútua, entre técnicos e sócios, nesses cursos de capacitação. “Na universidade
aprendemos o controle químico e orgânico, mas, por exemplo, com relação ao fungo
ayahuayco, os produtores o controlam com urina (humana) fermentada no limão, e foi
com eles que aprendi isso”, me disse. Ainda segundo ele, “os técnicos dizem se o que os
produtores estão fazendo é certo ou errado”. Penso que é preciso ter certa cautela com
relação à sua visão de um “aprendizado mútuo” entre técnicos e produtores. Em
princípio, essa via de mão-dupla existe do seu ponto de vista. Por outro lado, o poder de
nomear o certo e o errado nas práticas das pessoas “não pode ser visto sempre como
manifestações culturais você conhece e em quais participa?”. Aí os técnicos anotavam, entre outras coisas (ligadas a festas e a religião, por exemplo), se na chacra em questão era costume fazer despachos ou “pagamentos à terra”. No item nove dessa mesma ficha cujo título é “Saúde, Bem- estar e Segurança dos Trabalhadores” pode se ler o seguinte: “1. – Sistema de Trabalho: Que tipo de trabalho mancomunado realiza? Ayni (sim) (não), Rol (sim) (não), Familiar ( ) NA ( ).” O que quero chamar atenção, com esses dois exemplos retirados dessa ficha sobre a produção das chacras, é que na sua própria lógica há espaço para o ponto de vista não técnico sobre a produção.
52
violência simbólica entre grupos antagonicamente posicionados. Por vezes é assim, mas
a sua base não é a violência, mas a docilidade.” (Pina Cabral, 2005).49
O primeiro sócio que visitamos era um “produtor orgânico”, isto é, certificado
dessa maneira. Chegamos enquanto ele colhia suas granadillas (com a ajuda de quatro a
cinco pessoas). Inicialmente, Juan lhe repassou as informações sobre um “sistema de
irrigação”; o sócio se interessou pela sugestão, mas o custo do empreendimento parecia
o desencorajar. O técnico o aconselhou a adquirir uma parte pequena do sistema, a título
de experiência. Como deve ficar claro a seguir, se tratava de uma entre outras propostas
feitas pelo funcionário da cooperativa a este agricultor e como o objetivo manifesto de
aprimorar sua produção orgânica.
Continuamos entre as granadillas, apesar do propósito da visita ser o café. O
almoço ficou pronto e fomos convidados à mesa (a comida estava ótima!).50 Terminado
o almoço, ganhei um saco enorme de granadilla. Dado que a parcela onde esse
associado cultivava café ficava num local morro abaixo, passamos a caminhar entre
outras chacras e até por um caminho do tempo dos inkas que ia dar na antiga cidade de
Vilcabama, de acordo com o que nos informou o produtor. Chegando ao terreno com
cultivo de café, o técnico fez a habitual inspeção no cafezal. Ele cobrou do sócio (que se
comprometeu) a reconstrução de um poço para o ano seguinte, já que neste ele não
possuía os recursos necessários.51
Juan observou onde deveria ser feita a poda do café e indicou isso para o
agricultor. Falou também da importância de se usar abacate na produção de adubo
orgânico: “as minhocas gostam de coisas úmidas”. Continuamos andando e, pelo 49 Mesmo porque, no caso dos cafeicultores, eles são os proprietários das cooperativas e estão presentes, através de seus representantes, no comando da própria FLO. Por sinal, o gerente da COCLA é o atual representante de todos os agricultores latino-americanos e caribenhos no comércio justo. 50 Conversamos, durante o almoço, a respeito da filha do produtor que estudava na mesma universidade outrora cursada por Juan (ela iria se formar em engenharia de alimentos). O sócio também comentou que uma parcela, em sua região, custava 1.500 soles (US$ 500) por hectare. 51 Este poço serviria para armazenar as águas resultantes do beneficiamento do café. Isso as impediria de atingir os rios.
53
caminho, o produtor recolheu uma garrafa de plástico jogada em sua propriedade. Logo
em seguida, o técnico acionou o GPS e comentou: “é importante saber a altura, pois
acima de 2.200 metros é melhor plantar granadilla e não café”. O aparelho eletrônico
marcou 2.190 metros.
Seguimos morro acima, em direção à chacra do tio desse sócio. A conversa de
Juan com esse senhor foi feita quase que inteiramente em quéchua, intercalada com
comentários que recebia deste técnico em espanhol. Durante a visita ao cafezal, ele
sugeriu ao agricultor que plantasse mais árvores de granadilla: “dá mais dinheiro”,
conclui o técnico a respeito desse cultivo, ainda observando: “a qualidade do café é boa,
mas o rendimento é baixo nessa altura”.
Foto 12 – Juan inspecionando as instalações Foto 13 – Informando a altura da chacra
Nessa chacra, a sujeira “inorgânica” era difícil de ser percebida. No final da
visita, Juan repassou ao sócio suas recomendações: (1ª) “poda seletiva” (não pegar os
ramos velhos) e “poda total” em plantas determinadas pelo técnico, (2ª) “barreiras
naturais”, (3ª) composto orgânico no adubo e (4ª) melhor limpeza das instalações.
Terminada a visita, descemos e nos encontramos com Mario e Raul no local onde
estavam estacionadas as motos. Um sócio, dono de uma lanchonete ao lado, nos
54
ofereceu um delicioso café. Juan brincou com ele dizendo que eu era um inspetor
estrangeiro; o associado reagiu com reverencia.
1.8 Lucmabama
No dia seguinte, acordei cedo, ainda de madrugada, e encontrei com os técnicos
na cooperativa. Pude conversar bastante com Jaime, um sujeito de 37 anos que se
identificou como um técnico, mas que não era considerando como tal pelos outros três
(eles o viam apenas como um sócio da Huadquiña). No meu entender, o classificaria
dessa maneira, pois realizava visitas de campo e administrava cursos para os associados.
É verdade que não tinha uma mesa no escritório, ao contrário dos demais, mas
igualmente trabalhava no local (era como uma exceção que parecia confirmar a regra,
em se tratando das propriedades socialmente reconhecidas dos técnicos). Ele não cursou
o terceiro grau; contou-me que aprendeu o que sabia na prática, entre os produtores, e
através de livros. Disse que gostava de ler e que queria fazer em breve uma faculdade.
Visitaria com ele dois sócios nesse dia.
Ainda no escritório junto aos técnicos, Jaime comentou comigo que os
produtores escolhiam a cooperativa à qual se filiavam independentemente da distância
da sede desta entidade até suas chacras. Por exemplo, os técnicos da Huadquiña iriam
realizar um curso para os sócios que viviam numa localidade para além de Quillabamba,
já na área considerada de selva baixa (diversas cooperativas bases da COCLA tinham
sua sede em Quillabamba). Não acompanhei este curso por questões de logística; ainda
55
queria conhecer uma região cafeicultora no centro do país e uma viagem para lá de
Quillabamba iria tomar muito tempo.52
Conversei também com ele sobre o calendário anual das atividades da
cooperativa. Terminado o tempo presente das visitas de campo, durante quinze dias de
setembro eram realizados os “cursos de capacitação”. Como dito anteriormente, cada
curso tinha duração de um dia e era feito na chacra de um sócio, na qual eram reunidos
os produtores de dois a três comitês adjacentes. O curso era dividido em duas partes: a
“parte teórica” e a “parte prática”. Para o curso que seria realizado nos próximos dias no
local para além de Quillabamba, a parte teórica já havia sido previamente discutida com
os associados numa outra ocasião. Segundo os técnicos, era mais fácil ensinar “na
prática”, aos produtores, o conteúdo do curso. Os que não apareciam nos cursos, e
também nas assembléias, eram punidos financeiramente quando fossem receber o
dinheiro da venda de seu café.
Quanto ao conteúdo dos cursos, Jaime citou como exemplo os seguintes temas:
“como dar e o que dar de alimento para as minhocas, a poda, como escrever no diário e
o que é comércio justo”. Em outubro e novembro também não havia visitas de campo;
nesse período os sócios tinham que se preparar para as “inspeções internas” de
dezembro, realizadas por membros das cooperativas filiadas à COCLA. Em janeiro e
fevereiro, meses de chuva, era tempo de plantar o café. No final de março, chegavam os
inspetores estrangeiros para as “visitas externas” e as quais duravam uma semana. De
abril a julho era a época da colheita, com as visitas de campo recomeçando na primeira
semana de julho e terminando em agosto.
“Antes não havia tratamento técnico das parcelas”, comentou Jaime. O
significado de “tecnificar a agricultura” me foi explicado por ele através de exemplos:
52 Segundo Jaime, a competição entre as cooperativas aparecia principalmente em conversas informais, ou seja, ela quase nunca era explicitada, com a exceção do que se passava num campeonato de futebol (em dezembro) e nos jogos da feira COCLA.
56
“controle orgânico das pragas, adubagem, poda, distanciamento com relação às chacras
não orgânicas e cultivo de árvores que servem de sombra para as plantas de café”. A
presença de árvores nos cafezais era tida como importante não apenas para proteger as
plantas dos raios solares, como também para impedir que as precipitações atingissem
com força o solo, levando embora os nutrientes tão essenciais para o desenvolvimento
dos cultivos.
Discutimos em seguida sobre a falta de chuva no país durante esse ano. Jaime
falou que o ano anterior havia sido bom para os produtores de café, mas que nesse a
agricultura não os sustentaria, o que fez com que muitos fossem até as cidades em busca
de outras oportunidades de ganhar dinheiro. A sua “parcela” estava em “transição dois”
e ele vendia atualmente seu café para a cooperativa sob o rótulo de “sustentável”
(sostenible). Perguntei o porquê de não plantar coca e me disse que antes, em Santa
Teresa, havia esse tipo de plantação, mas que nos lugares onde se deu esse cultivo “nada
mais crescia” e, além disso, “o clima aqui é frio para a coca”.
Nesse dia, visitamos os sócios do comitê de Lucmabamba. Saindo da
cooperativa e seguindo por volta de trinta e cinco minutos na estrada que beira o rio
Salkantay (responsável pela inundação de Santa Teresa em 1998) se chega a
Lucmabamba (cinco minutos antes de Sahuayaco, onde estive nos dias anteriores).53
Logo de cara, os técnicos discutiram sobre quais produtores cada um iria visitar. Segui
com Jaime e Mario. O primeiro sócio de Jaime não estava; vale ressaltar que todos os
sócios tinham uma placa de identificação na porta de suas casas.
Jaime me informou sobre os elementos de uma chacra orgânica “completa” ou
“ideal”. A laje “secadora” de cimento seria importante para controlar a umidade do café,
dado que com muita umidade o café demora a secar. O teto para a “planta de
53 Fui até Lucmabama na caçamba da caminhonete da cooperativa.
57
beneficiamento” impediria que o calor mudasse a cor do produto.54 A “adubadora”
serviria para armazenar a polpa que envolve o grão, a qual era usada como adubo para
as suas plantas e as de mandioca, milho, entre outros cultivos. Havia também o
armazém onde as sacas de café eram guardadas protegidas do sol e da chuva.
Entramos num cafezal e, em seguida, ele comentou comigo sobre as “barreiras
vivas” (árvores de granadilla, por exemplo) e as “barreiras mortas” (paus e pedras) que
protegiam a terra não a deixando ceder durante as chuvas, o que acarretaria a perda de
nutrientes cruciais para o bom desenvolvimento das plantas. Estávamos numa
propriedade orgânica que, como todas as outras propriedades, teve baixa produção este
ano. A chacra era pequena, deveria “entregar” no máximo 14 quintais de café (cada
quintal corresponde a 46 quilos) à cooperativa, de acordo como fora estipulado por
algum técnico. 55 Seu proprietário estava colhendo o grão num local distante. “Quero ver
os documentos”, disse Jaime gentilmente ao pai do sócio, para logo em seguida
perguntar ao irmão mais novo dele: “quem foi à capacitação, seu irmão?”.
O código do associado, tal como aparecia na placa pendurada na porta de sua
casa, era 102.SU.183. “Quantas parcelas seu irmão tem?”, perguntou Jaime. “Três”,
respondeu o irmão do sócio. “As três estão certificadas?”, questionou Jaime para logo
em seguida verificar a resposta nos documentos entregues pelo menino. O cafezal em
questão tinha vinte anos e era todo da variedade “típica”.56 Maio foi o auge da colheita e
março o início. A propriedade tinha três hectares, com 2,8 cobertos de café. Em 2004,
foram 41 quintais colhidos; em 2005, a estimativa era de 14 quintais e para 2006, a
54 A retirada da polpa que envolve o café colhido (“em cereja”) o transforma em café “pergaminho”. É esse o trabalho de beneficiamento feito nas propriedades dos agricultores. A máquina usada para conduzir esse processo se chama justamente “despolpadora”. 55 Dos 20 sócios do comitê de Lucmabamba, um deveria entregar (em 2005) nove quintais para a cooperativa, três entre 10 e 15 quintais, três entre 15 e 20 quintais, dois entre 20 e 25 quintais, dois entre 25 e 30 quintais, três entre 30 e 35 quintais, dois entre 35 e 40 quintais e quatro entre 50 e 55 quintais. 56 No Peru, esta é uma variedade comumente presente nos cafezais e, hoje em dia, bastante valorizada, por conta da qualidade dos seus grãos. Contudo, durante certo tempo, outras variedades foram preteridas quando a produtividade dos cafezais era a variável dominante, em especial, durantes os anos 80.
58
previsão dos técnicos, com base nas flores de café que podiam ser observadas, apontava
para 41 quintais. Nas suas três parcelas, o sócio estava certificado para produzir até 35
quintais em 2005. Ele e seus familiares praticavam o ayni e também empregavam
trabalhadores nos seus cafezais. A altura da parcela na qual estávamos era de 1.904
metros. No momento, um quintal rendia 190 soles para o produtor (aproximadamente
64 dólares). Outra fonte de recursos era o mel de suas abelhas vendido para os
comerciantes que vinham até a propriedade ou que eram encontrados na cidade de Santa
Teresa. Além disso, o irmão mais novo do sócio montava uma mesinha no caminho dos
turistas que passavam numa trilha ao lado de sua casa (trilha de pedra feita pelos inkas,
por sinal) e aos quais ele vendia suas frutas e bebidas industrializadas que comprava na
cidade.
Foto 14 – Jaime inspecionando a planta de beneficiamento
Jaime me explicou o sistema em torno da “planta de beneficiamento”: o café é
colhido e com casca, isto é, ainda em cereja, é colocado no “poço de cerezo”. Insere-se
água no poço, o café entra num moinho manual, dele saí “pilado” e caí no “poço de
fermentação”. Por se tratar de uma região de altura elevada, o grão fermenta em torno
de 15 a 18 horas. Logo depois, é lavado e a água que sobra (aguas miel) é armazenada
59
num poço para não entrar em contato com o rio, de acordo com as normas das agências
de certificação orgânica. O café é então levado para secar. Com sol durante o dia todo,
em três dias está pronto para ser guardado em sacas no armazém no produtor.
Chegamos à propriedade de outro sócio, o qual estava “devolvendo ayni” num
local distante. Em outras palavras, ele se encontrava retribuindo a ajuda laboral que
alguém lhe teria feito num momento anterior. Vale ressaltar que alguns agricultores se
dedicavam ao comércio na cidade e outros trabalham com os turistas. Todos estes,
segundo o técnico me informou, “deixam as chacras de lado”. Ainda de acordo com ele,
“melhor é conversar com o dono, e não com seus filhos”.
Entramos, logo em seguida e para minha surpresa, na propriedade de Basílio, o
mesmo produtor cujos grãos sostenibles estavam expostos na feira da COCLA. Ele
estava podando as plantas de café numa de suas “parcelas”. Seu filho nos levou até ele.
Nesse pedaço de terra cultivavam o grão desde a reforma agrária (de 1963); o pai do
agricultor começou a plantá-lo nesse período e passou em seguida suas propriedades
para seus filhos. No ano anterior (2004), Basílio entregou 22 quintais à cooperativa,
nesse ano a previsão era de 11 quintais a serem entregues e para 2006 ele previa 25, o
mesmo número da sua cota. O “caderno do produtor” de Basílio não estava passado a
limpo e isso deveria ser feito “até a próxima semana”, lhe avisou Jaime. Tal prática,
segundo o técnico, era bastante comum: “eles não gostam de escrever”, comentou.
Transcrevo parte da conversa entre ele e Basílio:
- Quantos abacateiros você tem na parcela 2? (Jaime) - Uns setenta, oitenta abacateiros. (sócio)
Jaime anotou 75. A aproximação era uma prática comum entre os técnicos. Com
relação aos “aspectos culturais”, ele escreveu o seguinte, depois de questionar o sócio:
60
“assembléia, fainas, costumes”. A altura da parcela era de 2.045 metros. Agora
transcrevo um diálogo em torno do “plano de produção”.
- O que vamos fazer Don Basílio? (Jaime) - Poda. (sócio) - Qual outra tarefa? (Jaime) - Trabalhar entre setembro e dezembro em um hectare de milho. (sócio) - Tem que fazer o poço de cerezo! (Jaime) - Em dezembro faço. (sócio)
O número mínimo de tarefas que o sócio tinha que cumprir, enquanto “plano de
produção”, eram sete. Jaime repreendeu mais uma vez o produtor pelo fato dele não
passar a limpo no “caderno de registro” aquilo que diariamente anotava num outro
caderno. “No curso ensinam como usar o caderno (de registro)”, comentou Basílio. Os
sócios tinham que anotar basicamente tudo o que faziam com relação à agricultura. Na
“ficha de recomendação” Jaime escreveu:
(1) Teto para a planta de beneficiamento (2) Tem que juntar os lixos espalhados pela propriedade na lixeira inorgânica (3) Construir o poço de cerezo (4) Fazer placa de identificação do sócio de madeira e não de papel (5) Cumprir com o plano de produção
Tudo isso deveria estar em dia até a primeira semana de dezembro, quando começava a
“inspeção interna” (ou “controle interno”) feita entre as cooperativas bases da COCLA.
Jaime seguiu até outro sócio e, no caminho, encontrei com Mario terminando
uma de suas visitas (a última sua do dia). O associado em questão era vizinho e irmão
de Basílio. Ele estava em “transição dois”, ou seja, no próximo ano seria “orgânico” (a
floração do seu café com a qual nos deparávamos resultaria num produto que iriam ser
vendidos sob este rótulo). Por conta disso, teve de assinar, com o polegar direito, a
“declaração jurada do produtor orgânico”. Neste documento aparecia especificada a
quantidade de café certificado que deveria entregar à cooperativa. Este agricultor, assim
61
como seu irmão, anotava tudo num “caderno auxiliar”. Contudo, deveria passar a limpo
as informações no “caderno de registro das atividades diárias”, disse Mario que, por
sinal, foi quem concebeu esse caderno. Já a “ficha de campo” fora produzida pelo
“comitê técnico” da COCLA.
Foto 15 – A “declaração jurada”
Como de praxe, o “controle interno” foi quem aprovou o sócio de “transição
um” para “transição dois”. Em sete de julho (quase um mês antes), esse produtor esteve
num curso, também freqüentado por seu irmão, cujos temas foram: comércio justo,
manejo de registros, poda de café, entre outros assuntos. Mario comentou com eles que
era importante ter um banheiro em boas condições, por isso a necessidade de arrumarem
o teto caído do toalete da família. “Não podemos encontrar lixos pela chacra”, avisou o
técnico. “As crianças levam o lixo”, respondeu o sócio.
Mario comentou, na frente do produtor e de sua esposa, sobre a “preguiça”
destes em escrever e registrar suas atividades diárias. Ele passou então a fazer um
“controle pedagógico” em cima do sócio. “Tem que saber sobre o uso das plantas
62
medicinais”, questionou o técnico para logo em seguida perguntar sobre as propriedades
medicinais das plantas que o agricultor dizia dispor. Ele e sua mulher pareciam
conhecer bem tais propriedades. “Conhecem zonas de barreira?”, perguntou Mario.
Acontece que todos os vizinhos desse produtor eram orgânicos, daí que não havia, para
sua chacra, “risco de contaminação” por produtos químicos.
Mario me falou da importância de se “respeitar as tradições, a cultura”. Citou
como exemplo el pago a pachamama (“pagamento à mãe-terra”, em quéchua) e
perguntou ao sócio e a sua esposa se praticavam esses rituais (eles responderam que
não). “O que podem cumprir este ano?”, questionou o técnico para logo em seguida
completar: “quais são os defeitos?”. Algumas das sete recomendações indicadas por
Mario, e que deveriam estar prontas até dezembro, foram:
(1) Ampliar o armazém (2) Usar o registro – (“o espelho do produtor”, nas palavras de Mario) (3) Fazer o letreiro de identificação da parcela (exigência das certificadoras)
Voltei com Mario andando até Santa Teresa. Conversamos longamente pelo
caminho. Primeiramente me informou que a região em torno dessa cidade era
antigamente uma hacienda (fazenda, em espanhol), cujo dono plantava cana-de-açúcar e
produzia aguardente. Este teria “castigado” com freqüência seus trabalhadores e
mandado matar os que se juntassem aos “rebeldes”. Mas foram justamente estes
últimos, como era notadamente o caso de Hugo Blanco, que para este técnico
inspiraram a “rebelião popular”. No seu entender, e de muitos peruanos com quem
conversei, se os fazendeiros não fossem tão violentos com os camponeses essa reforma
não teria acontecido. De acordo com Mario, a reforma agrária deu em média três
63
hectares para cada camponês.57 Nas partes altas, era possível ter 100 hectares com a
autorização do Ministério da Agricultura, para pasto e conservação ambiental. Não era a
toa que “no alto” estavam os gados dos camponeses e a paisagem era bastante
“selvagem”.58
“A venda de café é muitas vezes insuficiente para a reprodução da família”,
ressaltou Mario. Contudo, ele via o comércio justo como algo imprescindível para os
sócios da cooperativa. Já no final da nossa conversa, o técnico chamou atenção para um
problema. O preço atual do café no mercado interno estava mais alto do que na Bolsa de
Nova Iorque, dado a pouca produção no país.59 Esse descompasso “anularia” as
vantagens do comércio justo. “O produtor desanima: é todo um esforço para vender pelo
mesmo preço de quem não é certificado”, comentou. “Mas isso não ocorre todo ano”,
disse apontando para o fato de que o “orgânico mantém os preços do café”. De acordo
com ele, todos os cafés dos sócios já estavam vendidos, mesmo com os cafezais ainda
57 Ele esta se referindo à reforma agrária local de 1963 e não à que atingiu o país no final dessa década (através do governo militar instaurado em 1968). No começo dos anos 60, a província de La Convención, no departamento de Cuzco, contava com mais de 100 sindicados de camponeses e que, em 1962, iniciaram uma verdadeira rebelião popular em prol da reforma agrária. Hugo Blanco, um sujeito de origem mais abastada, foi o líder desta revolta que resultou na criação de uma lei em 1963 que declarou La Convención como “zona inicial da reforma agrária”. Com base na minha experiência de campo, posso afirmar que nos rincões do Peru a narrativa comum sobre a reforma agrária enfatiza a libertação dos camponeses e trabalhadores de uma situação generalizada de exploração violenta. Já nos ambientes urbanos da costa peruana, a reforma agrária tende a ser vista como uma experiência fracassada de modernização da agricultura nacional. Ver La Reforma Agraria en el Perú de Matos & Mejía (1980) para uma visão obviamente mais apurada desse fenômeno. 58 Em frente à cooperativa fica a outrora sede da antiga hacienda Huadquiña. Uma provocação, perguntei diante da recorrência desse nome. Mario disse que sim. Ele também me contou que a cooperativa foi quem construiu a estrada pela qual estávamos andando, visando nela transportar a colheita de seus sócios. Sobre a questão do pago a pachamama, me falou que a própria cooperativa realizou esse ritual recentemente e que inclusive fora filmado por um turista estrangeiro. 59 O preço internacional de mercado do café arábico é o preço estabelecido no final de cada dia de negociação do contrato futuro “C” mais negociado da Bolsa de Nova Iorque (New York Board of Trade – NYBOT). O Peru produz basicamente apenas esse tipo de café. Os cafés da variedade robusta têm seu preço cotado na Bolsa de Londres (London International Financial Futures and Option Exchange – LIFFE). Em ambas as Bolsas se negociam “contratos futuros” que estabelecem de antemão o preço do café para datas padronizadas futuras (janeiro, março, maio, julho, setembro, novembro). Geralmente o contrato na “segunda posição” é o mais negociado nas Bolsas. Por exemplo, num dia qualquer de abril o contrato de café com vencimento (ou liquidação) em julho seguinte tende a ser o mais negociado e, dessa maneira, deve informar o preço do café nesse dia nas compras e vendas internacionais desse grão
64
na fase de floração, dado os contratos que a cooperativa tinha feito com as empresas
compradoras de café certificado pelo comércio justo.
1.9 A realização de um ideal em torno de um mercado global certificado
No universo da agricultura orgânica certificada unem-se consumidores e
produtores de distintas partes do globo. Mas a crença nesse universo certamente não é
automática e nem depende apenas da sua tradução em valores econômicos. Isso vale
igualmente para consumidores e produtores. Uma afirmação de Marshall Sahlins (2007)
ilustra bem o valor predominante no ambiente consumidor dos grandes centros urbanos
existentes nos países desenvolvidos:
Vivemos hoje em um mundo que se encanta com objetos semioticamente construídos e culturalmente relativos, como o ouro, a seda, as cepas de pinot noir, o petróleo, o filé mignon, os tomates "primeira colheita" e a água pura de Fiji. Assistimos a uma construção da natureza por meio de esquemas culturais historicamente determinados, mas cujas qualidades simbólicas são transformadas em qualidades pecuniárias, cujas fontes sociais são atribuídas a desejos individuais e cuja satisfação arbitrária é travestida em escolha universalmente racional. Mas, como é impelido à competição pelo interesse financeiro, esse encantamento produz uma infinidade de objetos, enquanto ainda for possível metamorfosear as distinções sociais dos sujeitos e dos objetos em mercadorias rentáveis.
Certamente que a busca de uma distinção social não é a razão principal dos
produtores colocarem em prática a agricultora orgânica certificada; a narrativa feita ao
longo desse capítulo ilustra bem isso. Mas o demorado processo, de dois a três anos,
que geralmente envolve a certificação, dificilmente pode ser pensado exclusivamente
em termos dos valores econômicos que deve proporcionar aos seus participantes. O que
parece estar fundamentalmente em jogo na adoção desse modelo de cultivo é a relação
entre os cafeicultores e os técnicos que os assessoram. Isso porque a tradução da
agricultura orgânica certificada para os agricultores se mostra possível se levarmos
65
principalmente em consideração a autoridade dos técnicos, a legitimidade de suas
práticas e o reconhecimento das representações que acionam em suas falas.
Em Paris, Chicago ou Nova Iorque, por exemplo, a partir do momento que as
pessoas amplamente consideradas representantes do que há de mais “moderno” passam
a consumir produtos orgânicos, é bem provável que essa prática se torne um recurso
eficaz de distinção social, de produção de identidades coletivas e de novos tipos de
gostos. No caso dos produtores, os técnicos se colocam como seus referentes na medida
em que reconheçam estes profissionais como legítimos mediadores de suas relações
com a produção de café. Através dos técnicos, pode-se dizer que uma concepção de
modernidade originária dos países desenvolvidos (no caso, a agricultura orgânica) acaba
vigorando entre os cafeicultores.
Afirmar que os agricultores vivem imersos num mundo que não se reduz ao
âmbito agrícola não deve ser nenhuma surpresa para qualquer antropólogo familiarizado
com uma literatura, que talvez tenha como ponto de partida as considerações de Robert
Redfield (1953), a respeito do meio urbano como algo constitutivo dos ambientes rurais.
Minha própria aproximação aos cafeicultores peruanos ilustra bem a atitude,
preponderante entre eles, de olhar com reverência para aqueles que parecem advir dos
centros decisórios, situados basicamente nas cidades dos países desenvolvidos, algo
aparentemente bastante evidente para qualquer um que queira vender seus cafés. Em se
tratando desse grão, “os gringos” que detêm então a palavra final. Uma OPEP dos seus
produtores deveria levar em conta algumas dezenas de milhões de pessoas com poder de
decidir igualmente a respeito do controle da produção.60
60 OPEP é a sigla da Organização dos Países Produtores de Petróleo. Em torno de três quartos da produção global de café é feita através de propriedades de não mais do que cinco hectares, ou seja, a maior parte de seus produtores não é formada por grandes latifundiários, mas sim por pequenos agricultores, uma situação que basicamente se repete no Peru, com suas mais de 150.000 famílias produtoras. (JNC, 2005) Isso significa que é praticamente impossível haver qualquer tipo de coordenação, entre as famílias cafeicultoras ao redor do globo, que produza os mesmos efeitos em torno do controle da
66
A relação dos cafeicultores com os técnicos é uma mediação de uma relação
mais geral entre produtores e consumidores de café. A análise dessa mediação deve
justamente levar em conta determinados elementos próprios do universo simbólico dos
agricultores. Isso pode ser tanto o uso da língua e de trejeitos lingüísticos usados pelos
produtores quanto o tratamento destes com base em determinadas regras de etiquetas.
São estes pormenores que, em muitos casos, fazem com que os cafeicultores se sintam
confortáveis diante dos técnicos.
Diante disso, é possível que as imposições dos compradores de café, como é o
caso da certificação orgânica para os produtos que circulam dentro do comércio justo,
apareçam aos produtores como uma escolha que corresponderia aos ditames de suas
próprias consciências. É claro que as transações desse grão se articulam em torno de um
mercado de dimensões globais onde as intenções dos agricultores, a respeito de suas
ações, acabam se deparando com outras intenções dotadas de um maior poder de decidir
os sentidos desses intercâmbios. Sendo assim, dificilmente os cafeicultores deixarão de
ser o elo mais fraco do sistema econômico do qual fazem parte. Conseqüentemente, é
bem provável que continuarão a ter de se adaptar às novas modas surgidas entre os
consumidores do grão. Mas isso parece não impedir que os agricultores permaneçam
depositando suas expectativas nos mercados de café.61 Afinal, porque uma subordinação
qualquer deveria significar sempre um ato de imposição e nunca de esperança?
A resposta a esta pergunta também permeia os próximos capítulos. O primeiro
deles focaliza o que chamo das sagas dos produtores da selva central peruana que fazem
produção que aqueles alcançados pelos membros da OPEP. Os Acordos Internacionais do Café que vigoraram entre 1962 e 1989 certamente influíram na obtenção de melhores preços para os países produtores, ao terem estabelecidos determinadas cotas de produção para cada uma dessas nações. Mas pelos menos no Peru, com bem demonstrou Shoemaker (1981), essa situação serviu mais para fortalecer a burocracia estatal do que as famílias cafeicultoras ou suas respectivas cooperativas. 61 “Aliás, quem pensaria realmente em minimizar o papel do mercado? Mesmo elementar, é o lugar predileto da oferta e da procura, do recurso a outrem, sem o que não haveria economia no sentido comum da palavra, mas apenas uma vida ‘encerrada’ (o inglês diz embedded) na auto-suficiência ou na não-economia. O mercado é uma libertação, uma abertura, o acesso a outro mundo.” (Braudel, 1998 p. 12)
67
parte da cooperativa que mais exporta café no país através do comércio justo. Esse
sistema comercial se mostrou fundamental para a continuidade das narrativas que estes
agricultores utilizam para dar sentido às suas ações ao longo do tempo. Já estas
narrativas estão imbricadas na própria identidade destes sujeitos enquanto cafeicultores.
Em outras palavras, a transformação deles de migrantes andinos em produtores de café
na selva central envolveu a constituição de dois quadros temporais de referência a partir
dos quais passaram a pensar seu passado, presente e futuro. O capitulo seguinte retrata
justamente a gênese destas percepções.
68
Capítulo 2 – As sagas de um grupo de migrantes andinos na selva central
2.1 Introdução
A La Florida é a cooperativa peruana que mais exporta café dentro e fora do
comércio justo. Mas foi através de sua destacada participação nesse sistema comercial
que ela obteve seu reconhecimento nacional e internacional. Isso obviamente faz dela
um lugar bastante significativo para se perceber os sentidos desse sistema do ponto de
vista dos cafeicultores. Contudo, para compreender esse ponto de vista é preciso
primeiro entender como estas pessoas vieram a se identificar como produtores de café.
A questão que permeia este capítulo é apreender a gênese dessa categoria entre os
migrantes andinos ligados à Cooperativa La Florida. Isso porque a identificação destes
sujeitos com a cafeicultura está conectada com as narrativas que dão sentido às suas
ações ao longo do tempo e o comércio justo se colocou justamente como um elemento
fundamental para a continuidade destas narrativas.
Tratar da gênese da categoria “cafeicultor” significa não tomar como um dado a
identificação das pessoas com base nessa categoria. Tal naturalização tem acompanhado
os estudos sociológicos e antropológicos que focalizam os produtores de café. Estes
estudos abordam principalmente as condições “materiais” da vida destes agricultores e
suas lutas em busca da melhoria destas condições. Os títulos de alguns desses livros
exprimem bem a ênfase de seus autores em retratar os conflitos que envolvem os
cafeicultores: Peasant Politics – Struggle in a Dominican Village, de Kenneth Evan
Sharpe (1977); The Peasants of El Dorado – Conflict and Contradiction in a Peruvian
Frontier Settler, de Robin Shoemaker (1981).
69
Em San José: Subcultures of a “Traditional” Coffee Municipality, Eric Wolf
(1956) igualmente cristaliza uma identidade dos produtores de café em torno da
produção e comercialização desse grão. Dessa naturalização derivam as duas principais
questões que são analisadas ao longo do texto. A primeira delas trata do que esse autor
identifica como uma cultura cada vez mais dependente de um único cultivo. Já o
segundo ponto tem a ver com o que acontece com essa cultura quando o produto
derivado desse cultivo perde importância no mercado mundial.
Wolf escreveu seu trabalhado tendo como referência um período em que os
preços internacionais do café estavam em queda. Sharp (1977) e Shoemaker (1981), por
sua vez, conduziram suas pesquisas numa época de altos preços do grão. De qualquer
maneira, ambos acabam adotando outras variáveis para também pensar as dificuldades
em relação à subsistência dos produtores. O primeiro deles se concentra na escassez de
terra e no caráter sazonal da cafeicultura, já o segundo elege o que ele chama de
“colonialismo interno”.
Estes três autores compartilham uma mesma visão economicista que permeia os
trabalhos acadêmicos sobre o comércio justo. Em todos estes casos os quadros de
referência dos produtores parecem derivar basicamente de suas circunstâncias
materiais.62 Dito de outro modo, as atitudes dos agricultores são encaradas como tendo
como horizonte principal a superação de uma determinada conjuntura econômica. Mas
como bem colocou Marshall Sahlins (1987), uma conjuntura pode ser vivenciada com
base em referenciais que dão sentido a um período de tempo mais amplo em torno da
vida das pessoas. Ao levarmos em conta a “longa duração” dos processos históricos
vividos pelos cafeicultores, podemos perceber os significados que os acompanham para
além das situações nas quais se vêem envolvidos.
62 A “crise internacional no preço do café” é o contexto por excelência no qual os textos sobre o comércio justo procuram enquadrar as ações dos cafeicultores.
70
No caso dos produtores destacados neste capítulo, eles encaram suas ações ao
longo do tempo através de noções como a de “progresso” e “desenvolvimento”. Em
outras palavras, estes agricultores adotam referenciais associados ao campo semântico
da modernidade para dar sentido aos seus projetos individuais ou coletivos. Isso envolve
um reconhecimento de que não desfrutam de condições de vida que possam ser
identificadas a este campo semântico.63 O que suas sagas exprimem são justamente os
seus esforços em busca dessas condições de vida para si e seus familiares. Trata-se de
narrativas através das quais qualquer conjuntura é principalmente vista com base numa
perspectiva de longo prazo.
2.2 Modernos e atrasados
A sede da Cooperativa La Florida fica na cidade de La Merced. Ela é um lugar
de convergência das coisas e pessoas que circulam pela região da selva central.64 O fato
de abrigar o único terminal rodoviário que liga as três provinciais dessa região reflete
bem essa sua centralidade dentro desse território mais amplo. La Merced esta localizada
a 305 quilômetros de Lima através de uma estrada asfaltada bastante sinuosa que cruza
a cordilheira andina; esta rodovia é considerada o trajeto mais curto entre a capital do
país e a floresta amazônica. Nesse agradável centro urbano de aproximadamente 20.000
habitantes e capital da província de Chanchamayo se concentram também as agências
63 De acordo com James Ferguson (2006 p. 168): “To say that people live lives that are structure by a modern capitalist world-system or that they inhabit a social landscape shaped by modernist projects does not imply that they enjoy conditions of live that they themselves would recognize as modern”. 64 “A nivel de la apropiación del espacio, encontramos que desde la época colonial hasta la actualidad se ha dado un proceso de creciente articulación de las diversas áreas que hoy componen la selva central, el cual ha culminado en la creación de un espacio regional cuyas vías de comunicación, flujos migratorios y comerciales, circulación de capitales, bienes y tecnologías tienen como punto nodal a la ciudad de La Merced.” (Santos & Barclay, 1995 p. 331)
71
turísticas e hotéis de melhor padrão da selva central.65 Trata-se da principal porta de
entrada para os visitantes desse espaço regional. Mas para adentrar no distrito onde vive
a grande parte dos sócios da cooperativa é preciso percorrer pelo menos mais 25
quilômetros na mesma rodovia asfaltada que passa por La Merced.
Mapa I – As cidades de La Merced e Perene (no alto à direita)
O distrito de Perene é o maior da província de Chanchamayo e representa 60%
ou 115.874 hectares da sua área total. (Desco, 2005a) É verdade que o território (de
aproximadamente 35.000 hectares) onde vivem os sócios da Cooperativa La Florida
também abarca algumas pequenas porções de outros dois distritos vizinhos. Mas a
maior parte desses produtores de café reside em Perene. Ao longo da segunda metade da
década de 2000, estiveram associados à cooperativa por volta de 1.200 homens e
mulheres. O censo nacional de 2007 oferece alguns dados bastante reveladores sobre a
população desse distrito aos olhos quantitativos do poder público.66 Tais dados se
mostram ainda mais importantes se considerarmos como um ponto de vista que pode
65 Chanchamayo é uma das três províncias que formam a “região sub-administrativa da selva central”. As outras duas são Satipo (que assim como Chanchamayo pertence ao departamento de Junín) e Oxapampa (pertencente a Pasco). Essa é a delimitação não apenas oficial da selva central, como também aquela mais usada no país, principalmente por aqueles que vivem ou transitam nessas três províncias. Uma obra bastante detalhada sobre essa região é o já citado livro de Fernando Santos e Frederica Barclay (1995) intitulado Ordenes y desórdenes en la Selva Central: Historia y economía de un espacio regional. 66 As informações referentes a este censo se encontram disponíveis na página eletrônica do Instituto Nacional de Estatística e Informática (www.inei.gob.pe).
72
embasar políticas públicas, intervenções de organizações não-governamentais e
trabalhos acadêmicos sobre essa localidade.
De acordo com este censo, o número de habitantes de Perene é de 56.292
pessoas. Na sua área rural (nos chamados anexos e nas “comunidades nativas”) moram
51.2% desses indivíduos e nos espaços urbanos (a capital distrital e os “centros
povoados”) os restantes 48.8%.67 Quase a metade dos residentes do distrito é formada
de migrantes e 7.1% têm algum parente vivendo em outro país. As principais ocupações
de seus moradores são a de trabalhador não-qualificado ou informal (36.1%), agricultor
(33.8%), trabalhador do setor de serviços (9.7%) e trabalhador da construção civil
(7.8%). Em relação à população economicamente ativa, 61.8% trabalham na agricultura.
Daqueles que têm entre seis e 11 anos de idade 93.2% freqüenta o sistema educativo, de
12 a 16 anos essa freqüência é observada em 84.3% dos casos e de 17 a 24 anos em
23.8%. O analfabetismo atinge 4.5% dos homens e 13.9% das mulheres. Na zona rural
11.3% dos cidadãos são analfabetos e na urbana 6.3% não sabem ler nem escrever. As
pessoas do sexo masculino com ensino superior completo ou incompleto correspondem
a 14.5% da população do distrito e as do sexo feminino 11.9%.68
A posse de algum tipo de seguro de saúde pode ser verificada em 25.7% dos
homens e em 28.6% das mulheres (não existe um serviço público de saúde gratuito e
universal no Peru, ao contrário do que acontece no Brasil, por exemplo). No espaço
urbano 22.8% dos indivíduos estão cobertos por um plano dessa natureza e no campo
esse número é de 31.1%. Aproximadamente 100% dos casos tratam-se dos planos
públicos Seguro Social de Saúde (EsSalud) e Sistema Integrado de Saúde (SIS). O
67 De acordo com a página eletrônica da Municipalidad Distrital de Perené (www.muniperene.gov.pe), vivem na capital do distrito ao redor de 12.000 pessoas. Ainda segundo essa página, Perene conta com 40 “comunidades nativas”, oito “centros povoados” e mais de 140 “anexos”. 68 “En el distrito de Perené funcionan 188 centros educativos. Los profesores asignados son un total de 572 para 13.738 alumnos”. (Desco, 2005a p. 31) A grande maioria destes centros educativos é de escolas de primeiro grau e o restante de colégios de segundo grau. Há um modesto instituto de ensino superior na capital do distrito.
73
primeiro é dirigido para aqueles, normalmente trabalhadores assalariados, capazes de
arcar com uma determinada mensalidade e cobre 5.7% e 2% da população urbana e
rural do distrito, respectivamente. O segundo é gratuito e destina-se aos que vivem em
condição de “pobreza extrema”. Ele abarca 15.3% daqueles que residem nos centros
povoados e 28.2% dos que moram nos anexos ou comunidades nativas.69
Ao redor de 80% das pessoas do distrito têm o espanhol como língua materna; o
restante, os idiomas andinos ou amazônicos. Um pouco mais do que a metade dos
moradores se identifica como católico; um terço se define evangélico.70 As mulheres
(em idade fértil) que vivem em Perene têm 2.5 filhos em média (2.2 na área urbana e 2.8
no campo). Em relação às residências, 63% têm piso de terra e 26.7% de cimento. Por
volta de um terço das casas conta com água encanada e ao redor da metade desses
imóveis esta ligada a uma rede elétrica. Aproximadamente 70% dos lares contam com
aparelhos de rádio, 40% possuem televisão, 9.5% geladeira, 4.1% telefone fixo, 18.7%
telefone celular e 0.3% tem acesso à internet. Menos do que 20% dos domicílios esta
conectado à rede pública de saneamento e 73.3% usa lenha para obter energia para
cozinhar.71
Enquanto um ponto de vista próprio do poder público, o censo nacional de 2007
encara o distrito de Perene como um espaço economicamente organizado ao redor da
69 “De los 18 establecimientos que el Ministerio de Salud ha instalado en el distrito de Perené, apenas uno es clasificado como centro de salud, mientras que los 17 restantes son puestos de salud.” (Desco, 2005a p. 29) Os hospitais mais próximos do distrito se encontram em La Merced e em outras duas cidades localizadas também em distritos vizinhos. 70 “En años recientes, todo el ámbito del Perené ha sido impactado por una fuerte presencia de la religión evangélica. Comunidades íntegras pertenecen tanto a la Iglesia Evangélica Adventista como a la Pentecostal.” (Desco, 2005 p. 346) 71 A título de comparação, alguns dados deste mesmo censo, só que a respeito do país como um todo, ajudam a entender melhor as informações a respeito do distrito de Perene e, nesse sentido, a visualizar sua posição em relação à média nacional. Por exemplo, 75.9% dos peruanos vivem em ambientes urbanos e 24.1% em espaços rurais; 31.1% freqüentaram o ensino superior; 7.1% são considerados analfabetos; 42.3% possuem seguro saúde; 83.9% têm o espanhol como língua materna e 15.9 outras línguas; 72.1 têm rádio e 61.1% televisão; a posse de telefone fixo é encontrada em 27,7% dos habitantes e de celular em 42.9%; 6.8% possuem conexão à internet e 32.4% têm geladeira; 55.6 utilizam fogão a gás e 30.2% a lenha; 81.3% são católicos e 12.5 evangélicos; a média de filhos por mulher em idade fértil é de 1.7; 43.4 das casas têm piso de terra e 38.2% de cimento.
74
agricultura. Um número relevante dos seus habitantes possui algum parente no exterior
e isso o enquadra dentro de uma dinâmica própria do país.72 A educação e a saúde estão
focalizadas em determinados segmentos da população e não se encontram
universalmente disponíveis. Pode-se dizer que o distrito é composto de uma minoria
indígena “nativa” bastante expressiva. Já a taxa de natalidade de Perene não se mostra
muito elevada para um ambiente ligado ao campo. As informações a respeito das
condições de vida de seus moradores revelam um cenário onde diversos serviços
públicos e outras comodidades normalmente associadas ao mundo moderno não são
amplamente disseminados.
Foto 16 – La Florida (um dos oito centros povoados do distrito de Perene)
Para alguém de fora acostumado com essas comodidades, é bem provável que
lhe saltará aos olhos a precariedade não só das casas dos habitantes de Perene como
também daquilo que existe ao redor destes imóveis.73 Praticamente tudo o aparecerá
72
“Segundo pesquisa de opinião do Instituto Apoyo, um dos mais conceituados do Peru, pelo menos 75% dos jovens peruanos deixariam sua terra natal se pudessem, para tentar a sorte em outro país.” (trecho extraído de uma reportagem da BBC Brasil de 05/06/2006 e publicada em www1.folha.uol.com.br/folha/ bbc/ult272u53828.shtml) 73 “Los niveles de pobreza en el ámbito distrital afectan indistintamente a colonos y nativos, aunque estos últimos presentan índices negativos más agudos. Según el indicador de las necesidades básicas insatisfechas (NBI), el 79% de la población de la provincia de Chanchamayo es pobre. En el caso del distrito de Perené, el 88,3% de los 6.345 hogares censados presenta por lo menos una NBI. En total, el 90,5% de la población distrital se halla en esta situación. Respecto a la incidencia de pobreza, los datos
75
como um remedo ou simulacro de algo mais acabado: as estradas são todas de terra e
esburacadas, os solos se encontram bastante desgastados, não há nenhum hospital nas
redondezas e muitas escolas estão literalmente caindo aos pedaços. Os estabelecimentos
comerciais de Perene oferecem basicamente aquilo que um pobre morador pode
comprar; não é sem razão que os seus principais atrativos turísticos se resumem às suas
cachoeiras e “comunidades nativas”.74 Trata-se de um passeio padrão, vendido pelas
agências turísticas localizadas em La Merced ou em Lima, que leva os viajantes a
conhecer, em um dia, “a natureza e a tradição” ao redor do rio que dá nome ao distrito.
Foto 17 – A área rural do distrito
departamentales de la Encuesta Nacional de Hogares para Junín, departamento en que se halla Perené, muestran una leve disminución de esta, aunque aún se mantiene por encima de los promedios nacionales.” (Desco, 2005b p. 343) 74 Na verdade, apenas uma comunidade nativa é visitada nos passeios guiados. Evidentemente que esta comunidade se encontra previamente preparada para receber os turistas de acordo com uma imagem estilizada daquilo que seria uma tribo indígena. A página eletrônica de uma agência de turismo localizada em Lima oferece a seguinte descrição da visita de um dia ao “vale do Perene” incluída num passeio (chamado Alternativo) de três dias na selva central: “06:00 hours. Arrival to La Merced, reception and transfer to accommodation chosen. 08:00 hours. Breakfast. 09:00 hours. We start the tour observing Native Dormido which is an amazing geological formation. We continue the path for Yurinaki Port, after a brief walk; meet the charming and surprising Bayoz and Velo de la Novia cataracts, relaxing in crystal waters and natural pools. Return to enjoy a typical lunch. We move to Zutsiki Port for a boat ride to an outboard motor on the Perene River. Arriving at the Native Community Ashaninka “Pampa Michi” where we learn their history, enjoy their native music and dance. We end our day in this place enjoying in a typical Ashaninka campfire with live music. Finally, we visit a Mini Coffee Processing Plant and fruits (tasting and buying) return to accommodation. Overnight.” (www.butterflyexpedictions.com) Para um estudo a respeito de uma comunidade nativa vizinha a esta visitada no passeio, ver Aranda (1978).
76
Acontece que também existem os visitantes de Perene que vão atrás de algo
ligado ao que tem de “moderno” do ponto de vista desses olhares externos. Trata-se dos
cafeicultores e demais pessoas envolvidas com o comércio de café, além de
representantes de organizações não-governamentais, interessados em conhecer de perto
a nacional e internacionalmente reconhecida experiência da Cooperativa La Florida. Um
artigo publicado num jornal suíço ilustra bem esse amplo reconhecimento atingido pela
cooperativa. Transcrevo abaixo um trecho desse artigo:
Qui ne connaît pas La Florida ? Pour les accros à la caféine équitable, le nom de cette coopérative péruvienne de Haute-Amazonie est presque devenu synonyme de petit noir du matin. Vendu aux quatre coins de la planète, le café La Florida fait vivre quelque 2 800 familles, stimulant un renouveau coopérativiste dans tout le pays. Presque éteint il y a dix ans, ce secteur s’affiche désormais numéro un mondial de la production biologique et du commerce équitable. Un succès qui n’est pas qu’économique, puisque le modèle La Florida s’appuie sur un fonctionnement démocratique et un concept de « développement intégral », où les gains obtenus par la commercialisation alternative du café servent à assurer diversification, formation et progrès sociaux. (Pérez, 2006)
Minhas visitas ao povoado de La Florida e demais espaços onde vivem os sócios
da cooperativa não podem então ser compreendidas sem levar em conta o
reconhecimento dessa organização para além desse contexto local. Aos olhos desses
agricultores eu seria quase sempre associado a um estrangeiro interessado em conhecer
de perto as experiências em torno dessa entidade. Na verdade, qualquer gringo que
fosse até a região para ver outra coisa que não suas cataratas e comunidades nativas
muito provavelmente também seria imediatamente identificado dessa maneira. “Você
esta com a cooperativa?”, me perguntavam freqüentemente muitos dos moradores de
Perene. As representações que os membros da cooperativa têm do que entendem como
“moderno” devem ser compreendidas levando em conta justamente as visões que
aqueles (estrangeiros ou peruanos) que estes vêem como representantes da
“modernidade” têm deles. Nestes olhares externos a vanguarda e o atraso se misturam.
Isso porque os produtores são tanto associados a uma realidade vista como precária
77
quanto fazem parte de uma organização admirada aos olhos de quem eles têm bastante
consideração.
2.3 A modernidade da cooperativa
No dia 16 de agosto de 2005 fui conhecer o pueblo de La Florida.75 Trata-se de
um dos oitos “centros povoados” que existem no distrito de Perene e lugar de origem da
cooperativa que leva o seu nome. Saindo de La Merced chega-se até esse local em
aproximadamente duas horas de viagem num dos automóveis que fazem esse percurso
diariamente. Parte do trajeto é feita pela única rodovia asfaltada da selva central e o
restante através de uma estrada de terra mantida com os tratores da cooperativa e que
são abastecidos com o combustível comprado com os recursos adquiridos pelo pedágio
que existe na entrada dessa pista. Estava portando uma carta de recomendação escrita
por um funcionário da La Florida numa das páginas do meu caderno de campo e na qual
ele dizia o seguinte:76
Amigo Gorbachov!
Antes te envio un cordial saludo en igual a tu familia. Aprovecho también para pedirte un favor por mi amigo Ricardo Cruz q`vienne de visita. Que le de una atención necesaria en lo q´ es planta de Beneficio en Humedo. Sin otra reitero mis saludos y agradecerte de antemano tu atención. Atte. Leonel
75 La Florida se constituiu como um centro povoado em 1964. Essa informação me foi passada pelo seu “prefeito”, o qual também me informou que em 2005 os “gastos” deste pueblo foram de 12.320 soles e seus “investimentos” da ordem de 4.000 soles. No ano seguinte, esses valores ficaram em 26.000 soles e 8.000 soles, respectivamente. Já para 2007, a previsão era de que teria 50.000 soles à disposição no total. Um trecho extraído de uma notícia publicada no diário peruano El comercio de 12 de maio de 2008 trata justamente da situação então vivenciada pelos prefeitos dos centros povoados: “Dos mil alcaldes de los centros poblados del país se reunirán en Lima el 30 de este mes para debatir sobre las dificultades por las que atraviesan sus gestiones, porque la Ley Orgánica de Municipalidades no especifica sus funciones y por la escasa transferencia de recursos económicos que reciben de las municipalidades provinciales.” 76 O capítulo quatro focaliza justamente a transformação desse funcionário em um comerciante de cafés especiais. Ele foi meu primeiro contato entre as pessoas envolvidas com a Cooperativa La Florida e, através dele, acabei conhecendo outros sujeitos também ligados a essa organização, em especial, os jovens familiarizados com um ambiente urbano de classe média, como era justamente o caso desse sujeito que, fortuitamente, conheci assim que cheguei à selva central advindo do sul do país.
78
Foto 18 – O centro povoado de La Florida visto do alto
Assim que o automóvel entrou no povoado, seu motorista me levou direto ao
encontro de Gorbachov (apelido do sujeito também chamado de gringo, por conta
justamente de suas características físicas distintas do padrão andino e amazônico).
Encontrei-o em frente ao galpão que abrigava a principal “planta de beneficiamento
úmido” da Cooperativa La Florida, uma infra-estrutura da qual era o responsável. Esse
equipamento e outro de menor tamanho aparecem descritos da seguinte maneira na
página eletrônica da cooperativa:
Planta de Beneficio en Húmedo “LA FLORIDA”, ubicado en el Centro Poblado La Florida, distrito Perené en la provincia Chanchamayo , Región Junín. Su construcción obedece a la necesidad de lograr la concentración del café desde las distintas fincas para su proceso homogéneo y mantener la calidad de nuestro café. Esta Planta centralizada actualmente beneficia a las siguientes comités de Desarrollo Integral: La Florida, Alto la Florida, Chincarmas, Miguel Grau, José Olaya, las Palmas, José Galvez, Alto Incariado, Buenos Aires, Alto Yurinaki, Los Zorzales y Sancachari. Planta de beneficio en húmedo Eneñas, Ubicado en el Centro Poblado de San Miguel de Eneñas, distrito de Villa Rica provincia de Oxapampa Región Pasco. Esta planta está al servicio de los socios del comité de Desarrollo Integral Eneñas. (www.lafloridaperu.com)
Logo de cara fui informado de que o normal seria a diretoria da cooperativa
autorizar as visitas à “planta”, mas prosseguimos mesmo assim. Gorbachov então abriu
a porta de ferro do galpão e dei de frente com um ultramoderno sistema de
processamento de café que me deixou boquiaberto, por conta principalmente do que me
79
parecia um contraste evidente entre a modernidade desse sistema e a rusticidade do
povoado ao seu redor.
Foto 19 – O galpão Foto 20 – A planta no seu interior
La Florida é um “centro povoado” relativamente pequeno se comparado com os
outros que existem no distrito de Perene. Na época da minha visita, nele viviam em
torno de 200 pessoas; 60 eram sócios da cooperativa (segundo me disse um de seus
habitantes que trabalhou como técnico desta organização de produtores).77 Essa
presença avassaladora de associados da La Florida se refletia na inexistência de
qualquer “comerciante intermediário” de café no local, ao contrário do que podia ser
percebido nos demais pueblos do distrito. É verdade que, em alguns aspectos, não
diferia muito de outros centros povoados ao seu redor. Isso porque dispunha de
determinados estabelecimentos públicos e privados que podiam ser encontrados em
qualquer um desses aglomerados urbanos. Um exemplo era o colégio público de
primeiro e segundo grau onde estudavam aproximadamente 400 alunos. A maioria
destes estudantes residia nas propriedades rurais situadas nos “anexos” mais próximos e 77 Com base num relatório de 2006 do departamento técnico da cooperativa, é possível afirmar que o “comitê zonal” de La Florida tinha, nesse ano, 61 sócios: 49 “produtores orgânicos”, oito no “terceiro ano de conversão”, dois no segundo e outros dois no primeiro. Vale ressaltar que a cooperativa contava com 36 “comitês zonais (ou locais) de desenvolvimento”. A maioria dos agricultores era certificada com os seguintes selos “orgânicos”: Naturland (certificado com base em normas privadas e destinado ao mercado europeu), BioSuisse (também outorgado com base em normas privadas e dirigido ao mercado suíço), Ocia (privado e relacionado ao mercado norte-americano), Ocia/Jas (normas públicas e mercado japonês) e NOP/USDA (normas públicas e mercado norte-americano).
80
os quais geralmente contavam com escolas públicas de primeiro grau. Também era
possível encontrar em La Florida um posto de saúde que oferecia serviços de
enfermagem e obstetrícia para a população local (os casos mais graves tendiam a ser
encaminhados para o hospital localizado em La Merced). Existiam ainda algumas
pequenas lojas dentro das casas dos próprios moradores e que vendiam arroz, açúcar,
atum enlatado, pilhas e outros produtos básicos de uso doméstico.
Mas não era apenas a modernidade da planta de beneficiamento que se destacava
nesse povoado. Isso porque nele também se encontrava o chamado Centro Educativo
Ocupacional de Agricultura Sustentável (CEOAS).78 Tratava-se de uma complexo
educacional mantido pela Cooperativa La Florida e que oferecia os mais diversos tipos
de “capacitação” para seus sócios, técnicos e membros de alguma organização de
produtores ligada à Central Café Peru.79 Tanto o CEOAS quanto a planta de
beneficiamento foram construído e eram mantidos, em grande medida, através dos
recursos provenientes de um convênio de 10 anos firmado em 2000 com a organização
não-governamental belga chamada SOS Faim. Ambos igualmente reproduziam uma
mesma política comercial de sucesso que vinha pautando o gerenciamento da
cooperativa ao longo dos últimos anos.80 Eles eram como que uma representação local
78 Num artigo publicado na revista El Cafetalero de novembro de 2003 e intitulado CEOAS La Florida – Una alternativa de capacitación científica y tecnológica para caficultores, o “diretor” dessa instituição diz o seguinte: “Se ha propuesto como metas para este año la capacitación de un mínimo de 250 socios del Programa de Café Orgánico y 100 socios en transición del mismo programa; así como la enseñanza a 20 extensionistas, 18 alumnos del CEOAS y 40 alumnos como promotores agropecuarios.” 79 A Cooperativa La Florida é o mais influente membro da Central de Organizações Produtoras de Café e Cacau do Peru – “Café Peru”. Dela fazem parte mais quatro cooperativas de cafeicultores da selva central e cinco de outras regiões do país. A La Florida também é o “acionista majoritário” e principal incentivador da Corporação de Produtores “Café Peru S.A.C.” Desta última entidade também são acionistas outras três cooperativas de cafeicultores da selva central e duas de regiões mais ao sul do país. Outras dez organizações de produtores de café da selva central fazem parte do chamado “consórcio cooperativo” da corporação. Esta atua na área de comercialização de café e a “Central Café Peru” se dedica basicamente à capacitação dos sócios e funcionários das organizações filiadas a ela. (Informações extraídas, em meados de 2008, das páginas eletrônicas da Corporação Café Peru e da Central Café Peru) 80 Cesar Rivas ocupa o cargo de gerente da Cooperativa La Florida desde 1997. Entre 1987 e 1990, Felix Marin ocupou esse cargo e passou a “assessorá-la” desde esse último ano até 1999. Numa conversa, ele me disse que o CEOAS foi criado por Cesar, em 1997, para servir como uma “escola de empresários cafeicultores”. Contudo, “dada às exigências das agências certificadoras, acabou se concentrando na
81
da “competitividade” da La Florida enquanto um dos traços distintivos de sua
“vanguarda” dentro dos mercados.
Foto 21 – O CEOAS
Gorbachov gentilmente me explicou, etapa por etapa, como funcionava o
chamado beneficiamento úmido realizado através da infra-estrutura da qual era o
responsável. No momento da minha visita, as máquinas ainda não estavam funcionando;
sua limpeza e manutenção eram assim as principais atividades conduzidas por este meu
cicerone e outros dois funcionários da cooperativa sob sua supervisão. “Aqui tudo é de
aço inoxidável, para que não aja contaminação”, afirmou ele. Estas instalações nada
mais eram do que uma versão ampliada do maquinário presente nas chacras dos
produtores de café. Isso porque o que estava em jogo, em ambos os casos, era a
obtenção do chamado café pergaminho. Já a retirada desta película que envolve o grão,
formação de técnicos para a cooperativa”, afirmou para em seguida ressaltar a respeito do atual gerente: “Cesar quem motivou essa mudança de enfoque dos CEOAS”. De acordo com o que Cesar comentou comigo: “através do CEOAS buscamos abrir os olhos dos jovens, para que o desenvolvimento da chacra seja mais eficiente e para que eles desenvolvam outros negócios”. Ainda segundo ele, “os melhores alunos são escolhidos para trabalhar na cooperativa, outros ainda chegam a trabalhar em outras organizações de cafeicultores da região”.
82
para poder ser exportado, se realizava somente na “planta de beneficiamento seco” que
a cooperativa mantinha próximo ao porto de Callao.
Num morro acima do galpão, onde se encontrava o maquinário, havia um
enorme recipiente de concreto, no qual os produtores deveriam depositar o “café em
cereja” recém colhido. No mesmo local iria funcionar um escritório – até então
inacabado – onde os sócios registrariam a entrega do produto. Do recipiente onde o café
ia ser depositado, este seria prontamente canalizado para o processamento de acordo
com sua certificação. Um tanque cheio de água, também ao lado do recipiente,
abasteceria a planta. Os cafés desceriam por tubos, de acordo com a certificação, e
aqueles considerados ruins sairiam, com o fluxo de água, antes da entrada da maquina
que retiraria a polpa que envolveria os grãos não rechaçados. Já essa polpa seria
transportada sem água, numa esteira rolante (a casca da cereja do café deveria ser
eliminada com água por outro lugar). A máquina (de fabricação colombiana) que
retiraria a polpa podia trabalhar com até 10.000 quilos de café em cereja por hora, e
mais duas máquinas similares a esta podiam ser adicionadas à planta, cuja capacidade
era de 50.000 quintais por safra.81
Acontece que a excepcionalidade dessa infra-estrutura sob responsabilidade de
Gorbachov também se relacionava com sua própria narrativa a respeito da cooperativa.
Pude acessar essa história enquanto descíamos o morro em cima do galpão onde se
encontrava guardado a sete chaves o valioso maquinário da La Florida. O pai deste meu
interlocutor era um dos chamados fundadores da cooperativa, mas que no momento de
81 A safra de 2006 marcou o início da utilização da planta de beneficiamento situada no povoado de La Florida. Na “assembléia extraordinária” da cooperativa realizada em outubro desse ano, seu gerente pôde expor para os sócios sua visão da importância desse equipamento. De acordo com suas próprias palavras: “Os cafés que entregamos na planta estão relacionados com as estratégias de marketing da cooperativa. Estamos promovendo a qualidade do café, por isso estamos com preços melhores. Estamos correspondendo à demanda. A diferença (de preço) que vocês recebem tem a ver com isso. O cliente quer contêineres e não apenas alguns sacos de boa qualidade. A planta de beneficiamento nos dá segurança. Trata-se de uma realidade que o mundo nos impõe à força. Estou fazendo isso porque creio que é o melhor para o futuro, para nossos filhos e para sermos competitivos”.
83
nossa conversa vivia em Lima com as irmãs de Gorbachov, que se dizia o único
membro da família que ainda se interessava pelo campo. A narrativa contada por
Gorbachov retratou uma história vivenciada por muito daqueles associados à La
Florida.82 Tal história me viria a ser contada por essas pessoas como uma verdadeira
saga e é sob esta e outras sagas próprias dos seus participantes que este capítulo se
debruça. Evidentemente que Gorbachov tinha consciência de que seu relato histórico
também se colocava como algo que despertava a atenção daqueles que visitavam a
cooperativa.83 Como dito anteriormente, minha incursão entre os cafeicultores que
vivem no território onde a La Florida opera também fora mediada pela visão que estes
tinham do reconhecimento externo dessa entidade. Eu era mais um gringo interessado
em conhecer a vida dessas pessoas.
82 Ele me informou que a área onde está o povoado se encontrava antes dentro dos limites do terreno da Peruvian Corporation, uma empresa britânica que, segundo Gorbachov, fora contratada pelo governo peruano para construir uma ferrovia entre a cidade andina de La Oroya e a de Pampa Whaley na selva central. Nesta última cidade, ainda se poderia ver os restos da planta de beneficiamento montada por estes ingleses há muito tempo atrás, mas que, de acordo com meu interlocutor, seria a única, em todo Peru, similar em tamanho àquela que acabamos de visitar. Continuando a história da companhia inglesa, ele disse que apesar desta cumprir grande parte do contrato com o governo peruano, tanto na parte da construção da ferrovia quanto numa outra referente à alocação de colonos europeus na região, esta empresa não conseguiu exercer inteiramente com o prometido. A pena então estipulada era de que a companhia deveria entregar ao governo um quarto de suas terras. O pai de Gorbachov vivia numa região mais acima junto de outros “colonos serranos”; estes descem e, aproveitando o litígio em cima das terras da empresa, fundam o povoado de La Florida. O início do cultivo de café foi impulsionado pela qualidade das novas terras, mas estes colonos se sentiam explorados pelos intermediários e isso, segundo Gorbachov, fez com que o ideal do cooperativismo fosse colocado em prática. Ele ressaltou o fato de que antes da “subversão” (palavra comumente usada pelos peruanos, ao lado de “terrorismo”, para se referir às ações dos movimentos de extrema-esquerda Sendero Luminoso e Tupac Amaru) que se inicia com força no final dos anos 80, o povoado de La Florida havia atingido um nível alto de prosperidade que fez com que recebesse até uma agência do Banco Agrário (estatal). Mas os membros do Sendero Luminoso teriam não só acabado com a infra-estrutura da cooperativa como assassinaram diversos de seus sócios. “Em um dia mataram cinco pessoas, inclusive uma freira”, me disse. Em decorrência, segundo ele, da fuga dos produtores para as grandes cidades, a cooperativa acabou ficando com uma dívida muito grande em suas mãos. O banco credor a ameaçou então com o embargo e confisco de seu patrimônio. “Os anos de 1991, 1992 e 1993 são os piores para a cooperativa”, lamentou Gorbachov. Um suíço que morou no povoado de La Florida se colocou como intermediário de uma ajuda financeira que a cooperativa obteve para saldar sua dívida. Esse dinheiro veio de uma “associação suíço-peruana”, segundo meu interlocutor. Ele afirmou que foi quando o atual gerente da cooperativa iniciou sua gestão, em 1997, que “as coisas começaram a mudar (para melhor)”. Falou também da ajuda que a cooperativa recebe da organização-não governamental SOS Faim e do fato de César (o atual gerente) ter conscientizado os sócios para que entregassem seus cafés à cooperativa, já que desde 1990 muitos deles vinham entregando os grãos para os comerciantes intermediários locais. 83 Uma versão dessa história aparece na página eletrônica da organização não-governamental SOS Faim.
84
O período em que se deu minha pesquisa de campo esteve principalmente
marcado pela visão dos produtores de que havia um descompasso entre o
reconhecimento comercial alcançado pela cooperativa e a pouca produtividade de seus
cafezais.84 Muitos me diziam que a La Florida estava “mais ou menos”. Em outras
palavras, o que queriam dizer é que estavam bem comercialmente e mal
produtivamente. Pelas notícias que recebi deles, acredito que esse momento terminou
com os US$ 4.9 milhões que conseguiram obter, em 2008, através de um concurso
público, e que deveria justamente ser usado na renovação de suas plantações. Tal
investimento lhes permitiria aproveitar melhor os bons preços obtidos com as vendas de
seus cafés. De qualquer maneira, existem certos eventos marcantes na vida dessas
pessoas que acabam servindo de divisores de água em diversos relatos históricos. Mas
antes de apresentar nesse capítulo uma narrativa com base nesses relatos, é importante
continuar descrevendo minha experiência no território onde vivem esses agricultores.
Isso porque essa experiência refletia também uma inserção num ambiente social ao
redor da Cooperativa La Florida no qual vigoravam diversas representações coletivas a
respeito da modernidade que não apenas o desenvolvimento ou progresso atingido pela
cooperativa dentro ou fora dos mercados.
84 É verdade que outras críticas à cooperativa eram também feitas pelos seus associados e pessoas que viviam ao redor desses sujeitos. Estas críticas tratavam, por exemplo, da ausência dos chamados reintegros ao longo dos últimos anos, dos “descontos” aplicados aos produtores e dos juros referentes aos empréstimos que tomavam dela. No final de 2006, voltariam a ter os reintegros (o dinheiro que podem receber, no término de cada ano, dependendo do balanço final das vendas da cooperativa); já os descontos (derivados das penalidades aplicadas aos sócios ou destinados à melhoria da infra-estrutura da organização e das estradas, por exemplo) variavam de caso a caso e eram facilmente justificados pelos funcionários da La Florida. O mesmo se dava diante dos juros, na medida em que eram os mais baixos em relação a qualquer instituição financeira ao alcance dos agricultores da região. Uma situação aparentemente similar à que encontrei junto à Cooperativa La Florida também foi observada por Peter Luetchford (2008) na Costa Rica. Ele conduziu seu trabalho de campo entre os membros de uma comercialmente bem sucedida cooperativa que igualmente reclamavam do descompasso entre esse sucesso comercial e suas difíceis condições de vida. De acordo com este autor: “The cooperative, it seems, is caught between the requirements of business success and social and moral responsibility.” (idem p.140) O ponto é que tanto o gerente da La Florida quanto seus associados reconheciam que a vanguarda dessa organização também deveria residir na melhoria das condições de vida de seus membros. Nesse sentido, uma própria noção de modernidade se confundia com outra de moralidade, algo não visualizado por Luetchford.
85
2.4 Entre os moradores do povoado
Meu retorno ao povoado se deu no dia 17 de outubro do ano seguinte (2006).
Nessa ocasião, estava acompanhado do irmão mais novo de um dos funcionários da
Central Café Peru. Essa instituição de “segundo grau” é não apenas encabeçada pela
Cooperativa La Florida como também tem como seus principais empregados filhos de
sócios desta última entidade. Um destes funcionários havia organizado minha estadia
entre os associados da cooperativa e me colocado em contato com um jovem chamado
Alejandro para que pudesse me deslocar entre esses agricultores. Minha familiaridade
prévia com os filhos de alguns desses cafeicultores permitiu então que adentrasse com
maior profundidade naquilo que pode ser definido como uma comunidade em torno da
La Florida.
Alejandro tinha 19 anos nessa época em que o conheci. Ele trabalhava como
motorista no trajeto entre La Florida e La Merced. Normalmente, Alejandro saia todos
os dias às seis da manhã de La Florida e chegava a La Merced por volta das nove. À
uma da tarde deixava essa cidade para chegar ao povoado em torno das três. Contudo,
era capaz de retornar até La Merced caso houvesse um número suficiente de passageiros
ou quando alguém estivesse disposto a pagar 50 soles pela viagem. Dizia ganhar 140
soles em média por dia que, descontados os 80 soles que gastava diariamente com
gasolina, lhe proporcionavam um lucro de 60 soles (aproximadamente US$ 20).
Tratava-se de um valor bastante elevado se comparado, por exemplo, com a diária de 10
soles que era comumente paga aos que eram contratados (informalmente) para trabalhar
nos cafezais ou em qualquer outro cultivo realizado na selva central durante esse
período. Esta era a categoria profissional menos remunerada da região e abrangia não só
86
os habitantes locais desprovidos de propriedades agrícolas como também trabalhadores
sazonais e agricultores com pouca extensão de terra.85
Cada passageiro pagava seis soles por um assento num dos cinco automóveis
(todos da marca japonesa Toyota) que faziam o caminho entre La Florida e La
Merced.86 O padrão era o veículo transportar seis pessoas; duas no banco ao lado do
motorista e quatro no banco de trás. Obviamente que isso era ilegal. Porém, outra
prática também comum, entre os motoristas que cruzavam a rodovia asfaltada da selva
central com seis ou mais passageiros no interior de seus veículos, era dar um sol em
dinheiro para os policiais que supostamente deveriam fiscalizar quem passava pela
estrada. Como me disse um desses motoristas, “os policiais rodoviários são que nem os
inkas: adoram um sol”.
Na verdade, Alejandro vinha trabalhando como motorista há apenas uma
semana; mas mesmo assim dizia já se sentir cansado e entediado com o trabalho. Diante
disso, pretendia voltar para Lima nos próximos dias. Disse que iria morar com seu
irmão mais velho e se inscrever num curso pré-vestibular (algo que realmente acabou
fazendo). Sua mãe, que desde há muito tempo vivia nos EUA, havia enviado US$ 7.000
para que, junto de seus outros dois irmãos, comprasse o automóvel com o qual vinha
trabalhando. O restante do dinheiro necessário para a compra do veículo fora retirado do
85 Com relação ao distrito de Perene: “La mayoría de los agricultores de la zona, sean éstos colonos o nativos, poseen tierras. En relación con su manejo, y de acuerdo con el promedio de tenencia en la región (de ocho a diez hectáreas por familia, el 50% de las tierras agrícolas (entre tres y cuatro hectáreas) se encuentra, generalmente, en producción; y el otro 50% en descanso, en su mayor parte, y sin uso agrícola, en una menor cantidad (dos hectáreas en promedia). El principal cultivo es el café, que cubre prácticamente el 90% de las tierras agrícolas. Es seguido por el plátano, un cultivo complementario, y en menor escala por los cítricos, piñas y paltos. La mayor parte de la producción se destina a la comercialización y un porcentaje menor se deja para el autoconsumo.” (Desco, 2005b p. 350-351) 86 Alejandro comentou brevemente comigo a respeito dos outros motoristas que faziam esse trajeto. Todos eram filhos de cafeicultores. Um destes, por exemplo, ganhou o automóvel de seu pai (que comprou o veículo por US$ 11.000) e lhe dava 20 soles por dia. Era casado, tinha treze irmãos, dois filhos e “não seguiu adiante com seus estudos”. Seu pai pretendia lhe dar cinco hectares onde iria cultivar café e, com o dinheiro do cultivo, compraria outro automóvel, dado que não queria trabalhar na chacra. O avô de Alejandro empregou seu pai quando este era jovem e trabalhava como “peão” nos cafezais. “Antes se trabalhava cinco anos e o patrão dava um pedaço de terra”, me disse Alejandro que também ressaltou o fato de seu avô ter sido peão.
87
“capital social” da Cooperativa La Florida, onde seu pai tinha investido certa quantia,
antes de ser assassinado pelos guerrilheiros do Partido Comunista do Peru - Sendero
Luminoso (PCP-SL). Essa trágica história era lembrada em muitas das narrativas que
me foram contadas pelos produtores da região e aparece descrita da seguinte maneira no
relatório final da Comissão de Verdade e Reconciliação:
El 27/09/1990, aproximadamente 40 miembros del PCP-SL ingresaron al anexo [sic] La Florida, distrito de Perené, e incendiaron las instalaciones y maquinaria de la Cooperativa Cafetalera La Florida, además de dinamitar la posta médica de la localidad. Después los subversivos capturaron a Juan Pérez, Efigenia Marín, Luis Pérez, Pedro Pizarro Mucha y dos pobladores más, quienes fueron conducidos a una esquina donde los amordazaron y les dispararon. Algunos subversivos que se quedaron en el pueblo mataron dos días después a Herbert Pérez Marín. Su hijo de cuatro años fue secuestrado por los terroristas, quienes lo encargaron a un anciano que vivía en el monte. Un año después el menor fue encontrado por el Ejército Peruano. (www.cverdad.org.pe)
Após esse fatídico incidente, Alejandro e seus dois irmãos passaram a morar
com a mãe de seu pai.87 Conversei com essa sua avó logo que chegamos ao povoado de
La Florida (onde ela vivia em sua própria casa). Seu falecido marido e o igualmente
falecido filho mais velho de ambos eram considerados uns dos “fundadores” tanto do
pueblo (no começo da década de 1960) quanto da cooperativa (em meados dessa
década). Ao nosso lado, durante a conversa, estava uma filha sua e um sujeito que
Alejandro depois me diria se tratar de um obrero (uma maneira talvez mais sutil de se
chamar os “peões” que trabalham nos cafezais). Reproduzo mais à frente parte da
história que me foi contada por essa senhora. Trata-se da narrativa de uma pessoa
envolvida nos primórdios do que pode ser definido como uma comunidade que
organizou a colonização maciça da região ao redor de La Florida e criou a cooperativa
que recebeu esse nome. Mas esse seu relato também fala da experiência de ascensão que
ela e seus familiares experimentaram da condição de obreros para a de cafeicultores.
87 Eles herdaram de seu pai uma chacra próxima ao povoado. Contudo, não se dedicavam à produção de café nesta propriedade.
88
Através dele é possível perceber que estamos diante de uma comunidade organizada do
ponto de vista de um grupo de indivíduos que “progrediram na vida” por meio do
cultivo de café. O destino de seus filhos e netos (dentro ou fora da cafeicultura) era
então avaliado como parte desse “progresso”.
A questão é que esse processo geracional de ascensão, realizado no interior das
famílias cafeicultoras reunidas através da Cooperativa La Florida, se colocava como
uma narrativa vigente entre elas tanto quanto os relatos sobre o desenvolvimento
alcançado pela cooperativa. Essa dualidade, existente na experiência temporal desses
indivíduos, permearia o discurso de outro morador do povoado de La Florida que
Alejandro me apresentou; um tio seu casado com a filha de sua avó que esteve presente
na minha conversa com essa senhora.88 Assim como sua sogra, este senhor (chamado
Jaime) era bastante reconhecido no âmbito da cooperativa e também adveio da mesma
região andina (província de Celendín) que ela para trabalhar na colheita de café na selva
central (a senhora chegou em 1955, na companhia de seu marido e de seus filhos; ele
veio sozinho em 1965). É verdade que, ao contrário da avó de Alejandro, não foi um
dos “fundadores” do povoado, mas alguém que comprou um pedaço de terra de um
desses sujeitos depois de ter trabalhado por mais de dez anos como obrero. Jaime usava
um boné da Central Café Peru enquanto dialogávamos na loja que mantinha com sua
88 “Todos sentimos carinho pela Cooperativa La Florida, vestimos a sua camisa, nosso objetivo era de que nossa empresa fosse dirigida por nossos filhos; quem tem mais educação entra”, apontou esse senhor ressaltando que “os que tiveram oportunidade mandaram seus filhos para estudar numa universidade ou faculdade em Lima; outros não puderam educar seus filhos para além da primária (primeiro grau)”. “Aqui há medianos e pequenos produtores, antes eram todos iguais, mas uns venderam suas terras e outros seus filhos cresceram e tiveram que dividi-las com eles”, comentou. Ele também falou da ênfase de Cesar (o gerente da cooperativa) na produção de cafés certificados como orgânicos e disse que primeiro se concentram na obtenção de uma infra-estrutura para que a La Florida pudesse competir no mercado e que “agora vamos solucionar o problema dos sócios”. “Cesar é muito inteligente, com ele fomos recuperando a confiança”, assinalou completando que os “cafés de nicho” demandam uma infra-estrutura que garanta a qualidade dos grãos. Lembrou que a “planta de beneficiamento úmido” construída no povoado, através de um empréstimo, acabou se transformando numa doação. Jaime igualmente enfatizou que a cooperativa estava buscando mais fontes de financiamento para seus associados e que não seria apenas para o crédito de “pré-colheita” (usado basicamente no pagamento dos obreros).
89
esposa junto da casa onde viviam.89 O nosso encontro posterior seria num jantar nessa
sua residência e nele estaria presente sua mulher, sua filha, o marido desta e o irmão de
Alejandro que trabalhava na central. Das quatro filhas deste senhor, as duas mais velhas
residiam em Lima e as mais novas em La Merced. Estas últimas eram proprietárias de
um estabelecimento de acesso a internet nessa cidade onde moravam; uma delas era
justamente a que estava no jantar acompanhada de seu esposo e o qual era o gerente da
Crediflorida (a agência de crédito da Cooperativa La Florida).90
Este último comentou, durante o jantar, sobre o que entendia como sendo a
existência de certos “grupos de poder” dentro da cooperativa e que tendiam a informar
mal os sócios. Ele mesmo havia se desentendido com alguns associados. Mais
especificamente, entrou em conflito com um senhor com o qual coincidentemente pude
conversar no veículo que me trouxe ao povoado.91 Sobre este sujeito, disse: “ele se
89 Eles também tinham uma residência na cidade de San Ramón (vizinha a La Merced) onde se instalaram durante o auge do fenômeno do “terrorismo” na região. Sobre esse período delicado na história desses agricultores, Jaime lembrou que inicialmente “os terroristas falavam coisas bonitas, que iam trazer professores de Lima para cá e levar os daqui para Lima”. Afirmou também que “havia jovens que iam junto com eles (os guerrilheiros)”. “Os subversivos controlavam nossas saídas e chegadas de La Florida”, destacou. A situação passou a se complicar com o passar do tempo: “éramos maltratados pela subversão e pelo exército”. O povoado ficou então abandonado diante da crescente violência e intimidação: “em La Florida só ficaram três pessoas”. “Um dia mataram sete pessoas aqui”, assinalou como que justificando o porquê do abandono generalizado do pueblo. 90 A Crediflorida originou-se de um departamento de crédito, dentro da cooperativa, que fornecia os recursos para os produtores usarem na manutenção de seus cafezais. Um de seus funcionários me disse que esse departamento acabou se estruturando como uma cooperativa de ahorro y crédito, tendo em vista a obtenção de recursos de fontes estrangeiras (até então a cooperativa só conseguia financiar um quarto de seus associados). Os recursos teriam vindo de uma organização não governamental de “crédito solidário” e da SOS Faim. A primeira emprestou US$ 150.000 (com juros entre 9% e 12% ao ano) e a segunda US$ 200.000 (com juros entre 8% e 9%). Os sócios pagavam uma taxa de 17% ao ano de juros e os que não eram sócios (como era o caso dos produtores das outras cooperativas que faziam parte da Corporação Café Peru) pagavam entre 19% a 22%. Os empréstimos iam de US$ 5.000 até US$ 10.000. Dos 600 sócios que utilizaram os recursos da Credifloria, apenas quatro ou cinco não quitaram suas obrigações. “Esses quatro ou cinco estão com seus bens hipotecados e a cooperativa vai liquidar esses bens”, afirmou o funcionário e o qual completou falando a respeito das condições para os empréstimos com juros mais baixos: ser “sócio ativo”, ter título de propriedade e “não estar endividado na praça”. 91 Logo de cara, este senhor me perguntou se eu “estava com a cooperativa” e lhe respondi que não (diversas pessoas de fora do país eram convidadas para visitar as instalações dessa organização; ele obviamente me associou inicialmente a esses indivíduos). Disse que era natural do departamento andino de Andahuaylas e que chegou à selva em 1960. Trabalhou como obrero por 15 anos e, em 1975, comprou 18 hectares de “monte real” (virgem), num dos anexos situados ao redor do povoado de La Florida. Afirmou que a Cooperativa La Florida estava “mais ou menos”. Reclamou dos juros pagos pelos sócios à cooperativa e que “agora não somos nada para eles; o empregado é o dono da empresa”. “Antes a cooperativa tinha mais máquinas para a estrada, investia no colégio e no posto de saúde; agora só pensa
90
pensa como o dono da cooperativa”. Jaime concordou e afirmou que estava tentado
mudar a visão excessivamente crítica desse sócio. O gerente da Crediflorida dividiu os
associados entre aqueles mais antigos e identificados com a cooperativa e os mais novos
que não se comportariam desse modo. De qualquer maneira, ainda de acordo com seu
ponto de vista, “os mais antigos não estão capacitando os sócios novos dentro do
cooperativismo”.
Terminado o jantar, seguimos todos até a festa de formatura dos alunos do
colégio de primeiro e segundo grau que ficava em La Florida.92 Um destes alunos era o
irmão de Alejandro que vivia no povoado. Na verdade, eu estava hospedado na casa que
seu pai lhes deixou e na qual este irmão de Alejandro residia tendo em vista a conclusão
de seus estudos secundários no colégio local. Ele havia comentado comigo que não
costumava falar muito com as pessoas do pueblo: “foram eles que denunciaram meu pai
para os terroristas”, me explicou. Afirmou também que, por conta da “inveja das
pessoas do povoado”, estes teriam dito para os “terroristas” que seu avô era explorador
e ambicioso. Este irmão de Alejandro era um sujeito que parecia querer acentuar em si
em dinheiro”, ressaltou reclamando também do administrador da organização: “ele nos olha mal”. “As instalações da cooperativa estão bonitas, bem pintadas, mas as chacras estão ruins, produzem pouco”, comentou assinalando que o empréstimo de US$ 600 que os sócios vinham recendo (em três parcelas), para renovar seus cafezais, não seria suficiente. “O administrador e o gerente andam com os certificadores e não mostram para eles como estão mal os sócios”, concluiu seu raciocínio. Ele permaneceu na sua chacra durante a “época do terrorismo”, quando então vendia seus cafés para os comerciantes de La Merced. Entendia que a cooperativa “sobreviveu” (ao contrário de outras organizações de cafeicultores) pelo fato de “serem zonais”: “foram os maus manejos que quebraram as cooperativas, mas não havia corrupção na La Florida porque conhecíamos os nossos vizinhos que retiravam os empréstimos”. “Nas cooperativas que não eram zonais os sócios retiravam os empréstimos e nunca mais apareciam”, acrescentou ele para quem a existência da La Florida também se devia muito “ao engenheiro Felix Marin”. Aproveitou também para criticar o atual gerente: “se o gerente fosse bom, teria capacitado outro para substituí-lo; ele quer ser o dono (da cooperativa)”. 92 A festa aconteceu numa espécie de galpão. Os pais e seus filhos se mostraram bastante acanhados durante o início do evento. O consumo de álcool passou então a ser generalizado após a entrega dos certificados de formatura. Já ébrios todos se soltaram e começaram a dançar. O irmão mais velho de Alejandro me recriminou bastante enquanto eu dançava. Isso porque, ao não ter bebido, eu estaria me comportando de maneira estranha aos olhos das pessoas presentes. Insisti mesmo assim em não beber, pois não estava bem do estômago. Seu irmão do meio (o qual justamente estava se formado), por seu lado, não só consumiu bebida alcoólica em demasia como fumou muitos cigarros ao longo da noite. Seus colegas também fizeram o mesmo. Todos se comportavam como se estivessem numa danceteria de uma cidade qualquer do país. É verdade que, para alguém acostumado com a principal discoteca de La Merced ou mesmo com algum igualmente sofisticado estabelecimento do gênero localizado em Lima, por exemplo, a festa de formatura parecia uma imitação bastante precária desses ambientes.
91
os trejeitos típicos de um jovem de classe média da capital do país e isso igualmente
transparecia nas suas roupas. Alguns dias depois da festa de formatura, ele estaria
morando com seus irmãos em Lima (não era à toa que o sobrado que mantinham em La
Florida tinha um aspecto bastante provisório).
Acontece que alguns filhos de sócios (incluindo estes últimos) residiam ou
vieram a residir num mesmo apartamento localizado na capital do país (a maioria havia
cursado o terceiro grau e exercia uma profissão relativamente estável e bem
remunerada; o restante freqüentava um curso pré-vestibular) e esse grupo bastante coeso
de jovens compartilhava certos referenciais com outros filhos de sócios que, do mesmo
modo, haviam progredido ou se encontravam ascendendo no sistema educacional e
almejavam ou tinham um emprego mais estável e remunerado do que a cafeicultura.
Na verdade, por uma dessas coincidências que a vida nos coloca, a casa onde
costumava me hospedar em Lima ficava na mesma rua deste apartamento. Tratava-se de
um moderno e recém construído imóvel que eles alugaram em Pueblo Libre (um típico
bairro de classe média da capital do país). Nessa cidade, costumávamos nos divertir
como um grupo qualquer de jovens de classe média; o mesmo se dava em relação às
nossas viagens de fim de semana para um balneário local, onde estes meus amigos e
seus colegas de trabalho e de estudo, todos de ascendência notadamente andina,
sonhavam em ter uma casa de veraneio perto da praia. Mas é importante assinalar que
não cheguei a freqüentar com eles certos espaços de lazer, ocupados principalmente
pela classe média branca do país, e aos quais costuma ir acompanhado de meus colegas
europeus e dos donos da casa onde morávamos em Lima. 93
Mas é preciso ter em mente que uma minoria de produtores filiados à
cooperativa pôde acumular recursos suficientes para manter seus filhos vivendo uma
93 De qualquer maneira, a ascendência andina dos donos desta casa parecia ser uma barreira para interagirem, de igual para igual, com os freqüentadores desses locais de “classe média branca”, ao contrário do que se passava comigo e com os seus outros hospedes.
92
típica vida de classe média urbana. Isso aconteceu, basicamente, entre os que foram
capazes de oferecer as condições materiais para que os jovens pudessem cursar o ensino
superior. Tais filhos de sócios acabaram geralmente se identificando com outro meio
social que não o que existia entre seus pais; essa identificação permitia que os membros
dessa geração mais nova se reconhecessem com base num referencial em comum.
Tratava-se de um reconhecimento mútuo para além da comunidade organizada ao redor
da cooperativa, apesar de ter se originado dela. Vale ressaltar que estou falando de um
grupo minoritário e destacado de filhos dos sócios da La Florida. Pude me inserir
facilmente dentro desse grupo por conta justamente do fato de compartilharmos as
disposições típicas de uma classe média urbana.
Outro sujeito ao qual fui apresentado no povoado de La Florida foi um dos filhos
da avó de Alejandro. Ele ocupava o cargo de presidente da Central Café Peru e o irmão
mais velho de Alejandro era seu secretário.94 Também ocupava um dos cargos de
regidor do distrito de Perene (de acordo com a página eletrônica da prefeitura de
Perene, os oito regidores eleitos são, ao lado do prefeito, as “autoridades” do distrito e
trabalham nas igualmente oito “comissões” existentes, como a de infra-estrutura, a de
transporte e a de comércio, por exemplo).95 Era o sócio número 258 da cooperativa e foi
94 Até o começo de 2010, este irmão de Alejandro continuaria trabalhando na Central Café Peru, principalmente com as questões relativas ao melhoramento da qualidade dos cafés entregues pelos produtores. Mas já em 2006 havia terminado a gestão de seu tio na presidência da central. Conversando com o sujeito que lhe sucedeu no cargo, este me confessou sua visão de que havia uma disparidade muito grande de poder nas organizações de produtores. Tal disparidade se daria entre as pessoas que trabalhavam nas suas burocracias e a grande maioria de agricultores incapaz de influir substancialmente na condução dessas organizações. Ele era membro de uma cooperativa do norte do país e parecia se sentir bastante acuado diante dos funcionários. Vale ressaltar que o gerente da central e o responsável pelos projetos realizados por esta entidade eram filhos de um conhecido sócio da La Florida. O mesmo se passava com outro funcionário e sua irmã que também veio a trabalhar (com o tema de “desenvolvimento de mercados”) nela um tempo depois dele ter saído e ido trabalhar numa empresa privada exportadora de café. Em suma, os seus funcionários eram basicamente filhos de sócios da La Florida e viviam juntos – com a exceção do gerente, que era casado – num mesmo apartamento em Lima. 95 Segundo ele me informaria, durante uma carona que me ofereceu até La Merced (na sua moderna picape da marca Nissan), o orçamento do distrito de Perene (em 2006) era de 3.600.000 soles. Além disso, o distrito tinha à disposição 6.000.000 de soles para serem usados na construção de obras de infra-estrutura. Esse dinheiro adveio da União Européia e do Banco Mundial através de convênios do governo nacional junto a esses organismos.
93
o número um da Credifloria até que, “por reclamar demais”, passou a ser o número seis
(dos produtores que viviam no povoado, era um dos que tinha maior extensão de terra
em sua chacra). Segundo me disse, seu irmão fora assassinado pelos “terroristas” porque
“era rico” e não queria pagar as “contribuições” (cupos) exigidas por estes sujeitos.
A distinção de sua família em La Florida parece ser um fenômeno de longo
prazo que remontava ao estabelecimento pioneiro de seus pais na região ao lado de
outros “fundadores”. 96 Ele próprio teve que deixar o povoado, em dezembro de 1988,
diante de um ataque que os guerrilheiros fizeram à sua família, dado que era o tenente-
governador do pueblo e havia anteriormente “castigado” os “delinqüentes” locais que
justamente vieram a se juntar ao Sendero Luminoso.97 Reencontraria com ele na festa
que se seguiu a uma assembléia da cooperativa realizada no final do ano, na qual era um
dos sócios mais descontraídos e brincalhões. Na ocasião, fez gentilmente questão de
relembrar, na minha presença, o passado da La Florida junto de outras pessoas que
vivenciaram essa história coletiva.
Pude entender melhor a posição social dele e de seus familiares ao caminhar
sozinho pelo povoado e me encontrar com um jovem produtor sem quaisquer vínculos
presentes com a Cooperativa La Florida. Ele tinha 30 anos e junto de seus irmãos e
outros jovens cafeicultores estava criando uma cooperativa local que tinha como
96 Pude conversar também com a esposa de seu filho. Ela era natural da cidade de Pichanaki (capital de um distrito vizinho) e tinha, junto com seu marido, uma chacra (outrora do pai dele) de cinco hectares (vizinha à chacra de Alejandro). Nessa sua chacra possuíam dois hectares de café (plantados há algum tempo), um hectare recém plantado e outro mais antigo que praticamente não produzia mais. Eles entregaram 38 sacos de café para a Cooperativa La Florida em 2006, através da planta de beneficiamento úmido localizada no povoado, e receberam 1,90 soles por quilo (o preço padrão para os que entregavam seus grãos através dessa planta). Seu marido trabalhava em La Merced como motorista da cooperativa. De acordo com ela, ele “não tem tempo para processar o café em pergaminho” e “é (com ele trabalhando) como motorista que temos dinheiro”.
97 “En los centros poblados existe el cargo de teniente gobernador y agente municipal. Ambos son elegidos por los pobladores. Mientras que la función del primero es mantener el orden y la tranquilidad de la población, el agente municipal tiene como una de sus funciones principales gestionar, ante el gobierno local y otras instituciones, proyectos o actividades relacionadas con el desarrollo del centro poblado al que representa.” (Desco, 2005b p. 357) No final do jantar do qual participei em sua casa, Jaime comentou sobre o “calabouço” que existia no povoado e onde os “delinqüentes” eram trancados. Ele contou que os próprios moradores iam buscar os infratores em suas casas. Também falou sobre a existência de jovens dentro do pueblo que estariam roubando galinhas e os quais, no seu entender, deveriam ser “castigados”.
94
propósito escoar seus cafés para compradores que valorizassem a qualidade desses
grãos.98 Isso porque eram produzidos em propriedades situadas numa zona de maior
altitude e a altura vinha sendo considerada internacionalmente uma variável crucial para
se determinar a qualidade do produto (“nossos cafés são de 80 pontos”, me disse ele se
valendo da classificação empregada pela Associação Norte-Americana de Cafés
Especiais). Acreditavam que assim poderiam conseguir melhores preços do que os
oferecidos pela La Florida aos seus associados. Estavam radicalizando um sentimento
de descontentamento com a cooperativa então existente entre grande parte dos
produtores da região. Essa posição extremamente radical condizia com o próprio
discurso desse meu interlocutor a respeito do que ele via como um uso desonesto dos
recursos da La Florida por parte de seus funcionários.
Seu pai (um migrante andino, como a maioria dos que se estabeleceram na selva
central) sempre trabalhou como obrero e nunca conseguiu comprar uma chacra, apenas
uma modesta casa no pueblo.99 Formavam uma das duas ou três famílias que
98 O líder desse grupo (de aproximadamente 20 pessoas, todos jovens e não associados à cooperativa) era seu irmão, o qual estudou no CEOAS: “estão buscando quem pague melhor”, acrescentou a respeito desses produtores. Estes agricultores estavam situados junto aos 24 sócios pertencentes ao “comitê” de Alto La Florida. Destes associados, 19 eram “orgânicos” (incluindo o próprio gerente da cooperativa), um estava no “terceiro ano de conversão”, outro no segundo e mais três no primeiro. Meu interlocutor disse que alguns destes sócios haviam se interessado em participar de uma nova organização de cafeicultores. Ele mesmo trabalhou como técnico agropecuário na cooperativa durante um ano. Largou esse emprego porque passou a acreditar que ganhava mais trabalhando na sua chacra, onde inclusive pode aplicar seus conhecimentos (por serem sete irmãos, não precisariam contratar personales para trabalhar na chacra). Assinalou que os jovens desconfiam da cooperativa, mas os mais velhos ainda se sentiam identificados com a entidade. “Antes a cooperativa era melhor, mas há quatro anos não existe reitegro, a cooperativa não faz aparecer para seus sócios o que ganha acima da Bolsa e se algum destes reclama é marginalizado”, salientou e ressaltou que o principal motivo do descontentamento dos sócios era justamente o não recebimento dos reintegros ao longo dos últimos anos. Ele suspeitava que parte dos descontos (como o frete do transporte e as taxas da aduana, por exemplo) era, na verdade, desonestamente apropriada “pelo pessoal da cooperativa”. “A cooperativa vende por 141 dólares (o quintal de café), nos paga 100 e rouba 41 para ela”, acusou e perguntou: “aonde então vai parar esses 41 dólares?”. “A cooperativa comprou por cinco soles (o quilo de café pergaminho), se houver reintegro dizem que vai ser de 5,50 soles”, comentou para em seguida apontar que a empresa Café Montanha (localizada na cidade de Pichanaki) adquiriu seu café por 6,50 soles o quilo. “Nós os chamávamos por telefone e eles vinham buscar o café”, disse e ponderou: “o engenheiro Antônio Sanchez (um sujeito que tinha um armazém em La Merced) estava comprando por sete soles, se soubéssemos antes, teríamos vendido para ele”. 99 Segundo me disse esse jovem (tendo ao colo um de seus três filhos pequenos): “entre os moradores do pueblo a diferença é que você é um peão de outro”. Ele afirmou isso depois de ressaltar que “foram os fundadores que trouxeram os peões” e que “a maioria (dos habitantes do povoado) só trata de sobreviver”.
95
permaneceram em La Florida durante o auge do fenômeno do “terrorismo” na região,
dado que “não tinham aonde ir” para escapar dessa trágica situação que custou a vida de
muitas pessoas que viviam dentro ou fora do povoado. Eram verdadeiros outsiders na
dinâmica das relações locais; se colocavam como “os outros” por excelência dos
discursos a respeito de uma identidade coletiva entre os cafeicultores.
Lembro que, certa vez, estava no escritório da Central Café Peru, em Lima, e
pude conversar sobre as diferenças entre os cafeicultores com o irmão mais velho de
Alejandro. Essa conversa se deu enquanto ele fazia cópias de recibos ligados às
“cooperativas bases” dessa central e que iriam fazer parte de um informe semestral que
deveria ser entregue para a organização não-governamental SOS Faim. Ele me disse que
as diferenças entre os produtores dependiam da família e da cultura de cada um; “uns
estão fechados na chacra”, completou e continuou: “eles guardam (dinheiro) para as
festas deles, as festas patronales, e nas quais há corta-arvores, olimpíadas locais,
parques de diversões e tudo isso se dá uma vez por ano.” Também afirmou que estes
economizam seus recursos econômicos para os carnavais e aniversários: “eles trabalham
duro para isso; nós vendemos os produtos nessas feiras”. Perguntei-lhe então quem seria
os “eles”, para o que me respondeu: “são os peões, gente do campo”. Esse irmão de
Alejandro igualmente ressaltou que as diferenças entre os agricultores eram econômicas
e no tamanho das terras. “Poucos têm capacidade para administrar o dinheiro”,
assinalou enfatizando: “a maioria é (também) peão e trabalha para nós”.
Conscientemente ou não ele estava dividindo aqueles que supostamente seriam
produtores e obreros dos demais cafeicultores que não precisariam trabalhar em chacras
alheias. Num ambiente social que valoriza a ascensão de um “peão” à condição de
agricultor, é evidente que os que não completaram esse processo tendem a ser menos
valorizados e, conseqüentemente, capazes de serem associados apenas à categoria mais
96
subalterna. Mas é preciso ter em mente que um obrero é geralmente alguém que é de
fora, ou seja, o outro por excelência dentro de um espaço cafeicultor.
De acordo com o irmão mais velho de Alejandro, “o peão esta todo o tempo
trabalhando na chacra e incute isso nos seus filhos; o patrão e seus filhos podem
estudar”. Ele também falou de uma “simbiose” entre educação e economia: “se você dá
dinheiro para um agricultor sem educação, esse dinheiro vai ser mal gasto; se há
dinheiro mal gasto, então também é um problema de educação”. “Para sair da pobreza o
agricultor tem que ter um enfoque empresarial, de investimento, mas eles vivem o
momento”, disse. “Se construo uma piscina na minha casa em La Florida, eles vão ter
inveja disso”, assinalou ele que igualmente lembrou o fato de seus pais e avós terem
sido comerciantes. “Os pais de todos aqui foram ou são comerciantes”, comentou a
respeito dele e dos seus amigos que trabalhavam na central. “Os comerciantes têm outro
tipo de vida, eles têm tempo para a leitura”, afirmou destacando em seguida que nos
pueblos os “jornais de fofoca” eram comprados pelos “peões” e os jornais como o El
Comercio e o El Peruano (dois dos mais importantes jornais lidos pelas classes altas do
país) iam para os comerciantes e os “estudados”. “Os comerciantes tem acesso a outros
lugares, pessoas e modos de vida”, salientou. Ele acreditava que “filho de pai fazendeiro
(finquero)” tem educação dos pais e do colégio; já “os filhos de peão só tem educação
de colégio”. “Estar na posição de empregado te limita”, opinou num tom auto-reflexivo
e conclui: “quem esta acima tem mais liberdade”.100
O irmão do meio de Alejandro, e que estudava em La Florida, esteve comigo
durante minha visita aos indígenas que residiam numa “comunidade nativa” próxima ao
100 Outro funcionário da central e filho de sócio da cooperativa entrou na conversa e nos disse ironicamente: “peão uma vez ao ano toma cerveja que nem gringo” (isso significa que um obrero gastaria basicamente suas economias com bebidas alcoólicas para viver num dia do ano o que os estrangeiros viveriam de um modo mais freqüente).
97
povoado.101 Ele havia me dito que seu avô sempre “apoiou” esses indivíduos e que
igualmente mantinha uma boa relação com eles. A Comunidad Nativa Eschormes fica a
uns 20 minutos de caminhada do pueblo, andando pela estrada de terra que, bem mais à
frente, dá na principal rodovia da selva central. É um território juridicamente constituído
e então formado por 20 famílias (nucleares, ou seja, cada uma composta de um casal e
seus possíveis filhos) de duas “etnias”: ashaninka e yanesha. Essa informação me foi
repassada pela primeira destas pessoas com a qual pude entrar em contato. Tratava-se da
“chefa” da comunidade e com quem agendei um encontro a ser realizado justamente
nesse lugar. Ela e seus quatro irmãos eram sócios da Cooperativa La Florida (ao
contrário dos outros indígenas da comunidade) e pude também os reencontrar na
assembléia da cooperativa realizada no final desse ano.102 A descontraída participação
deles na festa que se seguiu a esse evento demonstrava claramente que a história dessa
organização transcendia qualquer fronteira étnica ou cultural entre os agricultores.
101 “A partir de la Ley de Comunidades Nativas, promulgada en 1974, el estado peruano reconoce la existencia de los pueblos indígenas bajo la forma de comunidades nativas. Las comunidades nativas necesitan tener su personería jurídica para gestionar su título de propiedad comunal, o para realizar cualquier otra gestión ante el estado. Sin embargo, la Constitución del Perú reconoce la existencia de las comunidades nativas aún cuando no tienen su personería jurídica. Con la Ley de Comunidades Nativas de 1974, es estado reconoció título de propiedad comunal sobre el área demarcada a favor de las comunidades. En 1978 esta ley se reformó, a partir de lo cual, el estado otorga título de propiedad a la comunidad sólo sobre las áreas de aptitud agropecuaria y cede en uso exclusivo las áreas de aptitud forestal. Esto debe a que es estado considera los bosques como propiedad pública. Según la ley, las comunidades pueden usar los recursos del bosque para el consumo directo, mientras que para la extracción de madera con fines comerciales, deben obtener permisos anuales del INRENA.” (Instituto del Bien Común, 2006 p. 15) 102 Um dos seus irmãos comentou sobre a relação deles com a Cooperativa La Florida. Apontou o fato de que os quatro eram sócios da entidade, ao contrário dos outros indígenas da comunidade: “estes são convencionais”, assinalou contrastando com sua posição de produtores certificados como orgânicos. Ele falou das capacitações que recebiam da cooperativa e da dificuldade que tinham em melhorar a produção: “não temos poupança”, justificou. Ainda a respeito dos outros nativos: “os outros produzem pouco, tem meia parcela (meio hectare) e não podem ingressar na cooperativa”. “O colégio dos nossos filhos esta garantido, mas não temos dinheiro para mandá-los para a universidade”, comentou ressaltando: “o governo não nos apóia”. Reclamou também dos juros altos cobrados pela La Florida. Conversando com “os outros” nativos, me disseram que tinham que trabalhar em chacras alheias, pois aquilo que produziam em suas propriedades não cobriria nem suas necessidades alimentares.
98
Foto 22 – A Comunidade Nativa Eschormes
Acontece que essa história se perpetua através das gerações mediada pelos
eventos que vão ocorrendo ao longo do tempo. A preocupação em participar
diretamente do desenvolvimento da cooperativa e de seus associados pode ser ofuscada
nas gerações mais novas diante dos processos de ascensão social que estejam
experimentando. Um exemplo disso é o caso de Alejandro e seus irmãos. O contrário
também é verdadeiro e possível de ser percebido através da experiência de uma jovem
moradora do povoado e sócia da cooperativa que me acompanhou durante uma visita
aos arredores do pueblo. Seu nome era Celina e na época presidia o Comitê de
Desenvolvimento Familiar da Cooperativa La Florida (a havia conhecido numa ocasião
anterior a essa minha visita a região).103 Ela me disse que a primeira turma de alunos
que concluiu o segundo grau no colégio do povoado se deu em 1985. No ano seguinte,
outros 15 alunos se formariam; cinco destes teriam cursado uma universidade e entre os
quais se inclui essa minha interlocutora. Celina citou um amigo seu que trabalhava 103 Ela explicou o papel deste comitê durante sua apresentação num “encontro de mulheres cafeicultoras”, organizado pelo grêmio nacional das organizações de produtores de café, na cidade de Lima, em novembro desse ano. Afirmou inicialmente que esse comitê trabalhava com as famílias cafeicultoras enquanto “empresas familiares”. Nele estavam inscritas 420 mulheres de 21 “comitês zonais”. Disse que o objetivo das empresas familiares era de que cada uma fosse sostenible, isto é, “capaz de se financiar com seus próprios recursos”. “As mulheres retiram (da Crediflorida) empréstimos entre US$ 150 e 200 para realizarem projetos viáveis, como a produção de derivados de leite, tecidos e bebidas”, ressaltou lembrando também do artesanato produzidos pelas indígenas ligadas à cooperativa. Momentos antes de começar a assembléia da La Florida no final de 2006, ela comentaria comigo que estes empréstimos faziam parte de uma carteira de crédito, dentro da Crediflorida, no valor de US$ 22.000 e podiam ser concedidos às sócias e às esposas ou filhas de sócios. Sobre esses financiamentos recairiam juros mensais de 0.80% e anuais de 10%.
99
como dentista na Argentina e outro que exercia a profissão de advogado numa grande
cidade andina: “estamos melhor do que os outros que não foram até a universidade”,
acrescentou.
De acordo com ela, através do órgão governamental chamado Fondo de
Cooperación para el Desarrollo Social (FONCODES), o povoado havia recentemente
passado a contar com água potável clorada e uma rede secundária de eletricidade. De
qualquer maneira, Celina acreditava que “antes do terrorismo” o pueblo estava em
melhores condições. Ela falou do trabalho desenvolvido (em meados da década de 80)
pelos “engenheiros” Juan Lucas (um suíço) e Felix Marin no incentivo à diversificação
de fontes de alimento e como isto acabou sendo copiado por outras cooperativas. Só
com o governo de Alberto Fujimori (1990 – 2000) é que o estado teria chegado até La
Florida e para isso ela citou a escola que fora criada numa associação entre a
cooperativa e o FONCODES em 1996.104 Celina completou dizendo que essa escola se
colocou como “embrião” do CEOAS e que acabou assim dando continuidade ao
trabalho iniciado por Juan Lucas e Felix Marin.
Foto 23 – Crianças jogando futebol no centro do povoado de La Florida
104 O reconhecimento extremamente positivo do governo de Fujimori se colocou como algo recorrente nos discursos das pessoas com quem conversei ao longo da minha permanência na selva central.
100
A experiência de Celina em torno de seu desenvolvimento pessoal parecia
convergir com sua visão do progresso vigente na cooperativa e na região onde esta
atuava. Mesmo porque essa moça se colocava como uma das protagonistas desse
progresso ao presidir o “comitê de desenvolvimento familiar” da La Florida. Tal como
Gorbachov, Celina era uma jovem que se sentia parte de um moderno empreendimento
coletivo realizado no interior do país. Ambos aparentavam estar vivenciando um mesmo
sentimento de realização pessoal e coletiva que muito provavelmente seus pais sentiram
quando vieram a prosperar enquanto produtores de café e membros da cooperativa. Essa
afinidade inter-geracional permitia uma verdadeira reprodução da comunidade entre os
sócios e de uma história que lhe era correlata.
O foco das seções seguintes é no passado da comunidade que precedeu a criação
da Cooperativa La Florida e que se perpetua através dela até os dias de hoje. Trata-se de
mostrar como, ao longo do tempo, a mobilidade social dos cafeicultores e o
“desenvolvimento” da La Florida caminharam juntos. Vale a pena então trazer
inicialmente a tona um cenário mais amplo em torno da vida das pessoas que
protagonizaram esses dois processos. Isso porque esse cenário não só nos permite
enquadrar suas experiências num contexto mais geral como também serve de referência
para esses próprios sujeitos se situarem fora do universo particular que vivenciam
conjuntamente ao redor da cooperativa.
2.5 O êxodo andino
Entre os textos acadêmicos que tratam do Peru, falar de migração é falar
principalmente de uma ocupação desenfreada de Lima por pessoas advindas da
101
cordilheira andina.105 Até meados do século XX, a capital do país era uma cidade
habitada predominantemente por uma população identificada com o continente europeu.
Na verdade, as cidades peruanas seguiam sendo desde os tempos da colônia “reductos
privilegiados de criollos y mestizos viviendo una cultura de casi exclusiva raíz europea
y concentrando los instrumentos del poder.” (Matos Mar, 2004 p. 99) O universo andino
permanecia basicamente relacionado ao mundo rural. Mas essa relação não excluía uma
subordinação às estruturas coloniais e depois nacionais. (Golte, 2001 p. 116)
Era de se esperar que o expressivo crescimento demográfico que acometeu o
Peru, a partir dos anos 40, expandisse não só o tamanho da sociedade nacional como
também a mobilidade espacial no seu interior. (Contreras & Cueto, 2004 p. 300)
Fenômenos semelhantes a este vinham acontecendo em diversos países durante esse
período. A incapacidade de certas regiões rurais em prover os recursos demandados por
um número cada vez maior de pessoas socializadas numa economia de mercado se
mostrou como uma das principais causas da migração massiva aos lugares onde estes
recursos estavam concentrados. Esse deslocamento populacional acabou colocando em
xeque a capacidade de absorção dessa massa onde quer que tenha migrado.
Acontece que a capital peruana não foi o único destino dos migrantes andinos;
estes também se dirigiram em massa para outras cidades do país e zonas de fronteira
agropecuária. Neste último caso, se destacaram as regiões abarcadas pela floresta
amazônica.106 De qualquer maneira, a integração desse contingente populacional na
“sociedade nacional” se tornou uma das principais preocupações dos estudos
105 “Desde la década del sesenta persiste un boom en la literatura acerca de los procesos migratorios en el Perú, donde lo general se analizan los procesos migratorios hacia Lima. Sin embargo, son comparativamente pocos los estudios que se ocupan de los movimientos itinerantes hacia regiones rurales. (…) Los estudios acerca de la migración hacia ciudades de provincia, centros distritales u otras grandes urbes fuera de Lima también son escasos en la literatura. De esta manera Lima aparece como el punto de atracción central.” (Alber, 1999 p. 165) 106 Vale lembrar que a ocupação dessas regiões acabou sendo impulsionada através da construção da chamada Rodovia Marginal da Selva pelo governo de Fernando Belaúnde (1963-1968). De acordo com Contreras & Cueto (2004), essa estrada concretizava a visão que esse governo tinha da selva como uma válvula de escape para os conflitos que assolavam os cada vez mais inchados campos e cidades do país.
102
acadêmicos a respeito do país como um todo. Um exemplo disso é o trabalho de José
Matos Mar (1984) sobre o que esse autor classificou como uma “crise do Estado” que
teria caracterizado o final do governo militar (1968-1980). De acordo com ele, essa
crise resultava numa incapacidade do poder público em atender as demandas populares
que aumentaram cada vez mais durante esse governo que justamente havia procurado se
legitimar enquanto condutor de uma revolução de caráter popular e anti-oligárquico.107
Vinte anos depois, Matos Mar (2004) continuaria falando de um divórcio ainda
existente no Peru entre a sociedade nacional e o Estado. Sua preocupação permanecia
sendo a respeito de, nessas condições, haver a mínima possibilidade de legitimação de
um poder público aos olhos da maioria da população.
Lo sucedido en estas dos décadas es de gran transcendencia, desborda lo imaginable. Como gobierno el país ha llegado a un límite muy peligroso de inviabilidad política. Al mismo tiempo coexiste una próspera macroeconomía nacional, con empresarios modernos y tradicionales – muchos surgidos de los emprendedores y exitosos sectores populares – debido en gran parte a la riqueza de nuestros recursos naturales, que muestra otra cara, la de una realidad exitosa. En contraste, más del 50% de la población total del país vive en situación de pobreza. (idem p. 128)
Essa desigualdade da qual fala Matos Mar também aparece ressaltada no
diagnóstico corrente de uma literatura que vem tratando daquilo que nela é definido
como uma incompletude ou anomalia da “modernidade latino-americana”.108 Tais
estudos partem do que concebem como sendo o moderno para apontar justamente o que
estaria por detrás da sua insuficiência nos países latino-americanos. A desigualdade que
tende a singularizar esses países é colocada nestes trabalhos como uma das principais
107 Julio Cotler (2005) fala de uma “crise do regime de dominação oligárquica” que precedeu a emergência desse governo militar através de um golpe de Estado em 1968. Já em relação às conseqüências desse governo: “Las reformas sociales decretadas por el Gobierno Revolucionario de la Fuerza Armada abrieron una caja de Pandora al impulsar el desarrollo y fortalecimiento de actores sociales que involucraban a capas populares y medias que, ciñéndose a los encendidos discursos revolucionarios, reclamaron participar en las decisiones oficiales, por lo menos, en aquellas que les concernía.” (idem p. 23) 108 Desta literatura destacaria José de Souza Martins (2000), Vivian Schelling (2000) e Nestor Garcia Canclini (2006). O acesso desigual aos benefícios comumente associados ao “mundo moderno”, entre os cidadãos latino-americanos, é um dos temas por excelência desses trabalhos. Em outras palavras, grande parte destes cidadãos estaria antes perversamente inserida na “modernidade” do que fora dela.
103
explicações da realização parcial da modernidade nestes lugares. Isso porque o que esta
em jogo nestes textos é demonstrar e compreender o acesso desigual dos cidadãos
destes estados ao que seriam as conquistas próprias do “mundo moderno” e que
basicamente se realizariam mais plenamente nas nações ditas desenvolvidas. Nesse
sentido, esse acesso desigual é também creditado ao próprio contexto global
contemporâneo.
Mas ao contrário destas e outras perspectivas sobre a modernidade enquanto um
termo analítico, a ser definido e aplicado pelo pesquisador, o que se busca aqui, na
esteira das recomendações de James Ferguson (1999, 2005 e 2006), é percebê-la como
uma “categoria nativa” compartilhada por uma enorme e heterogênea população.109
Trata-se de relacionar as mais distintas concepções de modernidade que cruzam a vida
das pessoas, lembrando, como também coloca este autor, que o fato de habitarem um
universo social marcado por “projetos modernistas” não implica que desfrutem de
condições de vida que reconheçam como sendo “modernas”. Vejamos de perto um
exemplo disso e capaz de ser percebido com base principalmente nas experiências dos
indivíduos que participaram dos primórdios da Cooperativa La Florida.
2.6 De peões a cafeicultores
No livro Lives Together – Worlds Apart: Quechua Colonization in Jungle and
City, a antropóloga Sarah Lund Skar (1994) focaliza os deslocamentos de um grupo de
camponeses andinos entre o povoado natal destes sujeitos e a capital do Peru e também
entre o povoado e a selva central peruana. O vilarejo esta localizado na província de
Andahuaylas (departamento de Apurímac) e o livro é escrito da perspectiva da
109 “An anthropological account may make its most effective contribution to contemporary theoretical debates about modernity by turning an ethnographic eye toward conceptions (scholarly and popular alike) of the modern”. (Ferguson, 1999)
104
comunidade de onde estes indivíduos partem e para a qual tendem a retornar após não
mais do que alguns meses fora. O recrutamento para o trabalho na colheita de café na
selva é geralmente feito, segundo a autora, através de agentes intermediários (os
engachadores) que com seus caminhões levam as pessoas da serra até um produtor que
precise dessa mão-de-obra.110 Quando ausentes de seu vilarejo, os camponeses são
chamados pelos seus conterrâneos de illaqkuna.
Illaqkuna of the montaña (selva) may see their moral career as compromised by their movement into a real dominated by the past and the rebellious forces of unconquered chunchos (indígenas amazônicos). Nevertheless, other contexts redefine life in the montaña as the place of the future, an open frontier where everyone can build. This is definitely the emphasis conveyed by government policy and investment in the region. Certainly most of the wealthier farmers with better lands and the misti populations in general who have other cultural affinities and wider political/economic experience see the montaña as the place of the future. (idem p. 214)
A autora aponta assim para dois fatores que condicionariam a permanência dos
migrantes andinos na selva: as políticas governamentais em prol da colonização da
floresta amazônica e uma afinidade prévia destes migrantes com a economia de
mercado. Trata-se de condicionantes não circunscritos à realidade que estes indivíduos
encontram quando estão trabalhando na colheita de café. Acontece que, durante a
permanência nas fazendas, é possível também que venham a tomar contato mais direto
com a cafeicultura e, dessa maneira, se sentirem encorajados a se tornar cafeicultores.
Fernando Santos e Frederica Barclay (1995) assinalam a existência dessa situação entre
os migrantes andinos que afluíram em massa à selva central a partir de 1950.
Cuando hacia 1950 el precio del café experimentó un alza sustancial, duplicando los precios promedio de 1940, este cultivo se convirtió en pieza clave de la estrategia de colonización y producción de los migrantes andinos, muchos de los cuales llegaron inicialmente a la selva central como cosechadores eventuales atraídos por el incremento de la demanda de mano de
110 Santos & Barclay (1995) ressaltam que a migração andina para as regiões cafeicultoras da selva central se dá basicamente enquanto mão-de-obra contratada para o trabalho nos cafezais. A esmagadora maioria dos cafeicultores com os quais me deparei na selva central era oriunda dos Andes e havia primeiro trabalhado em alguma propriedade cafeicultora antes de adquirir um terreno onde passou a viver e cultivar o café. A contratação de mão-de-obra para o trabalho nas plantações, o chamado engache, pode também ser feita por alguém da família produtora que se dirige até um povoado da cordilheira.
105
obra por parte de las haciendas cafetaleras. En la medida que este cultivo permitía a los migrantes establecerse y acceder a la posesión de tierras, gracias a la posibilidad de obtener ingresos monetarios relativamente estables – complementarios o alternativos a la venta de su fuerza de trabajo – el mismo fue rápidamente incorporado a las pequeñas parcelas colonas. Este proceso fue facilitado por la propia práctica de los hacendados de emplear ‘mejoreros’ y ‘contratistas’ como mecanismo para ampliar sus cafetales, experiencia que otorgó a un amplio sector de colonos migrantes los conocimientos básicos requeridos para iniciar una pequeña producción independiente. Aprovechando la apertura de caminos forestales, adelantándose muchas veces a la llegada de carreteras, y ocupando tierras adjudicadas a haciendas, o desplazando a la población indígena local, la producción cafetalera fue el medio por el cual a partir de la segunda mitad de este siglo nuevas áreas fueron progresivamente incorporadas a la dinámica económica regional y nacional. (idem p. 116)
Mas a socialização na produção de café não deve ser entendida apenas como
uma familiarização com as técnicas em torno desse cultivo. É possível pensá-la também
como uma incursão numa espécie de comunidade criada inicialmente ao redor dos
cafezais. Essa é justamente a situação que parece ter permeado a experiência de muitos
dos trabalhadores que passaram pela fazenda de Hector Marin. Tratava-se de uma
grande propriedade situada numa região da selva central conhecida como Palomar. De
acordo com o que aparece na página eletrônica da cooperativa mantida hoje em dia
pelos filhos deste produtor:
Nuestros padres Héctor y Rosa nacieron en 1914 y 1916 respectivamente, en la región andina de Cajamarca - Perú, quienes por la difícil situación socio-económica en que atravesaban tuvieron que emigrar a Lima y luego a la Selva Central iniciando así este proceso de migración. Don Héctor a la edad de 28 años, quien luego de trabajar en diferentes labores es que en el año 1942 ingreso a la región de Villa Rica - Palomar en donde trabajo como aserrador de madera y con ello comprar sus tierras para la instalación de sus plantaciones de café, cultivo que realizo con mucha responsabilidad en la calidad, en lo ambiental, en lo social, logrando crear (en 1953) la primera escuela de la región en su finca, liderando la apertura de carreteras, la creación de centros de salud, y la creación de la primera cooperativa cafetalera del Perú (Cooperativa Villa Rica 1965) labores que sus seis hijos y sus familias continúan realizando a pesar de muchas dificultades (crisis mundial del café: precios por debajo del costo de producción y factores socio políticos nacionales). (www.coopchebi.com.pe)
Um dos filhos de Hector me contou que seu pai conseguiu guardar uma
considerável quantia de dinheiro trabalhando como madeireiro para um grupo de
colonos de origem tirolesa (austro-alemã) e com esse recurso pôde comprar 150
hectares de “monte virgem” da Colônia do Perene (cuja proprietária era a companhia
106
inglesa Peruvian Corporation).111 Os trabalhadores que primeiro vieram trabalhar na
sua fazenda eram também naturais de Cajamarca (norte do Peru); depois ele passou a
trazer pessoas da província de Andahuaylas (sul do país). Segundo Manuel Manrique
(1982), Palomar se converteu na primeira zona loteada e vendida pela Peruvian
Corporation (as vendas dos lotes começaram a ser feitas em 1949). Foram vendidos 284
lotes e com 27 hectares em média de tamanho. (idem p. 53) Isso significa que a
extensão da propriedade de Hector Marin se destacava em relação àquelas ao seu redor.
Frederica Barclay (1989 p. 194) comenta o seguinte a respeito das conseqüências em
torno das vendas iniciais de terrenos dentro da Colônia do Perene:
Las ventas de tierras efectuadas por La Colonia en las zonas de El Palomar y Sanchirio dieron como resultado una mayor presión de parte de colonizadores para obtener tierras en venta. La presión sobre esta zona era ejercida desde dos frentes: desde el Paucartambo y desde la nueva colonia de Villa Rica. Esta última había sido fundada en 1925 al norte del lindero septentrional de la Colonia del Perené, y estaba conformada por colonos tiroleses venidos del Pozuzo, Oxapampa y el sur de Chile, a los que se sumaron colonos procedentes de la sierra. En la medida en que esta colonización fue convirtiéndose en un polo de atracción, la zona de El Palomar fue a su vez recibiendo mayor presión. Cuando estos núcleos iniciaron las
111 O contrato Grace, assinado pelo congresso peruano em 25 de outubro de 1889, e que cancelava a dívida peruana adquirida através de empréstimos nos anos anteriores, dava aos detentores dos bônus ligados a este contrato inúmeras vantagens, sendo as principais aquelas referentes à administração do sistema ferroviário nacional. Mas uma delas se destacava não apenas nos seus aspectos econômicos: “Se les concedió a los bonistas 2’000,000 de hectáreas en tierras de montaña para la creación de 4 colonias distintas en los lugares que más adelante serían determinados y los que habría que empezar a trabajar en un plazo máximo de três años y concluir-los en nueve. Para ello debían fomentar la inmigración pues existía el compromiso de colonizar estas zonas con gente de ‘raza blanca’.” (Barclay, 1989 p. 33) Uma área de 500,000 hectares de selva alta acabou enfim sendo utilizada com propósitos de colonização, num empreendimento que ficou conhecido com o nome de a Colônia do Perene, e realizado sob os auspícios de uma companhia inglesa, chamada Peruvian Corporation, criada em 1890 para “administrar os direitos e obrigações dos detentores dos bônus derivados do contrato.” (idem p. 34). Segundo a antropóloga peruana Frederica Barclay (idem p. 41), o interesse dos ingleses com esse empreendimento era produzir cafés de tão boa qualidade e, conseqüentemente, de retorno financeiro igualmente elevado, quanto os que eram obtidos com os cafés que produziram no Ceilão antes do declínio da produção cafeeira nesse país. Eles encontraram no entorno do rio Perene condições ecológicas semelhantes às das áreas onde o café era cultivado nessa nação asiática e, diante disso, restava desenvolver na selva peruana as condições tecnológicas para a produção de um grão de tamanha qualidade e valor. A tese da autora é que este projeto de colonização teve um impacto substancial tanto na configuração da região como um espaço econômico, social e político com características próprias quanto nas transformações que afetaram as populações nativas locais. A existência desse projeto, apoiado em capitais ingleses, permitiu que a integração dessa região no mercado internacional de café persistisse nos momentos de crise nos preços desse produto, ao contrário do que ocorreu naquelas regiões amazônicas assoladas por “booms”, como o da borracha, por exemplo.
107
coordinaciones para construir una carretera que los vinculara a la carretera troncal, la presión sobre las áreas incultas de la Colonia empezó a hacerse intolerable.”
Hector também comprou um pedaço de terra numa região a leste de Palomar e
próxima de onde se localiza hoje o povoado de La Florida. Mas alguns de seus
trabalhadores decidiram não pagar à Peruvian Corporation pela posse de terrenos
situados nessa região. A avó de Alejandro se tratava justamente de alguém que
participou da ocupação desse território. Ela é natural do departamento de Cajamarca e
parente de Hector Marin. Durante nossa conversa, manteve em suas mãos o chapéu
característico dos cajamarquinos e o qual colocou sob sua cabeça assim que saiu de sua
casa.
Como assinalado anteriormente, ela mudou-se para a selva central em 1955 e na
companhia de seu marido e de seus filhos. Os dois e seu filho mais velho vieram
trabalhar como obreros na fazenda de Hector Marin. Ao mesmo tempo em que iam
conduzindo esse trabalho deram início, com a ajuda dos filhos mais novos, à ocupação
de um terreno próximo do atual povoado de La Florida. Para isso costumavam sair às
seis da manhã de Palomar e chegavam às seis da tarde nesse terreno: “o caminho não
era nem sequer uma trilha”, me disse essa senhora enfatizando assim a precariedade do
trajeto que faziam a pé. “Aqui era tudo monte (virgem), os espinhos nos arranhavam”,
ressaltou apontando também para o fato de que sua filha mais nova freqüentemente
desmaiava no trajeto dada a falta de água para beber.112
Durante essa época, a senhora, seu marido e o filho mais velho do casal
trabalhavam ao longo de uma semana em Palomar “como obreros” e na semana
seguinte se dedicavam ao seu terreno em La Florida, para então retornar até Palomar e
assim sucessivamente. Nessa última localidade, procuravam adquirir os recursos “para
112 Monte real ou monte virgem é como os colonos definem as terras não cultivadas. Também as caracterizam simplesmente como monte.
108
comprar alimentos e vir poder trabalhar na chacra”. Com o dinheiro obtido em Palomar,
compravam alimentos no povoado de San Luis Chiaro, apesar de que também não havia
uma trilha propriamente dita entre esse povoado e La Florida. “Acabava a comida, tinha
que ir trabalhar para ter o que comer; agora há estradas e casas, antes não havia isso”,
ressaltou. De Palomar traziam sementes de frutas, mulas, cachorros e galinhas: “quem
construía sua casa ia vivendo aqui”.
Ela contou que seu marido chegou a ter uma chacra em Palomar comprada de
um determinado sujeito. Nessa chacra plantavam café e tinham uma casa de três pisos:
“mas lá demorava muito para produzir”, ponderou acrescentando que “em Palomar não
havia mandioca e a bananeira demorava demais para crescer”. “Como tínhamos muitos
filhos, tínhamos que ter mais”, assinalou apontando em seguida para o fato de que todos
os seus 11 filhos vieram a trabalhar na chacra de La Florida.
“Os primeiros (colonos) que entraram em La Florida sofreram”, sintetizou
afirmando também que estes colonos “tinham que ir de bote até Pampa Silva retirar os
papéis das chacras”. Ela estava se referindo à localidade onde ficava a sede da Colônia
do Perene. Antes dos colonos chegarem num acordo com essa empresa, a situação na
região que abarcava esse empreendimento era bastante tensa: “os gringos tinham quase
tudo, diziam que iam tirar os colonos e estes se preparavam para enfrentá-los”, disse.
Sobre a área dentro da qual vieram a se estabelecer: “aqui havia apenas (índios) campa,
os nativos tinham medo dos colonos e se retiravam mais para dentro”, destacou usando
uma expressão pejorativa para definir os indígenas da etnia ashaninka. Frederica
Barclay (1989 p. 200-201) oferece uma descrição abrangente da situação em torno dos
terrenos da Colônia do Perene durante a passagem dos anos 50 para os 60.
Cada vez se abrían nuevos frentes de conflicto en el área de la concesión de la Peruvian Corporation, lo que llevaría a la Colonia del Perené a intentar nuevos tipos de respuestas para las diferentes situaciones. En la margen derecha del Perené, donde la empresa no había establecido
109
plantación alguna, la Colonia se había limitado anteriormente a alquilar algunos terrenos a colonos y nativos. Cuando los conflictos e invasiones estallaron, a raíz de la entrada masiva de colonos provenientes de Chanchamayo, Satipo y la sierra de Jauja, la Colonia enfrentaba aún el problema de Yurinaki. Aquí también los colonos formaron asociaciones con el fin de defenderse de las amenazas de la Colonia y poder ejercer presión sobre la opinión pública. Esta vez, la Colonia actuó recorriendo a una activa campaña publicitaria, que dio lugar a una verdadera batalla en los diarios de Huancayo, Jauja, Tarma y Lima, haciendo efectivas sus amenazas de utilizar la fuerza pública e incentivando la formación de asociaciones paralelas que debían enfrentarse a aquellos que la Peruvian Corporation consideraba invasores de sus tierras. Para lograr dividir el movimiento la Colonia procedió a vender lotes a aquellos dispuestos a celebrar un contrato de compra e venda e incluso cedió a algunas personas lotes en esta zona. En el año 1960, los conflictos alcanzaron su punto más álgido con continuas intervenciones policiales y desalojos.
A senhora e seus familiares estavam situados na margem esquerda do rio Perene
e faziam parte daquilo que Barclay define como “o problema do Yurinaki”, se referindo
ao nome de um dos rios que deságuam no Perene. Foram 25 colonos os primeiros a
repartir as terras da Colônia ao redor do povoado de La Florida e essa divisão se
realizou através de “seções”, segundo a avó de Alejandro, na sede da empresa.113 Os
lotes eram sorteados e tinham por volta de 20 hectares cada um. “Os filhos dos
fundadores pegaram os terrenos livres, não havia parcelamento, havia muito terreno
livre”, enfatizou se identificando como um dos “fundadores”. Em 1962, venderam a
chacra que tinham em Palomar e se mudaram definitivamente para La Florida.
Trabalhavam uma semana na propriedade de cada um dos outros colonos e estes faziam
o mesmo.114 Essa troca não-monetizada de trabalho perdurou ao longo de três anos.
“Quando já havia café, passamos a trazer gente da serra”, disse ressaltando que cada
chacra precisava de quatro a cinco “peões”. “Poucos obreros ficavam (morando em
definitivo) na selva, os que tinham suas chacras na serra voltavam”, explicou.115
113 Ela citou o nome de cinco desses fundadores e seus respectivos lugares de origem: Huánuco, Huancayo, Cajamarca, Villa Rica e Andahuaylas. Conversando, num outro momento, com um dos filhos dessa senhora, este me informou que as “reuniões” em Pampa Silva aconteceram em 1960. Já sobre a delimitação dos territórios em que vieram a se estabelecer: “medíamos com pita, 500 metros equivalia a 50 hectares, depois, com a medição atual, descobrimos que os terrenos eram menores, mediam 107 metros, o que dava 24 hectares, mas a idéia era cada um ter 50 hectares”. 114 Ela disse que muitos dos colonos voltavam até sua terra natal e de lá traziam suas esposas. 115 De acordo uma filha dessa senhora, seu pai chegou a trazer 15 personales do norte do país para trabalhar, ao longo de quatro meses, na sua plantação de café. Ele dava a passagem de volta gratuitamente para os que ficassem os quatro meses, mas “uns iam embora antes, não se adaptavam”.
110
Como assinalado anteriormente, com base no discurso dessa senhora é possível
perceber uma representação em torno da mudança da condição de obrero para a de
produtor como um indicativo local de um processo mais geral de ascensão social. O fato
dela e seus familiares terem deixado de trabalhar como peões para cultivar café em sua
própria chacra em La Florida certamente foi uma conquista muito importante em suas
vidas. As dificuldades que enfrentaram para atingir esse objetivo parece ser assim a
tônica de seu discurso. Mas a questão é entender esse discurso no contexto de uma
espécie de comunidade (criada entre os trabalhadores de Hector Marin e expandida ao
longo do tempo) onde o enfrentamento desses percalços é justamente aquilo que une e
também distingue seus membros entre si. Passar da condição de peão para a de produtor
numa época onde, por exemplo, a infra-estrutura viária praticamente não existia é algo
que certamente ganha um maior relevo na medida em que essa infra-estrutura vai se
tornando menos precária.
Mas a narrativa desse sacrifício em se tornar cafeicultor também pode ser
entendida como uma justificativa para a posição quase que invariavelmente mais
privilegiada dos que se tornam produtores antes dos demais ao seu redor. Quem ascende
primeiro ao status de produtor de café tende a acumular mais recursos do que os
obreros que ascendem depois. Por exemplo, a família dessa senhora se tornaria uma das
economicamente melhor posicionadas entre as que colonizaram a região.116 Por outro
lado, existem os casos que estas pessoas chamam de “fracassos”. Muitos produtores
antigos explicam sua posição econômica inferior em relação aos mais novos pelo fato
de terem gasto “inutilmente” seu dinheiro em “festas” (incluindo não só os festejos
familiares como também casas de prostituição e bares localizados nos povoados maiores
116 Logo após se estabelecerem no povoado, a esposa do seu filho mais velho passou a vender comida para as pessoas que igualmente procuravam viver em La Florida. Com o dinheiro das vendas, puderam construir uma hospedagem nesse pueblo. Os recursos provenientes do café permitiram que fizessem um estabelecimento ainda maior.
111
da região).117 Encontrei alguns desses agricultores, outrora considerados “fracassados”,
que diziam ter deixado de lado essa vida “errática” ao se tornarem evangélicos.
2.7 Uma comunidade de migrantes
Em 1960, o filho mais velho da senhora e outros migrantes andinos beneficiados
pela doação de terrenos por parte da Colônia do Perene fundaram e se tornaram os
dirigentes da chamada Associação de Pequenos Produtores do Baixo Yurinaqui. Os
agricultores me disseram que viraram dirigentes aqueles que tinham mais instrução; o
filho mais velho da senhora, por exemplo, havia cursado até o terceiro ano primário (em
outras palavras, ele sabia ler e escrever). A associação formada por estes, em sua
maioria, ex-trabalhadores de Hector Marin passou a organizar a ocupação de um
território da Colônia situado entre as cuencas (bacias hidrográficas, em espanhol) do rio
Yurinaki e do rio Ubiriki (outro afluente do Perene, só que mais a leste). Através de
encontros mensais no povoado de La Florida, os interessados em adquirir um lote
encontravam com um ou mais colonos que conheciam uma determinada zona (os
chamados fundadores deste local) e que lhes indicavam onde poderiam se estabelecer.
“Se não fosse a Associação (de Pequenos Produtores do Baixo Yurinaqui),
ninguém ficaria na selva”, me disse um desses produtores beneficiados.118 Ao longo da
década de 60, muitos obreros se depararam assim com uma instituição que lhes permitia
adquirir um pedaço de terra no território em nome da Colônia do Perene. É verdade que,
na medida em que esta aquisição foi vista como ilegal, seus dirigentes chegaram a ser
117 As principais categorias de acusação dos produtores que “não progrediram” são a de “bêbado” e a de “vagabundo” ou “conformista”. 118 Os interessados em participar da associação deveriam pagar uma cota que variava entre 10 a 20 soles. De acordo com um produtor: “esse valor era bastante alto para nós naquela época”. De qualquer maneira, esse valor era irrisório se comparado com o preço que a Peruvian Corporation cobrava pelos terrenos que estava vendendo nesse período: 200 soles, em média, para um hectare de terra. (Manrique, 1982 p. 66)
112
presos por ordem da Colônia (apesar de alegarem que este empreendimento não havia
cumprido com seus compromissos contratuais, firmados com o governo, e que
implicavam na necessidade de uma promoção da colonização na região). Mais isso não
impediu que a associação permanecesse funcionando. A página eletrônica do distrito de
Perene descreve da seguinte maneira o contexto mais geral dentro do qual se deu esta
ocupação das terras então sob o domínio da Peruvian Corporation.
Entre 1950 y 1960, grupos organizados de Peruanos inician la toma de posesión de estas tierras, ingresando por diversos sectores como los pequeños Agricultores de Bajo Yurinaki, que se asentaron en la Florida, otros ingresaron por el puente Quimiri llegando a Villa Amoretti, otros grupos toman posesión en Villa Anashironi, Puerto Victoria, Sotani - Perené, etc.; todos ellos fueron denunciados y perseguidos como invasores, por la Peruvian Corporatión Limited. (www.muniperene.gob.pe)
Manuel Manrique (1982 p. 86) aponta para o fato de ter existido uma cooptação
dos “invasores” das margens direita e esquerda do rio Perene pelos partidos políticos da
época, a partir do momento em que o procurador geral da república passou a questionar
legalmente a posse dos terrenos pela Peruvian Corporation. Acontece que as “invasões”
nas terras desta empresa aconteceram num momento de grande efervescência e agitação
camponesa no país. Segundo Manrique (idem), os conflitos existentes em outras regiões
peruanas (localizadas nos departamentos de Cusco e Pasco) foram fatores determinantes
para o surgimento das organizações orientadas para a ocupação dos territórios entregues
à Peruvian. Nestas outras regiões, eram os próprios trabalhadores das fazendas e os
membros das comunidades próximas a elas que as invadiam. No caso da zona de
Perene, a maior parte dos invasores praticamente não tinha nenhuma relação com as
terras que vieram a ocupar.
No plano jurídico, a luta pelo reconhecimento das terras ocupadas pela Colônia
do Perene se desenvolveu na maioria dos casos de modo burocrático, através das
numerosas ações judiciais feitas pelos assessores legais de uma Federação de
113
Comunidades Camponesas ligada a certos deputados de um importante partido político
da época (a União Nacional Odriísta).119 Por conta dessa modalidade burocrática de
ação, quem dirigia o movimento não eram os líderes escolhidos pelos camponeses, mas
os assessores legais da federação. Apesar de aludirem à ilegalidade da posse das terras
por parte da Peruvian Corporation, estes últimos não buscavam questionar os seus
direitos de posse (muitas vezes, inclusive, se aceitavam arranjos legais por meio da
compra dos terrenos), mas apenas aproveitavam essa situação de instabilidade da
empresa para que os camponeses tivessem acesso a uma parcela de terreno. Esses
assessores criaram instituições e órgãos de imprensa através dos quais vinculavam a
imagem de um vigoroso apoio por detrás destas invasões. Por seu lado, as associações
dos que ocupavam as terras da Colônia tiveram como papel principal coordenar a
divisão das propriedades. Nesse plano, houve sim constantes episódios de violência,
notadamente da polícia para com os “invasores”.
Vale ressaltar que o afluxo massivo de pessoas para a região em torno do rio
Perene se deu numa conjuntura internacional dentro da qual vigorava um aumento
bastante expressivo nos preços do café desde o final da década de 40. Isso significava
uma maior demanda das fazendas por trabalhadores e, conseqüentemente, mais gente
vinda de fora que passou a se interessar em obter um pedaço de terra. Segundo Santos &
Barclay (1995), a Reforma Agrária realizada em 1965 pelo governo de Fernando
Belaúnde na selva central procurou afastar dessa região a ocorrência de conflitos
119 “Hay que remarcar que la iniciativa para la conformación de la Federación de Campesinos de Jauja, no surgió de los mismos comuneros, sino que fue más bien producto de la labor desplegada, por personas provenientes de áreas urbanas. (...) El movimiento campesino de Jauja tuvo entre sus organizadores a dirigentes odriístas (...), quienes fueron los principales propulsores de las invasiones de tierras.” (Manrique, 1982 p. 86) A União Nacional Odriísta (UNO), partido do general e presidente peruano Manuel Odría (1948 -1956), competia com o partido Aliança Popular Revolucionária pela representação dos “invasores” da Colônia do Perene: “Para los distintos partidos políticos, este conflicto significó la oportunidad de buscar participación con el fin de ensanchar sus influencias como podría deducirse de las diversas manifestaciones de apoyo a los invasores por parte de representantes parlamentarios. Estas muestras de adhesión solo se hicieron significativas cuando se había ingresado a un período de abierto cuestionamento legal de la posesión de los terrenos de la Peruvian a partir de la demanda iniciada por el Procurador Genneral de la Republica”. (idem)
114
agrários como os que vinham acontecendo nas fazendas no sul do país. 120 Isso acabou
resultando no fim da repressão policial em cima dos que ocupavam as terras da Colônia
do Perene.
O estabelecimento maciço de migrantes andinos na selva como produtores de
café deve ser entendido também dentro de uma conjuntura mais ampla em torno desses
migrantes e a qual foi definida nesse capítulo como o êxodo andino. Ao longo da
década de 60, a aquisição de um terreno dentro do território da Colônia do Perene
passou a encontrar cada vez menos opções, principalmente nas áreas próximas às
estradas.121 De acordo com Santos & Barclay (idem), a generalização de um mercado de
terra na selva central acabou sendo impulsionada mesmo diante da reforma agrária
promovida em 1969 pelo governo militar e que proibia a compra e venda de terrenos.122
A valorização dos sacrifícios por detrás do ato de compra de um pedaço de terra
pode ser percebida nas narrativas de diversos produtores. Um exemplo é trajetória de
um produtor que vivia numa zona mais afastada em relação ao povoado de La Florida.
Ele me disse que chegou em 1962 à selva central e na companhia de sua mulher (eram
recém casados e sem filhos, com ele só tendo cursado o primeiro grau). Os dois também
vieram acompanhados de seus vizinhos no povoado em que viviam quando moravam no
departamento andino de Apurimac (província de Andahuaylas). Na sua província não
havia muita oferta de trabalho e sua mudança para a selva central seria apenas para
ganhar algum dinheiro e depois ir até Lima. Trabalhou oito anos como “peão” em
Palomar. Dormia com sua esposa num pequeno quarto e ainda não tinha filhos.
120 “Las acciones de la Reforma Agraria belaundista en el Perené – donde se declaró la caducidad de la concesión de la Peruvian Corporation – y en Satipo – donde se afectaran los numerosos fundos abandonados – estuvieron orientadas a evitar que se afirmaran en la selva central movimientos campesinos y sindicales como los de La Convención y Lares”. (Santos & Barclay, 1995 p. 94) 121 Vale ressaltar que, durante essa época, uma epidemia de sarampo dizimou boa parte dos indígenas nativos que viviam no interior da selva central. 122 Muitos produtores costumavam dizer que adquiriram suas terras através de “transferências”. “En el marco de la pequeña propiedad estas transferencias se realizan en términos de venta de ‘mejoras’, es decir, lo que aparece como vendido no es la tierra, sino las plantaciones, pastizales, viviendas u obras de infra-estructura existentes en una determinada parcela.” (Santos & Barclay, 1995 p. 125)
115
Ressaltou que não “gastava com festas” e que por isso mesmo pode juntar dinheiro e
comprar um terreno de nove hectares (a propriedade contava com uma casa e plantações
de café). Com essa aquisição acabou “progredindo” e deixando de lado sua intenção
original de usar as economias que adquirisse na selva para complementar sua educação
em Lima. O ponto é que ele encontrou um espaço social dentro do qual seus logros
eram valorizados: a Cooperativa La Florida.
Ela se constitui numa instituição que dá continuidade a uma comunidade
iniciada por alguns dos migrantes que estiveram empregados na fazenda de Hector
Marin em meados do século passado.123 Estes trabalhadores conduziram tanto a
fundação da Associação de Pequenos Produtores do Baixo Yurinaki quanto da
Cooperativa La Florida e a afinidade entre essas duas entidades reside no próprio “raio
de ação” desta cooperativa.
A constituição das organizações de produtores de café na selva central não pode
ser entendida sem levar em conta o seu processo de colonização e o cenário nacional
pró-cooperativista da década de 60 (em 1964 foi aprovada no país a “lei de
cooperativas”).124 De acordo com Santos & Barclay (2005 p. 124), com a expansão no
número de colonos produzindo café nessa região, começaram a funcionar na capital
regional, La Merced, armazéns de comerciantes intermediários, e os quais passaram a
financiar a colheita dos produtores em troca de seus cafés. Como reação frente ao
123 Lembro de um dia, durante minha hospedagem na sede da antiga fazenda de Hector Marin, quando seu filho Felix me mostrou dois quadros contendo um certificado cada um: o primeiro era de 1984 e assinado pelo Papa João Paulo II e o segundo de 1997 com a assinatura do então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Ambos os documentos parabenizavam Don Hector pelas suas inúmeras atividades sociais (em especial, a de ter empregado deficientes mentais em seu supermercado localizado em Lima). Recentemente, Felix foi homenageado pelo congresso peruano. Para além dos campeonatos de futebol e outras atividades recreativas que Hector organizou entre seus obreros, acredito que foi ele quem plantou a semente para que a experiência em torno da La Florida surgisse. Em outras palavras, Don Hector certamente serviu de exemplo ou modelo de vida para Felix e também para estes sujeitos. Ele se mostrou uma referência concreta de que um migrante andino podia “progredir” (progresar) e levar consigo aqueles ao seu redor. 124 As medidas, em prol do cooperativismo, adotadas pelo governo militar instaurado em 1968, tiveram como resultado a integração em massa dos cafeicultores peruanos em cooperativas.
116
monopólio exercido por estes comerciantes, os produtores organizaram, a partir de
meados da década de 1960, diversas cooperativas, tendo em vista a venda direta de seus
grãos para os exportadores em Lima. A primeira dessas organizações foi a Cooperativa
Vila Rica, fundada em 1965 pelos colonos tiroleses e andinos que estavam situados do
lado de fora da fronteira norte da Colônia do Perene (como era o caso de Hector Marin).
Ao contrário dessa cooperativa, que admitia como sócio qualquer produtor de café, a
Cooperativa La Florida, criada em 1966 pelos membros da Associação de Pequenos
Produtores do Baixo Yurinaqui, só aceitou a filiação dos agricultores localizados num
certo limite espacial.
Como assinalado anteriormente, o “raio de ação” da La Florida trata-se de um
território, de aproximadamente 35.000 hectares, dentro do qual vivem os produtores
autorizados a se associarem a ela. Sua configuração praticamente obedece aos limites da
colonização empreendida através da Associação de Pequenos Produtores do Baixo
Yurinaki entre a bacia hidrográfica do rio Yurinaki e a do rio Ubiriki. Em tal cenário, a
evidentemente difícil situação enfrentada pelas pessoas que procuraram melhorar de
vida, por meio do cultivo de café, era também levada em conta na justificativa das suas
“sociodicéias” (Bourdieu, 1998).125
Lembro da conversa que tive com o jovem produtor, não associado à
cooperativa, que vivia no povoado de La Florida. Seu pai havia migrado de Cajamarca
em 1976 para trabalhar na fazenda de Hector Marin. Contudo, “nunca comprou uma
chacra”. Perguntado por esse seu filho o motivo disso, respondeu: “eu trabalho somente
para dar de comer e educar vocês”. No final de nossa conversa, o jovem cafeicultor me
disse: “há terras livres, mas as pessoas não têm dinheiro, tem que levar semente de tudo;
quando os fundadores nos contam como se instalaram aqui, vemos o tanto que
125 “Max Weber dizia que os dominantes têm sempre necessidade de uma ‘teodicéia’ dos seus privilégios, ou melhor, de uma sociodicéia, isto é, de uma justificação teórica para o fato de serem privilegiados”. (Bourdieu, 1998 p. 59)
117
sofreram”. Isso significa dizer que ele reconhecia os argumentos usados pelos
“fundadores” para justificar suas posições sociais privilegiadas, apesar de seu pai não
ter se tornado um proprietário de terra.
Fundador era uma categoria usada igualmente pelos “indígenas nativos” que
viviam na região. Um exemplo é o dos filhos de um dos fundadores da “comunidade
nativa” que fica a uns vinte minutos a pé do povoado de La Florida. Como dito
anteriormente, pude conversar com sua filha (a “chefa” da comunidade) e que junto de
seus irmãos eram considerados os que tinham mais recursos entre os 60 “nativos” que
moravam nessa localidade, além de serem os únicos filiados à Cooperativa La
Florida.126 Ela relembrou o seu pai e o irmão dele como os fundadores deste território
que mais tarde seria registrado legalmente enquanto uma “comunidade nativa”. Ambos
trabalharam na sede da Peruvian Corporation: “os dois vieram para cá numa época na
qual os nativos só povoavam as margens dos rios e não conheciam os bosques”. “Eles
chegaram aqui por volta de 1960 e depois veio a colonização (andina)”, me disse. Os
colonos andinos teriam usado os dois como guias e se apoiaram neles para construir um
“acampamento de chegada” e a armação e o teto da primeira escola que existiu em La
Florida. Esses dois irmãos e mais outro parente acabaram conseguindo juntos 120
hectares com a Peruvian Corporation durante a “titulação” promovida por essa
companhia entre os colonos.
Muitos produtores com quem conversei me contaram que adquiriram suas
propriedades de um fundador do “povoado” ou “anexo” onde vivem. Alguns receberam
o terreno como pagamento pelos serviços prestados aos fundadores e outros compraram
126 Um nativo que acanhadamente participava da nossa conversa interrompeu o discurso da chefa e de uma maneira um pouco constrangida afirmou ter meio hectare e que vendia seu café para os “intermediários”. “O terreno não é bom para o café”, ponderou. Em seguida, ressaltou que “são muitos os requisitos para entrar na cooperativa”. Logo após reclamar dos políticos, assinalou: “saio para trabalhar como peão, para alimentar o lar”. Um dos irmãos da chefa o interrompeu e lhe disse: “dá para se trabalhar com meia quadra, é só fazer bem feito”.
118
parte ou a totalidade das terras de um desses pioneiros “colonizadores” da região. É
verdade que, num momento posterior à “fundação” de uma localidade, alguém pode ter
“agarrado” um pedaço de terra (ainda) “livre” (geralmente de difícil acesso e bastante
pendente) sem ter sido um fundador e, conseqüentemente, tê-lo vendido ou não. O
importante é ter em mente a carga simbólica em torno da figura do fundador dentro de
um contexto local mais amplo que incluem diversos anexos e alguns povoados. Isso
porque os míticos 50 “fundadores” da cooperativa são considerados figuras de destaque
nesse contexto. Trata-se tanto de um imaginário em torno de uma posição de destaque
ligada à colonização, que se perpetua através do fenômeno do cooperativismo, quanto
da continuidade de um reconhecimento ao redor das pessoas propriamente ditas que
ocupam essas posições.
A questão que surge dessa noção de “fundador” é a de que dar início a um
empreendimento qualquer nesse cenário é algo que proporciona bastante prestígio. Os
que primeiro plantaram café na região e conseguiram melhorar substancialmente suas
condições de vida são reconhecidos não apenas pelos seus logros, mas porque se
depararam com uma infra-estrutura (estradas e escolas, por exemplo) bem mais precária
do que aqueles que vieram depois. O mesmo vale para os sócios que iniciaram a
cooperativa e tiveram menos facilidades do que os que se filiaram quando esta já havia
se desenvolvido comercialmente e passado a oferecer uma ampla gama de serviços. Isso
também pode ser estendido para se pensar tanto os moradores “mais antigos” (mesmo
que não sejam fundadores) e os “mais novos” quanto os sócios que se filiaram num
determinado período e os que se filiaram posteriormente.
Existe uma percepção de que as coisas vão melhorando ao longo do tempo:
muitos peões se tornaram cafeicultores e os filhos de alguns destes chegaram até o
ensino superior. Isso é capaz de ser percebido, por exemplo, na família do agricultor,
119
citado anteriormente, que comprou um pedaço de terra num anexo mais afastado do
povoado de La Florida. Ele me disse que, assim que adquiriu o terreno, organizou um
grupo de oito pessoas para construir uma escola para seus filhos (o sofrimento com o
qual entrou em contato na serra teria lhe sensibilizado sobre a importância de ter de
educá-los). Ao produzir bastante café em sua propriedade, pôde então ter dinheiro
suficiente para educar seus dois filhos fora da área rural, como também para comprar
veículos automotores e com o tempo adquirir um total de sete lotes (de tamanhos
diversos) de terra.127 “Os outros (colonos produtores de café) não tiveram recursos ou
seus filhos não se interessavam mesmo pelos estudos”, afirmou e completou: “eu,
graças a Deus, e com muito esforço e consentimento dos meus filhos, consegui educá-
los”. Ele falou que nunca fez uma festa sequer, nem mesmo de aniversário; já os outros
colonos “festejavam com bandas e com orquestras”. Contou ter sido sempre reservado e
considerava as despesas com festas um “gasto inútil”. Muitos migrantes teriam
inclusive vendido suas chacras para realizarem esses eventos.
O “progresso” é algo que vêem não só no interior de suas famílias, como
também na infra-estrutura local que vai se tornando menos precária, apesar de estar
longe do ideal desejado pelos moradores.128 Outro fato relevante a respeito da percepção
da existência de um “avanço” é o reconhecimento da cooperativa dentro e fora do país.
Mas acontece que o esforço por detrás desses logros também conta. A colonização tanto
quanto a cooperativa se constituem num projeto coletivo onde cada um de seus
participantes é avaliado não só em relação ao que tirou desse projeto, como também do
127 Ele recordou com saudosismo os seus anos iniciais como produtor de café, período em que teve “bons ganhos”. 128 Não estamos diante de um contexto onde não há uma experiência generalizada em torno da modernidade. Também não se trata de uma vivência mais geral em torno de um declínio dela. Essa última situação aparece descrita e analisada no livro de James Ferguson (1999) a respeito do retrocesso econômico que se abateu sobre os mineiros da Zâmbia.
120
que nele colocou.129 Por exemplo, da perspectiva dos sócios que contribuem com o
dinheiro para que as máquinas aprimorem as estradas, os não-sócios que igualmente se
utilizam dessas pistas são vistos negativamente. Outro exemplo é o dos “sócios não
ativos” que apenas entregam seus cafés para a cooperativa quando isso lhes convém
economicamente.130 Em ambos os casos estamos diante de pessoas que, ao longo do
tempo, vão sendo vistas como meros “aproveitadores” e que acabam, desse modo,
reforçando sua exclusão de uma sociabilidade mais ampla entre as famílias cafeicultoras
(seja no dia-a-dia ou nas festividades locais, por exemplo). O presente vivido em
conjunto entre esses sujeitos não pode ser pensado separado de um passado igualmente
em comum. Para entender as suas experiências com a modernidade é preciso escutar
suas histórias e não só enquadrá-los naquilo que seriam as exigências do mundo
moderno (como é o caso do mercado de trabalho e o de café).
Reencontrei os sócios da cooperativa citados acima (a senhora e os indígenas
nativos), além de muitos outros que havia conhecido, numa assembléia dessa entidade
no final de 2006.131 Olhando a confraternização dessas pessoas após o término da
129 A Cooperativa La Florida é representada da seguinte maneira por seus membros na seção “noticias de nossas bases” da revista Café Perú de abril – setembro de 1982: “La Cooperativa ubicada en la margen izquierda del Rio Perené fue fundada el 30 Octubre de 1966 con cincuenta socios y actualmente es sin duda una de las más pujantes organizaciones asociativas de la provincia de Chanchamayo que le espera un gran futuro, por el esfuerzo y sacrificio que realizan constantemente y mayor mérito aún, porque todo lo que se ha hecho hasta ahora a sido sin ayuda alguna por parte del Estado.” 130 No final de 2006, a Cooperativa La Florida tinha em torno de 800 “sócios ativos” e 400 “sócios não ativos”. Para fazer parte do primeiro grupo era preciso que, durante pelo menos três anos seguidos, o sujeito entregasse seus cafés para a cooperativa de acordo com o montante estipulado anualmente pelos técnicos da organização. Os que ainda não tivessem cumprido esse “prazo de experiência” ou que, por ventura, deixaram de cumprir com seus compromissos, estavam excluídos de uma série de benefícios, como, por exemplo, o acesso a determinadas linhas de crédito, “voz e voto” em assembléias ordinárias, extra-ordinárias e reuniões dos chamados “comitês locais”. Essa classificação (sócios ativos e não- ativos), empregada pela La Florida, formalizava a visão nela corrente a respeito dos diferentes graus de fidelidade comercial dos associados para com a organização. Nesse sentido, a dicotomia representava dois “tipos ideais” de relação para com a cooperativa, ou seja, uma mais de longo prazo e não apenas comercial (sócio ativo) e outro de caráter mais mercantil (sócio não-ativo). 131 Re-encontrei, nesse evento, com a esposa do sócio, citado anteriormente, que havia comprado um pedaço de terra num local mais afastado do povoado de La Florida. Ela se mostrou uma pessoa bastante orgulhosa e contente perante os demais associados. Sua família era uma das que mais produziam café em seu anexo e uma das poucas cujos filhos haviam cursado o ensino superior, sem falar que a única loja da localidade onde viviam era justamente de propriedade dessa senhora e ficava dentro de sua casa. Seu marido era bastante cuidadoso com o cultivo e o processamento do grão, dada sua preocupação com a
121
assembléia (na qual estava presente a grande maioria dos 800 “sócios ativos”) é que se
percebe que a vida social em torno dos produtores se realiza principalmente através dos
encontros promovidos pela La Florida.132 Trata-se de uma ocasião onde a bebida e a
comida são abundantes, além de que nela são anunciados e premiados os produtores que
mais entregaram café e os que entregaram os grãos de melhor qualidade. É verdade que,
de um modo mais restrito, as famílias cafeicultoras cujas chacras se encontram num
mesmo anexo podem confraternizar nos aniversários dessas localidades, por exemplo.
Mas pelo que pude perceber, essa confraternização parecia envolver mais os membros
de algum dos 36 “comitês locais” da Cooperativa La Florida do que os moradores dos
anexos. Em outras palavras, a dispersão e o isolamento entre as famílias cafeicultoras
tendiam a ser quebrados, acima de tudo, por conta da cooperativa.
2.8 Comunidade como modernidade
Outro ponto importante é o de saber se essa experiência coletiva ao redor da
Cooperativa La Florida pode ser pensada como uma regra ou uma exceção entre os
cafeicultores da selva central. Da perspectiva dos seus sócios, certamente estamos
diante de um valoroso caso particular. A explicação que dão para o fato desta ser uma
das poucas cooperativas da região que continuou existindo ao longo de várias décadas
resvala invariavelmente no reconhecimento mútuo que sempre houve entre muitos de
seus associados. Existe uma representação destes produtores sobre o que seria uma
qualidade do produto que entregava à sua “tão querida cooperativa”; por isso era bastante crítico com os sócios que não cuidavam adequadamente dos cafés que entregavam à La Florida e que seriam conseqüentemente misturados ao seu. Não era à toa que seu filho, outrora funcionário desta organização, desejava que sua família e aqueles ao seu redor se desligassem dela e, desse modo, aproveitassem a possibilidade de que seus cafés, por serem de uma região de altura elevada, pudessem lhes render mais ao serem vendidos para outros compradores. 132 Vale ressaltar que os “sócios ativos” que não comparecem numa assembléia são penalizados financeiramente. Por outro lado, a cooperativa arca com o transporte até o evento e a comida e a bebida que são oferecidas depois do encerramento da assembléia.
122
excepcionalidade de suas relações e alguns chegam até a afirmar que são como uma
família. Eles dizem “vestir a camisa” da cooperativa e vêem com maus olhos os que não
adotam esse comportamento. Como exemplo dessa recriminação pode ser citado a
censura que recai sobre os sócios que não aprimoram a qualidade do café que entregam.
Um contraponto interessante a esta experiência coletiva é a comunidade
estudada por Robin Shoemaker (1981) na província de Satipo (uma das três províncias
que formam a selva central) ao longo do ano de 1974. A comunidade se chama Pérez
Godoy e foi “fundada” em 1961 por 28 colonos andinos (os “fundadores”) que afluíram
de diversas localidades da cordilheira até a região, logo após a reabertura de uma
estrada destruída em 1947 por um terremoto e única ligação viária com o restante do
país. “Most of the twenty-eight inmigrants who joined together in a kind of club called
Instituición Pérez Godoy had been in Satipo for over a year, working as farm laborers or
in other odd jobs while continuing to search for their own piece of land.” (idem p. 111)
Depois de algumas reuniões, eles decidiram ocupar uma área inutilizada, de
aproximadamente 1.000 hectares, pertencente a um comerciante descendente de
chineses, e próxima da capital da província. O argumento utilizado pelos migrantes,
para justificar a ocupação do terreno, era o de que seu proprietário o havia abandonado e
essa justificativa acabou sendo aceita pelas autoridades locais. Eles dividiram entre si o
território de maneira equitativa e receberam o apoio do governo na construção de uma
estrada, além de terem trabalhado conjuntamente em outras tarefas para o bem estar da
comunidade. Acontece que em 1966 o poder público interveio no local e dividiu as
terras desses colonos (até então cada família tinha 30 hectares) com outras 33 famílias
de migrantes também originários de diversas partes dos Andes.
The diverse ethnic origins of the settlers clearly establish, then, certain basic lines of cleavage in the colony. These social divisions are complicated by a variety of other factors. We have already seen how a fundamental split developed between the twenty-eight founding families of Pérez
123
Godoy and the thirty-six families who were resettled there by the Peruvian government. This division, a product of the colony´s reorganization crisis, continues to the present day. I often heard members of the founding group speak in disparaging terms of the “opportunists” and “land grabbers” who entered the colony with government backing. In the ten years since the reorganization scheme was carried out there has never been a full rapprochement between these two factions, even though the intensity of the conflict has gradually subsided. Rather, colonists tend to trace the contemporary problems of Pérez Godoy back to the reorganization, saying that this event precipitated a steady decline in community spirit. The reorganized colony has become, in effect, a loosely articulated series of peasant homesteads, a social whole by virtue of juxtaposition rather than mutual self-conception. (idem p. 131)
Shoemaker chama a atenção para o fato de não ter existido em Pérez Godoy
instituições como os “clubes regionais” encontrados entre os migrantes andinos que se
dirigiram até a capital do país e que, através desses clubes, puderam criar uma
identidade coletiva.133 A “desunião” dos membros da comunidade era inclusive o
principal argumento usado para explicarem o fracasso daquilo que seria o mais próximo
de uma instituição comunitária local: a associação de pais de alunos da escola onde seus
filhos estudavam. O autor conclui sua visão dizendo: “As the case of Pérez Godoy
illustrates, the question of how to submerge differences and disagreements within a
larger framework of common interests and concerns remains unanswered.” (idem p.
137) Em suma, a narrativa dos moradores e a de Shoemaker, a respeito da ausência de
um “progresso” dentro da comunidade, se apóiam no que vêem como a inexistência de
um destino comum sentido pelos colonos e esse mesmo sentimento estaria, segundo ele,
presente entre os demais habitantes da província. “With no vehicle for the expression
and pursuit of class-related goals, the bulk of Satipo´s inhabitants will remain where
they are today: on the treadmill of day-to-day survival.” (idem p. 171)
Não cabe aqui especular a respeito da duração e consistência de outras
comunidades de cafeicultores dentro da selva central. O que interessa é utilizar uma
133 “The regional club is essentially elitist, composed of well-adjusted and successful migrants. That they have united in regional associations is not a result of feelings of solidarity with the copaisanos [sic] of the homeland or in Lima, but is probably more a result of prestige motivations. The regional association offers the successful migrant the opportunity to measure his success against the standards of the ‘old world’ and to have ir recognized by his copaisanos in Lima and in the homeland.” (Shoemaker, 1981 p. 137 apud Jongking, 1974 p. 481)
124
vivência coletiva desse tipo para refletir sobre as experiências da modernidade entre
seus indivíduos. Se os moradores de Pérez Godoy pensam seu “atraso” como causado
principalmente pela desunião existente entre eles, os membros da Cooperativa La
Florida encaram seu “progresso” como, entre outras coisas, fruto da comunhão que
sentem entre si.134 Mas estes últimos também acreditam que uma comunhão dessa
abrangência não é apenas algo raro na selva central como é a principal razão (ou pelos
menos o elemento eminentemente autóctone) da vanguarda da cooperativa (e
conseqüentemente deles próprios) nessa região. Esse “sentimento de modernidade”
também é lembrado através da liderança política que exerciam entre as demais
organizações de cafeicultores do país durante os anos 70 e 80.
Tal sentimento igualmente aparece, por exemplo, expresso num texto de autoria
dos membros da La Florida e publicado na seção Notícias de Nuestras Bases da edição
de abril – setembro de 1982 da revista Café Perú.135 Evidentemente que, enquanto uma
publicação destina a um publico de fora, este artigo talvez representasse o ponto de vista
das pessoas envolvidas na burocracia da organização. De qualquer maneira, trata-se de
um texto que descreve um conjunto de projetos que estavam sendo colocados em prática
através da cooperativa. Três desses projetos (desenvolvimento viário, construção de 134 No seu livro intitulado Tropical Colonization: The case of Chanchamayo and Satipo in Peru, Peter Sjoholt (1988) analisa uma série de dados quantitativos referentes a duas províncias da selva central (Chanchamayo e Satipo) e que foram coletados em meados de 1981. A partir de um questionário aplicado a 60 famílias de uma comunidade local dessa região, este autor comenta o seguinte: “One of the most common complaints raised by key informants, were those of extreme individualism and lack of team spirit and solidarity among colonists. They are more interested in individual gain and expansion, often at the expense of their fellow-men rather than apt to consolidate and defend what has been created. This particular value pattern is said to be very different from that of the aboriginal population, who are more in a defense position. These groups find far more challenges in communal efforts than do the colonists, for whom there are few communal tasks with appeal. In the questionnaire to the households the colonists were asked to state what in their opinion were the main problems for their neighborhood. Lack of solidarity by far scored highest as a single complaint with about 30% of the responses. The score was even higher in the pioneering areas, but the number of cases were so low there that we should be careful in jumping to conclusions.” (idem p. 162) 135 Uma passagem deste texto diz o seguinte: “Son varios los proyectos que se han puesto en marcha en estos últimos años y todos merecen destacarlos, porque cada cual es importante y necesario en el desarrollo socio económico de la Florida y ninguno puede dejarse de lado, por la razón que éstos obedecen a un conjunto de necesidades que deben resolverse mediante el sistema cooperativo y a base de la voluntad y comprensión humana.”
125
uma planta de beneficiamento de café e instalação de uma serralheria) eram financiados
com dinheiro público e outro (montagem de “hortas escolares”) com recursos vindos do
exterior. Este último ainda contou com a assessoria do engenheiro suíço que morou em
La Florida no início da década.
Os sócios invariavelmente apontam que, nessa época (o começo dos anos 80),
viviam uma situação mais otimista do que a vivenciada em grande parte do país. Com
os altos preços internacionais do café ao longo dos últimos anos, vários destes
produtores haviam comprado seus veículos (jipes, camionetes e caminhões) e/ou
erguido um imóvel em algum centro urbano (que, em muitos casos, pôde ser usado
pelos seus filhos que vieram a cursar o segundo grau ou mesmo o ensino superior).
Comparado com os dias atuais, muitos se sentiam mais próximos de uma boa condição
de vida; tanto é que esses mesmos bens, especialmente os veículos, bastante distintos
em relação aos seus similares mais atuais, continuam sendo o que os cafeicultores
possuem de maior valor material (para além de suas casas e terrenos). Por outro lado, os
que tiveram a felicidade de ver seus filhos cursarem uma faculdade e, mais ainda,
arrumar um emprego relativamente bem remunerado e estável (como um cargo
importante numa cooperativa ou empresa, por exemplo), são considerados, hoje em dia,
bem mais sucedidos do que qualquer um ao seu redor.
Do ponto de vista da experiência coletiva em torno da cooperativa, o ano de
1986 seria marcado por um revés no seu gerenciamento, o que acabou implicando numa
dívida de US$ 600.000.136 No ano seguinte, Felix Marin (um dos filhos de Don Hector)
assume a gerência da La Florida (depois de três anos trabalhando no departamento
técnico) e consegue quitar seus empréstimos com os bancos em dois anos. Ele havia se
tornado sócio da cooperativa em 1984 e, logo em seguida, passou a trabalhar nela como
136 O gerente teria sido “enganado” por um comprador.
126
uma forma de realizar o estágio laboral necessário para receber o título de engenheiro
agrônomo da principal universidade de agronomia do Peru. Vale à pena ressaltar que
Felix era filho de um bem sucedido cafeicultor e pôde viver uma típica vida de um
jovem da classe média alta da capital do país.
Em 1990, já como gerente, ele vai até a suíça, numa viagem organizada pelo
engenheiro natural desse país que trabalhara na cooperativa no inicio dos anos 80. Felix
encontrou-se com seis representantes de empresas torrefadoras; cinco negaram qualquer
possibilidade de negócio por conta, de acordo com ele, da má imagem do Peru nos
mercados de café. Mas um destes que, ainda segundo Felix, não estaria a par dessa má
imagem, aceitou fazer negócios. Ambos acabaram fechando um contrato para que a
cooperativa entregasse dois contêineres de café.
Felix me disse que o que havia lhe impulsionado a ir até o exterior, para se
encontrar com os compradores de café, era que o sujeito ao qual a cooperativa
costumava vender seu produto se mostrava extremamente prepotente e condicionava
enormemente suas compras: “ele se pensava como um Deus e deixava os produtores
esperando um dia todo para atendê-los”. Durante essa primeira exportação da
cooperativa, e também a primeira de qualquer cooperativa peruana, os exportadores de
café teriam telefonado para o torrefador suíço dizendo que Felix o havia enganado. “As
grande multinacionais até me ameaçaram de morte”, me confessou e depois completou:
“aprendi que se tem que ir a feiras internacionais e também buscar financiamentos
internacionais”.137
137 É possível dizer que a vanguarda da cooperativa acabou desafiando o que Shoemaker (1981) chamou do “colonialismo interno” característico das relações comerciais no Peru: “If, under new civilian leadership, 900,000 additional families are to make a success of jungle settlement, the structure of internal colonialism must be dismantled along with the structure of foreign domination. Even if the dismantling of these structures proceeds only a step at a time, the steps must be coordinated in their internal and external dimensions.” (idem p. 252)
127
Em agosto de 1990, uma assembléia da cooperativa ratificou um projeto
elaborado por ele e que deveria ser implantado ao longo dos próximos anos a partir de
um financiamento suíço. Este projeto incluía (1) a instituição de uma representação da
La Florida nos portos de Hamburgo e Nova Iorque, (2) alcançar uma produção de
200.000 quintais de café entre os associados (até então produziam 45.000 quintais) e
diferenciar o grão de acordo com cada um dos “comitês” (como uma forma de estimular
o aprimoramento de sua qualidade), (3) a construção de casas através da serralheria da
cooperativa, (4) a criação de um hotel em La Merced e (5) erguer um colégio nos
moldes de uma instituição de ensino que Felix conheceu na suíça. Contudo, esse plano
jamais veio a ser colocado em prática.
2.9 O ocaso e a “refundação” da cooperativa
No ano de 1989, o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso havia convidado Felix
para ser o seu líder no departamento de Junín. Desde o ano anterior, esses insurgentes
lhe diziam querer reproduzir o modelo da La Florida por todo o país. “Eu convivia com
os terroristas para eles não se meterem na cooperativa”, ressaltou (a polícia inclusive
freqüentemente questionava-o a respeito dos motivos pelos quais entrava e saia
tranquilamente da região então dominada pelo Sendero Luminoso). Segundo ele, ao
tomar conhecimento de que membros desse grupo estavam estuprando diversas jovens
da selva central, isso o levou a se contrapor ao movimento. A reação deles foi então a de
se opor violentamente à cooperativa.
Nessa época, o presidente da La Florida era o filho mais velho da senhora
destacada nas páginas anteriores. Na minha conversa (reproduzida parcialmente numa
seção anterior) com outro filho dela, este comentou que, com o “desenvolvimento da
128
cooperativa”, haviam construído a segunda maior serraria da província de
Chanchamayo, comprado geradores, montado duas cisternas e adquirido máquinas
secadoras de café. O povoado chegou a receber uma filial do Banco Agrário (então
principal instituição pública de fomento da agricultura), restaurantes e hotéis. Quando o
pueblo de La Florida e seus arredores estavam prestes a se tornar um distrito, teve início
a “subversão”.
No começo, a situação não seria tão tensa: “um dia seis terroristas chegaram
aqui, tinham deixado suas armas no rio e vieram jogar futebol, conversaram comigo,
convidei um deles para o almoço e lhe dei um par de pilhas”. Contudo, em agosto de
1988, os guerrilheiros lhe ameaçaram com uma arma no seu rosto e, ao fugir, conseguiu
se esquivar dos tiros que vieram em sua direção. “Por conta disso é que meu carro se
chama bala”, ironizou. Algumas semanas depois, estes mesmos sujeitos dinamitaram
seu automóvel dentro de sua garagem; seus filhos e esposa estavam dormindo nessa
ocasião e, diante da explosão, as portas e as janelas da casa quebraram e o mais jovem
deles acabou ficando com problemas de audição. Em dezembro desse ano, mudaram
para a cidade andina de Tarma por pressão de sua mulher.
Acontece que, como assinalado anteriormente, ele era tenente-governador do
pueblo de La Florida e dado que “costumava castigar os delinqüentes” teria que, de um
modo ou de outro, abandonar o povoado. Isso porque, segundo ele, “os delinqüentes
viraram terroristas”. Estes passaram a requisitar dinheiro de seu irmão mais velho, “o
qual era rico”. No dia 27 de setembro de 1990, os guerrilheiros colocaram esse último
(que havia se recusado a se submeter a estes indivíduos) e mais seis pessoas enfileiradas
em frente a um imóvel que fica ao lado da casa onde este meu interlocutor vive
atualmente. Os “terroristas” teriam procurado pela diretora do colégio, mas como não a
encontraram, acabaram incluindo nesse ato bárbaro uma freira bastante idosa que
129
trabalhava como cozinheira no convento que existia no pueblo.138 As marcas das balas
que lhes foram dirigidas continuam presentes no muro.
Nas semanas seguintes, os membros do Sendero Luminoso dinamitaram a infra-
estrutura que havia sido adquirida pela cooperativa. Diante desse cenário desolador, não
é de se estranhar que “duas ou três famílias ficaram no povoado”, segundo ele. Isso se
repetiu por toda a região, com os produtores fugindo para os centros urbanos,
principalmente depois de terem tomado conhecimento do ato bárbaro do dia 27 de
setembro de 1990, mas também por conta de outros assassinatos perpetrados não só
pelos guerrilheiros como também pelo exército.
A cooperativa acabou terminando esse ano sem pagar US$ 300.000 em dívidas,
de acordo com Felix Marin. No seu entender, este descumprimento dos compromissos
com os bancos resultaria na “segunda quebra” da La Florida. A primeira teria se dado
em 1987 e fora contornada durante sua gestão como gerente. Ele deixou esse cargo
justamente em 1990, mas permaneceu “assessorando” a cooperativa ao longo da década.
Um grupo de mais ou menos 50 produtores, muitos dos quais seus fundadores,
continuou entregando seus cafés para essa entidade durante grande parte da primeira
metade dos anos 90: “praticamente os mesmo que fundaram a cooperativa a re-
fundaram”, me disse um deles.139 Nessa época, os agricultores se arriscavam adentrando
na região durante a colheita para depois voltar sorrateiramente até a sede da organização
em La Merced. Os poucos que permaneceram contam que não tinham para onde ir e que
138 No texto de autoria dos membros da La Florida, publicado na seção Notícias de Nuestras Bases da edição de abril – setembro de 1982 da revista Café Perú, também se lê: “Ha surgido la idea de formar Cooperativas Escolares en base a estas primeras experiencias de los huertos; para ello se cuenta con el apoyo de las Hermanas de la Congregación del Bueno Pastor, una de ellas la Hermana María Luisa que ocupa la Dirección del Centro Educativa de La Florida, conjuntamente con todos los profesores, iniciativa que debe concretarse después de los estudios preliminares y conocer los requisitos que se exigen por parte del Ministerio de Educación.” 139 De acordo com Felix, em 1991 os sócios da La Florida entregaram à cooperativa 2.000 quintais de café e só receberam o dinheiro depois que os grãos foram vendidos. Em 1992, foram entregues, desse mesmo modo, 2.500 quintais e, em 1993, 3.000. Essa última quantidade praticamente se repetiu no ano seguinte, com os produtores igualmente sendo pagos somente após as vendas. Vale ressaltar que em 1989 a cooperativa havia comercializado mais de 45 mil quintais e tinha por volta de 1.000 sócios.
130
tiveram que “jogar” com o exército e com os “terroristas” para sobreviver (diziam para
os guerrilheiros que não tinham visto ninguém do exército quando perguntados e vice-
versa). A maioria dos que ficaram não entregavam seus cafés para a La Florida, pois
isso não era bem visto pelos insurgentes. A exceção foram uns dois ou três produtores
“que se mantiveram escondidos nos montes”.
Felix inicialmente assessorou os sócios através de reuniões “clandestinas” em
Lima (dado que, assim como outros produtores, estava “jurado de morte” pelos
guerrilheiros do Sendero Luminoso). Ele me disse que desde essa época tinha certeza de
que “um dia todo esse esforço ia ser reconhecido internacionalmente”. Também se
sentia motivado não só pelo fato de muito dos agricultores que participavam destas
reuniões “terem ajudado seu pai” (enquanto obreros), mas porque “se solidarizava com
o amor deles pela cooperativa”.
Tal como informa a edição de fevereiro de 2004 da revista El Cafetalero, a
Cooperativa La Florida voltou, em 1994, a realizar suas assembléias no povoado que
leva o seu nome, algo que não fazia desde 1990. Ainda segundo essa publicação, a La
Florida “experimentó su recuperación a partir de 1995”. Nesse ano, ela comercializou
11.000 quintais de café, quase o triplo do que vinha vendendo nos anos anterior.
Acontece que, em 1995, a cooperativa passou a contar com empréstimos da organização
não-governamental belga SOS Faim e que deveriam servir para regularizar suas relações
com os bancos que forneciam os recursos para que pudesse pagar os produtores logo
que entregassem o café. Entretanto, estes empréstimos não foram capazes de permitir
que cumprisse com todos os seus compromissos com as instituições financeiras.
Em 1996, as reuniões de Felix com os sócios da cooperativa deixaram de ser
feitas “clandestinamente”, segundo ele. Mas nessa época, a incapacidade dessa
organização em honrar suas dívidas chegou ao limite. Isso porque era iminente o
131
confisco de seus bens que haviam sido oferecidos aos bancos como garantia dos
empréstimos. Diante dessa situação e do término, nesse mesmo ano, da gestão do
segundo gerente que o havia sucedido, Felix se voltou para um jovem funcionário da La
Florida e lhe disse: “Cesar, você é a nossa última carta”.
Acontece que Felix, ainda durante sua gerência, tinha “capacitado” 12 filhos de
sócios para que um destes pudesse comandar a cooperativa em seu lugar. Tratava-se de
uma “capacitação” para a qual 100 destes jovens se inscreveram. Cesar foi quem, aos
olhos dele, acabou se mostrando o mais adequado para ocupar esse cargo. Ele havia
cursado uma faculdade de administração de empresas em Lima e ido trabalhar na La
Florida logo depois de terminado o curso.140 Chegou a acompanhar Felix em sete feiras
internacionais: “no começo Cesar sofreu muito com o idioma, com o clima e a
alimentação”, comentou Felix e completou: “fiz com que ele desenvolvesse sua auto-
estima ao lhe obrigar a falar com os compradores”. Porém, Cesar recusou diversas
propostas para assumir a gerência da cooperativa nos anos que se seguiram à saída de
Felix, apesar de ter permanecido trabalhando nela.
“Num momento em que não restava mais nada a não ser a liquidação da
cooperativa, aceitei ocupar o cargo de gerente, mas com certas condições”, me disse
Cesar durante uma conversa em seu escritório. Ele afirmou que deu aos sócios duas
opções: “a primeira era o caminho do cooperativismo, necessitaria de 100% de
comprometimento dos produtores e seu retorno seria a longo prazo; a segunda, a
aplicação de um projeto empresarial, estaria dando retorno em quatro anos”. De acordo
com ele, “51% dos sócios aprovaram o segundo plano e esse plano acabou sendo
140 Os pais de Cesar são sócios da cooperativa desde meados da década de 70 e o haviam mandado, no começo dos anos 80, para uma cidade andina tendo em vista a realização de seus estudos secundários. Depois de terminar o segundo grau, se dirigiu para a capital do país, onde cursou o ensino superior e, no final desta última década, passou a trabalhar no escritório da La Florida em Lima.
132
realizado em dois anos, isso porque com financiamentos solidários do exterior e com os
novos mercados foi possível reduzir os custos rapidamente”.
Já no seu primeiro ano como gerente, a cooperativa havia terminado “no azul”,
isto é, sem dívidas com os bancos, por conta principalmente de um empréstimo de US$
170.000 que fora conseguido no ano anterior, por intermédio do engenheiro suíço que
trabalhara na La Florida, e que deveria ser pago em cinco anos, mas sem qualquer tipo
de juros. Ainda em 1997, venderam 5% dos seus cafés através do comércio justo
regulado pela FLO.141 “No segundo ano vendemos 15%, no terceiro 20% e o volume foi
crescendo. Mas a busca de mercado, cooperação técnica e financiamento para
comercializar só nos ajudou porque tínhamos um plano”, afirmou ele que considerava
crucial o fato de ter convivido, durante a faculdade, com professores que ensinavam
“como um empresa moderna deve atuar”, ou seja, através da “redução de seus custos”
enquanto uma forma de ser “competitiva”. “Foi isso que nos salvou”, me disse.
2.10 Identidades e diferenças
Apesar de discordar em alguns pontos da gestão de Cesar na cooperativa, em
especial, o que chamou de uma “debilidade na parte social”, Felix me dizia que se não
fosse a competência desse seu atual gerente, a La Florida não teria alcançado o
reconhecimento dentro e fora do país que os sócios tanto prezavam. Em grande medida,
141 De acordo com suas próprias palavras: “El 97 asumo la gerencia de la cooperativa y empezamos a cambiar todo el sistema comercial. En esa época, en el Perú solo se exportaba café por volumen, pero en el mundo estaba apareciendo este café especial, relacionado con el medio ambiente, con el desarrollo sostenible: los exportadores no hacían nada por desarrollar este café. Así que buscamos apoyo de la cooperación técnica belga – que nos ha apoyado mucho -, y los productores empezamos a participar directamente en las ferias mundiales. En las ferias hicimos contactos y hasta desarrollamos ideas de marketing con los mismos clientes. Ellos nos preguntaban: ‘Podemos sacar una marca con esto?’. Nosotros decíamos: ‘Si podemos. Hay cantidad de café que les podemos proveer, nos les vamos a fallar’. Ahora tenemos cantidad de clientes, y con ellos hemos ido desarrollando marcas. Ese mismo camino lo han seguido muchas cooperativas, la gran mayoría. Y hoy el Perú es el primer productor mundial de café orgánico”. (Rivas, 2009 p. 9-10)
133
esse prestígio era visto ou justificado de uma perspectiva ou “cidade” (Boltanski &
Chiapello, 2009) mercantil. Em outras palavras, era notadamente derivado de uma
reputação num mercado: o comércio justo. Essa reputação é capaz de ser entendida
como a confiança que os compradores depositavam em Cesar. Mas esse filho de sócios
também era julgado de um ponto de vista moral ou, para usar mais uma vez a
terminologia destes autores, de uma “cidade doméstica” (idem).
Como dito anteriormente, Peter Luetchford (2007) encontrou uma situação
aparentemente semelhante na Costa Rica. Tratava-se de uma cooperativa onde o seu
sucesso comercial era visto de modo ambivalente pelos produtores, na medida em que
também a julgavam a partir de uma “esfera moral” na qual qualquer intermediação da
comercialização de seus cafés podia ser vista negativamente. Mas no âmbito da
Cooperativa La Florida, não estava em jogo apenas a existência de duas dimensões, uma
de ordem moral e outra de ordem comercial, que serviam de referência para os
produtores julgarem as ações do gerente e dos demais funcionários. Elas também
podiam ser avaliadas com base num referencial que englobava essas duas dimensões: o
campo semântico da modernidade. Dessa perspectiva outra dicotomia parecia vir à tona:
a da parte e o todo. Isso porque eram capazes de pensar o “progresso” ou
“desenvolvimento” tanto individual quanto coletivo, pois viam o segundo como um
meio privilegiado para se atingir o primeiro.
Num contexto mais geral bastante precário e dominado por relações mercantis,
como é o caso da selva central, não é de se estranhar que a união entre os membros da
Cooperativa La Florida se destaque enquanto um capital crucial para o que vêem como
seu “desenvolvimento” coletivo e individual. Mas essa mesma união pode servir de base
para criticarem o modo como a dimensão coletiva desse desenvolvimento é gerenciada.
134
Isso ficava evidente quando acusavam a atual gerência da cooperativa de ter uma visão
voltada mais para o “comercial” (mercado) do que para o “social” (os produtores).
Ao longo do meu trabalho de campo, o descompasso entre o suposto sucesso
comercial da La Florida e a suposta situação precária de seus associados era um
argumento usado por muitos destes agricultores e outros indivíduos no seu entorno para
sustentarem suas discordâncias em relação à cooperativa.142 O discurso em torno da
necessidade dela ser “competitiva” (dito freqüentemente pelo seu gerente) era visto
como tão legítimo quanto as considerações sobre a importância de ter o reconhecimento
de sua “base social” (Cesar igualmente reconhecia isso). Em outras palavras, existia um
senso comum de que deveria haver um “equilíbrio entre a parte social e a parte
comercial” de qualquer organização de cafeicultores.
Como assinalado antes, durante minha estadia entre os sócios da La Florida, o
que mais ouvi deles era que a cooperativa estava “mais ou menos”. Muitos reclamavam
de que os solos estavam ruins, as plantações velhas e que não havia dinheiro da
cooperativa para melhorar essa situação, apenas para o crédito de pré-colheita (usado
principalmente para pagar os obreros).143 Existia um consenso de que a La Florida
estava forte na “parte comercial”, mas faltava melhorar as condições produtivas dos
sócios para poderem aproveitar melhor os preços relativamente altos que vinham
conseguindo através principalmente do comércio justo.
Como também foi dito anteriormente, eles ganharam um concurso público em
2008 que lhes renderam US$ 4.9 milhões para a renovação dos seus cafezais. Meu
trabalho de campo entre esses agricultores se deu até dezembro de 2006; não pude então
acompanhar de perto a reverberação disso entre os sócios. Certamente trata-se de mais
um capítulo na história de dificuldades e superações dos cafeicultores da La Florida. É
142 Vale ressaltar que vários diziam, num tom acusatório, que “a cooperativa se tornou uma empresa”. 143 Também reclamavam dos juros cobrados pela La Florida, apesar de serem os menores da região.
135
bem provável que os que continuaram “fiéis à cooperativa”, antes desse financiamento,
tiveram um motivo (a mais, no caso de muitos) para se destacarem perante os que a
abandonaram em busca de melhores preços ou que foram extremamente críticos (para
além da visão crítica e autocrítica de grande parte dos associados). Como me disse um
reconhecido produtor: “eu não posso fazer oposição ao gerente, pois sou apaixonado
pela minha cooperativa.”
Aquilo que presenciei durante meu trabalho de campo, dentro do “raio de ação”
desta cooperativa, não pode então ser entendido sem levar em conta uma história de
longa duração que pauta a vida de muitas das pessoas que vivem ou transitam nesse
território. A raridade dessa experiência coletiva não é derivada exclusivamente do
reconhecimento externo que lhe é dirigida atualmente, como também é fruto das
percepções que os próprios produtores têm dos meios que consideram adequados para
atingir o que vêem como uma melhor condição de vida. Ao se darem conta de que se
não fossem “zonais” (restritos a um território circunscrito) a La Florida talvez não
tivesse sobrevivido, estavam conscientes da importância de terem se mantidos
comprometidos com o “desenvolvimento” dessa instituição.
Juntos eles “progrediram” de uma maneira excepcional até a chegada dos
“terroristas” e, a despeito da tragédia que os abateu diante da incursão destes
guerrilheiros, prevalece hoje em dia, apesar das críticas que possam ser feitas à
cooperativa, a visão do “progresso” de uma organização de cafeicultores enquanto algo
historicamente possível. O passado, e não apenas o presente, lhes ensina que
comunidade pode significar um meio para se atingir uma melhor condição de vida, ou
seja, é possível dizer que a vêem como parte do campo semântico da modernidade. Essa
percepção positiva da “união dos produtores” atravessa as distintas gerações de pessoas
ligadas à La Florida.
136
Por um lado, essa visão parece ir de encontro com as noções que em outros
lugares são comumente associadas ao campo semântico da modernidade, como é o caso,
por exemplo, das concepções ao redor do que se convencionou chamar de
“individualismo”. Para eles o sócio que se comporta em relação à cooperativa pensando
apenas no seu próprio interesse é visto negativamente e classificado como um
“aproveitador”. Contudo, é preciso ter claro que a identidade coletiva entre esses
sujeitos não excluía uma diversidade de experiências em relação ao ideal de ascensão
social que compartilhavam. Isso porque o desenvolvimento coletivo era visto como um
entre outros meios (como é o caso do sistema educacional, por exemplo) para o
progresso dos cafeicultores.
Como o capítulo seguinte procura mostrar, assim como os significados a respeito
do “desenvolvimento” da La Florida se transformavam ao longo do tempo (haja vista a
necessidade atual de ser “competitiva”), os sentidos da ascensão social igualmente
variavam. Por exemplo, se é verdade que a educação é um valor dominante entre os
produtores hoje em dia, quando os preços do café eram bem altos e os solos produziam
bastante muitos agricultores não viam razão de ter seus filhos trabalhando fora da
cafeicultura. Se no passado a produção do grão e a posse de veículos eram elementos
cruciais na diferenciação entre os cafeicultores, atualmente os que priorizaram o que
chamam de “investimento” na educação de seus descendentes são os que se destacam
perante os demais.
O filho do produtor, citado anteriormente, que comprou um pedaço de terra num
local mais afastando do povoado de La Florida, me contou sobre o fato de seu pai
sempre ter se preocupado e priorizado a educação de seus filhos. Ele falou com desdém
de um ex-presidente da cooperativa que adquiriu uma van (perua) para seu filho
trabalhar, em vez de “investir na sua educação”. Afirmou também que muitos dos
137
amigos de seu pai, que antes se encontravam numa melhor situação do que a dele,
estariam agora “arruinados”. Isso porque, segundo ele, estes teriam se dedicado em
demasia “à diversão”. “A grande maioria aqui se dedica ao álcool”, disse. Em seguida,
comentou comigo a respeito do problema que se pai vinha tendo com a bebida ao longo
dos últimos anos, o qual depois das internações que seus filhos o submeteram lhes disse
ter o direito de “aproveitar a vida” depois de ter sido bem sucedido em seu trabalho, ter
educado seus filhos e os deixado suas propriedades.
Esse sujeito com quem conversei, e do qual fiquei bastante próximo, estudou
numa universidade situada numa cidade localizada em outra província da selva central e
havia se casado com uma jovem descendente de colonos alemães que viviam ou
viveram nessa província. Mas assim como outros filhos de sócio da La Florida e amigos
seus de infância, ele estava bastante aberto para as novas tendências de comportamento
e de consumo, por exemplo, que haviam surgido recentemente entre a classe média
peruana. É possível dizer que ele fazia parte, ao lado desses seus amigos, de um grupo
de pessoas bastante afim com as disposições típicas dos jovens dessa camada social.
Ele era filho de um produtor que conseguiu proporcionar aos seus filhos o acesso ao
ensino superior e a um imóvel na principal cidade da selva central (onde ele montou um
estabelecimento de acesso a internet).144
Certamente que a educação e uma ética ascética de trabalho são valores de longa
duração que estão intimamente relacionados com as visões de “progresso” individual e
coletivo dentro de uma sociedade organizada, em grande medida, com base em relações
mercantis e numa racionalidade econômica. Por outro lado, não nos deve estranhar o 144 Cada vez mais e mais estabelecimentos de acesso a internet estavam sendo criados em La Merced durante a segunda metade da década de 2000. Um outrora dono de um desses estabelecimentos me informou, em 2008, que ele teve que deixar a cidade esse ano e migrar para o exterior por conta justamente da impossibilidade de continuar mantendo o padrão de vida da sua família diante do número cada vez menor de clientes que recebia. Nas palavras de Francisco Durand (2004 p. 444), a respeito da economia peruana contemporânea: “La explosión demográfica y la escasa oferta de empleo bien pagado y estable hacen del asalariado un sector minoritario de la fuerza laboral. Para sobrevivir, la mayoría se vuelca al autoempleo o a ‘hacer empresa’ con familiares, logrando salir adelante unos pocos.”
138
fato de muitos dos filhos de sócios não buscarem dar continuidade aos esforços de seus
pais em prol da cooperativa. Isso porque a ascensão social dessa geração mais nova
pode, em algum momento, prescindir desta instituição. A verdade é que os colonos
migraram para a selva em busca de uma vida melhor para suas respectivas famílias e
não tendo em vista o desenvolvimento de uma cooperativa.145 Este último processo
acabou se configurando como uma conseqüência do primeiro.
A distinção entre os produtores encontrava na cooperativa um contexto dentro
do qual podia ser reconhecida; mesmo porque, no plano local dos anexos, os
agricultores que ascendiam socialmente poderiam não encontrar um número
considerado por eles suficiente de pessoas que estivessem vivenciando tão
positivamente esse mesmo processo de ascensão. Para além de sua importância
econômica, a Cooperativa La Florida se constituiu num ambiente onde alguém que
conseguiu passar de peão para cafeicultor era valorizado de igual para igual; mais ainda
caso tivesse proporcionado aos seus filhos as condições para o acesso a um trabalho que
garantisse uma vida financeiramente mais estável do que a de produtor de café. Alguns
desses jovens acabaram acessando um meio social, a classe média urbana, que operava
mediante outros referenciais do que aqueles vigentes entre a maioria dos produtores
reunidos através da cooperativa. De qualquer maneira, eles estavam dando continuidade
ao processo de ascensão social vivido pelos seus pais.
2.11 O sucesso da cooperativa através do comércio justo
Pode-se dizer que o acesso pioneiro da La Florida ao comércio justo reforçou a
imagem que seus sócios fazem dela e, conseqüentemente, de si próprios, como
145 Num estudo sobre uma comunidade andina do departamento de Andahuaylas, o antropólogo Ronald Berg diz o seguinte: “People in Pacucha recognize the household, not the individual or a wider descent group, as the basic social unit. Most households consist of a nuclear family, i.e. a married couple and their unmarried children.” (Berg, 1984 p. 204)
139
referenciais para os demais produtores de café da selva central. Em boa medida, esse
sucesso é creditado ao seu atual gerente. Não é à toa que Cesar ocupe atualmente o
cargo de presidente da Junta Nacional do Café (JNC), isto é, do grêmio das
organizações peruanas de cafeicultores. Em outras palavras, a Cooperativa La Florida se
tornou um modelo, não só entre os produtores da selva central, mas de outros cantos do
país, na medida em que este filho de um de seus sócios se destacou perante os
compradores de café certificado pela FLO. Esse destaque era algo extremamente
valorizado, pois o acesso a estes compradores era o ideal de qualquer uma das
organizações que participavam da JNC.
A criação deste grêmio, em 1993, foi capitaneada pelas quatro das cinco centrais
de cooperativas que igualmente haviam formado a Federação Nacional de Cooperativas
Agrárias Cafeicultoras do Peru (FENCOCAFE).146 A JNC representou uma maneira de
congregar os cafeicultores peruanos em torno do que poderia ser colocado como uma
saída para a dramática situação que vinham enfrentando desde o final dos anos 80 e que
era marcada, de maneira especial, pela queda vertiginosa e prolongada nos preços do
café, pelo fim do apoio estatal ao cooperativismo e pelos conflitos derivados da
insurreição dos grupos guerrilheiros de extrema-esquerda.
Em 2005, a JNC contava com 27 “sócios”, sendo sete deles centrais de
organizações de produtores, seis associações e 14 cooperativas, totalizando 36.242
produtores de café. Destes 27 associados, 23 deles exportaram diretamente seus cafés,
principalmente através do comércio justo, representando 19% das vendas externas do
produto, com um preço médio de US$ 119,73 a saca ou 21% acima da média nacional 146 “En 1993, como fruto del esfuerzo de las centrales sobrevivientes, se funda la Junta Nacional del Café (JNC). Este organismo se crea luego de la caída de Fencocafé, el combativo gremio del sector cafetalero creado en 1978, al que algunos critican haber peleado sólo por conseguir cuotas, negociar el crédito y evitar el impuesto a la exportación del café. Según Lorenzo Castillo, gerente de la JNC, el desarrollo estratégico no formó parte de la agenda de ese gremio, un aspecto que se quiso cambiar con la creación de la Junta.” (Simatovic, 2007) As centrais que criaram a JNC foram: Café Peru, CECOVASA, COCLA e Nor Oriente.
140
das 74 instituições (privadas e organizações de produtores) que exportaram café.
(Castillo, 2006) Vale ressaltar que, em 1989, com o final do Acordo Internacional do
Café, os preços internacionais da saca do grão chegaram a cair de US$ 140 para US$
76. A partir da segunda metade da década seguinte houve uma retomada, mas de 1999
em diante a queda seria brusca, com a saca atingindo seu menor valor (US$ 35) na
metade de 2002.
No caso da Cooperativa La Florida, ela exportou, em 2005, um total de US$
4.239.312 em café, com um preço médio por saca de US$ 114,28. (JNC, 2005) Segundo
me disse seu gerente, ao exportar uma saca de café a um custo médio de US$ 14, a La
Florida atingiu um patamar de custo semelhante ao das empresas privadas exportadoras,
que varia entre US$ 12 e 14. Conseqüentemente, poderia ser capaz de oferecer pelo café
“convencional” os mesmos preços que estas empresas costumavam pagar sem incorrer
em prejuízo.147 Em se tratando das organizações de produtores de café, elas teriam
custos de exportação geralmente acima de US$ 18. Ao ter cursado, de acordo com suas
próprias palavras, o “melhor lugar para se estudar administração no Peru”, Cesar pôde,
como já foi dito, entrar em contato com “professores que trabalhavam em grandes
empresas privadas” e “com base nas experiências deles” foi capaz de aprender “na
prática” como uma empresa “moderna” deve atuar.
É possível afirmar que, no âmbito da JNC, impera uma visão de que a melhoria
nos serviços prestados aos agricultores deve vir após suas organizações estarem
devidamente preparadas para competir fora dos mercados de nicho. Isso porque uma
grande quantidade de café só poderia ser comercializada através do chamado mercado
147 “Os produtores sempre querem o melhor preço; temos que ser competitivos, o produtor quer o melhor preço e serviço, só 10% é estritamente fiel”, comentou comigo Cesar. “O comércio justo é uma oportunidade, deve primeiro ser aproveitado para fortalecer a relação da cooperativa com o mercado e posicionar um café de qualidade; caso o comércio justo desapareça, tomara que não, mas se isso acontecer o que importa é a qualidade do café, ser competitivo, estar num mercado e ter boa infra-estrutura, é importante se ter um horizonte sobre o que vai acontecer daqui a 20 anos.”, me disse.
141
convencional. Suas organizações devem então se preparar para competir com as
“empresas privadas” pela exportação do café comumente negociado no país. Dito de
outro modo, a dependência excessiva dos mercados de “cafés especiais” deve ser um
fenômeno passageiro, tendo em vista a obtenção de uma infra-estrutura capaz de
permitir uma participação, sem prejuízos, num mercado dominado por essas entidades.
Tal como aparece na página da Junta, “la Visión de la JNC al 2015 es ser reconocida
como una organización de cafetaleros competitivos en el mercado y actores del
desarrollo regional y nacional.” Segundo o que disse Cesar, enquanto presidente da
JNC, num encontro de 2006 destinado aos jovens cafeicultores das suas organizações de
base:
Quando as organizações estão se reativando, muitos líderes pedem para as cooperativas pensarem a parte social. O que vou dizer eu disse há 15 anos na minha cooperativa e a cinco na Cooperativa Satipo. Quando você vê um mendigo com fome, você tem pena dele; se você tem um pão no bolso, você dá para ele, se não tem, não pode fazer nada. Primeiro temos que ordenar a casa, fazer a empresa funcionar bem, depois podemos brindar os serviços aos associados.
Conversando com Cesar, logo após sua fala nesse encontro, ele comentou
comigo uma diferença, no seu entender fundamental, entre a La Florida e a Central
Piurana de Cafeicultores (CEPICAFE).148 A primeira teria atingido um “nível mais alto
de competitividade” do que a última, na medida em que seus custos administrativos
seriam custeados com as vendas de café. A CEPICAFE, por sua vez, ainda dependeria
148 Durante sua fala ele havia dito que “a COCLA é um verdadeiro exemplo para nós”. Vale ressaltar que, incluindo as empresas privadas (de capital nacional ou internacional) e organizações de produtores, a COCLA ficou em quarto lugar no ano de 2005 entre as entidades que mais arrecadaram com a exportação de café (as outras três primeiras eram empresas privadas). A Cooperativa La Florida ficou em décimo terceiro lugar e a Corporação Café Peru em décimo quinto. As outras organizações de produtores que ficaram entre as vinte primeiras entidades exportadoras foram a Central de Cooperativas Agrárias Cafeicultoras do Vale de Sandia (CECOVASA), em décimo segundo lugar, e a CEPICAFE, em décimo oitavo. De acordo com Cesar, seu gerenciamento da Corporação Café Peru (uma entidade capitaneada pela La Florida) busca capitalizá-la através do comércio justo, dado que somente uma organização de segundo grau seria verdadeiramente capaz de competir pelos primeiros lugares entre todos aqueles que exportam café no Peru. Em 2005, a Corporação Café Peru exportou US$ 3.931.594; US$ 140 por quintal, ou seja, ela praticamente teve um preço médio de suas vendas em torno dos valores pagos (US$ 141, na ocasião) dentro do comercio justo regulado pela FLO. (JNC, 2005)
142
de doações para custear sua assistência técnica. Se, de um lado, a Cooperativa La
Florida venderia 60% de seu café certificado como orgânico e através do comércio
justo, de outro, os 40% restantes seriam exportados como convencionais. Como disse o
representante da CEPICAFE nesse mesmo evento destinado aos jovens cafeicultores: “o
comércio justo nos deu estabilidade para conquistar o produtor, para ele ter fé na
organização, mas o desafio é como competir no mercado convencional”.
O acesso a bons preços através do comércio justo pôde garantir a muitos
cafeicultores peruanos uma das condições vigentes entre eles durante a época dourada
da cafeicultura no país: os anos 70 e 80. Mas acontece que, nesse período, além do valor
alto e constante do café (geralmente ao redor de US$ 150), também se deparavam com
um cenário onde os cafezais eram relativamente novos e os solos ainda não se
encontravam desgastados. Em outras palavras, os preços e a “produtividade” das
plantações eram considerados igualmente elevados. É a essa conjuntura que os
produtores creditam, para além de seus esforços, as razões de muitos deles terem podido
dispor de certos bens, como imóveis e veículos, por exemplo, mas principalmente o
motivo de seus filhos haverem progredido no sistema educacional. Isso porque as
instituições de ensino, notadamente no caso das faculdades, se encontravam, e ainda se
encontram, distantes do espaço rural e, conseqüentemente, custava e continua custando
caro para um cafeicultor manter alguém estudando nelas.
Não é então sem razão que a JNC passasse a demandar do governo uma política
em prol da renovação dos cafezais, na medida em que as cooperativas alegavam não ter
os recursos necessários para essa revitalização. Essa demanda ganhou força a partir da
segunda metade da década de 2010; na primeira metade dessa década a questão era a
luta (que acabou se mostrando em vão) para a criação de um “fundo público de
estabilização para os preços do café”. A capa da edição da revista da Junta, chamada El
143
Cafetalero, tinha como título na edição de novembro de 2008: Ahora, a trabajar el Plan
Nacional del Café. Este plano pleiteava justamente a alocação de recursos públicos para
a renovação dos cafezais peruanos. A capa da edição seguinte, de setembro de 2009,
deu continuidade a essa tema e teve como título Edad de Plantaciones de Café: 70%
con más de 30 años – Asi NO somos competitivos. Mais especificamente, a JNC tinha
como proposta para o governo que este concedesse um empréstimo de US$ 1.000 por
hectare para renovar 50.000 hectares de café em cinco anos.
A primeira “resposta” do poder público a esta demanda se deu em 2008,
justamente através do prêmio de US$ 4.9 milhões que a Cooperativa ganhou num
concurso chamado “Pró-Investimento”. O programa, então bastante modesto, que a
cooperativa vinha fazendo de revitalização das plantações de café, no qual os sócios
eram obrigados a investir o dinheiro do programa na melhoria de seus cafezais (de
acordo com as recomendações técnicas), poderia assim ser expandido com base nesse
prêmio. Diante dessa situação estariam se aproximando das tão valorizadas condições
das décadas de 70 e 80 que serviram de base para que muitos produtores e seus
familiares ascendessem socialmente.
Como dito anteriormente, não estive entre eles durante ou depois desse período
em que ganharam o concurso. De qualquer modo, a renovação dos cafezais dá
continuidade aos esforços da La Florida em criar as condições produtivas e comerciais
vistas como ideais pelos seus associados. Isso significa proporcionar os meios
supostamente mais adequados para que os produtores e seus familiares possam
“progredir” na vida, tal como se deu de maneira mais generalizada durante os tempos
áureos da cafeicultura no país. O descompasso que viam até recentemente entre o
sucesso comercial da La Florida e suas dificuldades produtivas é capaz então de ser
atenuado diante dessa nova conjuntura.
144
Em suma, o comércio justo, assim como a revitalização das plantações, pode ser
visto como um meio para a reprodução tanto de uma narrativa em relação ao
“desenvolvimento” da cooperativa quanto de outra a respeito do “progresso” dos
agricultores. A luta da JNC para que o governo coloque em prática um plano nacional
de renovação dos cafezais é um sinal evidente de uma esperança mais geral entre os
cafeicultores peruanos diante do cultivo de café.149 Essa crença na cafeicultura permite
justamente que as narrativas dos produtores sobre suas ações ao longo do tempo
continuem dando sentido às suas vidas. Por outro lado, a continuidade dessas narrativas
tem levado a diversas mudanças nos seus significados: as cooperativas agora devem ser
“competitivas” para se desenvolverem, o solo “recuperado” para produzir bem, a
agricultura “orgânica” para preservar o meio ambiente e mais do que nunca seus filhos
precisam ter progredido no sistema educacional. É com base nessas e outras
transformações que estas narrativas continuam oferecendo um horizonte para essas
pessoas enquanto cafeicultores.
O capítulo seguinte trata justamente das alterações que vêm ocorrendo nos
sentidos das percepções da modernidade entre os sócios da Cooperativa La Florida. Ele
se apóia na minha estadia entre esses produtores e seus vizinhos durante a segunda
149 O seguinte trecho de uma reportagem deixa claro a centralidade dessa luta no âmbito da JNC e o papel de Cesar nesse processo: “Unas 43 mil familias cafetaleras del Perú, primer productor mundial de cafés especiales, reeligieron como presidente de la Junta Nacional del Café a César Rivas Peña, gerente de la cooperativa La Florida. Con el 74 por ciento de votos, Rivas Peña logró ratificarse en el cargo, lo que ha sido considerado por los caficultores como una victoria del sur peruano, sobre todo de la Central de Cooperativas Cocla, que apostó por su postulación. Las elecciones fueron realizadas durante la XV Asamblea General Ordinaria de la Junta Nacional del café (…) Las elecciones se realizaron en medio de gran tensión, ya que primero tuvo que elegirse al comité electoral, el que como es tradicional, definiría las nuevas reglas de juego de la elección de la nueva directiva. El reelecto Rivas Peña estará en el cargo hasta el 2011, tras haber superado por 17 votos a su oponente más cercano, Luis Peña Parra de Aprocassi, ahora electo Director del Consejo Directivo. Las tensiones entre los cafetaleros del sur y del norte, responden a la competencia por las inversiones que el Estado ha anunciado aprobaría este año para la renovación de cultivos. La Junta Nacional del Café ha propuesto al ejecutivo la renovación de 100 mil Ha de cafetales (para empezar) para lo cual demanda un presupuesto inicial de unos 100 millones de dólares. El pedido no es descabellado si se entiende que el gobierno de Colombia piensa invertir 750 millones de dólares en nuevos cultivos de cafés especiales, que indudablemente afectarían el status peruano como primer productor de este tipo de café.” (www.agronegociosperu.org/noticias/040509_n1.htm)
145
metade de 2006. Também são evocadas, logo no começo do capítulo, duas assembléias
que reuniram os sócios da cooperativa. A questão é entender quais as características dos
agentes que têm conduzido as transformações nos significados das duas grandes
narrativas que permeiam a vida desses sujeitos: o “desenvolvimento” da La Florida e o
“progresso” dos produtores. No primeiro caso, o foco é no atual gerente da organização
e, no segundo, nos seus associados que se sobressaíram perante os demais cafeicultores
ao terem “priorizado” o “investimento” na educação de seus filhos.
146
Capítulo 3 – Novos sentidos da ascensão social e do desenvolvimento coletivo
3.1 Introdução
A realidade vivida atualmente pelos cafeicultores peruanos é geralmente vista
por eles como mais difícil do que a que experimentaram há 25 ou 35 anos atrás. Isso se
deve não apenas aos percalços que vêm enfrentando diante do comércio e da produção
de café, mas porque a vida fora da cafeicultura que muitos desejam para seus filhos
também se tornou mais complicada ou, como os próprios agricultores costumam dizer,
mais “competitiva”. Por exemplo, eles afirmam ter hoje em dia, mais do que em
qualquer outra época, consciência de que sem educação não é possível “prosperar”.
Diante dessa realidade contemporânea, o “progresso” ou o “desenvolvimento” dentro e
fora das chacras têm adquirido novos significados. O presente capítulo procura entender
o que distingue certas pessoas enquanto os agentes que vêm conduzindo estas inovações
semânticas entre os sócios da Cooperativa La Florida.
Um contraponto interessante à experiência presente destes agricultores é a dos
sujeitos entre os quais James Ferguson (1999) conduziu seu trabalho de campo no final
da década de 1980: os trabalhadores da indústria do cobre no norte da Zâmbia. A partir
dessa sua pesquisa, ele chegou à conclusão de que a “descrença na modernidade” por
parte desses indivíduos derivava principalmente do fato de estarem atravessando uma
intensa e prolongada “crise econômica”. De acordo com este antropólogo, a
modernidade para estes mineiros estaria ligada ao passado e não ao futuro, ao contrário
do que teria acontecido nas décadas de 1960 e 1970 quando se beneficiaram de um forte
surto de industrialização em torno do cobre (um metal abundante no país e então
bastante valorizado internacionalmente). Para Ferguson, estes sujeitos se sentiram
147
basicamente “enganados” depois de terem acreditado que estavam predestinados a
atingir e manter um padrão de vida que consideravam e ainda consideram como sendo
“moderno”.
Ao contrário da situação encontrada por James Ferguson entre os mineiros do
norte da Zâmbia, o que este autor chama da “mitologia da modernização” era algo que
fazia bastante sentido para os cafeicultores da selva central com os quais convivi. De
acordo com um dos exemplos que ele forneceu dessa mitologia, entre estes
trabalhadores africanos o “mito da urbanização”, vigente entre eles com força nas
décadas de 1960 e 1970, teria perdido sua relevância diante do movimento de retorno
desses sujeitos ao campo a partir dos anos 80. Não é à toa que Ferguson associe a crise
econômica a uma crise de sentido e que seu interesse se concentre na experiência social
do declino das “metanarrativas da modernidade”.
Já na selva central os ideários de progresso e desenvolvimento individual e
coletivo, vigentes na segunda metade do século passado entre os produtores de café,
continuavam vigorando entre eles. Como exemplos desses ideários podem ser
justamente citados o “desenvolvimento” das cooperativas de cafeicultores e o
“progresso” familiar e pessoal destes agricultores. Tratava-se então de narrativas a
respeito de processos que estes sujeitos acreditavam estar acontecendo desde há muito
tempo, apesar dos seus retrocessos, das suas lentidões e dos modos desiguais através
dos quais vinham sendo vivenciados.
Por outro lado, é possível perceber diversas transformações mais recentes nos
sentidos comumente associados às “metanarrativas da modernidade” destes produtores.
Em outras palavras, o progresso e o desenvolvimento são cada vez mais relacionados
por eles com a “competitividade” de suas organizações, a produção de café “orgânico” e
de “qualidade”, o “investimento” na educação de seus filhos e o “empreendedorismo”.
148
Trata-se de valores bastante afins com a realidade que vivenciam e a qual se caracteriza
principalmente pela difusão ou “desregulamentação” das relações mercantis numa
escala nacional e internacional, pelo ingresso deles nos novos mercados de café, pela
importância cada vez maior concedida à educação dentro e fora do mercado de trabalho
e pelo desgaste generalizado dos solos.
Se Ferguson se concentrou na experiência social do declínio das “metanarrativas
da modernidade” entre os mineiros do norte da Zâmbia, no caso dos cafeicultores da
selva central peruana a questão pertinente é a da experiência social da transformação
nos significados dessas metanarrativas. A integração destes agricultores no comércio
justo se constitui num contexto bastante significativo para se compreender essa
experiência, mesmo tendo em vista que a realidade que vivenciam não se reduz à
participação deles neste ou em outros mercados também surgidos recentemente. De
qualquer maneira, não se trata de uma realidade onde o que é visto como “progresso” ou
“desenvolvimento” deixou de fazer sentido, mas sim na qual estas idéias passaram a ser
percebidas de maneira diferente.
É importante ter claro que “progresso” e “desenvolvimento” se encontram no
cerne das representações vigentes entre estes produtores e que fazem parte do que pode
ser chamado do campo semântico da modernidade. A palavra “modernidade” ou mesmo
“moderno” estão bem menos presentes nas falas destes sujeitos. Contudo, vigora entre
eles uma visão de que são protagonistas de histórias que caminham na direção de um
futuro melhor para si e as demais pessoas ao seu redor. Estamos diante de verdadeiras
sagas que se colocam como as experiências por excelência destes agricultores em
relação ao que Ferguson chamaria da “mitologia da modernização”. Os novos modos
deles pensarem essas sagas estavam justamente em evidência durante meu trabalho de
149
campo. Estas transformações se colocavam como exemplos evidentes do que Marshall
Sahlins (1987) chamou de “reavaliação funcional das categorias na prática”:
Por um lado, as pessoas organizam seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistisses da ordem cultural. Nesses termos, a cultura é historicamente reproduzida na ação. (...) Por outro lado, entretanto, como as circunstâncias contingentes da ação não se conformam necessariamente aos significados que lhes são atribuídos por grupos específicos, sabe-se que os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais. É nesses termos que a cultura é alterada historicamente na ação. (idem p. 8)
Este capítulo focaliza os agentes que têm conduzido as reavaliações dos
significados presentes nas narrativas usadas pelos sócios da La Florida para dar sentido
às suas ações ao longo do tempo. Tais reavaliações são feitas tendo igualmente como
pano de fundo o que os agricultores visualizam como os imperativos de uma realidade à
qual eles e seus familiares têm de se adaptar para poderem alcançar melhores condições
de vida. Como assinalado anteriormente, entre estes imperativos se destacam a
necessidade cada vez maior de seus filhos progredirem no sistema educacional, das suas
cooperativas serem “competitivas” e dos cafezais se tornarem produtivos e
proporcionarem um café de qualidade.
O ponto é que o acesso dos produtores e de seus descendentes a uma condição
de vida que eles consideram adequada é visto na selva central como algo bastante
difícil, mas não impossível, como parece ser o caso do que acontece entre os moradores
de diversas regiões africanas, de acordo com Ferguson (2006). Não é à toa que nesta
zona peruana se destaquem os sujeitos capazes de proporcionar os meios para que a
situação precária daqueles ao seu redor seja superada ou, pelo menos, atenuada de uma
maneira considerada satisfatória. A questão deste capítulo é saber quais as
características destes sujeitos que exercem esse papel de destaque.
150
3.2 Desenvolvimento como competitividade
Como assinalado nas últimas páginas do capítulo anterior, a gerência de Cesar
na Cooperativa La Florida vem sendo basicamente pautada pela sua busca em tornar
esta entidade a mais apta possível para “competir” pela compra e venda de café dentro e
fora do comércio justo. Trata-se de uma estratégia de gerenciamento cujo respaldo por
parte dos sócios da cooperativa pode ser percebido de maneira bastante significativa
através do que se passa nas suas assembléias. Isso porque estes eventos se constituem
em ocasiões nas quais os associados podem influir de modo mais direto nos rumos
tomados pela organização.
Em outubro de 2005, por exemplo, se realizou aquela que seria considerada a
mais tumultuada Assembléia Extraordinária da Cooperativa La Florida.150 Esse evento
ocorreu numa conjuntura, mencionada no capítulo anterior, na qual imperava um
sentimento latente dos produtores diante do que viam como uma contradição entre o
desenvolvimento comercial alcançado pela cooperativa e as dificuldades que
enfrentavam cotidianamente. Esse sentimento veio à tona justamente durante a
assembléia e através de uma conjunção de diversos fatores.
Entre estes fatores podem ser destacados: (1) a então recente visita de um
inspetor da FLO que resultou numa “advertência” à cooperativa; (2) a atitude do
“presidente do conselho de vigilância” em divulgar um relatório, ainda em fase
preliminar, que apontava para a possibilidade da organização ter que se desfazer de seus
bens para pagar suas dívidas com os bancos; (3) o não pagamento do chamado reitengro
aos agricultores (ou seja, do dinheiro resultante das vendas realizadas ao longo do ano),
dado que a cooperativa recebeu pelos cafés que vendeu valores menores do que aqueles
150 As Assembléias Ordinárias acontecem em março.
151
pelos quais foram comprados, na medida em que teve de cumprir com seus contratos
“extras” firmados num contexto de altos preços internacionais que não perdurou (ao
contrário do que aconteceu com os preços dentro do país) e (4) a insatisfação dos
produtores com o tratamento que vinham recebendo do administrador da cooperativa
(um sujeito oriundo da classe média branca de Lima e nada familiarizado com o
universo cafeicultor).
Nessa assembléia, a pressão em cima do gerente chegou a tal ponto que este
ameaçou abandonar o cargo, apontando inclusive para o fato de que a confiança dos
clientes da cooperativa era para com ele e não em relação à entidade. “Se eu sair a
cooperativa quebra”, afirmou no ápice da tensão. Finda a pressão, depois de retrucar,
com bastante propriedade, as críticas que vinha recebendo e, desse modo, diante de
ânimos menos exaltados, ele adotou como resposta aos descontentamentos dos sócios, o
aumento nos recursos destinados à melhoria da comunicação entre a gerência e estes
agricultores. Isso significou, na prática, a contratação de dois profissionais: um
sociólogo e uma psicóloga. O investimento na produção de uma maior quantidade de
informes escritos não foi deixado de lado, apesar de que não era visto como algo eficaz
diante baixa escolaridade reinante entre os produtores.
A advertência do inspetor da FLO que visitou a cooperativa, em julho desse ano,
esteve apoiada nas seguintes observações: (1) dentro do comércio justo não é viável
uma assembléia com mais de 800 pessoas e (2) os dirigentes não sabiam o destino do
“prêmio social” do comércio justo. O gerente enviou uma carta à FLO contra-
argumentando que: (1) uma assembléia de delegados, de acordo com o que era sugerido
pela FLO para as cooperativas com mais de 800 sócios, ia de encontro com a lei
peruana de cooperativas que autorizava esse tipo de assembléia apenas para as entidades
com mais de 1.000 sócios (a La Florida tinha 800 sócios como direito a voz e voto nas
152
assembléias) e (2) em março de cada ano, a cooperativa elege seus dirigentes e, em
julho, durante a visita do inspetor da FLO, os novos dirigentes ainda não estavam
familiarizados com a distribuição do “prêmio social”. A FLO aceitou esses argumentos
e retirou sua advertência à cooperativa.
Acontece que, durante a assembléia no final de 2005, o sócio que ocupava o
posto de “presidente do conselho de vigilância”, no seu afã de deslegitimar a gestão do
gerente, ascendeu os ânimos da platéia com uma cópia da advertência da FLO em mãos,
isso porque, segundo o que me disseram posteriormente alguns associados, havia um
interesse de sua parte em postular esse cargo. Ele então culpou Cesar por colocar em
risco o credenciamento da La Florida junto ao comércio justo. Muitos dos sócios
aplaudiram suas considerações. Estas também vieram acompanhadas de um relatório,
ainda em fase bastante preliminar, que apontava para a natureza supostamente crítica
das dívidas da cooperativa. Contudo, como informaria o gerente, logo em seguida,
diversas auditorias externas tinham comprovado que essas dívidas junto aos bancos
poderiam ser facilmente quitadas pela La Florida, sem a necessidade de ter de se
desfazer de seus bens. Após a assembléia, Cesar acabou processando criminalmente o
presidente do conselho de vigilância por difamação. Isso não impediu que suas
considerações repercutissem para fora do âmbito da cooperativa e comprometessem
alguns de seus contratos com os compradores de café.
Pude acompanhar a assembléia extraordinária seguinte, realizada em outubro de
2006. Praticamente todos os “sócios ativos” (com direito a voz e voto nas assembléias)
estavam presentes (para os que não compareceram, seria cobrada uma multa de 100
soles; já os que vieram receberiam uma ajuda de custo no valor de 40 soles).151 Cheguei
sozinho, mas, logo de cara, reencontrei diversos produtores que havia conhecido antes.
151 Os “sócios não-ativos” não são obrigados a fazer parte das assembléias e também não recebem qualquer tipo de bonificação para participar delas.
153
Pelo fato de eu não ser um sócio, o gerente requisitou que um associado amigo meu
gentilmente me levasse para fora do grande armazém onde se realizaria o encontro. A
verdade é que as centenas de cadeiras dispostas nesse local não foram suficientes para
comportar todos os agricultores. Permaneci então junto daqueles que assistiram de pé a
assembléia.
Foto 24 – A assembléia de outubro de 2006 Foto 25 – O começo da festa após a assembléia
Logo no início do evento, o presidente do conselho de administração não só
louvaria a indicação de Cesar para a presidência da Junta Nacional do Café (JNC) como
também diria: “Cesar, mil desculpas, em nome dos nossos sócios, por aqueles maus
momentos”. Depois ele ainda ressaltaria que “as instituições financeiras depositaram
confiança em nós, dada nossa capacidade de produção” e concluiria sua fala dizendo:
“consolidamos nossa presença nos EUA e na Europa, falta consolidar no difícil mercado
japonês.”
Mas o clímax da assembléia se deu durante a divulgação que o gerente fez dos
valores dos reintegros que seriam pagos aos cafeicultores.152 Um sócio me disse que
estava lá apenas para escutar isso (não era à toa que trouxe uma calculadora). Nesse 152 Para os sócios que entregaram cafés orgânicos nas plantas de beneficiamento úmido seria pago 1.30 soles por quilo e para os não-sócios este valor era de 0.65 soles. Os cafés orgânicos entregues nos armazéns de La Marced ou Salcipuedes (este último era justamente o local onde se realizava a assembléia) receberiam um sol caso fossem entregues por sócios e 0.50 por não-sócios. Os cafés convencionais (sem certificação) só receberiam reintegro se fossem dos sócios: 0.65 soles para os que foram para as plantas de beneficio úmido e 0.50 para os que foram para La Merced e Salcipuedes. O pagamento dos reintegros seria feito em duas partes: metade na primeira quinzena de dezembro e a outra metade no final de janeiro. “O reintegro deve ir para as plantações, para mantermos a imagem da cooperativa”, aconselhou o gerente no final de sua fala.
154
momento, o silêncio tomou conta dos produtores e só terminou quando o gerente
acabou de expor tais valores. A alegria de todos na festa que se seguiu à apresentação
desses números reproduzia a visão positiva generalizada diante dos resultados
comerciais alcançados pela La Florida nesse ano.
É possível afirmar que o poder de Cesar foi desafiado na assembléia de 2005.
Como também ficou claro nesse evento, tal poder se assentava, em grande medida, na
sua monopolização dos contatos com os clientes da cooperativa, em especial, dos
compradores de café através do comércio justo. Pude perceber melhor a importância
desse monopólio durante minhas conversas com o irmão de Cesar. Ele gerenciava uma
organização de produtores da selva central filiada à JNC; nosso primeiro encontro se
deu em dezembro de 2006, quando então ocupava há dois meses o cargo de gerente.153
“Estamos seguindo a Cooperativa La Florida”, me disse na ocasião. Sua preocupação
naquele momento era obter a “confiança dos sócios” para entregar os cafés com as
certificações orgânicas e de comércio justo. “Não temos nome na Europa, vendemos
para a Corporação Café Peru”, foram suas palavras para as quais completou: “o objetivo
de longo prazo é vender diretamente”.
A cooperativa que gerenciava foi fundada em 1974 e, segundo ele, “quebrou por
causa do terrorismo e da corrupção de seus dirigentes”. Ela “ressurgiu” em 2006: “mas
está mal, está com dívidas, os sócios querem liquidá-la e isso não é justo”, afirmou.
Durante essa nossa conversa, ele falou ao telefone com seu irmão e lhe fez algumas
perguntas sobre problemas práticos que vinha enfrentando no seu trabalho. No nosso
diálogo seguinte, em outubro de 2009, me informou que estavam certificados dentro do
comércio justo desde 2008; disse que ainda não exportavam diretamente, mas que
gostariam de fazer isso a partir de 2010. Comentou também que vendiam através da
153 Ele se formou em agronomia numa renomada universidade pública de Lima.
155
Corporação Café Peru e de mais duas outras organizações. Questionei se era difícil
vender diretamente, ao que respondeu: “não, apenas não temos os contatos, aqui as
pessoas são bem ciumentas com seus compradores porque ganham comissão.” Ao
perguntá-lo se seu irmão não lhe poderia passar alguns contatos, ressaltou: “ele trabalha
bem para sua empresa, nem a mim dá informação, mas eu já tive a oportunidade de
viajar até uma feira nos EUA, onde conheci algumas pessoas; vamos começar (a
exportar diretamente) em 2010”, assinalou. Indaguei se vender pelo comércio justo
através da Corporação Café Peru (entidade também gerenciada por Cesar) daria no
mesmo que vender diretamente: “não, eles vendem com a marca deles, mas é nosso
café, e assim devem indicar nas suas embalagens, só que nos cobram uma comissão de
1.5% do valor FOB (preço do café exportado)”.
Com base, em grande medida, nos seus contatos com os compradores
certificados pela FLO, Cesar podia, por um lado, oferecer aos seus associados valores
relativamente altos pelos seus cafés, mas esse poder também lhe permitia imprimir sua
visão a respeito do que acreditava ser o caminho adequado para o “desenvolvimento” da
cooperativa e da central de organizações de produtores que ele igualmente
gerenciava.154 A necessidade de serem “competitivas” acabou justamente se colocando
como a marca principal de sua gestão. Para além da sua capacidade em contornar as
críticas dos sócios, o respaldo de sua estratégia de gerenciamento deve ser entendido
levando-se em conta que também está em jogo nessa noção de competitividade a oferta
de melhores preços para os cafés dos agricultores. Como ele próprio me disse: “Os
154 Em 2007, a Cooperativa La Florida vendeu US$ 5.534.658 em café, com um preço médio por saca de US$ 136.76. Com relação à Corporação Café Peru, os valores foram US$ 6.754.411 e US$ 137.98, respectivamente. No ano seguinte, a primeira vendeu US$ 7.735.787 a US$ 157.84 em média por saca; a segunda US$ 15.527.454 a US$ 139.02 em média. Em 2009, os valores foram US$ 9.444.770 a US$ 149.65 em média, no caso da La Florida; US$ 12.670.318 a US$ 149.15 em média, no caso da Café Peru. Em 2007, a saca de café exportada pelo Peru foi vendida por um preço médio de US$ 113.16. No ano seguinte, esse valor foi de US$ 131.98 e, em 2009, ficou em US$ 138.24. (www.juntadelcafe.org.pe)
156
produtores sempre querem o melhor preço; temos que ser competitivos, o produtor quer
o melhor preço e serviços, só 10% é estritamente fiel”.
As próximas seções retratam parte do período em que permanecei junto aos
sócios da La Florida durante a segunda metade de 2006. O foco é nas pessoas que
vivem num dos inúmeros “anexos” que fazem parte do distrito de Perene e que
igualmente se encontram dentro do “raio de ação” da cooperativa.155 Através do que se
segue é possível perceber a proeminência de determinados cafeicultores e suas
respectivas famílias perante os demais agricultores ao seu redor. Tal proeminência é o
que explica, em grande medida, a introdução de novos sentidos à noção de progresso
vigente entre os produtores locais.
3.3 Os Santos
No final de setembro de 2006, havia retornado ao Peru para completar a última
etapa do meu trabalho de campo. Logo nos primeiros dias, estaria junto de meus amigos
da La Florida que trabalhavam no escritório da Central Café Peru (localizado na cidade
de Lima). Um deles estava organizando (com a assessoria informal de um funcionário
do Ministério do Turismo) um programa de “turismo vivencial” para ser realizado na
selva central e que ficaria a cargo de uma agência turística. O programa se chamava
“turismo com aroma de café” e era pensado enquanto uma “atividade complementar ao
café para aumentar os ingressos dos produtores”. Ele abarcaria três “circuitos turísticos”
e envolveria inicialmente duas famílias de colonos andinos e uma comunidade nativa
enquanto provedores da hospedagem aos turistas.
155 Como assinalado no capítulo anterior, o distrito de Perene conta com 40 “comunidades nativas”, oito “centros povoados” e mais de 140 “anexos”.
157
Seu organizador havia, dois anos antes, levado um grupo de visitantes
estrangeiros à região e estes preferiram retornar até La Merced para dormir, por conta
da rusticidade das moradias dos agricultores. As duas casas familiares que deveriam
participar do programa eram as que apresentavam melhores condições entre as demais
ao seu redor, apesar de que mesmo assim o aprimoramento de suas infra-estruturas seria
financiado (no caso da comunidade indígena, esta iria fornecer um alojamento que os
nativos ainda estavam construindo). Uma dessas duas casas era da própria família do
organizador e a outra dos pais de um amigo seu de infância que também trabalhava na
Central Café Peru e irmão do gerente dessa mesma organização. 156 Foram nesses dois
imóveis que permaneci mais dias alojado junto aos sócios da Cooperativa La Florida.
Tais residências acabaram se mostrando como as únicas no seu entorno providas de uma
mínima comodidade (como vasos sanitários, por exemplo) para alguém não acostumado
com a precariedade de um ambiente rural composto majoritariamente por uma
população de baixa renda.
Mapa II – Em amarelo: alguns anexos e comunidade nativas dentro do “raio de ação” da Cooperativa La Florida (Desco, 2009)
156 O organizador do programa tinha em mente construir alguns bangalôs ao lado de sua casa para que os turistas pudessem dormir neles.
158
Cheguei à chacra desse organizador do programa turístico no dia 10 de outubro.
Ela esta situada no anexo de José Galvez (à direita e acima do mapa II), um dos 140
anexos do distrito de Perene e dentro da “raio de ação” da Cooperativa La Florida.
Quem me levou até lá foi Alejandro (o jovem, retratado no capítulo anterior, que
também trabalhava como motorista entre o povoado de La Florida e La Merced) e ao
chegarmos à entrada da propriedade este foi correndo dizer aos moradores que “o
gringo” havia chegado.157 Na chacra estavam a mãe de meu amigo e sua irmã mais
velha chamada Suzana. Esta última se colocou como “minha guia” até a tarde do dia
seguinte, quando seu irmão mais novo retornou “da serra” (os Andes) junto de dois
obreros que havia conseguido contratar para trabalhar alguns meses no sítio.158
Ela tinha por volta de trinta e poucos anos e era formada em administração de
empresas numa faculdade situada na principal cidade dos Andes centrais peruanos
(Huancayo). Considerava a Cooperativa La Florida como uma “empresa privada” e
tinha consciência de que seus irmãos viam a cooperativa “de maneira mais positiva”.
Seu falecido pai havia migrado dos Andes na década de 60 para trabalhar na colheita de
café na selva central, com o passar do tempo adquiriu seu próprio cafezal e se tornou
um dos mais destacados sócios da La Florida (foi seu presidente nos difíceis anos de
1993 e 1994), além de que somente vendia seus cafés através dessa organização: “ele
era cooperativista”, comentou. Disse que pretendia tratar a chacra como uma “empresa
157 No caminho pude conhecer as famosas cataratas da região. Havíamos dado uma carona a uma senhora que tinha uma barraca nesse ponto turístico. Ela possuía também um hectare plantado com café, mas o qual “não cuidava”, dado que no seu entender o preço desse grão estava muito baixo. Essa senhora igualmente reclamou dos baixos preços pagos pelos compradores de banana, tangerina e abacate e que por isso “não compensava vender esses produtos”. Se mudou para a selva central em 1970, vindo de uma grande cidade da região central dos Andes peruanos. Seu irmão havia comprado um terreno na selva e lhe repassado a propriedade. Tratava-se de 16 hectares de uma terra bastante produtiva, do seu ponto de vista, se comparada com os terrenos andinos (“aqui se produz de tudo”, disse). O seu único filho e seus netos viviam na sua cidade natal e perto da qual tinha uma chacra. Ela vendia para os turistas refrigerantes, suco de laranja com mel e diversos tipos de petiscos. 158 Eles estavam há um mês sem personales. No ano anterior, haviam oferecido trabalho para pequenos produtores locais, mas estes teriam recusado (um destes teria oito filhos e apenas meio hectare de café).
159
agrícola” e que se pudesse usaria produtos químicos nos cafezais.159 De acordo com
uma senhora amiga da família de um anexo vizinho e que iria me hospedar algumas
semanas depois em sua casa, “Suzana é uma moça do pueblo, foi um sacrifício trazê-la
para a chacra, mas agora ela não quer mais sair de lá”.
Suzana e sua mãe diziam não ter amizade com seus vizinhos e que quando saiam
da chacra iam direto para La Merced. Afirmavam “não ter tempo para fofocar” e esse
discurso parecia corroborar o caráter aparentemente compulsivo com que se dedicavam
às suas tarefas domésticas e no cuidado da chacra (por isso me sentia freqüentemente
atrapalhando seus afazeres durante nossas conversas).160 Minhas duas anfitriãs não se
mostravam interessadas em discutir o passado de sua família. De qualquer maneira, não
deixaram de me informar a respeito dos moradores do anexo (algo que fizeram num tom
bastante crítico).
A distinção dessa família (chamada aqui de Santos) no espaço local se apoiava,
sobretudo, no grau de instrução de seus membros e nos seus respectivos empregos.
Nessa época, a irmã de Suzana e um de seus irmãos viviam em Lima. A primeira
trabalhava numa pequena empresa privada exportadora de cafés especiais e na
organização não-governamental ligada a essa empresa. Já esse seu irmão eram um dos
funcionários da Central Café Peru (entidade na qual esta sua irmã iria trabalhar algum
tempo depois) até que se desligou dela para exercer um cargo numa grande empresa
privada exportadora de café. Seu irmão mais velho era casado e gerenciava uma
cooperativa de cafeicultores localizada no sul do país (um ano depois iria largar esse
159 Eles entraram no programa de cafés orgânicos da cooperativa em 1997; ano em que esse programa teve início. Nessa época, tinham entre seis e sete hectares de café e que, com base em insumos químicos, produziam 60 quintais por hectare. Ela disse também querer construir sua casa na chacra, onde recentemente plantou três hectares do grão. 160 A mãe de Suzana me contou que quando criança sua mãe jogava trigo no chão de propósito para que ela e seus irmãos “não ficassem ociosos”. Ela também me falou que admirava “os gringos (colonos alemães) de Villa Rica” porque eles “trabalham duro”. Sua chacra tinha muitas variedades de hortaliças, além de manga, banana, mandioca, abóbora, um poço com peixes, porcos, galinhas e gado. O que compravam era basicamente açúcar, sal macarrão e arroz. Já sua preocupação em me proporcionar uma alimentação bastante farta era porque “os outros poderiam pensar que aqui não se come bem”.
160
emprego e ser gerente de uma cooperativa de produtores de café e cacau situada no
norte do Peru).
Suzana também tinha outro irmão casado e que morava em La Marced, onde
trabalhava como motorista da La Florida. Ele era o único que não havia completado
uma faculdade. Já o caçula da família estava vivendo com ela e sua mãe há alguns
meses, na medida em que recentemente tinha terminado a universidade e não arrumou
um emprego logo em seguida (seus irmãos o incentivavam a ir cursar um mestrado de
agronomia no exterior).
Os Santos se colocavam para os demais moradores como verdadeiros
referenciais ou modelos de vida. Esse destaque remonta ao já falecido patriarca da
família, chamado Alberto; tanto é que uma recém criada localidade em José Galvez
havia recebido seu sobrenome em sua homenagem. O problema era que as condições
que lhes permitiram ascender socialmente não estavam mais presentes hoje em dia, em
especial, os solos não produziam tão bem quanto há 20 ou 30 anos atrás e o preço do
café no seu mercado “convencional” era bem menor. Nesse cenário, os filhos de Alberto
Santos se posicionavam, assim como seu pai em outras épocas, enquanto os principais
introdutores das novidades no local. Por exemplo, era um deles quem incentivava o
turismo na região; sem contar que os Santos tinham sido uma das primeiras famílias a
plantar “café orgânico” no anexo. Mas o que representavam principalmente era um
exemplo concreto de que o “investimento” na educação podia ser um meio eficaz para o
“progresso” entre os agricultores.
O restante do capítulo procura entender a posição desta e de outras famílias
como referenciais entre os sócios da Cooperativa La Florida e seus vizinhos. Isso é feito
através de uma descrição centrada nas minhas conversas com os moradores locais.
Através das suas falas é possível perceber como compreendem aquilo que distingue as
161
pessoas que entre eles se colocam hoje em dia como um modelo de conduta. Já na seção
seguinte, o valor do sistema educacional aparece claramente como algo central nesse
cenário. Por outro lado, como também se mostra evidente ao longo das próximas
páginas, a dificuldade dos filhos dos produtores em progredir nesse sistema é a tônica
das suas falas a respeito da importância das instituições de ensino na vida desses seus
descendentes. Essa dificuldade é principalmente pensada como derivada da própria
situação precária vivenciada pela maioria dos habitantes locais.
3.4 A precariedade das condições de vida dos moradores
Andando com Suzana por José Galvez logo pela manhã do dia seguinte à minha
chegada, nos dirigimos inicialmente à comunidade nativa local chamada Inkariado e que
ficava a uns 40 minutos de caminhada de sua casa (nessa comunidade era que se
encontrava a hospedagem, ainda em construção, que seria utilizada pelos participantes
do programa “turismo com aroma de café”). “Não venho há anos nesse pueblo”, me
disse Suzana assim que chegamos ao território indígena. No caminho até lá pude
avistar, do meio da estrada, muitas plantações de café e a casa de um produtor na qual
ele mantinha uma pequena loja onde vendia produtos como papel higiênico, sabonete e
demais mantimentos de uso cotidiano.
Foto 26 – A escola da “parte alta” de Inkariado Foto 27 – Vista da escola
162
Na entrada da comunidade nativa morava um colono andino que também tinha
uma loja dentro de sua casa e onde inclusive comprava e armazenava café. Algumas
mulheres indígenas (que se disseram todas pertencer à etnia ashaninka) estavam
reunidas com seus filhos no posto de saúde que igualmente existia na entrada da
comunidade e que fazia parte de uma espécie de complexo comunitário formado por
uma escola, pela hospedagem em construção e por um campo de futebol com um palco
à sua frente. Uma campanha nacional de vacinação estava acontecendo nesse dia.
Durante nossa conversa com as mães das crianças que foram ser vacinadas, elas nos
ofereceram gentilmente um copo com masato (bebida tradicional indígena à base de
mandioca fermentada). Ao saber que Suzana era membro da localmente reconhecida
família Santos, uma delas lembrou que ambas estudaram juntas ao longo do primeiro
grau.
Estas mulheres ashaninka inicialmente se mostraram bem críticas em relação aos
migrantes andinos, apesar de uma delas ter se casado com um destes sujeitos e o qual
era dono da loja situada na entrada da comunidade. “Os colonos espantam os animais”,
disse uma das mais exaltadas. Outra comentou a respeito dos nomes pejorativos que os
migrantes costumavam chamá-los: “os serranos nos chamam de campa, mas não
gostamos disso e também não gostamos quando dizem que somos chunchos”. De
qualquer maneira, não deixaram de reconhecer que “bons colonos disseram para os
ashaninka titular o terreno”. Isso teria se dado num contexto onde determinados
“parentes” dessas mulheres teriam inclusive trocado seus terrenos “por apenas um
touro”. Elas acrescentaram também que desejavam ver seus filhos “ter uma profissão”,
mas que “com esse (baixo) preço do café” não seria possível disso acontecer, na medida
em que essa conjuntura dificultava ainda mais a obtenção dos recursos para que
163
progredissem no sistema escolar. Igualmente afirmaram não produzir nenhum tipo de
artesanato que pudesse ser vendido.
Suzana ouviu calada as críticas que as indígenas dirigiram aos colonos e só se
pronunciou a respeito disso comigo ao voltarmos à sua casa. Ela ressaltou sua visão de
que os nativos eram “acomodados” e que nunca aceitaram as oportunidades de trabalho
que lhes ofereceu. No caminho de volta à sua residência, pude conversar com uma
mulher ashaninka. Esta me disse, inicialmente, que era “particular” (não era sócia de
nenhuma cooperativa) e que tinha 2.5 hectares de terra e em meio havia plantado café.
Nesse ano (2006), seu cafezal tinha produzido 30 quintais (vale lembrar que cada saca
tem um quintal ou 46 quilos) e os quais foram vendidos a 30 soles a “lata” (de 14
quilos). Em outras palavras, ganhou 1.000 soles com a venda de seu café.161
Afirmou não ter dinheiro para o frete de três soles por saca/quintal cobrado pelos
motoristas dos veículos que se dirigiam ao povoado mais próximo, por isso vendeu seu
café para um dos comerciantes intermediários que vieram até a comunidade. Estes
teriam dito que o preço do produto havia abaixado para um determinado patamar, mas
de acordo com ela “isso era mentira”.162 Contou que seu marido foi até a Cooperativa
La Florida a procura de um empréstimo, mas que fora negado pelo fato de não dispor de
qualquer documento que comprovasse a posse de um terreno ou imóvel. Comentando a
respeito dos gastos com material escolar e uniformes, falou que a professora da escola
teria dito para um de seus seis filhos que este não poderia freqüentar a instituição sem
sapatos. Outro filho do casal largou o seminário justamente porque não podiam arcar
com uma anuidade de 200 soles.
Dois dias depois estaria visitando de novo a comunidade nativa de Inkariado.
Desta vez estaria junto de Carlos, o irmão mais novo de Suzana, e que ao contrário dela
161 Nessa época, um dólar valia aproximadamente três soles. 162 Ela tinha comprado há pouco tempo atrás uma máquina para despolpar café, algo que a permitiria vender o grão em pergaminho e não em cereja.
164
tinha uma visão positiva dos indígenas. Ao chegarmos à comunidade, ele se dirigiu para
um ashaninka amigo seu e disse num tom de brincadeira: “fala cunhado”. Através de
Carlos (então um jovem desempregado de trinta anos e formado em agronomia) pude
conhecer melhor não só os nativos como também outros moradores locais. Certamente
que o fato de ser do sexo masculino lhe permitia transitar com mais facilidade entre os
agricultores. De qualquer maneira, durante nossas visitas entrei em contato com dois
espaços nos quais os moradores se reuniam cotidianamente para além das relações mais
circunscritas que mantinham dentro das propriedades agrícolas: o complexo
comunitário logo na entrada de Inkariado e o aglomerado de nove residências próximo
da chacra de Carlos e ao redor de uma escola de primeiro grau. Mas acima de tudo, a
dispersão das famílias cafeicultoras é que parecia dominar a paisagem das relações
locais e o trabalho no sítio comandava suas experiências cotidianas. Isso significava que
para conversar com os produtores tínhamos que basicamente abordá-los em suas
próprias residências ou enquanto transitavam de um lugar para outro.
O aglomerado de casas a uns 10 ou 15 minutos de caminhada da chacra de
Carlos se chamava Vila Santos. O nome era uma homenagem ao seu pai que foi quem
teria dado o terreno onde os moradores construíram a escola. Mas acontece que esse
meu anfitrião nunca tinha estado no local e sua justificativa para essa sua ausência era
de que permaneceu muito tempo estudando numa universidade pública no norte do país
e só recentemente retornou para ficar um período mais prolongado na sua chacra. Vale
ressaltar que era do interesse dos habitantes de Vila Santos que esta localidade fosse
reconhecida pelos poderes públicos como sendo um anexo e, conseqüentemente,
desfrutasse das supostas benesses que envolviam esse reconhecimento. Um anexo era
juridicamente entendido como qualquer espaço rural conformado de no mínimo 28
165
residências; se esse fosse o caso seus residentes encontrariam uma base jurídica para
demandar a realização de investimentos estatais no local.
Foto 28 – A escola de Vila Santos e seus alunos Foto 29 – Carlos olhando para Vila Santos
Pude conversar com o professor da escola.163 Ele inicialmente me pediu para que
eu entrasse em contato com o famoso jogador de futebol Ronaldinho, dado que tinha
visto numa reportagem que ele apoiou uma determinada instituição que ajudava
crianças carentes de Lima. Na verdade, sua preocupação com a melhoria da escola era
comovente. Ela se resumia a uma pequena e singela casa de madeira, de um só cômodo,
incapaz de proteger seus então 25 alunos da chuva e os quais deveriam se aglomerar
numa mesma sala de aula, apesar de estarem cursando séries diferentes. Ao lado do
imóvel, os pais desses alunos estavam construindo outro mais estruturado, mas que
ainda estava pela metade por falta de recursos. De acordo com o professor, “existem 50
produtores em Vila Santos e no máximo cinco produzem bem”.
163 Antes de me deparar com o professor, conversei com uma senhora que estava a 34 anos morando em Jose Galvez e que, no momento em que a abordei, ela conversava com outras moradoras em frente à loja que uma delas mantinha em sua própria casa. Essa senhora era natural de Cajamarca e me disse que quando chegou, com seu marido, à selva central, ambos trabalharam como obreros para um produtor de La Florida. Eles compraram os oito hectares de sua chacra e que estava situada numa outra parte do anexo; esta tinha três hectares plantados com café e que produziram 100 quintas nesse ano. Era sócia “orgânica” da Cooperativa La Florida e vendia toda sua produção para essa cooperativa. Tinha sete filhos, nenhum deles chegou a ir além do primeiro grau e todos tinham sua própria chacra.
166
Ele me apresentou às crianças e essas me receberam de uma forma bastante
calorosa; quase todas me ofereceram um pedaço de seus lanches e o professor inclusive
comprou um refrigerante em minha homenagem na loja que uma moradora de Vila
Santos mantinha em sua própria casa. Comentou que costumava ir junto de seus alunos
de chacra em chacra em busca de um pouco de café dos produtores como uma forma de
contribuição para a melhoria da escola. Não teriam sido poucas as vezes que as crianças
voltaram na chuva carregando em suas costas pequenos sacos do produto. Nove pais
puderam fornecer os 4.000 soles que foram usados para comprar o terreno e a armação
da nova escola (faltavam ainda 2.000 soles para terminar a obra; 1.800 depois de uma
singela contribuição que lhes pude fazer e para a qual ficaram muito agradecidos e
emocionados). “Não sabíamos a quem recorrer”, me contou o professor que completou
dizendo que “o governo só ajuda a cidade, não vai até a zona rural”. Ainda de acordo
com ele, “a prefeitura e o Estado não fazem nada e os seus projetos não são colocados
em prática; melhor fazermos nós próprios”. O antigo professor era pago pela
comunidade (a qual ainda estaria em débito com ele) e teria contribuído bastante para a
constituição da escola. O atual era pago pelo estado e estava há um ano trabalhando no
local. Como trabalha numa “zona de emergência” (dada a precariedade da infra-
estrutura da parte rural do distrito de Perene), recebia mais do que se ocupasse esse
mesmo cargo numa escola pública urbana. Segundo ele, “a Cooperativa La Florida não
responde nossos pedidos de ajuda”. Depois de assinalar que “nasceu para ser professor”,
ressaltou que a maior dificuldade que enfrentavam era a falta de livros e que por isso os
alunos liam jornais como uma forma de compensar essa carência. Três alunos da escola,
que terminaram o primeiro grau, teriam abandonado o segundo por conta justamente da
falta de recursos.
167
Foto 30 – Ao redor de Vila Santos
Para além da comida que poderiam trazer de suas casas, as crianças recebiam no
intervalo das aulas um biscoito doce supostamente vitaminado e um copo de leite que
eram fornecidos pelo governo. O professor reclamou comigo a respeito dessa merenda,
na medida em que o governo anterior proporcionava às escolas arroz, azeite, óleo,
macarrão, legumes e outros alimentos de maior sustância. “Doces dão fome rápido, o
melhor seria terem continuado a nos dar salgados”, disse ele.
A decisão dos habitantes de construir a atual escola, há então passados seis anos,
teve como pano de fundo, por um lado, o custo do transporte (um sol para ir e outro
para voltar) até aonde se encontrava a tradicional escola de Jose Galvez. Além disso,
esta última estava e ainda estaria em más condições e em risco de desabar em cima dos
alunos. De qualquer maneira, era evidente que nesse cenário a educação se colocava
como um valor dominante, apesar da precariedade das suas instituições de ensino e da
falta de recursos de grande parte dos moradores.
A própria subdivisão da comunidade nativa local entre “Alto Inkariado” e
“Baixo Inkariado” refletia o fato de que em cada uma dessas partes da comunidade
havia uma escola de primeiro grau (apesar de na chamada parte alta existirem outras
168
instituições que congregavam os indígenas). O sistema educacional era o meio que os
habitantes viam como o mais propício para proporcionar as condições para que seus
filhos obtivessem uma “profissão”. As expressões utilizadas pelos produtores para falar
do que pensam sobre a educação podem ser visualizadas num trecho de um estudo,
também citado no capítulo anterior, a respeito da “desigualdade no distrito de Perene” e
que se baseou em entrevistas com seus residentes:
Tanto las mujeres como los varones consideran que la educación es muy importante. Las razones que dan son las siguientes: “sirve para el futuro”, “permite una formación personal” y “nos ayuda a realizarnos y progresar”. Específicamente, los varones sostuvieron que “mejora la actitud de la gente”, “permite desenvolverse mejor en la vida” y “permite responder mejor las oportunidades que se presentan”. (Desco, 2005b p. 369)
Evidentemente que nem todos conseguiam ver seus filhos progredir nesse
sistema e muito menos lograr obter um emprego relativamente estável e bem
remunerado. Essas diferenças entre os moradores decorrentes do devir educacional e
profissional de seus descendentes mais imediatos eram justamente o que os diferenciava
em relação aos seus respectivos “progressos familiares”. Mas é preciso também ter em
mente que essas diferenças não eram pensadas tendo apenas em vista as condições
materiais que poderiam facilitar ou não a ascensão através do sistema educacional. Isso
porque a perseverança dos produtores em fazer com que seus filhos avançassem dentro
desse sistema e o próprio esforço ou aptidão destes últimos eram igualmente levados em
conta no modo como entendiam o progresso escolar.
3.5 Os esforços em prol da educação
Logo que eu e Carlos deixamos a escola em direção à chacra de um produtor,
encontramos pelo caminho com um sujeito de meia idade que nos disse trabalhar há um
169
ano como peão na região. Dois de seus três filhos estudavam na escola de Vila Santos e
moravam com o restante da família na casa do professor que dava aula na comunidade
nativa de Inkariado.164 Este lhe dava 200 soles mensais para que cuidasse da
propriedade. Além disso, esteve empregado recentemente numa obra viária local e
vinha trabalhando na chacra de um agricultor. Ganhava em média 10 soles diários que
só dariam “para o dia”. Era natural do norte do país e tinha 23 irmãos. Ficou órfão aos
nove anos e aos 10 virou “ajudante”. Chegou a estudar até o começo do segundo grau,
dado que quando jovem morou num ambiente urbano e, conseqüentemente, onde havia
uma maior facilidade para se acessar as instituições educativas de primeiro e segundo
grau. Veio para Chanchamayo junto de um primo; no norte a diária era de cinco a seis
soles. Disse que se não tiver dinheiro ou a “mentalidade” de seus filhos não ajudar, estes
terão que deixar a escola e ir trabalhar no campo.
A inaptidão pessoal para progredir no sistema educacional também seria
evocada na fala do próximo morador local com quem conversei. Havia seguido com
Carlos até a chacra de um dos chamados fundadores de Jose Galvez e que também era
sócio da Cooperativa La Florida. Quem nos recebeu foi um de seus filhos e amigo de
infância de meu cicerone (ambos eram vizinhos). O nome da propriedade (escrito numa
placa na sua entrada) era Fondo Las Estrellas. Tinha 33 hectares, sete destes plantados
com café e que produziam entre 15 a 20 quintais por hectare. Vendiam toda a produção
para a cooperativa; encontraria com esse jovem produtor – então com não mais do que
trinta anos de idade - na assembléia da La Florida que seria realizada no final do ano.
164 Trata-se de um professor de origem andina que há 10 anos dava aulas na comunidade nativa. Ele me disse que os materiais escolares custavam 300 soles por ano para cada aluno, fora o valor do uniforme que estes tinham de comprar. Vale ressaltar que esse professor morava na casa de um produtor outrora obrero do pai de Suzana. O fato de morar nessa residência era porque não podia voltar para sua propriedade dado que os filhos de um antes grande cafeicultor local haviam lhe feito diversas ameaças e eram considerados, por todos do anexo, como verdadeiros “delinqüentes” que não souberam aproveitar os “bons momentos” econômicos vividos por seu pai para se educarem.
170
Um irmão de seu pai foi um dos fundadores do povoado de La Florida; foi ele quem o
convenceu em ir atrás de um terreno “perto de Inkariado”. Por conta do “terrorismo”,
abandonaram a região em 1992. Contudo, seu pai passou a retornar a partir do ano
seguinte para sorrateiramente colher os grãos. Nessa época, “tudo aqui estava vazio, não
se ouvia nem cachorro”. “Os terroristas não gostavam de progresso, nem dos lideres
locais e representantes do governo”, disse ele que afirmou que atualmente os moradores
“ainda estavam se levantando”.
Ele me contou que seu pai “apoiou” seus estudos e o de seus irmãos, mas que
não seguiram adiante porque não gostavam de estudar. Permaneceram trabalhando no
campo (um dos seus irmãos era casado e tinha 10 hectares próprios), apesar das
dificuldades como “os altos juros cobrados pela cooperativa” e os “solos pobres”
incapazes de serem adubados por conta da falta de dinheiro. Mas reconhecia que “a
vantagem da cooperativa é de que ela paga um pouco mais que a calle”, apesar de que
“ela também exige mais”.165 Afirmou que um “pequeno produtor” tinha entre dois a
cinco hectares de terreno e um “produtor mediano” entre 20 a 30 hectares.166 Eles eram
uma das únicas famílias locais que possuíam um caminhão e que pela idade do veículo
dava para perceber que fora comprado durante os altos preços internacionais do café
vigentes nas décadas de 70 e 80. Conversando conjuntamente com os agricultores de
Vila Santos num momento posterior, ele estaria usando roupas novas que aparentemente
lhe destacavam dos demais cafeicultores.167
165 A calle (rua, em espanhol) significa um espaço genérico de compra e venda de café do qual participam os comerciantes intermediários e as empresas privadas exportadoras. 166 De acordo com o estudo, citado anteriormente, de uma organização não-governamental a respeito da “desigualdade no distrito de Perene”, os habitantes desse distrito entendem como o principal problema daquilo que definem como um agricultor pobre “es que carece de la capacidad técnica y los recursos para explotar debidamente sus tierras. A diferencia de este, el agricultor medio posee de veinte a más hectáreas de tierra y su producción es mejor tanto en cantidad como calidad.” (Desco, 2005b p. 367) 167 Em frente à sua propriedade se encontrava uma chacra de 50 hectares visivelmente abandonada; a diversidade da sua vegetação ressaltava seu estado de abandono num cenário ao redor tomado pela cafeicultura. Porém, um obrero tomava conta do sítio. Já sua dona vivia em Lima e às vezes vinha visitá-lo. Alguns de seus filhos também moravam na capital do país e outros estariam residindo na Itália.
171
Foto 31 – A casa do Fundo Las Estrellas Foto 32 – O caminhão
Carlos me levou até a casa de um antigo funcionário de seu pai e onde também
vivia o professor da escola situada na “parte alta” da comunidade nativa de Inkariado. A
propriedade estava localizada bem próxima dessa comunidade, de modo que levamos
praticamente uma hora para ir caminhando de Vila Santos até lá. Quase nenhum veículo
passou diante de nós, apenas dois carros da marca Toyota que levavam e traziam os
habitantes locais entre os anexos e os pueblos da região. Algumas poucas pessoas
cruzaram nosso caminho e meu anfitrião não conhecida nenhuma delas. Na verdade, a
estrada apenas recebia um número considerável de pedestres quando as crianças iam ou
voltavam da escola.168
Pareciam assim estar vivendo uma situação bem melhor do que a de grande parte dos produtores de Jose Galvez. Mas conversando com os moradores locais, também dava para perceber que antigamente e, mesmo nos dias atuais, ser cafeicultor se colocava como uma alternativa de vida mais valorizada do que diversas outras que estavam às suas disposições em outros cantos do Peru, especialmente nas regiões andinas. Os próprios obreros que vinham trabalhando na chacra dos Santos me disseram que se tivessem dinheiro comprariam um terreno em Jose Galvez. Isso porque eram produtores de batata nos Andes e esse cultivo era economicamente menos valorizado do que o café. Não era à toa que os que cultivavam batata vinham trabalhar para os cafeicultores e o contrário jamais acontecia. 168 Esta pista levou oito anos para ser construída e ficou pronta em 1979. O “presidente” do “comitê” responsável pela sua construção foi justamente o pai de Carlos. Para realizar essa obra viária foram usadas as máquinas da Cooperativa La Florida e as quais eram abastecidas com o combustível comprado com o dinheiro arrecadado entre os moradores locais. Na ocasião da minha visita à região, um trecho de 28 quilômetros entre Jose Galvez e outros dois anexos vizinhos estava sendo reparado com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) canalizados através do governo peruano.
172
Foto 33 – A estrada
Na minha conversa com o outrora obrero do pai de Carlos também fora evocada
a questão do comprometimento com o progresso educacional. Este sujeito chegou em
1963 à selva central (ele tinha quinze anos nessa época). Deste ano até 1965 trabalhou
como mejorero (cuidava dos cafezais) em Palomar; até que estabeleceu um “acordo”
para trabalhar com o pai de Carlos. “Queria ter um terreno pequeno, não sou
ambicioso”, disse. Nesse período, havia apenas pequenas trilhas que chegavam até Jose
Galvez e só depois que começaram a ser construídos caminhos que comportavam a
passagem de mulas.169 Ele enfatizou bastante a dificuldade que as crianças tinham para
se deslocar até a escola: “era um atoleiro”. Quando fizeram a estrada, os animais
costumavam vagar pela pista, pois os produtores não possuíam os recursos para cercar
suas propriedades e, desse modo, “os pais continuaram preocupados com a locomoção
dos seus filhos”. Depois de produzir mais de 100 quintais por safra, ele pôde juntar
dinheiro suficiente para comprar uma chacra num anexo vizinho e a qual era mais
próxima de uma escola (aonde seus filhos vieram a estudar). Contudo, acabou se
separando de sua esposa, lhe deixando essa nova chacra e retornando para Jose Galvez
169 Afirmou ter trazido de Palomar mais de 1.500 plantas de café “no ombro”.
173
(onde hoje em dia produz café).170 Era sócio da Cooperativa La Florida e demonstrava
orgulho em ter quitado todas suas dívidas com essa organização, apesar da tristeza que
não conseguia esconder a respeito do que definiu como seu “fracasso familiar” (o
divórcio).
O professor que vivia com ele também estava presente durante nossa conversa.
Disse que chegou em 1995 no anexo para ensinar os alunos da comunidade nativa local.
Nesta comunidade apenas uma pessoa seria “profissional” e se tratava justamente da
professora que também trabalhava lá. Além dela, outros dois indígenas teriam
completado o segundo grau. “Alguns alunos têm um só caderno, onde anotam tudo sem
fazer separações”, assinalou completando: “outros só têm um pedaço de cartolina.” De
acordo com ele, a Cooperativa La Florida abriu um linha de financiamento para que os
indígenas comprassem materiais escolares para seus filhos, mas alguns pais usaram o
dinheiro de outra forma e o crédito acabou sendo cortado (alga similar teria acontecido
com uma doação que deveria ser usada na melhoria da infra-estrutura da escola e
terminou indo, em boa parte, para o custeio do tratamento médico de determinados
ashaninka).171
170 Ainda sobre a cooperativa, comentou sobre o fato de que os 100 soles que eram cobrados de qualquer agricultor que queira fazer parte dela seria o motivo principal de muitos não se tornarem seus sócios (o mesmo se passaria com os 120 soles necessários para se fazer parte da Crediflorida). Sobre a época do “terrorismo”, afirmou que permaneceu na região e que “os terroristas vinham apenas pedir comida, mas não faziam nenhum mal.” 171 Conversei ainda com um senhor que vivia numa chacra em frente da do antigo obrero do pai de Carlos e também com a mulher do dono da loja que ficava um pouco mais à frente seguindo na estrada que ia dar na comunidade nativa. O primeiro disse que chegou à região em 1972 e que comprou em 1980 sua chacra, de um dos aproximadamente onze fundadores de José Galvez, depois de ter trabalhado como peão para alguns desses sujeitos. Ele voltou para Lima diante do fenômeno do “terrorismo” e retornou recentemente para o anexo, onde comprou uma nova chacra (seus dois filhos continuavam morando na capital do país e ambos cursavam o ensino superior). Ele era sócio da Cooperativa La Florida, tinha três hectares de café e que produziram nesse ano 18 quintais. Já a mulher do dono da loja me contou que esse estabelecimento não tinha muitos produtos por que “investiram tudo no café” (eles adubavam a terra com insumos permitidos pelas agências de certificação orgânica). Tinham 7.5 hectares plantados com café e dois que deveriam produzir a partir do próximo ano (os outros cultivos seriam para consumo próprio e alimentação dos obreros). A produtividade dos seus cafezais era de 23 quintais por hectare. Seu marido veio de Cajamarca, trabalhou como peão na região e comprou a chacra de um nativo há trinta anos por 70 soles. Há sete anos adquiriu uma segunda parcela ao lado. Ela disse que não tinham aonde ir na “época do terrorismo” e que não gostava nem de se lembrar desse período. Seus filhos cursavam o ensino médio.
174
Esse professor classificou os nativos como sendo “conformistas”. Tal discurso se
contrastava com a sua visão positiva dos indígenas e crítica dos colonos que esteve
presente durante uma conversa anterior que tivemos depois de encontrá-lo caminhando
sozinho pela estrada. Nessa ocasião, ele havia assinalado que “os colonos são
ambiciosos.” Independentemente das mudanças em suas falas, as duas reproduziam um
senso comum vigente entre os habitantes da selva central. Tal senso comum pode ser
sintetizado nas seguintes frases freqüentemente repetidas pelos moradores locais: os
“nativos não se esforçam para progredir na vida” e os “colonos são ambiciosos.” Nessa
perspectiva, os ashaninka e demais “povos amazônicos” eram associados ao “atraso” e à
“ausência de progresso ou desenvolvimento”.
A seção seguinte focaliza justamente os indígenas da comunidade nativa de
Inkariado. Através das minhas conversas com estes sujeitos foi possível perceber a
maneira como pensavam o lugar subalterno com o qual se identificavam e eram
identificados. Para muitos dos colonos andinos, os nativos eram as pessoas
“conformistas” por excelência. Em outras palavras, estes últimos não procurariam se
esforçar em busca de melhores condições de vida. Evidentemente que os indígenas
discordavam desse estereótipo, além de retrucarem dizendo que o que lhes faltava eram
precisamente os meios para poderem “progredir”. De qualquer maneira, eles próprios se
viam como mais afastados do que os demais em relação à superação da situação
precária à qual vivenciavam.
3.6 Os nativos
A história dos ashaninka de Inkariado me foi contada, de modo mais extenso,
por um dos “líderes” dessa comunidade e com quem Carlos mantinha uma relação de
175
amizade. De acordo com ele, antes mesmo dos colonos chegarem, existiam seis famílias
ashaninka que separadamente habitavam a região e se alimentavam basicamente da caça
dos animais que havia na selva. Ele lembrou que “em 1964 os colonos se organizaram
em Yurinaki para que seus direitos fossem garantidos” e o mesmo teria acontecido com
alguns indígenas locais entre 1965 e 1967 quando criaram uma escola e conseguiram
estabelecer um território próprio. Nesse último ano, uma epidemia de sarampo dizimou
a maioria desses indígenas e os poucos que sobreviveram passaram a repovoar o grupo.
Seu avô era justamente um destes sobreviventes e veio a se tornar um líder entre os
demais que permaneceram vivos. Este conseguiu aglutinar, em 1968, outros nativos
dispersos pela região, mas que se desgarrariam do grupo no ano seguinte e criariam
outras comunidades. Entre 1977 e 1978 iniciaram o cultivo de café em Inkariado; até
então trabalhavam “nas fazendas de Perene” em troca de dinheiro, roupa e escopetas.
Foram destas propriedades que adquiriram as sementes do grão e as quais plantaram tal
como faziam com o milho.
Em 1980 os cafezais começaram a produzir e seis anos depois todos os membros
da comunidade estariam cultivando seus próprios pés de café.172 Ele lembrou que essa
produção continuava sendo realizada de “maneira tradicional e não-técnica” até que
fizeram parte do “programa de café orgânico” da Cooperativa La Florida. No ano de
2000, os filhos dos sócios passaram a freqüentar as capacitações oferecidas pela
cooperativa no povoado de La Florida. Das 110 famílias que no momento da minha
visita congregavam os 400 habitantes da comunidade, quase que a metade teria alguém
associado a essa organização de produtores. “Queremos trabalhar a diversificação, a 172 A comunidade nativa de Inkariado foi legalmente registrada em 1987 e com uma área total de 1.603 hectares. A Central de Comunidades Nativas da Selva Central teria provido um apoio crucial para que a comunidade pudesse obter essa titulação de suas terras. Eles ainda continuariam participando dessa central e na qual meu interlocutor disse encontrar um espaço bastante importante para a troca de experiências entre as comunidades nativas. Sobre o fenômeno do “terrorismo”, afirmou que os indígenas de Inkariado teriam permanecido no local. “No terrorismo estávamos unidos, mas três comuneros desgarrados perderam sua vida”, assinalou acrescentando: “Inkariado dizia para os terroristas que poderia pedir ajudo do grande exército ashaninka”.
176
agricultura sustentável”, afirmou citando o plantio de banana, a criação de animais e a
manutenção de hortas familiares como atividades que queriam desenvolver, mas que
necessitavam de “capacitação técnica” para isso. “Só temos dinheiro na temporada do
café, depois temos que sair para trabalhar como peões”, completou lembrando que
quase não existem mais animais na região para serem caçados e que para comerem
carne teriam que ir comprá-la no pueblo mais próximo.
Mas o problema maior de Inkariado seria o de que seus moradores contavam
com pouca quantidade de terra. “Cada agricultor dispõe geralmente de um hectare ou
um hectare e meio; uns poucos conseguem ter até quatro hectares”, comentou
ressaltando que “a população esta aumentando e o tamanho território permanece igual”.
“Há jovens que não têm chacras”, assinalou. Suas esperanças se voltavam para o cultivo
de café com base na agricultura orgânica; ele inclusive ia freqüentemente até outras
comunidades nativas formadas por pessoas associadas à La Florida e as reunia para lhes
explicar “o que é a agricultura orgânica”. Contudo, mesmo os sócios de Inkariado ainda
“deveriam ser capacitados em relação à agricultura orgânica”: “há agricultores que
vendem para outros que não a La Florida e estes produtores não estão pensando no
futuro, pois a cooperativa sempre dá algo”. Ele terminou nossa conversa afirmando que
na comunidade nativa onde morava só havia uma religião – a Igreja Batista do Sétimo
Dia – e que ele também tinha que “capacitar” os demais habitantes nessa crença, na
medida em que era um pastor.
Encontrei com um jovem e depois com uma jovem ashaninka pelo caminho
enquanto voltava junto de Carlos até sua casa. O primeiro havia recebido de seu pai três
hectares e cultivado café na metade deles. Tinha produzido esse ano 15 sacas (ou
quintais) do grão. Disse que, por conta da pouca extensão do território da comunidade
nativa local, recebiam terrenos pequenos para iniciarem suas chacras. Ele tinha cursado
177
apenas o primeiro grau: “aqui em Jose Galvez não há escola de segundo grau e quando
se tem muitos filhos não se tem dinheiro para educação”, afirmou ele que também
contou ter nove irmãos ao todo. Outra informação que me passou foi a de que na “parte
baixa” de Inkariado só havia membros da família Mayunga e que estes deveriam se
casar com pessoas das demais famílias da comunidade então residentes da chamada
parte alta. A família Mayunga era a de sua mãe e de seus tios (entre estes últimos se
incluía o líder de Inkariado com o qual pude conversar): “aqui se casa com as cunhadas
dos pais, para casar tem que ser com uma família de outro sobrenome; não se pode casar
com primas”. 173 Ele citou o nome de duas dessas outras famílias: os Palomino e os
Camacho.
A jovem ashaninka com quem conversei depois dele era justamente dessa última
família e me contou sua versão da história de Inkariado com base nos casamentos entre
as famílias que fizeram ou faziam parte dessa comunidade. Após me relatar essa
história, se definiu em comparação aos demais nativos locais: “eu já sou um pouco mais
civilizada”.174 Ela tinha 23 anos; aos 20 havia terminado o segundo grau, mas não
possuiria dinheiro para ingressar no ensino superior. Suas duas irmãs eram casadas e
haviam apenas concluído o primeiro grau; uma morava em Inkariado e a outra num
centro povoado próximo. Seu pai era sócio da Cooperativa La Florida e certificado
173 A questão da “mistura” entre pessoas “corporalmente diferentes” é algo que parece permear muitas sociedades ameríndias e capaz de ser percebido através da junção nessas sociedades não só de povos distintos (como acontece com os yanesha e ashaninka que conjuntamente compõem muitas comunidades nativas da selva central, por exemplo) como também de famílias de uma mesma etnia que se diferenciam “substancialmente” por meio dos seus sobrenomes: “O estado originário de diferenciação precisa ser mantido como um traço por meio dos sobrenomes, pois são estes que permitem os casamentos no presente, mediante a diferenciação dos ‘sangues’. Essa imagem é familiar aos estudiosos das sociedades indígenas amazônicas desde que foi primeiro enunciada por Joanna Overing. Ela argumentava que essas sociedades se caracterizavam por uma mistura sutilmente administrada de diferenças perigosas, mas férteis, e de semelhanças seguras, mas estéreis.” (Gow, 2003) 174 Essa jovem participava de um programa de capacitação (em hortas familiares e criação de porcos da índia) promovido por uma organização não-governamental. Tal programa envolvia um grupo de moradoras de Jose Galvez e de outros anexos visinhos. Uma destas informou, durante uma reunião desse grupo, que essa jovem lhe disse que os nativos de Inkariado não queriam participar do programa porque “não queriam receber ordens”.
178
como produtor de café orgânico. “Temos quatro hectares de café e que produzem 80
quintais”, afirmou lembrando que “alguns nativos têm um hectare ou meio, isso porque
têm muitos filhos”. De acordo com ela, “quem tem filho homem tem que dividir sua
terra”. Outro motivo de seu pai ter 15 hectares seria de que seu avô vivia na comunidade
e pôde lhe dar um maior pedaço de terra do que os que estiveram à disposição daqueles
que “vieram de fora”: “não há mais espaço para gente nova”, completou. Ao falar de
quatro indígenas locais que teriam entre três a quatro hectares de café (dois destes
possuiriam os únicos dois veículos existentes em Inkariado), ressaltou: “eles escolheram
trabalhar, tem gente que tem terra e não quer trabalhar, não quer ter mais”.
De acordo com um relatório de 2006 do departamento técnico da Cooperativa La
Florida, o “comitê zonal” de Inkariado tinha 37 “produtores orgânicos” e três no
“segundo ano de conversão”. De todos estes sócios, 15 tiveram sua produção estimada
para esse ano em até 15 quintais de café; 12 entre 15 e 20 quintas; seis entre 20 e 25;
três entre 25 e 30; um em 40; um em 46; um em 50 e um em 60. Acontece que não
existia uma relação necessária entre a extensão de terra que cada um destes produtores
possuía e a quantidade de café que produzia. De qualquer maneira, quanto mais um
agricultor produzisse, mais recursos ele provavelmente teria à sua disposição e isso
certamente seria uma vantagem perante os demais em relação à capacidade de prover as
condições para seus filhos progredirem no sistema educacional. Contudo, pode-se dizer
que até então esse progresso escolar era bastante efêmero entre os nativos, apesar de que
a infra-estrutura da escola da chamada parte alta de Inkariado estava em melhores
condições do que as de muitas escolas de primeiro grau ao seu redor.175 O problema era
que o acesso às instituições de ensino de segundo e terceiro grau demandava um
montante de recursos que os indígenas demonstravam não possuir. Ocorre que os
175 Esta escola havia sido reconstruída com recursos públicos durante a presidência de Alberto Fujimori. Tais recursos foram canalizados através do Fondo de Cooperación para el Desarrollo Social (FONCODES).
179
nativos, de um modo geral, eram vistos e se viam como os representantes por excelência
da condição de extrema pobreza entre os habitantes do distrito de Perene. De acordo
com a pesquisa evocada anteriormente e baseada em conversas com estes habitantes:
En relación con los miembros de comunidades nativas, que pertenecen al grupo de los extremamente pobres, afirman que sus actividades agrícolas arrojan una producción de baja calidad y cantidad, por lo que se encuentran en una posición de desventaja frente a los colonos andinos en lo que respecta el acceso al mercado. Asimismo, señalan que, durante los períodos de muy baja producción agrícola, muchos nativos suelen emplearse como peones (jornaleros) en terrenos de cultivo que pertenecen a personas acomodadas con ingresos medios, pero que esta actividad los remunera con sueldos comparativamente más bajos que los que reciben los colonos andinos. (Desco, 2005b p. 367) A diferença entre as condições de vida dos nativos e dos colonos foi o assunto
principal do meu diálogo com o técnico da La Florida que trabalhava há dois meses
entre os 40 sócios de Inkariado (ele morava durante a semana nessa comunidade e nos
finais de semana retornava para sua casa num centro povoado próximo). Esse
funcionário me disse inicialmente que “os nativos não se nivelam com os colonos”. Isso
seria decorrente de uma “administração incorreta da economia familiar” entre os
primeiros. Estes ainda gastariam de forma muito rápida aquilo que ganhavam com a
venda de café e usariam de maneira desnecessária parte desse dinheiro em “festas e
diversão”. “Depois eles ficam sem dinheiro e saem para trabalhar em qualquer chacra na
qual possam encontrar trabalho”, apontou. Dos 40 sócios, 36 eram orgânicos e quatro
“em transição”. Apenas 10 a 15 destes sujeitos estariam conscientes da importância de
se dedicarem ao cultivo de café e isso se refletiria na melhoria das suas condições de
vida. Ele lembrou que “os que produzem mais de 25 quintais são sustentáveis.” “Eles
têm mais porque viram outros vizinhos melhorarem de vida e se espelharam neles na
condução de um bom manejo da plantação”, assinalou na esperança de que os outros,
180
que produziam menos de 15 quintais, e que ele considerava como sendo “débeis”,
pudessem imitar esses “sustentáveis”.176
3.7 A desigualdade entre os colonos andinos
Tal como se passava em outros lugares do distrito, a situação vivida pelos
colonos de Vila Santos se apresentava de forma bem mais heterogênea do que a dos
indígenas da comunidade nativa próxima de suas casas. Isso ficou evidente durante
minha segunda visita com Carlos a estes colonos. Nessa ocasião, pude conversar com
alguns pais dos alunos da escola local reunidos pelo seu professor a meu pedido. Antes
de entrarmos na escola, estes senhores me receberam de maneira bastante cordial e se
mostraram muito agradecidos pela contribuição de 200 soles que fiz para o novo
estabelecimento de ensino que vinham construindo ao lado. O primeiro dos três
produtores presentes começou me contando sua história. Disse que veio em 1977 para a
selva central, deixando de lado a pobreza reinante na província de Celendín
(departamento de Cajamarca). Trabalhou como obrero durante um ano e meio para um
agricultor, um ano para um segundo, três anos e meio para um terceiro e se tornou
“sócio” de um quarto. Há oito anos comprou sua chacra (localizada a meia hora de Vila
Santos). Afirmou ter cinco hectares e meio de café e mais três recém plantados. Tinha
dois filhos “legítimos” (um com 14 anos e outro de 17 que já possuía meio hectare de
café) e um “político” (com 21 anos e que também ganhou dele um terreno); todos estes
176 De acordo com Santos e Barclay (1995 p. 305): “La producción agropecuaria comercial también tiene un importante impacto en la estructura y organización social indígena. Si bien por un lado ésta ha contribuido a congregar a las familias indígenas en torno a reivindicaciones que fortalecen sus actuales organizaciones, por otro ha generado cierto nivel de diferenciación socioeconómica interna, la cual restringe el ámbito de las relaciones de reciprocidad y con ellos las bases de la solidaridad intracomunal. En efecto, una vez que se descubre que el secreto del enriquecimiento de los no-indígenas está – como afirmaba un comunero ashaninka – en que ‘el colono guarda, guarda, pues’, algunas familias comienzan a optar por este mecanismo como un medio para capitalizar-se, autorrecortando el ámbito en el que mantienen relaciones basadas en la regla de reciprocidad con sus familiares más cercanos.”
181
apenas cursaram o primeiro grau. Seus netos (filhos de seu filho “político”) estudavam
na escola de Vila Santos.
No meio da conversa, ele se virou para Carlos e lhe disse: “Vila Santos tem seu
sobrenome e vocês não nos ajudam, foi seu pai quem ia dar o terreno para a escola”.
Sem graça e visivelmente constrangido, Carlos permaneceu calado. O produtor então
retomou seu relato e trouxe à tona a “época do terrorismo”: “foram os pobres que
ficaram e eles estão aqui até agora.” Ele afirmou ter sido um dos poucos que
permaneceram em José Galvez durante esse período crítico e assinalou que os membros
do MRTA (Movimento Revolucionário Tupac Amaru) vinham até suas casas. Por conta
disso, o exército o teria levado até uma base militar num distrito vizinho para que fosse
interrogado. “Nessa época, os direitos humanos e a cruz vermelha estavam por lá; antes
o exército batia nas pessoas”, lembrou. Dois filhos de um antigo morador teriam sido
mortos pelos guerrilheiros. “Não dormíamos tranqüilos”, contou. “Com o tempo os
produtores iam e voltavam, depois foram se instalando quando viram que estava tudo
tranqüilo por aqui”, colocou.
Ele apontou para o fato de que “quem veio antes (para José Galvez) agarrou sua
chacra” e que “quem veio antes e trabalhou fez algo”. Reconhecia assim os esforços
daqueles que lhe precederam no local (“quando cheguei a estrada tinha acabado de ser
feita”) e os tomava como exemplo de vida: “a nossa idéia era fazer igual aos
fundadores”. Era recém associado à Cooperativa La Florida e disse ter entrado na
cooperativa “só pelo preço e por necessidade.” Já durante nossa conversa dentro da
escola, confessou de maneira visivelmente constrangida que também fazia parte de uma
central de associações de produtores cuja gerente era de Jose Galvez: “ela têm boas
idéias e bom ânimo”. Este ano estaria “analisando” qual das duas instituições seria
182
economicamente mais vantajosa e com base nisso iria participar de apenas uma delas no
ano seguinte.
Outro dos moradores que nos acompanhava disse ter chegado à selva central em
1969. Nessa época, tinha 16 anos e passou a trabalhar como personal. Com 28 anos teve
sua primeira chacra num anexo mais a leste de Jose Galvez. Apesar de estar produzindo
120 quintais no começo da década de 1990, “em 1990, 1991 o café baixou para 0.50
centavos (o quilo); um saco de arroz valia um saco de café”. “Vendi a chacra por
pouco”, afirmou completando que com o dinheiro comprou uma casa na maior cidade
dos Andes centrais. Mas acontece que “não havia trabalho” nessa cidade e por isso se
desfez desse imóvel. Foi então que adquiriu sua chacra em Vila Santos. Ele tinha cinco
filhos - “apenas o mais velho chegou até o segundo grau; meus filhos não tinham
dinheiro na cidade” - e seu neto era um dos alunos da escola de Vila Santos.
“Os antigos tiveram dinheiro e educaram seus filhos”, assinalou acrescentando:
“em comparação com a serra, aqui quando se trabalha se tem dinheiro e nós viemos aqui
para progredir”. Contudo, “o vizinho não nos ajuda”, disse ele, nervoso e com lágrimas
nos olhos, para Carlos. Esse senhor era sócio da Cooperativa La Florida há um ano.
“Quero entregar para a cooperativa, mas falta algo em casa e tenho que vender o café na
calle” (para os comerciantes intermediários), apontou lembrando que esse ano não
entregou seu café para a La Florida, ao contrário do que fez no ano anterior. “Agora o
preço esta igual à calle, não convém entregar para a cooperativa; a cooperativa compra
com 12% de umidade, seco e bem branco, na calle se compra com 13%, 14% de
umidade”, colocou (quanto maior a umidade, mais pesado o café) e concluiu: “ano
passado entreguei seco e perdi quilos”. A calle estaria pagando 5.10 soles o quilo do
chamado café convencional e a La Florida 4.80 soles para o quilo deste tipo de café e
5.70 para o orgânico. Além do preço maior pago para este último tipo de café, outra
183
vantagem que via nesta cooperativa em relação aos comerciantes intermediários era a de
que ela dava reintegro aos seus associados no final de cada ano. Mas acontece que no
ano anterior isso não aconteceu e ele então se “desanimou” diante dessa organização de
cafeicultores.
As conversas retratadas a seguir se deram com os moradores locais considerados
pelos demais e por si próprios como sendo produtores “mais antigos”. Acontece que
essa precedência no cultivo de café significava que seus protagonistas vivenciaram um
período, as décadas de 70 e 80, no qual os solos “produziam bastante” e os preços do
café “eram altos”. Esses dois fatores seriam atenuados nas décadas seguintes e os que
puderam vivenciá-los “positivamente” (enquanto cafeicultores) foram capazes de
adquirir certos bens (como casas nas cidades, veículos automotores e terrenos no
campo, por exemplo) de uma maneira que não veio a se repetir. Não é sem razão que
praticamente todos os veículos que via nas chacras dos agricultores foram comprados
nos anos 70 ou 80 e por aqueles considerados “mais antigos”.
3.8 Os “mais antigos”
Conversei com um desses produtores “mais antigos” e o qual morava numa
grande casa em Vila Santos que, por conta do seu tamanho, se destaca bastante das
demais residências.177 Ele era natural de Cajamarca (província de Celendín) e chegou à
selva central em 1963. Trabalhou como obrero em La Florida durante cinco anos. Seu
irmão havia se estabelecido em Jose Galvez no ano de 1961 (com o apoio da
Associação de Pequenos Produtores do Baixo Yurinaqui); ele então passou a “ajudá-lo”
177 Essa casa era bastante similar à do Fundo Las Estrellas (ver foto 31). Por outro lado, apesar do tamanho superior desses imóveis em relação aos demais, o caráter inacabado deles refletia o fato de que as condições que permitiram que fossem erguidos (como é o caso da “produtividade” dos solos, por exemplo) acabaram não perdurando.
184
(as terras eram compradas dos nativos locais, apesar de legalmente pertencerem à
Peruvian Corporation). Em 1976, ingressou na Cooperativa La Florida. “Antigamente
havia boa colheita e bons preços, agora as chacras estão velhas como nós”, assinalou.
No ano seguinte ao seu ingresso na cooperativa, comprou um veículo para transportar
seu café até o povoado de La Florida (antes da construção da estrada no local, os
moradores gastavam um dia todo para levar seu produto até esse povoado através de
mulas). “Derrubávamos muitos montes, nos parecia uma diversão; mas é a árvore
grande que dá proteção ao solo”, refletiu acrescentando: “acontece que o peruano é
ambicioso”.
Esse senhor permaneceu na região durante o “terrorismo”: “em La Florida foi
mais problemático, mataram oito pessoas; aqui em Jose Galvez mataram duas”.
“Primeiro veio o Sendero Luminoso e depois o MRTA”, afirmou. Ele foi casado duas
vezes; tinha uma casa num povoado próximo e a qual deu para sua primeira ex-mulher
num período anterior à “subversão”. Dos seus doze filhos, nenhum passou do segundo
grau. Um destes estudava na escola de Vila Santos; por isso ele era um dos pais que
havia financiado a construção da nova escola. Seus filhos mais velhos viviam na cidade
de Pichanaki e eram comerciantes. Ele entregava todo seu café para a cooperativa e se
mostrava um sócio bastante dedicado e identificado com essa organização, apesar de
concordar com as críticas mais comuns que esta recebia. Estava inteirado dos
pormenores que envolviam as controvérsias em torno da La Florida e se mostrou uma
fonte crucial para que me interasse dos eventos que vinham sendo debatidos em
conjunto pelos associados.
Um dos vizinhos de Carlos era irmão de seu falecido pai. Pude conversar com
ele e seu filho junto desse meu anfitrião. Esse senhor começou nossa conversa me
contando que, em 1954, estava cursando o primeiro grau na sua terra natal (distrito de
185
Huancarey, departamento de Andahuaylas), quando três moradores locais foram até sua
escola e doaram vários sacos de cimento para a reforma desse estabelecimento. Em
seguida, escutou as pessoas do povoado comentando a respeito destes sujeitos: “eles
vieram de Chanchamayo.”. Isso lhe marcou bastante e o mesmo se deu com a seguinte
frase de sua professora: “quem tem dinheiro vai estudar em Lima, quem não tem vai
para Chanchamayo”. Junto de seu irmão mais velho e de outros 45 habitantes do seu
distrito, ele partiu em 1961 para a selva central e “sem praticamente nenhum dinheiro
no bolso”.
Nessa época, só havia trilhas até o povoado de La Florida: “500 pequenos
agricultores lotearam La Florida”, completou. Segundo ele, estes eram de diferentes
departamentos e adquiriram terrenos de no mínimo 30 hectares. Acreditava que foi o
“fator sorte” que influiu na permanência sua e de seu irmão na selva: “uns sangravam as
mãos de tanto usar o facão e tiveram assim que ir embora”. Ambos foram então
informados que haviam conseguido duas “vagas” nas terras da Peruvian Corporation.
Quando começaram a produzir, viram que as terras eram férteis: “se colhia 30 a 40
quintais por hectare, com três hectares se vivia bem e poucos se esforçavam para ter
mais hectares.” De acordo com ele, um quintal chegou a render US$ 300 e isso se deu
“numa época em que um técnico ganhava US$ 800”. “Havia 18 cooperativas na região;
a Cooperativa La Florida nos favoreceu e os produtores que tinham instrução estavam
na junta diretiva”, afirmou. “Mas o terrorismo nos prejudicou muito, estávamos com
níveis altos de produção; poderíamos superar a crise dos preços do café”, ressaltou
acrescentando: “antes nessa zona um pequeno produtor produzia de 100 a 150 quintas e
um mediano por volta de 800 quintais; agora os pequenos produzem entre 10 a 20
quintais e os medianos de 80 a 100 quintais”.178
178 Ele tinha um irmão que vivia num anexo vizinho e com o qual pude também conversar. Tal sujeito chegou em 1965 à selva central e junto de sua esposa e o então único filho do casal. Trabalhou com seu
186
Seu filho nos disse que “na época do terrorismo era difícil para os produtores
manterem seus filhos na universidade”. Ainda segundo esse primo de Carlos, “entre
1984 e 1989 era fácil para estudar; entre 1989 e 1993 não”. Ele então completou seu
raciocínio: “os que conseguiram educar seus filhos fizeram isso porque tinham
guardado dinheiro”. Esse jovem e seu pai participavam da organização de produtores
que sua irmã gerenciava; esta última era formada em administração de empresas e vivia
na cidade de Pichanaki, onde se encontrava a sede dessa organização. Por detrás do
desligamento da família em relação à Cooperativa La Florida, havia um ressentimento
derivado do constrangimento ao qual ficaram submetidos diante das suas dificuldades
em honrarem um empréstimo que fizeram com essa entidade. Não era à toa que através
do empreendimento que vieram a constituir, junto de outros agricultores, procurassem
não só se contrapor a essa cooperativa como seguiam os passos de uma central de
organizações de cafeicultores do norte do país (a CEPICAFE) que lhes parecia oferecer
um modelo de desenvolvimento agrícola alternativo ao da La Florida. Isso porque está
última teria “deixado de lado” seus sócios ao se concentrar excessivamente na sua
“parte comercial”.
O ponto é que esta família era uma das poucas do anexo cujos membros
puderam ter acesso ao ensino superior e a um emprego estável e relativamente bem
remunerado. Uma situação similar se passava num anexo vizinho chamado Miguel Grau
irmão mais velho (o pai de Carlos) durante certo tempo até que pode comprar sua chacra. Tinha 12 hectares de terra, com quatro plantados com café e que produziam 25 quintais por hectare. Era sócio da Cooperativa La Florida e certificado como “orgânico”. Todos os seus seis filhos chegaram a trabalhar com ele: “antes eu tinha uma dívida com a cooperativa e mesmo assim contratava personales, fizemos um esforço para sair do problema da dívida, meus filhos colaboraram e agora recebem dinheiro para seus estudos superiores”. Um destes vivia e “não trabalhava, só estudava” numa cidade andina; por conta disso recebia, no mínimo, 600 soles por mês. “Antes eu bebia muito, fazia muitas festas e isso levava 30% dos meus orçamentos anuais; isso me levou ao fracasso”, disse completando: “eu dizia para minha esposa que era eu quem mandava em casa”. Um de seus filhos teria ficado doente e “se curou através do evangelho”. “Agora em casa há disciplina, respeito; não tenho que me preocupar mais com os filhos, eu sei que estão fazendo o bem”, afirmou acrescentando: “355 das pessoas daqui são evangélicas; são 12 em Miguel Grau (seu anexo), de 40 e tantos produtores”. “Estou há quatro anos convertido, há um ano paguei minhas dívidas; melhoramos a manutenção do cafezal”, concluiu.
187
(ver mapa II) e no qual também permaneci hospedado na casa de uma destacada família
local.179 Tal proeminência derivava justamente do fato de quase todos os filhos do casal
ter cursado uma faculdade e estar envolvido profissionalmente com algo que lhes
permitia viver uma típica vida de classe média urbana. Dois deles trabalhavam com o
irmão de Carlos na Central Café Peru, sendo que o mais velho era o gerente dessa
organização. Outro era funcionário de uma pequena empresa privada exportadora de
“cafés especiais” e na qual a irmã de Carlos também estava empregada (ambos eram
inclusive namorados). O único dos irmãos que não entrou em contato com o ensino
superior era caminhoneiro. Já a irmã deles, apesar de ter cursado uma faculdade, morava
com seus pais na chacra. Ela trabalhava no Comitê de Desenvolvimento Familiar da
Cooperativa La Florida e, em 2006, concorreu a um dos oito postos de regidor do
distrito de Perene.
179 Eles tinham uma pequena loja próxima à escola do anexo e do campo de futebol em frente a esse estabelecimento de ensino (o qual era igualmente cercado por umas duas ou três residências). Pude conversar com os dois professores dessa escola. Um deles ensinava as crianças de três a cinco anos do local e o outro os alunos do primeiro grau. As crianças mais novas começaram a ser atendidas pela escola justamente em 2006 (ao contrário das mais velhas, não recebiam bolachas vitaminadas como merenda, mas sim uma refeição a base de legumes, verduras e cereais). Seu professor era um jovem que recebia uma ajuda de custo para se manter, na medida em que ainda não havia se formado e estava realizando uma espécie de estágio docente. Ele tinha 15 alunos; dos 12 pais destas crianças cinco tinham sua própria chacra e o restante era obrero. “A diferença entre patrões e peões se dá entre as próprias crianças”, disse ressaltando sua insistência em tratar da mesma maneira todos os seus alunos. A lista de material escolar que pedia para os pais custava 50 soles por aluno. Também me contou que uma enfermeira do povoado de La Florida vinha ver a saúde das crianças, sendo que as doenças mais comuns entre elas eram a malária e a gripe. O outro professor estava trabalhando no anexo há 14 anos. Tinha 35 alunos, de seis séries diferentes e que estudavam juntos numa mesma sala. Entre os 20 pais de seus alunos, 14 possuía uma chacra e os demais eram obreros. Já sua lista de material escolar estava orçada em 100 soles. De acordo com ele, esse ano os filhos dos sócios da Cooperativa La Florida receberam dela caderno, lápis e borracha. De qualquer maneira, sua visão é a de que esta cooperativa “não ajuda com a educação; nós sempre vamos falar com os dirigentes, mas não há resultado”. Na página eletrônica dessa entidade é possível ler o seguinte: “Para La Florida es una preocupación constante, los niños en la Educación Primaria, por ello a través del Departamento de Educación, se promueve la asistencia de los niños a las escuelas dotando con útiles escolares, a aquellos que carecen de recursos económicos especialmente de las comunidades nativas. Así mismo, La Florida implementa las bibliotecas de las escuelas, los huertos escolares y uniformes para las prácticas deportivas. El financiamiento de estos programas se financia con las utilidades logradas gracias al eficiente sistema de Comercialización y el Plus que se obtiene por la venta bajo el sistema de Comercio Justo FLO.” (www.lafloridaperu.com)
188
O chefe dessa família se colocava e era colocado como o líder do “comitê zonal”
local.180 Ele veio em 1968 para a selva central e logo de cara foi trabalhar como obrero
na fazenda de Hector Marin em Palomar. Adquiriu um terreno através da Associação de
Pequenos Produtores do Baixo Yurinaki: “os mais decididos ficaram com as chacras,
agora esta mais fácil viver aqui; tem estrada”, me disse. Foi tenente-governador do
anexo durante quinze anos: “eu estava na lista dos que iam ser assassinados pelos
terroristas”. Por conta disso e dos assassinatos no povoado de La Florida, mudou junto
de sua família para a casa que tinham em Lima e depois para outra numa cidade
próxima de La Merced, onde também mantinham uma loja e usavam sua camionete para
transportar passageiros. Retornaram à chacra quando a situação se acalmou (no auge no
conflito civil que assolou a região, ele tentou vender essa propriedade por
aproximadamente US$ 3.500, mas não encontrou comprador; atualmente ela valeria
US$ 100.000).181
“Na chacra trabalhando dá, eu eduquei meus filhos e cumpri assim com meus
objetivos”, colocou acrescentando: “enquanto eu comprava mais terras, muitos
compravam automóveis para irem exibir nos seus povoados natais”. Ele encarava
qualquer tipo de festa, mesmo as de aniversário, como um “gasto inútil”. Ao comentar
de um vizinho seu e fundador do anexo, lembrou que todos os filhos deste não se
interessaram pelos estudos (no seu caso, como colocado acima, apenas um de seus cinco
filhos não ingressou no ensino superior e o qual trabalhava como caminhoneiro).
É verdade que este seu vizinho e outro fundador do anexo eram os únicos que
tinham um caminhão (e que usavam para transportar seus cafés e de outros produtores
180 Ele também foi o secretário do “comitê” responsável pela construção da estrada local. Vale lembrar que o pai de Carlos foi o presidente desse comitê. 181 Tratava-se de uma propriedade bastante distinta das demais ao seu redor. Era a única que tinha um gerador, televisão, DVD e um grande armazém, por exemplo. Mas grande parte de seu valor certamente residia no fato de seu cafezal ter sido praticamente todo renovado.
189
cobrando-lhes um determinado frete). Ambos “fundadores” (do anexo e também da
cooperativa) chegaram à selva central em 1958 e trabalharam como obreros em Palomar
até virem se estabelecer no local através da Associação de Pequenos Produtores do
Baixo Yurinaki. Acontece que os dois igualmente tiveram que dividir suas terras com
seus filhos, na medida em que estes não só não “avançaram” em seus estudos como não
conseguiram encontrar um emprego “decente” fora da chacra. Um deles me disse o
seguinte: “não nos educamos bem, havia a possibilidade; agora se sabe que tem que ser
competitivo, antes a ambição era produzir muito café e ter coisas”. Ainda segundo ele,
“poucos investiram na educação, antes se vendia café a mais de 150 soles (a saca) e se o
preço baixava, era por pouco tempo; era muito melhor o filho ficar no cultivo de café”.
De acordo com um de seus irmãos: “eu estudava em Huancayo (a maior cidade dos
Andes centrais peruano), mas com o terrorismo faltou dinheiro”.182
Evidentemente que são inúmeras as variáveis em jogo com relação à ascensão
do filho de um produtor de café a um emprego qualificado que lhe garanta um salário
decente e uma relativa estabilidade. De qualquer maneira, foram os cafeicultores que
tiveram a felicidade de ver ser filhos se tornarem “profissionais” que passaram a se
destacar perante os demais agricultores ao seu redor. O fato de terem sido capazes de
proporcionar o acesso de seus filhos ao ensino superior os distinguia em relação aos
seus pares locais. Eles e seus familiares acabavam servindo como um verdadeiro
modelo de conduta para essas pessoas, como era o caso dos Santos. Tal modelo se
tornava ainda mais valorizado na medida em que a produção de café deixava de ser
economicamente tão importante quanto foi durante os anos 70 e 80, apesar de ainda se
182 Os dois e seus demais irmãos eram bastante comprometidos com a Cooperativa La Florida e com a produção orgânica de café. “Nos anos 80, com um quilo de café comprávamos três galões de gasolina, agora é preciso de três quilos de café para comprar um galão”, me disse um deles. Durante o “terrorismo”, ambos se mudaram com seus familiares para uma cidade num distrito vizinho. Acontece que não tinham como se manter nessa cidade. O retorno à cafeicultura se colocou como praticamente a única alternativa de vida à disposição dos membros da família.
190
colocar como mais vantajosa de ser exercida do que muitos outros trabalhos disponíveis
aos cafeicultores enquanto sujeitos desprovidos de maiores qualificações profissionais e
de capital para realizar algum tipo de investimento.
O próximo capítulo procura também se deter sobre os novos significados
presentes nas narrativas de progresso e desenvolvimento vigentes entre as pessoas
ligadas à Cooperativa La Florida. Mas o foco é nos indivíduos que podem ser
identificados como constituindo a nova geração dentro dessa cooperativa. Ao retratar a
trajetória profissional de um destes sujeitos, busco mostrar como ele e outros de sua
geração dão continuidade, para além do território da La Florida, a um papel de destaque
entre os cafeicultores ao os aproximar dos meios para que a situação precária que
vivenciam seja superada ou, pelo menos, atenuada de uma maneira considerada
satisfatória. Em outras palavras, assim como dentro do “raio de ação” da cooperativa se
destacavam os moradores “mais antigos” cujos filhos cursaram o ensino superior e
encontraram um trabalho relativamente estável e bem remunerado, fora desse espaço
alguns destes seus descendentes igualmente eram reconhecidos enquanto verdadeiros
referenciais para os agricultores. O principal exemplo dessa posição de relevo era
justamente o atual gerente da La Florida.
191
Capítulo 4 – Para além do “raio de ação” da cooperativa
4.1 Introdução
Este capítulo focaliza um período da vida de um filho de cafeicultores e
funcionário da Cooperativa La Florida que se transformou num comerciante “privado”
de “cafés especiais” na selva central peruana. O interesse em retratar essa etapa de sua
vida reside, de um lado, no fato dele ter buscado identificar o comércio privado de café
com as noções que os produtores associavam ao campo semântico da modernidade. Por
outro, ele é um exemplo, entre outros ao seu redor, de alguém que faz parte de uma
nova geração de indivíduos ligados à cooperativa e que, para além dos limites
territoriais onde vivem os sócios desta organização, vêm sendo reconhecidos como
verdadeiros referenciais entre os agricultores, na medida em que os aproximam dos
meios para que a situação precária que vivenciam seja superada ou, pelo menos,
atenuada de uma maneira considerada satisfatória. Trata-se, em suma, de uma
“vocação” e de uma “missão” para as quais muitos dessa nova geração se viram
comprometidos através da sua convivência com as pessoas ao redor da La Florida.
O nome do sujeito retratado nesse capítulo é Leonel. Seu pai é um dos chamados
“refundadores” da cooperativa e também um dos sócios que conseguiram proporcionar
aos seus filhos o acesso a ensino superior. O trabalho de Leonel nesta organização, que
veio a exercer após ter cursado uma faculdade de engenharia aeronáutica na Argentina,
fez com que passasse a se interessar pelo comércio de café. Mas sua dificuldade em
ascender ao cargo de gerente nesta ou em outras organizações de produtores o levou a
constituir um empreendimento privado de comercialização do grão, algo que
normalmente não é bem visto pelos cafeicultores. Contudo, ele vem procurando
192
legitimar esse empreendimento ao associá-lo com o desenvolvimento deles e de suas
organizações.
O ponto é que os logros comerciais da Cooperativa La Florida permitiram que
um conjunto devidamente preparado de filhos de seus sócios intermediasse as relações
dos cafeicultores da selva central com os novos mercados de café. Estes descendentes
dos associados da La Florida ofereciam uma possibilidade concreta para que as
narrativas de progresso e desenvolvimento destes agricultores pudessem continuar
guiando suas ações ao longo do tempo. Através da trajetória do sujeito retratado ao
longo desse capítulo, é possível perceber que a cooperativa lhe ofereceu não apenas os
capitais (simbólicos, econômicos e sociais) para que pudesse assessorar os produtores
ou comercializar seus cafés como também ela mesma serviu de referencial ou modelo
para suas atitudes.
O sucesso comercial da La Florida envolvia o acúmulo nela tanto dos meios para
o “desenvolvimento” ou “progresso” dos cafeicultores quanto das experienciais em
torno de como alcançar estes meios e de como utilizá-los. Em outras palavras, ela era
um canal para se ter prestígio, financiamentos e acesso aos compradores de café e
igualmente fornecia um habitus ou um conjunto de disposições que permitiam aos seus
detentores agir convincentemente enquanto auxiliares dos agricultores na busca de
melhores condições de vida. Tal habitus passou a ser incorporado principalmente pelos
membros da cooperativa que foram capazes de ter contato com o ensino superior e que
faziam parte de uma nova geração de indivíduos ligados a essa organização. Estamos
diante de pessoas que vivenciam uma situação na qual há o que Pierre Bourdieu (2007)
chama de uma coincidência mais ou menos perfeita entre vocação e missão:
A subordinação do conjunto das práticas a uma mesma intenção objetiva, espécie de orquestração sem maestro, só se realiza mediante a concordância que se instaura, como por fora e para além dos agentes, entre o que são e o que fazem, entre a sua “vocação” subjetiva (aquilo
193
para que se sentem “feitos”) e a sua “missão” objetiva (aquilo que deles se espera), entre o que a história fez deles e o que ela lhes pede para fazer, concordância essa que pode exprimir-se no sentimento de estar bem “no seu lugar”, de fazer o que se tem que fazer, e de fazer com gosto – no sentido objetivo e subjetivo – ou na convicção resignada de não poder fazer outra coisa, o que também é uma maneira, menos feliz certamente, de se sentir destinado para o que se faz. (idem p. 86-87)
Ao longo deste capítulo é possível perceber que a história da Cooperativa La
Florida aparece “incorporada” e “objetivada” nas práticas do sujeito nele focalizado. Tal
como colocou Karl Marx, de acordo como citado por Bourdieu nesse mesmo texto,
“quando a herança se apropriou do herdeiro, o herdeiro pode apropriar-se da herança”.
No caso de Leonel, a “herança” que a cooperativa lhe deixou se constituía basicamente
de capitais econômicos, simbólicos e sociais que lhe permitia intermediar as relações
dos produtores com os novos mercados de café. Já sua incorporação por essa “herança”
se deu principalmente através de seu trabalho como responsável pela compra dos cafés
da La Florida. Em outras palavras, sua atualização da história da cooperativa (objetivada
em prestígio, acesso a financiamentos e a compradores de café) aconteceu por meio de
um conjunto de disposições ou habitus que adquiriu como funcionário dela. É desta
atualização que este capítulo trata enquanto um exemplo do que vem ocorrendo entre
outros membros da La Florida da mesma geração de Leonel.
4.2 A chegada à selva central e o encontro com Leonel
Como dito na introdução da tese, a decisão de conhecer a selva central havia
sido tomada ainda durante minha estadia no sul do Peru em meados de 2005. Isso
porque, perguntados a respeito de um lugar onde se poderia encontrar difundida a
produção de café para o comércio justo, os membros da cooperativa que visitei no
departamento de Cuzco me indicaram justamente aquela que era vista como a mais
194
tradicional zona cafeicultura do país: o departamento de Chanchamayo. Segui então de
ônibus durante três dias pela cordilheira andina até chegar no dia 12 de agosto em La
Merced, capital de Chanchamayo e principal cidade da selva central, como assinalado
no segundo capítulo.
Na manhã do dia seguinte, após uma merecida noite de sono num confortável
quarto de hotel, fui dar uma volta na simpática praça de armas da cidade, tendo ao
fundo as montanhas que anunciam a passagem dos Andes à Amazônia para aqueles que
chegam à selva. Identificado à primeira vista como um dos freqüentes turistas que
visitam a zona em busca de suas cachoeiras e “comunidades indígenas nativas”,
conversei com as pessoas que trabalhavam nas barracas situadas na praça e que vendiam
basicamente café e outros produtos locais, além de artesanato indígena amazônico.
Questionados a respeito da existência de alguma organização de cafeicultores nas
redondezas, me indicaram a Cooperativa La Florida. Segui até essa cooperativa através
de um moto-taxi; um veículo característico da vida urbana peruana contemporânea e
meio de subsistência para inúmeras pessoas em todo o país.183
Foto 34 – A entrada da cooperativa Foto 35 – A cooperativa e seu entorno
183 Um moto-taxista ganhava, em média, 30 soles líquidos por dia em La Merced, onde o trajeto padrão custava 0,70 centavos. Muitos filhos de cafeicultores da selva central trabalham como moto-taxistas nessa cidade, seja com veículo próprio ou alugado.
195
A imponente entrada da cooperativa exibia, num vistoso muro, os logotipos dos
diversos certificados que esta organização possuía: comércio justo (FLO), orgânico,
sustentável e amigável com as aves. Tal como se passava com a central de organização
de produtores que visitei no sul do país (a COCLA), a fachada dessa entidade também
se destacava diante dos aparentemente inacabados imóveis ao seu redor. Uma estética
moderna contrastava com o ar de fronteira econômica característico dos espaços
urbanos presentes na selva peruana.184 Abordei o porteiro e este logo de cara pediu que
me identificasse. Ele chamou pelo interfone o presidente da cooperativa, pensando que
este iria se encontrar com um “gringo” comprador de café, até ver com clareza o
documento que lhe entreguei (uma carteira internacional de estudante). O “estudante
brasileiro” subiu e foi falar com o presidente. A conversa foi rápida, não durou nem
meia hora, e o presidente não fez nenhuma questão que continuasse. Além de sua má
vontade em me receber, minhas perguntas realmente não estimularam nosso debate.
Foto 36 – O interior da cooperativa Foto 37 – Vista do armazém (com os armazéns ao fundo) (ao lado dos escritórios)
184 É verdade que La Merced veio a se colocar, do meu ponto de vista, como um oásis de modernidade se comparada com outras cidades da selva central. Isso porque apenas nessa cidade eu encontrava determinados estabelecimentos (sorveteria, discoteca, pizzaria e bares, por exemplo) onde podia me divertir ou relaxar de verdade junto daqueles que vieram a ser os meus amigos mais próximos ligados à Cooperativa La Florida e com os quais compartilhava as disposições típicas de um jovem de classe média.
196
Vendo que o diálogo não avançava, requisitei-lhe gentilmente a possibilidade de
visitar as dependências da cooperativa. Com seu aval segui até um dos armazéns ao lado
do escritório onde nos encontrávamos. Enquanto eu tirava algumas fotos do local, um
sujeito advindo de uma sala, no próprio armazém, se aproximou e deu início a uma
conversa comigo. Seu pedido para que o fotografasse em seu ambiente de trabalho e lhe
enviasse as fotografias por correio eletrônico criou imediatamente um vínculo entre nós.
Observando mais tarde seu endereço virtual é que percebi que durante o restante do dia
havia confundido seu nome. Independentemente disso, esse encontro certamente se
colocaria como o ponto de partida da minha amizade com Leonel. Isso não exclui o fato
de que desde esse momento e de ambos os lados também estivessem em jogo nessa
relação outros interesses que não apenas a companhia alheia.
4.3 O foco de Leonel no comércio de café
Depois de iniciada nossa conversa, fomos dar uma volta por toda a unidade da
Cooperativa La Florida em La Merced, enquanto Leonel comentava a respeito dessa
organização de produtores como um todo. Um dado que enfatizou era o de que o
mercado disponível para a cooperativa havia crescido tanto que seus associados não
conseguiam abastecê-lo. Mais especificamente, nesse ano de 2005 os sócios tinham
produzido 30.000 quintais de café e os compradores demandavam 40.000 (vale lembrar
que cada quintal corresponde a uma saca ou 46 quilos). Seguimos até um bar, em frente
à cooperativa, onde nos juntamos a um sócio sentado numa mesa e com o qual
compartilhamos algumas cervejas. Ambos apontaram seus dirigentes como os
responsáveis por este descompasso entre oferta e demanda. Disseram que apenas uns
poucos produtores reclamavam nas assembléias da cooperativa sobre a necessidade de
197
uma postura mais agressiva, por parte dessa organização, no incentivo da produção de
café. Contudo, como ressaltado nos dois capítulos anteriores, esse descontentamento foi
um dos tópicos por excelência das minhas conversas com os membros dessa entidade e
uma percepção comumente presente nas suas próprias discussões.
Retomei o diálogo com Leonel algumas horas depois (outro sócio da cooperativa
nos acompanhava nessa ocasião). Em contraste com seu discurso anterior focado na
produção de café, Leonel ressaltou com veemência a necessidade de uma atitude
“estratégica” e “empresarial” por parte de qualquer organização de produtores. Ele
reproduziria esse mesmo argumento diante dos membros de uma organização de
cafeicultores com os quais nos encontraríamos no dia seguinte. Essa organização ou
“central”, como Leonel a chamava, tinha sua sede na cidade de Pichanaki (também
situada na província de Chanchamayo).
O trajeto de La Merced até Pichanaki era geralmente percorrido de carro em
duas horas. Isso porque a compra de um lugar, freqüentemente apertado, num
automóvel particular era a forma mais comum das pessoas transitarem nessa estrada.
Tratava-se, como dito antes, de uma rodovia asfaltada que unia a cidade de Lima ao
interior da selva central e que fazia dela a região cafeicultora mais próxima da capital
nacional e, conseqüentemente, da zona portuária mais importante do país. Pichanaki se
encontrava mais afastada de Lima do que La Merced; o que também significava uma
maior proximidade da planície amazônica e um maior afastamento da cordilheira
andina.
No dia seguinte, logo pela manhã, Leonel apareceu no hotel onde eu estava
hospedado. Tomamos um moto-taxi até a oficina mecânica onde se encontrava seu
caminhão. No trajeto aproveitei para lhe perguntar sobre sua função na cooperativa;
“chefe responsável pelo processo de compra de café”, me respondeu. Segundo ele, três
198
mil toneladas de café passariam pelas suas mãos esse ano, sendo que em 2004 foram
cinco mil. Nesse dia iria adquirir sete toneladas do produto para a cooperativa, além de
“estabelecer negócios”. Mas na oficina constatou que seu caminhão não estava pronto e,
para não corrermos o risco de ficar pela estrada, resolveu ir atrás de um carro para
alugar, cujo proprietário havia tomado cerveja conosco no dia anterior. Iríamos pagar 30
soles pelo uso do carro no dia mais a gasolina, porém, o dono do veículo não estava.
“Vamos de ônibus”, disse ele. “Se não for hoje não me levam a sério”, falava pelo
caminho. “Dizem que é mentiroso, que não é sério”, repetia.
Nessa época, Leonel viajava três vezes por semana “a negócios”, segundo suas
próprias palavras. Por sua vez, essa viagem para Pichanaki tinha como propósito o
encontro com os dirigentes da Asociación Central de Productores de Café Pichanaki.
“Eles têm que ser mais empresariais”, me dizia Leonel sobre estes dirigentes. Pelo
caminho ele deixou claro o tanto que adorava a selva central e sentia pelos produtores
de café dessa região. Comentou que dez cooperativas “quebraram” nessa zona, em
decorrência tanto dos baixos preços quanto de uma má administração. “Pouca
experiência em mercado” e “não conheciam o comércio justo” eram as frases que mais
usava para descrever a difícil situação enfrentada por estas organizações de produtores.
Como que explicando o porquê de sua cooperativa ter se afastado desse quadro
desolador, contou que César Rivas, o gerente desta entidade, viajou em 1997 ao
Panamá, onde participou de um curso no chamado Instituto Cooperativo Ibero-
Americano. Nos dois últimos anos, Leonel também pôde assistir alguns cursos nesse
mesmo instituto; a primeira vez financiada pela cooperativa, mas a segunda se deu com
base em seus próprios recursos. Sua colocação parecia afirmar implicitamente que tanto
ele quanto Cesar foram adequadamente preparados para enfrentar os desafios colocados
às organizações de produtores ao longo dos últimos anos.
199
No final do dia, me confessaria seu desejo de ser o gerente da Associação
Central de Produtores de Café Pichanaki. Retomaria também seu discurso sobre a
carência de uma visão empresarial por parte dessa associação.185 Em suas falas, Cesar
aparecia como o parâmetro de sucesso que conscientemente ou não utilizava ao refletir
sobre seu futuro profissional. A ênfase num discurso centrado na comercialização e não
na produção de café acabava colocando Leonel numa posição contrária àquela
majoritariamente assumida pelos produtores. Diante disso, não é de se estranhar que ora
concordaria com as reivindicações destes sujeitos e ora discordaria, como vai ficar
evidente mais à frente. De qualquer maneira, o que importa ressaltar é que o prestígio
alcançado por Cesar dentro da cooperativa e no universo social das organizações
peruanas de cafeicultores (não é à toa que em abril do ano seguinte seria eleito
presidente do grêmio nacional destas entidades) era algo que parecia aguçar os desejos
de Leonel em se destacar através do comércio de café. Esse desejo pulsava intensamente
na sua conversa com o presidente da associação, como fica evidente na descrição desse
encontro apresentada a seguir.
4.4 A conversa com o presidente
A associação que visitamos em Pichanaki tinha quatro anos de existência e era
formada por 23 “associações de base”, num total de 484 sócios: 60 certificados como
orgânicos e 40 em “transição um ou dois” (vale lembrar que processo de certificação
orgânica levava geralmente dois ou três anos, dependendo dos certificados em questão).
185 Comentou que “o manejo cooperativo é um equilíbrio entre a parte social da cooperativa e a parte empresarial”. Nesse caso, uma entidade dessa natureza “deve ser solidária e rentável”. Disse que sem o lucro os benefícios sociais não se mantinham. Sobre os cursos que fez no Panamá, ressaltou que eram sobre o comércio justo, sendo que o primeiro foi sobre as “técnicas e estratégias de comercialização de café num mercado mundial” e o segundo a respeito dos “planos de negócios para um mercado de qualidade”.
200
Um engenheiro e dois técnicos cuidavam da assessoria aos sócios. Nossa conversa foi
com o presidente da associação. “Temos pouca experiência em mercado e comércio
justo”, nos disse esse senhor logo de início. “Nós temos que fazer uma interconexão
entre uma carteira de torrefadoras e eles”, lhe falou Leonel ao mesmo tempo em que me
olhava em busca de um sinal de aprovação. Imediatamente passou a discorrer sobre sua
visão da necessidade de um broker entre os produtores da região. O presidente parecia
concordar com essas idéias. Uma das pretensões de Leonel, além de assumir a gerência
de uma organização de produtores, era justamente a de ser um broker e com isto queria
começar a trabalhar já no próximo ano. O fato de utilizar desse termo em inglês para
falar do comércio “privado” de café demonstrava claramente sua intenção de conferir
um significado mais positivo para uma atividade que não era bem vista entre os
agricultores.
Foto 38 – O armazém da “Central” de Pichanaki Foto 39 – Leonel (à direita) e o presidente (com os cafés da Central sendo secados ao fundo)
De acordo com o presidente, “em primeiro lugar”, sua associação produzia café
e, “em segundo”, frutas cítricas.186 “Mandioca, feijão, arroz e soja são irrisórios”, disse.
186 O principal produto cultivado na selva central é o café. Contudo, essa região também se notabiliza pela produção de laranja, abacaxi e tangerina para o mercado nacional. Segundo Santos & Barclay (1995), o comércio de frutas cítricas na selva central foi impulsionado pelos comerciantes que deixaram de lado a comercialização de café diante do privilégio governamental às organizações de cafeicultores (a partir do final da década de 1960).
201
Este ano esperavam produzir 13.000 quintais de café (700.000 quilos) e que seriam
vendidos “internamente” (dentro do país), basicamente para “empresas privadas”. “Eles
têm pouca experiência comercial”, dizia Leonel e o presidente concordava. “Temos que
melhorar a qualidade”, falava este último, lembrando dos prêmios que os cafés peruanos
angariavam em diversos concursos internacionais de “cafés especiais”.
Leonel, discorrendo sobre a necessidade de uma “visão empresarial” por parte
dos dirigentes da associação, disse: “se ficar só solidário em 10 anos está igual”. Ele
estava se referindo ao fato de que, para além da redistribuição de dinheiro entre seus
associados, as organizações deveriam investir em suas infra-estruturas o que
arrecadavam com a venda de café, tornando-as mais aptas para competirem
comercialmente. Porém “o social” (os sócios) também era estratégico: “é preciso cuidar
da parte social”, ponderou o presidente. “Um erro na parte social perde a confiança”,
falava Leonel e o presidente concordava. A necessidade dos sócios serem “sustentáveis”
foi também lembrada na conversa, ou seja, estes deveriam ser capazes de se manter sem
precisarem recorrer aos empréstimos para arcarem com os chamados custos de pré-
colheita (mão-de-obra, basicamente). Depois de trazer à tona seus dois cursos no
Panamá, Leonel acrescentou: “tem que ter plano de negociação e plano de estratégia”.
“(A associação) Pichanaki tem grande produção, mas pouca experiência de mercado”,
afirmou ele com o presidente concordando, como sempre.187
Num dado momento da conversa, Leonel exclamou: “café é como droga, é
muito comercial”. Em seguida, a discussão passou a girar em torno da importância do
187 Após a visita à associação, fui com Leonel conhecer a cidade de Pichanaki, onde pude entender o sistema de “compra e venda, compra e venda, compra e venda” a respeito do qual comentara comigo anteriormente. Por exemplo, um pequeno “armazém” (comerciante intermediário) compra o café do produtor, outro armazém maior compra esse café (mas também compra diretamente dos produtores) e o revende para as empresas privadas exportadoras (como é o caso da Coinca ou Aikasa). O caráter “alternativo” do comércio justo, do qual me falara Leonel, era justamente alternativo em relação a esse sistema. A associação que vistamos em Pichanaki vendia para a Coinca. Contudo, gostaria de adentrar no comércio justo para poder exportar diretamente seus cafés. Na ocasião de nossa visita, a certificação que tinha disponível era apenas a de cafés orgânicos; Leonel estava lá para comprar esse tipo de café.
202
aprimoramento das moradias dos sócios para a obtenção da certificação de comércio
justo. “Os primeiros passos são as certificações orgânicas, depois a de comércio justo”,
assinalou o presidente. “Há outras certificações, como aquela do Smithsonian”,
completou Leonel.188 “A Utz-kapeh é para café sostenible”, prosseguia para logo depois
enfatizar: “quantos mais certificados, mais vantagens (comerciais)”. A associação tinha
um convênio esse ano com a (empresa privada exportadora) Coinca, “para o próximo as
coisas vão mudar”, explicou o presidente.
Logo em seguida, Leonel começou a contar uma história sobre a reestruturação
da Cooperativa Perene e sua participação nesse processo. “Sim, a Perene está se
levantando”, disse o presidente. “Não gostei dessa história de que minha participação
era interesse pessoal”, enfatizou Leonel que completou: “eu sou neutro, nem Aspa Café
(uma associação de produtores) nem Perene, eu sou neutro, quero que cresçam”. “Há
famílias que não se dão”, afirmou Leonel e o presidente concordou: “isso vem de
anos”.189 Com base nesse diálogo, é possível perceber que os dois estavam
familiarizados com um mesmo universo social vigente na selva central. Em outras
palavras, não era à toa a preocupação de Leonel em preservar sua imagem perante os
cafeicultores dessa região. Mesmo porque a “confiança” que as pessoas tinham nele
tratava-se de um capital crucial para a realização das suas ambições profissionais.
Leonel retomou sua insistência na necessidade do aprimoramento da “parte
comercial” da associação de Pichanaki: “essa associação tem produção, falta melhorar a
parte financeira e comercial”, disse ele que, em seguida, ressaltou a importância das
feiras internacionais de café (“nos EUA e Alemanha”) para se estabelecer contato com
as empresas torrefadoras. Comentou também que a Corporação Café Peru (a entidade
188 Café Bird Friendly, outorgado pelo Smithsoniam Migratory Bird Center (EUA). 189 Leonel me disse, num momento posterior, que assessorou a Cooperativa Perene. Esta era composta de um grupo de produtores brigado com outro grupo vizinho e que, por conta disso, formou a Aspa Café. Uma família de cafeicultores ligada à Cooperativa Perene dispensou indiretamente a assessoria de Leonel.
203
capitaneada pela Cooperativa La Florida e que congregava diversas organizações de
produtores) tinha stands nessas feiras. “Buscar mercado no Peru não dá”, completou
para logo acrescentar: “tem que posicionar o café no mercado, tal como faz a La
Florida”.190 “O comércio justo significa mais dinheiro, tem que certificar a parte social,
é uma associação de produtores e não um intermediário comercial”, foram as suas
palavras e para as quais o presidente complementou: “o produto sem sua certificação
não anda, não caminha”. “O consumidor exige isso”, apontou Leonel. Os dois
concluíram a negociação: “amanhã o caminhão vem”, disse este último sobre a data do
recebimento do café da associação que seria comprado pela Cooperativa La Florida.
Passaram a falar de amenidades; eles me perguntam do Brasil, da minha estadia no Peru
e do futebol brasileiro, é claro.
Saímos da associação e fomos procurar um (comerciante) “intermediário”
conhecido de Leonel e com o qual pretendia se associar para dar início às suas
operações de broker. Passamos pelo armazém do sujeito e depois fomos até sua loja no
centro da cidade. Ele não estava em nenhum desses dois lugares, mas suas cinco filhas e
esposa nos receberam muito bem em ambos. Caminhando por Pichanaki ficava evidente
como a Bolsa de Nova Iorque (NYBOT) regulava as negociações locais de café. Muitos
comerciantes nessa cidade acompanhavam o pregão, principalmente através da internet.
A cidade tinha um ar de fronteira bem mais acentuado do que La Merced e não oferecia
nenhum atrativo turístico, pelo contrário. Por outro lado, Pichanki apresentava um
movimento comercial evidentemente maior do que a capital de Chanchamayo. Da loja
seguimos até o encontro de um amigo de Leonel e funcionário do departamento de
190 “Posicionar o café” é uma expressão bastante presente no âmbito das organizações de cafeicultores e que basicamente significa estabelecer um posicionamento privilegiado enquanto parceiro comercial dos compradores do grão.
204
crédito do AgroBanco (o banco estatal de fomento da agricultura). Isso porque Leonel
também pretendia se associar a esse sujeito no seu projeto de se tornar um broker.
Essa sua busca de parceiros para viabilizar seu empreendimento demonstrava o
fato de que Leonel ainda carecia de canais comerciais e de recursos econômicos para
poder escoar os cafés dos produtores. Mas apesar de não atuar enquanto o que definia
como sendo um broker, ele era capaz de se apresentar como alguém qualificado para
ocupar essa posição. Sua segurança em se mostrar dessa maneira certamente se
assentava e podia ser justificada através dos cursos dos quais participou no Panamá.
Isso ficava evidente no seu diálogo com o presidente da Associação Pichanaki. Mas a
disposição para assumir esta posição de especialista no comércio de café certamente se
apoiava, em grande medida, na sua experiência dentro da Cooperativa La Florida. Era
através da sua relação privilegiada com ela que podia converter o prestígio comercial
alcançado por esta entidade num capital crucial para falar com propriedade sobre a
comercialização de café. Tal ponto de vista privilegiado transparecia, por exemplo, nos
seus conselhos ao presidente da Associação Pichanaki a respeito do comércio justo
enquanto um caminho alternativo para a comercialização de café.
A inserção pioneira da Cooperativa La Florida entre os compradores
credenciados pela Fairtrade Labelling Organizations International (FLO) acabou
legitimando o trabalho de alguns filhos de seus sócios, como era o caso de Leonel, por
exemplo, junto de outras organizações de produtores, no que influía, mas não só e nem
de maneira determinante, o fato de muitos deles, incluindo o próprio gerente Cesar
Rivas e mesmo Leonel, formarem a primeira geração de pessoas associadas à
cooperativa com algum tipo de educação superior. Na seção que se segue podemos
perceber claramente como o lugar ocupado por Leonel na cooperativa lhe permitiu
205
incorporar uma disposição para almejar o acesso a posições mais destacadas com
relação ao comércio de café.
4.5 O trabalho de Leonel na cooperativa
No dia seguinte à nossa viagem a Pichanaki, encontrei com Leonel, logo pela
manhã, em sua sala no armazém da Cooperativa La Florida. Ele estava falando pelo
telefone com Jorge, um funcionário da cooperativa que trabalhava no “escritório de
exportação” em Callao (uma cidade colada a Lima e principal porto do país). O assunto
dessa conversa telefônica era a respeito de uma amostra de café de um grupo de
produtores do distrito de Vila Rica, mais ao norte de Chanchamayo, já na província de
Oxapampa, uma das três províncias que conformam a selva central. Esta amostra
deveria ser enviada nesse dia ao principal laboratório da La Florida, também nas
dependências que a entidade mantinha em Callao. Jorge era o responsável pela
exportação e trabalhava para Cesar, o gerente. O ponto da conversa era o de que esse
café proveniente de Vila Rica havia passado por uma secadora em mal estado de
conservação, o que “pode dar um pouco de umidade ao produto”, segundo me disse
Leonel. Eram 218 sacas, totalizando uma tonelada, e a amostra era de um quilo. O teste
em Callao (“Lima”) seria o mais importante: “se aqui (em La Merced) passa, pode não
passar em Lima”, comentou comigo Leonel para depois completar: “em Lima é mais
seguro e é onde verificavam se o produto é capaz de ser exportado”.
De acordo com ele, a Cooperativa La Florida “fazia o papel de broker”. Por
exemplo, ela pagou seis soles por quilo do café certificado como orgânico advindo da
Central de Pichanaki e o vendia a 7,60 soles. Isso significava que 1,60 soles ficavam
para a cooperativa. Dos 30 mil quintais produzidos por seus associados, a La Florida
206
conseguia vender 70% através do comércio justo regulado pela FLO. Acontece que a
produção de café certificado como orgânico dos sócios da cooperativa não chegou nem
a 10.000 quintais esse ano (vale lembrar que os cafés com essa certificação valem mais
dentro do comércio justo). Leonel exemplificou da seguinte maneira o funcionamento
dos negócios. Eram 10.000 quintais de cafés certificados como orgânicos produzidos
pelos associados; 7.000 deveriam ir “para a FLO” (ou seja, para as torrefadoras que
compravam através do comércio justo) e 3.000 para as torrefadoras “sem FLO”. Mas
com o tempo havia uma demanda maior de café por parte das torrefadoras que
compravam via comércio justo; 9.500 quintais no total, por exemplo. Os 2.500
adicionais saiam dos 3.000 que iriam para as torrefadoras que compravam café fora do
comércio justo. Eram estas torrefadoras que recebiam o café advindo de produtores
como aqueles da associação de Pichanaki que visitamos. “O ideal seria vender tudo no
alternativo (comércio justo)”, concluiu Leonel.
Sua identificação da La Florida como um broker parecia conferir uma
legitimidade a esse termo. Em outras palavras, ele estava como que associando a noção
de broker a um campo semântico dentro do qual estava presente não só esta cooperativa
como também o comércio justo.
Num dado momento, ainda no seu escritório dentro do armazém, Leonel
telefonou para Jorge com o intuito de fazer uma pergunta que, na verdade, era minha: “a
cooperativa pode comprar da associação de Pichanaki e vender o produto no comércio
justo?”. Jorge falou de normas recentes da FLO. Por exemplo, comprava-se café da
associação e o vendia “como FLO”, mas parte do prêmio do comércio justo deveria ser
repassada à entidade cujos sócios produziram o grão.
Retomei meu diálogo com Leonel num restaurante ao lado da Cooperativa La
Florida. Ele sentia que seu trabalho na cooperativa estava burocratizado, “na Central de
207
Pichanaki seria mais excitante”, confessou. César, o gerente, estaria há oito anos no
posto e aprendeu o que sabia “através da experiência”, disse Leonel.191 Segundo ele, “o
dinheiro da La Florida é emprestado, tem que ser zeloso”. Entendia que havia
deficiências na “parte social” da organização e não na “comercial”. Falou então da
produção: “tem que ter mais crédito para aumentar a produção no campo”. Os US$
600.000 de patrimônio da CrediFlorida (entidade financeira ligada à cooperativa) seriam
usados apenas na manutenção das chacras dos sócios. Como exemplo ele citou a
limpeza das ervas daninhas, o adubo dos cultivos e a sua poda. “Não tem dinheiro para
mais plantações”, apontou. “As árvores são velhas, são as mesmas que vem sendo
adubadas, tem que ter plantas novas”, continuou. Por outro lado, confessou que César
estava buscando financiamento para novas plantações, respondendo assim à demanda
dos sócios.
Leonel realmente se mostrava cansado do trabalho burocrático no qual estava
metido. Disse que ia pedir para mudar de área e, se seu pedido não fosse atendido,
pretendia buscar outro trabalho ou voltar a Córdoba (Argentina) para concluir seus
estudos universitários (faltava só a titulação, em engenharia aeronáutica, como
assinalado anteriormente).192 Ele queria ter um papel mais comercial na organização,
mas esse já era ocupado por César, por isso sua vontade de ser um broker. Estava há
quatro anos na cooperativa e na mesma função. Era responsável por quatro
“estivadores” (que carregavam as sacas) e um “secador” (que ficava remexendo os
grãos no piso de concreto). No final me pediu para não contar a ninguém da La Florida
sobre essa nossa conversa durante o almoço.
191 Ao conversar com César, este me disse que seus estudos num instituto superior de Lima, “o melhor lugar para se estudar administração nessa época”, foram bem mais importantes do que o curso no Panamá. 192 Por ter morado durante certo tempo na Argentina, e trazido determinadas expressões lingüísticas desse país, seus amigos o apelidaram de El Che.
208
Encontraria novamente com Leonel mais à tarde. Ele estava na sua sala, no
interior do armazém, fechando a compra do café dos produtores de Vila Rica. “Se
tiverem mais café, tragam”, disse Leonel a uma senhora e um senhor que vinham em
nome do restante dos produtores. Ele preparou um “recibo de liquidação de compra”
para cada produtor; com esses recibos seus dois representantes deveriam retirar na
própria La Florida o dinheiro para cada um deles. Todos estes agricultores passaram
recentemente a vender a totalidade de seu café para a Cooperativa La Florida (na
ocasião vendiam 205 sacas). “Nós vamos trocar de secadora”, falou o senhor.193
Foto 40 – Leonel (sentado) e os produtores de Vila Rica
A discussão na sala se concentrou então no conceito de “raio de ação” da
Cooperativa La Florida. Acontece que as 205 sacas em questão estavam sendo vendidas
para a Corporação Café Peru. “Há a corporação e há a cooperativa”, nos informou
Leonel que continuou, “a corporação é uma organização de produtores com sede em
Lima. Se vocês estão dentro do raio de ação, então podem ser sócios da cooperativa”.
193 Como depois me informaria Leonel, foi ao sentir o cheiro do café entregue por estes produtores que descobriu o mau estado da secadora. Vale ressaltar também que, durante uma visita à cidade de Vila Rica, os funcionários de uma organização não-governamental que trabalhava com os produtores locais reclamaram comigo da dificuldade de organizar estes sujeitos em torno de uma associação, dado que a Cooperativa La Florida acabava dispondo de uma maior capacidade para pagar mais pelos seus cafés.
209
Em suma, os produtores de Vila Rica poderiam se tornar sócios da La Florida. Leonel
pediu para os dois falarem com a gerência, para futuramente poderem entregar o café
que colherem para esta entidade, que pagava mais para os que fossem seus associados,
além de beneficiá-los com o “prêmio” do comércio justo no final do ano.194 O fato era
que estes produtores de Vila Rica eram novos parceiros comerciais da cooperativa, e
isso explicava o desconhecimento dessa possibilidade de negociação. “O raio de ação
tem seu território”, disse Leonel. “Vocês de Vila Rica estão no raio de ação e vendem
para a corporação, deveriam vender para a La Florida”, continuou. Os dois produtores
demonstraram não conseguir compreender o conceito e foram embora retirar o dinheiro
num escritório ao lado do armazém.
Neste depósito sob responsabilidade de Leonel, os cafés orgânicos negociados
eram da Corporação Café Peru; os cafés orgânicos dos sócios da Cooperativa La Florida
ficavam em um galpão na cidade vizinha de Sán Ramón (e do qual Leonel não era o
responsável). Nas dependências da cooperativa em La Merced se encontrava também o
armazém de cafés convencionais, igualmente sob responsabilidade de Leonel. Em frente
aos dois depósitos que comandava era possível observar algumas máquinas secadoras e
grandes espaços de cimento onde o café era secado (ver foto 36). Em seguida, já perto
do portão de entrada e saída da cooperativa, ficava o “laboratório de qualidade”. Ao
entrar nesse local, encontrei seus dois únicos funcionários. Ambos eram filhos de sócios
da cooperativa, “como a maioria dos empregados”, me disseram esses dois jovens que
também creditaram à gestão de Cesar o reconhecimento “nacional e internacional” desta
organização na qual trabalhavam. 194 Curiosamente, me depararia, no começo do ano seguinte, com um cartaz exposto na cooperativa e no qual se lia: “El consejo de administración hace de conocimiento a todos los socios, que no habrá reintegro debido a la baja producción de la presente campaña 2005. Por lo que invocamos, su comprensión.”. Acontece que a baixa produção de café no país, em 2005, fez com que muitas empresas privadas e organizações de cafeicultores tivessem que comprar o produto por preços maiores do que aqueles que iriam vender, dado que tinham que cumprir com seus contratos “extras” de exportação firmados num contexto de bons preços internacionais. Em outras palavras, especularam e se deram mal diante da queda desses preços.
210
Depois de dar uma volta pelas dependências da La Florida, retornei ao armazém
e encontrei Leonel conversando com Edson, um jovem de 27 anos que veio até a sua
sala. Ele era “secretário” de uma cooperativa ainda em gestação e trouxe para o
presidente da Corporação Café Peru (que também era presidente da La Florida) a
“Constituição” da sua cooperativa. Edson tinha muitas dúvidas e, por incrível que
pareça, esclareci muitas delas com aquilo que havia aprendido com Leonel nos últimos
dias. Já este lhe falou da “necessidade” de se ter um “plano estratégico”: “o primeiro
objetivo é obter a certificação e o segundo mercado e boa venda”, explicou. Edson não
sabia o que era “FLO”, mas já tinha escutado sobre o comércio justo. Leonel comentou,
logo em seguida, sobre a “distinção entre FLO e comércio tradicional”. Segundo ele, os
“reintegros” (prêmios advindos comércio justo) eram pagos aos sócios em janeiro e
fevereiro, “meses ruins para o agricultor”.
É possível perceber que, no seu contato com os produtores que vendiam os
cafés, Leonel os introduzia dentro de um universo de significados que aparentava
manejar com bastante naturalidade. Seu cargo dentro da cooperativa lhe colocava
justamente numa posição privilegiada para perceber a falta de conhecimento dos
cafeicultores da selva central diante das diversas oportunidades existentes para
escoarem seus produtos. No caso dos agricultores de Vila Rica, estes desconheciam a
possibilidade de se associarem à Cooperativa La Florida. Edson, por sua vez,
representando os produtores do Vale de Santa Cruz, se comportava como um verdadeiro
neófito ao pleitear o ingresso de sua cooperativa dentro da Corporação Café Peru. Era
evidente que Leonel encontrava diante de si uma oportunidade para intermediar, através
de um empreendimento privado ou como gerente de uma organização de cafeicultores,
o escoamento do café dos produtores da selva central por meio dos canais desbravados
211
pela sua cooperativa. Isso significava aproveitar suas relações privilegiadas com essa
entidade para superar o que via como seu estancamento profissional dentro dela.
Outros filhos de produtores associados à Cooperativa La Florida lograram
ocupar o cargo de gerência em outras organizações de cafeicultores. Conseguiram assim
ser reconhecidos num contexto nacional em torno destas entidades e que se congregava,
em grande medida, nos eventos patrocinados pela Junta Nacional do Café (JNC) ou
mesmo naqueles promovidos pelas centrais de organizações de produtores. Mas o
desejo de Leonel de repetir esse caminho adotado por seus colegas de infância não se
colocava como uma tarefa fácil. Nesse sentido, paralelamente à busca de um cargo de
gerente numa organização de produtores qualquer, passou também a almejar a
condução, por conta própria, da comercialização de café, naquilo que definia como
sendo um papel de broker. Com o passar do tempo, como vai ficar claro nas próximas
seções, a escolha de uma dessas duas opções profissionais acabaria se transformando
num verdadeiro dilema para ele.
Ocupar um cargo de gerência numa organização de produtores era uma das
posições profissionais mais valorizadas entre os associados da Cooperativa La Florida.
Isso porque conjugava a garantia de um salário fixo e relativamente alto com um
trabalho supostamente em prol dos cafeicultores. Tal como fora retratado no segundo
capítulo, a primeira geração de sócios dessa cooperativa era majoritariamente marcada
pelo fato de seus membros não terem tido as condições mínimas que lhes permitissem
continuar seus estudos quando eram jovens. Os bons preços internacionais do café nos
anos 70 e 80 e a boa produtividade dos solos nesse período possibilitaram que alguns
destes comprassem imóveis nas cidades, onde seus filhos puderam viver durante o
período de sua educação complementar àquela oferecida na área rural. É verdade
também que outros produtores optaram por comprar bens que supostamente garantiriam
212
um sustento para seus filhos, como novas terras e veículos para o transporte de pessoas
e/ou produtos. Mas todos os associados concordam hoje em dia que o que gostariam
mesmo é de ver seus filhos trabalhando num emprego que lhes garantisse uma
remuneração decente todos os meses, ao contrário da imprevisibilidade de uma vida
sustentada através do cultivo de café num pequeno pedaço de terra resultante da divisão
da propriedade familiar. Obviamente que esse emprego seria ainda mais valorizado se
tiver como propósito a melhoria das condições de existência dos cafeicultores.
Um cargo de gerência numa organização de produtores era assim um valor tanto
no universo social em torno da Cooperativa La Florida como também naquele que
congregava nacionalmente estas entidades. Observar a presença de Cesar num evento
organizado pela Junta Nacional do Café, ou numa reunião da La Florida, me remetia
imediatamente à participação de um dos prestigiados professores da minha faculdade no
encontro nacional de pós-graduandos em ciências sociais ou numa palestra logo após
uma aula qualquer.195 Todos estes quando entravam num ambiente automaticamente
atraiam a atenção das pessoas ao seu redor.
O problema, pelo menos do ponto de vista daqueles que almejam uma posição
de destaque, mas não conseguem atingi-la, é de que os recursos que identificam essa
posição são escassos. Quanto mais disponíveis esses recursos, menor a capacidade de
promoverem qualquer distinção entre as pessoas. O desejo de Leonel em gerenciar a
Cooperativa La Florida não deu lugar apenas à busca de um cargo de gerência numa
outra organização de produtores qualquer, tal como fizeram alguns de seus amigos de
infância. Esse desejo o levou a almejar também aquilo que definiu como sendo um
papel de broker entre os cafeicultores e os compradores de café. Ao contrário de outros
amigos seus de infância e igualmente filhos de sócios da cooperativa, não deixou de
195 Foi Leonel quem, justamente, me abriu as portas para que participasse dos eventos promovidos pela JNC, tal como descrito mais à frente no texto.
213
lado o universo cafeicultor. Sua experiência diante desta entidade lhe permitiu acumular
determinadas disposições para o comércio de café que acabaram fazendo como que o
trabalho nesse meio lhe parecesse como uma escolha natural. Mas o que estas
disposições também continham era uma propensão para ser avaliado não só do ponto de
vista do universo social em torno da cooperativa como também de outro mais amplo
onde esta se destacava.
4.6 A Ecologic Chanchamayo
Depois de conhecer o singelo e pacato povoado de La Florida e as
impressionantes instalações da cooperativa nesse local, retornei até Lima, onde também
visitei as dependências dessa entidade (na cidade vizinha de Callao). De Lima
regressaria ao Brasil para só voltar ao Peru cinco meses depois. Antes disso, mais
precisamente no dia 27 de agosto, enviaria o seguinte e-mail para Leonel:
Leonel, mi hermano en Peru, que tal? Estraño mucho usted e toda la gente de La Florida, e claro, tambiem estraño mucho mi novia de Pichanaki. Bueno, estoy ahora en Rio de Janeiro. Las flacas de Brasil estan esperando usted, quando vienes aca? En janeiro estoy en la Selva Central, entonces tienes hasta diciembre!!! Quando es el forum de cafe en Brasil que tu me disse? Piensa en venir? Bueno, te mando las fotos en una proxima mensagem. Se te encontrar com Edson mande un saludo de Brasil para ele e lo diga que en janeiro volto. Hasta janiero quiças usted estará com mucha plata, cierto broker? Vamos montar nostra oficina en Pichanaki!!!! Un fuerto abraço para usted e mucha sorte con sus projetos. Tu es una persona que será ciertamente un protagonista del comercio alternativo de cafe en Peru e fico mui feliz de ser su amigo.
A resposta chegaria no dia 29.
Hola Ricardo Hermano de Brasil !!! Antes te envio mis saludos cordiales de manera muy especial, bueno gracias a dios llegaste bien a casa eso es buena noticia para mì, tambien gracias por escribirme. La verdad por aqui todo bien, ayer justo estuve por pichanaki y lo vi a tu novia creo tambien va ser la mìa asi que tenemos que apostar jajaja. Bueno pues estuve por la central y otra organizacion con certificacion organica algo igual que la central y lo estoy canalizando sus productos organicos que no sabian como venderlo. Tambien la oficina de Brokker y Trayding
214
esta bien cada vez mas real por que estamos con Saul el amigo que almorzamos en pichanki de la moto. con èl estamos viendo la oficina por que el sera el operador de credito agrarios con Agrobanco, asesor y consultor de produccion del cafe y sus certificaciones en cafes organicos en general veo que todo esta bien. Tambien estamos contando contigo Ricardo eso no te olvides por que formas parte del staff profesional y ademas tienes que estar viendo algunos financiamientos para incursionar mas en el comercio alternativo tanto el peru y como en el Brasil. por favor no hay que perder el contacto y comunicacion permanente de esto dependera la relacion de la organizacion amigo querido. una vez mas gracias por la amistad y por favor saludos fraternos a tu familia vere la posibilidad de ir ala feria del brasil (BIOFACH) y ver tambien las chicas Bellas de alli. te envio un abrazo fraterno y saludos atentamente Leonel
No dia 20 de dezembro recebi um correio eletrônico de Leonel, em resposta a
outro que havia enviado informando-lhe da minha chegada à selva central em janeiro.
Neste seu e-mail, me disse o seguinte:
Hola mi muy estimado amigo Ricardo!! Te envio antes de todo un abrazo de todo corazon hermano de Brasil. Bueno disculpas que te escriba recien, pero y alo hice outro dia no me has respondido, pero
bueno ahora todo bien me alegra que estes bien. Sabes cuandro vendras por aqui espero que pronto te tengo uma sorpresa quizas esto tambien me
ha llevado a que casi no he entrado al net. pero ahora estaremos mas comunicados sobre todo. Bueno te cuento una sorpresa pero conservala en secreto todavia, sabes he formado mi propia
empresa comercializadora de café orgânico con OCIA NOP de EEUU 2006 y el proximo año 2007 con OCIA NOP-EU-JAS. te cuento estamos en un mega proyecto este mes de enero certificaremos 5mil hectarias a nombre de mi empresa el certificado al 100% sobre todo de las alturas de todo el valle de chanchamayo. Bueno esto resulto debido a que IFOAM TENGA MEJOR SUS POLITICAS DE COMERCIALIZACION Y EN TODO SUS TRANZABILIDADES. y tenemos tambien un mercado como para 32mil sacos de cafe organico para el mercado EEUU. asi que ya te imaginas la magnitud y bueno tambien estaremos en contacto para que vengas al lanzamiento para su apertura por que hay mucha espectativa para um desarrollo mejor.196 Tambien en la política esta que darle esa facilidad al productor y sus primas de acuerdo al mercado pero siempre superior al café convencional. bueno hermano sabes Cuidate
196 A Organic Crop Improvement Association (OCIA) é uma agência certificadora, sem fins-lucrativos, criada em 1985 nos Estados Unidos e que hoje em dia atua em mais de vinte países promovendo certificações com base em diversos selos, entre os quais se destacam: o United States Department of Agricultural/National Organic Program (USDA/NOP), o European Union 2092/91 organic regulations (EU 2092/91) e o Japanese Organic Agricultural Standards (JAS). Como dito anteriormente, para se vender um produto identificado como orgânico nos EUA, por exemplo, é preciso que o mesmo seja certificado com o selo USDA/NOP ou por outro aceito pelo departamento de agricultura. Isso também vale para o EU 2091/91 e o JAS em relação à União Européia e ao Japão, respectivamente. IFOAM é a sigla da International Federation of Organic Agriculture Movement (uma entidade fundada em 1972). “Los estándares de la IFOAM han sido la base sobre la cual se elebaroró el marco normativo legal de la Unión Europea en 1992 (CEE 2092/91), y posteriormente, en el año de 2000, el de los Estados Unidos de América (NOP), y en 2001, el de Japón (JAS)”. (Schwarz, 2005 p. 27)
215
Un abrazo Saludos a la família Escribe pronto si puedes venir para el lanzamiento de ECOLOGIC CHANCHAMAYO SRL. MAS ABRAZOS HERMANON ATTE. Leonel. Retornei ao Peru no dia 15 de janeiro de 2006. Dois dias depois, me encontrei
com Leonel em La Merced, mais especificamente, no seu novo escritório, quase em
frente à Cooperativa La Florida (ele estava de férias do seu trabalho nessa cooperativa e
só retornaria dia primeiro de fevereiro). O imóvel estava em boas condições externas e
internas para os padrões locais. Nele residia um casal que também o utilizava como
escritório. Isso fazia com que compartilhassem o espaço com a empresa de Leonel e de
seu sócio Ernesto (um engenheiro e associado da La Florida que trabalhava nela como
“diretor de cafés orgânicos”).197 O nome da empresa (ou trading, como Leonel preferia
chamá-la) era Ecologic Chanchamayo, doravante denominada neste capítulo de EC.
Foto 41 - O escritório da EC (à esquerda) e a La Florida (em amarelo ao fundo à direita)
197 Numa outra ocasião, Leonel comentaria comigo que foi em setembro de 2005 que ele e Ernesto tiveram a idéia de “promover a certificação dos cafés de todo o vale de Chanchamayo em nome de uma trading”, além também de “trabalhar com cafés finos”. Segundo Leonel, durante uma reunião de filhos de sócios da Cooperativa La Florida, ficou acertado que estes jovens poderiam oferecer serviços “para terceiros”, tais como consultorias. Em outras palavras, essa reunião legitimou o empreendedorismo destes jovens perante os outros sócios da cooperativa. Mesmo porque, como me disse o gerente da La Florida, esta entidade não tinha capacidade de empregar a maioria dos filhos dos associados.
216
Durante nossa conversa inicial, transmiti a Leonel minha satisfação e surpresa
diante do seu empreendimento, apesar dele ter me informado do mesmo através de um
correio eletrônico. Ele reiterou sua posição de que eu também fazia parte do projeto e,
mais concretamente, me convidou para participar, em nome da EC, de um curso básico
de degustação de café em Lima, ao custo (as despesas seriam por minha conta) de 100
dólares.198 Ainda nessa conversa, após questioná-lo se tudo ia bem com sua família, me
disse que se encontrava brigado com seu pai, por conta de uma discordância em torno
da venda de um terreno no nome deste; um local cuja fauna e flora Leonel dizia querer
preservar. Achei isso bastante significativo, em se tratando da sua preocupação em
demonstrar um comprometimento ambiental. Caminhando com ele dois dias depois pela
cidade, acabei presenciando-o atirando na calçada (bastante suja por sinal) uma garrafa
de plástico, logo depois de ter bebido seu conteúdo. O advertiria e o mesmo ressaltaria
seu “erro” em seguida.
Fomos então até a Cooperativa La Florida onde, para minha surpresa,
encontraria com Edson (o jovem dirigente da Cooperativa do Vale de Santa Cruz que
havia conhecido no ano anterior). Também me surpreenderia com seu convite para que
participasse de uma propaganda de rádio, na qual deveria ressaltar, “enquanto um
estrangeiro”, o sabor do café dos produtores de sua cooperativa. Isso, segundo ele,
198 O curso seria realizado na Escuela de Catación do Instituto de Cafés Sustentáveis do Peru (ICS-PERU). Este instituto é uma organização não-governamental, criada em 2004, por três norte-americanos donos de uma empresa privada de nome Jungle Tech, especializada na comercialização de cafés gourmets. Essa empresa obteve, em 2005, o valor médio de exportação de café mais alto do Peru. “Essa é a nossa melhor propaganda”, me diria um de seus donos assim que o conheci. O ICS-PERU publica mensalmente uma pequena revista chamada Prensa de Café. Em cima da mesa de Leonel, encontrei a edição de outubro de 2005 dessa revista. O “torrefador do mês” entrevistado era George Howell, uma das estrelas da Associação Norte-Americana de Cafés Especiais. Segundo ele, “apenas uma grande qualidade consegue preços elevados, não embalagens bonitas, nem um romance ou grande causa, somente a qualidade”. Depois de comentar a dificuldade do Peru em competir com o Brasil em termos de produtividade do café, Howell atacou o comércio justo: “alguns produtores sortudos cujas cooperativas fizeram amplos contratos de comércio justo, fixando assim seus preços acima dos custos de produção, podem sentir-se agradecidos durante os tempos de crise, pois de outro modo estariam desesperados (...) mas facilmente podem se sentirem ressentidos durante as melhores condições do mercado, quando os mesmo contratos de suas cooperativas os impedem de aumentar seus ganhos em uma temporada.”
217
chamaria a atenção dos agricultores de sua região com relação à importância desta
entidade. A falta de confiança dos cafeicultores diante desse empreendimento baseava-
se, em grande medida, no fato de terem sido enganados anteriormente, ao participarem
de uma experiência semelhante coordenada por uma empresa privada exportadora que
acabou não cumprindo com o que lhes havia prometido.
Acordei de manhã, no dia seguinte, e transferi minha bagagem para um misto de
motel e hospedagem que se tornaria meu alojamento principal em La Merced. Depois,
me dirigi até o escritório de Leonel e o encontrei conversando com outras pessoas
ligadas à La Florida. Todos queriam ver o livro sobre a cafeicultura que trouxe do Brasil
e lhe dei de presente. Também me perguntaram bastante sobre o café brasileiro. Após o
almoço, acompanhei a reunião de Leonel com Clélia, a gerente da Cooperativa
Sangareni. Essa cooperativa estava localizada em San Martín de Pangoa, um distrito da
província de Satipo, uma das três províncias que conformam a selva central. Leonel se
colocava como o seu “assessor gerencial”; esta seria sua primeira assessoria em nome
da EC.
Foto 42 – A reunião com Clélia
Ele começou a reunião falando sobre o “plano de desenvolvimento integral” que
produzira para a Cooperativa Sangareni. Este documento deveria ser entregue para o
presidente da Corporação Café Peru (junto da carta na qual a cooperativa pedia sua
filiação à corporação). Tal plano (para o quatriênio de 2006-1010) consistia em cinco
218
páginas, as quais Leonel ainda modificava tanto na véspera quanto durante a reunião
com Clélia. O preço da assessoria era de 2.000 soles: “afinal, tenho os cursos no
Panamá e na Argentina”, me explicaria Leonel mais tarde. Este plano continha, de
acordo com que ia sendo exposto para Clélia, “metas para cada departamento da
cooperativa”, tais como o comercial e o agrário, por exemplo. Ele comentou comigo,
logo após a saída de Clélia, que este “plano de desenvolvimento” que havia feito para a
Cooperativa Sangareni era igual ao que estava fazendo para a Cooperativa do Vale
Santa Cruz (de Edson).199 Isso significava que esta última cooperativa seria a segunda
entidade a ser assessorada pela EC. Ambos os documentos tinham como propósito o
ingresso destas cooperativas na Corporação Café Peru.
Na tarde do dia seguinte, fui com Leonel até a Caja Municipal Huancayo, uma
entidade financeira de porte nacional.200 Ele estava interessado em ter um mecanismo de
transferência de dinheiro entre La Merced e Pichanaki, dado o risco de seu transporte
pelo caminho, aproximadamente oito milhões de soles durante a campaña (safra),
segundo me disse. Isso porque pretendia montar um armazém para a EC nesta última
cidade (tendo em vista o recebimento dos cafés dos produtores que estavam sendo
certificados em nome da sua empresa). Conversando com a caixa e depois com o
gerente e o técnico agrícola do banco, Leonel pôde discorrer sobre a necessidade de um
“crédito de pré-colheita” para os produtores. O técnico ressaltou que existiam
199 Segundo me disse numa outra ocasião, “a Café Peru apóia com motos, técnicos, mas não oferece experiência de mercado.” Ainda do seu ponto de vista, “as cooperativas não têm o costume de se capacitarem; a EC aproveita as regiões carentes e proporciona uma certificação rápida, e a EC tem uma gestão mais rápida que a Café Peru.” 200 A outrora principal instituição financiadora da agricultura no país, o chamado Banco Agrário, funcionou até 1992 enquanto uma importante agência pública de fomento agrícola. Contudo, concentrava seus investimentos na região costeira e, conseqüentemente, nos cultivos próprios dessa zona (açúcar, algodão, arroz e milho, por exemplo). Com o fim desse banco, a agricultura peruana passou a contar com uma oferta de crédito bastante escassa. Apenas 3% das carteiras dos bancos peruanos se dirigem para o setor agropecuário, principalmente para a costa. As Caixas Rurais e Municipais de crédito se constituem numa segunda alternativa de financiamento para os agricultores, com relação ao montante de recurso disponível. Outras opções são as organizações não governamentais e empresas privadas. Ver La Oferta Financiera Rural en el Perú (Trivelli et alli, 2004)
219
agricultores que se utilizavam do AgroBanco (o banco estatal que, numa escala bem
menor, substituiu o Banco Agrário), mas “aí o crédito demora e é muito afetado pela
política, ainda mais agora nas eleições”. Já o gerente advertiu para um custo de
transferência de 0.5%, dependendo do volume transferido entre a agência da Caja
Municipal Huancayo localizada em Pichanaki e a de La Merced (“pois pode
desestabilizar o banco”, apontou). “Só vamos trabalhar com os (produtores)
certificados”, comentou Leonel sobre aqueles que deveriam receber os empréstimos,
apesar do fato das certificações serem irrelevante para a concessão dos créditos.201
Essas certificações (dos cafeicultores) teriam custado a ele US$ 3.500, “pagos
pela EC com o apoio das associações”, me comunicou logo após sairmos do banco.202
Durante nossa permanência neste estabelecimento, pude notar o desconforto dos
agricultores dentro dele. Tudo lhes parecia estranho. Mesmo algo aparentemente
simples como a retirada de uma senha era um motivo para se sentirem desconfortáveis.
Apesar de toda a paciência dos bancários, os produtores saíam demonstrando
claramente não ter entendido o que os funcionários lhes explicavam, como era o caso,
por exemplo, dos trâmites para a retirada de um empréstimo. A familiaridade de Leonel
com os procedimentos burocráticos era algo que se colocava como um capital
importante para intermediar as relações comerciais dos cafeicultores.
No dia seguinte, por volta do meio dia, Leonel apareceu na minha hospedagem
e, como combinado anteriormente, seguimos para Pichanaki. No caminho, me informou 201 A Caja Huancayo dava crédito de pré-colheita de US$ 1000. O título de propriedade da chacra deveria ser apresentado para garantir o empréstimo. 202 Chegando ao escritório da EC, encontramos com Otavio Cárdenas e sua esposa na calçada em frente ao imóvel. Ele era presidente da Associação Aspa Café. Esta associação estava localizada em Alto San Juan, um povoado situado na margem direita do rio Perene (os sócios da Cooperativa La Florida estavam na margem esquerda), e tinha 46 sócios e 9.000 quintais de café produzidos este ano (7.000 certificados como orgânicos e 2.000 “em transição”, no caso, vendidos sob o selo Utz Kapeh). Otávio possuía em mãos um documento a ser entregue na prefeitura de La Merced, com o intuito de pleitear um terreno do município para a construção do armazém da associação. Ele contou que muitos de seus sócios não tinham os documentos necessários para o crédito bancário. Mais tarde na Cooperativa La Florida, observaria dois técnicos catalogando no computador os associados sem os documentos necessários para um dado financiamento.
220
que as plantações de café que não foram fertilizadas com produtos químicos, no ano
anterior, poderiam ser certificadas, já nesse ano, como orgânicas pelo certificado do
ministério da agricultora dos EUA (o selo também conhecido através da sigla
Usda/Nop). As certificações seriam em nome da EC e estavam sendo feitas através da
agência certificadora Ocia, tal como ele havia me informado através de um correio
eletrônico. No distrito de Vila Rica, 70% das chacras se encontrariam quimicamente
fertilizadas: “não dá para trabalhar com eles”, segundo Leonel. Ele também citou o
nome de três localidades onde seria possível encontrar um bom beneficiamento do café,
“algo raro em toda a selva central”, de acordo com suas próprias palavras. Nestas
regiões se encontravam justamente os produtores que deveriam vender seus cafés
através da EC e que, conseqüentemente, estavam sendo certificados em nome da
empresa de Leonel.
Ele me falou de um amigo seu de infância chamado Julio. Este era funcionário
da empresa Jungle Tech (JT) e, assim como Leonel, era filho de um conhecido sócio da
Cooperativa La Florida (os pais de ambos participaram da chamada “refundação” da
cooperativa em meados dos anos 90). “Julio pode fazer a interconexão com as
torrefadoras de cafés especiais nos EUA”, comentou comigo. Ainda segundo ele, este
seu amigo seria capaz de lhe fornecer os compradores para todos os “cafés finos” que
conseguisse. Contudo, o número de “cafés finos” a serem vendidos iria depender
daqueles que tivessem suas amostras aprovadas no “teste de taça” feito pelos
funcionários da JT. Tratava-se de uma avaliação sensorial em torno das qualidades do
café já pronto para o consumo e que se baseava nos critérios da Associação Norte
Americana de Cafés Especiais (SCAA). Esse sistema de classificação tendia a ser
realizado através de um procedimento envolvendo pessoas devidamente credenciadas
pela SCAA. Os cafés finos ou gourmets eram aqueles que recebiam 80 pontos ou mais
221
numa escala de 100.
A rede de amizades de Leonel com os filhos de sócios da La Florida, como é o
caso de Julio, se colocava como um capital crucial para a realização das suas ambições.
Como deve ficar evidente ao longo desse capítulo, suas relações pessoais se mostraram
fundamentais dentro de sua trajetória profissional. Mesmo porque, em se tratando da
selva central, e na esteira das colocações de Shoemaker (1981), pode se dizer que o fato
da ocupação maciça dessa região ter sido feita recentemente, e por sujeitos dos mais
variados lugares da cordilheira andina, fez com que a desconfiança se colocasse como
uma mediação bastante presente nas relações entre seus habitantes. No caso de Leonel,
deve-se também levar em conta que grande parte de seus amigos passaram o ocupar
cargos de destaque em entidades que trabalhavam com o comércio de café. Em outras
palavras, ele não apenas tinha uma ampla rede de contatos com as pessoas da região
como parte destes contatos era com agentes importantes dentro do processo de
comercialização desse grão.
Chegamos à cidade de Pichanaki e Leonel foi prontamente se encontrar com
alguns dirigentes de organizações de produtores. Entre estes estava o jovem gerente (e
também presidente, como eu viria saber depois) da Cooperativa do Vale de Santa Cruz,
além de outros produtores ligados à Cooperativa La Florida que trabalham em outras
entidades ou as assessoram. Leonel os informou sua posição de que a EC deveria
centralizar o “controle de taça” dos cafés que iria comercializar. A organização católica
Caritas teria os equipamentos dos quais necessitariam para esse tipo de controle, os
informou Leonel utilizando constantemente a expressão “cadeia produtiva” para
destacar a natureza da integração entre produtores e compradores através da EC. Os
equipamentos necessários para a avaliação sensorial dos cafés eram, na verdade,
miniaturas daqueles encontrados numa empresa torrefadora do grão. Como exemplos
222
podem ser citados o descascador e a própria torrefadora, sem falar nas máquinas para
preparar o café torrado e os copos (as “taças” ou “xícaras”) e demais utensílios usados
na degustação.
Conversei com Leonel no almoço, ainda em Pichanaki.203 Ele comentou que a
Cooperativa La Florida “se posiciona mais em comércio justo do que em gourmet”.
Sobre a Corporação Café Peru, afirmou que ela era tanto um broker quanto um
processador de café para a exportação (através de sua planta em Callao). No caso da
EC, esta teria 30.000 quintais de café certificados em seu nome. Segundo ele, os
produtores não tinham dinheiro para certificar sozinhos. As certificações (feitas em
nome da EC) custaram US$ 10.000 e os técnicos (quase dez) da Cooperativa La Florida,
responsáveis por preparar os produtores para a vinda dos inspetores da agência
certificadora, teriam feito um “extra”.204
Leonel também me disse que sabia que a Jungle Tech trabalhava com “cafés
finos”; ele apenas não tinha conhecimento de suas políticas. Encontrou com Julio, por
acaso, através de um serviço de mensagens instantâneas pela internet em dezembro de
2005, quando então foi convidado para ir até Lima. Chegou lá no dia 10 de janeiro e
puderam assim conversar pessoalmente. Julio lhe explicou a respeito da “política de
trabalho” da Jungle Tech: dois membros da EC teriam que se capacitar no controle de
qualidade e esta entidade deveria ter uma “constituição” (algo que a EC possuía). Já
Leonel teria lhe dito que tinha em mãos cafés certificados como orgânicos; Julio o
comunicou que “tanto orgânico quanto não-orgânico são vendidos pela Jungle Tech”.
“A Jungle Tech posiciona o café dela”, comentou comigo Leonel entusiasmado com o
203 Nesse dia, domingo, 22 de janeiro, ocorreriam diversas manifestações de agricultores pelo país contra a votação no congresso de um imposto de 1,5% sobre as transações comerciais agrícolas registradas legalmente. “Os comerciantes intermediários vão sair ganhando com este imposto”, me confidenciou o presidente da Corporação Café Peru, um sujeito bastante próximo de Leonel. Esse imposto acabou não vingando por ser inconstitucional, na medida em que pode ser confiscatório, caso ao ser somado aos custos de produção de um bem, exceder o valor recebido pelos seus produtores. 204 Ernesto (o sócio de Leonel) era o responsável por coordenar os técnicos da Cooperativa La Florida.
223
exemplo dessa empresa.
Ele também me contou que a EC não entraria no chamado “raio de ação” da
Cooperativa La Florida, isto é, não trabalharia, “por questões políticas”, com os
produtores situados nessa região. Assinalou que sua empresa possuía 20.000 sacas que
seriam destinadas à Corporação Café Peru que, por sua vez, não compraria café como
sendo de tipo gourmet, “mas os vende enquanto tal”, sublinhou para logo em seguida
completar: “a Corporação Café Peru paga de acordo com a Bolsa de Nova Iorque”. Para
a Jungle Tech, pretendia vender 5.000 sacas, enquanto “cafés finos”, isto é, gourmet, a
um preço de US$ 150 a saca. Outras 5.000 sacas ele disse que queria vender como
gourmet para as empresas que estavam numa folha chamada Lista de compradores y
tostadores de café amigable con las aves Bird Friendly.205 Enviamos juntos quatro
correios eletrônicos (ele já havia mandado um antes) para as empresas listadas nessa
folha. Acontece que ele preferiria vender para essas empresas o café que poderia ser
escoado pela Corporação Café Peru. Além das 30.000 sacas certificadas, falou que tinha
a disposição 20.000 sacas não-certificadas, “metade gourmet”, especulou. No total,
estariam envolvidos 520 produtores de oito “zonas” diferentes. “Todos são cafés de
altura, sinônimo de cafés de qualidade,” de acordo com suas palavras.206
Os “cafés finos” ou “gourmet” realmente instigaram Leonel. Certamente era
algo que não fora priorizado pela Cooperativa La Florida. Isso parecia incutir certa
205 Lista esta que Leonel imprimiu de uma página eletrônica da internet. 206 No dia seguinte, domingo, 22 de janeiro, assisti com Leonel pela televisão, durante nosso almoço num restaurante, à posse do presidente boliviano Evo Morales. Nesse seu discurso, Morales comentou que os investimentos no país deveriam entrar como “sócios do Estado” e logo em seguida criticou o “neoliberalismo”. Também apontou para a necessidade do “fortalecimento das cooperativas mineradoras”. Ele parecia evocar uma narrativa basicamente contraria àquela associada ao governo que o procedeu. Leonel se mostrou um simpatizante de Morales e também apoiador da candidatura de Ollanta Humala para a presidência do Peru (com uma plataforma política bastante similar à do presidente boliviano). Dizia se preocupar enormemente com a exploração dos peruanos mais pobres. Logo após as eleições e a subseqüente derrota de Humala, me confessou que o Peru saiu ganhando com esse resultado. Isso porque passou a considerar que a política tenderia a atrapalhar, mais do que a ajudar, a realização dos investimentos econômicos; nesse sentido, o governo nacionalista e estatizante proposto por Humala seria um atraso para o país.
224
originalidade ou distinção aos seus interesses comerciais. Ele via um horizonte ainda
pouco explorado e no qual justamente poderia se destacar. Mas essa sua empolgação
inicial deveria, contudo, encontrar um respaldo na realidade: precisaria não só ter em
mãos os cafés dos produtores como também torcer para que fossem aprovados pelos
funcionários da JT ou de outra empresa que trabalhasse com cafés gourmet. As
assessorias à Cooperativa Sangareni e à Cooperativa do Vale de Santa Cruz eram o que
até então havia garantido uma remuneração através da EC. Caberia a ele construir as
condições para poder comercializar os cafés. Em outras palavras, deveria colocar em
prática o que havia aprendido, principalmente, durante seu contato com a Cooperativa
La Florida.
A novidade dos “cafés finos” fazia sentido, num primeiro momento, na medida
em que foi através do comércio justo regulado pela FLO que o discurso da qualidade
passou a ser legitimamente aceito no âmbito desta cooperativa; a própria qualidade dos
cafés vendidos foi o diferencial que a permitiu se destacar perante os compradores
credenciados pela FLO. Por outro lado, o fato da Corporação Café Peru não comprar
café gourmet, mas vender os cafés que, por ventura, pudessem ser classificados desse
modo, fazia com que se colocasse como um canal que Leonel não gostaria de usar caso
fosse escoar os grãos que aparentemente seriam capazes de produzir “uma taça de alta
qualidade”.
Como assinalado anteriormente, o comércio justo certificado pela FLO é um
mercado que prima pela qualidade dos cafés nele comercializados, mas que de modo
algum se trata de um mercado de cafés “finos” ou “gourmet”, como geralmente são
chamados os grãos que são diferenciados pela “qualidade da taça” que produzem. O
principal critério internacional de classificação de um café com base na sua degustação
é o da Associação Norte-Americana de Cafés Especiais. A Jungle Tech, através dos
225
cursos da organização não governamental chamada Instituto Peruano de Cafés
Sustentáveis, procurava difundir esse critério, pelo qual esta empresa justamente se
baseava para comprar seus cafés, na medida em que aqueles para os quais revendia
esses grãos igualmente adotavam esse parâmetro.207 Existiam algumas organizações de
produtores filiadas à JNC que trabalhavam lado a lado com a JT, tendo em vista uma
ênfase na produção de cafés que podiam ser considerados finos. Outro exemplo era
Felix Marin, o gerente anterior da La Florida. Ele passou a dirigir uma cooperativa que
formou com seus irmãos e que, em 2004, conquistou o primeiro lugar no principal
concurso internacional de cafés gourmet. Este sujeito também assessorava uma
cooperativa situada numa região próxima daquela onde viviam os sócios da Cooperativa
La Florida e essa sua assessoria era igualmente pautada pela ênfase na “qualidade da
taça”. Em todos esses casos, o discurso mais usado para convencer os produtores a
adotarem uma série de práticas, tendo em vista uma “xícara de qualidade”, era o de que
o mercado de cafés finos era o que, sem sombra de dúvidas, oferecia uma melhor
remuneração.
Isso significa dizer que Leonel também se encontrava inserido num contexto
mais amplo dentro do qual os cafés gourmets passaram a ficar em evidência entre as
organizações de produtores. Nesse sentido, pode-se dizer que sua experiência junto à
Cooperativa La Florida lhe sensibilizou para uma tendência que deveria crescer ainda
mais entre estas organizações, apesar desta cooperativa não canalizar seus produtos
como cafés finos e a Corporação Café Peru não remunerar como tais os cafés que
vendia sob este rótulo. É verdade que os cursos que Leonel fez no Panamá igualmente
ajudaram a moldar suas disposições comerciais na direção dos mercados que primavam
pela qualidade. Contudo, para além dos cafés finos ou gourmet, tanto o comércio justo
207 Essa difusão desse critério não significa um credenciamento dos produtores à Associação Norte Americana de Cafés Especiais. Trata-se apenas de uma sensibilização destes diante daquilo que seria o padrão de julgamento do café “em xícara”.
226
regulado pela FLO quanto os cafés certificados como orgânicos estariam no centro de
suas estratégias comerciais. Não era à toa que ele e Ernesto (seu sócio) tivessem
investido suas economias para certificar os cafés de um grande número de produtores
com o selo outorgado com base nos critérios de agricultura orgânica do departamento de
agricultura dos EUA. Restava apenas a Leonel colocar seus ideais em prática através de
sua empresa, o que o levou, inclusive, a se informar a respeito da possibilidade da EC
ser certificada dentro do comércio justo regulado pela FLO (esse episódio aparece mais
à frente no texto).
O curioso é que até então Leonel não cogitara escoar os cafés através das
empresas privadas exportadoras. A Jungle Tech era um caso especial, na medida em que
nela não só trabalhavam pessoas próximas do universo cafeicultor e “cooperativista”,
como também era uma entidade que se confundia com uma organização não-
governamental que atuava em prol da conscientização dos agricultores diante dos cafés
gourmet.208 Ela não era assim associada ao sistema padrão de comercialização de café
no país e que era comandado pelas empresas privadas exportadoras que trabalhavam
majoritariamente com os chamados cafés convencionais, apesar de também
comercializarem, numa escala bem menor, produtos certificados como orgânicos ou
sostenibles e cafés gourmets.
Leonel poderia, por exemplo, entrar nesse sistema padrão como um comerciante
intermediário, ou seja, comprando café dos produtores e os revendendo para as
exportadoras privadas. Isso implicaria em ter investido seus recursos somente na
aquisição de cafés convencionais, em vez de tê-los usado na certificação dos produtores.
Mas essa alternativa de investimento certamente não seria vista com admiração pelos
gerentes das organizações de produtores e era como um destes que Leonel também
208 Em 2005, a Jungle Tech exportou 1.300 quintais de café. A Perhusa, a entidade que mais exportou esse ano, movimentou um total de 373.600 quintais, seguida pela COINCA com 331.000, Comercio & Cia com 295.000 e COCLA com 185.500. (JNC, 2005)
227
gostaria de ser reconhecido. Sem falar que no universo social, por excelência, onde essa
categoria profissional é reconhecida, ou seja, no âmbito da Junta Nacional do Café, era
improvável encontrar a presença de um comerciante intermediário. Em outras palavras,
a valorização das habilidades profissionais de Leonel dificilmente encontraria um
respaldo caso adotasse o comportamento tipicamente associado a um comprador de café
e passasse, dessa maneira, a vender o grão às empresas privadas exportadoras.
É verdade que, como comentado acima, as grandes empresas privadas
exportadoras também comercializam cafés certificados como orgânicos ou sostenibles e
de tipo gourmet. No caso dos primeiros, assim como as demais entidades, elas os
remuneravam de acordo com um valor chamado plus (acréscimo, em inglês) que era
somado ao preço corrente do grão no mercado convencional. Este valor adicional era
variável de acordo com a oferta e a procura dos cafés certificados como orgânicos.
Acontece que antes dessas empresas aparecerem como uma opção para Leonel, ele
precisaria primeiro estar seguro de ter suficientemente explorado os canais de
comercialização mais compatíveis com os ideais que permeiam o chamado setor
cooperativista peruano (a próxima seção trata justamente da história desse
“movimento”). Dito de outro modo, ele deveria fazer primeiramente aquilo que lhe
parecesse como o comportamento mais natural de ser feito nesse universo social. Só
depois de ter tentado esse caminho, e não ter encontrado os resultados esperados, é que
poderia vender diretamente para as empresas privadas exportadoras. De qualquer
maneira, seu comprometimento com os mercados de cafés especiais era bastante
indicativo da intensidade com a qual havia incorporado a ênfase do setor cooperativista
em torno dos mercados de nicho.
Se, por um lado, Leonel encontrava dificuldade em exercer o cargo de gerente de
uma organização de produtores, através de seu empreendimento particular ele poderia,
228
pelo menos, atuar de acordo com o que via como o comportamento padrão de um
gerente reconhecido no setor cooperativista. A aceitação de sua empresa dentro desse
setor era algo que dependeria justamente de que empreendesse toda uma reelaborarão
do papel de um comerciante privado. Isso porque ele gostaria de ser reconhecido de
uma determinada maneira que somente poderia ser validada no âmbito do setor
cooperativista. Era isto o que estava em jogo para Leonel e não apenas seu desejo de
ganhar dinheiro. A questão seria não desafiar a legitimidade dos gerentes das
organizações de produtores, mas sim se colocar numa posição complementar à deles,
caso não viesse a ocupar esse cargo. Por conta disso, era evidente que, de qualquer
modo, deveria adotar o comportamento esperando desses sujeitos, ou seja, inserir os
agricultores nos mercados de cafés especiais. A seguir apresento um breve histórico do
setor cooperativista e procuro mostrar as condições que levaram o cargo de gerente a se
destacar no âmbito das organizações peruanas de cafeicultores.
4.7 Da FENCOCAFE à JNC
No dia 3 de outubro de 1968, as forças armadas peruanas deram um golpe de
estado e conduziram ao poder o general Juan Velasco Alvarado. Como que
identificando, logo de cara, a suposta natureza nacionalista desse movimento político,
os militares tomaram as instalações e o controle de uma empresa petrolífera estrangeira,
um ato que culminaria, no ano seguinte, com a criação da companhia estatal
PETROPERU. Além de promover a proliferação de empresas públicas, o novo regime
instaurado no país procurou combinar uma política de “industrialização por substituição
de importações” com o incentivo do cooperativismo por todo o território nacional.
(Contreras & Cueto, 2004 p. 326) Essa estratégia reformista e autoritária significou,
229
segundo estes autores, uma concretização das reformas que os partidos, notadamente,
APRA e Ação Popular, haviam prometido, mas não conseguiram realizar nos anos
anteriores.
O golpe militar de 1968 se deu num momento em que emergiam, por todo o
país, diversas cooperativas organizadas pelos produtores de café. Essas organizações
estavam sendo criadas desde 1965; em dezembro de 1964 havia sido promulgada a lei
que as reconhecia enquanto entes jurídicos. Essa lei se assentava, de acordo com
Contreras & Cueto (idem), no ideário cooperativista próprio do Partido Aprista Peruano
(também conhecido pela sigla APRA).209 Inicialmente, o governo golpista, no seu afã de
ir contra qualquer suposta oligarquia, determinou que as cooperativas tivessem
preferência na exportação de café, em detrimento dos chamados agentes privados. Isso
significou, na prática, que as organizações de produtores detivessem a exclusividade das
vendas externas entre os meses de abril e dezembro; somente nos meses restantes os
comerciantes poderiam exportar.
A Central de Cooperativas Agrárias Cafeicultoras “Café Peru” (ou simplesmente
“Central Café Peru”) foi uma “organização de segundo grau” da qual fizeram parte
diversas cooperativas de todo o país e que fora criada em 1969 pelos representantes de
oito dessas entidades. 210 Essa central chegaria a agrupar 64 cooperativas (num total de
26.000 produtores) e comercializar quase a metade do café peruano (o que veio a fazer
dela a maior central do país). Outras centrais de organizações de produtores haviam sido
criadas mesmo antes do golpe de 1968. Todas estas instituições, apesar de poderem
abarcar cooperativas dos mais distintos lugares do país, estavam identificadas com os
209 Aliança Popular Revolucionária Americana. 210 As informações presentes a seguir baseiam-se nas edições da revista Café Peru: Órgano Informativo de la Central de Cooperativas Agrarias Café Perú Ltda. 364.. Tive acesso a todos os seus exemplares e os quais se encontravam reunidos nas dependências da Central de Organizações Produtoras de Café e Cacau do Peru – “Café Peru”. Também chamada de “Central Café Peru”, assim como a Central de Cooperativas Agrarias Café Perú Ltda. 364, trata-se de uma organização surgida, em 2000, justamente através do desmembramento desta antiga instituição.
230
cafeicultores de uma determinada região. De qualquer maneira, a importância das
centrais evidentemente ganhou um maior relevo diante do privilégio concedido pelo
regime golpista às organizações de produtores em relação à exportação. Contudo, esse
privilégio seria revisto com o estabelecimento do monopólio estatal nas vendas externas
de café em 1974 e que colocou o comércio exterior desse grão sob responsabilidade de
uma empresa pública.
Essa reviravolta na política do governo, em relação ao comércio de café, fez com
que as centrais de organizações de produtores se concentrassem no provimento de
serviços ligados ao processamento do grão. Mas essa mudança, no papel comercial
desempenhado pelas centrais, não impediu que continuassem a congregar a maior parte
das cooperativas do país e nem que estas últimas permanecessem como as principais
fornecedoras dos produtos vendidos ao exterior.211 Isso porque a empresa estatal,
responsável pela exportação do café, comprava-o preferencialmente das organizações de
produtores e estas, na sua grande maioria, o processavam nas centrais às quais se
encontravam filiadas. A proposta de criação, em 1977, de uma entidade nacionalmente
representativa por parte dos cafeicultores peruanos estaria apoiada numa política
nacional em prol do cooperativismo. Seria com base nesse ideal que poderiam justificar
suas demandas perante o governo e, conseqüentemente, se contraporem às investidas
dos agentes ditos privados.
Entre os dias 17 e 22 de outubro de 1977 realizou-se na cidade de La Merced a
VI Convenção de Cooperativas Agrárias Cafeicultoras. Este evento reuniu diversas
cooperativas e as cinco centrais de cooperativas do país. As principais decisões que
resultaram desse encontro foram: 1º) a criação de uma entidade representativa das
organizações peruanas de cafeicultores; 2º) o estabelecimento de um “banco
211 Durante todo o regime militar, não menos do que 80% dos cafés exportados pelo Peru saiu das organizações de produtores.
231
cooperativo cafeicultor” com base no “Fundo do Café” (criado através de um decreto de
1973 e sob responsabilidade da empresa estatal que, no ano seguinte, viria a ser
encarregada da exportação do grão).212 A primeira deliberação seria concretizada com a
fundação da Federação Nacional de Cooperativas Agrárias Cafeicultoras do Peru
(FENCOCAFE) no dia 7 de abril de 1978. Desta federação fariam parte as cinco
centrais de organizações de produtores e mais de duzentas cooperativas. Já a segunda
resolução nunca se efetuaria, apesar dos esforços dos cafeicultores em controlar o
destino dos recursos do Fundo do Café.
Ao longo dos anos, o monopólio estatal na exportação de café, iniciado em
1974, passou a ser ora criticado, ora apoiado pela FECONCAFE.213 Em 1979, por
exemplo, esta entidade o atacou devido à indicação, por parte do governo, de um
sujeito, vinculado ao comércio privado de café, para a gerência da empresa pública
responsável pela exportação do grão. Essa indicação pôde ser contornada e substituída
por outra aprovada e festejada pelos cafeicultores. Os produtores também conseguiriam,
ainda nesse mesmo ano, que os recursos do Fundo do Café fossem canalizados para o
banco estatal de fomento à agricultura (Banco Agrário). Isso significou a abertura de
uma linha mais ampla de credito para os custos que antecedessem e envolvessem a
colheita do café. Esse financiamento perduraria durante os próximos anos.
O início da década de 80 marca o fim do regime militar e o conseqüente retorno
de um governo civil através da volta de Fernando Belaúnde à presidência (depois de ter
sido deposto pelo golpe de 1968). Esse seu novo governo, de tonalidade tão liberal
212 O patrimônio desse fundo advinha de uma taxa aplicada às exportações de café. 213 Como dito no capítulo anterior, o antropólogo norte-americano Robin Shoemaker realizou um trabalho de campo junto aos cafeicultores da selva central peruana entre os anos de 1973 e 1975. Sobre a monopolização da exportação, pelo governo, a partir de 1974, este autor aponta para o fato de que “while approving of the cooperative system in principle, the government delegated all of the powers that colonists seek to the state marketing agency, EPSA. An autonomous cooperative with authority to market its member’s produce is clearly not what the military government wanted. Most farmers felt that the cooperative was doomed to become a purchasing agent for EPSA rather than a market force in its own right. These are the only terms under which the state would agree to recognize the local farmer’s cooperative. (Shoemaker, 1981 p. 233)
232
quanto o primeiro, acabou com o monopólio estatal na exportação do café e, dessa
maneira, criou as condições para que os comerciantes que atuavam no país passassem a
vender o produto diretamente ao exterior.214 A reação das organizações de produtores
não poderia ser mais negativa (o governo de Belaunde inclusive as taxou com os 18%
de imposto que recaia sobre as demais entidades comerciais). Mas suas pressões para
que o estado continuasse monopolizando o comércio externo foram incapazes de
reverter as diretrizes governamentais.
Evidentemente que a liberalização da exportação do café peruano iria chamar a
atenção de outros agentes que não apenas aqueles que estavam envolvidos com o
comércio interno desse produto. Isso vale também para as empresas ou capitais
provenientes de países estrangeiros. Segundo me disse o presidente do grêmio da
empresas privadas exportadoras de café: “de 1981 até 1990, o negocio do café era ter
espaço nas cotas.”
Além de terem de disputar com os exportadores privados as cotas de exportação
que cabiam ao Peru dentro dos acordos internacionais de café que se sucederam ao
longo do tempo, as centrais de cooperativas também se viram envolvidas em inúmeras
batalhas para anular os impostos que recaiam sobre os cafeicultores. Tendo em vista
essa nova realidade dentro da qual as organizações de produtores deveriam competir em
pé de igualdade, pelo menos do ponto de vista jurídico, com as empresas privadas, em
maio de 1983 a Central Café Peru e a FENCOCAFE organizam o primeiro “encontro
nacional de gerentes e contadores das cooperativas agrárias cafeicultoras do Peru”. O
214 A retirada do Estado como ente exportador significou também um controle menos rígido da qualidade dos produtos exportados. Isso levou a um descrédito generalizado, por parte dos compradores estrangeiros, em relação aos cafés peruanos. A criação, em 1991, do grêmio das “empresas privadas exportadoras” teve como um dos objetivos reverter essa imagem negativa e suas conseqüências econômicas (como foi o caso do “desconto” que passou a ser aplicado aos grãos que saiam do país e que vigorou até 2005). Mas o que estava realmente em jogo nesse investida das empresas privadas, segundo me confidenciou o presidente desse grêmio, era o aprimoramento da qualidade de seus cafés para que pudessem competir com os exportados pelos países da América Central. Acontece que o café peruano e o advindo desses países são classificados internacionalmente sob uma mesma categoria: “outros suaves”.
233
segundo encontro se realizaria em novembro de 1985. Esses eventos se deram numa
conjuntura na qual as próprias organizações de produtores buscavam adotar o que
definiram como sendo uma “gestão empresarial”. Tal conjuntura aparece refletida no
editorial da edição de agosto-setembro de 1986 da revista Café Peru e que tem como
título Mercado Inestable y la Competencia de Precios en la Compra de Café.
Reproduzo a seguir um trecho desse editorial:
En cuanto a las cooperativas también han cometido errores, quizás no todas, pero sí algunas en que los dirigentes que quieren decidir su comercialización a su manera, autorizando ventas sólo en los precios que ellos fijan, sin importarles para nada las situaciones cambiantes del mercado. En esta actividad se requiere ciertos conocimientos y experiencia. Se sabe que algunas cooperativas no han vendido ni el 50% de su café acopiado y siguen pagando intereses por los préstamos de comercialización todavía no amortizados.
A edição de janeiro-junho de 1987 da Café Peru introduz, pela primeira vez na
história dessa revista, a palavra “crise” para definir a situação vivida pelos cafeicultores
peruanos. Isso porque se tratava de um período onde os problemas no âmbito nacional
se conjugaram com uma queda acentuada nos preços internacionais do café. Apesar dos
avanços obtidos por algumas cooperativas, tal como pode ser percebido nas páginas da
Café Peru, em 1987 as empresas privadas exportadoras já respondiam por 77% das
exportações de café do país (os 23% restantes cabiam às organizações de cafeicultores).
Esse ano marcaria inclusive um dos mais amargos reveses experimentados pela
cafeicultura peruana: devido às mudanças no regime cambial feitas pelo governo de
Alan Garcia (1985-1990), as reconversões cambiais de um patrimônio de US$ 32
milhões do Fundo do Café acabariam resultando num montante de US$ 4 milhões. A
renovação do Acordo Internacional do Café (AIC), firmada em outubro de 1987,
estabeleceria um cenário mais favorável para as poucas organizações de produtores que
conseguiram se adaptar ao novo arranjo comercial do país. Mas a conjunção do governo
de Alberto Fujimori, que se inicia em 1990, com o fim do AIC em 1989 e a escalada na
234
violência por parte dos guerrilheiros de extrema-esquerda, gerou um período no qual
mesmo as cooperativas mais estruturadas não resistiriam.
Fujimori creó un clima de desinstitucionalización, primero del Estado, luego de los sindicatos, de las federaciones y de las organizaciones de productores. El colapso fue total. Las cooperativas fueron acusadas de senderistas, comunistas, izquierdistas, ladrones, ineficientes... no faltó nada. En ese proceso se cayeron unas cuantas, quizás las que debieron caerse, pero nosotros seguimos adelante. Lo cierto es que el tejido social fue destruido. En 1993 tuvimos que empezar a reconstruir el sector del café. Primero nuestras organizaciones, demostrando que también sabemos ser empresas organizadas y eficientes. En un momento las cooperativas canalizaban el 80% del café que se producía en Perú, cuando estaban protegidas por el gobierno de Velasco, pero con Fujimori caímos a apenas el 2%. Desde allí reconstruimos nuestra organización. Fuimos los primeros en reagruparnos. Esto logramos concretarlo en un foro nacional que se llama Conveagro. La JNC es un gremio, no comercializamos ni un solo grano de café. Cada organización de base autónoma hace sus procesos de comercialización. Nosotros representamos los intereses del sector, representatividad que nos da nuestra presencia real en la base, entre los productores. La JNC es reconocida inclusive por aquellos que no están asociados a nosotros. (Hidalgo, 2005)
Essa colocação do outrora presidente da Junta Nacional do Café (JNC) aponta
para a trágica situação vivenciada pelas organizações de produtores diante do governo
de Alberto Fujimori. A liquidação do Banco Agrário, em 1992, significou o fim de uma
crucial fonte de crédito aos produtores (mesmo para aqueles que não tinham um título
de propriedade para dar como garantia de seus empréstimos). Isso certamente contou a
favor das empresas privadas exportadoras que dispunham de recursos financeiros
capazes de fornecer os tão necessários créditos para os custos que precedem e envolvem
a colheita. O conflito entre o governo e os movimentos guerrilheiros de extrema
esquerda, ao se concentrar principalmente nos rincões do país, tornou as condições de
vida nas zonas cafeicultoras ainda mais difíceis (não é à toa que muitos agricultores
abandonaram suas terras). Sem contar que os dirigentes das cooperativas, e seus
próprios associados, chegaram a ser vistos como adversários desses movimentos e, em
alguns casos, foram assassinatos por estes grupos.
Como dito anteriormente, a criação da JNC, em 1993, foi capitaneada pelas
quatro das cinco centrais de cooperativas que igualmente haviam formado a
FENCOCAFE (uma dessas cinco centrais tinha deixado de existir). Essa nova
235
organização representou uma tentativa de congregar os cafeicultores peruanos em torno
daquilo que poderia ser colocado como uma saída para a trágica situação que vinham
enfrentando e que, como pode ser percebido, apresentava outros complicadores para
além da abrupta queda nos preços internacionais do café a partir de 1989. De qualquer
maneira:
A raíz de las caídas de las cooperativas se genera un oligopolio de empresas exportadoras que tenían el control, el dominio del mercado de café en el Perú. Eran pocas empresa – subsidiarias de transnacionales – y fijaban el precio. Estas empresas siempre habían existido, pero su dominio empieza en 1989, cuando el Convenio Internacional del Café, que asignaba cuotas a cada país productor, ya no se renueva. Con el convenio era posible cierto control sobre los precios del mercado mundial, y estos se mantenían más o menos alto. (Rivas, 2009 p. 8)
Tal diagnóstico de Cesar, enquanto atual presidente da JNC, acompanha sua
descrição da outrora relação habitual das organizações de produtores com as empresas
privadas exportadoras.
Eran muy pocas las cooperativas que exportaban directamente; en 93 quizá eran el 5%. Hasta ese momento, la mayor parte de las cooperativas eran básicamente acopiadoras; ponían el café, lo traían a Lima y se lo daban a otros. Recuerdo haber conversado con exportadores en esa época, y ellos me decían: “Nosotros podemos exportar porque tenemos la logística, la capacidad instalada y la información para explorar mercados y vender en las mejores condiciones nuestros productos. Los productores saben producir bien y creo que deben cumplir su labor. Zapatero a tus zapatos.” Pero yo creo que todos queremos ganar en la cadena, y como el que gana no se preocupa del agricultor – que es el que hace más esfuerzo -, entonces nos hemos visto obligados a salir nosotros mismos, los productores, a buscar mercado. (idem)
A essa sua descrição pode ser somado seu comentário a respeito da criação da
JNC enquanto um espaço institucional de congregação das organizações de produtores
que buscavam outras formas de canalizar seus cafés que não através das empresas
privadas exportadoras.
Luego de la desactivación de Fencocafe, las cooperativas vemos la necesidad de volver a tener una organización, pero más orientada al desarrollo. Así se constituye la junta, que aparece justo cuando las cooperativas empiezan a meterse en el negocio. La junta reforzó esta tarea capacitando a las cooperativas, trasladando conocimientos y experiencias buenas de un sitio para ponerlas en práctica en otros lugares. Por ejemplo, ellos decían: “Mira, La Florida tiene un
236
contacto con una financiera en Europa; ustedes pueden tocar esas puertas también”. Para eso hay servido la Junta; y me alegra mucho, porque casi todas las cooperativas tienen créditos en las mismas financieras que nosotros tenemos. También sucede que las financieras dicen: “Como La Florida cumple, seguro que las otras cooperativas también.” Es una cadena que se ha ido jalando, y muchos de los clientes también son los mismos. Ellos dicen: “En el Perú hay buen café. Si ahora no tienen en el norte, entonces me voy al sur o oriente.” (idem p. 10)
Os acessos dos gerentes aos compradores estrangeiros não podem ser entendidos
sem levar em conta os próprios produtores e também outras pessoas que venham a
participar da intermediação desses contatos. Mas esse trabalho coletivo não impede que
o prestígio se concentre nas mãos dos gerentes por serem os que, notadamente, retêm a
“confiança” dos importadores. Isso faz inclusive com que releiam a história de suas
próprias organizações através da importância que supostamente tiveram nelas. A ênfase
que colocam no despreparo administrativo destas entidades no passado evidencia
justamente o relevo que veio a ser concedido ao cargo que ocupam.
Como assinalado, a figura do gerente já vinha ganhando destaque, entre as
organizações de cafeicultores, mesmo antes da criação desse grêmio. Isso se deu, por
exemplo, com as versões do “encontro nacional de gerentes e contadores das
cooperativas agrárias cafeicultoras do Peru”, em meados dos anos 80. Contudo, mesmo
nessa época, quando as organizações de produtores já enfrentavam, há algum tempo, a
concorrência dos agentes privados, os protagonistas dos principais encontros
envolvendo as cooperativas continuavam sendo os presidentes dos seus “conselhos de
administração”.215 Não é à toa que a carência de uma gestão “empresarial” começaria a
ser cada vez mais sentida.
É possível afirmar que, antes da criação da JNC, os protagonistas do movimento
cooperativista, no caso, os “dirigentes” das organizações de produtores, estavam mais
215 Isso também vale para aqueles que vieram a ocupar esse cargo na FENCOCAFE. Tais “presidentes do conselho de administração” nada mais são do que representantes dos produtores (eleitos em assembléias). Não se trata assim de uma escolha com base em qualquer critério eminentemente administrativo ou de gestão comercial.
237
preparados para intermediar as relações dos produtores com o poder público e menos
para com o mercado. Como dito anteriormente, foram os filhos daqueles que cultivaram
o café ao longo das décadas de 70 e 80 que, a partir dos anos 90, vão formar a primeira
geração de cafeicultores que, em grande medida, teve acesso ao ensino superior.
Conseqüentemente, estes seus descendentes puderam ser devidamente preparados para
gerenciar suas organizações.
A Junta Nacional do Café também veio a se colocar como um canal para os
produtores canalizarem suas demandas ao poder público. Isso ficou particularmente
evidente durante a chamada “crise nos preços do café” que caracterizou a primeira
metade da década de 2000. Mas a inação governamental acabou enfatizando ainda mais
a importâncias das políticas comerciais das organizações de cafeicultores como um
meio privilegiado para atravessarem essa crise.216 Sem o apoio mais substancial do
governo, restava concentrarem suas energias nos novos mercados surgidos ao longo dos
últimos anos, em especial, no sistema de comércio justo regulado pela FLO.
4.8 Contatos
Leonel trocou diversos correios eletrônicos com um sujeito responsável pela
certificação da FLO.217 Numa dessas mensagens, perguntou sobre a possibilidade de se
216 A falta de apoio estatal pode ser visualizada através das distintas edições da revista publicada pela Junta Nacional do Café. Por exemplo, o editorial da sua edição de agosto de 2001 intitulava-se ¡Emergencia cafetalera!. O da edição de dezembro de 2002 era Ya no podemos esperar. Avanzamos, pese a la exclusión gobernamental foi o título do editorial de agosto de 2004. Contudo, apesar das ameaças da JNC, a pressão em cima do governo não chegou a resultar na mobilização dos cafeicultores em torno de manifestações de rua, ao contrario do que acontecia nos tempos da FENCOCAFE. Na revista Café Peru (1977-1988) abundam imagens dos produtores, ou pelo menos de seus representantes na FECONCAFE, protestando diante do palácio do governo, acompanhados de tratores e de diversas faixas onde se liam suas reclamações. Além disso, suas manifestações não se resumiam à capital do país, ou seja, também atingiam todo o território nacional. Isso aconteceu, por exemplo, nos vultosos protestos contra a política de liberalização da exportação de café que se inicia no começo da década de 80. Já na revista da JNC não se vê uma única foto dos cafeicultores protestando na rua. 217 O primeiro desses correios para a “FLO-CERT” Leonel enviou em 19 de novembro de 2005. O interesse dele era se informar a respeito da certificação da Nefloma (Asociación de Productores
238
certificar uma “trading justa”. Como resposta este seu interlocutor lhe pediu para
contatar outra pessoa dentro da FLO, além de lhe dizer que “as políticas para
comerciantes são diferentes das dos produtores”. Também o sugeriu consultar as “regras
C dos Standards da FLO”. Leonel ficou muito contente com essa sua “descoberta”.
Contudo, alguns dias depois, ele recebeu a resposta da FLO, na qual estava escrito que
esta entidade “não certifica plantadores de café e também não certifica empresas de
assessoramento”. Com relação ao café, cacau e mel a FLO só certificaria pequenos
produtores organizados em cooperativas ou associações, as quais deveriam fazer suas
solicitações individualmente.218 Existia também a possibilidade de se certificar
estruturas de segundo grau legalmente formadas (como era o caso da Corporação Café
Peru, por exemplo). Leonel ficou bastante decepcionado com a resposta que recebeu e,
em seguida, escreveu-lhes dizendo que a EC era uma organização de segundo grau. A
FLO respondeu esse e-mail junto de um arquivo contendo uma folha para ser
preenchida.219 Ele prontamente preencheu e reenviou esse documento.
Segundo Leonel, “a FLO diminui o risco, com ela se tem boa possibilidade de
venda”. Vale ressaltar que também escrevemos em torno de quatro correios eletrônicos
para possíveis compradores de café, aos quais ofertávamos o produto. Um dos correios
era para a Elan Organic Coffees, cuja página web impressa Leonel recebeu na Jungle
Tech, junto de outra da Northwest Shade Coffee Camp e uma da Associação Norte
Negociaciones Flor de Maria), de Pichanaki. Vale lembrar que a FLO-CERT é o “braço” da FLO responsável pela pelas certificações. 218 “Com relação a flores e algumas frutas podemos certificar plantações sobre padrão de trabalho contratado”, estava escrito no correio eletrônico enviado pela FLO. “Esteja consciente de que a certificação é quase impossível se sua organização não pertence aos três tipos principais: 1- Entidade legal em mão de trabalhadores (Cooperativa, associação, ...), 2- Plantação, 3- Fábrica”, também aparecia nessa mensagem. 219 “Nos puede mandar outro formato de solicitud en el que son una asociacion legal/ organizacion de techno en manos de pequenos productores. Entonces pode mandar el cuestionário y puedes ver si (...) caben en esta categoria.”, estava escrito no e-mail vindo da FLO.
239
Americana de Cafés Especiais.220 Na mensagem para a Elan Organics Coffees ele
escreveu:
Mi cordiales saludos y ala vez aprovecho manifestarle sobre los cafés orgânicos NOP-USDA que tenemos em la selva central y nos encataria trabajar com ustedes em la comercializacion a travez de su empresa Élan Organic Coffee, por que los cafés son en general muy buenos hay um total de 70 contenedores para esta campana.
Num outro e-mail, dado que Leonel não dominava o inglês, eu escrevi:
Dear Kaffehuset Friele AS, We are a new organic coffee trading company called Ecologic Chanchamayo with farms located between 1100m up to 1700m above the sea with excelent micro-climates for coffee and ecologic grounds with plenty of organic material. We came to you to offer Naturlan UE-NOP organic certified coffee in total number of 7000 bags or 14 containers. For OCIA NOP - USDA we got 23000 bags of certified coffee or 47 containers Also, we are able to offer you 20000 bags of conventional gourmet coffee. Thanks for your atention at this time and it would be a pleasure to receive you here at the beautiful region of the peruvian central jungle (selva central). The producers are cleary previously thankful for this possible comercial alliance. Sincerely, Ricardo Cruz International trading adviser Leonel Rojas General Manager Ecologic Chanchamayo Av. Peru 301 La Merced Chanchamayo - Perú Tel. 0051 - 64 - 531941
Acabei definindo essa minha identificação de “assessor de comércio
internacional” no momento em que escrevia a mensagem, embora a minha atuação
220 A Elan Organic Coffees é uma torrefadora que compra cafés da Cooperativa La Florida. Conversando com o gerente desta cooperativa, este me disse que a La Florida foi a primeira organização peruana de cafeicultores a trabalhar com comércio justo nos EUA. Seu irmão estudava numa universidade de Lima e nessa instituição tinha um colega com contatos de empresas de cafés especiais nos EUA, principalmente com a Elan Organic Coffees que, por sua vez, introduz o café da Cooperativa La Florida nesse país. Até então, as organizações peruanas de cafeicultores só trabalhavam com compradores localizados na Europa. Na primeira venda para os EUA, embarcaram um contêiner de café. Participaram de feiras nesse país e buscaram melhorar a qualidade dos cafés entregues pelos sócios da cooperativa. “Tínhamos que lutar com os produtores”, me disse Cesar ressaltando também a “união destes para melhorar a qualidade”. Contudo, a cooperativa ingressou com força nos EUA através da Seattle Best Coffee, que inclusive se matriculou no comércio justo por insistência da La Florida. “Depois vieram outras empresas”, acrescentou. “No segundo ano vendemos 15% pela FLO, depois 20%, o volume cresceu”, apontou para em seguida concluir: “é claro que se pudéssemos, venderíamos tudo pela FLO”.
240
estivesse mais para tradutor do que para um assessor de qualquer tipo, ainda mais em se
tratando de comércio internacional. A insistência em certificar a EC através do
comércio justo regulado pela FLO demonstrava claramente o quanto Leonel havia
incorporado as disposições dominantes no interior do setor cooperativista. O mesmo
valia para a ênfase em trabalhar com determinados compradores estrangeiros de café e
não com as empresas privadas exportadoras (pelos menos num primeiro momento,
como deve ficar evidente mais à frente). Essas disposições também viriam à tona
durante sua recolocação num concurso para um cargo de sub-gerente da Cooperativa La
Florida. Tal reviravolta colocaria a EC diante de outra perspectiva.
4.9 O concurso
As férias de Leonel terminariam no final de janeiro. No primeiro dia de
fevereiro, estaria de volta ao seu trabalho na Cooperativa La Florida, onde pretendia
ficar até o final de março. Estava tão certo de que iria pedir demissão e concentrar seus
esforços na EC que inclusive se questionou da necessidade de participar de um
concurso, no dia 27 de janeiro, em torno de dois cargos de sub-gerente da cooperativa.
Acabou, enfim, decidindo participar. Por conta disso, fiquei responsável por representá-
lo num evento de uma das cooperativas assessoradas pela EC.
No dia 29, Leonel ficou sabendo que passara do quarto para o segundo lugar
entre os 16 concorrentes para os dois cargos de sub-gerente da Cooperativa La Florida.
Os que anteriormente haviam ficado com as duas primeiras posições foram eliminados
por terem parentes trabalhando na cooperativa (um destes era um dos irmãos de Julio,
cuja prima era a secretária do gerente). Uma dessas duas vagas em disputa era para
trabalhar no centro educacional e de capacitação da cooperativa (CEOAS) e a outra em
241
suas dependências em Lima. Leonel me informou que provavelmente iria morar nessa
cidade, ganhando 1.000 soles por mês durante cinco meses e, depois disso, 3.500 soles
mensais. Ele também comentou que deveria passar a direção da Ecologic Chanchamayo
para uma amiga alemã que morava em Sán Ramón (a cidade vizinha a La Merced).
Num dado momento, me perguntou: “mas você conhece de comércio internacional,
não?”, como que me propondo dirigir a Ecologic Chanchamayo. Ainda de acordo com
ele, “a Cooperativa La Florida tem que posicionar seu café no mercado internacional”,
supostamente se referindo a sua futura função na cooperativa enquanto um
“conquistador” de novos compradores.
Essa reviravolta na sua vida também me pegou de surpresa. Antes, já
conformado de não ter passado no concurso, por conta, segundo ele, de não ter obtido
sua titulação acadêmica, Leonel estava consciente de que seu futuro era na EC.
Previamente ao concurso propriamente dito, ele me dizia que o que lhe interessava era
sua empresa e que não almejava os cargos oferecidos. Na noite anterior da prova, ainda
estava indeciso se ia comigo ou não, logo pela manhã do dia seguinte, ao evento da
cooperativa que assessorava. Depois que ficou sabendo de sua reclassificação em
segundo lugar, deixou de lado o discurso que fazia em prol da EC e se deslumbrou com
o feito alcançado na Cooperativa La Florida. Comentou que seu objetivo maior era
“posicionar” o café da selva central, algo como que um compromisso moral com os
produtores.
Conversamos mais calmamente no final da tarde, em cima do terraço de sua
casa, ainda no mesmo dia em que ficou sabendo da sua aprovação. Ele olhava com
admiração e orgulho as instalações da Cooperativa La Florida, as quais estavam
próximas de sua residência. Sua casa era bastante simples e mal cuidada, igual àquelas
dos jovens técnicos solteiros que trabalham nas cooperativas que visitei, sendo que
242
Leonel tinha mais do que trinta e cinco anos e uma filha (que mal via, é verdade). Ele
comentou o quanto as instalações da cooperativa eram bonitas e falou também de seu
orgulho em poder ser seu sub-gerente. Realmente não encontrava palavras para
expressar sua felicidade diante dessa conquista profissional.
No dia seguinte, logo pela manhã, ele insistiu comigo para que eu fosse “o
representante da EC”. Gentilmente recusei o convite, pois não queria tal
responsabilidade, apesar de também dizer que o ajudaria com a EC, na medida do
possível. Fomos até a Cooperativa La Florida e, da entrada, vejo uma fila no seu
interior, na qual estavam alguns sócios em busca de “crédito pré-colheita”. Um cartaz
numa parede apresentava os “selecionados para a entrevista” dentro do concurso para
Responsable del departamento de educación. Leonel passou e cumprimentou todos os
sócios na fila. Ele não poderia estar mais radiante.
O cargo de sub-gerente superou todas suas expectativas. Mas a verdade é que
não se tratava de um cargo de gerência propriamente dito. Seus possíveis logros com a
EC poderiam justamente fazer com que repensasse o valor desse cargo para o qual seria
contratado. De qualquer modo, a escolha de um ou outro caminho acabaria se colocando
como um verdadeiro dilema para ele. Isso mostrava claramente a complexidade da
ascensão no âmbito das organizações de produtores. Para além dos cargos de gerência,
outras posições sociais podiam se destacar justamente através das ações das pessoas.
Como aponta Pierre Bourdieu (1990 p. 81): “O bom jogador, que é de algum modo o
jogo feito homem, faz a todo instante o que deve ser feito, o que o jogo demanda e
exige. Isso supõe uma invenção permanente, indispensável para se adaptar às situações
indefinidamente variadas, nunca perfeitamente idênticas.” Em outras palavras, a
realidade social não é algo estático, ela está sempre em movimento. Cabe àqueles que
queiram se destacar nela, se ajustar às transformações que vão sendo feitas.
243
A visita, retratada a seguir, que fiz junto de Leonel a um comprador de café,
demonstrava claramente o fato de que ambos ocupavam, em certa medida, uma mesma
posição de mediador diante da presença dos mercados de cafés especiais entre os
agricultores. Obviamente que cada um dos dois interpretava de maneira distinta essa
mediação. Leonel tinha como referência a figura do gerente das organizações de
cafeicultores; já para o sujeito com o qual entramos em contato, essa não era uma
questão pertinente. Isso porque se sentia livre para atuar como um comerciante privado
e não precisava, ao contrário de Leonel, de reler esse papel à luz de uma suposta
moralidade vigente entre os agricultores e que resultava numa desconfiança contra
qualquer forma de intermediação comercial.221 Leonel necessitava dialogar com essa
moralidade, na medida em que se sentia parte de um universo no qual ela estava
presente. Sem falar que essa moralidade se confundia com a própria modernidade das
organizações de cafeicultores: a necessidade de nelas haver um equilíbrio entre a “parte
social” e a “parte comercial”.
4.10 Entre a Cooperativa La Florida e a Ecologic Chanchamayo
Duas semanas depois da sua aprovação no concurso, me encontrei com Leonel,
em Lima, para visitarmos juntos um possível comprador dos cafés da EC. Leonel havia
colocado uma oferta na página eletrônica Mundo del Café; seis respostas apareceram,
221 O fato dos produtores não verem com bons olhos qualquer forma de intermediação comercial implicava justamente na necessidade daqueles que trabalhavam nas organizações de cafeicultores terem que justificar constantemente seu comprometimento com os agricultores. Isso obviamente era mais difícil de ser feito pelos que não possuíam algum tipo de parentesco com estes sujeitos e que não respeitavam determinadas regras de etiqueta próprias do universo cafeicultor. Por exemplo, os sócios da Cooperativa La Florida forçaram a saída do administrador da cooperativa dado que este não os teria tratado decentemente ao longo do tempo. Ao contrário de Cesar, ele não relevava o fato de que os agricultores, quando vinham até as dependências da organização, tinham acabado de realizar uma viagem cansativa e demorada. A maneira seca e burocrática do administrador era interpretada pelos produtores como um sinal de desrespeito. Sua competência administrativa, reconhecida por Cesar, não parecia ser levada em conta pelos agricultores.
244
cinco no dia anterior dessa nossa visita. O sujeito que visitaríamos entrou em contato
com Leonel após ler esse anuncio. Reunimo-nos com ele em sua residência (numa parte
aparentemente nobre do estigmatizado bairro de La Victoria) e também sede de sua
empresa. Seu nome era Joe e Projeto Terra era o da sua firma (que tinha dois anos de
existência). Ele vendia os cafés Cardenal e Libertad (cujos grãos eram de
Chanchamayo e Puno, respectivamente); veríamos suas embalagens durante nossa
visita.
A reunião foi bastante informal. Ambos discutiram diversos assuntos: falaram
inicialmente sobre o fato de que “o ponto crítico do café vai desde a colheita até sua
secagem” e que “com o neoliberalismo os pequenos não são produtivos”. Leonel usou
constantemente a expressão “cadeias produtivas”. “Estamos vendo os financiamentos”,
informou a Joe num dado momento. Este último acusou a central de organizações de
produtores Cecovasa de exercer um monopólio na região cafeicultora de Puno: “ela faz
pressão para que a Associação de Produtores de Café Valle d’Oro não se concretize.”
Ele também disse que queria trabalhar com essa associação que, do seu ponto de vista,
necessitaria de dinheiro para certificar seus associados.
“Falta mercado”, confessou Leonel que igualmente ressaltou os quatros anos em
que vinha trabalhando na Cooperativa La Florida; “uma escola”, definiu-a indicando,
logo em seguida, os cursos dos quais participou no Panamá. Ele comentou também que
“em 2004 não havia café convencional para a (Cooperativa) La Florida, as chacras dos
sócios eram 100% orgânicas, tivemos então que comprar café convencional em
Pichanaki.”
Joe falou então da torrefadora de café Mayorga (de Seattle - EUA) cujo dono,
chamado Thomas, deveria vir até Lima se encontrar com ele (Thomas também contatou
Leonel depois de ler seu anúncio na internet). “Meu negócio é agregar valor ao
245
produto”, foram as palavras de Joe antes de se referir ao fato de vender café torrado (ele
também “dava uma marca” para a azeitona embutida que comprava numa cidade
andina). Joe usou a infra-estrutura de processamento da Corporação Café Peru para
torrar o seu café, a qual, segundo ele, “é muito cara”. “O café orgânico tostado pela
Corporação Café Peru é feito através de um processo orgânico”, disse para em seguida
comentar com Leonel a respeito do comércio justo e orgânico como “um plus”. “O
senhor Thomas pediu orgânico e FLO”, enfatizou.
Mais tarde, andando pelas ruas de Lima, Leonel comentou comigo: “Joe tem o
que eu não tenho; ele tem mercado”. “Necessitamos primeiro de mercados para a
Control Union”, disse ele que completou em seguida: “se sair o financiamento (da
Control Union) não fico na (Cooperativa) La Florida”. “Estou na (Cooperativa) La
Florida para conseguir mercados”, ressaltou e apontou para o fato de que “o dinheiro do
financiamento é para pagar a compra do café dos produtores”. Eram 90 contêineres de
café que Leonel afirmava ter disponível. “A Control Union empresta quando se tem um
convenio”, assinalou. A Control Union era uma agência certificadora que, segundo ele,
poderia lhe empresar US$ 500.000. A garantia do empréstimo deveria ser os “convênios
de exportação de café”. Ele comentou ter dois amigos exportadores de frutas para o
Chile que conheceriam uma pessoa que trabalhava nessa agência, “isso agiliza as
coisas”, colocou.
Mais à tarde, fui junto dele até a Corporação Café Peru. Ele iria se encontrar
com Cesar, o gerente. Conversamos depois desse seu encontro. Cesar lhe teria felicitado
pela EC e dito que a Cooperativa La Florida poderia o ajudar com um empréstimo de
100.000 soles (US$ 33.000). Esse apoio de Cesar o deixou bastante contente. No dia
seguinte, partimos juntos para o Encuentro Latino-Americano de Productores de Café
Orgánico y Sostenible, realizado pela Junta Nacional do Café e pela Central de
246
Cafeicultores do Norte Oriente (CECANOR) na cidade de Chiclayo (norte do Peru). Se,
de seu lado, Leonel iria para o evento enquanto funcionário da Cooperativa La Florida,
eu acabei indo como representante de sua empresa. Na verdade, para evitar expor
qualquer suposto conflito de interesses de sua parte, ele jamais se associou, durante o
encontro, à EC.
Apesar de no crachá que usei ao longo de todo esse evento estar escrito que
pertencia a tal organización de Leonel, sempre tentava deixar bem claro com quem
conversava que, na verdade, estava no Peru para fazer uma investigação sobre o
comércio de café, e que minha associação com este empreendimento que representava
no encontro era um trabalho voluntário, tendo em vista adentrar nesse universo que me
interessava pesquisar. Nesse sentido, e além do contato com o rico conteúdo exposto
nas diversas palestras apresentadas, o que vale destacar de minha presença nesse evento
foi justamente a interação com pessoas ligadas às organizações de cafeicultores, em
especial, como era de se esperar, com aqueles mais próximos de Leonel e que eram,
assim como ele, filhos de reconhecidos sócios da Cooperativa La Florida; sem falar que
reencontrei os gerentes das cooperativas Sangareni e Vale de Santa Cruz.222
Foto 42 – Leonel (de camisa listrada) numa mesa com outros membros da La Florida
durante o evento em Chiclayo
222 Vale ressaltar que a gerente da Sangareni foi homenageada, nesse evento, enquanto um símbolo da presença das mulheres entre as organizações de produtores de café.
247
Ao final do encontro, conversando com Leonel, ele ressaltou mais uma vez que
os cafés certificados que havia financiado estavam em nome da EC.223 Disse também
que não iria mais assessorar as cooperativas Sangareni e Vale de Santa Cruz, “pois estas
querem caminhar sozinhas”, concluiu. Afirmou sentir ainda o desejo de ser gerente da
Central de Pichanaki, “mas agora tenho minha própria trading, que é mais ágil”,
ponderou. Enfatizou que buscava vender os cafés certificados em nome da EC: “os
produtores são donos dos cafés, mas não das certificações”, acrescentou.
Continuei no norte do país, visitando algumas cooperativas. Pelo computador
pude então conversar com Leonel (que já se encontrava em Lima). Ele comentou
comigo de uma reunião que teve com uma trading sobre a questão do financiamento.
Disse que os funcionários dessa empresa iriam até La Merced em busca de todos os
cafés da EC que estivessem disponíveis. O financiamento seria de US$ 100 mil. Essa
trading teria um escritório em Lima e sede em Nova Iorque. Segundo ele, por acaso, um
amigo intermediou o seu contato com ela. No momento em que falávamos pela internet,
Leonel anunciava a EC numa página eletrônica chamada NuestroCafé.com.
A empolgação inicial com sua conquista do cargo de sub-gerente parecia assim
dar lugar à uma disposição maior em concentrar seus esforços na EC. Seu suposto tino
comercial se mostrava capaz de ser realizado com uma maior amplitude nessa empresa
do que na cooperativa. Restava a Leonel não só desenvolver suas habilidades diante de
seu empreendimento como também fazer isso de uma maneira na qual pudesse ser
reconhecido entre os gerentes das organizações de produtores de café e também entre os
próprios agricultores.
A aprovação de Cesar e sua oferta de financiamento certamente encheram
Leonel de confiança a respeito de seu empreendimento. Mas o fato de não querer ser
223 A agência certificadora contada foi a Ocia e o responsável por esse contato foi Ernesto (o sócio de Leonel na EC): “todos los tramites lo está haciendo él, en eso no metemos, nosotros somos full comercial”, me disse Leonel.
248
identificado à EC durante o encontro no norte do país demonstrava que ainda não se
sentia suficientemente confiante para se expor, enquanto um comerciante privado, no
âmbito nacional das organizações de produtores. Restava, todavia, trabalhar mais a
imagem de sua empresa para que, no seu entender, pudesse ser vista com bons olhos
pelos gerentes de tais organizações. Isso porque era o reconhecimento generalizado
desses sujeitos que, de um modo mais substancial, conferiria os logros não-comerciais
dessa entidade que também eram almejados por Leonel.
4.11 A dedicação exclusiva de Leonel à Ecologic Chanchamayo
Retornei para Lima no dia 14 de março. Já no dia seguinte, dei início à minha
participação, enquanto membro da EC, no curso de avaliação sensorial (ou degustação
profissional) de café do Instituto de Café Sostenible (ICS), a organização não-
governamental ligada à Jungle Tech (JT).224 Iria me comunicar novamente com Leonel
no dia 30 de abril, pela internet, quando fui informado que a sua empresa havia vendido
18 toneladas de café, totalizando 100 mil soles (US$ 33.000), dos quais ficaria com oito
mil. Ele também comentou o quanto “o armazém de café (da EC) em Pichanaki estava
ficando bonito”. Logo em seguida, me pediu um favor: ele queria que eu fosse, em
nome de sua trading, até a Corporação Café Peru retirar os guías remisión 0001-001 e
0001-003 de “mais de 100 mil soles” e depositá-los na conta de Nilo Barrios, o então
responsável pelas vendas da EC.225 Segundo Leonel, os produtores (cujos cafés sua
empresa vendeu) estavam esperando receber o dinheiro na terça-feira seguinte (os grãos
foram vendidos a seis soles o quilo).
224 Tal como assinalado antes, pelo menos dois dos membros da EC deveriam concluir esse curso para que esta entidade pudesse comercializar com a Jungle Tech. Essa era uma política padrão adotada pela JT para lidar com os fornecedores de seus cafés. 225 Numa conversa posterior com Leonel, ele me informaria que Nilo Barrios era o “presidente do diretório” da EC. Disse que Nilo “colocou suas ações (dinheiro) para se integrar (à EC)”.
249
Na manhã do dia dois de maio, terça-feira, fui então até a Corporação Café Peru.
Contudo, faltou uma “ordem de transferência”, por escrito, da EC para a corporação. O
café havia chegado no sábado. O lote 01 tinha 159 sacos e 11.238 quilos no total. O
outro lote, de número 03, tinha 79 sacos e 5.813 quilos. Depois do almoço, retornei à
Corporação Café Peru. Apesar da “ordem de transferência” da empresa de Leonel já ter
chegado, faltava ainda a “fatura” e o comprovante da certificação orgânica, para que a
corporação pudesse fazer o depósito na conta da EC (no caso, na conta de Nilo Barrios,
tal como aparecia no documento). Aproveitei a ocasião para conversar com Cesar, o
gerente da corporação e da Cooperativa La Florida. À noite conversei com Leonel pelo
computador. Ele me disse que se quisesse teria meu escritório no armazém da EC em
Pichanaki, para nele trabalhar pela empresa. Descartei o convite; meu interesse tinha se
voltado para os produtores propriamente ditos.
Depois de um tempo entre os cafeicultores da Cooperativa La Florida e uma
estadia fora do país, acabaria reencontrando com Leonel no armazém da EC em La
Merced (um imóvel alugado, assim como o de Pichanaki) no final de setembro (2006).
Logo na entrada, deparei-me com um filho de sócio da La Florida que havia me
colocado em contato com seus pais e os vizinhos deles. Seu nome era Pablo e estava
trabalhando com Leonel neste mesmo armazém.226 Pude acompanhar uma conversa
entre Abiel, Pablo e dois cafeicultores de uma associação cujos cafés estavam sendo
comercializados pela EC. Ela se chamava Associação de Produtores Monte Bayoz e,
segundo um destes seus dois “dirigentes”, “a área da (Cooperativa) La Florida cobre
226 Na ocasião, Pablo estava montando uma loja de serviços de internet em La Merced, num imóvel de propriedade de seus pais. Ele era formado em zootecnia e trabalhou alguns meses na Cooperativa La Florida. De acordo com Pablo, sua função quando esteve empregado na La Florida era atuar junto às mulheres dos sócios. Mais especificamente, as ensinava a fazer pão, doce de leite e outros produtos caseiros para consumo próprio (sendo que estas só receberiam um financiamento para estas tarefas caso possuíssem uma horta). Evidentemente que esse seu antigo trabalho não tinha nada a ver com sua formação em zootecnia e que o mesmo estaria se passando com seu emprego na empresa de Leonel. Isso também vale para a situação então vivenciada por este último sujeito, na medida em que era formado em engenharia aeronáutica.
250
40% dos membros da associação”.
Transcrevo a seguir o diálogo entre eles e no qual fica evidente a identificação
que Leonel tentava fazer entre seu empreendimento privado e o desenvolvimento dos
agricultores. Ele falava em estabelecer um “convênio” da EC com as organizações de
produtores, montar uma “pequena central” entre elas e sobre a importância tanto da
“parte comercial” quanto da “parte social”. Também estava claro nessa conversa o fato
da Cooperativa La Florida ser colocada como um referencial, mesmo que para servir de
contraponto:
Leonel (discorrendo sobre a venda de café) - Primeiro se tem um contrato aberto. Especula-se com a bolsa para fechar o contrato. Um amigo com 15 anos de experiência na bolsa não sabia me dizer se ela ia subir ou baixar nos próximos dias. (Leonel oferece um exemplo) - Se abre (um contrato) hoje (23/10) para embarque em 15 de novembro, se pode fechá-lo até dois dias antes. Se subir dois ou três pontos, já está bom para fechar (o contrato). O lucro que ganhamos, mandamos como reintegro para os produtores. O plus de (café certificado como) orgânico depende da qualidade. A certificação quem faz é Foncodes e Caritas.227 A EC faz a transabilidade (palavra que Leonel aprendeu no encontro em Chiclayo). Produtor - Todas as associações nasceram no Foncodes. Leonel - O objetivo da EC é o desenvolvimento familiar. A certificação de comércio justo é para 2007. As companhias querem volumes altos, eu sei, eu estive nos EUA (numa feira) há uma semana atrás. (As associações) Monte Bayoz e Alto Perene têm bons cafés. Vocês podem fazer a cadeia com o Agrobanco, já esta tudo pronto com ele. A EC está certificando 300 produtores de cacau. É uma cadeia. (Leonel fala de um convênio, de cinco anos, com as associações ligadas à EC). - (Nesse convênio esta) incluindo comércio justo e (acesso a) mercados. (Sobre o financiamento) - (É com base num) contrato de exportação. Com isso fica fácil conseguir empréstimo. Produtor - Os produtores estão agora melhorando as condições de vida através dos orgânicos, estão com compostera (infra-estrutura para produzir adubo). Para seguir assim se necessita de dinheiro para que as pessoas não vendam para a calle (comerciantes intermediários/empresas privadas). Temos assistência técnica e capacitação, nos falta mercado.228 Leonel - Por questões de política não tocamos na jurisdição da (Cooperativa) La Florida, mas como vocês são uma associação... - Agrobanco (banco estatal) pede título de propriedade. Produtor - Mas há muita gente que não tem título. Com 1000 soles de crédito está bom para o produtor.
227 Como assinalado anteriormente, o Foncodes é o Fondo de Cooperación para el Desarrollo Social (órgão ligado ao governo peruano). Já a Caritas é uma instituição católica internacional. 228 Como dito antes, a calle (rua, em espanhol) significa um espaço genérico de compra e venda de café do qual participam os comerciantes intermediários e as empresas privadas exportadoras.
251
- Este ano (os cafeicultores) fizeram poda, entre outras coisas, e a produção melhorou, antes era um ano (de produção) alto, outro baixo, agora vai ser mais standard. - Antes o Banco Agrário (antigo banco estatal) emprestava sem a necessidade de título de propriedade. - Vocês (da EC) têm mercado estabelecido, isto é o mais importante. Leonel - Queríamos unificar as três associações (Alto Perene, Monte Bayoz e Pozuzo). Ter um só RUC ( registro na – Superintendencia Nacional de Administracion Tributaria - SUNAT) para a liquidação (efetivação da venda do café), para baixar (reduzir) os custos. - (Seria produtivo ter) uma pequena central entre (as associações) Alto Perene e Monte Bayoz que estão perto, Pozuzo está longe, em (departamento) Cerro de Pasco. Produtor - Temos que conversar com os de Alto Perene. - Estamos (a Associação Monte Bayoz) imitando a cooperativa (La Florida) para igualar a ela. - As pessoas (cafeicultores) vão (fazem parte das associações/cooperativas) pela rentabilidade. - Temos que igualar ou superar (a Cooperativa La Florida). A (Cooperativa) La Florida não melhorou a qualidade de vida no campo. A (Cooperativa) La Florida começou bem em nível de infra-estrutura, mas a base social não melhorou. Os não-sócios estão melhores que os sócios. - Primeiro queremos fortalecer nossas bases. - Tendo esse convênio com ecologic (chanchamayo) ficamos mais sossegados. Leonel - É preciso tanto a parte social quanto a parte empresarial.
Terminada a reunião, conversei com Pablo, em frente às instalações da EC.
Entre outras coisas, ele comentou que Nilo Barrios havia comprado café da calle
(enquanto comerciante intermediário) e misturou-os com o dos produtores das
associações ligadas à empresa de Leonel. “Café é uma máfia, muitos são assim como
Nilo”, apontou. Em seguida, passei a falar com Leonel. Ele me informou das vendas da
EC até então. Para a Perunor, empresa especializada na exportação de cafés orgânicos, a
qual entrou em contato com Leonel, a EC vendeu dois contêineres. Para a COCLA,
contatada por ele, foram outros dois. A Corporação Café Peru comprou oito. Por fim, a
empresa privada exportadora Coinca, através da sua divisão de cafés orgânicos,
comprou seis. No total, foram vendidos 18 contêineres, a um preço médio de 110 soles
a saca de café. “Vendemos tudo”, me comunicou entusiasticamente.
Ainda nessa ocasião, ele me disse que, em agosto, a certificadora Imo-Control
havia visitado sua empresa, tendo em vista a certificação dela enquanto
“comercializadora e exportadora de cafés orgânicos”. Nilo Barrios não trabalharia mais
com Leonel: “ele é coiote”, assinalou utilizando-se de uma expressão pejorativa para
252
definir os comerciantes intermediários. Sobre os funcionários da EC, comentou que
Pablo ganhava 1.000 soles (o mesmo que Leonel recebia na Cooperativa La Florida,
pois “cumpria a mesma função”). Além de sua irmã, Leonel tinha também como
funcionários uma caixa e três “assistentes técnicos” (um deles trabalhava na La Florida).
Pablo e a caixa não iriam trabalhar na EC durante a entressafra e, nesse período, a irmã
de Leonel iria visitar os produtores junto com os técnicos, tendo em vista as inspeções
das agências certificadoras.
Leonel passou a me explicar como a EC pagava os produtores. Disse que tomava
como ponto de partida o “preço local” (ao alcance do produtor) e a este somava mais
0.50 soles “de plus por quilo”. Os cafés de baixa qualidade não seriam recebidos. Ele
citou um exemplo: a calle (comerciantes intermediários e empresas exportadoras)
pagava cinco soles (o quilo de café convencional) com 80% de rendimento (índice de
impurezas no café, quanto maior o número, menor as impurezas na amostra) e, diante
desse preço, a EC acrescentava mais 0.50 soles.229 Por fim, me esclareceu como se dava
o lucro da EC, “de 0.20 a 0.30 soles por quilo”. “Mas isso fica só entre nós”, disse ele e
que deu outro exemplo: a calle pagava cinco soles por quilo; a EC pagava 5.50 ao
produtor e vendia por 5.80 (“se entrega em Lima e recebe 80% no ato e 20% na fatura”,
afirmou). Sobre os plus (preços acima da bolsa) pagos pelos compradores, Leonel falou
que a Corporação Café Peru pagou entre um plus (negativo) de – 2 soles até + 4 soles
acima da Bolsa (de Nova Iorque). A Perunor pagou sete soles acima da Bolsa, a Cocla
229 Já a “liquidação” (pagamento ao produtor) feita pela Cooperativa La Florida se dava da seguinte maneira, me informou também Leonel. Primeiro, os sócios recebiam 5,70 soles por quilo de café, por exemplo. Para uma saca de 60 quilos do grão em pergaminho, isto é, antes de ser processado para a exportação, a cooperativa teria pagado ao produtor 342 soles (5.70 x 60). Terminadas todas as vendas, ela pagava o chamado reintegro aos produtores, 60 soles, por exemplo, totalizando 402 soles (342 + 60). Se dividirmos 402 por 3,23 (valor do dólar em relação ao sol na ocasião) se tem US$ 124,45 pagos ao produtor por uma saca de 60 quilos de café. Dado que a cooperativa vendia seus cafés pelo comércio justo (FLO) e com certificação orgânica, ela recebia US$ 141 por cada saca exportada. De US$ 141 eram então descontados US$ 16.55 como gastos administrativos da cooperativa, o que resulta em US$ 124,45 pagos ao produtor. Leonel achava isso justo.
253
pagou o preço da Bolsa e a Coinca + 8 soles acima.
Na outra ocasião em que revi Leonel, ele se encontrava na Corporação Café
Peru, onde tinha ido acertar uma venda de café. Ele me mostrou um folheto intitulado
Ecologic Chanchamayo: Convocatoria Programa Certificación Café Orgánico 2006-
2007. Neste folheto, entregue aos produtores que vendiam seus cafés pela EC, estava
escrito o seguinte:
1. Certificación café orgánico Calidad 2. Asistencia técnica en agricultura orgánica. 3. Créditos mediante Agrobanco en cadenas productivas con agricultura orgánica. 4. Conformación de organización de la zona
Leonel começou nossa conversa falando que os cafés certificados pelo selo
(sostenible) Utz-Kapeh não eram bem pagos. Ele disse também que entregou para a
Corporação Café Peru sete contêineres de 412 quintais cada, totalizando 2.884 quintais.
A corporação cobrou pelo processamento dos cafés para a exportação o valor total de
US$ 9.000 (incluindo US$ 2.000 de impostos). Quatro desses contêineres ele vendeu
para a própria corporação, outros três para Coinca (empresa privada exportadora). No
total, a EC vendeu 15 contêineres. Afirmou não ter tido dinheiro para pagar os
produtores na hora que estes lhe entregaram os cafés. “Eles tiveram confiança em mim,
dado meu trabalho sério na (Cooperativa) La Florida”, explicou. Era para serem
comercializados os cafés de 150 agricultores, mas com a saída de Nilo (Barrios), Leonel
acabou vendendo os grãos de 80 cafeicultores.
Depois de assinalar ter em mãos 100.000 soles, comentou: “a (Cooperativa) La
Florida buscou mercados estratégicos, maior promedio (preços médios de venda de
café)”. Segundo ele, “todas as cooperativas querem entrar em FLO, mas tem que ter
quantidade e qualidade”. Ele falou que Cesar (o gerente da Cooperativa La Florida)
ganhou confiança dos importadores: “o café (vendido) tem de ser de qualidade e sem
254
defeitos (físicos)”, conclui para logo em seguida nomear alguns “clientes de Cesar”.230
A La Florida aparecia como um referencial bastante presente em suas percepções e o
mesmo se dava em relação à Corporação Café Peru.
Ele igualmente me contou que não deveria mais trabalhar com a Associação
Monte Bayoz, “por questões políticas”, isto é, pelo fato dessa associação estar dentro do
“raio de ação” da Cooperativa La Florida.231 Em seguida, proferiu três exemplos de
comercialização de café. (1) A calle estava comprando o grão “convencional” (não
certificado) a cinco soles (o quilo). (2) Já a Cooperativa La Florida pagava 6,70 soles
pelo café certificado como orgânico: “a Cooperativa La Florida paga mais porque tem
FLO”, disse ressaltando que a cooperativa oferecia 5,70 soles no ato pelo café que o
produtor a entregava e mais um sol (de reintegro) no final das vendas totais dela. “A
cooperativa vai vendendo café e (com esse dinheiro) criando um fundo para comprar
mais café”, apontou. (3) A EC, por sua vez, comprou o grão por um preço entre 5,50 e
5,70 soles: “paga mais (que a calle) porque tem plus de orgânico”. Para Leonel, a “FLO
subsidia o adelanto (dinheiro pago aos produtores no ato da venda do café)”.232
“Os bens da (Cooperativa) La Florida sempre estiveram hipotecados”, observou
Leonel com relação aos financiamentos proporcionados pelos bancos à cooperativa para
a compra de café. Ele me confidenciou sobre como a EC conseguiu dinheiro para sua
primeira compra de café, algo para o qual que me pediu sigilo. Segundo ele, Saulo, seu
colega que trabalhava no Agrobanco em Pichanaki, lhe entregou “na confiança” (sem
documentos) cinco caminhões com café para serem vendidos. Os cafés eram dos
produtores da Central de Pichanaki, a qual devia para o Agrobanco. Saulo, em vez de
vender para a calle (que estava pagando cinco soles), vendeu para Leonel que lhe pagou
230 Ele citou as seguintes empresas: Panamerican, Settler e Ellan Coffees. 231 Futuramente ele acabaria trabalhando com essa associação. 232 Leonel também ressaltou a participação pioneira, entre as organizações peruanas de produtores, da Cooperativa La Florida e da COCLA em feiras nos EUA, Europa e Japão.
255
5,20. Leonel ganhou 38.000 soles com a venda desses cafés para Cocla e a Corporação
Café Peru, sendo que esta foi a primeira venda da EC.233
Por fim, comentou que ganhava 1.100 soles (em torno de US$ 300) mensais
trabalhando na Cooperativa La Florida, mas que no final de todo mês (antes do
recebimento de seu salário) não tinha mais do que 100 soles no bolso. Este ano (2006)
lucrou 100.000 soles com a EC. Na ocasião, me mostrou e acabou me dando um estrato
do Banco de Crédito do Peru onde se via seu saldo disponible de US$ 21.383,66. Disse
ter planos para trabalhar com 500 produtores no ano seguinte e lucrar 500.000 soles,
além de contratar cinco funcionários. Queria se tornar “independente” de Ernesto (seu
sócio), do qual afirmou não confiar muito. Comentou igualmente comigo o fato de ter
presenteado seu pai e irmãos com dinheiro.234
Durante os meses finais da minha estadia no Peru, encontrei apenas algumas
vezes com Leonel. 235 Vale ressaltar que, ao longo desse período, participei de diversos
eventos organizados pela Junta Nacional do Café, entre os quais o II Encontro de
Jovens Cafeicultores. Ele havia participado da primeira edição desse encontro, realizada
em dezembro de 2005, no pueblo de La Florida. Uma foto de seus participantes aparece
estampada na capa da edição de fevereiro de 2006 da revista da JNC. Abaixo da foto lê-
se: Cafetaleros innovadores y emprendedores.
Além de continuar vendendo café pela EC e assessorando as organizações de
produtores, Leonel tinha planos de participar de mais feiras no exterior. A primeira
dessas experiências havia sido na BioFach America, em outubro (2006), na cidade de
Baltimore (EUA). Ele viajou a essa feira internacional de produtos orgânicos junto de 233 Nessa conversa e em outras, Leonel também me explicou determinadas operações veladas feitas tanto pelas cooperativas quanto pelos produtores ligados a elas. Porém, em todos esses casos, não se estava diante de nenhuma prática ilegal. 234 Vale ressaltar que escutei um de seus amigos que trabalham como gerentes de outras cooperativas o “acusar”, nas suas costas, de ter se tornado um mero “intermediário” (comerciante privado). 235 Numa ocasião, comentou comigo que tinha terminado com sua namorada, uma jovem de vinte e poucos anos, e que buscava uma mulher mais madura, “uma empresária”, disse. Esta pretendente poderia ser encontrada, segundo Leonel me confidenciou, numa feira no exterior.
256
um gerente de uma cooperativa do sul do país filiada à Central Café Peru. Esse sujeito,
assim como Leonel, era também filho de um dos em torno de 50 “refundadores” da
Cooperativa La Florida. Seu irmão trabalhava na Café Peru e sua irmã na Jungle Tech
(me hospedei na chacra deles durante minha estadia no anexo de José Galvez).
Mesmo depois de ter voltado ao Brasil, continuei em contato com Leonel e
acompanhando o crescimento de sua empresa, apesar da concorrência cada vez mais
acirrada das empresas privadas exportadoras no nicho dos cafés certificados como
orgânicos, segundo ele próprio me informou. Leonel disse que muitos, inclusive sócios
da Cooperativa La Florida, estariam copiando o modelo da EC e, dessa maneira, abrindo
suas empresas de assessoria e comércio de cafés orgânicos certificados. Também
comentou comigo que sua trading passaria a se chamar Ecologic Origin´s
Chanchamayo.
É claro que, como relatado acima, Leonel melhorou consideravelmente suas
condições de vida. Por exemplo, ele comprou um automóvel e alugou uma casa que
disse ser bem mais confortável do que aquela na qual vivera até então; sem falar na
aquisição de outros bens de menor valor, como roupas e acessórios domésticos. Por
outro lado, seus ganhos materiais também eram passíveis de serem avaliados com base
numa economia moral própria no universo cafeicultor e de uma concepção de
modernidade que se confundia com essa moralidade. De modo algum ele gostaria de ser
identificado com a “falta de ética” de Nilo Barrios; “um coiote”, segundo Leonel que,
inclusive, encarava seus lucros de uma maneira velada. Sua insistência em trabalhar
próximo das organizações de produtores (chegou a sugerir a criação de uma “pequena
central” envolvendo as entidades ligadas à EC) demonstrava claramente sua
preocupação em se manter associado ao universo social em torno destas organizações.
257
4.12 A nova geração
De volta ao Brasil, não me surpreendi quando um jovem sócio da La Florida,
chamado Javier, apareceu num serviço de mensagens eletrônicas instantâneas (MSN)
com uma identificação ao lado do seu nome dizendo: SRL – Assessores em Produção,
Comércio e Certificação de Produtos Ecológicos e Comércio Justo. Isso porque ele era
mais um, entre outros associados ou filhos destes, que durante minha estadia no Peru
procuravam “progredir na vida” (progresar) através de um trabalho ligado à
intermediação da relação das organizações de cafeicultores com a produção e a
comercialização de café.
Javier tinha por volta de 35 anos quando o conheci. Ele começou me contando
sua história lembrando que se mudou da selva central para Lima quando jovem para
estudar ciências sociais na principal universidade pública do país. Nessa cidade, se
sustentava com o dinheiro que recebia de seus pais e do que conseguia de gorjeta
tocando violão nos ônibus da capital. Certo dia, descansando nas dependências do
grêmio estudantil da sua faculdade, foi preso pela polícia, junto de outras pessoas, sob a
acusação de fazer parte do Sendero Luminoso, dado que foram encontrados escondidos
nesse grêmio bandeiras e material de propaganda desse movimento guerrilheiro. Javier
foi enviado para uma prisão de Lima, onde permaneceu alguns meses e depois para
outra no sul dos Andes peruanos. Doente, foi libertado a pedido de um “grupo de
direitos humanos” que inspecionava o presídio. Permaneceu na serra trabalhando como
motorista e “diarista” nas plantações de batata. Com o aparente fim do “terrorismo” na
selva central, voltou até essa região e participou da “reconstrução” da chacra de seu pai
e da própria Cooperativa La Florida entre os cafeicultores da sua “zona”.
258
Na nossa conversa, pela internet, de 12 de outubro de 2009, Javier me disse que
havia, junto de Alberto (o ex-presidente da Corporação Café Peru), conduzido um
trabalho de assessoria para a Cooperativa do Vale de Santa Cruz (outrora assessorada
por Leonel). Ele falou que o antigo gerente dessa cooperativa, apesar de ter feito uma
boa gestão, não angariou a confiança dos sócios. “A cooperativa estava quebrando e nós
entramos para apagar o incêndio”, contou. Segundo ele, a Vale de Santa Cruz “quase
quebrou” dado que muitos de seus sócios não pagaram suas dívidas: “o gerente forneceu
os adelantos aos sócios e estes não ressarciram a cooperativa” (os adiantamentos em
dinheiro foram dados à cooperativa por uma empresa privada exportadora e pela
Corporação Café Peru).
Javier afirmou que Alberto se ofereceu para ser o gerente da Cooperativa do
Vale de Santa Cruz e os sócios aceitaram. Informou-me igualmente que esta cooperativa
“agora estava indo bem” porque tinha o certificado da FLO e com ele vendia quase a
totalidade de seus cafés, através da Corporação Café Peru, para os compradores que
trabalhavam com o comércio justo. Ele passou inclusive a assessorar a cooperativa que
o antigo gerente da Vale de Santa Cruz veio a gerenciar. “Agora trabalho apoiando
diversas cooperativas com relação às certificações orgânicas e da FLO”, comentou
comigo. Javier citou o nome de dez entidades às quais estaria assessorando e falou de
ter a intenção de viajar até os EUA para participar da feira da Associação Norte-
Americana de Cafés Especiais.
Outro sujeito, ligado à La Florida, que também vinha assessorando outras
cooperativas era Julio (o amigo de Leonel que se colocou como a primeira pessoa que
lhe propôs intermediar a venda de cafés gourmets). Seu contrato de trabalho com a
empresa Jungle Tech havia terminado no final de outubro de 2006 e, logo em seguida,
foi contratado pela Cooperativa Sangareni para “reorganizá-la”. Acontece que um
259
amigo seu e então funcionário da Central Café Peru tinha estado nessa cooperativa e
constado que havia uma reclamação generalizada dos sócios a respeito do modo como
estava sendo conduzida. Estes teriam reclamado que alguns poucos produtores, em
torno de 32, num universo de 240, “se portavam como os únicos donos da entidade”. O
funcionário da Café Peru chamou a atenção da gerente da Sangareni e a convenceu a
contratar Julio como seu “assistente administrativo”.
Conversaria com este último, pela internet, quando já estava conduzindo seu
trabalho na cooperativa. De acordo com ele, “12 sócios se sentiam os donos” desta
entidade e marginalizavam os demais produtores. Mas a raiz do problema seria um
destes 12 agricultores e irmão da gerente. Este era um ex-comerciante e teria
“imprimido essa marca” na Sangareni. “A Junta Nacional do Café e a Café Peru exigem
que Sangareni seja uma cooperativa”, me disse Julio. Ele afirmou que “foram os
técnicos da Cooperativa La Florida que criaram a Sangareni, eles que juntaram os
sócios”. “O estatuto e o plano estratégico são cópias daqueles usados pela La Florida,
não há fortalezas, não há ferramentas, é apenas um texto e eles não sabem como
utilizar”, argumentou e completou sobre o documento feito por Leonel: “o plano foi
apresentado para apenas 20 sócios e foi aprovado.”
Seu trabalho seria o de “fortalecer as bases sociais e a instituição”. “A parte
administrativa precisa de computadores e é necessário se estruturar os comitês de
educação, crédito e agropecuário”, apontou. Ele tinha como projeto fazer com que todos
os sócios “aportassem” os recursos para formar o “capital social” da cooperativa. “Os
diretivos e os administradores devem visitar os sócios e informá-los das decisões que
são tomadas em nome deles”, assinalou e acrescentou: “estou com a lei do
cooperativismo debaixo do braço”. Julio enfatizou que os dirigentes deveriam ser
novamente ratificados numa assembléia. Disse que iria desenvolver um “plano de
260
desenvolvimento social” e outro de “desenvolvimento empresarial”. Sobre este último:
“trata-se de saber o que fazer com os cafés, como vendê-los e a questão dos
empréstimos”.
“Os sócios não querem o irmão da gerente, o poder dele está em conseguir o
financiamento (das empresas privadas exportadoras) para pagar os produtores”, colocou
e adicionou, se referindo às chamadas agências de financiamento solidário: “tenho que
conseguir apoio da SOS Faim ou da Alterfin para tirá-lo da cooperativa”. “O presidente
faz tudo o que irmão da gerente manda”, assinalou afirmando o seguinte em relação a
Javier: “ele foi contratado para fazer o que vou fazer, mas o irmão da gerente o tirou,
pois Javier queria justamente colocar em prática os princípios cooperativistas.”
Julio estava recebendo US$ 300 por mês para trabalhar na Sangareni e ficaria
três meses morando na sua sede (voltando uma semana de cada mês para Lima).236
Disse que sua função era “fazer funcionar o sistema cooperativista” e “estruturar a
empresa”. Perguntado se gostaria de ocupar um cargo de gerência numa organização de
produtores, afirmou que ainda faltava ser mais calmo, “senão um sócio discute comigo e
eu vou embora”. Segundo me informou Javier em outubro de 2009, o irmão da gerente
da Cooperativa Sangareni voltou a trabalhar como comerciante intermediário. Ele
também me contou que esta cooperativa passou a vender praticamente todo o seu café
pelo comércio justo e através da Corporação Café Peru.
Os exemplos de Javier e Julio, assim como o de Leonel e de tantos outros,
permitem visualizar a continuidade das histórias ao redor da Cooperativa La Florida,
para além dos seus limites territoriais. Isso porque desempenhavam, perante outros
agricultores que não apenas os que viviam no “raio de ação” dessa cooperativa, um
papel de destaque ao intermediarem as relações de suas organizações com a produção e
236 Depois desse emprego, ele acabou sendo contratado pela agência norte-americana de cooperação internacional (USAID) para trabalhar junto a algumas organizações de cafeicultores de uma região do norte do país caracterizada pelo cultivo generalizado de coca.
261
a comercialização de café. Tal intermediação fazia com que se tornassem figuras
bastante conhecidas entre os cafeicultores da selva central. Do mesmo modo que
acontecia com muitos associados da La Florida num plano mais restrito, como retratado
ao longo do capítulo anterior, eles eram capazes de proporcionar os meios para que a
situação precária dos produtores fosse superada ou, pelo menos, atenuada de uma
maneira considerada satisfatória. Entre estes meios se destacavam o acesso aos novos
mercados de café.
Mas o ponto é que a relação desses jovens com estes meios envolvia um habitus
ou conjunto de disposições que adquiriram no contato com a Cooperativa La Florida.
Isso significa dizer que as sagas que marcaram a geração anterior desta entidade
acabaram resultando num ethos que fora incorporado por alguns de seus membros mais
novos e que passaram a se interessar pelo “progresso” ou “desenvolvimento” de outros
cafeicultores que não apenas os que residiam dentro do seu “raio de ação”. Era a partir
desse ethos que se sentiam impelidos a usar, em prol destes agricultores, os capitais
simbólicos, econômicos e sociais que podiam acessar ou obter, em grande medida,
através da cooperativa. Porém, como ressaltou Pierre Bourdieu (2007 p. 100-101):
O processo de instituição, de estabelecimento, quer dizer, a objetivação e a incorporação como acumulação nas coisas e nos corpos de um conjunto de conquistas históricas, que trazem a marca das suas condições de produção e que tendem a gerar as condições de sua própria reprodução (quanto mais não fosse pelo efeito de demonstração e de imposição das necessidades que um bem exerce unicamente pela sua existência), aniquila continuadamente possíveis laterais. À medida que a história avança, estes possíveis tornam-se cada vez mais improváveis, mais difíceis de realizar, porque a sua passagem à existência suporia a destruição, a neutralização ou a reconversão de uma parte maior ou menor da herança histórica – que é também um capital -, e mesmo mais difíceis de pensar, porque os esquemas de pensamento e de percepção são, em cada momento, produto das opções anteriormente transformadas em coisas. Qualquer ação que tenha em vista opor o possível ao provável, isto é, ao porvir objetivamente inscrito na ordem estabelecida, tem de contar com o peso da história reificada e incorporada que, como num processo de envelhecimento, tende a reduzir o possível ao provável.
Em outras palavras, de um lado, alguns indivíduos da nova geração de membros
da Cooperativa La Florida dão continuidade, numa escala ampliada, aos esforços da
262
geração anterior em proporcionar os meios para o “desenvolvimento” ou “progresso”
dos cafeicultores. Por outro, esta perpetuação das sagas de seus pais ocorre num
contexto em que estes meios parecem subordinar a busca de melhores condições de vida
e não o contrário. Não é à toa que a participação dos produtores nos mercados de cafés
especiais acaba se mostrando quase que como um fim em si mesmo, na medida em que
a reprodução desse ideal vem sendo feita de maneira praticamente automática entre os
membros da La Florida que trabalham junto a outras cooperativas.
Leonel inovou não apenas ao associar o comércio privado ao campo semântico
da modernidade, como também ao transformar numa missão e numa vocação o que para
seu pai não se dissociava da sua identidade de cafeicultor: a melhoria das condições de
vida dos agricultores. Isso se passava com outros amigos de Leonel enquanto
verdadeiros “profissionais” em prol do “desenvolvimento” e do “progresso” dos
cafeicultores. Contudo, o exercício desse papel implicava numa limitação das
possibilidades de melhoria a vida destes sujeitos, na medida em que a utilização de
determinados meios para se atingir esse objetivo era o que permitia este exercício. A
ênfase nos novos mercados de café se colocava como o mais importante destes meios
adotados pela nova geração de membros da La Florida.
O comércio justo acabou se tornando uma espécie de senso comum entre estes
agentes basicamente porque a cooperativa da qual faziam parte havia pioneiramente
acessado esse sistema comercial. Tal pioneirismo permitia que intermediassem a relação
de outros produtores com esse sistema em voga no chamado movimento cooperativista.
O comércio justo era parte importante da identidade desse movimento e do prestígio
alcançado pelos que neles se destacavam: os gerentes das principais organizações
peruanas de cafeicultores. Os membros destas entidades difundiam esse mercado não
apenas porque era um meio para a melhoria das condições de vida dos agricultores, mas
263
porque se tratava de um ideal que eram capazes de colocar em prática. O que mais
poderia se esperar de um movimento liderado por gerentes?
264
Considerações finais
Um ideal permeia a vida dos cafeicultores peruanos e seus descendentes com os
quais convivi: “progredir” (progresar). Como base no que foi exposto nesta tese, é
possível afirmar que a esse ideal faz sentido através das histórias desses sujeitos e as
quais acessei de modo mais consistente durante minha estadia na selva central.
Certamente que, como igualmente fora colocado, os significados dessas narrativas se
transformam ao longo do tempo e, além disso, entram em contato com visões oriundas
do exterior a respeito do que nelas também é considerado como a “melhoria das
condições de vida” dos produtores. Entre estas visões se destaca a dos organizadores do
comércio justo regulado pela FLO.
Os altos preços do café e a boa produtividade dos solos nas décadas de 70 e 80
permitiram o acesso dos filhos de muitos cafeicultores ao que se pode chamar de classe
média peruana. Este acesso se constitui na imagem mais representativa daquilo que os
agricultores identificam como o “progresso”. Os produtores cujos descendentes
entraram em contato com o ensino superior e encontraram um trabalho relativamente
estável e bem remunerado são considerados pelos demais ao seu redor como
verdadeiros exemplos ou modelos. Mas essa imagem exemplar deve ser entendida como
derivada de uma transformação nos significados das narrativas desses sujeitos a respeito
do que seja a “ascensão social”. Por exemplo, durante os anos 70 e 80 o “investimento”
na educação dos filhos não era entre eles um valor dominante como é nos dias de hoje.
Nessa época, um produtor bem sucedido podia ser julgado apenas com base nos
veículos e na quantidade de terra que possuía.
Os sentidos de “progredir” são capazes de ser compreendidos enquanto
atualizações conjunturais de uma narrativa de ascensão social que permeia a vida dos
265
cafeicultores. O mesmo vale em relação ao que vêem como sendo seu
“desenvolvimento” coletivo. Há não muito tempo atrás, a própria noção de
“competitividade” não fazia parte do vocabulário dos cafeicultores. Atualmente, ela
aparece como sinônimo de desenvolvimento entre os membros da Junta Nacional do
Café (JNC). Ser “competitiva” se coloca entre eles como uma das principais obrigações
de qualquer cooperativa que queira se destacar nos mercados de café. Nesse contexto,
os gerentes que primeiramente puseram em prática esse ideal em suas organizações é
que servem de referencial.
O fato do Peru ser um dos principais países exportadores de café orgânico e
através do comércio justo nos ajuda a entender a grande importância dos novos
mercados do grão entre seus cafeicultores. Como o primeiro capítulo procurou ressaltar,
a participação deles nesses mercados não deve necessariamente ser vista como uma
subordinação a normas estrangeiras por conta apenas de um melhor retorno econômico.
Isso porque ela também envolve um entendimento destas normas enquanto práticas
através das quais podem melhorar de vida. De qualquer maneira, e como aparece no
último capítulo, o acesso aos novos mercados de café se constitui num trunfo usado por
muitos filhos de agricultores para se posicionarem como intermediários das relações
comerciais de diversas organizações de produtores de café.
De um lado, essa intermediação pode significar a continuidade de um processo
de ascensão social vivido pela família de seus agentes. Por outro, como acontece entre a
nova geração de membros da Cooperativa La Florida, esse papel de mediador envolve a
instrumentalização de uma história coletiva em prol não apenas desse processo de
ascensão social como também do “desenvolvimento” de outras organizações de
cafeicultores e seus respectivos associados. Isso porque o acesso aos mercados de cafés
especiais é colocado como uma via privilegiada para a melhoria das condições de vida
266
dos agricultores por um grupo de pessoas que estão preparadas para conduzi-los através
desse caminho. Se antes o “desenvolvimento” das organizações de cafeicultores
envolvia uma participação política mais contundente de seus membros ou dirigentes,
hoje em dia ele é pensado principalmente através da inserção destas organizações nos
novos mercados de café. Mas a presença, ainda recente, de algumas destas entidades
(enquanto exportadoras) no mercado “convencional” já demonstra a emergência de um
novo ideal a ser alcançado entre elas. O comércio justo começa então a se despontar
como um meio para torná-las capazes de competir de igual para igual com as ditas
empresas privadas exportadoras.
Os organizadores e estudiosos do comércio justo tendem a encará-lo como um
mecanismo de “redução da pobreza” e/ou de “apropriação de valor pelos produtores”.
Mas como é possível perceber ao longo desta tese, esse sistema comercial pode adquirir
os mais distintos significados entre os agricultores. Ele é uma doxa ou senso comum do
movimento cooperativista cafeicultor peruano, é um meio capaz de sustentar o prestígio
ou reconhecimento de uma organização de cafeicultores e de seus membros (como é o
caso da Cooperativa La Florida), é uma maneira de reforçar a crença numa narrativa de
ascensão social e um modo dos seus participantes e dos que queiram dele participar
estabelecerem relações.
A visão economicista ou materialista dos organizadores e estudiosos do
comércio justo contêm sua própria teleologia. Em outras palavras, falar da “redução da
pobreza” e “apropriação de valor”, através da participação nesse sistema comercial, é
pressupor um sentido às histórias dos produtores. Conforme dito anteriormente, no caso
dos agricultores aqui retratados, eles não apenas pensam suas ações ao longo do tempo
com base em noções como a de “progresso” e “desenvolvimento”, como os significados
que dão a estas noções podem variar no decorrer de suas vidas. Entre esses
267
cafeicultores, a realidade “econômica” ou “material” não é algo do qual derivam
diretamente suas percepções em torno de um futuro melhor, mas onde estas percepções
devem fazer sentido.
As transformações no comércio de café, o esgotamento generalizado dos solos e
a difusão de políticas ditas “neoliberais” são parte fundamental daquilo que estes
produtores têm de lidar hoje em dia. Certamente que vários deles presenciaram épocas
melhores do que essa, mas igualmente experimentaram períodos trágicos. Contudo,
mesmo nos momentos mais difíceis, muitos não deixaram de acreditar num futuro
melhor através da cafeicultura e do cooperativismo. Já durante a minha estadia, as
dificuldades “econômicas” ou “materiais” dos agricultores estavam sendo relativamente
contornadas com o ingresso nos novos mercados de café, com a mediação crucial de
uma geração de jovens que tiveram acesso ao ensino superior e, principalmente, diante
do término do grave conflito civil que assolou o país entre o final da década de 80 e
começo da década de 90.
Identificar as histórias desses indivíduos como sendo verdadeiras sagas e não
dramas ou tragédias, por exemplo, permite captar com bastante acuidade a forma como
são contadas. Isso porque esse termo evidência o caráter épico ou heróico dessas
narrativas repletas de incidentes. Para além das transformações que vão ocorrendo nos
seus significados ao longo dos tempos, persiste uma visão de que as dificuldades que se
apresentam devem e podem ser contornadas. Isso se expressa no “comprometimento”
dos produtores e seus descendentes não só com suas chacras e seus cafezais, mas
também com suas cooperativas e com as de outros agricultores.
A “mitologia” ou “cosmologia” da modernidade entre essas pessoas acaba
positivando as dificuldades com os quais elas se defrontam, e os modos como
determinados agentes as superaram fazem deles verdadeiros modelos a serem seguidos.
268
Trata-se de uma historicidade calcada numa visão dos “sujeitos exemplares” enquanto
os principais responsáveis pelas mudanças nos significados das narrativas que dão
sentido às ações dos indivíduos ao longo do tempo. Uma realidade “econômica” ou
“material” difícil no presente é capaz de ser relativizada ou historicizada diante de um
passado igualmente complicado. O valor desses “sujeitos exemplares” se encontra na
sua capacidade em terem superado os obstáculos que igualmente estão ou estiveram
presentes entre os que se encontram ao seu redor.
Não é sem razão que são valorizados os produtores “mais antigos” que lograram
“com muito esforço” proporcionar as condições para que seus filhos progredissem no
sistema educacional. O mesmo se dá em relação aos gerentes das cooperativas que
“ressurgiram” na década de 90. Nesses dois casos, estamos diante de verdadeiros
exemplos capazes de dar sentido para os que tentam “progredir” e se “desenvolver”
através da cafeicultura e do cooperativismo. Trata-se de variantes do que Marshall
Sahlins (1987) chamou de “modelo de história heróico”.
Segue-se daí que a historiografia não pode ser – como na boa tradição da ciência social – a simples avaliação quantitativa das opiniões ou das condições das pessoas, baseada em uma amostra estatisticamente aleatória, como se, assim, estivéssemos tomando diretamente o pulso das tendências sociais generativas. Usando uma caracterização de Elman Service, a história heróica procede mais como “Índios de Fenimore Cooper”: enquanto anda em fila indiana ao longo da trilha, cada homem tem o cuidado de pisar nas pegadas de quem está à sua frente, de modo a deixar a impressão de que ali havia apenas um único índio gigantesco. (idem p. 64)
Tais historicidades heróicas que permeiam a vida dos cafeicultores destacados
nesta tese certamente envolvem um número bem mais reduzido de gerações do que as
que perpassam os povos polinésios evocados por Sahlins nesse seu texto. No primeiro
caso, os antepassados ainda estão, em sua maioria, vivos. Os sujeitos “míticos” se
encontram lado a lado dos que os tomam como exemplo ou modelo. As “mito-práxis”
(idem), isto é, as ações baseadas nos mitos, podem ter como referenciais agentes “mais
269
antigos”, não tão antigos assim, se comparados com os que informam as práticas dos
polinésios.
O ponto é que, com relação aos produtores de café aqui retratados, estes são, em
grande medida, migrantes andinos que vieram para a selva central a partir de meados do
século passado e, como também assinalou Sarah Lund Skar (1994) a respeito de outros
cafeicultores dessa mesma região e igualmente originário dos Andes, tendem a não
associar suas histórias às dos lugares da cordilheira de onde vieram.237 Isso significa
dizer, na esteira das considerações de Paul Thompson (1993 p. 18) citadas a seguir, que
eles parecem reproduzir um movimento de ruptura em certa medida similar a outros
grupos que vivenciam o fenômeno da migração:
Suspeito que, simplesmente porque a migração implica tipicamente uma ruptura, há nas famílias de migrantes uma forte tendência para a mitologização – e também, no outro extremo, para os silêncios. As histórias de vida da primeira geração freqüentemente tendem a fazer um épico da própria jornada migratória.
Evidentemente que nem todo migrante estabelece, na prática e no imaginário,
uma separação radical entre seu lugar de origem e o de destino. A maioria dos que saem
237 Skar afirma que os migrantes (illaqkuna) da comunidade andina de Matapuquio que se instalaram definitivamente na selva central, ou em Lima, experimentaram uma mudança radical na “percepção de si” com a emergência de uma perspectiva pessoal de temporalidade. “Their expectations for personal progress and development imply a self-evaluation of a personal history. (…) Within the changing context of work, from one in which continuity is stressed through cyclical celebrations and vivification to one in which more universal standards of development become normative, there is a kind of positioning of self in terms of an external normative scale. This has implications for traditional norms in which evaluation of self is largely contingent on wider social relations in the village and the harmonious interaction with the animate landscape.” (Skar, 1994 p. 227) Um exemplo dado pela autora, a respeito de um migrante andino que vive na selva central, ilustra bem esse seu ponto de vista: “He derisively insisted that Matapuquio was a backward place of illiterates and refused to talk about the village at all. Neither did he show any interest in our obvious knowledge of both Matapuquio kin and territory, themes usually eliciting immediate positive response in most other illaqkuna on first acquaintanceship. Rather he insisted that he had forgotten his village, that he had not been back for 30 years, and that he lived a sober, hard-working life. (…) What Don Luis did enjoy talking about, however, was work on the farm; how it had been when he first bought the land in 1968, how he and his wife had worked together to build the place up, learning how to grow and harvest coffee, the hardships of the fluctuating prices on the world coffee market, his preoccupation with decreasing yields and the possible necessity of abandoning the farm to relocate on new territories in the interior. This was a man with an attitude toward work as an avenue for personal achievement.” (idem p. 216)
270
dos Andes para trabalhar nas regiões cafeicultoras regressa aos seus povoados depois de
terminada a colheita de café e essa migração sazonal ou circular vem acontecendo há
décadas. Mas como bem colocou Marshall Sahlins (2005), depois de ressaltar que “em
algumas partes da Indonésia, da África e de outros lugares, a migração circular acontece
há varias gerações” (idem p. 56), “o que tem maior interesse (para além da longevidade
da forma) é a criação permanente de novas formas na Cultura das culturas do mundo
moderno.” (idem). Não se trata aqui de minimizar as dificuldades enfrentadas pelos
cafeicultores e seus descendentes, mas mostrar que suas superações são “boas para
pensar” as identidades e diferenças. Vejamos, por exemplo, uma reportagem em torno
da vida do presidente do grêmio nacional das organizações de produtores de café.
A César Rivas Peña le ha tocado mucho que caminar. La primera vez que pisó Chanchamayo (Junín) tenía solo 7 años y no conocía más que las comodidades de la ciudad. Venía de Andahuaylas, capital comercial de Apurímac. Su madre, cansada del negocio infructuoso que realizaba en base a la venta de productos agrícolas poco rentables, decidió trasladarse a La Merced, distrito de Chanchamayo para trabajar en la industria del café. Era 1975 y la venta de café era el boom del momento. Las olas migratorias se habían iniciado hace más de veinte años. Los desequilibrios regionales asociados a la existencia de una sobrepoblación relativa en estas mismas zonas daban fe de estos desplazamientos. (…) La familia Rivas Peña adquirió la finca Sao Paulo y se convirtió en socia de la cooperativa La Florida. La vida no era fácil para Rivas. Todos los días caminaba 4 kilómetros para ir a la escuela y regresaba a ayudar en las labores de despulpado y secado de café. “Debíamos aprovechar la venta. Por lo general a mí me encargaban despulpar el café. Me quedaba hasta las 9 ó 10 de la noche en estas labores. Luego hacía mis tareas del colegio. Al comienzo fue difícil, no me acostumbraba pero luego llegué a amar la vida del campo”, recuerda. Sin embargo, a los 12 años tuvo que separarse de la finca. Su madre había considerado mandarlo a una escuela secundaria en Huánuco debido a la mejor calidad en la educación. Su estancia fuera del terruño se alargó más de los cinco años previstos, a causa del terrorismo. “Las huestes de Sendero Luminoso tocaban puerta por puerta para recluir a los jóvenes en la lucha armada”, dice. (...) Ante estas amenazas, cientos de jóvenes decidieron probar nuevos rumbos en la capital y otras ciudades. Rivas hizo lo mismo. Sin embargo, nunca se olvidó del cultivo del café. Luego de culminar sus estudios de Administración en un instituto superior fue elegido por su cooperativa para integrar el nuevo equipo de Comercialización en la sede de Lima. “La apertura de esta oficina fue mi salvación y la de la cooperativa. Escapé a un posible reclutamiento forzoso por parte de Sendero Luminoso y con los años logramos reconstruir la cooperativa”, comenta. (Vicelli, 2007)
Através dessa matéria jornalística (publicada numa revista da organização não-
governamental SOS Faim) é possível perceber a auto-imagem de Cesar enquanto
alguém que logrou seu sucesso através da superação de uma série de dificuldades que
271
permearam sua trajetória. Trata-se de uma forma de entender a história e um modo de
subjetivação que se apóiam na precariedade das condições de vida de uma região
cafeicultora, isto é, onde as comodidades comumente associadas ao “mundo moderno”
não se encontram disseminadas. É a partir da superação de um “remedo de
modernidade” que determinados agentes se destacam e servem de exemplo para que os
demais possam “progredir”.
Os estudiosos e organizadores do comércio justo não destacam o lado “positivo”
dos percalços que marcam a vida dos produtores, ou seja, não relevam o fato de que a
superação destes obstáculos produz identidades. Tanto é que alguns dos participantes da
nova geração de membros da Cooperativa La Florida vêm se dedicando
profissionalmente a trabalhar em prol dessa superação. Esta é uma etapa mais recente
das sagas iniciadas pelos que fundaram e re-fundaram essa cooperativa.
Isso significa que devemos deixar de olhar apenas para o que seriam as carências
dos produtores de café e outros indivíduos que aparentemente se encontram numa
posição de “vítimas do capitalismo”. Enquanto lutam “por uma vida melhor”, eles
igualmente produzem e reproduzem formas de existência dentro das quais muitos se
sentem satisfeitos e realizados. É nesse contexto que Don Hector e Felix Marin, Cesar
Rivas, os Santos e Leonel, por exemplo, servem de modelo, num maior ou menos grau,
para outras pessoas ao seu redor. Estes sujeitos conseguiram se adaptar a determinadas
conjunturas antes do que os demais e, por conta disso, lhes serviram de referencial. Eles
demonstram claramente que aquilo que é muitas vezes visto como sendo um drama ou
uma tragédia também pode ser pensado como uma epopéia.
272
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