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STVDIVM EM TORNO DA HERMENÊUTICA DA FATICIDADE

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ROBERTO S. KAHLMEYER-MERTENS KATYANA M. WEYH

LUANA BORGES GIACOMINI JOSÉ FRANCISCO DE ASSIS DIAS

(Orgs.)

STVDIVM EM TORNO DA HERMENÊUTICA DA FATICIDADE

Vol. I

Primeira Edição E-book

Toledo - PR 2018

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Copyright 2018 by Organizadores

EDITORA: Daniela Valentini

CONSELHO EDITORIAL: Dr. José Aparecido Pereira - PUCPR

Dr. José Beluci Caporalini – UEM Dra. Lorella Congiunti – PUU – Roma

REVISÃO FINAL: Prof. Ademir Menin

Prof. Luciana Bovo Andretto CAPA

Elvio Camilo Crestani Jr. Nilson Rodrigo da Silva DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Editora Vivens Ltda. Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados aos Organizadores.

Editora Vivens: Conhecer é Poder! Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro

Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

Stvdivm em torno da hermenêutica da faticidade,

S938 vol I. /organizadores, Roberto S. Kahlmeyer-

Mertens ... [et al.]. – 1. ed. e-book –

Toledo, PR: Vivens, 2018.

242 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-92670-54-2

1. Filosofia. I. Título.

CDD 22. ed. 100

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Sumário

Prefácio

Em torno da hermenêutica da faticidade ............... 11

Primeira Parte

Primeiro Capítulo O que é hermenêutica da vida fática? Um estudo a partir da obra Ontologia: Hermenêutica da Faticidade Evandro Pegoraro......................................................... 23 Segundo Capítulo Ontologia, fenomenologia e hermenêutica Vinicius Valero Pereira ................................................ 37 Terceiro Capítulo Hermenêutica como atenção fenomenológica Luana Borges Giacomini ............................................. 59 Quarto Capítulo O círculo hermenêutico: A autocaptação metadiscursiva Neusa Rudek Onate ..................................................... 81 Quinto Capítulo Hermenêutica da faticidade como subprojeto à ontologia heideggeriana Maria Lucivane de Oliveira Morais ........................... 103

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Sexto Capítulo A autointerpretação como “giro existencial” da hermenêutica na fenomenologia de Martin Heidegger Katyana Martins Weyh ............................................... 123

Segunda Parte

Primeiro Capítulo A hermenêutica no âmbito do projeto da ontologia fundamental Eduardo Henrique Silveira Kisse ................................ 141 Segundo Capítulo Em sua situação fática o ser-aí “significa” Ezildo Antunes ........................................................... 167 Terceiro Capítulo A tipologia heideggeriana e suas concepções de temporalidade, faticidade e mundidade Leosir Santin Massarollo ........................................... 179 Quarto Capítulo A virada filosófica heideggeriana na Introdução à Fenomenologia da Religião Marcelo Ribeiro da Silva ............................................ 193

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Quinto Capítulo O homem como ser espiritual: Uma análise do fenômeno religioso segundo Max Scheler, Martin Heidegger e Agostinho de Hipona Ademir Menin ............................................................ 205

Sexto Capítulo A psicanálise existencial e sua base hermenêutica: aproximação entre Heidegger e Sartre Marivania Cristina Bocca ........................................... 217

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"[...] a Fenomenologia, naquilo que lhe é mais próprio, não é de todo uma tendência. Ela é a possibilidade do pensar, que, indo-se transformando com os tempos, e só por isso, permanece como tal, para corresponder à exigência daquilo que há que pensar-se. Se assim fosse tomada e conservada, então bem pode desaparecer enquanto título, em favor da “coisa do pensar” [Sache des Denkens], cujo estar-revelado continua a ser um mistério".

(HEIDEGGER, M. Meu caminho para a fenomenologia. In: Sobre a questão do pensamento. Trad. Ernildo Stein.

Petrópolis: Vozes, 2009, p. 93).

“É graças a isso, a este mundo, a esta herança, que sou e que serei isso que sou e hei de ser. Para que o viver, o existir, porém, aconteça de maneira maiúscula e genuína, isto é, transformadora, criadora, é preciso perder este mundo dado, quer dizer, para tal impõe-se, de algum modo, distanciar-se dele para, paradoxalmente, dele se aproximar e, assim, ganhá-lo, porém desde seu enraizamento ou gênese. E começo a distanciar-me deste mundo, que me é dado, quando ele, de algum modo, começa a ficar sob suspeita para mim, isto é, quando eu começo a duvidar dele. Em alguma hora, sem que se saiba nem como e nem por que, este mundo começa a perder para mim o caráter de óbvio, de evidente – de solidez e de indiscutibilidade. [...] O mundo, as coisas, a vida, tudo, enfim, perde peso, densidade, ser. E ele começa a perder tal caráter à medida que se revela como pura positividade, ou seja, um mero dado, como se fosse uma simples e canônica ‘coisa’ e que, por assim aparecer e mostrar-se, começa a revelar-se como não tendo o direito de reger minha vida, de decidir por ela, de mapear e nortear minha existência. Por quê? O que estará acontecendo aí? Parece que eu, explicitamente ou não, começo a reclamar gênese, a reivindicar procedência, como se nessa gênese e nesta procedência residisse um direito maior, um autêntico direito, a saber, um enraizamento e fundação da vida, da existência.”

(FOGEL, G. Que é filosofia? Filosofia como exercício de finitude. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2009, p. 16-17).

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Em torno da hermenêutica da faticidade É plausível afirmar que, durante seu processo de

formação, algo da produção escrita de um acadêmico-universitário resulta em textos para disciplinas cursadas. Com a finalidade de avaliação de aprendizagem, esses trabalhos são verdadeiros “balões de ensaio”, pois é ali que o discente testa suas compreensões, exercita sua redação e se concede errar com o ímpeto do acerto. Justamente por esse caráter doméstico, isto é, atido ao ambiente do curso e com vistas a finalidades também intrínsecas a este, tal produção acaba sendo considerada menor, se é que digna de alguma importância para além dos já mencionados fins.

Acontece, porém, que, entre esses trabalhos inteiramente despretensiosos, alguns podem se destacar por suas qualidades técnicas ou mostras de inteligência e, se por ventura, reunidos, serviriam ao propósito de documentar o desenvolvimento de um grupo que se forma e se faz promessa em torno de um saber. Há com isso a possibilitar de estender o diálogo para além das fronteiras da sala de aula e da universidade, com o intuito de compartilhar os temas de interesse comum que por vezes perpassam as experiências acadêmicas e acompanham as tramas da existência. Nessa circunstância, julgamos poder conferir valor a estes, o mesmo apreço que, por si só,

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não apenas explicaria quanto justificaria, aqui, sua veiculação pública.

Ignorando deliberadamente os juízos que acusam tal produção de insipiência e que também se apressam a apontar a endogenia onde reconhecemos traços de identidade, publicam-se sob o título de Studium – Em torno à hermenêutica da faticidade textos seletos de acadêmicos afetos ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNIOESTE (PPGFIL) que, tendo cursado a disciplina “Tópicos Especiais de Metafísica II”, durante segundo semestre letivo do ano de 2016, sob a condução do Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens, ocuparam-se do tema da hermenêutica da vida fática e de suas variações na obra Ontologia: Hermenêutica da Faticidade (1923), do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976).

Os referidos trabalhos aparecem distribuídos entre as duas partes integrantes do presente volume. Em seu primeiro segmento, temos os capítulos mais diretamente relacionados ao projeto heideggeriano de uma hermenêutica da faticidade.

Abrindo esta primeira parte, Evandro Pegoraro, aluno especial do doutorado em filosofia, coloca a questão-título: “O que é hermenêutica da faticidade? Um estudo a partir da obra Ontologia: Hermenêutica da Faticidade”. Com este, o autor oferece elementos para compreendermos o referido projeto heideggeriano, fornecendo ao leitor um painel das questões ali pautadas.

“Ontologia, fenomenologia e hermenêutica”, do também aluno especial do doutorado Vinicius Valero Pereira, oferece uma apresentação conceitual dos três

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conceitos presentes em seu título, conceitos estes caros à obra do filósofo alemão naquela preleção de juventude. O dito capítulo, garante ao leitor subsídios não apenas para uma clara compreensão do significado de cada um desses conceitos, quanto esboça sua íntima articulação no interior daquela obra.

O Terceiro Capítulo é assinado pela Mestre Luana Borges Giacomini e se intitula “Hermenêutica como atenção fenomenológica”, com este se busca evidenciar como a hermenêutica de Heidegger é menos hermenêutica no sentido clássico e mais fenomenológica, quando em jogo está uma interpretação atenta da faticidade.

A também Mestre Neusa Rudek Onate, no Quarto Capítulo trata em “O círculo hermenêutico: A autocaptação metadiscursiva” de um conceito crucial para se compreender a hermenêutica de modo geral (círculo hermenêutico), no entanto, o contributo desse escrito não é apenas este, ele também nos deixa entrever alguns dos contextos da obra de juventude de Heidegger.

A Mestre Maria Lucivane de Oliveira Morais é autora de “Hermenêutica da faticidade como subprojeto à ontologia heideggeriana”, neste fica patente como as ideias consignadas naquela preleção de 1923 permanecem vigentes, na forma de um subprojeto, em Ser e Tempo, obra de Heidegger datada de 1927.

O painel que os capítulos mencionados até aqui compõem (hermenêutica-fenomenologia-ontologia fundamental) não estaria completo sem que se acrescesse o elemento existencial da filosofia de

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Heidegger. Na presente coletânea, isto nos é dado pela mestranda Katyana Martins Weyh, em seu escrito: “A autointerpretação como ‘giro existencial’ da hermenêutica na fenomenologia de Martin Heidegger”. Tal tópico nos permite compreender como a hermenêutica da vida fática nos aproxima da filosofia da existência e, muito mais do que isso, da consideração do caráter existencial do ser-aí.

Na segunda parte de nosso livro, estão os capítulos as variações à temática da hermenêutica da existência fática de Heidegger, ou ainda, aquilo cujo título nomeou, mais especificamente, de “entorno” a este tema crucial à filosofia do assim chamado “primeiro Heidegger”.

É neste contexto que temos o capítulo do autor convidado Eduardo Henrique Silveira Kisse. Em seu texto “A hermenêutica no âmbito do projeto da ontologia fundamental”, o Mestre pela Ruhr-Universität Bochum (Alemanha) nos oferece um pouco sobre a ideia de hermenêutica e sobre como ela teria papel influente na filosofia de Heidegger, tendo sido herdada de Schleiermacher e de Dilthey.

Ezildo Antunes, Mestre em filosofia pela UNIOESTE, no Segundo Capítulo dessa segunda parte, nos traz uma tematização acerca do quanto a faticidade estaria relacionada à noção de significância na obra Ser e Tempo. É isso, em linhas gerais, que se abriga sob o título: “Em sua situação fática o ser-aí ‘significa’”.

Outros conceitos capitais de Ser e Tempo se fazem presentes aqui por meio do capítulo do doutorando Leozir Santin Massarolo, “A tipologia heideggeriana e suas concepções de temporalidade, faticidade e

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mundidade”. Através deste se faz possível observar, uma vez mais, a relação entre o projeto da Ontologia: Hermenêutica da Faticidade (1923) e de Ser e Tempo (1927).

“A virada filosófica heideggeriana na Introdução à Fenomenologia da Religião”, do mestrando Marcelo Ribeiro da Silva, é o Quarto Capítulo desta parte segunda. Com ele podemos observar o quanto a ideia de vida fática é intuição tomada das leituras fenomenológicas que Heidegger faz de pensadores cristãos como o apóstolo Paulo. Embora o capítulo em apreço se sirva mais das preleções enfeixadas na obra Fenomenologia da vida religiosa (1921), é possível ao leitor estimar seus influxos sobre a hermenêutica da faticidade heideggeriana.

“O homem como ser espiritual: Uma análise do fenômeno religioso segundo Max Scheler, Martin Heidegger e Agostinho de Hipona”, de Ademir Menin, que também aposta na fenomenologia da vida religiosa para trazer a lume a experiência fática. No entanto, em seu capítulo, o professor e doutorando da UNIOESTE, procura fazer isso em vista de Max Scheler, mapeando uma interlocução possível entre este e Heidegger (além de Agostinho).

Encerrando a segunda seção do livro – bem como a coletânea como um todo – segue o texto da doutoranda Marivania Cristina Bocca. Sob o título de “A psicanálise existencial e sua base hermenêutica: aproximação entre Heidegger e Sartre” vemos novamente uma interlocução entre Heidegger e um autor de importância em sua época. Neste Sexto Capítulo, a autora, que também é psicóloga, investiga

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sobre como a hermenêutica fenomenológica de Heidegger teria fornecido subsídios para que o filósofo francês Jean-Paul Sartre elaborasse sua psicanálise existencial.

Primeira reunião de trabalhos que informam saldos ainda singelos, a coletânea que ora se apresenta traz uma pequena amostragem de um conjunto mais amplo de estudos de fenomenologia – especialmente os relativos à filosofia de Heidegger – desenvolvidos na Universidade do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Acrescente-se que, no momento da edição deste livro, as referidas pesquisas dão mostras de uma notável saúde, prova disso é que, em torno do Grupo de Pesquisa “Fenomenologia, hermenêutica e metafísica”, gravitam alunos do curso de filosofia em nível de graduação, mestrado e doutorado, membros de uma comunidade acadêmica que não apenas representa à cidade de Toledo-PR, onde o campus universitário está situado, quanto às cidades vizinhas. Assim, o vivo interesse pela filosofia fenomenológica, especialmente a de Heidegger, observado com maior ênfase nos últimos cinco anos, motiva que alunos de pelo menos oito municípios acorram ao nosso centro de estudos fazendo com que já se possa identificar nele um núcleo bem definido de pesquisadores que se ocupam desta matéria. Nucleação que, muito mais do que um projeto temático no interior de um PPG, evidencia o cultivo de um matiz fenomenológico que, ao lado de outros, perfilam não apenas o curso, mas também a visão-de-mundo de uma comunidade que se consolida e se intensifica na Região Oeste do estado do Paraná. Que se diga, assim, que esta comunidade, antes de qualquer

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coisa, se orienta fielmente pela tarefa de incrementar uma cultura fenomenológica na qual nos moveríamos e nos ateríamos ao elemento do pensar.

Os organizadores

Toledo, PR, em 27 de maio de 2018.

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Primeira Parte

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Primeiro Capítulo

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Primeiro Capítulo

O que é hermenêutica da vida fática? Um estudo a partir da obra Ontologia:

Hermenêutica da Faticidade

Evandro Pegoraro

O capítulo trata do tema da hermenêutica, mais especificamente do seu significado conforme o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), na sua preleção Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. Lida no semestre de verão de 1923, foi seu último curso em Friburgo – em seguida em Marburgo e, na ocasião, Hans-Georg Gadamer a assistiu como aluno, contando 23 anos. O texto da preleção, em si, possui cerca de 20 páginas e desde seu pronunciamento ganhou anotações do próprio autor e de seus alunos. Ela foi pronunciada posteriormente à obra Interpretações fenomenológicas de Aristóteles e publicada postumamente; nela, o filósofo antecipa questões que viriam a ser aprofundadas na sua principal obra, Ser e Tempo, de 1927, contudo gestada desde 1920. O que ele entende aí ser hermenêutica?

Em primeiro lugar, é preciso que se diga que nosso autor assume distância da concepção de filosofia escolar, ou seja, da filosofia que possa ser ensinada, quer dizer, ele toma distância de um tipo de filosofia baseada na crença de poder aprender e ensinar algo. Ao contrário, sua tarefa consiste em propor questões, as quais “surgem na discussão e confronto com as ‘coisas’” (HEIDEGGER, 2013, p. 11). E mais: “É assim que deverão

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ser ‘colocadas’ aqui algumas questões, e muito mais na medida em que atualmente o questionamento caiu em desuso por causa do enorme negócio em relação aos ‘problemas’” (HEIDEGGER, 2013, p. 11). Mas o que ele quer dizer quando busca “questões” e não “problemas”?

Conforme pensa o filósofo, quando se busca um problema, a investigação põe-se no âmbito da busca de algo que já se tem a resposta. Na dedução parte-se de uma tese conforme a qual todas as outras se depreendem, não havendo, portanto, acréscimo de conhecimento (saber); o que há é um desdobramento de uma tese assumida como válida. É como se o saber estivesse consolidado, dado, e o que se propõe a investigar seria algo que já se saberia de antemão. O problema possui uma resposta. Ora, que esforço inquiridor há aí? Nenhum. Heidegger busca pôr em movimento o filosofar através de “questões”, raiz da palavra “questionamento”.

Ao contrário, quando se trata de questões trata-se de estar aberto à ocorrência (acontecimento) do contato com o investigado, que não é visto como algo dado. Na investigação das questões as coisas não são dadas de modo imediato; contudo, elas se escondem (encobrem) na sua essência (no seu ser). Para Heidegger não são dados nem o que é investigado (fenômeno), nem o modo como é investigado (método). Enfim, o problema pode ser ensinado, as questões não. Nesse sentido, Heidegger busca pelo ser da hermenêutica. O que é a hermenêutica? (Aliás, a investigação pelo “ser” é tema de sua obra Ser e Tempo. Ali o ser é tomado como uma questão e não como um problema).

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Em segundo lugar, na sua tarefa há claramente o peso da tradição hermenêutica moderna (Friedrich Schleiermacher e Wilhelm Dilthey), porém, vai além dela, dando-lhe um novo sentido. Ele não pretende ser um continuador da definição de hermenêutica metodológica moderna, pois, para ele, interpretar não é questão de método, caminho através do qual, não é sua intenção desenvolver uma teoria da interpretação, e, também, não compactua com a ideia de que a interpretação trate exclusivamente de textos (KAHLMEYER-MERTENS, 2017).

Heidegger não segue a linha de desenvolvimento da hermenêutica moderna a fim de endossá-la, porém, nem por isso deixa de ser citado como um expoente na história da hermenêutica. Ele é o primeiro na história da hermenêutica a dar-lhe conotação filosófica; para ele, interpretar não condiz com método – ainda que seja um procedimento que busque algo –, tão pouco se trata de teoria que possa ser aplicada ao modo de um conjunto de regras e, muito menos trata de interpretar textos legados pela tradição. Há com ele um tom hermenêutico que destoa do tom da hermenêutica clássica. Com ele, a hermenêutica torna-se hermenêutica filosófica. Mas que tipo de procedimento seria esse? Que é “hermenêutica da faticidade”?

Em primeiro lugar, talvez seja oportuno começar pela definição dos conceitos do título do curso de Heidegger aqui tomado como objeto de estudo. O título: Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. O que

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quer dizer aí “Ontologia”? Quer dizer “pensar qualquer questionamento e investigação dirigidos para o ser enquanto tal” (HEIDEGGER, 2013, p. 9).

O que quer dizer aí “Faticidade”? Segundo o autor: “Faticidade é a designação para o caráter ontológico de ‘nosso’ ser-aí ‘próprio’. Mais especificamente, a expressão significa: esse ser-aí em cada ocasião [...], na medida em que é ‘aí’ em seu caráter ontológico no tocante ao seu ser” (HEIDEGGER, 2013, p. 13).

Na obra Fenomenologia da Vida Religiosa, o autor escreve de uma “experiência fática da vida”. Ali, pois, ele acrescenta à “vida fática” o caráter de “experiência”. Como ele define ali “experiência”?

‘Experiência’ designa: 1) ocupação que experimenta; 2) o que é experimentado através dela. Nós, porém, determinamos com este propósito a palavra em seu duplo significado, porque ela exprime justamente o essencial da experiência fática da vida, uma vez que o experimentar mesmo e o experimentado não devem ser colocados como coisas uma ao lado da outra (HEIDEGGER, 2010, p. 14).

Conforme a citação, o experimentado e o

experimentar (procedimento) possuem sua essência numa imbricação ontológica entre ambos. Dizendo de outro modo, o ser do experimentar é o ser do experimentado. Fazer “experiência fática da vida” é degustar a vida na sua faticidade, no seu desenrolar, pois na vida fática nada está previamente definido. A vida fática não pode ser visualizada a partir de esquemas. A experiência da vida fática é algo de

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singular, pessoal. A vida fática não é um objeto. Ela é. Está aí para ser compreendida, não para ser explicada.

O que quer dizer aí “Hermenêutica”? “Seguindo melhor o seu significado original, o termo (hermenêutica) indica: determinada unidade na realização do έρμενεύειν (do comunicar), ou seja, da interpretação da faticidade que conduz ao encontro, visão, maneira e conceito de faticidade” (HEIDEGGER, 2013, p. 21). Para Heidegger, não há uma “hermenêutica”, há uma “hermenêutica da faticidade”. O que isso quer dizer? Que ela estaria a serviço da faticidade, seu objeto? A partir da definição de “vida fática” feita acima não seria promissor perguntar: a experiência da vida fática não seria ela mesma hermenêutica? O que interessa aqui, a princípio, é a expressão “hermenêutica da faticidade”. O que ela quer dizer?

Jean Grondin (2012), através do uso do dativo “da” da designação “hermenêutica da faticidade”, entende que há aí dois sentidos aventados. O primeiro expressa a ideia de “fazer uma interpretação da faticidade”. Nesse sentido, ela mesma torna-se “objeto” da hermenêutica. O segundo revela a ideia de que “a vida fática é por si interpretativa” (experiência da vida fática?). Nesse sentido, a vida fática dá o tom da interpretação. Heidegger (2013, p. 21-22) corrobora com esse segundo sentido quando escreve: “A interpretação é algo cujo ser é o ser da própria vida fática”. A experiência da vida fática possui seu ser no “o que” (conteúdo), deixando o como implícito.

Em relação ao primeiro sentido apontado por Grondin pode-se fazer ainda a seguinte reflexão. A

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investigação hermenêutica trata do ser-aí em cada caso, situacional. Isso quer dizer que ela não aceita pressupostos (categorias) para seu agir. Não há um caminho feito no passado que possa servir de luz para o ser-aí fático. (“Nenhum ser-aí passado possui alguma primazia sobre os demais no que diz respeito ao ser” (HEIDEGGER, 2013, p. 44)). O que há é a vida fática, o agora, o ocasional. E nesse sentido, a hermenêutica busca elucidar o ser-aí tal e qual ele se mostra. Ela projeta luz sobre o ser-aí, sobre sua faticidade. “A hermenêutica tem como tarefa tornar acessível o ser-aí próprio em cada ocasião em seu caráter ontológico do ser-aí mesmo, de comunicá-lo, tem como tarefa aclarar essa alienação de si mesmo de que o ser-aí é atingido” (HEIDEGGER, 2013, p. 21). A hermenêutica visa tirar o ser-aí do seu esquecimento buscando despertá-lo para a sua vida fática. “Na hermenêutica configura-se ao ser-aí como uma possibilidade de vir a compreender-se e de ser essa compreensão” (HEIDEGGER, 2013, p. 21).

Aí, a vida fática não é um objeto percebido por uma consciência (sujeito), tal como percebo a caneta que está sobre a minha mesa. A hermenêutica da faticidade – no sentido de que a faticidade torna-se “objeto” – é feita, posta em ação, pelo ser-aí, sendo ele mesmo fatual, fático. Aí a vida fática do ser-aí é notada numa totalidade compreensiva/significativa. Por exemplo: não apreendo os objetos que estão sobre a minha mesa isoladamente, porém os reconheço numa totalidade de sentido. Enfim, a vida fática é um dado inquestionável (não no sentido de que não questiona), está aí, se apresenta, o ser-aí é tido como um fato, está

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aí, e, nessa imbricação de estarem aí se apresentam compreensivamente/interpretativamente.

O ser-aí não é algo dado. Ele está ali, é visto, porém não se apresenta como se fosse uma coisa. É preciso que se detenha nele para que se possa desvelar seu ser. O importante é o ser e não a aparência. Aquilo que aparece não é o que (conteúdo) ele é, ainda que seja um dado preliminar, um ensaio. Eis a tarefa da filosofia (da hermenêutica?): perguntar, investigar, questionar por aquilo que está oculto. A fala enquanto um “como” do ser-aí

Um exemplo de como o ser-aí foi tratado de forma objetual é a definição de homem como ser racional. O que essa definição aceita quer dizer? Ela expressa o essencial do homem? Não. Ser “racional” é uma definição autoevidente para o ser humano? Não, não é. Trata-se apenas de uma convenção amplamente aceita, porém que obscurece a investigação de o olharmos como um ser-aí (no tempo). Ou seja, a aceitação dogmática da definição de ser-aí (homem) como ser dotado de razão ofusca o olhar para ele mesmo, como fenômeno. Aceitar a definição de homem como um “ser racional” é defini-lo por um dos aspectos que o compõe, porém não o seu todo.

Conforme Heidegger, a palavra grega λόγος perde seu sentido originário ao ser traduzida por “razão”. E mais: “Na filosofia científica clássica grega (Aristóteles), λόγος nunca quer dizer ‘razão’, mas fala, conversa” (HEIDEGGER, 2013, p. 28-29). Conforme ele, consolidou-se na tradição a tradução do grego ζωον

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λόγον έχον como “ser vivo dotado de razão”, quando na verdade quer dizer “que o homem é o ente que tem seu mundo ao modo do que é falado” (HEIDEGGER, 2013, p. 29).

Olhando para ele (o ser-aí) tal como ele se apresenta percebe-se seu falatório. Seu falatório? Sim. Aqui não se trata de “falatório” no sentido pejorativo de alguém que fala demais. Não. Trata-se do falar como um “como” da abertura do ser-aí. Através do falar originário o ser-aí expressa uma compreensão mediana de seu próprio ser. Esse é um ponto de partida, um arranque, da compreensão do ser-aí. Essa compreensão prévia – falada – do ser-aí está ali, à disposição. Ela não vem de fora. Ela simplesmente é. “De maneira característica, o falar trata sobre tudo, pelo que é possível supor que também trata daquilo que não está tão distante, isto é, sobre si mesmo” (HEIDEGGER, 2013, p. 55).

É com essa mediação que o ser-aí vem a público. Ela torna-se o meio de manifestação do seu caráter ocasional. “O caráter público torna-se efetivo e se realiza em determinados modos de falar sobre, ao ter determinadas opiniões a respeito disso ou daquilo, ou mesmo divulgando e entretendo-se com ou sobre isso ou aquilo” (HEIDEGGER, 2013, p. 55). Mas não é só isso. A fala comunica também algo de próprio do ser-aí.

O ser-aí possui um modo originário de publicar-se, vir a público, a saber, a fala e, através dela não comunica somente acerca das coisas que estão ao seu redor, mas também, de si mesmo. Temos aí uma compreensão inicial, fundamental, de ser. Tem-se aí uma hermenêutica que perscruta o ser-aí enquanto ser,

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no seu caráter ontológico. A hermenêutica busca desvelar o caráter ontológico dor ser-aí fático. “Portanto, esta falação é o como em que uma determinada interpretação de si mesmo está à disposição do próprio ser-aí” (HEIDEGGER, 2013, p. 39). Os caracteres encontrados nele são denominados de existenciais.

Através da consciência histórica e da filosofia o ser-aí demonstra uma interpretação de si mesmo. Através delas ele vem a público, torna-se objetivo. Aqui, o termo “objetivo” possui sentido de “aquilo que se põe para fora” (ex-põe), em oposição ao “subjetivo”, “aquilo que está dentro” (interior). Apesar de Heidegger citar a história e a filosofia, é, contudo, através da filosofia que o ser-aí pode encontrar seu solo objetivo.

Em resumo, é possível dizer: a filosofia oferece ao ser-aí a proteção objetiva, o panorama da segurança que a concordância procura, o domínio de imediatez da proximidade com a vida e, junto com isso, a superação de um questionar detalhado e de pouco talento, vagaroso e escorregadio, que desiste das grandes respostas (HEIDEGGER, 2013, p. 70).

Desse modo, a hermenêutica como elucidação

(jogar luz sobre) do caráter ontológico do ser-aí que, ao mesmo tempo, investiga a si mesmo, possui a filosofia (e a história) como via de acesso para aquilo que perscruta.

Isso quer dizer, portanto, que a consciência histórica, a ‘história’ e a filosofia não são meros bens primários

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de cultura que repousam nos livros e com os quais eventualmente alguém pode distrair-se, [...] mas são modos de ser-aí, vias perfeitamente acondicionadas e praticáveis do próprio ser-aí nas quais ele mesmo se encontra e à sua maneira (regressiva) encontra-se a si mesmo, quer dizer, toma posse de si, o que, contudo, quer dizer que se assegura a si mesmo (HEIDEGGER, 2013, p. 70).

Nesse sentido, trata-se de olhar para a tradição

(filosófica em especial) e visualizar ali o tratamento dado ao ser-aí ocasional. Como o ser-aí foi abordado na história da filosofia? “A tradição deve ser desconstruída” (HEIDEGGER, 2013, p. 83). O movimento hermenêutico de interpretação da faticidade do ser-aí, enquanto um movimento da própria vida fática, realiza uma busca de si e, nessa busca, possui também a tradição como suporte.

Nessa tarefa hermenêutica de elucidação de si do ser-aí (da vida fática) surge a necessidade de se destruir as interpretações que o obscureceram na história e na filosofia. É preciso voltar à tradição e perceber onde o ser-aí ficou ofuscado, foi esquecido. Na tarefa de jogar luz sobre o ser-aí, a hermenêutica assume-se como desconstrução. Nesse sentido, o ser-aí precisa reconhecer ser histórico. Esse movimento ao passado servirá para descobrir-se a si mesmo, interpretativamente. Interpretar é um despertar para a faticidade e, ao mesmo tempo, um despertar-se, olhando retroativamente para a tradição.

Ou seja, o movimento hermenêutico não é algo que surge no século XIX ou XX. Ele é um procedimento que está presente onde há um deter-se na vida fática.

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Onde a própria vida (fática) busca compreender-se há um falar (comunicar) hermenêutico. O hermenêutico vai no fundo, não fica na superfície e nem busca princípios abstratos. A vida fática é hermenêutica por si mesma. Esse é o chão. Esse é o dado. Esse é o fundo, enquanto fundamento. Considerações finais

No curso Ontologia: Hermenêutica da Faticidade,

portanto, Martin Heidegger caracteriza a “hermenêutica” como um modo de ser do ser-aí (vida fática). O filósofo não endossou as hermenêuticas modernas de Wilhelm Dilthey e de Friedrich Schleiermacher, porém deu-lhes um novo significado, pondo-as em nível filosófico. Com ele, ela passou de uma técnica, uma teoria e de ter como objetos textos para um procedimento investigativo sobre a vida fática, sendo ela mesma acontecimento da própria vida fática. A hermenêutica é, ela mesma, o próprio da vida fática.

Conforme o que diz o comentador da filosofia hermenêutica Jean Grondin, o título “Hermenêutica da Faticidade” carrega duas possibilidades de sentido. A primeira revela a “faticidade” como “objeto” da hermenêutica. Nesse caso, a faticidade, ser-aí, é interpretada. A segunda possibilidade expressa o sentido de a hermenêutica ser a própria faticidade em seu ser. Ou seja, nesse caso a faticidade (ser-aí) oferece por si um como interpretativo. Como vemos, Heidegger situa a hermenêutica num nível existencial, fatual.

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Ela se assume naquilo que é, um movimento da própria faticidade interpretando e interpretando-se ao mesmo tempo. Nesse atuar, olhando para seu caráter situacional (histórico), não se desvincula da tradição, contudo a usa, também para jogar luz sobre si. A tradição não deve ser usada como se fosse um objeto. O ser-aí pertence à tradição. Aliás, melhor dizendo, ela é devedora dele, pois ele a construiu (e a constrói), ainda que, às vezes, de modo torto.

Como vimos, o ser-aí, homem, não pode ser aceito como racional, pois a racionalidade não lhe é algo autoevidente. O termo logos em grego, em Aristóteles, nunca quer dizer razão, porém, fala. Ao falar de si mesmo ele opera o arranque da interpretação de si ainda que de modo mediano, leve. A fala originária se mostra como um interpretar-se e um interpretar do que está à sua volta. É através do logos (fala) que ele torna-se público. Foi assim que ele deixou marcas na tradição histórica e filosófica, ainda que encobertas. Nesse sentido, é preciso que se volte para essas tradições (em especial a filosófica) para observar onde o ser-aí foi obscurecido. Isso contribuirá para que o ser-aí situacional, histórico, também se conheça. O contato com a tradição proporcionará um contato consigo mesmo.

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Referências HEIDEGGER, M. Fenomenologia da Vida Religiosa. Trad. de Enio Paulo Giachini, Jairo Ferrandin, Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. ___________. Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. 2 ed. Trad. de Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. ___________. Ontologie. Hermeneutik der Faktizität. In: GA 63, (Frühe Freiburger Vorlesung Sommersemester 1923), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1988.

___________. Sein und Zeit. In: GA 2, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt, V. Klostermann Verlag, 1977. ___________. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2012. GRONDIN, J. Hermenêutica. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. KAHLMEYER-MERTENS. R. S. 10 lições sobre Gadamer. Petrópolis: Vozes, 2017.

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Ontologia, fenomenologia e hermenêutica

Vinicius Valero Pereira

O presente capítulo procura fixar o conceito de fenomenologia na obra Ontologia: Hermenêutica da Faticidade, de Martin Heidegger, comentado as passagens relevantes do texto. A fenomenologia será abordada sob dois aspectos: primeiro em relação à ontologia, de onde se determina a conexão íntima entre elas, em seguida, em relação à própria hermenêutica. A análise do sentido originário de “fenômeno”, enquanto modo privilegiado de ser, abre caminho para a tematização do encobrir-se e o velar-se enquanto modos de ser, além de colocar a questão da desconstrução da tradição filosófica como tarefa fundamental da própria filosofia. Verificar-se-á como Heidegger destaca os limites da ontologia e da fenomenologia, enfatizando a radicalidade da Hermenêutica, a única a verdadeiramente confrontar, ou seja, questionar diretamente o ente privilegiado e guia de toda a problemática ontológica: o ser-aí. Introdução

“Ontologia” é o título das últimas preleções de Heidegger na Universidade de Friburgo. Os manuscritos do filósofo, com as anotações, comentários e correções posteriores que ele fez no material, somaram-se às anotações e transcrições dos

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alunos que ouviram as preleções, para compor o material textual da edição das 13 preleções lecionadas pelo filósofo no verão de 1923.

Apesar de ser o título oficial da disciplina, no quadro negro diante dos alunos, Heidegger escrevia Ontologia: Hermenêutica da Faticidade, explicando já na primeira sessão que a parte “hermenêutica da faticidade”, no fundo, era a que melhor designava o que, e o como das aulas, ou seja, seu tema e modo de abordá-lo.

Em primeiro lugar, nos ocuparemos de compreender a restrição ao termo “ontologia” como categoria adequada à investigação que Heidegger pretende iniciar. Serão discutidas as relações íntimas entre ontologia e fenomenologia. O caráter insuficientemente radical da ontologia tradicional e moderna abre o caminho para a radicalidade própria da hermenêutica da faticidade. Em seguida, será discutido como Heidegger estabeleceu o sentido originário do termo “fenômeno”, a fim de determinar sua tendência fundamental e traçar suas transformações históricas. Será dada atenção ao que essas transformações significam para a relação pessoal e filosófica entre Heidegger e seu mestre, Edmund Husserl. Notar-se-á que conceitos como os de desconstrução e encobrimento ligam-se à fenomenologia e auxiliam-na a revelar sua possibilidade enquanto como da pesquisa.

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Por que o título ontologia é inadequado?

Para começar a responder esta pergunta, deve-se considerar em que sentido geral o termo “ontologia” pode ser empregado. Como “doutrina do ser”, a ontologia significa “o questionar e o determinar dirigidos para o ser enquanto tal” (HEIDEGGER, 2013, p.8), esta é uma formulação abrangente e indeterminada porque nada diz a respeito de que ser ele quer questionar e de que maneira esse questionamento será realizado. Segundo o filósofo alemão, é apenas neste sentido geral e vazio, sem deixar de levar em conta as restrições a respeito de sua indeterminação, que a ontologia pode ser empregada à temática das preleções em questão.

É possível distinguir também, outro sentido antigo de “ontologia”, que nomeia o lastro de questões tradicionais dirigidas ao ser, oriundas da reverente e “clássica filosofia grega”. Em pelo menos um aspecto importante, essa ontologia antiga se identifica com a ontologia moderna: ambas se orientam para um setor determinado do ser, mesmo quando desejam expressamente alcançar categorias gerais, fazem-no de tal forma a não perder de vista uma região ou setor específico do ser. É este caráter regional, por assim dizer, que Heidegger identificou na ontologia antiga e moderna, que a tornou hodiernamente uma teoria formal da objetualidade:

Desde o princípio seu tema é o ser objetual, a objetualidade de objetualidades determinadas, e objetualidade para um pensar teórico indiferente, ou o ser objetual material para determinadas ciências que

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se ocupam com ele, da natureza ou da cultura (HEIDEGGER, 2013, p.9).

Apesar desse elemento comum, há outro

diferenciador: a ontologia moderna distingue-se da ontologia antiga por sua relação íntima com a fenomenologia. Essa relação é como um sistema de partidas dobradas: a teoria formal da objetualidade oferece a base ontológica para o problema fenomenológico da constituição; por sua vez, a fenomenologia oferece a base metodológica e o guia condutor para a investigação ontológica.

De um lado, a ontologia enquanto teoria formal da objetualidade se dividiu em ontologias regionais, que abarcam objetualidades segundo um corte temático e categorial: ontologia da natureza, ontologia da cultura, ontologia da consciência, ontologias materiais etc. Essas diferentes regiões do ser fornecem a base ontológica, segundo a qual a investigação fenomenológica pode se guiar no problema da constituição. Para determinar as estruturas da “consciência de...”, é preciso ter em vista o “de quê” correlativo da constituição de tal consciência. É neste passo da argumentação que é possível verificar em que sentido a ontologia e a fenomenologia se ligam intimamente.

Como contrapartida da fenomenologia, a investigação da intencionalidade (“consciência de...”) fornece uma dupla mirada: da consciência – as estruturas intencionais; e do “de-quê” da consciência, ou seja, do caráter objetual de um ente enquanto tal. O círculo se fecha porque é justamente sobre o “caráter objetual” dos entes que trata a teoria formal da

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objetualidade, ou seja, trata de determinar os elementos objetuais da região de ser correspondente. Estabelece-se assim, que à análise fenomenológica da consciência intencional corresponde uma ontologia considerada como teoria formal da objetualidade, segundo a visada de diferentes regiões do ser.

Essa ontologia, no entanto, é duplamente insuficiente. O ponto central é que ela não coloca a questão sobre qual é o ente de onde se deve extrair o sentido decisivo da problemática ontológica. A ontologia, enquanto teoria formal da objetualidade, ao inquirir o ser não o faz senão através de suas diferentes regiões, sempre em vista de uma objetualidade determinada; assim, toma-se a parte pelo todo e o próprio mundo é considerado do ponto de vista das diferentes regiões do ser. A ontologia moderna não é radical o suficiente. A teoria formal da objetualidade não confronta nem discute o ser enquanto tal, ou seja, o ser não objetual.

Por isso, tal ontologia não tem acesso ao ser-aí, ponto de partida originário e “decisivo para a problemática filosófica” (HEIDEGGER, 2013, p.9). Como não é questionado, o ser-aí é “bloqueado” e a ontologia moderna não pode chegar à falar do próprio ser, apesar de ser um “discurso sobre o ser”.

Se retomarmos a pergunta: por que ontologia é um termo inadequado? Poderemos responder resumidamente que a ontologia, conforme a sua significação moderna, como teoria formal da objetualidade, não questiona o ser que é decisivo para a própria temática das preleções heideggerianas. A ontologia, ou ainda, essa ontologia, não questiona o

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ser-aí. Isso quem o faz é a hermenêutica da faticidade, o título que, no final, corresponde adequadamente ao que Heidegger quer falar a respeito.1

A interpretação histórica da fenomenologia

Até aqui, quando Heidegger fala sobre a fenomenologia, ele o faz de modo “enfático”, mas sem determinar precisamente o que se quer dizer com o termo. O filósofo considerou a ligação íntima da fenomenologia com a ontologia moderna, realçando como, na verdade, é apenas através da fenomenologia que a problemática ontológica pode ser estabelecida em um caminho seguro. No entanto, a avaliação dessa relação não está livre de ambiguidades.

Como isso pode ser elaborado? Para esclarecer o que quer dizer “fenômeno” e “fenomenológico”, Heidegger partirá do sentido original do termo “fenômeno”, procurando determinar sua tendência original, para então descrever os desvios e transformações históricos dessa tendência.

A palavra fenômeno vem do grego e significa originalmente “o que se mostra”, ou seja, aquilo que se mostra como tal, em seu ser, no próprio mostrar-se. Nada é indicado como subsistente atrás do fenômeno, tampouco ele é uma representação ou uma construção

1 “Deve desfazer-se do preconceito de que seja a ontologia de objetualidades da natureza ou a ontologia que corre paralela, a saber, ontologia de objetualidades da cultura (ontologias das coisas naturais e ontologia das coisas espirituais), a única ontologia ou, qualquer que seja o caso, a ontologia prototípica” (HEIDEGGER, 2013, p. 57).

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sintética de diferentes elementos. O sentido originário de fenômeno não implica na existência de algo que é mais verdadeiro e essencial, que está atrás ou ao lado ou de alguma forma dentro do fenômeno, pronto para ser revelado como sua verdadeira face. Pelo contrário, “fenômeno designa um modo privilegiado de ser ou estar objetualizado” (HEIDEGGER, 2013, p. 75), no qual ele se mostra como “o estar presente de uma objetualidade por si mesma” (HEIDEGGER, 2013, p. 75). Heidegger destaca que no sentido originário não há qualquer referência do fenômeno enquanto objetualidade de um setor determinado, habitante de uma região temática do ser. Fenômeno é simplesmente o modo de ser objetual. “Fenômeno”: ciência do século XIX e o contexto do surgimento das Investigações Lógicas

A expressão grega original, no entanto, no uso histórico que foi feito dela, conduziu a desvios e transformações, que foram identificados por Heidegger na história da filosofia. O desvio é entendido como uma autointerpretação da tendência fundamental captada no sentido grego da palavra. A interpretação histórica registra este e outros desvios, a fim de fazer uma crítica do que foi encoberto pelos sedimentos da tradição. Como se verá mais adiante, sem uma crítica histórica, não se pode evitar de tomar por ser o que é mero encobrimento.

A ciência do século XIX representa a primeira autointerpretação desviante, analisada por Heidegger, da tendência fundamental do “fenômeno”. Tomados

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concretamente pelas ciências naturais, os fenômenos físicos eram estudados sem recurso às antigas qualidades ocultas, ou seja, eles deveriam ser explicados tal como aparecem e na medida em que aparecem na experiência, segundo o modo específico de acesso de cada ciência natural.

A partir daí houve uma completa dominância da orientação natural, de modo que ela se tornou a própria interpretação da ciência no século XIX. A própria filosofia passou a tomar esta orientação como o modelo epistemológico por excelência e, como tal, procurou nele as condições do conhecimento verdadeiro. Por sua vez, a psicologia científica, nutrida das mesmas esperanças epistemológicas, trouxe para si a tarefa de fundamentar a lógica nos elementos primários das sensações.

A fenomenologia, seus primeiros impulsos, aparece com Brentano (1995), ainda no âmbito da dominância da orientação natural. Diferente de Wundt, Brentano não queria simplesmente fundar a psicologia científica segundo as categorias das ciências naturais, categorias exteriores à própria experiência psicológica. Sua “imitação autêntica” (HEIDEGGER, 2013, p.77), como se refere Heidegger à aplicação do método das ciências naturais na psicologia de Brentano, realizou-se na perspectiva de que é a experiência própria dos fenômenos psíquicos, a primeira e única testemunha para a validação da classificação deles. Uma “imitação mal-entendida” consistiria em empregar o método de uma ciência natural, a física, por exemplo, como modelo prévio ao estudo de fenômenos que não são físicos, uma

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abordagem comum no contexto histórico que viu o nascimento da psicologia científica, planejada para ser mais uma ciência de laboratório do final do século XIX.

Segundo Brentano, é a própria experiência dos fenômenos psíquicos, cujo acesso é a percepção interna (Innere Wahrnehmung), que deve entregar o modo de questionar estes fenômenos. Foi assim que Brentano descobriu a característica típica de todo fenômeno psíquico como tal, a saber, a inexistência intencional (intencionalidade), o caráter de toda consciência ser consciência de algo, da ligação ontológica entre ato e objeto. Assim, Brentano alcança a delimitação de um campo de investigação que é o da própria fenomenologia, o campo das vivências e das conexões de vivências, a psicologia é a investigação da consciência intencional, da consciência de algo.

É nesse contexto que aparecem as Investigações lógicas de Husserl, o próximo passo histórico da fenomenologia, que radicalizaram as tendências presentes em Brentano, tornando “o fenômeno da ‘intencionalidade’ [...] uma linha de orientação segura para a investigação das vivências e dos nexos de vivências” (HEIDEGGER, 2013, p. 78). No fundo, a questão da objetualidade da filosofia não está propriamente tematizada nas Investigações, porque o foco husserliano continua sendo objetualidades específicas e uma primeira aplicação tematicamente conservadora ou tradicional: a lógica.

Não obstante, as Investigações Lógicas trouxeram um novo enfoque, um novo “como do perguntar”, que seguindo e criticando Brentano, se afastou da dialética e da argumentação para basear-se na descrição direta

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dos fenômenos estudados (HEIDEGGER, 2013, p.79). Este é o sentido abrangente, o sentido amplo, que a fenomenologia assume sendo um como da pesquisa, que fala de objetualidades tal como elas se mostram e apenas na medida do seu mostrar-se.

Segundo Heidegger, “inicialmente fenomenologia não é outra coisa do que um modo de investigar, mais precisamente: falar de algo tal como esse algo se mostra e apenas na medida em que se mostra” (HEIDEGGER, 2013, p. 79). É neste sentido que a fenomenologia se tornou um “como da pesquisa” e dentro do contexto imediato dos problemas que as Investigações Lógicas queriam abordar, foi necessário, segundo o filósofo, que houvesse uma nova transformação no sentido originário do “fenômeno”, que passou a ser uma categoria regional. Neste ponto é que ela se liga à ontologia moderna acima descrita, uma relação íntima que Heidegger discutiu já no início de suas preleções.

A partir daí os desenvolvimentos ulteriores apenas fizeram desvirtuar a possibilidade da fenomenologia oriunda da tendência do seu sentido originário. O retorno a Descartes, a disputa entre o realismo e o idealismo transcendental, a incursão em temas tradicionais contaminando novos conceitos, o desejo pelo sistema e a indefinição geral da terminologia fenomenológicos, causada pela intensificação destas situações, tudo isso, segundo Heidegger, desviou a fenomenologia de sua tendência original. Sob este aspecto, o filósofo foi um juiz rigoroso e peremptório da fenomenologia de seu tempo: “todas essas tendências não são senão uma

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traição da fenomenologia e de suas possibilidades. Não há maneira alguma de evitar a ruína!” (HEIDEGGER, 2013, p. 82).

A investigação deve se orientar pela possibilidade da fenomenologia enquanto como da pesquisa, ou seja, de trazer à tona aquilo que já está delimitado previamente como sua possibilidade. Por isso, Heidegger desconsidera desenvolvimentos ulteriores que, na verdade, traíram seu sentido e sua possibilidade original. A desconstrução do encobrimento

As objetualidades se mostram em si mesmas e é preciso tomá-las tal como são. Segundo Heidegger, isso significa que as objetualidades se mostram tal como são numa determinada perspectiva. Perspectiva aqui não significa apenas ponto de vista, o lugar de onde se olha algo. A perspectiva surge da familiaridade com a própria objetualidade, familiaridade que depende de uma aprendizagem sobre ela. São nestes termos que Heidegger determina como na objetualidade já está presente uma maneira tradicional de ver e abordar o assunto, uma maneira familiar aprendida e ensinada pela tradição.

A ideia de tradição é importante para entender a oposição entre encobrimento e fenomenologia, porque uma objetualidade pode mostrar-se sob um aspecto tão tradicionalmente arraigado que, na verdade, o que se mostra como sendo o caráter próprio da objetualidade, não passa do encobrimento dela tomado pelo que é propriamente. A tradição aqui entendida como

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sedimentação ou acúmulo de modos de ver tradicionais de um determinado assunto. Sedimentos que podem encobrir o caráter próprio do que se mostra em si mesmo, do que é o “fenômeno”. A fenomenologia, por sua vez, tal como se configurou, é historicamente ingênua, porque quer chegar ao assunto através de uma visão direta do fenômeno, de uma “evidência natural”, sem levar em conta que, sem uma crítica prévia, não se extingue o risco de tomar o encobrimento pelo ser.

Fenômeno, enquanto categoria temática que orienta o acesso e predispõe o lidar com as coisas, chega a significar a constante preparação do caminho. Tal categoria temática possui a função de alertar criticamente a visão reconduzindo-a à desconstrução dos encobrimentos encontrados através da crítica (HEIDEGGER, 2013, 84).

A crítica histórica, entendida no conceito de

desconstrução da tradição é uma tarefa importantíssima, segundo Heidegger. De fato, a ingenuidade histórica da fenomenologia consiste justamente em ignorar a importância fundamental da desconstrução e o problema do encobrimento.

Desconstruir quer dizer aqui: retorno à filosofia grega, a Aristóteles, para ver como decai e fica encoberto o que era originário; para ver como nós mesmos estamos em meio a essa decadência (HEIDEGGER, 2013, 83).

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A desconstrução é encarada como um empreendimento que leva em consideração a “história do encobrimento”, o que a faz retornar à “posição originária” e seguir, a partir daí, seu fio condutor histórico. Numa anotação de 1924, às notas das preleções, Heidegger escreveu: “a hermenêutica é desconstrução!” (HEIDEGGER, 2013, p. 110).

O que é fundamental para entender a própria possibilidade da fenomenologia e o papel decisivo da desconstrução é que pertence ao próprio caráter ontológico do ser o modo de encobrir-se: “ser ao modo de encobrir-se e o velar-se [...] é inerente ao caráter ontológico do ser” (HEIDEGGER, 2013, p. 84). Além disso, a própria objetualidade da filosofia é o ser em seu caráter ontológico. Assim, encobrir-se não é apenas uma distorção da posição prévia causada pela sedimentação da tradição, mas é um modo próprio de ser. “A tarefa, portanto: transformar isso em fenômeno resulta aqui como sendo radicalmente fenomenológico” (HEIDEGGER, 2013, p. 84).

Heidegger e Husserl

Em busca de uma compreensão heideggeriana do conceito de fenomenologia, vimos que ela se baseia numa compreensão da tendência grega original do “fenômeno”, segundo o caminho histórico de sua própria possibilidade. Avaliando este caminho, o filósofo chegou a um veredito duro a respeito do futuro dessa tendência original. Como foi visto, para Heidegger, depois das Investigações lógicas, os

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desenvolvimentos ulteriores da fenomenologia fadaram seu futuro à ruína.

Não é explícito que Husserl seja um objeto privilegiado de crítica nas preleções do verão de 1923. Já no prefácio, Heidegger atesta, sobre seu próprio trajeto filosófico, que “os impulsos me foram dados por Kierkegaard e foi Husserl que me abriu os olhos” (HEIDEGGER, 2013, p. 11). No comentário inicial do quarto capítulo, Heidegger recomenda as Investigações lógicas, para devida compreensão da relação intencional: “essa tendência de relação à… recebe por sua vez certa luz do esclarecimento analítico da maneira como se realiza este relacionar-se. (cf. Investigações lógicas)” (HEIDEGGER, 2013, p. 58). Em seguida, no §12, ele novamente remete às Investigações, que em dois parágrafos mais tarde (§14), ele lamenta não terem sido devidamente compreendidas (HEIDEGGER, 2013, p. 78):

[...] o caráter metódico imanente da atitude inicial, isto é, aquilo que é imprescindível para a sua realização permanece surpreendentemente indeterminado (a única investigação concreta sobre isso: Husserl, Investigações lógicas II/1, segunda investigação; e esta se prende a uma esfera de objetualidades bem determinada, da coisalidade) (HEIDEGGER, 2013, p. 66).

Por fim, no §15, Heidegger reitera a importância

de Husserl: “o progresso da hermenêutica deve ser visualizado somente a partir de sua objetualidade. Husserl contribuiu a este respeito de uma maneira decisiva” (HEIDEGGER, 2013, p. 84).

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De fato, Heidegger se refere a Husserl de forma elogiosa em diferentes passagens e, ao criticar a fenomenologia, omite o nome do mestre. Segundo a contagem de Søren Overgaard (2003, p. 159), Husserl é citado nove vezes no texto da Hermenêutica, descontando os apêndices, e em sua maioria de maneira elogiosa. Como comparação, ele observou que Scheler recebeu críticas bem mais explícitas e diretas que Husserl. Separamos algumas citações que dão uma ideia disso. Em relação a Scheler, Heidegger abandona o tom elogioso que usou em relação a Husserl. Por exemplo, no final do §4, Heidegger aponta para Scheler:

Coincidentemente, Scheler está tomando como sendo sua a teologia antiga. […] Contudo, enquanto os teólogos antigos ao menos percebiam que estavam falando de teologia, Scheler põe tudo de cabeça para baixo e arruína tanto a teologia como a filosofia. Tal método de passar por cima do fático é aplicado com grande sutileza e perspicácia em seu livro (HEIDEGGER, 2013, p. 33).

No próximo parágrafo (§5), Heidegger continuou

desferindo vários duros golpes. Depois de dois parágrafos sobre a incompreensão de Scheler acerca da ideia de pessoa em Kant, ele sentencia:

O alcance do grau de confusão que ocorre nessas abordagens fundamentais de Scheler é indicada, entre outras coisas, pelo fato de sua ideia de pessoa coincidir justamente, até mesmo literalmente, com a formulação que os reformadores, em oposição ao

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Aristóteles trivializado pela escolástica, proporcionaram (HEIDEGGER, 2013, p.35).

Se contarmos apenas as citações onde Heidegger

faz referência explícita a Husserl e a Scheler, poderíamos concluir que, entre os dois, Scheler é o objeto privilegiado de crítica. Mesmo assim, não só para Overgaard, como para Theodore Kisiel (1997, p.335), o ano de 1923 e, sobretudo, as preleções de Ontologia representam um ponto de inflexão no relacionamento filosófico e pessoal entre Husserl e Heidegger.

Há, de fato, documentos pessoais que reforçam essa posição. Heidegger conduziu um seminário sobre Ideias I, de Husserl, no inverno de 1922/232. Desde 1919, ele sucedera Edith Stein como professor assistente de Husserl, na Universidade de Freiburg. O curso sobre Ontologia: Hermenêutica da Faticidade é o seguinte, do verão de 1923, e o último em sua posição em Freiburg. Sabe-se que é longa e conturbada a relação pessoal e filosófica entre os dois pensadores. Se havia alguma submissão exterior à relação discípulo-mestre, a verdade é que desde o seu primeiro curso em Freiburg, o jovem Heidegger vinha preparando um distanciamento filosófico fundamental em relação ao mestre. O ano de 1923 é considerado por comentadores diferentes, o ano em que há uma inflexão no relacionamento dos dois, porque Heidegger começa a tornar mais explícitas e públicas suas críticas ao projeto da Fenomenologia husserliana. Dois documentos

2 Conferir a lista das preleções de Heidegger até 1930 (KISIEL, 1993, p.463).

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costumam ser citados para embasar esta colocação. Em primeiro lugar, numa carta que Heidegger escreveu a Karl Löwith, em 20 de fevereiro de 1923, ele diz, em relação ao seu curso sobre Ideias I, que havia “queimado e destruído” os fundamentos essenciais de Ideias I. Nessa mesma carta, Heidegger chega a questionar se Husserl fora, em algum ponto de sua vida, um verdadeiro filósofo3. No mesmo ano e para o mesmo Karl Löwith, Heidegger escreveu, em 08 de maio, a respeito das aulas do curso sobre Ontologia: Hermenêutica da Faticidade, que nelas ele havia atacado a fenomenologia husserliana em seus pontos mais críticos, de tal forma que para ele mesmo, Heidegger, seu caminho havia sido iluminado por tais críticas4.

Estes excertos da correspondência privada5 ilustram o defendido ponto de inflexão no

3 In the final hours of the seminar, I publicly burned and destroyed the Ideas to such an extent that I dare say that the essential foundations for the whole [of my work] are now clearly laid out. Looking back from this vantage point to the Logical Investigations, I am now convinced that Husserl was never a philosopher, not even for one second in his life. He becomes ever more ludicrous (KISIEL, 1997, p. 335). 4 Strikes the main blows against phenomenology. I now stand completely on my own feet. ... There is no chance of getting an appointment [with Husserl's help]. And after I have published, my prospects will be finished. The old man will then realize that I am wringing his neck - and then the question of succeeding him is out. But I can't help myself (KISIEL, 1997, p.335). 5 Poderia ser citada, ainda, a carta que Heidegger escreveu sobre Husserl a Karl Jaspers, poucos meses depois, em 14 de julho de 1923: “Husserl has come entirely unglued - if, that is, he ever was ‘glued’, which more and more I have begun to doubt of late. He

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relacionamento pessoal e filosófico entre Husserl e Heidegger. Embora até então eles se considerassem, do ponto de vista filosófico, “almas gêmeas”, as aulas do verão de 1923, sobre Ontologia, apresentaram os primeiros resultados teóricos de uma reformulação crítica do conceito de fenomenologia que vinha sendo preparado há anos por Heidegger.

Logo depois de sair de Freiburg, para ocupar uma posição na Universidade de Marburg, Heidegger escolheu novamente a Fenomenologia como tema de seu primeiro curso (Einführung in die phänomenologische Forschung, 1923) e, durante anos, continuou abordando criticamente a filosofia husserliana e os temas fenomenológicos que ele próprio desenvolvia. Estava ficando claro que não havia apenas uma diferença acidental de posição, mas uma verdadeira oposição filosófica entre os dois pensadores, que viria a atingir seu ponto de culminância com a publicação de Ser e Tempo e, logo depois, com a contribuição fracassada entre os dois filósofos para a Enciclopédia Britânica6.

goes from pillar to post, uttering trivialities that would make you weep. He lives off his mission as the ‘Founder of Phenomenology’, but nobody knows what that means” (SHEEHAN, 1997, p. 19). 6Em 12 de junho de 1925, Heidegger disse aos seus alunos: “Let me say that Hussed is aware of my objections from my lecture courses in Freiburg as well as here in Marburg and from personal conversations, and is essentially making allowances for them ...” (SHEEHAN, 1997, p. 17).

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Considerações finais

Nas aulas do verão de 1923, intituladas e publicadas como Ontologia: Hermenêutica da Faticidade, Heidegger trabalha com o conceito de fenomenologia em dois momentos diferentes. No primeiro, ele procura demonstrar a conexão íntima entre a ontologia moderna e a fenomenologia, esclarecendo a relação de contrapartida que há entre ambas “disciplinas”. O resultado foi contrapor aos limites da ontologia moderna, correspondente da fenomenologia das “vivências” e “conexões de vivências”, a radicalidade do questionar hermenêutico, único capaz de recolocar a questão ao seu devido lugar, a saber, a questão pelo ente cujo sentido decisivo pode ser o guia de toda a problemática ontológica, o ser-aí. Por outro lado, Heidegger demonstrou como o sentido originário de “fenômeno” contém em si uma tendência fundamental, que só pode ser devidamente compreendida quando se leva em consideração que o ser ao modo de encobrir-se e o velar-se é inerente ao caráter ontológico do ser, que é a objetualidade da filosofia, o tema que passou por alto da tradição filosófica, inclusive da fenomenologia, embora seja a sua problemática, segundo Heidegger, o guia condutor da verdadeira questão. Abre-se o âmbito próprio da hermenêutica na delimitação da própria ontologia e fenomenologia: é quando o questionar vai ao limite dessas disciplinas que o papel da hermenêutica aparece como elemento radical. As preleções marcam um influxo na concepção de fenomenologia de Heidegger, que a partir delas inicia um projeto de reconceituação da fenomenologia, no sentido de torná-la

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fenomenologia hermenêutica, em clara oposição à fenomenologia transcendental husserliana. Assim, abre-se o âmbito próprio da hermenêutica na delimitação da própria ontologia e fenomenologia: é quando o questionar vai ao limite dessas disciplinas que o papel da hermenêutica aparece como elemento radical. Referências BRENTANO, F. Psychology from an Empirical Standpoint. Trad. A.C. Rancurello, D.B. Terrell and L. McAlister, London: Routledge, 1995. HEIDEGGER, M. Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. 2 ed. Trad. de Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. ___________. Ontologie. Hermeneutik der Faktizität. In: GA 63, (Frühe Freiburger Vorlesung Sommersemester 1923), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1988. KISIEL, T. The genesis of Heidegger’s Being and Time. London: University of California Press, 1993. __________. Husserl and Heidegger. In: L. Embree et al. (eds), Encyclopedia of Phenomenology. Dordrecht: Kluwer, 1997. OVERGAARD, S. Heidegger’s Early Critique of Husserl. International Journal of Philosophical Studies Vol.11(2), 157–175. UK: Routledge Taylor & Francis Ltd, 2003. SHEEHAN, T. Husserl and Heidegger: The Making and Unmaking of a Relationship. In: Husserl, Edmund.

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Psychological and Transcendental Phenomenology and the Confrontation with Heidegger. Dordrecht: Kluwer, 1997.

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Hermenêutica como atenção fenomenológica

Luana Borges Giacomini

O propósito desse capítulo é investigar de que modo a hermenêutica aparece na fenomenologia de Heidegger. Tal noção é muito cara ao filósofo tendo em vista que um dos projetos indispensáveis de sua ontologia fundamental diz respeito à hermenêutica da faticidade. Isso significa que Heidegger considera que há uma impossibilidade de se fazer fenomenologia sem tal hermenêutica. Em termos gerais, num primeiro momento, podemos dizer que de modo diferente de seu significado usual, a hermenêutica heideggeriana se concentra numa “preparação” para a elucidação daquilo que o fenomenólogo considera o “terreno originário” do ser. Dada a própria constituição do ente que nós mesmos somos (ser-aí),7 o ser-aí é um ente que “esquece ser” por estar sempre em meio aos demais entes intramundanos numa ocupação. Por conta disso, a hermenêutica viabiliza um olhar originário que no início e na maioria das vezes se encobre na “lida” desse ente privilegiado (ser-aí) com o mundo que o circunda. Portanto, Heidegger considera que hermenêutica e fenomenologia seriam âmbitos indissociáveis, porque o fazer fenomenológico sempre conta com tal atenção.

7O ser-aí é um ente privilegiado porque compreende ser. Isso significa que é possível somente a este ente colocar a questão pelo sentido do ser.

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No §7 de Ser e Tempo, intitulado O método fenomenológico da investigação, Heidegger nos diz que o ser dos entes só pode ser apreendido fenomenologicamente. Devemos questionar, então, por qual motivo Heidegger considera que fazer ontologia só é possível desde o método fenomenológico. Pois, antes de tudo, fenomenologia é um método, um modo de se “apreender” o ser dos entes em geral. Ainda nesse parágrafo, o fenomenólogo nos diz que, “com a questão diretriz sobre o sentido de ser, a investigação acha-se dentro da questão fundamental da filosofia em geral. O modo de tratar essa questão é fenomenológico” (HEIDEGGER, 2012a, p. 66). Tendo em vista o fato de que a fenomenologia antes de tudo é um método, devemos ressaltar que o escopo de tal investigação não almeja caracterizar a quididade real dos objetos, mas, sim, o “como” destes (aquilo que instaura o aparecimento de tais). A fenomenologia “exprime uma máxima que se pode formular na expressão: ‘para as coisas elas mesmas!’” (HEIDEGGER, 2012a, p. 66). Ela é a ciência dos fenômenos, porque descreve o modo como todo e qualquer fenômeno aparece, isto é, o ser dos entes. “A investigação fenomenológica cumpre-se como um légein tà phainómena – um permitir ver o que se mostra tal como efetivamente se mostra por si mesmo: a existência, o ser do Dasein (ser-aí), desse ente que somos nós mesmos” (NUNES, 2012, p. 81).

O sentido da expressão “para às coisas elas mesmas” tem total relação com o intento heideggeriano no “resgate” da questão pelo sentido de ser. No início de Ser e Tempo Heidegger faz a seguinte

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citação de O sofista – Platão: “... pois é evidente que de há muito sabeis o que propriamente quereis designar quando empregais a expressão ‘ente’. Outrora, também nós julgávamos saber, agora, porém, caímos em aporia” (PLATÃO apud HEIDEGGER, 2012a, p. 34). Tal aporia ainda é nossa, diz Heidegger, e é nisso que reside a necessidade da recolocação da questão pelo sentido de ser. Quando o filósofo nos diz que essa questão precisa ser posta novamente, ele está visando o fato de que esta tem sido esquecida pela tradição. Nas palavras de Dubois (2004) “a universalidade do ‘conceito’ de ser nada tem de transparente, necessitando justamente de um esclarecimento” (p. 15). Frente a este esquecimento é recolocada a questão pelo sentido do ser na ontologia fundamental e se busca elucidá-la através do método fenomenológico, que como já dissemos só é possível desde a hermenêutica. Com ela nos é permitido o olhar que coloca a questão de modo adequado, isto é, o modo que viabilizará o propósito heideggeriano de uma ontologia fundamental. Assim:

O conceito fenomenológico de fenômeno se entende como o mostrar-se do ser dos entes, seu sentido, suas modificações e seus derivados. E o mostrar-se nunca é um mostrar-se qualquer, nem algo como um aparecer (erscheinen). Tampouco o ser dos entes é aquilo “atrás” do qual está algo que “não aparece”. Nada há essencialmente “por trás” dos fenômenos da Fenomenologia, a não ser o que deva tornar-se fenômeno por estar oculto. E é porque os fenômenos não estão dados imediata e regularmente que se necessita da Fenomenologia. Encobrimento

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(Verdecktheit) é o conceito contrário de fenômeno (HEIDEGGER, 2012a, p. 36).

A necessidade da hermenêutica frente o esquecimento de ser

Quando dissemos que fazer hermenêutica em Heidegger é algo necessário em sua fenomenologia, estamos apontando imediatamente para o caráter ontológico-existencial do ser-aí, para aquilo que nós somos constitutivamente: decadência. É importante tratar deste existencial, aqui, porque, é devido a ele que o ser do ser-aí está “fadado” ao esquecimento daquilo que há de originário em seu ser. O esquecimento do ser, que ocorre inclusive com a tradição filosófica, é “inerente” ao ser-aí. Desde abertura, o ser-aí é ser junto a... outro ente. É pelo fato do ser junto a... estar na base de toda e qualquer enunciação que é tendência do ser-aí se “perder na decadência”. Isto significa que inclusive esse perder-se é constitutivo do ser-aí, e é nisso que reside a necessidade de se fazer hermenêutica. Dada a própria constituição ontológica do ente que nós mesmos somos, só se pode fazer fenomenologia desde que a hermenêutica caminhe ao lado. Em Introdução à filosofia, Heidegger nos esclarece que:

Na essência de um ser-aí, reside o ser-com, mesmo quando faticamente não existe outro ser-aí. O ser-aí já traz consigo a esfera de uma vizinhança possível; ele já é por si mesmo vizinho de... Em contrapartida, por exemplo, duas pedras jamais podem ser avizinhadas. O ser-com implica: um liberar adiante o aí – como algo que manifestamente irrompeu e em que o ente pode

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por sua vez se anunciar segundo seu modo de ser (HEIDEGGER, 2009, p. 146-147).

Podemos entrever a partir desta citação, que a

abertura de mundo que é o ser-aí, diz respeito ao ser-com... os demais entes. Isso significa que o ser-aí é decadente, isto é, é sempre em relação. Quando atribuímos o esquecimento de ser à decadência, não queríamos com isso dizer que por ser sempre decadência o ser-aí será sempre esquecimento. Inevitavelmente o ser-aí é esquecimento, mas não significa que há a impossibilidade, com isso, de se vislumbrar o âmbito originário. No início e na maioria das vezes o ser-aí é inautêntico, isto é, habita esse âmbito do esquecimento. Mas, também, lhe está aberta a inversa possibilidade, a saber, de habitar o autêntico, pois, por compreender ser, o seu ser não lhe é totalmente velado.

O termo (queda) não exprime qualquer avaliação negativa. Pretende apenas indicar que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o ser-aí está junto e no “mundo” das ocupações. Este empenhar-se e estar junto a... possui, frequentemente, o caráter de perder-se no caráter público do impessoal. Por si mesma em seu próprio poder-ser si mesmo mais autêntico, o ser-aí já sempre caiu de si mesmo e decaiu no “mundo” (HEIDEGGER, 2012a, p. 240).

A queda (decadência) diz respeito ao comportar-

se do ser-aí em seu mundo fático. Com isso podemos adentrar a noção de ser-no-mundo, que aponta justamente ao fato de que o ser do ser-aí sempre conta

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com um mundo que é sempre seu para vir-a-ser. Isto é, o ser-aí só pode existir porque conta com as possibilidades de seu mundo fático, são elas que o condicionam em sua existência.

No §34 de Ser e Tempo, podemos perceber um momento em que Heidegger aponta o teor de sua hermenêutica no que diz respeito ao modo cotidiano do ser-aí. Lá ele nos diz “com relação a esses fenômenos, não será supérfluo observar que a interpretação tem um propósito puramente ontológico e se mantém muito distante de qualquer crítica moralizante do ser-aí cotidiano e de qualquer aspiração de uma ‘filosofia da cultura’” (HEIDEGGER, 2012a, p. 231). Essa passagem ilustra em termos gerais o intento de Heidegger com sua hermenêutica. Primordialmente ela atenta a uma análise do modo de ser originário do ente que nós mesmos somos. Tal análise não é mais uma entre as outras porque ela aponta para aquilo que o ser-aí é constitutivamente. Devido a este fato, a hermenêutica no âmbito heideggeriano, é uma espécie de atenção fenomenológica, porque ela se distingue essencialmente das demais interpretações de mundo. Podemos apontar esse caráter através da distinção do modo de “operar” fenomenologicamente entre Husserl e Heidegger. Em seu texto intitulado Hermenêutica da faticidade contraprojeto à fenomenologia transcendental, Kahlmeyer-Mertens nos diz:

Para Heidegger, ao respeitarmos os princípios do método fenomenológico, seria impossível subscrever o posicionamento de Husserl sem gravíssimas reservas, isso porque, volver-se ao transcendental seria ainda conservar o caráter subjetivo da

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consciência. Assim, Heidegger interpreta que uma fenomenologia transcendental, em sua busca por um fundamento ontológico absolutamente seguro para verdadeiramente basear uma construção filosófica sólida, deveria, antes de mais, questionar o caráter “transcendental” da consciência, tornando sua determinação ontológica transparente a ela. De modo análogo, Heidegger pretende tomar sobre a pedra-de-toque da filosofia a essência da consciência, mas, antes, compreende que uma análise do estado de fato desta se faz urgente. Ao se conservar atento aos achados fenomenológicos possibilitados a partir de uma lida radicalizada com a estrutura de base da intencionalidade, Heidegger não apenas desenvolve uma filosofia fenomenológica, quanto também uma fenomenologia hermenêutica. O olhar interpretativo dessa abordagem fenomenológica pousaria, assim, sobre a faticidade. Essa estrutura existencial (faticidade) denotaria o modo de ser do ente que ocasionalmente somos, o mesmo ente que (assim dirá Heidegger em Ser e Tempo) responde pela compreensão do sentido do ser e por seu questionamento (KAHLMEYER-MERTENS, 2016, p. 254-255).

A fenomenologia de Husserl e Heidegger se

distingue essencialmente no que diz respeito ao próprio método. De um lado temos Husserl na busca do “eu puro” através da epoché. Tal epoché funcionaria como uma espécie de recondução do fenômeno a ele próprio. Isto é, faz com que se libere tudo aquilo que está adensado/entulhado no fenômeno, para, com isto, vê-lo tal como ele é. Em Ideias, livro que é diretriz para a fenomenologia transcendental, tal epoché colocaria o

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“mundo natural” entre parênteses para que as estruturas transcendentais da consciência pudessem ser vislumbradas. Essa redução em Husserl proporcionaria um acesso àquilo que há de irredutível numa consciência, a saber, o eu puro transcendental. De modo diferente, temos em Heidegger uma fenomenologia que só se faz com hermenêutica porque ao invés de colocar entre parênteses esse “mundo natural” temos Heidegger partindo exatamente de tal. Heidegger ao partir do modo mais cotidiano do ser-aí, se dá conta de que este modo imediato do ser-aí lidar com os entes é constitutivo de seu ser (porque o ser-aí é decadência e isso é positivo, é constitutivo) e com isso já podemos perceber o aceno hermenêutico. Heidegger ao olhar deste modo para o ente que nós mesmos somos, se dá conta de que, o esquecimento do ser diz respeito à sua constituição ontológica, então, não faria sentido aqui, colocar este âmbito “entre parênteses” sendo que ele justificaria o próprio modo decaído do ser-aí lidar com seu mundo. Husserl ao procurar algo por detrás do fenômeno, investiga aquilo que tornaria possível o campo fenomenal desde o qual o fenômeno aparece como tal. Com isso, o pai da fenomenologia incorre numa filosofia transcendental, pressupondo uma causa por detrás do efeito que o fenômeno é. Heidegger, de modo diferente, não busca analisar as estruturas transcendentais de uma consciência porque ele compreende que uma consciência é um acontecimento posterior a abertura de mundo que é o ser-aí, só podemos falar de consciência porque há o ser-aí constituído previamente como abertura. Então o fenômeno visado por Heidegger é o da compreensão de

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ser e, com isso, o fenomenólogo busca analisar os existenciais que compõem tal compreensão, ou seja, aquilo que diz respeito ao ser do ser-aí.

Tal hermenêutica “funciona” como atenção porque aquilo que o ser-aí é constitutivamente não se revela de modo imediato. Pois, como já mencionamos, a própria constituição ontológico-existencial do ser-aí “vela” no início e na maioria das vezes seu caráter originário. E olhar para essa constituição enquanto esquecimento de ser é já fazer hermenêutica fenomenológica ao modo heideggeriano, porque Heidegger aponta este esquecimento como um existencial do ser-aí, isto é, como aquilo que diz respeito à sua própria constituição ontológica. Ernildo Stein, em seu livro intitulado Compreensão e finitude, diz que:

Heidegger assume a expressão hermenêutica no sentido de ontologia da compreensão. ‘Hermenêutica não significa, em ‘Ser e Tempo’, nem a teoria da arte de interpretar, nem a própria interpretação, antes a tentativa de, primeiramente, determinar a essência da interpretação, a partir do hermenêutico’. O hermenêutico é, justamente, o elemento ontológico da compreensão, enquanto ela radica na própria existencialidade da existência. O ser-aí é, em si mesmo, hermenêutico, enquanto nele reside uma pré-compreensão, fundamento de toda posterior hermenêutica. A compreensão é o modo de ser do ser-aí enquanto existência (STEIN, 2001, p. 187-188).

Stein aponta para o fato de que hermenêutica em

Heidegger é uma análise do próprio compreender que

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é o ser-aí. Além disso, pensa a possibilidade de tal hermenêutica inerente ao ser-aí porque este ente pré-compreende seu ser. “A compreensão é um existencial fundamental, em que reside o próprio-aí, a própria abertura, o próprio poder-ser do ser-aí” (STEIN, 2001, p. 188). O ser-aí só se “movimenta no mundo” porque possui uma lida compreensiva com tudo que lhe vem ao encontro. Ele é o mundo (descerramento), originariamente pensado, o ser-aí é ser-no-mundo. Isso significa que pelo fato de ser compreensão, o ser-aí, é o único ente que é em si mesmo hermenêutico porque desde a abertura se movimenta numa compreensão de seu próprio ser. Deve-se ressaltar que dizer que o ser-aí é ser-no-mundo não implica em pensar ser e mundo como instâncias separadas. Heidegger assinala esse acontecimento como um único fenômeno. Segundo nosso filósofo “o ser-aí não apenas tem, de certo modo, uma ligação com o mundo também articulada consigo mesmo; ao contrário, a ligação com o mundo é um traço essencial do ser-aí mesmo e, por que não dizer, é a sua constituição essencial marcante. Ser-aí não significa nada senão ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2009, p.324). Ser-aí significa ser-no-mundo, e isso diz a estrutura que é própria ao ser-aí. Esta indicação nos remete à estrutura da transcendência. O ser-aí em ultrapassando o ente pode se comportar em relação a tal, bem como, pode se comportar com relação a si mesmo como um ente entre os outros. Isso significa que somente o ser-aí pode lidar com os entes que o circundam e consigo mesmo. Essa “lida” só é possível porque o ser-aí ultrapassa o ente. “O ser-aí transcende, ultrapassa o ente. No entanto, não o faz apenas

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ocasionalmente, ele o faz, antes, como ser-aí; e ele ultrapassa o ente, não esse ou aquele a partir de uma escolha, mas o ente na totalidade” (HEIDEGGER, 2009, p. 326). Isso significa que, somente porque o ser-aí ultrapassa o ente na totalidade, ele pode comportar-se em relação a todo e qualquer ente que, essencialmente, já está decidido na faticidade de seu mundo. Ultrapassar significa compreender ser e nisso reside a possibilidade do ser-aí comportar-se em relação a todo e qualquer ente que se mostra/lhe vem ao encontro no “mundo”.

Não obstante, pensar o ser-aí originariamente é pensar um ente que é pura possibilidade de ser. Porque pura possibilidade (descerramento) este ente privilegiado tem de se “fazer” em existindo. “Enquanto o ser-aí é, falta-lhe aquilo que ainda pode ser e será” (HEIDEGGER, 2012a, p. 233). Essa falta diz respeito à pura possibilidade de ser do ser-aí; porque pura possibilidade ele tem de ser no “seu” aí (mundo). É nesse aí que as possibilidades de sua existência estão em jogo, pois, é nesse aí que o ser-aí vem-a-ser.

*** Como podemos perceber até este momento do

texto, a hermenêutica no âmbito da fenomenologia heideggeriana faz-se necessária no caminho da reflexão. Ela seria o “instrumento” que desencobre, dá luz ao ser dos entes. Em Ontologia, Heidegger afirma que “esta ‘antecipação do passo’ não supõe chegar ao término, mas precisamente tomar em conta o estar a caminho, deixar-lhe o passo livre, abrir-lhe caminho, conservando a possibilidade de ser” (HEIDEGGER,

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2012b, p. 23). Nessa hermenêutica, se deve configurar a posição em que o questionamento se dê de modo radical. Tal posição libera o homem das ideias já “impostas/sedimentadas” pela tradição, como por exemplo: “o homem é racional”. É devido a isso que Heidegger tem um cuidado especial com sua terminologia. Pois, “Ao chamar de homem o ser-aí que se irá investigar, coloca-se já de antemão dentro de uma determinada concepção categorial, visto que o exame é levado a cabo seguindo a direção da definição tradicional de “animal rationale” [o animal racional]” (HEIDEGGER, 2012b, p. 34). Todavia, Heidegger faz uma “revisão” acerca do modo tradicional, isto porque é desde a situação fática que a compreensão fundamental se torna possível. Isso significa: Heidegger parte do modo mais imediato de ser do ser-aí, em sua análise. “O tema da investigação é a faticidade, isto é, o ser-aí próprio enquanto é questionado em seu caráter ontológico” (HEIDEGGER, 2012b, p. 37). Heidegger diz que o ser-aí próprio é somente o seu-aí (sic) ocasional. Isso significa que, originariamente o ser-aí é pura possibilidade de ser, e porque é pura possibilidade, pode se movimentar no mundo/no fático que lhe apresentam possibilidades que condicionam seu ser. Tais possibilidades condicionantes/fáticas, já são sempre algo decaído/derivado daquele solo que Heidegger considera originário. E é por isso que ele nos diz:

[...] o que interessa é uma explicação hermenêutica, não uma informação mundana do que ‘se passa’. ‘Hoje’, em nossos dias, supõe cotidianidade, supõe desvanecer, ficar absorvido pelo mundo, falar dele,

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cuidar de coisas. Estas duas possibilidades de colocar mal desde o princípio a análise do problema não são aleatórias, mas em relação ao percurso estão mesmo sempre em seu caminho apropriado. A realização cabal da hermenêutica implica uma luta constante com a eventualidade de escorregar para qualquer de ambos os lados (HEIDEGGER, 2012b, p. 38-39).

Como podemos entrever nesta citação, Heidegger

enfatiza a necessidade da hermenêutica tendo em vista o fato de que o ser-aí é “absorvido” por seu mundo circundante desde a abertura de mundo. Pois, abrir mundo é ser o mundo, é ser na lida com os entes nas diversas circunstâncias fáticas que estes se mostram. A lida com o ente sempre implica em fechamento da constituição originária, pois é posterior a tal acontecimento. Isto é, sua possibilidade reside no desvelamento. Acompanhando esse raciocínio, o seguinte nos diz Dubois (2004):

[...] o ser-aí existe faticamente. Isto não quer dizer a faticidade constatável de um ente intramundano, mas a experiência do fato do si mesmo que assoma na “tonalidade”, no sentimento. O que há no fundo de todo sentimento é: a experiência de minha faticidade. Pode-se ir mais longe? Sim. Essa faticidade, em sua abertura específica, implica num “fechamento”: aquela da origem e da destinação (p. 35).

A faticidade é o âmbito da pré-compreensão que

o ser-aí mantém com o “mundo”. Esta pré-compreensão é o modo a partir do qual o ser-aí lida com o mundo. Isto é, ele sempre parte deste prévio o qual é determinado pela faticidade. Deste modo, abrir

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mundo é abrir mundo para que os entes venham ao encontro e nesse encontro seu ser se obscurece. Essa obscurecência ocorre porque aquilo que instaura essa relação com o ente se vela no próprio acontecimento do ente. O ser dos entes escapa a toda e qualquer presentificação, e é devido a isso que a atenção fenomenológica deve nos guiar em tal diferença acerca daquilo que instaura o aparecimento do ente (o como) e aquilo que é o próprio acontecimento do ente (aquilo que se mostra).

Não obstante, a hermenêutica se difere das demais interpretações porque ela não indica uma posse de conhecimento. De modo diferente, ela aponta o âmbito existencial, o modo de ser do ser-aí. “A hermenêutica fala desde o ser interpretado para o ser interpretado” (HEIDEGGER, 2012b, p. 24). Devemos ressaltar aqui, que a hermenêutica é possibilidade somente do ente privilegiado (ser-aí). Pois, porque compreende ser, pode se colocar a questão do sentido. Somente a este ente seu ser pode ser desvelado, isto é, este é o único ente que pode se “movimentar” numa autointerpretação originária. Essa possibilidade advém do fato de que “ser homem já significa filosofar”. Em Introdução à Filosofia, nos diz Heidegger (2009):

Mesmo que não saibamos expressamente nada sobre filosofia, já estamos na filosofia porque a filosofia está em nós e nos pertence; e, em verdade, no sentido de que já sempre filosofamos. Filosofamos mesmo quando não sabemos nada sobre isso, mesmo que não “façamos filosofia”. Não filosofamos apenas vez por outra, mas de modo constante e necessário enquanto existimos como homens (p. 3).

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Heidegger quer nos dizer, com isso, que, ser

homem implica sempre em “lidar com seu ser”. Para apontar melhor essa distinção, o fenomenólogo nos diz que o animal não pode filosofar e Deus não precisa filosofar. Isto porque “a essência da filosofia é ser uma possibilidade finita de um ente finito” (HEIDEGGER, 2009, p. 4). Tal ente finito é o ser-aí, o único ente que tem que lidar com seu ser, que tem de ser através de seu mundo fático. A fenomenologia heideggeriana, através de seu caráter hermético, tem por escopo tornar a filosofia livre em nós. Nas palavras do fenomenólogo:

[...] ela deve tornar-se a necessidade interna de nossa essência mais própria, de modo a conferir a essa essência a sua dignidade mais peculiar. No entanto, é preciso que venhamos a acolher em nossa liberdade aquilo que deve se tornar livre em nós dessa maneira: nós mesmos precisamos tomar e despertar livremente o filosofar em nós (HEIDEGGER, 2009, p. 5).

O âmbito “descoberto” através da atenção fenomenológica: a verdade do ser-aí

Quando pensamos a hermenêutica como atenção fenomenológica, em Heidegger, dizemos que ela “viabiliza” o olhar originário do ser-aí com relação ao seu próprio ser. Isto significa que olhar para o âmbito existencial do ente que nós mesmos somos necessita de um “preparo” dada a própria constituição ontológica deste ente que esquece ser. Heidegger encontra em sua hermenêutica da faticidade a possibilidade de

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novamente colocar a questão pelo sentido de ser. É com ela que o filósofo poderá colocar a questão de modo adequado, isto é, levando em conta a diferença fundamental entre o ente que nós mesmos somos e os demais entes intramundanos (todo e qualquer ente que não é ser-aí).

Apoiados em Heidegger, podemos dizer que esse âmbito que a hermenêutica “desencobre” diz respeito à verdade do ser-aí. Tal verdade não é aquela pensada de modo proposicional, mas sim a verdade do ser. Pensar a verdade no âmbito originário é pensar antes de tudo a constituição ontológica deste ente que por ser desvelamento possibilita o acontecimento dos entes, isto é, o próprio sentido. Para tal noção fazer sentido, devemos distinguir uma verdade pensada tradicionalmente daquela pensada por Heidegger como verdade originária. Acerca da verdade proposicional, o fenomenólogo nos diz: “A verdade é naturalmente a verdade do juízo, verdade do enunciado. Juízos e enunciados expressam-se linguisticamente em proposições. Verdade é verdade proposicional” (HEIDEGGER, 2009, p. 48). Isso significa que uma verdade pensada proposicionalmente é uma verdade acerca dos entes, ela se dá mediante a presentificação do ente no “mundo”. Ela opera ao modo do logos apophantikos: tal logos deixa ver o ente a partir do já estar “descoberto”.

Temos que mostrar duas coisas: em primeiro lugar, que a verdade tomada tradicionalmente como propriedade do juízo, como adaequatio intellectus et rei [adequação do intelecto com à coisa], está fundada em algo diverso, ou seja, que o que se toma como

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verdade no juízo é uma determinação autêntica, mas a possibilidade interna da verdade reside em algo mais originário; e, em segundo lugar, devemos caracterizar mais precisamente esse algo originário (HEIDEGGER, 2009, p. 48).

O caráter apofântico do logos consiste em deixar

ver o ente desde o próprio ente. Heidegger entende este logos como um deixar ver algo que já se mostrou num contexto de aparecimento. É porque ele é um deixar e fazer ver o ente que é possível a verdade ou a falsidade deste se mostrar no enunciado. Deste modo, todo o falar deve ser compreendido como aphofainestai: fazer ver o ente. Quando falamos em ver o ente, devemos ressaltar o fato de que isso não implica em representá-lo numa consciência. Pois “o pensado é antes o próprio ente, e não uma representação ou imagem que concorde com o ente que precisamente se encontra ausente” (HEIDEGGER, 2009, p. 135). Para clarificar tal afirmação, a noção de verdade pensada como adequação precisa ser liberada. O fenomenólogo nos diz: “A ideia de concordância não é, de forma alguma, a ideia primária do conceito de alétheia” (HEIDEGGER, 2012a, p. 72). Devemos elucidar como se dá o aparecimento imediato do ente e como este aparecimento é possível: através da alétheia (verdade pensada de modo originário). Para tanto adentraremos na estrutura do como hermenêutico, que torna possível toda e qualquer verificação do fenômeno numa adequação (verdade tradicional). No §7 de Ser e Tempo, Heidegger nos diz:

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E somente porque a função do logos como apophansis reside no deixar e fazer ver algo mostrando é que ele pode ter a forma estrutural de syntesis. Síntese não diz aqui ligação e combinação a respeito das quais surgiria, posteriormente, o “problema” de como, sendo algo interno, poderiam concordar com os dados físicos externos. O syn possui um significado puramente apofântico e indica deixar e fazer ver algo como algo, na medida em que se dá em conjunto com outro (HEIDEGGER, 2012a, p. 72. grifo do autor).

Como já foi dito, a estrutura do como, não diz

respeito ao já aparecido do ente numa consciência, mas, ao aparecimento imediato do fenômeno que já se deu numa relação, que já se mostrou num contexto de aparecimento. Podemos entrever com tal citação, que o logos apofântico, mostra como o ente se comporta desde essa mostração prévia/imediata (como hermenêutico). O logos é, assim, a possibilidade da manifestação do ente no enunciado e a síntese, ali mencionada, apenas evidencia que o problema do discurso mostrador (deixar e fazer ver) não implica uma relação entre sujeito e objeto. Pois, na análise fenomenológica ser e ente são instâncias interdependentes, portanto ser é sempre ser de um ente, o aparecimento do ente acontece desde ser, desde o aberto em que é possível o sentido/aparecimento.

Portanto, ao fazer essa distinção, Heidegger quer mostrar que a verdade pensada tradicionalmente é um acontecimento posterior àquele do desvelamento. Só há verdade proposicional porque há entes descobertos numa pré-compreensão que o ser-aí mantém com o mundo. Nessa pré-compreensão o como hermenêutico

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indica o modo como os entes aparecem no mundo de modo imediato (antepredicativo). Todavia ele reforça aquilo que Heidegger quer pensar: a verdade proposicional é um acontecimento decaído/secundário (não diz a experiência fundamental do ser-aí). Previamente ao logos apofanticos há o como hermenêutico que é possibilidade desse logos que revela a cada vez um aspecto do ente visado. A verdade da tradição ao permanecer apenas no âmbito de uma verdade proposicional se movimenta sempre num âmbito de esquecimento. Deste modo é perdido de vista que as variadas visadas de um ente só ocorrem na medida em que este já apareceu junto ao ente que pode representar (ser-aí). Só posso falar que “o giz é branco” na medida em que o giz já apareceu/se mostrou na pré-compreensão. Nas palavras de Heidegger:

Não chegamos primeiramente ao giz por meio do caminho do enunciado e do contexto relacional ao qual esse enunciado está postamente atrelado, mas, inversamente, somente e na medida em que já estamos junto ao giz, na medida em que já nos mantemos junto a ele, ele pode ser um objeto possível do enunciado. Só podemos transformar em um “sobre-o-quê” possível de enunciação aquilo junto ao que já nos encontramos. O enunciado não é absolutamente o modo de acesso a esse giz. Somente porque antes do enunciado já estamos junto ao giz e não o alcançamos primeiramente por meio do enunciado como tal, somente por isso o enunciado, enquanto enunciado predicativo, pode se adequar à qüididade e ao modo de ser daquilo sobre o que esse enunciado deve visar (HEIDEGGER, 2009, p. 69).

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Só podemos dizer algo sobre o ente porque este ente já se deu junto a..., isto é, já se mostrou numa pré-compreensão. O ser-aí, é ser-no-mundo: isto significa que ele é “lugar” em que os entes se mostram. Dizer que o ser-aí é o mundo implica que de modo imediato ele está numa relação com o ente. Tal relação não diz respeito a duas instâncias separadas, equiparável ao modo moderno de conceber a relação de sujeito-objeto. “Ser-o-mundo” (die-Welt-sein) quer dizer que ser-aí é o âmbito de compreensão, e por isso a relação com o ente é compreensiva.

A verdade no âmbito tradicional se localiza apenas em representações vinculadas, isto é, o juízo sob a forma da adaequatio rei ad intellectum. Essa descoberta, contudo, ainda não pode ser vista como originária e ainda não mostra de que modo o enunciado pode unir uma representação do ente ou uma palavra sobre ele, isto é, o âmbito da relação ainda permanece obscurecido quando se diz que a verdade está ou reside no que enunciamos. O sentido tradicional da verdade é pensado como aquilo que é verdadeiro. Este verdadeiro se torna manifesto na linguagem. No entanto, tal descoberta, não pode ser tomada como originária, justamente porque ela não mostra de que modo é possível o enunciado unir uma representação do ente ou uma palavra sobre ele. Isso significa que o âmbito da relação, portanto – aquilo que instaura toda relação com o ente – permanece obscurecido.

O lugar originário da verdade não pode ser pensado nesse âmbito puramente ôntico da proposição veritativa, pois tal descobrimento do ente só ocorre

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mediante o desvelamento que é o ser-aí. A verdade proposicional se dá desde alétheia (desvelamento). Só podemos revelar um aspecto do ente no enunciado porque os entes já se mostraram na pré-compreensão e tal mostração acontece desde o desvelamento, desde a abertura de mundo que é o ser-aí. O ser-aí só pode ser junto a... outro ente e descobrir tal ente no enunciado porque previamente ele é desvelamento, é clareira dando âmbito para que o ente venha à luz. Em outras palavras, por ser essencialmente abertura, e nessa abertura residir a possibilidade do descobrir, o ser-aí é e está na “verdade”, significa dizer que: essencialmente o ser-aí é “verdadeiro”. Referências

HEIDEGGER, M. Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. 2 ed. Trad. de Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. ___________. Ontologie. Hermeneutik der Faktizität. In: GA 63, (Frühe Freiburger Vorlesung Sommersemester 1923), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1988. ___________. Sein und Zeit. In: GA 2, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt, V. Klostermann Verlag, 1977. ___________. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2012. ___________. Introdução à filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. 2ªed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

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Quarto Capítulo

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Quarto Capítulo

O círculo hermenêutico: A autocaptação metadiscursiva

Neusa Rudek Onate

Toda interpretação é uma interpretação em conformidade a ou em vista de algo. A posição prévia, a ser interpretada, deve ser buscada na rede de objetualidades. Deve afastar-se do que se encontra mais próximo no assunto que está em jogo para ir em direção ao que reside em seu fundo (HEIDEGGER, 2013, p. 84).

Esta passagem do volume 63 da Gesamtausgabe8

refere-se ao caminho que a hermenêutica da faticidade deve seguir de acordo com a denominação de si mesma como interpretação. A interpretação de uma posição prévia deve ser buscada na rede de objetualidades, sempre em direção ao seu sentido. A interpretação e descrição hermenêutica depende da originalidade e autenticidade da posição prévia (Vorhabe) na qual o ser-aí é em sua ocasionalidade. O questionamento acerca do sentido deve ser formulado no modo de indicação formal. O fenômeno fundamental do ser interpretado, ou seja, do ser-aí caracterizado por

8 Texto publicado pela primeira vez em 1982 como volume 63 da Gesamtausgabe sob o título Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. É um texto proveniente das preleções dadas por Heidegger na Universidade de Friburgo durante o verão de 1923. Citaremos a tradução em português de Renato Kirchner publicada em 2013 sob o mesmo título.

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Heidegger como compreensão prévia de si mesmo, é um compreender prévio que interpreta sempre de antemão. Esse fenômeno corresponde a certas características fundamentais do ser-aí como posições prévias, tal fenômeno é primordial dentre os demais existenciais. O visto a partir deste visar prévio da compreensão, nas palavras de Heidegger, “supõe ter já, de antemão, o que se irá ver enquanto ente que é dessa ou daquela maneira. O que dessa ou daquela maneira se possui de antemão em todo o acesso ao ente e o lidar com o ente o determinaremos como posição prévia” (HEIDEGGER, 2013, p. 86). Para termos mais clareza acerca do que Heidegger caracteriza como uma interpretação hermenêutica, uma interpretação fenomenológica ou ainda uma intuição hermenêutica, recorremos ao parágrafo 32 de Ser e Tempo, cujo título mostra, segundo Rivera, uma intrínseca relação entre compreender (Verstehen) e interpretação (Auslegung). No que diz respeito à interpretação, Heidegger explica que a mesma se refere a um desdobramento do compreender, cuja interpretação compreende apropriando-se compreensivamente do que deve ser compreendido. Tal compreender da interpretação não pode ser considerado como algo separado e distinto da interpretação mesma, pois se trata de uma relação de mesmos. A interpretação é fundada (gründet) existencialmente no compreender, porém, isto não significa que uma funda a outra. A afirmação se mostra confusa, mas, de acordo com Rivera, Heidegger explica numa nota que tal afirmação se justifica pelo significado da palavra alemã Auslegung enquanto exposição, que, por sua vez, em outros idiomas

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significa explicitação. De fato, a palavra alemã Auslegung equivale à interpretação, mas, tal interpretação é, simultaneamente, uma explicitação daquilo que se dá no compreender. “Nesta interpretação, os entes que são apreendidos pelo compreender, estão agora expostos de forma explícita” (RIVERA, 2010, p. 168). Convém ressaltar, que, na explicação teórica desenvolvida na analítica existencial, Heidegger faz uso da palavra Interpretation (interpretação) ao analisar o ser-aí cotidiano no intuito de examinar o modo impróprio da compreensão (HEIDEGGER, 2013; HEIDEGGER, 1997; RIVERA, 2010).

De acordo com Escudero (2010), a interpretação é um tipo de manifestação, uma demonstração ou ainda uma exibição. O parágrafo 31 de Ser e Tempo define a compreensão como projeção de possibilidades. De modo geral, não percebemos a dimensão compreensiva de nossa própria constituição e muito menos a desenvolvemos expressamente. A compreensão, por ser um ato prévio que torna possível o conhecimento, não pode ser concebida como resultado de processos psicológicos ou mentais. Ela é o “como” hermenêutico do ser-aí ser no mundo, ser-aí-no-mundo implica sempre nesta estrutura de projeção compreensiva das possibilidades. Em certas ocasiões, exercemos um modo explícito de compreensão; noutras, executamos um modo de compreensão interpretativa. Tal interpretação nos é dada pela compreensão primária do mundo. “A compreensão é global, a interpretação é local” (ESCUDERO, 2010, p. 207). O ser-aí é constituído por esses dois modos de projeções: a compreensão global, atemática, ou seja, do mundo circundante como

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uma totalidade significativa e a interpretação local ou temática, que se caracteriza pela visada a um ente em particular (ESCUDERO, 2010). A compreensão atemática precede a interpretação, contudo, a interpretação implica numa compreensão, conforme expressa Heidegger na seguinte passagem do parágrafo 32:

A interpretação, enquanto se apropria de uma compreensão, se move em um compreender que está voltado a uma totalidade conjuntural já compreendida. A apropriação do compreendido, porém, velado, realiza sempre o desvelamento guiado por um ponto de vista que fixa o parâmetro em função do qual o compreendido deve ser interpretado. A interpretação se funda sempre em um modo prévio de ver (Vorsicht) que ‘recorta’ o dado na posição prévia segundo uma determinada interpretabilidade. O compreendido a partir de uma posição prévia e que está posto em direção ao modo prévio de ver, se torna entendido por meio da interpretação. A interpretação pode extrair conceitos do ente mesmo que, por sua vez, deve interpretar tais conceitos correspondentes, ou pode forçar ao ente conceitos aos quais ele resiste por seu próprio modo de ser. Seja como for, a interpretação já está decidida sempre, definitiva ou provisoriamente, por uma determinada conceitualidade; ela se funda em um modo de entender prévio (Vorgriff) (HEIDEGGER, 1997, p. 152).

Isto significa que a vida cotidiana é movida em

interpretações, cuja interpretação é sempre de caráter prévio, distinguindo-se da interpretação sistemática das demais ciências. A interpretação explicita a

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compreensão atemática e pré-reflexiva de nossa realidade imediata. “Trata-se de um movimento da existência mesma, de um desdobramento que permite apreender de maneira expressa e explícita as coisas e pessoas que descobrimos em nosso encontro com o mundo” (ESCUDERO, 2016, p. 207). Não vemos primeiro uma cor disforme, que, em seguida, sucessivamente, através de várias etapas, a interpretamos como algo. A percepção e a intuição sensível têm um caráter interpretativo que torna explícita a interpretação de modo imediato, instantâneo. Nas palavras de Heidegger: “toda simples visão antepredicativa do à mão já é em si mesma compreensão-interpretativa” (HEIDEGGER, 1997, p. 152). Aquilo que foi explicitamente compreendido possui a estrutura de algo enquanto algo (Struktur des Etwas als Etwas). A interpretação é um “como” hermenêutico; não é uma apreensão do ente por meio de enunciados, mas, antes, é a explicitação do ente enquanto tal como algo (HEIDEGGER, 1997;

ESCUDERO, 2016). As três estruturas fundamentais da interpretação

são: posição prévia (Vorhabe), visão prévia (Vorsicht) e entender prévio (Vorgriff), tais estruturas ou momentos estruturais são constitutivos da pré-estrutura da compreensão que, por sua vez, é o modo constitutivo do ser-aí:

A posição prévia designa o horizonte de sentido previamente adquirido em cada caso e não questionado que possibilita uma primeira compreensão do contexto [...] como compreensão imediata (ESCUDERO, 2010, p. 208).

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A interpretação implica sempre numa

compreensão prévia do mundo circundante, num ponto de partida adquirido culturalmente.

A compreensão, ao apropriar-se do compreendido, desvela o interpretado segundo um ponto de vista já fixado de antemão, em cada caso, pela visão prévia. A visão prévia recorta o dado na posição prévia, a fim de interpretá-lo a partir de uma determinada perspectiva e de um modo particular, específico a cada caso. O que o filósofo estabelece acerca da posição prévia (Vorhabe) e do ver prévio (Vorsicht) é que estes são aspectos gerais da compreensão, pois são prévios a todo tipo de interpretação explícita. O entender prévio (Vorgriff) pressupõe um conjunto de conceitos antecipados, aplicáveis em cada caso, e já interpretado explicitamente. Noutros termos, é a função que articula e expressa, através de pré-conceitos aquilo que foi dado na posição prévia e visto no ver prévio. A interpretação implica sempre em conceitos prévios, por meio dos quais a explicitação de determinado dado nos é inteligível (HEIDEGGER, 1997).

De acordo com Escudero, estes conceitos não são plenamente articulados num claro e único modo de proposições. Pelo contrário, são conceitos resultantes de articulações de vocabulários adquiridos pelo processo comunicativo em distintos contextos e situações sociais e que podem, em cada caso, ser substituídos por outros mais adequados, quando assim se determinar. O decisivo acerca da conceitualidade é que ela não pode ser estabelecida a partir de um

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indivíduo, mas antes, é oriunda da dinâmica sócio cultural:

Quando uma interpretação chega a seu fim, se converte num conjunto petrificado de conceitos, num modo de pensar estático que já não está disposto a revisar seus pressupostos (ESCUDERO, 2010, p. 210).

O que Heidegger procura estabelecer acerca da

interpretação consiste em evitar e corrigir os erros das opiniões prévias mediante uma recondução da visada às coisas mesmas. Até mesmo os seus pontos de vista passam por tal recondução no intuito de revisar os seus pressupostos (ESCUDERO, 2010).

A seguinte passagem nos leva a outro elemento fundamental que abarca a estruturação da articulação compreensiva, a saber, o sentido (Sinn).

O caráter de possibilidade corresponde cada vez mais ao modo de ser do ente compreendido. O ente intramundano em geral é projetado a um mundo, ou seja, para um todo de significatividade em cujas remissões referenciais a ocupação, enquanto ser-no-mundo, se consolida de antemão. Quando um ente intramundano já foi descoberto por meio do ser do ser-aí, ou seja, quando já se deu a compreensão, dizemos que ele tem sentido. Contudo, o compreendido não é, em rigor, o sentido, mas sim o ente ou, correlativamente, o ser. Sentido é aquilo que move a compreensibilidade de algo. Sentido é o articulável na abertura compreensora. [...] Sentido é o horizonte do projeto estruturado pela posição prévia, a maneira prévia de ver e a maneira prévia de entender,

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horizonte desde o qual algo se torna compreensível enquanto algo (HEIDEGGER, 1997, p. 154).

A compreensibilidade de algo se movimenta no

sentido; este, por sua vez, se articula no ser-aí enquanto abertura compreensiva. O sentido se dá quando conquistamos a compreensão de algo, é o modo pelo qual acessamos as coisas. Dizer que a compreensibilidade se move no sentido, significa dizer também que o sentido é a projeção composta e articulada pela dinâmica triádica da compreensão. A projeção de sentido é o princípio da compreensibilidade. Segundo Escudero, a dinâmica compreensiva compreende aquilo que já está de algum modo sempre compreendido e este é o ponto considerado problemático do círculo hermenêutico. Por exemplo:

para compreender um texto preciso compreender suas partes e sua relação com o todo: as palavras com a frase, a frase com o parágrafo, o parágrafo com o capítulo, o capítulo com o livro, o livro com a obra e a obra com o contexto (ESCUDERO, 2010, p. 211).

O exemplo de Escudero expõe o caminho da

compreensão das partes em direção ao todo. Do mesmo modo, para se compreender o todo, precisa-se compreender as partes que compõem o todo, fazendo o caminho inverso9. Heidegger justifica a estrutura circular da dinâmica compreensiva como uma

9 Esta noção de todos e partes foi desenvolvida pela mereologia de Husserl na Terceira Investigação.

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estrutura existencial primordial do ser-aí (ESCUDERO, 2010). Nas palavras de Heidegger:

[...] o cumprimento das condições fundamentais de toda interpretação exige o não desconhecimento das essenciais condições de sua realização. O decisivo não é sair do círculo, mas sim entrar nele de maneira correta. Este círculo da compreensão não é um círculo no qual gire um gênero qualquer de conhecimentos, mas antes, é a expressão da estrutura existencial de prioridade do ser-aí mesmo. Não se deve rebaixar à condição de um círculo vitiosum, e nem sequer a um círculo vicioso tolerado. Nele se encerra uma positiva possibilidade de conhecimento mais originário, possibilidade que só será assumida de maneira autêntica quando a interpretação tenha compreendido que sua primeira, constante e última tarefa consiste em não deixar que a posição prévia, a maneira prévia de ver, a maneira prévia de entender sejam dadas por simples ocorrências e opiniões populares, mas antes, em assegurar-se do caráter científico mediante a elaboração dessa estrutura de prioridade a partir das coisas mesmas (HEIDEGGER, 1997, p. 156).

A passagem indica que entrar no círculo de forma

correta significa não se deixar guiar pelas opiniões populares da posição prévia, do ver prévio e do entender prévio, e, sobretudo, significa reconhecer este modo de articulação da compreensão inspiradas em tais opiniões ou formas de conhecimentos quaisquer. Evitando tal modo de compreensão superficial, seguiremos em direção ao que reside em seu fundo.

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Isso remonta à frase inicial na qual Heidegger nos chama a atenção:

a posição prévia, a ser interpretada, deve ser buscada na rede de objetualidades. Deve afastar-se do que se encontra mais próximo do assunto que está em jogo para ir em direção ao que reside em seu fundo (HEIDEGGER, 2013, p. 84).

O que está mais próximo do assunto é o

conhecimento inspirado na opinião popular, bem como no modus operandi das ciências particulares tal como apresentado até aqui. O que reside, em seu fundo, é o conhecimento originário alcançado de modo autêntico a partir da própria compreensão que se realiza como um círculo hermenêutico que reconhece e evita as interpretações superficiais, sejam elas contingentes ou necessárias no âmbito popular (HEIDEGGER 1997; HEIDEGGER, 2013).

No que concerne à exposição acerca da circularidade da compreensão, cabe ressaltar que não se trata somente de demonstrá-la como constituição ontológica do ser-aí ou de demonstrar um conhecimento ideal, mas, sobretudo, de descrever as condições de possibilidade para sua consumação no que se refere às suas antecipações operacionais interpretativas. Em Ser e Tempo, Heidegger se propõe justamente a explicitar tal condição hermenêutica da questão do sentido de ser segundo a tríade constitutiva da compreensão. O resultado é a revisão e a recolocação da antiga pergunta: tò tí on? “Confrontando-a criticamente com os marcos essenciais da história da metafísica. Isto supõe estar

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consciente das antecipações pressupostas de maneira acrítica para poder controlá-las e obter uma compreensão correta desde as coisas mesmas” (ESCUDERO, 2010, p. 211). Segundo Rivera, a pergunta pelo sentido de ser jamais pode ser tomada como uma pergunta sobre o que está por detrás do ser, ou por detrás do ente, mas antes, a pergunta deve ser entendida como uma questão que se dirige ao que se encontra constitutivamente imerso na compreensibilidade do ser-aí, ou seja, imerso em seu ser mesmo. Evitando-se, portanto, a confusão acerca do sentido tomado como um fundamento que subjaz ao ente (RIVERA, 2010).

No volume 21 da Gesamtausgabe10, Heidegger explica que,

Todos os enunciados sobre o ser do ser-aí, todas as proposições sobre tempo, todas as proposições no interior da problemática da temporalidade possuem,

10 Referimo-nos à Lógica: A Pergunta Pela Verdade, cujo título original é Logik. Die Frage nach der Wahrheit. (1976). In GA 21 (Wintersemester 1925-26). Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann. Fruto de seu curso ministrado no semestre de inverno de 1925-1926 em Marburgo, cuja temática contrapõe a lógica tradicional apresentando uma lógica filosofante na qual se pergunta pelo logos, tal lógica é uma lógica da verdade. Na primeira parte, Heidegger remonta à interpretação aristotélica da verdade; na segunda, desenvolve a pergunta radical pela verdade no horizonte da analítica existencial, onde o peso principal recai sobre a temática do tempo. Sua interpretação da Crítica da Razão Pura mostra o significado da problemática do tempo em Kant. Este curso é fundamental para conhecer a gênese do pensamento de Heidegger. Citaremos a tradução espanhola de J. Alberto Ciria de 2004.

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enquanto proposições expressas, o caráter da indicação: elas indicam apenas ser-aí, ao passo que, enquanto proposições expressas, elas visam imediatamente algo subsistente; elas indicam ser-aí e estruturas do tempo e do ser-aí, elas indicam o compreender possível e a possível compreensibilidade acessível das estruturas do ser-aí. (Enquanto proposições que estão indicando um έρμηνεύειν, elas possuem o caráter de indicação hermenêutica). Os enunciados sobre o tempo, de acordo com o seu sentido, não são jamais enunciados mundanos (HEIDEGGER, 2004, p. 322).

A passagem indica que uma proposição acerca de

posições categoriais fenomenológicas compartilha da mesma estrutura de uma proposição acerca dos entes mundanos, isto é, acerca do ser-aí. Por outro lado, difere de tais expressões pelo sentido. O sentido, como dissemos, é quando se conquista uma compreensão, que nada tem a ver com a mera apresentação de um ente subsistente. Segundo Reis, a indicação (Anzeige) é o significado formal da posição fenomenológico-categorial, cuja indicação aponta as posições prévias conforme determinadas por Heidegger. “Em termos intencionais, tais enunciados visam algo subsistente no mundo, porém, seu sentido será adequadamente entendido quando for tomado como uma indicação do ser-aí, como a indicação das estruturas do ser-aí e da temporalidade” (REIS, 2011, p. 120). A posição fenomenológica se caracteriza pelo modo de operação que consiste em indicar a compreensão e a apreensão conceitual das estruturas acessíveis em tal modo de compreensibilidade indicada (HEIDEGGER, 2004).

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Em outros termos, sua caracterização como posição fenomenológica implica na compreensão e conceituação das estruturas do ser-aí, tais proposições ou posições categoriais explicitam conceitos indicativos-formais, tais proposições se caracterizam como indicação hermenêutica. A condição necessária de tal operação compreensiva destas proposições categoriais consiste numa reorientação compreensiva, que deve seguir o horizonte indicado, no caso, as estruturas do ser-aí e as estruturas em geral, desviando-se e distinguindo-se dos enunciados acerca de intramundanos. A necessidade desta reorientação também tem o papel de evitar mal-entendidos acerca do enunciado, pois o enunciado compartilha das mesmas estruturas dos enunciados acerca dos entes. Esta reorientação é um modo de proceder fundamental numa investigação fenomenológica. A reorientação estabelecida como necessária na operação da compreensão em Heidegger, “não apenas está se valendo de uma distinção introduzida por Husserl em sua semântica das expressões sistematicamente ocasionais, mas, além disso, identificando o aspecto indexical da compreensão de proposições e conceitos ontológicos” (REIS, 2011, p. 120). A semântica dos indexicais tem o caráter de evitar certas ambiguidades que comprometem o entendimento lógico de nossa linguagem.

A exposição considerou os aspectos decisivos para a compreensão dos conceitos indicativo-formais; contudo, cabe explorar um pouco mais a presença de um elemento fundamental à indicação formal, referimo-nos à operação negativa de tais enunciados,

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cujo caráter é de cunho positivo. Para que seja possível um correto entendimento do sentido indicativo-formal, exige-se uma reorientação da compreensão em direção oposta aos intramundanos, isto é, um deslocamento da compreensão em direção às estruturas do ser-aí. Segundo Reis, “esta reorientação não é propriamente uma negação do enunciado, mas implica a negação de um enunciado metalinguístico acerca da referência da proposição indicativo-hermenêutica” (REIS, 2011, p. 121). O intérprete, por sua vez, aponta um elemento complicador desta operação negativa que consiste na consideração acerca da expressabilidade de tais conceitos, ou seja, a tendência a uma orientação dirigida para os intramundanos e isto recai sobre a base constitutiva da compreensão. Lembremos que, nos parágrafos anteriores, falamos das estruturas prévias constitutivas da compreensão e de seu caráter interpretativo segundo temáticas dadas de antemão e de sua conceitualidade determinada, este seria o ponto em que se consuma a confusão da tendência de orientação deslocada para tais objetos. Os conceitos indicativo-formais desempenham uma função de prevenção para tal tendência, mas esta prevenção, segundo Reis, exige algo mais do que uma diferenciação metalinguística; exige, sobretudo, uma mudança na situação do ser-aí.

Os enunciados indicativo-hermenêuticos também podem ser descritos como uma operação desvinculante, dado que a negação se projeta como um elemento nadificador. A operação nadificadora se projeta reorientada ao ser-aí, que, por sua vez, é a própria origem do vínculo normativo com os entes; a

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negação mostra que há uma dupla submissão normativa decorrente da formalização vinculada à compreensibilidade. “A tematização do modo pelo qual se dá a submissão aos sentidos de ser como um todo visaria à própria normatividade vigente na submissão vinculante às condições de inteligibilidade” (REIS, 2011, p. 127). De acordo com Reis (2011), este complexo estrutural visa um modo de entendimento que, além de seu aspecto relacional vertical de dependência constitutiva, contempla uma vinculação horizontal, ou seja, uma vinculação histórica. É assim que a formalização resultante da operação negadora capta a teleologia existencial. Qual seria o fundamento desta vinculação de dependência normativa? O intérprete explica que este fundamento é a própria temporalidade originária da existência. Enquanto a operação relacional ekstática da temporalidade sintetiza “a antecipação decidida e a retomada de uma herança modal passada, a negação indicativo-formal seria mostrativa de uma submissão a totalidades historicamente formadas” (REIS, 2011, p. 127-128). A operação nadificadora da negação indicativo-formal é dada na mudança de comportamento do ser-aí, a operação nadificadora da negação enquanto comportamento do ser-aí explicita as estruturas ontológicas da possibilidade e da transcendência, atuando como método conceitual de tal explicitação, com isto, os conceitos filosóficos tornam-se originariamente acessíveis.11

11 Cf. Reis (2011). “O ‘sentido fundamental’ dos conceitos filosóficos, na medida em que são ‘indicações formais’, baseia-se na percepção fenomenológica de que o objeto de uma

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A operação sistemática no pensamento indicativo-formal não se estabelece de modo direcionado a uma arquitetônica conforme Husserl empreende em suas distinções como, por exemplo, entre a generalização e a formalização, ao contrário, é exatamente disso que Heidegger se esquiva ao elaborar tal pensamento. O sistemático no pensamento indicativo-formal refere-se ao modo de operação das estruturas ontológicas da compreensão mesma, uma sistematização das inter-relações e seus princípios constitutivos, isto é, das condições de possibilidade da inteligibilidade dada de antemão. Nas palavras de Reis, “o sistemático refere-se a um aspecto relacional, em que a reorientação na compreensão em direção ao ser-aí liga um conceito indicativo-formal a uma abertura determinada” (REIS, 2011, p. 129). Sua conexão formal interna é originária e deriva do ser-aí mesmo, isso significa que esse tipo de conexão não provém de operações conceituais dadas por meio de dialéticas (HEIDEGGER, 1997).

A originalidade depende do encontro do ser-aí com si mesmo; a conexão é histórica e está oculta na própria história do ser-aí, ou seja, a história do ser-aí lhe é oculta devido à sua própria condição ontológica de velamento. Tal conexão conceitual interna é a historicidade (Geschichtlichkeit) do ser-aí; esta historicidade constitutiva do ser-aí é que estabelece um

interpretação deve ser articulado de modo que a determinação do objeto (em que sentido é), a maneira pela qual ele originalmente ‘a tem’, isto é, a maneira pela qual ele se torna originalmente acessível” (DAHLSTROM, 1994, p. 781).

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impedimento na extração de conceitos isolados12. O isolamento dos conceitos indicativo-formais demanda total desvinculação da historicidade e do campo de atenção dos entes intramundanos, o que significa que a desvinculação estabelecida pelo caráter nadificador da negação manifesta, “a posse e a perda de uma submissão normativa ao todo das condições do aparecer de algo como algo” (REIS, 2011, p. 129). Dito de outro modo, o ser-aí ganha-se em sua autenticidade ao desvincular-se de seu modo cotidiano de ser na lida com os entes intramundanos. Podemos observar como

12 Ser ‘histórico’, no sentido de Heidegger, é uma condição de ser tanto histórico quanto não histórico em sentido usual. A historicidade do ser-aí depende de seu acontecimento ou ‘historização’, o modo peculiar pelo qual ele se estende entre seu nascimento e sua morte. Uma montanha ou um cachorro possuem um passado que afeta sua condição presente. Mas ser-aí ‘é o seu passado’, atuando como atua na visão tácita de seu passado. Não cumpro promessas, não me arrependo de meus pecados ou voto no meu partido nas eleições por causa do efeito causal que possui sobre mim aquilo que fiz ou sofri no passado ou meramente para me assegurar de certos resultados desejáveis. Eu o faço em vista de minha coerência e integridade como uma pessoa que possui duração, com um passado e um futuro. Mas o ‘próprio passado do ser-aí [ ... ] sempre significa o passado da sua geração’. Ser-aí não é, portanto, simplesmente o seu ‘próprio’ passado, mas o passado da sua comunidade, tanto antes quanto depois do seu nascimento; seu acontecimento entremeia-se com o acontecimento de ser-aí passado. Ele ‘cresceu dentro de e em uma interpretação de ser-aí herdada’, em função da qual ele compreende a si mesmo e as suas possibilidades. Um filósofo precisa empreender uma destruição, uma inspeção crítica, desta tradição. A historicidade do ser-aí lhe dá acesso ao passado histórico, fornecendo assim a base para a historiografia (INWOOD, 2002, p. 85).

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Heidegger explica isso na seguinte passagem do volume 21 da Gesamtausgabe:

[...] se o ser-aí deve ganhar-se a si mesmo em sua autenticidade, e, portanto, se não deve estar primária e exclusivamente decaído em seu mundo, então é necessário que para ganhar-se a si mesmo o ser-aí deva já ter se perdido. Ele deve ter se perdido no sentido de que está na possibilidade de renunciar a toda posse e aquisição mundana (HEIDEGGER, 2004, p. 187-188).

O que Heidegger quer dizer nesta passagem

corrobora a afirmação do parágrafo acima, isto é, que o modo de vinculação mundana do ser-aí se efetiva pela conexão relacional normativa inerente ao seu modo de ser histórico. É, precisamente, a partir desta conexão relacional histórica que deve ocorrer a desvinculação do ser-aí para ganhar-se a si mesmo em sua posse autêntica. Com este movimento “recondutivo” da desvinculação, que, por sua vez, provém da nadificação, se estabelece a negação e, consequentemente, a estruturação e compreensão isolada de conceitos indicativo-formais. A partir da estrutura da compreensibilidade que o ser-aí mesmo é, se estabelece uma recondução da visada aos entes, para uma visada fenomenológica às estruturas de abertura e, por sua vez, para a possibilidade de uma investigação e descrição fenomenológicas (HEIDEGGER, 2004).

Segundo De Lara (2009), o conceito de fenômeno, em Heidegger, se cumpre efetivamente com a função de indicação formal que, por sua vez, é própria de todo conceito filosófico, que se mantém enquanto uma

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determinação formal e não regional do objeto que é tema da fenomenologia. O fenômeno dado através da operação formal-indicativa revela um modo peculiar de dirigir-se a algo, a um tempo sem que o mesmo seja transformado em objeto ou uma região de objetos. As direções de sentidos são indicadas pelo conceito que indica a objetualidade, este é unificado enquanto sentido captado a partir das três direções de sentidos. O fenômeno completo ou a intencionalidade em sua plenitude é uma indicação formal do objeto bem como do método da filosofia. Trata-se de expor em si mesmo o que não se manifesta através de generalidades.

Em Ser e Tempo Heidegger acentua o caráter da indicação formal tornando-a explícita na transição da primeira à segunda seção, momento no qual o filósofo assevera que as análises expostas na primeira seção foram incompletas e que as mesmas carecem de ser reconsideradas fenomenologicamente, somente assim se tem o acesso ao ser-aí em sua originariedade (DE LARA, 2012). Este modo de proceder nos lembra das observações de Husserl numa das passagens das Ideias I, na qual o fenomenólogo se reporta a Brentano dizendo que uma coisa é conhecer e classificar as estruturas, outra é descrevê-las fenomenologicamente. Considerações finais

Para concluir, citaremos uma passagem do

parágrafo 67 de Ser e Tempo que corrobora nossas considerações:

Para que os fenômenos obtidos na análise preparatória possam ser reconduzidos à visão fenomenológica,

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basta uma indicação a respeito dos estágios percorridos. A delimitação do cuidado resultou da análise da abertura do ser do “pré”. O esclarecimento deste fenômeno trouxe consigo a interpretação provisória da constituição fundamental do ser-aí, a saber, o ser-no-mundo. A investigação teve início com esta caracterização a fim de assegurar, desde o começo, um horizonte fenomenal suficiente frente às determinações ontológicas prévias do ser-aí, em sua maior parte inadequadas e não expressas (HEIDEGGER, 1997, p. 351, grifos nossos).

Segundo Aristóteles, o ser se diz em múltiplos

significados; a tarefa que Heidegger se propõe é descrever os múltiplos significados de ser, os quais exigem um acesso livre e direto tal como caracterizado pelo conceito de indicação formal empreendido na hermenêutica da faticidade enquanto um modo mais originário de autocaptação metadiscursiva.

Referências

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Hermenêutica da faticidade como subprojeto à ontologia heideggeriana

Maria Lucivane de Oliveira Morais

Introdução

O objetivo geral desse capítulo é discutir alguns aspectos da fenomenologia heideggeriana considerando sua obra Ontologia: Hermenêutica da Faticidade, uma preleção ministrada no semestre de verão de 1923, no decorrer de 13 sessões com duração de uma hora cada em Friburgo (Alemanha). Nela são apresentados alguns conceitos-chave de seu pensamento que seriam retomados e/ou refletidos mais atentamente em Ser e Tempo de 1927, dentre os quais se destacam: “fenomenologia”, “fenômeno”, “hermenêutica da faticidade”, “ser-aí” e “ser-no-mundo”. Para melhor compreendê-los utilizou-se como metodologia a análise bibliográfica das referidas obras e consulta em fontes secundárias. Dentre os resultados obtidos, destaca-se que a hermenêutica não é tomada por Heidegger em seu sentido tradicional como interpretação de textos. A hermenêutica da faticidade tem em vista o ser-aí, o existir humano, bem como a tendência natural que o ser possui em se velar e desvelar sendo necessário um estudo fenomenológico e hermenêutico atento para que o sentido do ser seja revelado. Contribui com o projeto de repensar a ontologia retirando os “entulhos” que propiciaram a

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confusão entre ente e ser, ser e ente no qual um foi tomado pelo outro obscurecendo as conclusões alcançadas. Por meio da destruição da tradição e da hermenêutica da faticidade são dados os passos iniciais necessários para a construção da ontologia fundamental proposta por nosso filósofo que, mais tarde, se somariam à analítica existencial apresentada em Ser e Tempo.

Martin Heidegger, também conhecido como “o filósofo do tempo” e um dos mais influentes do século XX, deixou uma vasta obra que nos alerta para um grande mal: “o esquecimento do ser” que em parte deve-se à tradição da ontologia, à tecnologia, à ciência e, consequentemente, ao niilismo instaurado. Em meio às diversas temáticas abordadas, escolheu-se discutir nesse texto sobre a hermenêutica que para ele não representa a interpretação de textos (embora ao longo dos séculos o conceito tenha passado por mudanças). Ao cunhar o termo “hermenêutica da faticidade” modificou sua tarefa, tendo em vista a interpretação da constituição ontológica do ser-aí, necessária para desvelar o ser dos encobrimentos que lhe foram atribuídos pela tradição da ontologia. Irá questionar e explicar a faticidade para tornar acessível o ser-aí próprio e em cada ocasião.

Em vista disso, o objetivo geral a ser alcançado é discutir alguns aspectos da fenomenologia heideggeriana considerando a sua obra Ontologia: Hermenêutica da Faticidade, embora tenham sido citadas passagens de outras publicações importantes como Ser e Tempo e Introdução à filosofia. Os objetivos específicos delineados são: analisar a fenomenologia e

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sua objetualidade; diferenciar o modo como a fenomenologia foi compreendida pelo seu criador Husserl e posteriormente por Heidegger; discutir alguns aspectos gerais da hermenêutica da faticidade e do ser-no-mundo.

As discussões em torno dessa temática13 justificam-se por ela constituir um dos pilares básicos da filosofia heideggeriana. Ao ser associada a “destruição” da ontologia tradicional e à analítica existencial (abordada sucintamente a seguir embora também tenha uma importância singular) corroboraram para a construção da ontologia fundamental proposta por nosso filósofo. A fenomenologia e sua objetualidade

Por meio de preleções ministradas no semestre de verão de 1923 as anotações de Heidegger e de dois de seus alunos deram origem à obra Ontologia: Hermenêutica da Faticidade na qual o filósofo teceu uma primeira formulação do que representaria o termo hermenêutica da faticidade, e nos deu subsídios para compreender os motivos que a fizeram tomar um sentido diferente daquele empregado pela tradição14. Tal empreitada era necessária para lançar luz sobre o modo como seria executada na obra Ser e Tempo,

13 Hermenêutica da faticidade. 14 Para isso, faz um retrocesso histórico e aborda, por exemplo, o sentido da hermenêutica nas obras de Platão, Aristóteles, Scheleiermacher e Dilthey, além de revistar os textos da tradição cristã na qual o hermeneuta assumiu um papel semelhante ao de um tradutor, fazendo com os que os textos bíblicos pudessem ser compreendidos adequadamente.

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publicada posteriormente, no ano de 1927, em conjunto com a analítica existencial do ser-aí e a “destruição” da ontologia tradicional para que o sentido do ser pudesse ser liberado dos encobrimentos que lhe foram atribuídos historicamente.

É necessário esclarecer que o termo “destruição” não implica em simplesmente aniquilar séculos de estudos desenvolvidos por filósofos diversos, mas em revisitar o passado, buscando eliminar os “entulhos” deixados pela tradição ontológica na qual o ente foi tomado pelo ser e o ser pelo ente. Também não assume o sentido negativo de arrasar a tradição, ao contrário, se dispõe a apontar seus aspectos positivos e os limites na forma como questiona e conduz a investigação sobre o ser.

Almeida (2011) afirma que os filósofos pré-socráticos refletiram profundamente sobre a questão do ser, conseguindo avançar sobre a questão fundamental sobre a qual tudo repousava, entretanto, as análises tecidas por Sócrates, Aristóteles e Platão foram um “desastre para essa filosofia profunda e integrada. Sob a influência deles, o pensamento filosófico cindira-se em entidades separadas. A tentativa de desemaranhar o ser dera lugar às análises simples e separadas da ciência natural, do pensamento político, da ética, da poesia e assim por diante”. Assim, o cerne da filosofia acabou reduzido à metafísica etérea. Gradativamente, com o passar dos séculos, a noção total de ser foi obscurecida havendo um “esquecimento do ser”. Aquilo que antes sustentava toda a filosofia foi esquecido, tratado como mera forma de ligação: “é”.

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Para que fosse alcançada a transparência que a questão do ser requeria, Heidegger concluiu que era necessária a destruição do acervo da antiga ontologia por meio da crítica e desmontagem das suas evidências petrificadas para “encontrar” o lugar originário em que os conceitos metafísicos nasceram e se tornaram tema da filosofia, apontando a insuficiência que os abrangeram ao longo da história e avançando na tarefa de pensar o ser e não o ente seguindo “o fio condutor da questão do ser até se chegar às experiências originárias em que foram obtidas as primeiras determinações do ser que, desde então, tornaram-se decisivas” (HEIDEGGER, 2013, p. 61). A crítica que resulta desse processo tem em vista não o passado, mas o “hoje” e os modos como a história15 tratou a ontologia, portanto, “a destruição não se propõe a sepultar o passado em um nada negativo, tendo uma intenção positiva. Sua função negativa é implícita e indireta” (HEIDEGGER, 2013, p. 61).

Os campos sedimentados pela tradição são oriundos de possibilidades abertas pelo passado, e sem os quais não haveria possibilidade de apreender uma questão enquanto tal, porque se colocaria fora do âmbito de sentido do que pode se manifestar como digno de questão. Em relação à pergunta sobre o ser, é justamente porque houve um empenho histórico e sistemático para sua resolução, que foi produzido um

15 Na obra Introdução a Filosofia, Heidegger esclarece que ao utilizar o termo história não tem em vista a ciência histórica, mas o acontecimento próprio do ser-aí. Ao mesmo tempo, alerta para o fato de que não é apenas filosofia que possui uma confrontação interna peculiar com a história.

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encurtamento de seu “horizonte essencial e um obscurecimento de novas possibilidades de problematização”. Estas evidências impulsionaram Heidegger a encontrar indícios acerca da necessidade de retomada pela questão do ser por meio de um comportamento crítico destrutivo.

Ao unir fenomenologia e hermenêutica, o “filósofo do tempo” deu um passo decisivo para interpretar o ser-aí como ser-no-mundo que se realiza historicamente. O sentido do ser será analisado pelo método fenomenológico que considera o contexto significativo no qual o ser-aí está imerso e que é acessível pela experiência do mundo circundante no qual lida com os utensílios e os entes à mão, dos quais faz uso em sua cotidianidade mediana. Como a faticidade é essencialmente histórica, existe a necessidade de evidenciar a estrutura ontológica deste ente (ser-aí) que é histórico e que é interrogado em vista de seu ser.

Quando a filosofia pergunta pelo ser, ela se concretiza como ontologia; entretanto, quanto ela questiona pelo sentido do ser cujo desvelamento dá-se a partir do ser-aí, passa a constituir uma ontologia fundamental. A tarefa da hermenêutica da faticidade por meio da destruição fenomenológica é o retorno à máxima “para as coisas elas mesmas” e, para isso, interpreta o único ente capaz de questionar o sentido do ser e das estruturas fundamentais de seu próprio ser: o ser-aí.

Na segunda parte da obra Ontologia: Hermenêutica da Faticidade, Heidegger nos situa sobre a história da fenomenologia e do fenômeno que é seu

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objeto de interesse. O fenômeno é “aquilo que se mostra como tal, em seu mostrar-se”. É “o modo de ser objetual de algo, um modo certamente privilegiado: estar presente de uma objetualidade por si mesma” (HEIDEGGER, 2013, p. 75). A compreensão de que o fenômeno designa “um modo privilegiado de ser ou estar objetualizado” conduz a “desvios em relação os outros modos de ser ou estar objetualizado do ente, modos não próprios, mas possíveis e de fato dominantes” (HEIDEGGER, 2013, p. 76). O método que se dedica ao estudo dos fenômenos, determinando o ente e o modo como se mostra na experiência, é a fenomenologia compreendida como um “modo particular de acesso, mas somente na medida em que se mostra” (HEIDEGGER, 2013, p. 76).

O encobrimento lançado sobre um determinado fenômeno decorre “de um ser ou estar familiarizado” que “é fruto de um ter ouvido falar, de uma aprendizagem” (HEIDEGGER, 2013, p. 82) consolidada em nossa cotidianidade mediana. Com a fenomenologia é possível retomar as objetualidades que aparecerem em uma perspectiva, determinando tal como se dão e atualizando o assunto em questão por meio da hermenêutica da faticidade.

Husserl e Heidegger: Duas fenomenologias?

Embora Heidegger tenha desenvolvido uma fenomenologia própria, sua criação deve ser creditada a Edmund Husserl e à sua obra Investigações Lógicas, que trouxe consigo a necessidade de tornar acessível um conjunto de investigações sobre as objetualidades

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que pertenciam ao âmbito da lógica. Husserl tomou de Brentano, seu mestre, o método descritivo, entretanto, avançou em relação à determinação fundamental e concreta da região das vivências, tendo o fenômeno da intencionalidade como uma linha de orientação segura para a investigação das vivências e dos nexos de vivências. Manteve o âmbito concreto de interesse, entretanto, mudou o modo como perguntar e determinar os fenômenos sobre os quais era necessário lançar luz. Compreendia que as matemáticas e as ciências naturais de caráter matemático consistiam no ideal de ciência que deveria servir de modelo para todas as outras. Contudo, Heidegger nos alerta para o fato de que existe em tal compreensão um preconceito e justifica: “as matemáticas são a ciência menos rigorosa de todas, uma vez que, o acesso nelas é muito mais fácil. As ciências do espírito pressupõem muito mais existência científica do que uma matemática jamais pode alcançar” (HEIDEGGER, 2013a, p. 60).

O afastamento de Heidegger das influências de Husserl decorre de alguns fatores como, por exemplo, o fato de que ele não reconhecia a história como tema de uma filosofia “rigorosa”. Em contrapartida, nosso filósofo nutria a necessidade de mostrar que o ser-aí não é e existe no mundo executando seu projeto existencial descolado do tempo. Ao recorrer ao conceito hegeliano concordou que “o espírito da vida enquanto tal é essencialmente espírito histórico, no sentido amplo da palavra”, sendo assim, “o espírito só pode ser concebido na plenitude de suas realizações, ou seja, de sua história [...]”, logo, a própria filosofia também é histórica. Por meio do questionar é possível

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voltarmos ao início da metafísica e retirar muitos conceitos do reino das sombras, avançando em sua interpretação (FIGAL, 2012, p. 15). Nesse sentido, “o ‘primeiro início’ e o ‘novo início’ são momentos no interior do movimento do conhecimento histórico” (FIGAL, 2012, p. 34).

Heidegger não compreende a fenomenologia como uma “ciência rigorosa”, mas um como da pesquisa, atualizando as objetualidades da intuição e falando delas apenas na medida em “que são e estão aí na intuição” (HEIDEGGER, 2013a, p. 80). A transformação da categoria temática fenômeno em uma categoria regional permitiu compreender suas objetualidades designadas como “vivências” e “nexos de consciência” - fenômenos que são a objetualidade da fenomenologia. As investigações fenomenológicas tornaram possível “falar de algo tal como esse algo se mostra e apenas na medida em que se mostra” – ação que desde Aristóteles a filosofia houvera esquecido (HEIDEGGER, 2013a, p. 79). Seu método fenomenológico deixa ver aquilo que estava obstruído no ser-aí permitindo o desvelamento do ser que passa a ser imediatamente aparente.

Nas obras publicadas por Heidegger, o ser emergiu como substituto da consciência pura, embora fosse abordado da mesma forma. Esse ser, era vazio de atos e objetos como a consciência que Husserl colocava entre parênteses sendo tratado como um fundamento que ultrapassa a ciência, a psicologia e, inclusive, a lógica, uma vez que seus assuntos podem ter sido sedimentados pela tradição culminando em seu encobrimento.

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Quando nos questionamos: Porque a fenomenologia tem em vista o ser? Como podemos explicar a necessidade de retomar essa questão? Porque a pergunta “o que é o ser” amplamente tratada pela tradição é equivocada e/ou não discutiu suficientemente o ser? A busca por resposta aponta para indícios publicados em Ser e Tempo na seguinte passagem: o “que, num sentido extraordinário, se mantém velado ou volta novamente a encobrir-se ou ainda só se mostra “distorcido”, não é este ou aquele ente, mas o ser dos entes. O ser pode encobrir-se tão profundamente que chega a ser esquecido, e a questão do ser e de seu sentido se ausentam”. Desse modo o “que, portanto, num sentido privilegiado e em seu conteúdo mais próprio, exige tornar-se o fenômeno é o que a fenomenologia tematicamente tomou em suas “garras” como objeto” (HEIDEGGER, 2013b, p. 75). É nessa seara que insere o projeto heideggeriano de construção de uma ontologia fundamental no qual o sentido do ser, torna-se a objetualidade da fenomenologia que se valerá da hermenêutica para se conectar à vida fática.

A hermenêutica da faticidade tornará possível definir o ser-aí como um permanente “tomar consciência de si a partir de si mesmo, um compreender-se como possibilidade que se torna consciente de seu ser possibilidade num processo desencadeado no interior dos fenômenos” (SARAMAGO, 2008, p. 31). Por meio da hermenêutica pode-se “questionar e explicar a faticidade” (HEIDEGGER, 2013a, p. 15) que se encontra em uma imersão espaço-temporal percebendo-se a partir do

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meio e não de fora. Com o esquecimento do ser, a humanidade se inseriu em uma superficialidade na qual mal tinha noção do que significava ser, vivia-se uma vida destituída de qualquer consciência essencial do que sua existência significava. Sua existência ou “condição de ser”, perdera toda a sua profundidade, já não tinha nenhuma ressonância. O conhecimento da condição de ser desapareceu lentamente, foi “soterrado” diante da mistura entre conhecimento científico e tecnológico que marcava a imediatez existencial desse ser lançado no mundo, até que finalmente, o esquecimento do ser culminasse no niilismo e na existência de um mudo dominado pela tecnologia.

Em meio a esse quadro desolador, Heidegger desenvolve sua fenomenologia com a proposta de tornar acessível o ser-aí próprio em cada ocasião, em seu caráter ontológico de ser-aí mesmo, compreendendo a existência e interpretando o sentido do ser faticamente (KAHLMEYER-MERTENS, 2005). O privilégio ontológico do ser-aí se funda na possibilidade de compreender o sentido do ser e a si próprio na medida em que existe, ou seja, é o existente que somos. Para isso, toma como metodologia para sua descrição fenomenológica a interpretação, ou seja, a hermenêutica que desvendará o sentido do ser e as estruturas fundamentais do ser-aí, abrindo o horizonte de uma investigação ontológica.

Nas obras Ontologia: Hermenêutica da Faticidade e Ser e Tempo a hermenêutica ultrapassa o âmbito tradicional do ato de interpretação de textos, avançando sobre um novo domínio: o da própria

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existência, possibilitando “[...] um ‘trazer à tona’; um ‘resgatar’ pela compreensão – e interpretação – de todo o processo de manifestação, ou do deixar manifestar-se do ser dos entes; era o ato mesmo de deixá-lo aparecer, iluminar-se” (SARAMAGO, 2008, p. 34). Figal (2016, p.38) a define como “[...] a interpretação-de-si do ser-aí e, com isso, expressão da sua particularidade presente em meio ao questionamento de volta ao início; ela é, em outra formação de Heidegger estar-alerta do ser-aí para si mesmo”. Possibilita um retorno ao início e, consequentemente, um lançar luz sobre a estrutura fundamental do ser-aí que ficou encoberta; esse retorno é uma etapa “preparatória” para a destruição da tradição cujo trabalho inicial nos remete a Aristóteles, sobretudo o livro sexto da Ética a Nicômaco.

A fenomenologia é o método, o procedimento de investigação articulado à hermenêutica da faticidade que se dirige para o ser-aí que é compreendido e interpretado no âmbito de sua existência. Uma “hermenêutica da existência humana, portanto, se esforça por compreender o contexto historicamente consolidado do qual os entes são compreendidos e o ente que se manifesta nesse horizonte”, por isso, a ontologia fundamental passa “por uma analítica existencial, exame do ente (ser-aí) que compreende ser” (KAHLMEYER-MERTENS, 2005, p. 65).

Almeida (2011, p.339) afirma que a obra heideggeriana lança luz no fato de que “existir é interpretar. Somos, enquanto ser-aí, interpretação e pertencer ao ser é o mesmo que compreender o ser. Essa compreensão que temos, a priori, do ser, Heidegger chama de ontologia fundamental”. A

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hermenêutica, ao possibilitar a interpretação ontológica do ser, permite a construção da existencialidade da existência por meio da analítica existencial do ser-aí que se encontra no “horizonte para a compreensão e possível interpretação do ser” (HEIDEGGER, 2013b, p. 79). Portanto, a hermenêutica irá tornar acessível o próprio ser-aí em seu caráter de ser esse mesmo ser-aí, possibilitando um autoestranhamento que, por sua vez, permitirá compreender-se.

A obra Ontologia: Hermenêutica da Faticidade traz a seguinte definição: a “hermenêutica tem como tarefa tornar acessível o ser-aí próprio e em cada ocasião em seu caráter ontológico de ser-aí mesmo, de comunicá-lo, tem como tarefa aclarar essa alienação de si mesmo de que o ser-aí é atingido” (HEIDEGGER, 2013, p. 21). Essa compreensão tem em vista o ser-aí que está desperto para si mesmo. Há, uma intima relação entre hermenêutica e faticidade, pois, o tema da “investigação hermenêutica é o ser-aí próprio em cada ocasião, e justamente por ser hermenêutico questiona-se sobre o caráter ontológico a fim de configurar uma atenção a si mesmo bem enraizada” (HEIDEGGER, 2013, p. 22).

Como o caráter ontológico do ser consiste em encobrir-se e velar-se, cabe a hermenêutica da faticidade interpretá-lo em conformidade ou em vista de algo, por isso, a “posição prévia, a ser interpretada, deve ser buscada na rede de objetualidades. Para isso, afastar-se-á do que se encontra mais próximo no assunto que está em jogo para ir em direção ao que reside em seu fundo” (HEIDEGGER, 2013, p. 84). Seu

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progresso será visualizado, apenas a partir de sua objetualidade. Concomitantemente, ocorre a compreensão do ser-aí e do sentido de ser, pois apenas porque o ser-aí já possui uma pré-compreensão do que irá interpretar que essa tarefa se torna possível. Heidegger afirma que a “interpretação nunca é a apreensão de um dado preliminar isenta de pressuposições”, e essa compreensão irá atuar dentro do circulo hermenêutico de maneira inseparável da existência do ser-aí que se dá no âmbito do mundo, em um determinado contexto histórico demarcado pela temporalidade.

O tempo é tratado por Heidegger com vistas à sua dimensão ontológica originária que se funda no ser-aí. O tempo “não possui o seu ser no agora ou na sequência de ‘agoras’, mas no caráter essencialmente futuro do ser-aí”; é isso o que irá evidenciar sua experiência em relação à história e à historicidade que acontece em nós mesmos (GADAMER, 2012, p. 272). O tempo é o horizonte possível para a compreensão do ser em geral e de seus diversos modos de ser. A existência é dinâmica implicando em ser a cada instante. Dela são engendrados os existenciais, estruturas ontológicas que possibilitam a análise do ser-aí na situação; são componentes ontológico-existenciais constitutivos do ser da existência humana. Dentre eles emerge o conceito de mundo com uma particular importância na obra heideggeriana.

Imediatamente quando se pensa em mundo nos vem à “mente” uma estrutura física, com demarcações territoriais, políticas e físicas, constituído por um conjunto de entes simplesmente dados, entretanto, o

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que Heidegger tem em vista é sua compreensão como uma região ontológica na qual o ser-aí existe, sendo lançado, sempre na maioria das vezes de forma abrupta e no qual realiza suas possibilidades de ser. O ser-aí é e existe enquanto ser-no-mundo. Quando Heidegger se volta à existência humana, o ser-no-mundo é o primeiro existencial que surge. O interpretado: “ser-aí é o ser em um mundo”

Na indagação hermenêutica são trazidos à tona

alguns traços fundamentais do ser-aí que

fala de si mesmo e a si mesmo, quer dizer, como se faz presente a si mesmo diante de si e se mantém nessa presença. Nesse ter-se-a-si-mesmo-aí, assim caracterizado, o ser-aí se vê na consciência histórica (HEIDEGGER, 2013, p. 85).

O acesso e o lidar com o ente é chamado por

Heidegger de posição prévia que, por sua vez, possibilita a aproximação e riqueza da descrição hermenêutica do fenômeno que tem em vista. A posição prévia permite formular seguinte indicação formal que irá orientar o curso da visão que conduz a ela: “o ser-aí (vida fática) é ser num mundo”. Sabe-se que o ser-aí é em sua ocasionalidade, entretanto, ela o permite se apresentar de múltiplas formas, por isso, é necessário vê-lo em sua cotidianidade que caracteriza a temporalidade do ser-aí (posição prévia).

Para Kahlmeyer-Mertens (2015, p. 85): o ser-no-mundo é o existencial que indica “como o ser-aí é no espaço constitutivo do mundo e, em verdade, é

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enquanto ser-no-mundo que já sempre encontramos o ser-aí, isso quer dizer que ser-aí é sempre no aí que o mundo constitui”. O mundo resguarda em si o caráter ontológico. É ocupado pelo ser-aí que o compreende como mundo circundante, mostra-se como de-quê a vida fática vive e nos permite compreender fenomenologicamente o “em um mundo”. “O modo como isto ou aquilo vem ao encontro é entendido pelo que é designado de significância. A significância é um como do ser, e nele centra-se precisamente o categorial do mundo do ser-aí” (HEIDEGGER, 2013a, p. 91), termo que corresponde tanto ao ser do mundo como ser da vida humana.

Em Introdução à Filosofia, Heidegger destaca que “a ligação com o mundo é um traço essencial do ser-aí mesmo e, porque não dizer, é a sua constituição essencial marcante. Ser-aí não significa nada senão ser-no-mundo”. A menção do ser-aí já deve ser feita tendo sempre em vista que ele é ser-no-mundo e que a este ser-no-mundo pertence à compreensão de ser, uma propriedade concomitantemente articulada à essência do homem (HEIDEGGER, 2008, p. 326).

O mundo vem ao encontro em forma de ocupação com caráter próximo e imediato, que na cotidianidade o caracteriza como mundo circundante que, por sua vez, permite determinar o significado ontológico do ser “no” circundante do mundo. Na cotidianidade, o ser-no-mundo está voltado para os entes do mundo (intramundanos), ao mesmo tempo em que, se comporta junto aos entes que vêm a seu encontro no mundo e/ou deles faz uso.

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Na cotidianidade mediana percebemos o mundo e seu contexto de familiaridade no qual estão o ser-aí e os entes intramundanos. O ser-aí é lançado em um demorar-se junto a... marcado pela temporalidade. É no mundo que irá projetar suas realizações por meio de ocupações cotidianas. Ser-no-mundo

não quer dizer: aparecer entre outras coisas; significa, porém: ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro, demorar-se nele. O próprio modo de ser-no-mundo é o cuidado (HEIDEGGER, 2013, p. 107).

Esse mundo é um mundo compartilhado e um

mundo próprio que permite ao ser-aí encontrar-se, exercer sua possibilidade de poder-ser frente ao projeto existencial que delimitou, sendo e agindo. Esse ser-no-mundo experimenta impessoalmente seu existir, pois desde sempre está

imerso em um conjunto de comportamentos e opiniões normatizadas, cujas principais características seriam o nivelamento e desencargo para qualquer tarefa existencial (KAHLMEYER-MERTENS, 2005, p. 149).

O ser-aí pode simplesmente se “acomodar” e

reproduzir um modelo de vivencias aceito socialmente, existindo de um modo prescritivo no qual a existência fatual imediata se funda em um padrão adotado que, inclusive, orienta seu projeto existencial com vistas ao que a cotidianidade mediana institui. Apesar disso, é importante e necessário ressaltar que esse ser-no-mundo não é um ente simplesmente dado, mas um

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poder-ser, mesmo que no início e na maioria das vezes não perceba. Tal temática deveria ser aprofundada, entretanto, por hora detenho-me nestas reflexões a serem retomadas em outro momento. Considerações finais

As discussões anteriores apontam para o fato de que Heidegger se ocupou com a necessidade de compreender o sentido do ser. Ao longo da década de 1920 produz diversas obras, dentre as quais foram destacadas a Ontologia: Hermenêutica da Faticidade na qual foram apresentados conceitos preparatórios e melhor desenvolvidos em Ser e Tempo na qual colocou em movimento três subprojetos: a destruição da ontologia tradicional, a hermenêutica da faticidade a analítica existencial, que conjuntamente concretizariam sua ontologia fundamental e libertariam o ser dos seus encobrimentos.

A destruição da história da ontologia é necessária para que sejam retirados os encobrimentos lançados sobre o ser possibilitando a construção de um novo tratamento sobre essa questão, ao tornar possível superar a camada calcificada nos comportamentos cotidianos e reconduzir esses comportamentos aos seus contextos originais. A destruição implica em liberar o que foi incessantemente impensado pela ontologia e/ou não discutido suficientemente, afinal, naturalmente o ser se vela, desvela, obstrui-se, não se mostra totalmente.

A hermenêutica da faticidade tem como objetivo evidenciar a constituição ontológica do ser-aí por meio

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de sua interpretação, ou seja, torna o ser-aí acessível em cada ocasião. De um lado, o ser-aí é o objeto da interpretação e, por outro, ele próprio é intérprete e comunicador da interpretação, afinal em sua própria constituição, a faticidade é um “ter-de-ser-na-interpretação”. Ao analisar o ser-no-mundo o permite interpretar-se- a si mesmo, se projetar em vista de suas possibilidades e daquilo que vem a seu encontro. Irá liberá-lo dos encobrimentos no qual a tradição o lançou para que seu ser possa se desvelar e, consequentemente, o sentido do ser possa ser compreendido.

Referências ALMEIDA, R. T. A hermenêutica-ontológica heideggeriana. Artigo apresentado para a aferição na disciplina Teoria do Direito II, ministrada pelo Prof. Cleyson de Moraes Mello – Mestrado em Direito da UNIPAC – 2011. FIGAL, G. Oposicionalidade – O elemento hermenêutico e a filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. GADAMER, H.-G. Hegel-Husserl-Heidegger. Trad. Marco Antonio Casanova. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. KAHLMEYER-MERTENS, R. S. Filosofia primeira: estudos sobre Heidegger. Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2005. ___________. 10 lições sobre Heidegger. Petrópolis, RJ; Vozes, 2015.

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HEIDEGGER, M. Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. 2 ed. Trad. de Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013a. ___________. Ontologie. Hermeneutik der Faktizität. In: GA 63, (Frühe Freiburger Vorlesung Sommersemester 1923), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1988. ___________. Sein und Zeit. In: GA 2, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt, V. Klostermann Verlag, 1977. ___________. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2013b. ___________. Introdução à filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova, São Paulo: Martins fontes, 2008. SARAMAGO, L. A topologia do ser: lugar, espaço e linguagem no pensamento de Martin Heidegger. Rio de Janeiro: PUC-RJ; São Paulo: Loyola, 2008.

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Sexto Capítulo

A autointerpretação como “giro existencial” da hermenêutica na fenomenologia de Martin

Heidegger

Katyana Martins Weyh

Introdução

O presente capítulo pretende investigar o tema da hermenêutica da faticidade no pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976). Para chegar a tal, nos ocupamos das obras Ontologia: Hermenêutica da Faticidade (1923) e Ser e Tempo (1927) a fim de investigar a questão a partir de tal problemática: como se dá a virada existencial da hermenêutica na fenomenologia de Heidegger? A partir desse problema, temos o objetivo de compreender em que medida a hermenêutica da faticidade atua no âmbito da ontologia fenomenológica e, mais especificamente, da analítica existencial do ser-aí. Julgamos que a hermenêutica da faticidade vem a constituir parte importante do projeto filosófico heideggeriano e acompanha seu pensamento desde as pesquisas mais iniciais até seu pensamento tardio.

Comecemos por investigar a questão da hermenêutica como compreendida em sua concepção clássica16. No período moderno, a hermenêutica era

16 Quando falamos em concepção clássica da hermenêutica temos em vista filósofos que se dedicaram a essa temática antes da fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Dentre eles podemos

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compreendida como “a arte da interpretação”17, principalmente a interpretação de textos ligados à teologia, como é o caso das Escrituras. A interpretação era recorrente em dois sentidos: como enunciação e como tradução (GRONDIN, 2012, p.18). Nesses casos, a interpretação dizia respeito ao “método ou a operação que permite alcançar o entendimento do sentido” (GRONDIN, 2012, p.17). Ou seja, a hermenêutica servia como caminho para chegar a determinado fim ou mesmo como instrumento de investigação filosófica e filológica. Além de estar relacionada à interpretação e ao entendimento do sentido dos textos, a hermenêutica também foi empreendida enquanto fundamento metodológico no que diz respeito à reflexão no âmbito das ciências humanas.

Heidegger era conhecedor dessa tradição e sem dúvidas foi influenciado por ela. No entanto ele não é considerado um mero seguidor dessa doutrina, mas vai além dela na medida em que dá um novo sentido à concepção de hermenêutica. Apesar de ser um simpatizante da hermenêutica clássica, não era sua intenção desenvolver uma metodologia da interpretação de textos ou das ciências.

Seu interesse pela hermenêutica era outro e esse começou a ficar evidente a partir de cursos ministrados entre 1919 e 1927, em que a temática é apresentada e desenvolvida, mas é no curso intitulado Ontologia: Hermenêutica da Faticidade, que a temática surge com mais evidência. Heidegger não pensa a hermenêutica à

citar Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e Wilhelm Dilthey (1833-1911). 17 Do verbo hermeneuein.

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maneira clássica e dá um passo adiante ao inserir no meio filosófico uma hermenêutica fenomenológica, cujo tema central é a vida fática (faktisch Leben)18. Já imerso na tentativa de reformular a ontologia a partir da retomada da questão do sentido do ser, Heidegger pretende orientar a fenomenologia a partir da ontologia fundamental.

Ao iniciar o curso19, Heidegger pretende inserir sua ideia de ontologia e adverte: “‘Ontologia’ significa doutrina do ser (HEIDEGGER, 2012, p. 7).” Essa sentença categórica logo no início do curso quer chamar a atenção para a instrução de que a indagação que se segue não diz respeito a uma disciplina ou teoria, mas sim ao questionamento do ser enquanto tal. Ontologia nesse caso não pretende designar uma teoria nem deve ser compreendida como a ontologia tradicional que teve em vista uma região determinada do ser20. A ontologia deve ser pensada a partir de uma

18 Nos contextos de Ontologia: Hermenêutica da Faticidade, Heidegger utilizava a expressão “vida fática” para se reportar à existência do ser-aí. Porém, com receio de ser mal interpretado (por existirem muitas correntes associadas ao biologismo e ao vitalismo na época), Heidegger abandona o termo “vida” e, mais tarde, passa a utilizar o termo ser-aí. 19 Ontologia: Hermenêutica da Faticidade (1923). 20 A ontologia tradicional é desconstruída por Heidegger uma vez que cometeu o equívoco de compreender o ser como mais um ente (aquilo que é). Para Heidegger há uma insuficiência fundamental na ontologia tradicional e devido a isso é preciso reinserir a questão do ser por intermédio de seu sentido. Pensar a ontologia a partir dessa pergunta originária será o fundamento de base para uma nova ontologia, denominada por Heidegger de ontologia fundamental.

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nova base, ou seja, a partir da reinserção da questão do sentido do ser.

A partir de tal reflexão Heidegger introduz sua ideia de hermenêutica da faticidade ao afirmar que “Faticidade é a designação para o caráter ontológico de ‘nosso’ ser-aí ‘próprio’. Mais especificamente, a expressão significa: esse ser-aí em cada ocasião” (HEIDEGGER, 2012, p. 13). Ser-aí (Dasein) é o termo cunhado por Heidegger para descrever o fenômeno humano, o modo de ser do ente que nós mesmos somos.

A faticidade, nesse caso, é compreendida como caráter de ser de fato do ser-aí em seu modo de ser ocasional, ou seja, o ser-aí em cada ocasião é o modo de ser que sempre e a cada vez somos. Eis então a explicação para o complemento do título do curso: Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. Ontologia compreendida por Heidegger como doutrina do ser só pode ser compreendida e questionada pelo ser-aí ocasional, uma vez que esse é o único ente que pode compreender ser e questionar o seu sentido. Nesse contexto, a hermenêutica da faticidade elaborada por Heidegger.

[...] tem como tarefa tornar acessível o ser-aí próprio em cada ocasião em seu caráter ontológico do ser-aí mesmo, de comunicá-lo, tem como tarefa aclarar essa alienação de si mesmo de que o ser-aí é atingido. Na hermenêutica configura-se ao ser-aí como uma possibilidade de vir a compreender-se e de ser essa compreensão. Tal compreensão, que se origina na interpretação [...] não é nenhum entreter-se com... (intencionalidade), mas um como do ser-aí mesmo;

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deve ser fixado terminologicamente como o estar desperto do ser-aí para si mesmo (HEIDEGGER, 2012, p.21).

Conforme a citação, entendemos que o ser-aí

pode encontrar-se em um estado de alienação, ocasionado a partir da sua pré-compreensão de ser. Na medida em que o ser-aí se perde na impessoalidade e, imerso à lida cotidiana, compreende ser de modo mediano, há o esquecimento do ser em seu sentido mais originário. Sendo o ser-aí o ente que esquece ser, a ele é também possível a retomada da própria questão. Heidegger compreende então que na hermenêutica da faticidade o ser-aí pode compreender-se enquanto diferente dos demais entes na medida em que pode interrogar pelo sentido de ser. Ou seja, ser-aí compreende ser e compreende essa compreensão da qual faz parte.

Esse movimento de compreensão é uma característica do modo de ser do ser-aí e se mostra na medida em que há uma relação do ser com o ser-aí e do ser-aí com seu ser. Assim, entendemos esse movimento como uma “relação recíproca entre ser e homem”, denominado por Heidegger de “círculo hermenêutico” (RICHARDSON, 2003, p. 506). Essa relação, portanto, não deve ser entendida como o dualismo “sujeito-objeto” em que um interpreta o outro, pois não há de um lado o método e de outro um objeto a ser analisado. Pelo contrário, a hermenêutica da faticidade se constitui enquanto “método” para autointerpretar-se, ou seja, a hermenêutica interpreta a si mesma como faticidade. Devido a isso, compreendemos a hermenêutica da faticidade como

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círculo hermenêutico, ao passo que ela se constitui enquanto o próprio procedimento de investigação de si mesma. Conforme afirma Heidegger (2012):

Assim, pois, a relação entre hermenêutica e faticidade não é a que se dá entre apreensão da objetualidade e a objetualidade apreendida, à qual aquela somente teria de ajustar-se, mas o interpretar mesmo é um como possível distintivo do caráter ontológico da faticidade. A interpretação é algo cujo ser é o ser da própria vida fática (p. 21-22).

A interpretação fática que o ser-aí faz de si mesmo

é, então, compreendida como autointerpretação na medida em que ser e ente são copertinentes um ao outro. Tendo isso em vista, a hermenêutica da faticidade traz uma nova forma de interpretação justamente por interpretar sua própria condição existencial. Há uma mudança em relação às concepções clássicas de hermenêutica, pois

A fenomenologia hermenêutica de Heidegger deve entender-se como uma tentativa de articular conceitualmente a compreensão que a vida tem de si mesma (ESCUDERO, 2010, p. 29).

E é nesse sentido que a hermenêutica deixa de ser

simples interpretação e passa a ser a interpretação singular da faticidade do ser-aí próprio.

Essa mudança de sentido, denominada por nós como “giro hermenêutico” (viravolta ou virada) mostra a especificidade do pensamento de Heidegger ao trazer à interpretação ao contexto existencial do ser-aí na

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medida em que “A filosofia parte da “hermenêutica do ser-aí”, já que todo questionamento filosófico surge da existência e para ela retorna” (INWOOD, 2002, p. 80). Desse modo, a hermenêutica da faticidade se constitui na medida em que se mostra como compreensão da própria constituição ôntico-ontológica do ser-aí.

Tendo consolidado esse pensamento, Heidegger não abre mão da hermenêutica da faticidade e segue elaborando seu projeto fenomenológico a partir do sólido terreno hermenêutico. Devido a isso, a hermenêutica da faticidade enquanto interpretação da existência veio à tona também no tratado de 1927, intitulado Ser e Tempo, em que Heidegger pretendia mostrar os fundamentos-base da ontologia fundamental. Nesse contexto, a hermenêutica da faticidade encontra-se alicerçada à ontologia fundamental, na medida em que é parte essencial neste projeto.

Há, porém, uma diferença terminológica do curso Ontologia: Hermenêutica da Faticidade para a obra Ser e Tempo em que “Heidegger nomeia formalmente seu tópico ‘Ser-aí’ ao invés de ‘vida fática’” (KISIEL, 1993, p.274). No curso ministrado em 1923, a terminologia “ser-aí” já se encontrava presente, no entanto, ainda oscilava com o termo “vida fática”. Já em 1927, o termo vida fática deixa de aparecer e dá vez ao termo ser-aí. Embora apareça poucas vezes a expressão faticidade, a ideia da interpretação fática do ser-aí está presente de modo bastante visível na obra.

Heidegger não abandona a autointerpretação do ser-aí, muito pelo contrário, dá ênfase a essa interpretação na medida em que ela é um fenômeno

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fundamental da existência humana e compreende em Ser e Tempo que “Existir é sempre um fato. Existencialidade determina-se essencialmente pela faticidade” (HEIDEGGER, 2002, p.257). Ou seja, a faticidade se revela sendo à própria existência do ser-aí que nós mesmos somos e é tarefa interpretativa da hermenêutica compreender esse movimento em que compreendemos nosso existir e nossa compreensão. Nesse sentido a hermenêutica da faticidade é o que determina nossa existencialidade, ou seja, nosso existir. Essa determinação fática é primordial e intrínseca à nossa condição de existência e não deve ser entendida como uma determinação que limita a abertura de mundo do ser-aí. A hermenêutica da faticidade

[...] se move essencialmente na esfera da compreensão pré-ontológica que a vida humana tem do seu próprio ser. Neste sentido, a hermenêutica fenomenológica desenvolve as condições de possibilidade de toda investigação ontológica. A verdadeira tarefa hermenêutica consiste em alcançar um adequado acesso metodológico para a abertura originária da vida (ESCUDERO, 2010, p. 392). No entanto, esse acesso metodológico para uma

abertura originária nada tem a ver com o método, tal como compreendido como meio racional para chegar a determinado fim ou como processo investigativo para chegar a uma verdade absoluta. O método que Heidegger pretende alcançar é o “método” fenomenológico como novo modo de investigação ontológico-existencial. Ao reconhecer que a interpretação não deve se orientar pelos moldes

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tradicionais, Heidegger percebe que também a investigação deve partir de uma nova base que possa orientar de modo satisfatório sua ontologia fundamental.

Dito isto, indagamo-nos: qual seria então o estatuto desse acesso metodológico que possibilita a abertura originária da “vida”? Heidegger nos mostra que esse “método” fenomenológico é herdado de seu mestre Edmund Husserl e diz respeito à investigação dos fenômenos. Fenomenologia diz “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo” (HEIDEGGER, 2002, p. 65). A fenomenologia como novo modo de investigação pretende compreender o fenômeno em sua mostração tal como ele é, ou seja, sem pré-visões e pré-conceitos. Na investigação fenomenológica não há um objeto de investigação analisado por um sujeito do conhecimento. Há, diferentemente, uma compreensão do fenômeno que se mostra e do seu movimento de mostrar-se.

A fenomenologia não busca analisar e explicar um determinado objeto e sim, compreender e descrever fenomenologicamente o fenômeno que se deixa mostrar em seu sentido. Porém, o fenômeno se deixa mostrar para um ente específico, o já referido interrogado pela questão do sentido do ser, o ser-aí. Desse modo podemos compreender que há um gesto hermenêutico21 na fenomenologia de Heidegger, pois o que está em questão é o ente capaz de investigar e compreender a si mesmo enquanto se mostra em sua

21 E nesse sentido Heidegger vai além de Husserl, ao pensar fenomenologia como hermenêutica.

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faticidade. O ser-aí, nesse caso, é capaz de investigar e compreender sua constituição ontológico-existencial na medida em que existe.

Por isso, deixar e fazer ver o fenômeno que se mostra diz respeito à tarefa hermenêutico-fenomenológica que o ser-aí tem ao autointerpretar-se como um ente de possibilidades. A partir de tal pensamento podemos compreender porque há a necessidade desse acesso metodológico para que se compreenda a abertura de mundo possível ao ser-aí. Não havendo determinações que obscureçam o caráter de poder-ser, o ser-aí se mostra como um ente que existe aberto às possibilidades de ser o que é.

A tarefa de uma fenomenologia, então, não deve ser compreendida como metodológica em sentido tradicional, mas pode ser entendida como uma atitude ou postura fenomenológica, na mediada em que

envolve uma mudança que nos permite suspender os julgamentos implícitos que sempre fazemos antecipadamente acerca de como as coisas devem ser e como elas devem se mostrar, de maneira que possamos vê-las tal como elas efetivamente aparecem (GREAVES, 2012, p. 21-22).

Cabe ao ser-aí, portanto, empreender tal tarefa,

uma vez que somente ele pode compreender o fenômeno que se mostra e o seu movimento de mostração, inclusive compreender-se a si mesmo. Uma vez mais podemos notar a presença do círculo hermenêutico da autointerpretação em que o ser-aí compreende a si mesmo como ente que compreende ser. Ao inserir a questão da fenomenologia como

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postura filosófica, a hermenêutica enquanto investigação se apresenta de modo concreto, no entanto, só chega à sua elaboração mais precisa a partir do momento em que Heidegger caracteriza o projeto da analítica existencial22.

A analítica existencial, ou analítica do ser-aí, é compreendida em Ser e Tempo como a tarefa que o ser-aí tem de analisar o ente que ele mesmo é. Essa análise não significa analisar o ente em suas regiões de ser, a ponto de fragmentar o fenômeno e o decompor em partes23. Esse é um modo de analisar próprio das ciências, o qual Heidegger critica antes mesmo de apresentar sua analítica existencial. Para o filósofo, primeiro é necessário limpar o terreno para iniciar em solo firme a investigação ontológica. Como diz Heidegger, a analítica existencial tem a função de

[...] evidenciar a unidade original da função da capacidade de compreensão [...] a tarefa de mostrar o todo de uma unidade de condições ontológicas. A analítica como analítica ontológica não é um

22 A esse respeito entendemos que em Ser e Tempo, a analítica existencial se mostra como um desdobramento do projeto da hermenêutica da faticidade desenvolvido inicialmente em Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. 23 O ser-aí não pode ser analisado em suas regiões de ser porque não é objeto de pesquisa, tal como compreendido pelas ciências em voga na época. Embora fosse uma postura recorrente, Heidegger se afasta desse modelo e critica as ontologias regionais por compreenderem o ser-aí sempre a partir de uma parcela de sua existência. Por isso ser-aí não pode ser entendido aqui como homem, alma, sujeito, consciência e nenhuma outra denominação que se encarregue de definir e encobrir o verdadeiro sentido da sua existência.

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decompor em elementos, mas a articulação da unidade de uma estrutura. Esse é o fator essencial no meu conceito “analítica do ser-aí” (HEIDEGGER, 2009, p. 154).

A articulação da unidade de uma estrutura diz

respeito à estrutura ôntico-ontológica do próprio ser-aí que compreende e questiona ser. Na analítica existencial, portanto, o ser-aí não pode ser definido nem analisado em contextos isolados, ele só pode ser compreendido a partir de sua determinação existencial. Sendo assim, o traço constituinte que marca sua existência é a abertura de mundo em que ser-aí se constitui como poder-ser possível.

Ao apresentar a analítica existencial, Heidegger rompe com a ideia de que o ser-aí é um ente simplesmente dado, uma coisa, ou um mero objeto. O ser-aí como modo de ser privilegiado deve ser compreendido a partir de sua faticidade enquanto ente que existe e ao existir compreende sua existência e suas possibilidades de ser. Por isso, afirma Heidegger:

A “essência” da pre-sença24 está em sua existência. As características que se podem extrair deste ente não

24 Optamos por traduzir o termo Dasein por ser-aí, uma vez que nos parece ser a tradução mais próxima do original e também por ser a tradução mais comum entre os estudiosos de Heidegger no Brasil. Julgamos, no entanto, ser ainda melhor pensar no termo Dasein com a expressão ser-o-aí, uma vez que essa expressão nos ajuda a compreender e a descrever a condição de ser → aí no mundo e nos distancia de más compreensões que possam entender o termo como uma justaposição em que um esteja dentro do outro. O próprio Heidegger chega a sugerir que o termo

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são [...] “propriedades” simplesmente dadas de um ente simplesmente dado que possui esta ou aquela “configuração”. As características constitutivas da pre-sença são sempre modos possíveis de ser e somente isso. Toda modalidade de ser deste ente é primordialmente ser. Por isso, o termo “pre-sença”, reservado para designá-lo, não exprime a sua quididade como mesa, casa, árvore, mas sim o ser (HEIDEGGER, 2002, p. 77-78).

A existência como traço “essencial” e

característico do ser-aí é a sua única determinação possível, pois é reconhecida como determinação ontológica fundamental e não como determinação que limita suas possibilidades de ser. Assim, compreendemos que a essência do ser-aí está em sua existência e que ele já sempre se mostra como um ente privilegiado que indica a abertura de mundo. A abertura de mundo diz respeito à falta de determinações positivas do ser-aí, uma vez que ele é pura possibilidade, ou seja, não pode ser compreendido como algo que simplesmente está no mundo, mas sim como um ente que existe e que compreende sua existência.

Entendemos, portanto, que nesse sentido a analítica existencial e a hermenêutica da faticidade não podem ser compreendidas como coisas distintas, pois uma é o pleno desdobramento e complemento da outra. Ambas fazem parte e inauguram o projeto da ontologia fundamental em que Heidegger pretende

Dasein seja traduzido para o francês como “être le là” (ser o aí), como afirma DASTUR & CABESTAN (2015, p. 53).

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embasar todo o seu pensamento fenomenológico-existencial. Referências

DASTUR, F.; CABESTAN, P. Daseinsanálise: fenomenologia e psicanálise. Trad. Alexander de Carvalho. Rio de Janeiro: Via Verita, 2015. ESCUDERO, J. A. Heidegger y la genealogía de la pregunta por el ser: Una articulación temática y metodológica de su obra temprana. Barcelona: Herder, 2010. GREAVES, T. Heidegger. Trad. Edgar da Rocha Marques. Porto Alegre: Penso, 2012. GRONDIN, J. Hermenêutica. Trad. de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. HEIDEGGER, M. Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. 2 ed. Trad. de Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. ___________. Ontologie. Hermeneutik der Faktizität. In: GA 63, (Frühe Freiburger Vorlesung Sommersemester 1923), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1988. ___________. Sein und Zeit. In: GA 2, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt, V. Klostermann Verlag, 1977. ___________. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2012. ___________. Seminários de Zollikon. Trad. G. Arnhold; M. F. A. Prado. Petrópolis: Vozes, 2009.

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INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Trad. Luísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. KISIEL, T. J. The genesis of Heidegger’s Being and Time. London, England: University of California Press, Ltd., 1993. RICHARDSON, W. J. Heidegger: Through phenomenology to thought. New York: Fordham University Press, 2003.

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Segunda Parte

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Primeiro Capítulo

A hermenêutica no âmbito do projeto da ontologia fundamental

Eduardo Henrique Silveira Kisse

Introdução

O capítulo que ora se apresenta investiga a hermenêutica de Martin Heidegger em sua principal obra, Ser e Tempo (HEIDEGGER, 1963). Partiremos do pressuposto de que a hermenêutica seja uma teoria da compreensão ou da interpretação, que se desenvolveu ao longo do tempo. Neste sentido, primeiro se buscará explicar esse desenvolvimento historicamente, para que a sua hermenêutica seja entendida em relação às hermenêuticas anteriores. Completada essa tarefa, tentaremos compreendê-la no âmbito da sua ontologia.

Para se alcançar essas metas, o presente texto abrangerá três temas, que deverão levar a um resultado instrutivo, como o fato da hermenêutica heideggeriana surgir a partir do seu projeto de uma ontologia fundamental e o que hermenêutica significa para ele. O primeiro destes temas é o desenvolvimento da hermenêutica, que será apresentado no primeiro tópico. Depois, procuraremos primeiro esclarecer como a hermenêutica de Heidegger surge a partir de seu projeto primeiro, o de uma ontologia fundamental. Em seguida, tentaremos explicar como essa sua hermenêutica procede. Ao final, será apresentado um

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breve diálogo entre Schleiermacher, Dilthey e Heidegger, surgido a partir dos comentários de Heidegger acerca do problema das ciências humanas, em especial a filologia.

Conquanto esses diferentes temas sejam trabalhados com sucesso a seguir, serão também elaborados com sucesso tanto o problema quanto o tema principal proposto no texto, a saber, a hermenêutica de Heidegger. O desenvolvimento da hermenêutica

Antes de se iniciar o tema principal de nosso capítulo, é importante apresentar a história da hermenêutica, mesmo que de modo breve, para que o pano de fundo da teoria da compreensão de Heidegger se torne clara. Isso pode parecer como eruditismo ou pedantismo, no entanto é um passo necessário para o caminhar do texto. O motivo ficará claro após as primeiras elaborações no contraste das primeiras teorias hermenêuticas com a heideggeriana. Por isso buscaremos nesta primeira parte apresentar a hermenêutica no decorrer do tempo.

Hermenêutica como Doutrina da Arte da Interpretação

O nome “hermenêutica” surge originalmente do grego e significa “compreensão”, “interpretação”, “exegese” ou “explicação”. Além disso, ele está relacionado ao deus Hermes, por ele ser responsável pela comunicação entre o Olimpo e os homens. Hoje,

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quando falamos em hermenêutica, relacionamos este conceito diretamente à filosofia da interpretação, na qual Martin Heidegger (1889-1976) e Wilhelm Dilthey (1833-1911) vigem como principais representantes. Entretanto isso nem sempre foi assim, pois isso que compreendemos hoje como hermenêutica se modificou ao longo do tempo (JUNG, 1996, p. 31-35).

Na Antiguidade, a hermenêutica era muito influenciada por mitos, pelas sagas de Homero ou de Hesíodo e estava muito relacionada à tarefa ética de se poder prescrever costumes. Como exemplo disso, podemos citar a virtude do herói em Homero ou os costumes mesmo em Hesíodo. Pelo fato desses textos serem por vezes muito poéticos, não claros, enigmáticos ou se expressarem metaforicamente, os intérpretes precisavam se concentrar nas passagens que não eram muito explícitas ou claras. Neste sentido, a hermenêutica era muito mais um conhecimento ou uma ferramenta, pois ela era aplicada à época exclusivamente com propósitos práticos para o esclarecimento de passagens obscuras de um texto, onde o sentido não fosse apanhado de modo óbvio e uma investigação mais profunda fosse necessária. Daí terem se desenvolvido dois conceitos contrários; de um lado, o sentido literal, ou seja, o que se queria dizer ao pé da letra, do outro, o sentido mais profundo ou propriamente dito.

Entretanto não apenas no pensamento prático, mas também na filosofia antiga encontram-se referências à hermenêutica. Platão, por exemplo, alega em seu Sophistes que o hermeneuta seja aquele que transmite uma informação e assim leve a cabo a

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comunicação. Mas foi apenas com Aristóteles que essa expressão foi usada de modo mais explícito. O seu Organon é uma série de escritos que, em um primeiro momento, se assemelham muito a uma filosofia da linguagem, quase no sentido de uma filosofia analítica, mas que ainda assim podem muito bem ser utilizados nos estudos de hermenêutica de hoje. Do Organon é especialmente significativo o escrito Peri hermeneias (em latim De interpretatione), no qual o filósofo desenvolve

saberes principalmente em vista à relação do que se queira dizer, do dito e do indicado bem como ao conceito do discurso afirmativo (logos apophantikos), que permaneciam fundamentais para a determinação formal do processo de explicação e, em parte, ainda permanecem (JUNG, 1996, p. 33).

Nesta obra, Aristóteles fala justamente da questão

da interpretação, enquanto possibilitada pelo logos, que faz descoberta uma coisa, de torná-la acessível ao intérprete.

Foi ainda essencialmente no campo teológico que a hermenêutica continuou a se desenvolver como técnica de interpretação de textos, cujo sentido não se apreendia de imediato, à medida que se passou a se refletir justamente sobre essa tarefa de interpretação. Ao lado de Isidoro de Sevilha (560-636) e Hugo de São Vitor (1096-1141), constituindo exemplos clássicos de hermenêutica medieval, podemos ver Santo Agostinho (354-430), ao tratar do Antigo Testamento, dizer que este era um texto para ser compreendido estritamente sob o ponto de vista do cristianismo, o que era uma

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visão compartilhada por toda a Igreja, que apenas reconhecia seu próprio ponto de vista como o único possível para qualquer visão de mundo.

Santo Agostinho será aquele a produzir a primeira hermenêutica de grande estilo, enquanto uma hermenêutica exegética que, através de comentários, é uma tentativa de aclarar-se o encoberto, fazendo-se acessível o sentido primeiro do texto escrito.

Com que armas há de abordar o homem a interpretação de passagens da escritura que não estão claras? Com o temor de Deus, com o cuidado único de buscar na escritura a vontade de Deus; formado na piedade, para que não o satisfaça em disputas verbais; provido de conhecimentos linguísticos, para que não permaneça suspenso entre palavras ou locuções desconhecidas; dotado do conhecimento de certos objetos e acontecimentos naturais que se incluam ao modo da ilustração, para que não deixe de ver sua força demonstrativa, apoiada no conteúdo da verdade... (HEIDEGGER, 1998, p. 12).

Com essa fala de Martin Heidegger, entendemos

que Santo Agostinho, assim como outros doutores da Igreja, ao realizarem isso que chamamos de exegese e que está, na grande maioria dos casos, ligada à interpretação da bíblia, vinculava-se necessariamente à visão teocentrista católico-medieval, na qual as ideias da Igreja deveriam ser o ponto de partida para a análise do texto. Far-se-ia também condição para a interpretação o conhecimento da língua do texto, de tal modo que o intérprete não caia nas armadilhas de expressões estranhas, além do conhecimento do

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ambiente no qual o escrito foi produzido. Ainda no campo da teologia, mas já no século XVII, com a “hermenêutica sacra”, a hermenêutica deixa de ser interpretação para tornar-se a doutrina da aplicação prática desta. Poderemos verificar também o estabelecimento de uma razão universal religiosa na nova interpretação da bíblia, assim como proposta por Martinho Lutero, durante o movimento conhecido como humanismo.

Durante o humanismo, com o surgimento da Antiguidade como fenômeno histórico, modelo e ideal de mundo, apareceu a necessidade do estudo das línguas antigas, e por conta disso, Boccaccio, no século XIV, estende o uso da hermenêutica da teologia para a filologia, no que ele aplicava da gramática e da retórica do idioma antigo para o estudo e cultivo da prosa italiana. Com o crescimento cada vez mais acelerado do número de estudiosos da língua e da cultura gregas, surge, no século seguinte, desta filologia encontrada no trabalho com os gregos, a ciência filológica. É também digno de lembrança Erasmo que, no século XVI, edita o novo testamento com tradução latina, bem como cria uma teoria pedagógica seguindo o modelo da pedagogia clássica. Ele acreditava que o conhecimento das coisas, como já acima visto na citação heideggeriana sobre a exegese medieval, deveria ser posterior à apropriação da língua, que deveria ser uma língua antiga, pois a Antiguidade era o ponto de partida para os estudos, a partir do qual qualquer compreensão se tornaria possível (DILTHEY, 1960, p. 125-142).

Na modernidade, podemos ver claramente, especialmente no Iluminismo, essa razão religiosa, que

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Lutero e Santo Agostinho seguiam, transformar-se na razão cientificista, que, através do ponto de vista das ciências lógico-matemáticas, iluminaria o homem com a verdade. Ademais, também durante a Modernidade, outro campo no qual também houve grande concentração de trabalhos hermenêuticos, foi o da jurisprudência, que buscava, na objetividade de seus textos, soluções para os problemas advindos de questões jurídicas essencialmente práticas. Como exemplo, podemos citar a lei, que tem caráter universal, e a concreção de casos particulares levados aos tribunais da justiça (GADAMER, 1976). O problema maior desta questão entre universal e particulares, não estaria, no entanto, na solução da conexão entre essas duas categorias opostas (o universal e o particular), mas no fato de, por muitas vezes, os textos da legislação serem originados de uma realidade sócio-histórica diferente da realidade social vivida, na qual a experiência jurídica deveria estar inserida. Outro caso, muito propiciamente surgido, graças às condições históricas envolvidas, era o do imperador, que representava uma exceção que vinha sendo discutida desde a Antiguidade no direito justiniano. Ora, se o direito procura a igualdade de justiça entre os homens, e o imperador constitui exatamente uma desigualdade, porque pode decidir como bem entender sobre a lei, à qual não está submetido, perde-se aí todo e qualquer fundamento da interpretação dos textos relacionados à lei, à medida que ela é dependente da vontade variável de uma determinada figura. A partir daí, vemos que a hermenêutica não deve ser reduzida a uma mera “técnica lógica da subsunção de parágrafos”, mas deve-

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se estender à práxis na ideia do direito (GADAMER, 1976).

Ainda na Modernidade, porém num âmbito totalmente diverso, o da filologia, como já visto, a hermenêutica também se fez necessária. Com o nascimento do humanismo, passou-se a valorizar os clássicos gregos e latinos como formas mais elevadas da cultura humana e que deveriam servir de modelo para todos os povos civilizados – o que pode ser comprovado no fato do plano escolar alemão mais antigo, elaborado por Lutero e Melanchton, prescrever o estudo de grego, latim e hebreu (DILTHEY, 1960). Com isso, houve um grande retorno à leitura e, como consequência, à necessidade de interpretação dos textos da Antiguidade, isto é, os textos latinos clássicos, que possuíam uma linguagem mais rebuscada que a do latim escolástico, e, principalmente, os textos clássicos gregos; também, em menor escala, incluía-se aí o antigo testamento em hebreu. A hermenêutica apareceria aí como uma ajuda técnica para a gramática e para tomar-se parte da ambiência da realidade da época na qual tais textos foram criados. Isso, no entanto, não supre as necessidades para uma compreensão de um texto, pois, segundo Gadamer (1976, p. 91): “A mera descrição da estrutura interna e da coerência de um dado texto, bem como a mera reprodução do que o autor diz, não são uma verdadeira compreensão.”

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A hermenêutica como doutrina da arte da compreensão

Posto que eram insuficientes as tentativas de se

alcançar o sentido original do texto, que era sempre considerado pelo olhar dos ideais humanistas daquela época, tais tentativas tiveram como consequência que a pergunta pela tarefa da hermenêutica tenha emergido. Schleiermacher vai atrás dessa pergunta, quando ele considera a hermenêutica como nunca antes. Schleiermacher era não apenas um extraordinário teórico da hermenêutica, mas também teólogo, filósofo e filólogo. Naturalmente, a sua ocupação com a hermenêutica é muito mais importante do que as outras matérias para o curso do presente texto, apesar de ele nunca ter publicado a hermenêutica sistematicamente. Tudo o que ele publicou sobre ela enquanto ainda era vivo foi seu texto do discurso de 1829 na Academia Berlinense Sobre o Conceito de Hermenêutica em Relação às Sugestões de F. A. Wolf e ao Manual de Ast (SCHLEIERMACHER, 1974). Neste texto, vemos que a hermenêutica até ele apenas tratou de textos individuais e, em verdade, textos da Antiguidade, como se ela fosse uma ferramenta que servisse à explicação.

De acordo com Schleiermacher, isso seria um problema, já que a compreensão se destina a um sentido que se localiza na base do pensado e que, no discurso, é objetivado à compreensão (i.e. expressado). Isso quer dizer que o pensamento antecede o discurso, porque o primeiro oferece um sentido ao segundo e, assim também o explica Jean Grondin, a saber: que “a

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primeira tarefa compreensiva reside em levar de volta a expressão para o significado intencionado que o produziu” (GRONDIN, 2009, p. 19). Em uma palavra, podemos dizer que essa tarefa consiste em compreender o que o autor queria dizer. Schleiermacher dá um exemplo disso na forma de uma crítica a ambos, Ast e Wolf, que ele cria não teriam concordado com ele com o fato de que escritores de jornal não necessitam de nenhuma hermenêutica para serem compreendidos. Isso seria de um tal modo, como Schleiermacher explica mais de perto em seguida, que a hermenêutica se restringe não somente a textos, mas também a todas as vezes, nas quais pensamentos ou palavras aparecem, por meio das quais pensamentos são expressos (SCHLEIERMACHER, 1974). E isso não vale somente para uma língua estrangeira ou um dialeto, pois para cada um existe algo estranho por conta de diferentes particularidades.

Por isso, podemos dizer com direito que a hermenêutica de Schleiermacher se estende, diferentemente das anteriores, do espaço específico do texto a toda a parte, onde haja sentido a se compreender, i.e. tanto em textos escritos, discursos orais como também em expressões faciais, gestos, ações etc. E, assim, também seria correto afirmar que a hermenêutica migrou da arte (prática) da interpretação para a doutrina da arte da compreensão. Outro modo de se ver essa diferença seria como se antes não houvesse um conceito geral de hermenêutica, mas sim apenas hermenêuticas individuais. Essa hermenêutica geral fundada por Schleiermacher é tomada por Dilthey para o seu pensamento.

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Na verdade, Dilthey não se via como hermeneuta; essa classificação lhe foi dada tardiamente por Heidegger e Gadamer. De fato, ele era originalmente um filósofo da vida e a hermenêutica entra em seu pensamento em apenas poucos lugares. Contudo, de qualquer maneira, é apostrofado como um clássico da hermenêutica. Que a filosofia da vida desempenhe para ele um papel mais importante, é também evidente, quando se tem em vista que ele mesmo não desenvolveu qualquer hermenêutica, mas apenas aplicou à sua filosofia aquilo que aprendeu de Schleiermacher; em especial na fundamentação das ciências humanas (LESSING, 2011).

Dilthey projetou tal fundamentação, porque esse tipo de ciências encontrava-se diante do perigo do positivismo, que pretendia trabalhar as ciências humanas com um método, no qual seu objeto era abstraído delas mesmas. O método positivista consiste em retratar as ciências humanas como objetos matemáticos, imutáveis e constantes, i.e., de tal modo que o objeto e o centro dessas ciências fossem apartados um do outro. Neste sentido seria necessário retornar essas ciências ao seu âmago original, ou seja, a vida humana, que deveria ser considerada como unidade na filosofia da vida, não como partes individuais ou como apartadas de um contexto. E aqui se vê como a filosofia da vida mais uma vez é o tema principal para Dilthey, enquanto a hermenêutica apenas serve como método.

Nessa fundamentação, Dilthey afirma que o pesquisador das ciências humanas deve procurar compreender a vida a ele estranha. Ele a compreende

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por meio da expressão da vivência, que é a objetivação do espiritual do autor. Neste sentido, é permitido afirmar que, para Dilthey, a vida se compreende a ela mesma. Quando se pensa sobre a possibilidade de uma hermenêutica em Dilthey, então essa hermenêutica é como uma teoria da compreensão da vida (LESSING, 2011).

Agora, tendo sido a hermenêutica já suficientemente explicada, passaremos para a parte central do presente texto: a hermenêutica em Heidegger.

A hermenêutica de Heidegger e o projeto de uma ontologia fundamental

A hermenêutica de Heidegger está incluída no

seu principal projeto, o projeto de uma ontologia fundamental. Por isso, primeiramente, tentaremos compreender o que seja esta ontologia fundamental.

Já no início da sua principal obra, Ser e Tempo, Heidegger esclarece que a pergunta pelo sentido de ser, que serviu à filosofia desde Platão e Aristóteles como um fio condutor, ainda permanece aberta. Há, contudo, ainda a necessidade de se elaborá-la corretamente, pois ela é a pergunta mais fundamental da filosofia. Por causa de diferentes motivos, que serão esclarecidos em seguida, essa pergunta não é respondida corretamente e, assim, não se chega a saber o que seja o ser; a pergunta pelo sentido de ser seria ainda incompreendida. Esses motivos ou dogmas, que mantêm a pergunta tão facilmente fora de foco, são chamados por Heidegger de preconceitos.

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1- “O “ser” é de todos o conceito mais geral” (HEIDEGGER, 1963, p. 3). Segundo esse preconceito, cada ente cai num gênero mais amplo, o do ser. Ser seria uma categoria e entes estariam dentre estas categorias. Aristóteles indica que as categorias sejam um modo de ser (então categorias seriam ainda entes). Por conta disso, Aristóteles ainda se pergunta o que seja a generalidade das categorias. É importante que se sublinhe que Aristóteles considera o ente como ente. Na lógica de Hegel, são tanto o ser como também o nada conceitos vazios, indeterminados. Ser é imediato, porque já está lá sem mediação através do conhecimento imediato.

2- “O conceito de “ser” é indefinível.” (HEIDEGGER, 1963, p. 4) Isso significaria que a cada vez que tentássemos determinar ser, recorreríamos a um ente. Mas do que precisamos exatamente numa definição? A definição clássica conecta dois entes por meio do ser: A é B. Entretanto o ser já está pré-compreendido por meio do “é”. Heidegger explica que, para se definir algo, tem que se ter o mais alto gênero, mas não se poderia encaixar ser em nenhum gênero.

3- “O “ser” é o conceito mais evidente.” (HEIDEGGER, 1963, p. 4) Em cada sentença, em cada lida e em cada comportamento está pressuposta esta compreensibilidade “mediana”, em torno da qual nós sempre nos movemos. Mas Heidegger diz que isso não significa que não possamos falar nada sobre isso ou que não possamos perguntar por isso. Contudo é importante que destaquemos que essa compreensibilidade seja apenas mediana e que, por

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isso, ela tenha que ser explicada. E, assim, se torna necessário que se coloque mais uma vez a pergunta.

Após a análise desses três preconceitos, Heidegger afirma que não falta apenas a resposta à pergunta central da ontologia, mas também principalmente uma colocação correta da pergunta, pois até então essa questão não foi corretamente formulada e é por isso que ela sempre é levada até os três preconceitos acima mencionados. Tal como a pergunta fora colocada, ela pedia uma conceitualidade que não podia encontrar um lugar esclarecedor em uma ontologia. Essa necessidade de uma colocação correta da pergunta leva Heidegger à pergunta pela estrutura de uma pergunta mesma. A pesquisa levada a cabo por Heidegger sobre a estrutura tem como princípio o “círculo hermenêutico”. O círculo hermenêutico

O círculo hermenêutico foi pela primeira vez mencionado por Schleiermacher de modo explícito como modo de procedimento da interpretação.

Trata-se aqui do problema de que, na interpretação de textos, nunca se pode partir de um ponto zero absoluto do conhecimento, mas um conhecimento prévio do todo já sempre co-determina a constituição do individual, mas que, também do contrário o conhecimento do todo pode ser construído apenas a partir das partes (RODI, 2014, p.35).

Dito de outro modo, ele descreve o fato de que,

numa interpretação, sempre já temos pré-

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conhecimentos que usamos para a construção de novos conhecimentos. Pode-se tirar com proveito um exemplo para isso da Ética de Aristóteles (2002). Essa obra trata da boa ação e Aristóteles reconhece que o homem, como um ser teleológico, sempre se direciona em direção a um fim. Nessa teleologia, o homem se direciona ou ao resultado de uma ação ou a uma ação mesma. Entretanto nenhum dos dois é almejado ao infinito. Quando se deseja sem limites – então seria cada desejo em vão e o homem se encontraria neste processo ad eternum. Por isso Aristóteles declara que deve que haver um fim último, que ele afirma ser o bem.

Apesar de haver necessariamente um fim último, ele não é o mesmo para cada um, pois, em diferentes momentos, aquilo que cada um deseja é diferente. Por exemplo: para o pobre seria a riqueza, para o faminto, a comida e, para o doente, a saúde. Tais experiências diferentes seriam, de acordo com a leitura de Heidegger, justamente o início do círculo hermenêutico em Aristóteles, segundo quem os pré-conhecimentos acima mencionados determinam o propósito da ação. Como consequência disso, pode-se pensar que o homem se realize não como um ser natural ou apriorístico, mas como um ser agente, conquanto ele lide de acordo com as suas próprias condições.

Isso significa que, desde Aristóteles, existe a ideia de que existam pré-estruturas no processo de compreensão que sirvam de fundamento para a compreensão.

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A recolocação da pergunta

Na estrutura da pergunta, isso não é diferente para Heidegger, posto que ela é considerada pelo filósofo de modo bastante hermenêutico. Em Ser e Tempo, ele diz que cada pergunta é uma busca e que cada busca possui um buscado e um buscador. O buscador, que coloca a pergunta, tem que, entretanto, já saber de antemão o que é buscado, o que seja o buscado. Por esse motivo a pergunta pelo sentido de ser não contém uma redundância, mas um processo hermenêutico, pois nela já se sabe de algum modo o que seja o ser (HEIDEGGER, 1963).

Neste momento poderíamos perguntar o que foi ganho até agora, pois tudo o que foi mostrado até o presente momento foi simplesmente uma elaboração da pergunta principal da ontologia. Contudo não devemos subestimar essa elaboração, pois ela permite à pesquisa ser continuada quando se faz claro que um conhecimento do ser é já e desde sempre possível. Esse conhecimento tem o ente que pode colocar a pergunta pelo sentido de ser, porque ele já sabe de antemão o que ele busca. A possibilidade, a pergunta pelo sentido de qualquer coisa é um dos muitos modos de ser do ente que de alguma maneira já se encontra sempre em uma relação com o ser. Heidegger chama essa relação fundamental ou esse conhecimento do ser de ontologia fundamental, pois é ela o fundamento para todos os outros posteriores conhecimentos possíveis. “Por isso a ontologia fundamental, a partir da qual todas as outras então podem provir, ter que ser procurada na analítica existencial do ser-aí” (HEIDEGGER, 1963, p. 13).

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Como foi mostrado acima na explicação do círculo hermenêutico, o ente que pode colocar a pergunta ou buscar algo já possui um pré-conhecimento daquilo por que ele pergunta ou por que ele busca. A ontologia fundamental é, neste sentido, o resultado positivo da análise de Heidegger da busca pelo sentido de ser, e não apenas uma compreensibilidade mediana de ser, que está disponível em cada lida. Quando Heidegger encontra o ente que já é capaz de um modo de ontologia e, em verdade, da mais fundamental delas, ele declara ser necessário que esse ente que já conheça o ser seja analisado.

Mas isso não poderia levar a pesquisa a uma circularidade? A proposta de Heidegger de analisar este ente não significaria que o sentido de ser já esteja explícito nessa busca? Heidegger responde a isso da seguinte forma.

Na pergunta pelo sentido de ser não está um “círculo em demonstração”, mas um curioso “retorno” ou “pré-relacionamento” do buscado (ser) com o perguntar como modo de ser de um ente. A consternação essencial do perguntar do seu perguntado pertence ao sentido mais próprio da pergunta pelo ser (HEIDEGGER, 1963, p. 8).

Por isso podemos compreender que, segundo

Heidegger, a busca pelo sentido de ser persegue seu próprio caminho dentro de um possível conhecimento de ser, de tal maneira que não seria possível de outro modo. Além disso, esse conhecimento é o único caminho para cada ontologia possível, ou então até

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hoje nenhuma ontologia teria sido possível. Entretanto elas foram, em todo caso, possíveis, porque já temos certo conhecimento de ser que leva a outros conhecimentos. Assim, o caminho que Heidegger percorreu é o caminho da ontologia fundamental, executado por certo ente. No próximo passo, analisaremos que ente seja este, que é ontologicamente fundamental, e como essa ontologia fundamental leva a conhecimentos conseguintes.

Compreensão ontológica

O ser que Heidegger investiga é chamado de “ser-aí”. Heidegger o chama assim, porque ele é aquele ser que está sempre aí. Então nos perguntamos, onde ele está, onde é esse aí. E como resposta a isso, Heidegger diz que ele está sempre no mundo. O ser-aí é aquele ser que, bem como a vida em Dilthey nunca pode ser apartada do seu contexto de vida, do seu mundo. Daí ela não ser um sujeito meramente cognitivo, que não está imerso em nenhum mundo ou que seja pensante independente de sentimentos, valorizações e vontade (LESSING, 2011). Para ambos, Dilthey e Heidegger, não existe ser-aí ou vida sem mundo, com o qual eles sempre se relacionam. Para além disso, poderíamos dizer que ser-aí incondicionalmente esteja no mundo e, assim, também mundo seria parte necessária do ser-no-mundo.

Por isso torna-se agora mais claro porque o ser-aí tenha sempre uma ontologia fundamental. Ele, como ser-no-mundo, se relaciona sempre com entes que para ele possuem um sentido. Estes entes possuem um

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sentido, pois este sentido surge a partir de um contexto, pois é uma parte deste contexto e assim o constitui. A seguir, tentaremos tornar mais clara a relação entre o ser-aí e o seu mundo e os seus entes.

Apesar de todo o projeto principal de Ser e Tempo ser ontológico e Heidegger, por meio de sua elaboração, proceder hermeneuticamente, o acento mais forte da hermenêutica como teoria da compreensão reside nos parágrafos 31 (O ser-aí como Compreensão), 32 (Compreensão e Interpretação) e 33 (A Afirmação como Modo Derivativo da Compreensão), nos quais é mostrado como são a compreensão e a interpretação do ser-aí. Como próximo passo, serão investigados os dois primeiros parágrafos; o debate sobre o terceiro deles virá mais tarde na forma de um breve exame dos comentários de Heidegger. Poderíamos proceder de tal modo a elaborar os dois primeiros separadamente, mas aqui tentaremos considerá-los como constitutivos de uma unidade. E isso é de tal modo que, no decorrer destes dois parágrafos, Heidegger (1963) procura esclarecer que o ser-aí é um ser compreensivo.

Com “compreensão”, entretanto, Heidegger não faz menção a um processo cognitivo, mas sim a um saber prático. Gadamer (1975) explica que o “compreender” também possa a ser entendido em relação à práxis, como, por exemplo, quando alguém diz que “ele compreende de cozinha”. Neste caso se quer dizer que alguém sabe cozinhar. Esse sentido da palavra no alemão advém originalmente do vocabulário da jurisprudência, no qual ela significa defender um caso até às últimas consequências. Neste

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sentido, a compreensão em Heidegger seria todas as possibilidades do ser-aí mesmo no “compreender-se”. Mas o que a compreensão tem a ver com possibilidades? Tem a ver com o projeto do ser-aí no mundo.

Poderíamos supor neste momento que falar sobre o ser do ser-aí como projeto no mundo seria uma divagação para a presente pesquisa, caso isso apenas devesse explicar como o ser-aí mesmo se abre para o mundo. Seria como dizer que o ser-aí se relaciona com o mundo por meio de uma relação, ou seja, uma redundância. Entretanto, este projeto não é um mero projeto. O ser-projetado do ser-aí deve ser explicado, para que se torne claro em que medida o projeto prepara a compreensão de mundo.

Que o ser-aí se projete no mundo não significa que ele planeje antecipadamente como ele se comportará. O projeto indica o fato de que existam estruturas existenciais, ou seja, estruturas que determinam a existência do ser-aí, que possibilitam compreender o ser como ente de acordo com a compreensão de ser. Dito de outro modo: o projeto possibilita ao ser-aí interpretar o ser como ente. Assim:

Exe-gese, um conceito que em alemão atua como sinônimo para interpretação, quer dizer tanto quanto “explicação”, “elaboração”, na verdade: “arrancar do esquecimento e elevar ou colocar à luz do dia” (GRONDIN, 2009, p. 39).

Essa é então a estrutura fundamental da

compreensão, que é primeiramente construída por meio da interpretação. E aqui também é apresentada a

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quintessência da hermenêutica heideggeriana no sentido do conceito, tal como ficou conhecido na tradição, como teoria da interpretação ou da exegese.

A interpretação do ente realizada pelo ser-aí é entendida na hermenêutica de Heidegger no ente como ente. “A interpretação não é a tomada de conhecimento do compreendido, mas sim a elaboração das possibilidades projetadas no compreender” (HEIDEGGER, 1963, p. 148). A interpretação significa aqui que o contexto (ou, como ele diz: conjuntura) da compreensão de mundo mostra o sentido do disponível. Quando analisamos esta última sentença, reconhecemos a estrutura do círculo hermenêutico, porque aqui aquilo que o ser-aí tem diante de si é compreendido sob a conjuntura com o mundo; a parte é compreendida a partir do todo. E, assim, cada ação, cada lida do ser-aí já é compreendida em dois sentidos. Por um lado, o ser-aí compreende o ente como um ente, algo como algo, a partir do sentido que o seu mundo já contém em si previamente. Por outro lado, esse ente já possui no aí do mundo um sentido que o ser-aí apreende em cada lida com este ente. E, com isso, provém o sentido de um ente a partir do compreender do mundo, que provém do sentido de um ente. Como já havia sido acima mencionado, isso não é uma redundância lógica, mas sim uma circularidade hermenêutica.

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Breve comentário sobre as ciências humanas

O conceito do compreender desempenha em Heidegger um papel prático aplicado na lida, enquanto ele, em Schleiermacher e Dilthey, é um tanto mais teorético. Apesar de, no Dilthey tardio, a vida se compreender a si mesma, se interpretar a si mesma, trabalham ele e Schleiermacher com diferentes níveis da compreensão. Dilthey e Schleiermacher defendiam a opinião de que já podemos interpretar com as formas quotidianas da compreensão, entretanto seus pensamentos usavam dois diferentes graus de compreensão: o mais alto e o mais baixo (quotidiano). Daí vem o comentário de Heidegger no parágrafo 33 sobre a compreensão nas ciências humanas, que eram um tema importante tanto para Schleiermacher quanto para Dilthey.

Do ponto de vista de Heidegger, o compreender da filologia é abstraído. Isso não tem, contudo, nem o tom de uma crítica nem a característica de uma tentativa de uma fundamentação metódica para as ciências humanas, mas muito mais uma constatação sobre a sua marca. Elas deveriam, na verdade, primeiro saber e reconhecer qual seja o compreender primário (HEIDEGGER, 1963, p. 148). Agora o texto chegará ao seu fechamento, no qual ele procurará extrair os últimos resultados desta pesquisa.

Primeiro Capítulo

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Considerações finais

Após o breve esclarecimento sobre o desenvolvimento do conceito de hermenêutica, foram apresentadas as suas aplicações no pensamento de Schleiermacher e no de Dilthey. Em seguida, foi analisada a hermenêutica heideggeriana. Num primeiro momento foi explicado como seu projeto de uma ontologia fundamental procede. Trata-se da recolocação correta da pergunta pelo sentido de ser, o que o leva à análise daquele ser que possui primariamente acesso à compreensão de ser como uma compreensão primária fundamental.

Em seguida foi mostrado que esse ser é o ser-aí, um ente que se encontra sempre de algum modo no mundo. O ser-aí compreende sempre o mundo, no qual ele é projetado, pois este mundo lhe dá o sentido do ente como o disponível. Daí a disponibilidade, que aparece para o ser-aí, ser compreendida por meio da conjuntura do mundo, porque compreensão se relaciona ao “que”, enquanto interpretação se direciona ao ente. A relação é sempre o contexto do ente que produz o sentido à compreensão de ser. Assim, o sentido de ser é dado pelo ser-aí por meio da sua interpretação de mundo.

Para além disso foi apresentada, ao final, uma breve discussão com Schleiermacher e Dilthey, na qual um comentário de Heidegger sobre o primado do compreender ontológico do ser-aí como o mais fundamental foi apresentado. Heidegger menciona que as filologias de Schleiermacher e de Dilthey primeiramente devem reconhecer que o conceito de

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compreensão seja abstraído do ontológico. Isso significa que a hermenêutica de Heidegger se separa das anteriores e assim ele dizer que a compreensão anterior seja apenas abstraída da primária e mais fundamental, a ontológico-existencial. Apesar de também Paul Ricoeur possuir uma crítica a esse comentário e sobre o todo do projeto de Heidegger, ela não encontrou lugar no espaço exíguo deste artigo. De qualquer modo, esse tema como tantos outros são almejados para pesquisas futuras, especialmente a diferenciação entre os conceitos de próprio e de impróprio, da qual o leitor mais atento possa ter sentido falta. Referências

ARISTOTELES. Nicomachean Ethics. Übersetzung, Einleitung und Kommentaren von Sarah Broadie und Christopher Rowe. Oxford: University Press, 2002. DILTHEY, W. Pädagogik. Geschichte und Grundlinien des Systems. Stuttgart: B. G. Teubner; Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1960. GADAMER, H.-G. Le Problème de la Conscience Historique. Préface de L. de Raeymaeker. Paris : Béatrice-Nawelaerts, 1963. ___________. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1975. ___________. Die Vernunft im Zeitalter der Wissenschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976.

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GRONDIN, J. Hermeneutik. Übersetzung: Ulrike Blech. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2009. HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer, 1963. ___________. Ontologie. Hermeneutik der Faktizität. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1988. JUNG, M. Hermeneutik zur Einführung. Hamburg: Junius, 1996. S. 31-35. LESSING, H.-U. Wilhelm Dilthey: eine Einführung. Köln/Weimer/Wien: Böhlau, 2011. RODI, F. Bochumer Dilthey Forschung: Die Kontinuität geisteswissenschaftlicher Theoriebildung als Aufgabe. [2003?] Verfügbar unter: <http://www.ruhr-uni-bochum.de/philosophy/dilthey/pdf/dilthey_forschung.pdf>. Zugang: 05.12.2014. SCHLEIERMACHER, F. D. E. Ueber den Begriff der Hermeneutik, mit Bezug auf F. A. Wolfs Andeutungen und Asts Lehrbuch. In: Hermeneutik. Hrsg.: Heinz Kimmerle. Heidelberg: Carl Winter, 1974.

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Segundo Capítulo

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Segundo Capítulo

Em sua situação fática o ser-aí “significa”

Ezildo Antunes

O objetivo desse capítulo é apresentar o conceito heideggeriano de significância e mostrar em que medida esse conceito apresenta uma importância co-relacional com outros existenciais no momento em que Heidegger se propõe dentro daquilo que na construção filosófica desse pensador é denominada ontologia fundamental, realizar uma analítica existencial, isto é, descrever e analisar fenomenologicamente as estruturas existenciais que configuram o ser-aí.

Antes de adentrar especificamente na apresentação desse tema, faz-se necessário, no entanto, pôr a lume qual foi a gênese da ontologia fundamental, ou seja, é necessário entender em que medida Heidegger se distancia da tradição filosófica no que diz respeito à interpretação do ser. Para Heidegger, a metafísica tradicional não deu conta de explicitar definitivamente a questão do ser e que, embora se apresentassem dispendiosos esforços da ontologia, essa temática, a saber, a questão do ser, ainda necessitava de uma nova investigação, pois dizendo com as palavras do próprio Heidegger (2009): “E o que outrora se arrancou, num supremo esforço de pensamento, ainda que de modo fragmentado e tateante aos fenômenos, encontra-se, de há muito, trivializado” (p. 37).

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Diante desse cenário de falta de atenção e esclarecimento do tema, Heidegger então, com os pés já firmemente postos na fenomenologia, considera esse campo como aquele que, através de uma nova interpretação poderá dar uma resposta mais razoável ao problema. Assim, seguindo os passos de seu mestre Husserl (1859–1938), mas avançando no que diz respeito à maneira de utilizar o método fenomenológico, Heidegger em uma de suas principais obras, Ser e Tempo, vem recolocar a questão do ser e mais que isto, vem perguntar pelo sentido do ser. É isso que se nota quando o próprio Heidegger (2009) escreve: “Deve-se colocar a questão do sentido do ser. Tratando-se de uma ou até da questão fundamental, seu questionamento precisa, portanto, adquirir a devida transparência” (p. 40).

A partir daí, é preciso que se eleja um ente no qual, não só possa ser lida a questão do ser, mas que este tenha primazia entre os outros entes, para também perguntar pelo sentido do ser. Qual é este ente? Heidegger (2009) não hesita e diretamente diz: “Designamos com o termo presença esse ente que cada um de nós mesmos somos e que, entre outras coisas, possui em seu ser a possibilidade de questionar” (p. 42-43). O que fica indicado através dessa passagem da obra de Heidegger é que o próprio ‘homem’ é o ser que possui essa primazia, a saber, de questionar o sentido do ser.

Faz-se necessário, no entanto, esclarecer que Heidegger não se refere especificamente ao homem quando propõe a primazia de tal ente. É o que se pode

Segundo Capítulo

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entender quando se lê em sua obra Ontologia: Hermenêutica da Faticidade, (HEIDEGGER, 2013):

Na determinação indicativa que fizemos do tema da hermenêutica, ou seja, da faticidade = nosso ser-aí próprio em cada caso, foram evitadas inicialmente expressões como ser-aí “humano” ou “ser do homem” (p. 28).

Assim, fica evidente que, embora a tradução de

Ser e Tempo que se utiliza como referência para este trabalho chame esse ser-aí de presença, o que se constitui como ser de primazia ontológica é o ser-aí, denominação essa, que já fora usada no título e no primeiro parágrafo desse, sem explicação prévia.

Mas como e onde se constitui fundamentalmente o ser-aí? A primeira resposta que se pode dar a essa pergunta é: o ser-aí se constitui fundamentalmente como ser-no-mundo. Explicitando melhor, para ser-aí, é necessário evidentemente o mundo, mas não mundo entendido como mero receptáculo de elementos e, portanto, também do ser-aí. Neste sentido indica-se a necessidade de interpretar o ser-aí como um ser-em, isto é, não está dentro do mundo, mas já é desde então em um mundo. Reescrevendo Heidegger (2009): “O ser-em, ao contrário, significa uma constituição de ser da presença e é um existencial” (p. 100), desta maneira o ser-aí é constituído de vários existenciais ao ser-no-mundo.

Mas o que significa dizer que o ser-aí é constituído de vários existenciais? Em outras palavras, os existenciais são cada um dos caracteres que constituem o todo do ser-aí, ou seja, são suas marcas

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essenciais que se fundem nos traços fundamentais do ser-aí, a saber, a existencialidade, a decadência e a faticidade.

É neste momento que, encontrando esse tripé que ancora o ser-aí é que aparece (ainda que de forma implícita) o tema que se pretende apresentar, isto é, a significância. Dizendo com outras palavras, o ser-aí é desde já no sentido de estar lançado experimentando sua faticidade, ou seja, de não ser fundamento de si mesmo. Junto à faticidade vem à tona a existencialidade que de forma bem mediana pode ser entendida, utilizando as palavras de Heidegger (2009), como: “constituição de ser de um ente que existe” (p.49), isso significa dizer que é o conjunto das estruturas que formam o ser-aí. À decadência, no entanto, não se confere caráter negativo, como aquela interpretada pela acepção bíblica, por exemplo, o decair da graça, mas o que está em jogo na decadência é o modo do ser-aí estar antes de tudo e na maioria das vezes junto ao mundo de sua ocupação.

O que está em jogo no modo de ser na ocupação é a lida que o ser-aí tece com os tantos outros entes que se achegam provindos do mundo circundante. Isso quer dizer que de primeira mão, o ser-aí se vê envolvido com o todo e que o seu fazer se concretiza com o modo de ser da ocupação. Pode-se dizer que os mais variados afazeres do ser-aí o remete sempre ao ser-em, o qual já descrevemos acima. Para se obter compreensão melhor disso cita-se Heidegger (2009):

Pode-se exemplificar a multiplicidade desses modos de ser-em, através da seguinte enumeração: ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar

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e cuidar de alguma coisa, aplicar alguma coisa, fazer desaparecer ou deixar perder-se alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar, discutir, determinar... Estes modos de ser-em possuem o modo de ser da ocupação (p. 103).

Mas tudo isso só será possibilitado ao ser-aí se

este tiver uma relação no todo conjuntural com o denominado ser-à-mão (Zunhanden). Este ser-a-mão, isto é, o que está posto diante das mãos do ser-aí, sempre está presente e disponível para ser utilizado. O ser-à-mão está sempre repousando de maneira neutra em si mesma, o que não significa, que este se apresente sem ou perca a utilidade. O ser-aí não confere utilidade aos instrumentos por assim dizer, a utilidade subjaz no instrumento e é apenas ao se relacionar de maneira prática com esses instrumentos, que a utilidade destes vem à tona.

Preparado o terreno para que o tema desse trabalho ganhe vida, partimos agora desse modo de ser do ser-aí, a saber, o modo de ser da ocupação, para entendermos em que medida a significância aparece dentro desse emaranhado fatual.

Como já frisado acima, nenhum instrumento (ser-à-mão) é autossuficiente, ele carece que o próprio ser-aí que é aquele que compreende o mundo possa então, de maneira intencional, atribuir necessidade aos mesmos. Neste sentido um instrumento sempre vai se referir ao outro para que sua utilidade se confirme, mas quem sabe dessa referência é sempre o ser-aí, pois o martelo sozinho, por exemplo, não tece relação nenhuma com outros instrumentos da mesma ação do ser-aí. A relação imediata com pregos, ou tábuas é uma

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indicação referencial submetida apenas ao ser-aí, que diferente do ser-simplesmente-dado, pode compreender a si mesmo e compreender o mundo com outros intramundanos que se apresentam nos instantes de vivências.

A partir do momento em que há uma interferência do ser-aí no modo de ser dos outros entes (instrumentos, utensílios), isto é, através do manuseio e uso desses instrumentos é que se abrem e se correlacionam diversas redes de significações. Por exemplo, citando Heidegger (2009): “ao abrir a porta, faço uso do trinco” (p. 115). Esse ‘uso’ realizado do trinco para a ação de abrir pode ser denominado de instrumental. Como diz Heidegger (2009): “Rigorosamente, um instrumento nunca é” (p. 116), pois é preciso que se saiba neste, o seu ser para, ou seja, por exemplo, saber qual é sua aplicabilidade.

Isso quer dizer que quando se faz uso de um instrumento, um gigantesco aparato de outros instrumentos se faz a partir da lida na práxis com o primeiro. Assim é o que mostra quando escreve Benedito Nunes (1992):

Usando a caneta, descobrimos o que ela é: descoberta que difere de conhecimento a respeito do objeto, de sua natureza, de suas propriedades. O escrever revela a serventia, o ser disponível, à mão, do utensílio. Por outro lado, a serventia não é apenas o manejo físico da caneta; o simples uso dela estende-se ao emprego adequado de outros meios e instrumentos, que não existem isoladamente: a tinta e o papel, a mesa e a cadeira encadeadas no serviço que prestam, cada qual como termo de uma práxis remetendo aos outros, e

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todos, em conjunto, formando um complexo referencial (p. 91).

O que se revela aqui não é apenas o valor da

utilidade do instrumento, mas o que está em jogo é o próprio escrever, este por sua vez levanta uma rede de referências que configuram o ser do utensílio. Portanto, cabe ao ser-aí ao fazer o uso dos utensílios, dar-se conta não só da serventia (o para quê) destes, mas ainda percebê-los nessa complexidade em que um instrumento não se dá de forma isolada, mas ao aparecer, aparece sempre carregado de outros instrumentos que não apenas se aplicam na práxis, mas que já estão de certa forma a priori à práxis.

Nesse sentido, o que se pode perceber é que o próprio mundo como mundo pode estar ligado ao uso que fazemos dos instrumentos. Isso porque de uma simples referência, pode-se reportar a totalidade das coisas. Sendo assim, pode-se dizer que é o mundo como (Umwelt), isto é, onde o ser-aí está ambientado, o mundo à sua volta vem à tona quando de repente, na ocupação, o ser-aí se vê cercado de uma gama de instrumentos que do uso de um deles se abarca um todo estrutural e isso pode ser compreendido como a mundanidade (Weltlichkeit) do mundo, isto é, a estrutura ontológica do mundo, está definida como significância.

O que também se faz necessário mostrar aqui é que nesse processo, a saber, do uso que se faz de um instrumento pode-se desencadear um todo de significações e isso não se dá de forma estranha para o ser-aí, mas ao contrário, tudo se perfaz pela familiaridade que o ser-aí desde então já estabeleceu

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com o mundo, com os entes simplesmente dados e os entes à mão. Isso quer dizer que não é preciso um esforço para tornar transparente essa teia de relações entre a ação do ser-aí com os utensílios que se achegam ao seu campo de ser. Quando o mundo se abre, tudo já está abarcado e não é preciso que se estabeleça o ato de (re)conhecimento como queria a antiga ontologia. Os entes se achegam e não é preciso uma análise demorada para que o ser-aí os compreenda e se compreenda. Falando com as palavras do próprio Heidegger (2009):

A presença está originariamente familiarizada com o (contexto) em que, desse modo, ela sempre se compreende. Tal familiaridade com o mundo não exige, necessariamente, uma transparência das remissões que constituem o mundo como mundo. Na familiaridade com o mundo, constitutiva da presença e que também constitui a compreensão de ser da presença, funda-se a possibilidade de uma interpretação ontológico-existencial explícita dessas remissões (p. 137).

Partindo então, dessa familiaridade que o ser-aí

possui com o mundo, onde a partir do qual o ser-aí se compreende, este vai realizando ações de significar, ou seja, no tecido concreto da rede de relações, Heidegger (2009) confirma que: “... a presença significa para si mesma, ela oferece o seu ser e seu poder-ser a si mesma para uma compreensão originária, no tocante ao ser-no-mundo” (p. 137). É essa junção de instantes de significação que formam a significância, ou seja, é nessa rede de relações de significado que o mundo se dá

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como mundo estrutural. Assim, falando com as palavras de Michael Inwood (2002): “as coisas se entrelaçam, formando um mundo unificado pela significação” (p. 120).

Portanto, o desencadeamento desse tipo de relação, isto é, o entrelaçar-se das coisas manuais; a autocompreensão do ser-aí; a compreensão que este tem de mundo vão tecendo a configuração da totalidade onde estão acoplados mundo, ser-aí e instrumentos. Assim, reportando-se mais uma vez a Ser e Tempo, para saber o que Heidegger (2009) chama de significância, encontramos o fragmento em que está escrito: “Chamamos de significância o todo das remissões dessa ação de significar (Bedeuten). A significância é o que constitui a estrutura de mundo em que a presença já é sempre como é” (p. 138).

Sendo assim, não há como falar de significância sem relacioná-la com o todo da analítica existencial, de maneira que quem quiser pinçá-la para tentar trazer à luz apenas a sua configuração, no mesmo momento terá que lidar com uma gama de outros aspectos que estão de certa forma conjugados à significância, tais como: referência, conjuntura, familiaridade, entre outros. É o que se pode observar nas palavras de Nunes (1992):

A referencialidade de Dasein (ser-aí) corresponde à relação de constante familiaridade com o mundo expresso pela locução sein bei (junto à). Estando no mundo – junto e não dentro dele – e sendo, portanto, capaz de apreender os entes que se incluem no mundo sob determinada perspectiva, o Dasein (ser-aí) compreende previamente os nexos referenciais, ou

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seja, abrange uma multiplicidade de relações. A esse todo relacional, em que se mantém o Dasein (ser-aí), Heidegger chama de significância (Bedeutsamkeit), condição ontológica das significações (p. 94).

Todavia, e remetendo-se aos objetivos desse, a

significância desempenha importante papel na constituição da analítica existencial. Como vimos, é nela que o ser-aí conhece a mundanidade do mundo; é através dela que a ocupação (modo primário de ser-no-mundo) se sustenta pelo uso dos instrumentos. A significância sempre aponta para a totalidade e, por isso, deve ser entendida como ponto referencial na existência do ser-aí. No entanto, como diz Heidegger (2009): “Todavia, a própria significância, com a presença sempre familiarizada, abriga em si a condição ontológica da possibilidade da presença...” (p. 138).

Isso quer dizer que não há nada de estático no que diz respeito à significância. Através desses atos de significar, o ser-aí pode deslocar-se para o seu poder ser mais próprio ou não. Talvez, essas entidades mundanas com as quais o ser-aí constitui significância também o absorvam cada vez mais não permitindo que o ser-aí se volte para si mesmo para buscar seu próprio sentido.

Ao findar a apresentação da significância, pode-se notar a importância da mesma para a composição geral da analítica existencial. Sem ela, o ser-aí vagaria no mundo sem sentido e sem significado. Seria, pois, mais um ente entre tantos outros sem ou pobre de mundo (referindo-se a tese de Heidegger), e assim, os outros entes que constituem mundo não estariam de certa forma, que, ao mesmo tempo em que são

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envolvidos deixam-se envolver, pois como bem explica Greaves (2012):

Se tentarmos transformar nosso mundo circundante em um lugar onde não haja tal deixar que as coisas se envolvam, então o modo de ser do mundo e, ao mesmo tempo, nosso modo de habitá-lo serão fundamentalmente alterados. O ambiente pode ser desvestido de seu caráter de ser um todo envolvido e passar ser fixado em um sistema de funções isoláveis, precisamente no momento em que somos forçados a reconhecer sua significância como um todo (p. 57).

De fato, como se apresenta o título desse

trabalho: em sua condição fática o ser-aí ‘significa’ e isso faz dele ser-no-mundo. Como diz Heidegger (2013): “Ser-no-mundo não quer dizer: aparecer entre outras coisas; significa, porém: ocupar-se no circundante do mundo que vem ao encontro, demorar-se nele” (p. 107).

Referências

GREAVES, T. Heidegger. Trad. Edgar da Rocha Marques. Porto Alegre: Penso, 2012. HEIDEGGER, M. Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. 2 ed. Trad. de Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. ____________. Ontologie. Hermeneutik der Faktizität. In: GA 63, (Frühe Freiburger Vorlesung Sommersemester 1923), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1988.

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____________. Sein und Zeit. In: GA 2, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt, V. Klostermann Verlag, 1977. ____________. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2009. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Trad. Luísa Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. NUNES, B. Passagem para o poético: Filosofia e Poesia em Heidegger. São Paulo: Ática, 1992.

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A tipologia heideggeriana e suas concepções de temporalidade, faticidade e mundidade

Leosir Santin Massarollo

Numa visada atenta sobre o horizonte

investigativo de Martin Heidegger, vislumbra-se uma problemática norteadora: o problema do ser. Engendrado sucessivamente em cada uma das fases do seu pensamento, trata-se de um ponto culminante forjado fenomenologicamente e descoberto/desvelado apenas por um ente de natureza semelhante, a saber, o ser-aí. Esta natureza permite ao ente citado pôr-se em questão ao interrogar sobre as coisas; este interrogar afirmamos constituir um modo-de-ser. Deste modo-de-ser brota a necessidade da pergunta pelo ser: é um comprometimento originário.

Aquilo de que se pergunta na pergunta a ser elaborada é o ser, isto é, o que determina o ente como ente, aquilo em relação a que o ente, como quer ele seja discutido, já é entendido de cada vez (HEIDEGGER, 2012, p. 43).

O que está propriamente em jogo é a existência

que, segundo Heidegger, é a essência do ser-aí. No questionar sobre o ser, o ser-aí se põe em

questão no modo de um projetar-se, chamado de poder-ser; o projeto constitui uma possibilidade lançada, chamada ser-lançado. Este é afetado e dirigido

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para o mundo se apropriando das possibilidades na forma da faticidade, a saber, faktischen Leben:

caso se tome a ‘vida’ como um modo de ‘ser’, então, ‘vida fática’ quer dizer: nosso próprio ser-aí enquanto ‘aí’ em qualquer expressão aberta no tocante a seu ser em seu caráter ontológico (HEIDEGGER, 2013, p. 14).

Neste empenho investigativo disposição,

compreender e discurso, dimensões pré-ontológicas e, portanto, antepredicativas, articulam uma primeira interpretação sobre o ser-aí e sobre a mundidade.

A chave interpretativa que privilegia tal investigação inicia-se na noção de ser-no-mundo por este constituir a estrutura fundamental da subjetividade. A partir deste estrutural a priori o ser-aí compreende o mundo e os entes acessíveis. A preocupação, fundamento das três dimensões citadas acima, caracteriza o envolvimento do ser-aí na lida cotidiana. Esta familiaridade se expressa na forma do ser-junto-a, que permite ao ente privilegiado pôr-se em questão, como se afirmou acima. Do vínculo entre ser-aí e mundo, que propicia o desvelamento do ser, derivam os objetos da ontologia fenomenológica de Heidegger. O presente trabalho procura resgatar alguns dos caracteres fundamentais deste vínculo, a saber, temporalidade, faticidade e mundidade, iniciando pela própria concepção de ontologia primeira, de modo que a analítica do ser-aí cumpra seu trabalho hermenêutico.

Destruição e criação serão as consequências do empreendimento heideggeriano chamado analítica existencial. Como investigação filosófica, desemboca

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na ontologia fundamental, despojada das amarras metafísicas, antropológicas e teológicas; destaca-se por firmar na temporalidade o nexo hermenêutico de toda interpretação possível. A conduta do ser-aí, o “ente privilegiado”, fornece o horizonte para a interpretação do sentido do ser; trata-se de um ente tematizado pela noção de ser. Em Heidegger, esta questão é “transversal” a todas as demais questões e determina seu comportamento. O pôr em questão o ser-aí não tem finalidade ética ou espiritual; visa demonstrar o complexo de suas estruturas, isto é, pôr em evidência seus conceitos ontológicos fundamentais.

Descartes, Kant, Hegel, Husserl e Nietzsche caracterizam o horizonte do confronto preparatório à pergunta pelo ser; Heráclito, Parmênides, Platão e Aristóteles fornecerão os componentes nucleares do retorno à questão do ser. O caminho que vai do eidos platônico à vontade de potência em Nietzsche, segundo Heidegger, representa as metamorfoses interpretativas do mesmo princípio, porém, caracterizadas pelo “esquecimento” do ser. A técnica, na contemporaneidade, representaria a continuação de tal esquecimento. Heidegger inicia sua destruição da ontologia revolucionando o aspecto metodológico, relativo à verdade e relativo às fontes históricas da tradição ontológica ao reimplantar a fenomenologia sob um viés hermenêutico.

“A fenomenologia hermenêutica com que nos deparamos em Ser e Tempo é uma interpretação do ser-aí em si mesmo e por si mesmo, que, contra a tendência deste ente ao disfarce e ao encobrimento, lhe desoculta o ser” (NUNES, 2017, p. 97). Lembramos que, de acordo

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com Heidegger, fenomenologia não é uma ciência nos moldes da teologia, ou da biologia; estas se ocupam com o conteúdo de seus objetos; aquela investiga o modo-de-acesso aos fenômenos. Por isso Heidegger afirma que a ontologia só é possível como fenomenologia. Isso se deve ao fato do fenômeno como abordado pela Fenomenologia representar o ponto de partida inteiramente de acordo com o modo-de-ser do ser-no-mundo, a saber, enquanto o que se desvela como alethéia, como verdade do ser desencoberta, captável pelo ser-aí em seu a priori existencial ser-no-mundo.

Quando Heidegger afirma que “se se deve obter para a questão-do-ser ela mesma a transparência de sua própria história, então é preciso dar fluidez à tradição empedernida e remover os encobrimentos que dela resultaram” (HEIDEGGER, 2012, p. 81), compreendemos esta afirmação como a reelaboração da pergunta pelo ser, até chegar às experiências originárias, segundo o próprio Heidegger. Num segundo momento a sentença “fala” de um trabalho “arqueológico”, seguido de uma destruição positiva da ontologia (no que concerne a elaboração de princípio da questão-do-ser). No tocante à destruição positiva, tal empreitada traz em seu bojo um itinerário inicialmente impreciso, delineando-se nas entrelinhas do pensamento heideggeriano. Os laços indissolúveis, neste caso específico, entre destruir e criar (leia-se a destruição da história da ontologia, levada a cabo pelo fio condutor da questão do ser, de modo a abordá-la segundo o método fenomenológico) corresponde à “ontologia fundamental, que distingue o homem dos outros entes pela compreensão do ser que constitui sua

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conduta, a partir da situação fática em que se encontra” (NUNES, 2017, p. 17).

“Filosofia é ontologia fenomenológica universal cujo ponto de partida é a hermenêutica do ser-aí, a qual, como analítica da existência, fixou a ponta do fio condutor de todo perguntar filosófico lá onde ele surge e para onde ele retorna” (HEIDEGGER, 2012, p. 129). A criação anteriormente citada mostra-se agora como orientação do pensamento ontológico. Tarefa de interpretação no sentido grego do termo. Tudo o que pode ser mostrado é objeto dessa ciência, a saber, da fenomenologia. Um légein (apophaínesthai), um permitir ver o que se mostra. No desocultamento dos entes reside a forma preliminar da verdade.

A temporalidade

Verdade só há quando há ser-aí; verdade, na ontologia fundamental, não é adequação do intelecto à coisa, e sim o desvelamento do fenômeno, de acordo com as condições possibilitadas pela abertura. “A interpretação temporal do ser-aí cotidiano deve partir das estruturas em que a abertura se constituiu, a saber: entender, encontrar-se, decair e discurso” (HEIDEGGER, 2012, p. 911). Afirma-se, desta maneira, a “incapacidade” da ontologia em abordar o ser-aí em seu a priori ser-no-mundo e que o sentido deste a priori estrutural é o tempo como temporalidade.

Corrobora-se assim uma das máximas heideggerianas: o ser-aí é temporal, e como temporal existe historicamente, ou seja, possui o caráter de fazer e escrever a história; é temporal em seu modo-de-ser.

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Desta maneira conclui-se que o que possibilita o ser-aí é a temporalidade, que lhe permite assumir a historicidade como fundamento do seu ser. Noção de perspectiva que ganha valor ao dar conta do movimento de transcendência do ser-aí, abrangendo tanto o originário do ser-no-mundo quanto o funesto ser-para-a-morte, sua possibilidade extrema. Em todos os modi da temporalidade, passado, futuro e presente condensam-se no instante; esse exige o agir, caracterizado na decisão antecipadora que traz à tona a liberdade em sua característica projetiva. A interpretação fenomenológica da temporalidade, quando dirigida ao poder-ser, mantendo o ser-aí em uma possibilidade existencial determina-o como um vir-a-si-mesmo, sempre como possibilidade. Com isso queremos afirmar que, se a essência do homem consiste na existência, esta implica sempre uma “escolha de si”, conduzida em relação ao si-mesmo. Não se trata apenas de reconhecer e delimitar a atuação do ser-aí; este conceito “firma-o” em seu a priori estrutural ser-no-mundo: a possibilidade da escolha antes do possível se formar. É o poder-ser que investe sobre o ente e é por ele investido. Assim, em acordo com Heidegger, afirma-se a liberdade como constituinte ontológica do ser-aí.

O ser-aí será o fio condutor originário de tal problemática. Por natureza este ente compreende a si mesmo a partir da sua existência. O derivado ontológico-existenciário ser-no-mundo “conjunta” a universalidade “coesa” com o ser-aí na forma de preocupação e ocupação. A primeira rege o cuidado-de-si e a preocupação-com-o-outro; a segunda rege o trato

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com o ente-não-privilegiado, o ser-junto, vir-de-encontro. O mundo-circundante, devido ao caráter fundamental de abertura do ser-aí, conectado com um prévio encontrar-se e entender-se, constituirá a “base” do conhecer. Este conhecer possibilita o discurso. Por trás deste “conflito” o ser-aí “transcende” o ente, o que lhe permite, exatamente, apreender o ente como ente.

A faticidade

A analítica existencial abarca a preocupação em

seu caráter ontológico-existenciário, a saber, na constituição fundamental do projeto dejectado/lançado. O encaminhamento satisfatório desta problemática remete-nos a uma articulação originária que não se inicia num encasular-se, num exilar-se numa atmosfera “egóica”, porém, exatamente no seu contrário, num “abrir-se” ao ente e como ente; o ser-aí é ele mesmo claridade e clareira. O projetar-se entendedor do ser-aí para o seu poder-ser, determinado a partir de um em-vista-de-quê a coloca, a saber, a preocupação, também à base do querer e do desejar: ela é na faticidade como elemento irredutível. A partir da interpretação pré-ontológica da preocupação, que fornece o “impulso puro”, o “impulso de viver”, abrange-se todos os existenciários fundamentais. O ser-no-mundo, em seu vir-a-ser, é realização da preocupação; o ser-livre-para é sua concreção. Com base em tais diretivas colocamo-nos no caminho da afetividade. “No ser do estado-de-ânimo, o ser-aí, conforme o ser-do-estado-de-ânimo, já está sempre aberto como o ente ao qual o ser-aí foi entregue em seu

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ser como o ser que ele tem de ser existindo” (HEIDEGGER, 2012, p. 385).

O ser-aí é “carregado” de historicidade e faticidade. Compreende-se a primeira como sua constituição temporal, que possibilita a ideia dos fatos históricos e o conhecimento pela historiografia; a segunda concebemos como fundamentalidade do fato de existir na vida fática, ancorada “em meio” ao ente. Esta relação ininterrupta tem como sua contrapartida o projetar, que permite transcender os entes. A noção de temporalidade corresponde ao desclausuramento da subjetividade, na dinâmica passado, futuro e presente. Segundo Heidegger, a temporalidade representa o sentido do ser-aí espelhado em sua própria finitude. Este fluxo, que representa o enlace das grandezas citadas, Heidegger o caracteriza como “acontecer histórico”, que só existe historicamente porque o ser-aí é temporal no fundo do seu ser. “A temporalidade é o que se temporaliza” (NUNES, 2017, p. 53).

Atingimos assim o conceito seminal de abertura, ou seja, as condições ontológicas exigidas para o esforço interpretativo da realidade. Imerso na mundidade, com a liberdade sempre conduzindo o ser-no-mundo daquilo que é para aquilo que pode-ser, a intencionalidade de acordo com Heidegger é a ligação entre ser e existência. O conceito logos, como o “filósofo da finitude” o compreende, remonta a sua origem grega. Não como a arbitrária tradução por razão, conhecimento, porém, como discurso. Remontando a perspectivas fenomenológicas, o discurso é constituinte da abertura, ou seja, é concebido como estrutural. O falar e o calar fazem

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parte da dinâmica da interpretação, articulada pelo discurso; fala e linguagem estão nele contidas. “Dizer algo, de certa maneira, para alguém, numa tonalidade ou disposição de ânimo, nisso consiste o fenômeno do discurso em sua completa estrutura comunicativo-expressiva” (NUNES, 2017, p. 171). O mundo e a mundidade

Lançado diante do “caos” fático e histórico, o ser-no-mundo integra-se à realidade de entes do-interior-do-mundo, coisas naturais e coisas providas de valor. “‘Mundidade’ é um conceito ontológico e significa a estrutura de um momento constitutivo do ser-no-mundo” (HEIDEGGER, 2012, p. 199). Esta afirmação assinala o caráter fenomenológico do mundo, expresso na forma da mundidade. Iniciamos esclarecendo que tal conceito é uma determinação existenciária do ser-aí. Essa determinação só é possível porque o “conhecimento de mundo” é pré-ontológico no modus ser-no-mundo. Este também representa uma relação de “familiaridade” com o mundo. Conjuntação e significatividade serão as expressões desta familiaridade. A primeira aponta para a serventia, o junto-a para que a conjuntação aponta. A partir daí o ente vem de encontro para a ocupação como utilizável. Por sua vez, “a significatividade aberta, como constituição existenciária do ser-aí, do seu ser-no-mundo, é a condição ôntica da possibilidade de poder-ser-descoberta uma totalidade de conjuntação” (HEIDEGGER, 2012, 261).

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O mundo é um processo criador alicerçado no ser-aí; uma potência estrutural. Não falamos aqui do conceito cosmológico de mundo, tampouco deste como totalidade dos entes. Ser-no-mundo será a perspectiva ontológico-existenciária deste fenômeno, um modo-de-ser fundamental e unitário, envolvido pela mundidade, seu conceito constitutivo; um encontrar-se junto ao ente em sua totalidade. Tal concepção demonstra uma conexão de fundamentação. “E está fora de dúvida que subsiste uma diferença essencial entre o compreender a totalidade do ente em si e o encontrar-se em meio ao ente em sua totalidade. Aquilo é fundamentalmente impossível. Isto, no entanto, acontece constantemente na existência” (HEIDEGGER, 1969, p. 29). No cerne desta dinâmica repousa uma interpretação prévia, uma vinculação primordial.

Afirma-se, juntamente com Heidegger, que a relação do homem com o mundo, como sujeito-objeto, é demasiado problemática, pois tal relação anularia o conceito ser-no-mundo, caracterizando o mundo não como um constitutivo, porém, como um “acréscimo” ôntico. Também caracterizaria o ser-aí como um mero “ser dentro” do mundo. Deter-nos-emos, então, no conceito ontológico mundidade. Já se afirmou que o interesse fenomenológico é o modo-de-acesso ao fenômeno; da mesma maneira já rechaçamos a concepção sujeito-objeto.

Como já dissemos o ser-aí por natureza compreende a si mesmo a partir da sua existência. O derivado ontológico-existenciário ser-no-mundo “conjunta” a universalidade “coesa” com o ser-aí na

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forma de preocupação e ocupação. A primeira rege o cuidado-de-si e a preocupação-com-o-outro; a segunda rege o trato com o ente-não-privilegiado, o ser-junto, vir-de-encontro. O mundo-circundante, devido ao caráter fundamental de abertura do ser-aí, conectado com um prévio encontrar-se e entender-se, constituirá a “base” do conhecer. Este conhecer possibilita o discurso. Por trás deste “conflito” o ser-aí “transcende” o ente, o que lhe permite, exatamente, apreender o ente como ente.

Na vertente heideggeriana vem à-tona um processo de abertura-do-ser. O ser-aí, em seu modo-de-ser originário ôntico-existencial (ser-em), é lançado (jogado) no mundo, sendo a existência sua essência, o existir sua responsabilidade suprema e a preocupação o seu ser. Seu sentido ontológico a priori já é sempre em cada situação. O significado filosófico (ontológico-existenciário) da preocupação fundamenta todos os modos-de-ser que serão abordados. Trata-se de um conceito pré-ontológico, formador dos “processos” do encontrar-se, do entender-se e do discurso; segundo Heidegger, o ser-aí “pertence” à preocupação, ela é em cada comportamento fatual; não retida em cada fatualidade, onticamente falando, mas na interpretação dos estruturais já-ser-em e ser-junto-a, no expansivo ser-livre-para, característico do adiantamento em relação a si.

No encontrar-se (isto é, num estado-de-ânimo afetivo) o ser-aí é o seu aí. Esse aí complexo, entregue à sua própria responsabilidade, “encontra-se” em sua dejecção. “Encontrar-se e entender caracterizam a abertura originária de ser-no-mundo” (HEIDEGGER,

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2012, p. 419). No entender reside existenciariamente o modo-de-ser do ser-aí como poder-ser. Ele é e compreende-se a partir de suas possibilidades. A ideia de projeto participa do “avanço” do poder-ser para o poder-ser-mais-próprio. A totalidade da conjuntação, as conexões possíveis entre os entes e a significatividade e utilizabilidade são derivados do a priori entender-se. Desprovido desses modi, a saber, encontrar-se e entender-se, o ser-aí perderia sua característica de abertura, também não seria mais afetado pela mundidade; o ontológico-existenciário discurso não chegaria a existir. O mundo circundante não mais “atingiria” seu querer e agir, o “assenhoramento fatual” não seria possível, o poder-ser não participaria da realidade estrutural do ser-aí; extinção consolidada, a dejecção e a conjuntação, os estados-de-ânimo e o caráter-de-projeto, se perderiam por completo, o ser-aí seria uma ilusão e a fenomenologia uma quimera.

Outro tópico é o a priori discurso. “Como constituição existenciária da abertura do ser-aí, o discurso é constitutivo para sua existência” (HEIDEGGER, 2012, p. 455). O discurso é a articulação da significatividade, algo como a significação do ser. Na tessitura da significação ontológica, possui a mesma originalidade do entender e do encontrar-se, e está em estreita conexão com estes, sendo assim como estes fundamentos do ser-aí. O discurso é constitutivo a priori do ser-aí, o ouvir e o calar articulam a entendibilidade do ente privilegiado. A contínua emergência da interpretação e da enunciação caracterizam o homem como o ente que discorre; “o ser-aí tem linguagem”.

Terceiro Capítulo

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Para entendermos a ontologia e a fenomenologia como Heidegger as compreende, procurou-se traçar um itinerário a partir do cerne da problemática heideggeriana, a saber, o problema do ser, “percorrendo” suas manifestações expressas na temporalidade, faticidade e mundidade, de modo a “irradiar” sua natureza ontológica na investigação, o que implicou numa reformulação de conceitos vigentes até então. Assim iluminada, a ontologia apresenta-se enquanto ontologia fenomenológica. “Mas essa conversão efetua-se por obra do alcance hermenêutico que a Fenomenologia toma ao ser reinterpretando o princípio da intencionalidade” (NUNES, 2012, p. 60). Envolver-se na exploração do arcabouço conceitual heideggeriano exigiu da presente investigação percorrer a concepção de ser da antiguidade à contemporaneidade. Com base nisso assumimos, em concordância com Heidegger, a precedência ôntico-ontológica da questão do ser, por ser esta a questão que envolve diretamente o ser-aí na investigação Fenomenológica; faina que sintetiza toda a empreitada heideggeriana. Referências HEIDEGGER, M. Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. Trad. de Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. __________. Ontologie. Hermeneutik der Faktizität. In: GA 63, (Frühe Freiburger Vorlesung Sommersemester 1923), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1988.

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___________. Que é metafísica. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1969. ___________. Ser e Tempo. Edição bilíngue. Trad. Fausto Castilho. Campinas: Editora Unicamp; Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012. ___________. Título I: Sobre a essência da verdade. Título II: A tese de Kant sobre o ser. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1970. NUNES, B. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger. São Paulo: Edições Loyola, 2012. __________. Heidegger. São Paulo: Edições Loyola, 2017. __________. No tempo do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

Quarto Capítulo

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Quarto Capítulo

A virada filosófica heideggeriana na Introdução à Fenomenologia da Religião

Marcelo Ribeiro da Silva

Introdução

No início do inverno de outubro de 1920, na universidade de Freiburg, o jovem Martin Heidegger, professor assistente de Husserl, abriu sua preleção “Introdução à Fenomenologia da Religião” tratando a respeito do sentido de se ocupar com a introdução à filosofia. No decorrer da preleção, Heidegger retoma, insistentemente, tanto em perguntas quanto em afirmações, a tarefa de voltar à questão de uma compreensão própria da filosofia. Todavia, ele não propõe que se revisite os caminhos percorridos do pensamento, nem alguma outra vereda em especial da filosofia até então, mas comunica um argumento detonador das estruturas cristalizadas do filosofar moderno e do qual ele está convencido: “a filosofia mesma só é alcançada por meio de uma inversão no caminho” (HEIDEGGER, 2014, p. 15).

Este capítulo apoia-se na inspiração heideggeriana de retomar o tema da autocompreensão da filosofia. Em particular, o que se almeja é percorrer as considerações de Heidegger a respeito da ciência, filosofia e experiência fática da vida, sob a orientação das quais é possível confrontar-se com a proposta de

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introdução à fenomenologia da religião do jovem Heidegger. O ideal científico da filosofia

Heidegger principia seu estudo meditando sobre a maneira como se faz filosofia no seu tempo. Cuidadosamente o filósofo desenha a realidade da qual a filosofia se arranca e em torno do que ela se move. Sua análise aponta para uma relação estreita entre filosofia e ciência, no caso, uma filosofia que orbita o ideal científico.

O eixo da idealização da ciência é uma modalidade consagrada de tomada do conhecimento influente desde Descartes e assumida inclusive por Husserl: o conhecer se dá pela ocupação rigorosa com os objetos, postulado fundamental nas ciências físicas e matemáticas (ESCUDERO, 2007, p. 11). Para tal tarefa, demanda-se do sujeito conhecedor uma atitude teórica intencionada a reduzir a totalidade do mundo aos esquemas da teoria do conhecimento (GRUPILLO, 2014, p. 78). Segundo Heidegger, o ideal científico é

conformar uma ordem do objeto de modo cada vez mais rigoroso, ou seja, uma lógica temática, um complexo temático, uma lógica que esteja radicada nas coisas mesmas (HEIDEGGER, 2014, p. 21).

Na perspectiva científica, as razões pelas quais

uma ciência alcança sua emancipação, ou seja, sua cidadania enquanto âmbito de pesquisa e produção de saber, é a conformação ao esquema usual da

Quarto Capítulo

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introdução ao pensamento científico, ou seja, ocupar-se:

a) da delimitação da matéria; b) da doutrina do trabalho metódico, com a matéria (a e b podem ser resumidos assim: fixação do conceito de objeto e da tarefa da ciência); c) da observação histórica das investigações precedentes de colocar e resolver tarefas científicas (HEIDEGGER, 2014, p. 21).

Na prática, essa concepção de uma unidade

formal entre as ciências tornou-se sinônimo de precisão e exatidão no exercício de elaborar conhecimento. Tal ideal passou a ser perseguido por todos os grandes filósofos, que sob a regência dos princípios da ciência ambicionaram validar uma filosofia rigorosamente científica (HEIDEGGER, 2014).

A aliança entre filosofia e ciência gerou inclusive uma narrativa sobre o desenvolvimento do saber em que todas as ciências adviriam da filosofia, a mãe do pensamento teórico, a ciência geral da qual se desprenderam todas as demais disciplinas (HEIDEGGER, 2014, p.12). Ademais, nesse processo de equiparação entre a filosofia e a ciência, na realidade, a filosofia buscava seu modo de existir numa cultura cientificista (HEIDEGGER, 2014, p.20).

Mas, o que significa filosofar à luz da compreensão científica? É referendar o projeto do conhecimento científico, de modo particular, empreendendo uma rigorosa conformação do mundo à lógica objetiva. Sua tarefa é oferecer uma mundividência de caráter objetivo (HEIDEGGER, 2014, p. 15); sua ocupação é com “objetos superiores ou supremos, com as primeiras e as últimas coisas”

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(HEIDEGGER, 2014, p.19), sua orientação é o “último nexo estrutural da objetualidade em geral” (HEIDEGGER, 2014, p.21). Enfim, na filosofia estão presentes embrionariamente todas as outras ciências, porque ela engendra e arrazoa o grande empreendimento científico: o “ocupar-se cognoscitivo do mundo” (HEIDEGGER, 2014, p. 12). A crítica de Heidegger à filosofia

A descrição heideggeriana do ideal científico da filosofia, progressivamente descerrou a questão sobre como a filosofia se autocompreende. A constatação do filósofo é de que ao interpretar-se como uma ciência, a filosofia expatriou-se de si mesma. Quanto mais crescia seu fascínio pelas definições objetuais do mundo, cada vez mais rigorosas, em especial, aquelas que “transcendem a experiência sensível” (HEIDEGGER, 2014, p. 21), tanto mais se sedimentava seu nivelamento científico, que, a propósito, significa sua perda de si mesma (EVANGELISTA, 2008, p.40).

No nivelamento entre filosofia e ciência subentende-se que ambas partilham um mesmo contexto racional, quando, na realidade, tal equiparação acaba por acobertar a distinção radical de princípios entre elas. Heidegger pontua essa profunda incompatibilidade na afirmação:

Somente uma determinada modificação formadora de um momento interno da filosofia, o qual, porém, ainda permanece na filosofia em sua forma originária, portanto, ainda não modificado, transforma as ciências durante o surgimento da filosofia, e, através

Quarto Capítulo

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do modo próprio determinado de surgir, em ciências. As ciências, portanto, não estão na filosofia (HEIDEGGER, 2014, p. 12).

Nesses termos, Heidegger situa as origens do

conhecimento científico no contexto de eclosão da própria filosofia, como um momento de modificação no seu interior, mas, principalmente, o fez para distingui-lo da filosofia e, posteriormente poder afirmar: “com a definição da filosofia enquanto comportamento racional de conhecer, nada é dito em absoluto, mas submete-se ao ideal da ciência” (HEIDEGGER, 2014, p. 13). Ou seja, existe uma diferença entre filosofia e ciência que é originariamente de natureza, enquanto a questão da autocompreensão da filosofia não vier à tona, ela continuará interpretando-se como ciência e nada terá a dizer sobre o filosofar (EVANGELISTA, 2008, p. 40).

A questão “o que é a filosofia?” passa, então, a ser perseguida vivamente na preleção de Heidegger. O pensador demonstra de modo evidente estar convencido de que não é possível ter acesso à filosofia à maneira da conformação objetiva: “o que a filosofia mesma é, não se deixa jamais colocar cientificamente em evidência, porém só na filosofia mesma se torna clara” (HEIDEGGER, 2014, p. 13). A busca pela compreensão da filosofia toma para si uma nova orientação, filosofar sem se prender a qualquer forma de teorização (HEIDEGGER, 2014, p. 20).

A propósito, esse processo significa trazer à luz as razões pelas quais a filosofia é inacessível à via do conhecimento teórico. Heidegger, na medida em que alavanca a pergunta sobre o filosofar, põe em evidencia

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a degeneração do pensar filosófico. Propriamente, uma filosofia ocupada com objetos é uma deformação do filosofar, só possível quando se arrancou a filosofia de seu ambiente de origem. Com efeito, o que Heidegger pôs em evidência foi que o conhecimento científico não é filosófico e, também nunca terá acesso ao mesmo, porque aquilo com o que a filosofia se ocupa é incompatível com toda forma de conformação objetual: a vida fática (EVANGELISTA, 2008, p. 14). E sobre isso, Heidegger corrobora com a afirmação:

Como podemos chegar a uma autocompreensão da filosofia? Abertamente, em princípio, a tese elimina a vida da dedução científica: também não através da tarefa da ‘objetualidade’ da filosofia. É possível que, em hipótese alguma, a filosofia não se ocupe com um objeto. Talvez não devêssemos perguntar pela sua objetualidade (HEIDEGGER, 2014, p. 15).

A virada fenomenológica da filosofia

As considerações introdutórias de Heidegger sobre a filosofia atingem seu cume na apresentação do conceito de experiência fática da vida. A busca do filósofo por tornar a filosofia clara para si mesma, fê-lo encaminhar-se para a busca da motivação mais originária do filosofar, para seu ponto de partida. A metáfora do caminho invertido é o modo pelo qual Heidegger faz-se entender em sua preocupação com o acesso à filosofia e a implicada renovação da mesma.

Qual é o caminho para a filosofia? Até seu momento, adverte Heidegger, os filósofos trilharam veredas que os afastaram do filosofar. Por trás da

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diversidade de itinerários filosóficos aconteceu um erro em comum: dissociou-se a filosofia da experiência fática da vida. Segundo Heidegger, ocorreu que, sem a experiência fática da vida, os caminhos da filosofia inabilitaram-se em sua própria missão; isso significou, no dizer do filósofo, que “cada caminho, de alguma maneira, conduz apenas diante da filosofia, não porém até ela” (HEIDEGGER, 2014, p.15).

Nesse sentido, ao propor uma inversão do caminho para o filosofar, Heidegger não está simplesmente operando uma reorientação do exercício filosófico, isso ainda poderia conservar uma certa espécie de ocupação objetual, alicerçada na estrutura submersa do sujeito-objeto (HEIDEGGER, 2014, p. 15). A inversão é a radical transformação da própria filosofia, é um salto na e para a experiência fática da vida mesma (HEIDEGGER, 2014, p. 13). Isso significa, tematizar a vida fática sem sacar-se da experiência em dinâmica, imergir na vida fática para recobrar as motivações puramente filosóficas, sem, contudo, deformá-la em determinações, sistemas e esquemas, exatamente, sem objetificá-la. (EVANGELISTA, 2008, p. 47). Vale reforçar essas mesmas preocupações filosóficas com a citação:

Mais que estabelecer um sistema da vida, mais que sinalizar a existência de uma nova realidade, se trata de pensar a vida e sua história como o mar em que já se está navegando. Todos os homens vivem na história, porém muitos não sabem. Outros sabem que seu tempo é histórico, porém não vivem como tal (ESCUDERO, 2007, p. 16).

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Assim, a filosofia não é tomar conhecimento acerca da vida, mas confrontar-se com o sentido e a originalidade da vida (HEIDEGGER, 2014, p. 16), é empreender o filosofar no próprio curso da vida em si mesma (ESCUDERO, 2007, p. 17). No trato teórico, a realidade da vida sempre é tomada por pressuposto, como uma questão de tamanha obviedade, ademais, irrelevante para qualquer iniciativa filosófica (HEIDEGGER, 2014, p. 19). Entretanto, é na vida fática que se concentra as forças para o giro mais radical da filosofia:

Por já sempre deixarmos passar despercebido o prodígio da vida, por ela estar próxima demais de nós, por nós a sermos e ela ser nós mesmos, o caminho de retorno do pensamento para a originariedade da vida é o mais distante de todos os caminhos. Por isso, a originariedade da vida nunca está aí - simplesmente dada como uma ocorrência. Ela precisa ser aberta, acessada e alcançada, sim, fundada, no movimento de busca do próprio pensar (FERNANDES, 2015, p. 16).

A filosofia em que Heidegger acredita ser capaz

de articular uma compreensão da vida a partir dela mesma é a fenomenologia. De certa maneira, ela é resultado de uma decisão metodológica, onde para se “acender genuína, direta ou imediatamente ao fenômeno originário da vida, há que se desenvolver um método capaz de captar o sentido da vida e de suas vivências” (ESCUDERO, 2007, p. 16), todavia, diferente dos sistemas metodológicos, no exercício fenomenológico o método é uma questão de acesso à experiência fática (HEIDEGGER, 2014, p. 34).

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O que isso quer dizer? Na fenomenologia o método não é um caminho pelo qual se realiza a regulação objetiva da vida, mas, um trato com a própria experiência da vida fática, pelo qual a vida pode se mostrar a si mesma desde si mesma. O rigor metodológico não está em qualquer forma de conformação objetual, mas em deixar ser e acolher o fenômeno em seu aparecimento, sem forçá-lo a qualquer lógica que não seja sua própria forma de articulação (FERNANDES, 2015, p. 15). É uma tarefa propriamente de compreensão do ser que se dá no fenômeno da vida fática. Considerações finais

Como visto, a proposta que Heidegger tem para a introdução à fenomenologia da religião é uma radical inversão na história da filosofia, que desmonta um ideal de objetividade e de ciência, em torno ao qual a filosofia orbitou em quase todo o seu existir. Na realidade, o pensador devolveu a filosofia ao seu ambiente originário, a vida mesma em seu processo de realização histórica.

De fato, a vida em sua faticidade fascina Heidegger desde sua juventude. A virada filosófica desenhada na Introdução à Fenomenologia da Religião ainda passará por um longo processo de amadurecimento até alcançar a estatura da analítica existencial na obra Ser e Tempo, mas surpreende perceber como a filosofia de Heidegger aproxima-se da vida e como consegue fazer emergir de uma realidade

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tão ordinária e familiar uma eloquente extraordinariedade. Referências ESCUDERO, J. A. El programa filosófico del joven Heidegger. Em torno a las lecciones de 1919. La ideia de la filosofia y el problema de la concepción del mundo. Eidos: Revista de Filosofia de la Universidade del Norte, Barranquilla, n. 7, ago. 2007, p. 10-27. EVANGELISTA, P. E. R. A. Heidegger e a fenomenologia como explicitação da vida fática. São Paulo: PUCSP, 2008. 119p. (Dissertação de Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. FERNANDES, M. A. Fenomenologia da faticidade da vida religiosa cristã desde o Novo Testamento: mundo, si-mesmo, temporalidade. Revista Brasileira de Filosofia da Religião, Brasília, v. 2, n. 2, dez. 2015, p. 14-34. GRUPILLO, A. Fenomenologia da vida religiosa: história e método na interpretação das epístolas paulinas do jovem Heidegger. Numem: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 17, n. 2, jul./dez. 2014, p. 73-98. GONÇALVES, P. S. L. A religião à luz da fenomenologia hermenêutica heideggeriana. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, p. 566-583, abr./jun. 2012. HEIDEGGER, M. Fenomenologia da Vida Religiosa. Trad. de Enio Paulo Giachini, Jairo Ferrandin, Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

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__________. Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. 2 ed. Trad. de Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. __________. Ontologie. Hermeneutik der Faktizität. In: GA 63, (Frühe Freiburger Vorlesung Sommersemester 1923), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1988. __________. Ser e Tempo. 10.ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015. __________. Sein und Zeit. In: GA 2, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt, V. Klostermann Verlag, 1977. KIRCHNER, R. Heidegger: da filosofia fenomenológica à fenomenologia da religião. Numem: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 17, n. 2, jul./dez. 2014, p. 135-168. PIEPER, F. Filosofia e teologia em Heidegger. Notas sobre a conferência Fenomenologia e teologia de 1927. Numem: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 17, n. 2, jul./dez. 2014, p. 99-134.

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Quinto Capítulo

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Quinto Capítulo

O homem como ser espiritual: Uma análise do fenômeno religioso segundo Max Scheler, Martin Heidegger e Agostinho de Hipona

Ademir Menin

Introdução

Este capítulo tem como propósito fazer um estudo, ainda que incipiente, do pensamento de Max Scheler a respeito da religião. Além do mais, far-se-á uma tentativa de aproximação entre o pensamento do autor referido com a filosofia de Heidegger e de Agostinho de Hipona no que se refere à busca do Homem pelo sentido da existência desse mundo e do próprio ser humano. O ponto de partida de tal estudo é a obra de Scheler A posição do Homem no cosmos, mais especificamente o capítulo VI, o qual versa sobre a religião e a metafísica.

Para Scheler, quando se fala em “Homem”, aparecem logo três filões de pensamento: um ligado ao pensamento judaico-cristão, outro centrado na filosofia grega e outro ainda que contempla o pensamento moderno ligado à ciência da natureza e à psicologia genética (SCHELER, 2003, p. 5).

O que se pretende com esse artigo é analisar a primeira tendência, ou seja, aquela incline a pensar o homem sob o aspecto mais ligado à religiosidade judaico-cristã, a qual pensa o homem inserido no contexto da tradição religiosa que vê o cosmos como

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criatura de Deus, o qual é o começo e o fim de todas as coisas.

Além do mais, objetiva-se fazer um accostamento, como se diz em italiano, isto é, uma “aproximação” com o pensamento de Heidegger e de Agostinho, os quais também se preocupam em explicar o homem e o sentido de estar nesse mundo sob o aspecto religioso e espiritual.

No intuito de posicionar o homem no cosmos, Max Scheler faz uma análise do ser humano em relação às plantas e aos animais (SCHELER, 2003, p. 8-33), mostrando as características peculiares de cada grupo de seres vivos e, principalmente, a característica peculiar do ser humano como único ser que possui algo a mais do que uma simples inteligência, visto que também os animais são considerados seres inteligentes. O homem é possuidor de algo a mais do que os animais e as plantas: possui “espírito”, “abertura de mundo”, “autoconsciência”, “pura atualidade do espírito” (SCHELER, 2003, p. 36-46). Enquanto que o animal, com as suas pulsões, se relaciona com o meio ambiente onde está enquadrado de maneira muito superficial, o homem vai muito além disso, pois tem abertura para o mundo, possui um mundo e o ultrapassa em razão do seu espírito, da sua autoconsciência.

O ato espiritual, tal como o homem pode realizá-lo, está em contradição com a simples resposta do esquema corpóreo do animal e do seu conteúdo essencialmente vinculado a uma segunda dimensão e a um segundo estágio do ato reflexo. Nós gostaríamos de chamar este ato de “reunião”,

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denominando-o juntamente com a sua meta, a meta deste “recolhimento em si”, “consciência de si mesmo por parte do centro espiritual do ato”, ou autoconsciência. O animal tem consciência, diferentemente das plantas, mas não tem nenhuma autoconsciência, como já o vira Leibniz. Ele não possui a si mesmo, não detém o poder sobre si mesmo – e por isso também não é consciente de si. Reunião, autoconsciência e capacidade objetiva de resistência pulsional originária formam uma única estrutura ilacerável que, como tal, só é própria ao homem (SCHELER, 2003, p. 39).

O que se pode notar no pensamento de Scheler

de maneira explícita é que no homem existe aquilo que podemos chamar de individualidade, ou seja, cada indivíduo humano responde pela espécie, como por outro lado o fazem os outros seres vivos, mas também tem a capacidade de superar esse patamar e comportar-se de maneira individualizada, ultrapassando os parâmetros da regularidade natural, isto é, do determinismo que a natureza impõe a todos os viventes (SCHELER, 2003, P. 41). Portanto, a autoconsciência faz com que o homem tenha uma “marcha” a mais em relação às plantas e aos animais, pois sem ela estaríamos em um estágio de sobrevivência e conservação da espécie similar à situação de todos os outros seres do cosmos.

A partir dessas reflexões, as quais remetem o Homem a uma dimensão superior ao mundo vegetal e animal, pode-se concluir que a religião também é um produto da superioridade do ser humano em relação a todos os outros seres animados e não animados

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presentes no universo. Por isso, passa-se aqui à análise desse fenômeno humano da religiosidade, o qual é presente em toda a história da Humanidade desde os seus primórdios, ainda que de maneira rudimentar. Sendo um fenômeno humano, a reflexão filosófica não pode deixar de interessar-se profundamente, pois do contrário, estaria incorrendo em uma grave omissão.

Segundo Scheler, a religião e a metafísica estão enraizadas naquilo que ele mesmo chama de “estrutura fundamental do ser humano” (SCHELER, 2003, p. 85). O fato de o ser humano transcender o mundo físico palpável com os sentidos e restrito a eles, o qual os outros seres também são capazes de tanger, mostra exatamente o específico do Homem. Portanto, o lugar ocupado por ele no cosmos é bem específico e peculiar, pois nenhum outro ser pode ocupá-lo.

O pensamento scheleriano em relação à metafísica e à religião parece coincidir com o que pensa Heidegger e, por que não admitir, é aderente também ao pensamento de Agostinho. Esse último diz em algumas passagens que é preciso procurar Deus e encontrá-lo dentro de si mesmos. É no interior do Homem que se encontra a resposta de todas as perguntas que “chicoteiam” o ser humano desde sempre sobre o sentido de tudo o que existe. Daí a necessidade da “segunda navegação” de Platão, ou seja, a metafísica, e da “terceira navegação” de Agostinho, que é a fé. Na autoconsciência, para Scheler, é onde se encontra a chave que abre as portas para uma explicação do sentido do ser do Mundo e do Homem.

No mesmo instante em que se torna consciente em geral do mundo e de si mesmo, o homem precisa

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descobrir, com uma necessidade explícita, o acaso peculiar, a contingência do fato de “que há um mundo e não antes não há” e de “que o mundo mesmo é e não antes não é”. Por isso, é um erro completo deixar o “eu penso” (Descartes) ou “o mundo é” (Tomás de Aquino) preceder a sentença universal “há um ser absoluto” e querer alcançar a esfera do absoluto antes de tudo através da dedução a partir daqueles modos de ser. Consciência do mundo, do si próprio e de Deus formam uma unidade estrutural ilacerável – exatamente como a transcendência do objeto e da autoconsciência emergem justamente no mesmo ato, na “terceira reflexão” (SCHELER, 2003, p. 86-87).

Scheler dá uma interessante explicação do

nascimento da metafísica e da religião. Segundo ele, o afastamento do mundo humano em relação à natureza faz com que o homem se torne excêntrico em relação ao mundo mesmo. Esse é o motivo que ocasiona o aparecimento da metafísica em alguns povos e da religião. No caso da religião, o fenômeno é difuso na Humanidade inteira. A religião funcionaria, estando aderente ao pensamento de Scheler, como uma espécie de explicação de tudo aquilo que não encontra explicação no mundo natural. Onde a ciência não alcança com as suas explicações, a metafísica e mais propriamente a religião podem alcançar através de seus braços prolongados. Portanto, pode-se afirmar que a metafísica e a religião são parentes muito próximas enquanto ambas procuram resolver dilemas do mundo humano e da natureza em geral indissolúveis de outro modo.

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Seria plausível afirmar que a religião é uma construção puramente humana, uma explicação do mundo e do sentido da vida baseada em crenças que mudam de povo para povo, de tempos em tempos? Talvez seja temerário afirmar isso levando em consideração toda a cultura religiosa construída ao longo de tantos séculos de história, ao menos no ocidente; porém, no intuito de defender certa liberdade de pensamento em favor da pesquisa sincera e comprometida com os ditames da busca do ser humano pelo sentido da vida, pode-se afirmar isso e concordar com a seguinte ideia de Scheler sobre a religião, depois de ter falado de maneira análoga em relação à metafísica:

Mas ele também poderia povoar esta esfera ontológica com figuras quaisquer a partir de um impulso incontrolável para buscar abrigo – não apenas para o seu ser singular, mas primeiramente para todo o seu grupo – sobre a base e com a ajuda do descomunal excesso da fantasia que, em contraposição ao animal, estava depositado nele desde o princípio, a fim de se refugiar em seu poder por intermédio do culto e do rito e de receber “atrás de si” algo de proteção e auxílio, uma vez que parecia estar caindo no puro nada em meio ao ato fundamental de seu afastamento da natureza e de sua objetivação da natureza – e em meio ao vir-a-ser concomitante de seu ser si próprio e de sua autoconsciência. A superação deste niilismo na forma de tais buscas por abrigo, apoio, é o que denominamos religião. Ela é primariamente religião de grupos e de povos. Ela só se tornou muito posteriormente, juntamente com a origem do

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Estado, “religião de um fundador” (SCHELER, 2003, p. 87-88).

Scheler, portanto, estando à sua maneira de

pensar, defende a religião enquanto constituinte essencial do ser humano. Em outra sua obra ele destaca a necessidade de uma renovação da religião para que o Homem possa descobrir e entender melhor o sentido da vida. Além do mais, visto que o sistema scheleriano é claramente forjado sobre o aspecto ético da vida, torna-se ainda mais evidente a necessidade do aspecto religioso na construção do sentido de ser (SCHELER, 2015, p. 133-485). Isso não significa que o filósofo deva ser um homem de fé quando faz filosofia ou ser partícipe necessariamente de uma comunidade religiosa centrada na prática permanente de ritos. Trata-se de perceber a importância e a essencialidade da religião como elemento típico da vida humana.

A mesma atitude filosófica pode-se notar em Heidegger quando fala, no início da conferência de Marburgo sobre o conceito de tempo, que o filósofo não tem fé, ou seja, enquanto fala como pesquisador ele deve dar precedência à razão e não à fé, pois deve reservar-se a possibilidade de pensar sem “reservas”, livre de qualquer amarra dogmática e comprometido tão somente com a verdade que a razão pode alcançar (HEIDEGGER, 1998, p. 24).

O que se pretende com a pesquisa direcionada à religião não é a anulação desse fenômeno humano, empresa que seria impossível e até mesmo deletéria para quem se propusesse a trilhar tal estrada, mas entender a essência desse fenômeno, na medida das possibilidades da razão humana, para poder dar bases

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sólidas a tal dimensão da existência. Só o ser humano pode questionar a natureza e a si próprio e buscar respostas. Portanto, é justo que o homem se conceda a liberdade de interrogar o mundo em geral para obter respostas, quaisquer sejam elas, pois a Verdade é algo buscado e almejado por todos (HEIDEGGER, 2014, p. 181). Nesses termos se exprime Heidegger quando fala de Agostinho a respeito das interrogações que o Bispo de Hipona se coloca em relação a Deus (HEIDEGGER, 2014, p. 162-163). Tudo o que o Homem deseja é constatar a sua posição no cosmos, para usar uma expressão de Scheler, e descobrir algo que possa fazê-lo superar a condição puramente física do mundo que nos rodeia.

Nas pesquisas empreendidas por Heidegger sobre o modo de buscar Deus no próprio interior (HEIDEGGER, 2014, p. 184-187), o professor de Freiburg deixa-se guiar pelas exposições de Agostinho, o qual, cheio de dúvidas sobre Deus e a própria fé, tenta encontrar a veia que conduz à fonte do entendimento, precário que seja, da própria existência. Nesse sentido, Agostinho põem-se a questão do que é amado quando ele diz amar a Deus. A conclusão é que o objeto amado não se encontra fora, mas dentro da própria alma; a resposta de todas as questões existenciais está dentro, no interior do sujeito que se coloca a pergunta.

A partir dessas reflexões é possível perceber a grande preocupação do pensamento contemporâneo, aqui representados por Scheler e Heidegger, por um tema tão antigo e tão novo como o da religião. Parece que tal tema retorna à crista da onda da filosofia contemporânea, atestando a grande importância de tal

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reflexão. O que se pretende não é a defesa de uma ou outra doutrina religiosa, mas a busca de esclarecimento de um fenômeno fundamental da existência humana: a religião. Esse pequeno estudo deixa muito a desejar, não há dúvida, mas é o início de uma reflexão que pode dar bons frutos se for cultivada com cura, com cuidado.

Considerações finais

Para finalizar, já que o núcleo central de tal

estudo é Max Scheler, como não lembrar as reflexões realizadas no final do século passado por Karol Wojtyła, o qual se debruçou sobre os escritos do filósofo alemão tentando encontrar neles um fundamento para a religião cristã. A hipótese do estudo se baseava na busca de uma possibilidade de basear a moral cristã no sistema ético-filosófico de Max Scheler, haja vista que a principal fonte de reflexão do filósofo era aquela ligada à ética, fundando, assim, uma “fenomenologia da ética”. As conclusões do Papa polonês são claras (WOJTYŁA, 2003, p. 439-449), pois afirmam a impossibilidade de fundar o sistema ético cristão sobre o sistema filosófico de Scheler. Porém, afirma também que tal sistema não pode ser descartado, pois serve como ponto de apoio para toda uma reflexão ao redor do sistema ético cristão. Entende-se, portanto, a grande importância desse filósofo, Max Scheler, para a filosofia contemporânea, principalmente no que diz respeito à fenomenologia. Tratando-se do tema “Religião”, as contribuições do filósofo são extremamente interessantes e profícuas para a reflexão filosófica.

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Referências

AGOSTINHO, S. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2017. BROWN, P. Santo Agostinho: uma biografia. Trad.Vera Ribeiro. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2017. COSTA, V. Heidegger. Trad. Yvone Teixeira da Silva. São Paulo: Ideias e letras, 2015. HEIDEGGER, M. Il concetto di tempo. A cura di Franco Volpi. Milano: Adelphi, 1998. ____________. Fenomenologia da vida religiosa. Trad. Enio Paulo Giachini; Jairo Ferrandin, Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. NOVAES, M. A razão em exercício: estudos sobre a filosofia de Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial, 2007. SCHELER, M. Da reviravolta dos valores. Trad.: M. A. Casanova. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2012. ____________. Do eterno no homem. Trad.: M. A. Casanova. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2015.

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____________. A posição do homem no cosmos. Trad. de M. A. Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. VATTIMO, G. Introduzione a Heidegger. Roma-Bari: Laterza, 2000. WOJTYŁA, K. Metafisica dela persona: Tutte le opere filosofiche e saggi integrativi. A cura di G. Reale e T. Styczeń. Milano: Bompiani, 2003.

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A psicanálise existencial e sua base hermenêutica:

aproximação entre Heidegger e Sartre

Marivania Cristina Bocca

Se eu quiser compreender a parte da liberdade e do destino naquilo que chamamos de “sofrer uma influência”, posso refletir sobre a influência que Heidegger exerceu sobre mim. (SARTRE, Diário de uma guerra estranha, 1983, p. 174)

Introdução

Iniciamos nossa exposição, apontando para a contribuição, bem como, para aquilo que entendemos ser um dos pontos de convergência nas teorias de dois grandes filósofos em questão, respectivamente, Heidegger e Sartre no que compete ao rompimento com a ideia de uma psicologia, cujo modelo estava pautado nas categorias das ciências naturais. Ambos manifestavam em seus estudos, uma preocupação em melhor compreender o ser do homem, de forma analítica-compreensiva, abolindo, por completo, a ideia de uma egologia empírica. Além do exposto, pretendemos investigar também, em que medida a Psicanálise Existencial de Sartre poderia convergir, sob alguns aspectos, com a filosofia de Heidegger, em especial, na hermenêutica fenomenológica.

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Heidegger e a hermenêutica da faticidade: uma herança à compreensão onto-fenomenológica em Sartre

Dentre inúmeros filósofos que se apropriaram dos fundamentos da fenomenologia de Husserl, cabe-nos mencionar seu “discípulo dissidente” (SARTRE, 1983, p. 178), o filósofo alemão Martin Heidegger, que não apenas fundamentou sua hermenêutica da faticidade partindo de pontos que convergiam com a fenomenologia de Husserl, bem como de tantos outros que divergiam. Embora a filosofia de Heidegger tenha como base os pressupostos teóricos da fenomenologia de Husserl, no entanto, difere desta em muitos pontos. Um dos pontos que Heidegger se afasta de seu mestre, é a noção de idealismo fenomenológico, ao propor uma nova forma de compreender o ser do homem. Sartre (1983, p. 176) seguiu a mesma linha de raciocínio de Heidegger, após o período que estudou fenomenologia na Alemanha e, “pouco a pouco, sem que eu percebesse [...] um fosso cada vez mais largo me separava de Husserl: sua filosofia, no fundo, evoluía para o idealismo, coisa que eu não podia admitir [...]”.

A fim de compreender a gênese dos pressupostos teórico-metodológicos que compuseram o arcabouço da onto-fenomenologia proposta por Sartre, falaremos, da herança filosófica de Heidegger, no pensamento de Sartre. Apesar das inúmeras contestações e críticas feitas pelo filósofo francês em relação a analítica existencial de Heidegger, ainda assim, Sartre pautou-se na premissa de que para compreender a existência humana, faz-se necessário analisar o ser-no-mundo, em

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sua condição fática, como um homem situacional-relacional, portanto, sócio-histórico e dialético. Sartre em Diário de uma Guerra Estranha (1983) diz que:

Algumas vezes essa influência me pareceu, nestes últimos tempos, providencial, pois me ensinou a autenticidade e a historicidade no momento exato em que a guerra ia fazer com esse conhecimento fosse indispensável. Se tento imaginar o que teria sido o meu pensamento sem esses utensílios, sinto um medo retrospectivo. Quanto tempo eu ganhei! Estaria agora tentando ainda desvendar as grandes ideias fechadas, a França, a História, a morte; sentindo-me talvez indignado com a guerra, recusando-a com todo o meu ser (SARTRE, 1983, p. 174-175).

Na filosofia heideggeriana, um dos conceitos mais

marcantes é, sem dúvida, o conceito de Dasein (ser-aí), que permite uma compreensão acerca do sentido do ser, a partir do próprio ser. O homem é um ser que se mostra no tempo e, por ser dotado de linguagem, tem a condição necessária para a manifestação do próprio ser no tempo. O ser-aí não é simplesmente presença, mas sim um ser que se apresenta no mundo e para o mundo, com a possibilidade de atuar, cabendo a ele, fazer escolhas. Este era portanto, o ponto de partida da tentativa de Heidegger em mostrar que o existir humano em seu fundamento essencial não era, nunca, o sentido do ser do ente em geral, mas sim o homem como ser-aí. De todos os entes, o homem é o único ao qual é, de fato, exigida uma solução para a questão do existir.

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Ser ontológico ainda não diz aqui elaborar uma ontologia. Por isso, se reservamos o termo ontologia para designar o questionamento teórico explícito do sentido do ser, então este ser-ontológico da pré-sença deve significar pré-ontológico. Isso, no entanto, não significa simplesmente sendo um ente, mas sendo no modo de compreensão do ser (HEIDEGGER, 1988, p. 38).

Logo, para Heidegger o homem não existe apenas

como um ser, no sentido ôntico, mas ontológico, à medida que compreende o próprio ser. Com base no exposto, emerge o questionamento: a compreensão do ser, que Heidegger lança mão, é existencial? Não raro, surge entre aqueles que se interessam pelo estudo da compreensão do ser, o seguinte questionamento: não seria a filosofia do ser-aí uma espécie de filosofia existencialista, tal qual apresentada por filósofos como Sartre e Simone de Beauvoir? Para aqueles que se dedicam à teoria de Heidegger, tal qual Kahlmeyer-Mertens (2015, p. 40), a filosofia heideggeriana não é uma filosofia existencialista, mas sim uma filosofia “serista”.

No ano de 1945, [...] Jean-Paul Sartre profere sua conferência O existencialismo é um humanismo [...]. O texto de Sartre [...] pretendia tornar compreensíveis algumas das mais badaladas premissas dessa corrente e, antes de tudo, esclarecer o que, afinal, seria o existencialismo [...]. Sartre não apenas classifica como nomeia duas espécies de filósofos existencialistas: “Os primeiros, que são cristãos [...] de outra parte, os existencialistas ateus, entre os quais é preciso incluir Heidegger [...]”. Foi imediata a rejeição a essa

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tipificação [...] Heidegger [...] “falou em um de seus cursos contra aquilo que se chamava existencialismo” (KAHLMEYER-MERTENS, 2016, p. 39-40).

Será possível ainda assim, encontrarmos alguma

aproximação entre estas duas filosofias, a de Heidegger e de Sartre? Um dos projetos de Sartre, com sua obra O Ser e o Nada, era o de formular uma nova possibilidade de compreensão da realidade humana a partir de uma ontologia fenomenológica. Importa ressaltar que as duas teorias, por mais divergentes que sejam, e são, ambas têm em comum, o caráter fático da existência. Em Ser e Tempo (1927), Heidegger lança as bases de uma ontologia fundamental cuja questão não é o homem, mas sim o ser, em uma experiência de transcendência, com tonalidade afetiva em um campo fenomenal, sempre em direção ao mundo, logo, a compreensão do ser para Heidegger, “[...] é um modo de, sendo, relacionar-se com o mesmo, e é antes por isso (e não por algum traço subjetivo) que “o ser aí” se constitui pelo caráter de ser meu, segundo este ou aquele modo de ser [...]” (KAHLMEYER-MERTENS, 2015, p. 253). Uma das intenções do projeto heideggeriano é o de compreender o homem, tal qual um ente que confere sentido ao ser, convertendo a existência em uma experiência cujo significado é dado pelo próprio homem. Isso aconteceu a partir dos Seminários de Zollikon, os quais viabilizaram o surgimento de uma “psicologia em bases fenomenológico-existenciais”, a “Daseinanálise” (KAHLMEYER-MERTENS, 2016, p. 35), cuja fundamentação teórica e analítica existencial teve como base a obra Ser e Tempo.

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Afinal, qual foi exatamente o método de compreensão utilizado pelo filósofo “serista” a respeito do ser? Se para Heidegger o ser-aí é o único que pergunta, é o único capaz de se questionar sobre o sentido da vida, eis aqui a sua ontologia, a qual ele próprio a chamará de hermenêutica. Uma “ontologia fundamental precisa partir do ente para o qual o ser se disponibiliza em seu sentido, tratar-se-ia de um ente que compreende o ser” (KAHLMEYER-MERTENS, 2016, p. 57) ou ainda, um ente que compreende os modos como o homem compreende o mundo. Ainda conforme Kahlmeyer-Mertens (2016, p. 59), para que Heidegger atingisse os “propósitos de sua ontologia fundamental”, necessitaria de uma hermenêutica, mas não uma hermenêutica em seu conceito tradicional, “tão estrito de uma teoria da interpretação” ou ainda no seu “significado original” “[...] interpretação da faticidade que conduz ao encontro, visão, maneira e conceito de faticidade” (HEIDEGGER, 2013, p. 21), mas uma hermenêutica fenomenológica. A qual combina fenomenologia e hermenêutica, buscando “corrigir uma pela outra [...] trazendo a evidência indubitável da fenomenologia à hermenêutica”. Heidegger “[...] ao lastrear hermeneuticamente a essência do fenômeno na dimensão de fato da história [...] libera a fenomenologia de sua tendência idealista” (KAHLMEYER-MERTENS, 2016, p. 61). Esta hermenêutica fenomenológica deveria ser capaz de dar ao homem condições de poder se compreender como não ser, “a ontologia fundamental precisa partir do ente para o qual o ser é, também, aquele que compreende a si próprio na medida em que existe, precisamente: é o

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existente que somos” (KAHLMEYER-MERTENS, 2016, p. 57), uma hermenêutica que se apresente como um modo de questionar, de explicar e de interpretar a própria faticidade ou conforme as palavras do próprio Heidegger,

A hermenêutica tem como tarefa tornar acessível o ser-aí próprio em cada ocasião em seu caráter ontológico do ser-aí mesmo, de comunicá-lo, tem como tarefa aclarar essa alienação de si mesmo de que o ser-aí é atingido. Na hermenêutica configura-se ao ser-aí como uma possibilidade de vir a compreender-se e de ser essa compreensão (HEIDEGGER, 2013, p. 21).

Se a tarefa da hermenêutica fenomenológica é

responder à questão do ser, a partir de uma análise-compreensiva do ente, tal compreensão só será possível porque “se origina na interpretação” (HEIDEGGER, 2013, p. 21- 23) e esta “interpretação é algo cujo ser é o ser da própria vida fática”. Faticidade esta que é constituinte do ser-aí, não de forma objetiva, mas uma constituição dinâmica, sempre situada no mundo; logo ela é dada e circunstancial. Isso mostra que a faticidade é um constituinte ontológico existencial do ser-aí. Se a faticidade, para Heidegger, não é um objeto de estudo, mas um modo de ser em cada ocasião, sempre a cada vez que se é, podemos dizer então que a faticidade neste contexto, apresenta-se como sinônimo de existência “a possibilidade mais própria de si mesmo que o ser-aí (a faticidade) é, e justamente sem que esta esteja “aí”, será denominada existência” (HEIDEGGER, 2013, p. 22), talvez, resida aqui, a confusão de que

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Heidegger seria um filósofo existencialista, pois segundo ele, por meio do “questionamento hermenêutico, tendo em vista de que ele seja o verdadeiro ser da própria existência, a faticidade situa-se na posição prévia, a partir da qual e em vista da qual será interpretada” (HEIDEGGER, 2013, p. 22) e, segundo ele, denominados de conceitos existenciais. Pois o modo de ser-aí é no mundo, na existência. O poder ser se dá a partir daquilo que a faticidade oferece ou não oferece, a faticidade impõe limites, pois o ser-aí, em Heidegger ou o Ser em Situação, para Sartre, revelam-se nos limites fáticos do poder ser.

Nosso interesse até aqui, foi mostrar de forma resumida, alguns pontos, que julgamos terem sido primordiais para a compreensão, acerca da influência deixada pela hermenêutica fenomenológica de Heidegger, a qual serviu de apoio para que Sartre desenvolvesse suas reflexões. Os pontos escolhidos não apontam para a totalidade da ‘tese’ do fenomenólogo alemão, tampouco para a sua complexidade. Nessa direção, os apontamentos feitos até aqui nos levam para os caminhos trilhados por Sartre em prol da realização de seus projetos filosófico e psicológico, tendo como ponto central de discussão, além do que já apontamos como base para a sua teoria, a construção de sua Psicanálise Existencial.

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Psicanálise existencial e uma de suas bases de investigação: a hermenêutica

Sartre inicia o capítulo “A Psicanálise Existencial” de sua obra O Ser e o Nada, publicado em 1943, dizendo: “Se é verdade que a realidade humana, como temos tentado estabelecer, se anuncia e se define pelos fins que persegue, faz-se indispensável um estudo e classificação desses fins” (SARTRE, 2005, p. 682). O filósofo francês, nos termos aqui expostos, objetivou criar um método fenomenológico de investigação da experiência psicológica, que propõe revelar a escolha fundamental que o sujeito faz de si mesmo. Para Sartre, o princípio de sua psicanálise consiste na premissa de que, “o homem é uma totalidade e não uma coleção; [...] ele se exprime inteiro na mais insignificante e mais superficial das condutas [...] não há um só gosto, um só tique, um único gesto humano que não seja revelador (SARTRE, 2005, p. 696). Eis aqui, uma das aproximações entre as teorias dos filósofos existencialista e serista, respectivamente Sartre e Heidegger. Parece-nos evidente que Sartre quando objetivava desenvolver um método que possibilitasse investigar o homem compreendido como ser-no-mundo, como ser-em-situação, um singular/universal, sem reduzi-lo a determinismos, tinha, em seu arcabouço teórico-metodológico, uma investigação hermenêutica fenomenológica, pois “o ser da vida fática mostra-se no que é no como do ser da possibilidade de ser de si mesmo” (HEIDEGGER, 2013, p. 22). Assim, vejamos então o que Sartre tem a dizer a esse respeito quando especifica as regras de seu método,

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denominado Psicanálise Existencial, o qual tem como partida de investigação os aspectos concretos da condição humana cujo caminho da investigação deve desvelar, entre estes diferentes aspectos, aquilo que processa a unificação do conjunto, que é o ser do sujeito, ou seja, seu projeto original, logo,

Seu ponto de partida é a experiência; seu ponto de apoio, a compreensão pré-ontológica e fundamental que o homem tem da pessoa humana. [...] a verdade não encontrada por acaso; não pertence a um domínio no qual seria preciso buscá-la sem jamais termos presciência dela [...]. Pertence a priori à compreensão humana, e o trabalho essencial é uma hermenêutica [grifos nossos], ou seja, uma decifração, uma determinação e uma conceituação (SARTRE, 2005, p. 696).

Como bem destaca Schneider (2002), para

atingirmos, em psicoterapia, o objetivo sartriano de compreensão do projeto ontológico da pessoa, temos que considerar as condições reais que circundam sua existência concreta, situada e definida durante toda sua história, por meio de contextos objetivos que podem oferecer-lhe possibilidades e limitações. E para que isso seja possível, faz-se necessário compreender a vida do próprio sujeito, cuja existência é cada vez mais sua, a qual é conquistada sempre a cada vez, em cada ocasião, como um singular/universal, situacional/relacional, lançando mão de uma hermenêutica, mas de qual hermenêutica Sartre está falando? Será essa uma hermenêutica fenomenológica da faticidade? Será que quando ele diz que “o trabalho essencial é uma

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decifração, uma determinação e uma conceituação” (SARTRE, 2005, p. 696) ele está apontando para a necessidade, tal qual Heidegger identificou de combinar fenomenologia e hermenêutica [...] buscando corrigir uma pela outra, ou seja, trazendo a evidência indubitável da fenomenologia à hermenêutica (KAHLMEYER-MERTENS, 2016, p. 61).

Em Heidegger, se “investiga o modo como vivemos e pensamos junto aos entes, já sempre orientados pelo sentido que o caráter de fato dos mesmos nos fornece” (KAHLMEYER-MERTENS, 2015, p. 244). Assim, “o tema da investigação hermenêutica é o ser-aí próprio em cada ocasião, justamente por ser hermenêutico, questiona-se sobre o caráter ontológico, a fim de configurar uma atenção a si mesmo bem enraizada” (HEIDEGGER, 2013, p. 22) e não sobre uma hermenêutica de Schleiermacher ou de Dilthey, as quais, segundo Kahlmeyer-Mertens (2016), são tomadas. No caso de Sartre, há também uma preocupação similar só que o estatuto hermenêutico é outro. Noutras palavras, à primeira vista, Sartre menciona a necessidade de uma investigação hermenêutica tal qual Heidegger, mas a partir de um debate mais próximo com Freud. É o que mostra a intenção manifesta, aliás, no próprio título de seu capítulo sobre A Psicanálise Existencial. Sartre faz referência aos equívocos na investigação psicológica feita pela psicologia empírica freudiana, sendo que um deles “consiste em considerar terminada a investigação psicológica uma vez alcançado o conjunto concreto dos desejos empíricos” (SARTRE, 2005, p. 682-683), a psicanálise tradicional reduz a investigação na busca de

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definição do homem como um “feixe de tendências que a observação empírica pode estabelecer”. O filósofo existencialista exemplifica tal questão por meio de uma descrição crítica sobre a análise psicológica feita pelo romancista e crítico literário Paul Bourget a respeito de Flaubert. Tal análise estava sustentada no dado genérico, logo, reducionista da personalidade do jovem Flaubert por influência de alguns desejos básicos, que ao serem analisados “por fora” por meio de dados primários, definiria Flaubert como aquele que tinha uma “ambição desmedida”. A personalidade de Flaubert tornar-se-ia um caso típico de que “a psiquiatria se satisfaz ao esclarecer as estruturas genéricas dos delírios jamais buscando compreender o conteúdo individual e concreto das psicoses” (SARTRE, 2005, p. 685).

Ambas as explicações, seja a de Bourget a propósito da personalidade do escritor francês Flaubert ou da psiquiatria tradicional com relação ao “enlouquecimento” se mostram vagas, pois apenas apontam para os “corpos simples da psicologia” e da psiquiatria, isto é, reduzem-se a determinações abstratas que tanto poderiam ser estas como quaisquer outras. Tais determinações não possuem relações internas entre si já que não alcançam o verdadeiro irredutível da vivência em questão. Em suma, a crítica sartriana indica que este tipo de análise-explicativa não nos leva a outro lugar que não o das generalizações abstratas, das afirmações soltas, como em estereotipar “Flaubert como ambicioso. Ele era assim”, ou seja, seria inútil a indagação a respeito do motivo pelo qual ele era

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assim, da mesma forma que seria inútil “saber por que ele era alto e ruivo” (SARTRE, 2005, p. 685).

Por isso, para uma melhor compreensão do homem, Sartre (2005, p. 687) propõe a noção de “projeto original”. Ele parte da ideia de que a pessoa é uma totalidade e que cada uma de suas escolhas, das menores as mais significativas, devem ser consideradas como expressão integral da pessoa em questão, expressando sempre e necessariamente um sentido transcendente. Nessa perspectiva é que se constrói sua proposta de investigação psicológica: a de chegar a um “verdadeiro irredutível” (SARTRE, 2005, p. 686), uma unificação irredutível do sujeito, seu projeto de ser. Isso possibilitará ao psicólogo ir além da simples associação de abstrações combinadas e agrupadas por determinismos causais, possibilitando a compreensão (hermenêutica) dos diversos aspectos do psiquismo do sujeito e seu movimento no mundo. Além disso, trata-se de compreender, fenomenologicamente, suas contradições, seus impasses sociológicos e psicológicos que podem levar, conforme as circunstâncias, a constituição de complicações psicológicas e, mesmo, à própria ‘loucura’. Desta forma, pode-se afirmar que o objetivo da psicanálise sartriana é, portanto, o de decifrar (em sentido hermenêutico)25 o nexo existente

25 Para Sartre, a psicanálise também tem um traço hermenêutico

enquanto método! Portanto, quando Sartre usa o termo “hermenêutica” é nesse sentido, sem, contudo, deixar de propor uma revisão à teoria freudiana. Eis, portanto, o sentido pelo qual o Ser e o Nada fala em “psicanálise”, só que de um ponto de vista “existencial”, isto é, de uma perspectiva ontológico-fenomenológica. Sartre chega até mesmo a afirmar, ao final do

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entre os diversos comportamentos, gostos, gestos, emoções, raciocínios do sujeito concreto, visando extrair o significado que salta de cada um desses aspectos em direção a um fim. Isto quer dizer que a psicanálise existencial deve decifrar o projeto de ser de cada indivíduo estudado, pois é ele que define o que são e para onde se encaminham os diferentes movimentos de uma pessoa no mundo.

Tanto a concepção de uma interioridade psíquica quanto a ideia de uma possível cisão em instâncias que formariam ainda um “aparelho”, não se encaixam nas bases fenomenológicas de Sartre. Através da própria fenomenologia e sua primazia da intencionalidade, além da sugestão de Heidegger para se pensar nosso modo de existir como “diaspórico”, isto é, perpétua fuga de si, tais ideias que nos remetem a um sujeito interiorizado aos moldes de Descartes não se sustentam. Sendo assim, não poderíamos, através da psicanálise existencial, buscar um “lá dentro”, um “por detrás”, que precisa ser investigado e desvelado, posto que, ao tomarmos o homem enquanto consciência “de ponta a ponta” devemos considerar que tudo está em ato, num só golpe, claro como uma ventania (SARTRE, 2005).

capítulo, que essa “Psicanálise” ainda não encontrou o seu “Freud”.

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Considerações finais Se a hermenêutica fenomenológica da faticidade

revela-se como uma forma do ser-aí se compreender, em um modo particular de abordar a questão do ser, diferente do modelo dicotômico das ciências naturais, onde a dualidade sujeito-objeto é elemento fundamental, aqui, nesta forma de compreensão chamada de hermenêutica, não há um sujeito que interpreta o objeto que está dado. Não há dualidade entre sujeito e objeto, não há domínio entre espectador e objeto, não é um artifício para uma interpretação; é a nossa própria condição espontânea, um olhar da compreensão se compreendendo – a consciência se olhando. Interessa elucidar o ente que compreende, que questiona, que examina a sua própria condição de existir, logo, a hermenêutica aqui proposta por Heidegger não é uma doutrina ou uma arte de interpretar, mas a possibilidade de interpretarmos a nossa própria situação de ser-no-mundo, em situação, um singular/universal. Essa hermenêutica revela-se como uma autocompreensão enquanto ser-aí, fático e ocasional, no mundo. Contudo, faz-se necessário mostrar que há sem sombra de dúvidas uma aproximação no que compete a forma como Sartre e Heidegger compreendem ontologicamente o ser, e que quando Sartre diz que “o trabalho essencial é uma hermenêutica, ou seja, uma decifração, uma determinação e uma conceituação” (SARTE, 2005, p. 696) ele está falando de uma hermenêutica fenomenológica da faticidade, apesar de não a definir desta forma. Isso nos parece ainda mais claro, quando

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Sartre propõe com certa urgência metodológica pensar outro caminho de investigação e de compreensão do âmbito psicológico, que ultrapassasse problemas deixados por Freud. Suas indagações o levam a afirmar que uma investigação da realidade humana só poderia ser levada adiante se conduzida de acordo com um método específico. Ora, esta é, por fim, a motivação primordial de sua Psicanálise Existencial (SARTRE, 2005). Referências HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 1988. ____________. Ontologia: Hermenêutica da Faticidade. 2 ed. Trad. de Renato Kirchner. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. KAHLMEYER-MERTENS, R. S. 10 lições sobre Heidegger. Petrópolis, RJ; Vozes, 2016. ____________. Hermenêutica da faticidade. In: FERRER, D. (coord.). A filosofia transcendental e a sua crítica – Idealismo – Fenomenologia – Hermenêutica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra/Coimbra University Press, 2015, p. 235-257. SARTRE, J.- P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. 2. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. ____________. Diário de uma guerra estranha. São Paulo: Ed., Circulo do Livro, 1983.

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SCHNEIDER, D. R. Novas perspectivas para a psicologia clínica - um estudo a partir da obra “Saint Genet: comédien et martyr” de Jean-Paul Sartre. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002.

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OS AUTORES26 Evandro Pegoraro Possui graduação em Filosofia (Licenciatura Plena) pelo Centro Universitário Franciscano (2005); especialização

(lato sensu) em Educação Escolar pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus de Francisco Beltrão-PR (2006). Mestrado em Filosofia pela

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS (2010). Atualmente é docente do Instituto Sapientia

de Filosofia - ISF e da Secretaria de Estado da Educação - SEED, do Paraná, Núcleo Regional de Dois Vizinhos. Tem interesse pelo estudo da hermenêutica filosófica do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002) e pelos Diálogos de Platão. Vinicius Valero Pereira Formado em Psicologia (2009), é Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE (2012) com uma dissertação sobre as relações teóricas entre Psicologia e Ontologia, tendo como norte a obra do filósofo Franz Brentano. Estuda as questões pertinentes à tradição fenomenológica husserliana, com especial atenção à psicologia descritiva, teoria das partes e dos todos, unidade da consciência e a interface entre esta tradição filosófica e a psicologia científica contemporânea. Neusa Rudek Onate Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, possui graduação em Filosofia (Licenciatura Plena) também pela UNIOESTE. Tem interesse pelos estudos da História da Filosofia

26 Súmulas biográficas extraídas do currículo Lattes, exceto quando indicada opcionalmente pelo próprio autor.

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Contemporânea, contemplando a área de pesquisa da Fenomenologia, mormente os pensamentos de Edmund Husserl e Martin Heidegger. Em sua mais recente pesquisa, analisa a possibilidade da investigação fenomenológica em Heidegger sob os temas da hermenêutica, tempo, temporalidade originária, finitude, imaginação e possibilidade. É integrante do Grupo de Pesquisas da Linha Metafísica e Conhecimento: Fenomenologia, Filosofia da Linguagem e Filosofia da Diferença. Faz parte do Grupo de Estudos Ser e Tempo. É membro da comissão executiva da AORISTO - Revista Internacional de Fenomenologia, Hermenêutica e Metafísica. Maria Lucivane de Oliveira Morais Licenciada em Geografia e em Filosofia. Especialista (lato sensu) em: Educação Especial, Metodologia do Ensino de Geografia e História, Educação Métodos e Técnicas do Ensino e Saúde do Professor. Mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus de Toledo. Linha: metafísica e conhecimento. Eduardo Henrique Silveira Kisse Mestre em Filosofia pela Ruhr-Universität Bochum - RUB (2017), área de concentração: homem e cultura. Possui graduação (Bacharelado e Licenciatura Plena) em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (2012). Tem experiência no ensino de Filosofia. Seu foco de pesquisa em filosofia tem uma dedicação especial à filosofia da vida, à hermenêutica e à metodologia das ciências humanas, com ênfase na obra de W. Dilthey. É membro da comissão executiva da Revista AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics.

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Ezildo Antunes É graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná - UNICENTRO (2002); especialista em Educação pela UNICENTRO (2004) e graduação em Filosofia pela mesma universidade (2012). Tem experiência na área de Educação e no ensino de Filosofia. É Mestre em Filosofia pela Universidade do Oeste do Paraná - UNIOESTE na área de concentração: filosofia moderna e contemporânea, tendo como linha de pesquisa metafísica e conhecimento. Leosir Santin Massarollo Possui graduação em Filosofia e especialização em História Econômica do Brasil pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. É Mestre em Filosofia pela mesma universidade e professor do Colégio Estadual Marilis Faria Pirotelli e do Colégio Estadual Pacaembu. É doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNIOESTE, no qual desenvolve uma pesquisa sobre a angústia em Heidegger e em Kierkegaard. Marcelo Ribeiro da Silva Mestrando em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE; Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR; Bacharel em Teologia pela Faculdade Missioneira do Paraná - FAMIPAR. Especialista em Formação de Presbíteros pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA). Ademir Menin Doutorando em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE; mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma - PUG (2013); graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE (1995); graduado em Teologia pela

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Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma - PUU (1999); pós-graduação em Letras (Estudos Linguísticos e Literários) pela Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP (2010). Atualmente professor colaborador na faculdade de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus de Toledo-PR. Publicou: L’analogia tra mondo e musica nel pensiero di Arthur Schopenhauer. Toledo-PR: Editora Vivens, 2016; Conhecimento clássico e conhecimento científico. Toledo, PR: Editora Indicto, 2017; Conhecimento e condição humana. Toledo, PR: Editora Vivens, 2016; Conhecimento, gestão e educação. Toledo, PR: Editora Vivens, 2016. Membro do conselho editorial e corpo científico da Editora Vivens. Marivania Cristina Bocca Psicóloga. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Paranaense - UNIPAR, Umuarama/Paraná (2000); mestrado em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS (2002); especialização em Psicologia Fenomenológico-Existencial pela Universidade Paranaense - UNIPAR, Umuarama/Paraná (2010). Especialização em Psicologia Existencialista Sartriana (2016) - UNISUL, Florianópolis/Santa Catarina. Cursa o doutorado em Filosofia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNIOESTE, Campus de Toledo-PR.

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OS ORGANIZADORES Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ; Professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, na qual leciona e orienta dissertações e teses para o Programa de Pós-Graduação em Filosofia (Mestrado e Doutorado). Membro-associado da Sociedad Iberoamericana de Estudios Heideggerianos - SIEH, Membro do GT Fenomenologia (ANPOF), Membro-efetivo da Sociedade Brasileira de Fenomenologia - SBF, dedica-se aos estudos de Heidegger desde o ano de 1995, assinando capítulos em coletâneas, além de inúmeros artigos publicados em revistas periódicas nacionais e internacionais. Entre seus principais livros estão: Filosofia Primeira: Estudos sobre Heidegger e outros autores (Papel Virtual, 2005), Linguagem e método (FGV, 2007); Heidegger & a educação (Autêntica, 2008); 10 Lições sobre Heidegger (Vozes, 2015) e 10 Lições sobre Gadamer (Vozes, 2017). É Editor-Chefe e Fundador da AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics. Katyana Martins Weyh Formada em Filosofia (Licenciatura Plena) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus de Toledo; formada em Psicologia pela Universidade Norte do Paraná - UNOPAR, campus Cascavel. Acadêmica regular do curso de mestrado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Área de concentração: Filosofia Moderna e Contemporânea. Linha de pesquisa: Metafísica e Conhecimento. Ênfase de pesquisa: fenomenologia.

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Luana Borges Giacomini Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Possui Graduação (Licenciatura) em Filosofia pela mesma universidade. Desenvolve pesquisas com ênfase em metafísica, fenomenologia. Estuda o autor alemão Martin Heidegger desde o ano de 2014. José Francisco de Assis Dias Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo, RS (1996) e Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR (2014); Especialista em Docência no Ensino Superior pela UNICESUMAR (2015); Mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2006); Doutor em Direito Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2005); Doutor em Filosofia também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2008). Atualmente é professor Adjunto da UNIOESTE, no campus de Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura em Filosofia; professor permanente do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNIOESTE; pesquisador do Grupo de Pesquisa ÉTICA E POLÍTICA, da UNIOESTE, CCHS, campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosóficas e juristas.

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Capa: Foto de Heidegger: https://www.messkirch.de/de/heidegger-stiftung Foto da UNIOESTE: Elvio Camilo Crestani Jr. e Nilson Rodrigo da Silva

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