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NOTA TÉCNICA Nº 04/2019 AJUFE
Assunto: Ato Normativo nº 0004450-49.2019.2.00.0000. Grupo de Trabalho
(Portaria CNJ nº 69/2019). Proposta de Resolução que estabelece
parâmetros para o uso adequado das redes sociais pelos membros do Poder
Judiciário.
A ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO BRASIL – AJUFE,
entidade de classe de âmbito nacional representativa dos Magistrados Federais, em
cumprimento de seu dever institucional de colaborar com o esse Egrégio Conselho
Nacional de Justiça – CNJ, apresenta a Vossa Excelência Nota Técnica relacionada
à Proposta de Resolução, que estabelece parâmetros para o uso das redes sociais
pelos membros do Poder Judiciário (Ato Normativo nº 0004450-
49.2019.2.00.0000), pelas razões que seguem:
1. Tal procedimento administrativo foi instaurado com fundamento na
Portaria CNJ nº 69/2019, que instituiu grupo de trabalho para a realização da
mencionada avaliação. Como resultado, fora elaborada proposta de Resolução que
estabelece parâmetros para o uso adequado das redes sociais pelos membros do
Poder Judiciário.
2. Para maior clareza na exposição de nossa análise, a presente
manifestação será dividida em 5 (cinco) principais itens: (i) delimitação do objeto da
consulta; (ii) contextualização da consulta, abordando-se os fatos que levaram à
criação de referido projeto de Resolução; (iii) análise do projeto de Resolução; (iv)
análise dos aspectos constitucionais e legais do projeto de Resolução; (v)
conclusões.
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I. CONTEXTUALIZAÇÃO DA CONSULTA
3. Antes mesmo da elaboração do projeto de Resolução em análise, o tema
“liberdade de expressão de magistrados”, no que tange às manifestações de opiniões
em redes sociais (como Facebook, Instagram, Twitter etc), inclusive aquelas
relacionadas à política e às eleições, já vinha ganhando a atenção da comunidade
jurídica, especialmente em razão de 2018 ter sido um ano eleitoral.
4. Nesse contexto, a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento
nº 71/2018, que dispõe sobre a utilização de e-mail institucional por membros e
servidores do Poder Judiciário e sobre a manifestação em redes sociais, tornando a
discussão sobre a liberdade de expressão dos magistrados ainda mais relevante.
I.1. PROVIMENTO Nº 71/2018
5. Referido Provimento possui 11 artigos e prevê, em suma, que os
Magistrados devem agir com reserva, cautela e discrição – termos vagos, com alto
grau de subjetividade – ao publicar seus pontos de vista nos perfis pessoais nas
redes sociais, evitando a violação de deveres funcionais e a exposição negativa do
Poder Judiciário. Ainda, dispõe que devem evitar, em redes sociais, publicações que
possam ser interpretadas como discriminatórias ou que comprometam os ideais
defendidos pela Constituição Federal.
6. Além dessa “recomendação”, o Provimento, conhecido como “Provimento
da Mordaça” entre os juristas, prevê, em seu artigo 2º, que a liberdade de expressão
não pode ser utilizada pela magistratura para justificar atividade político-partidária, e
que a vedação constitucional de atividades dessa natureza a membros da
magistratura abrange quaisquer situações que evidenciem apoio público a candidato
ou a partido político, inclusive manifestações em redes sociais.
7. Ou seja, o Provimento interpretou ampliativamente a vedação do artigo 95,
parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal, e artigos 36, inciso III, e 41, da Lei
Complementar nº 35/79 (“LOMAN”), restringindo sobremaneira o direito fundamental
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à liberdade de expressão, previsto no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal,
especialmente por dar maior alcance ao conceito de “atividade político-partidária”.
8. Todavia, o Provimento, apesar de fazer recomendações, não estabelece
punições específicas para quem descumprir suas disposições, cabendo à corregedoria
de cada Tribunal a respectiva fiscalização.
9. Não obstante, em 2018, ano eleitoral, foram instaurados, de ofício, pela
Corregedoria Nacional de Justiça, alguns procedimentos contra magistrados com
base no Provimento nº 71/2018, como, por exemplo, o pedido de providências nº
0009118-97.2018.2.00.0000, em face do Juiz Federal Marcelo da Costa Bretas, o
qual foi posteriormente arquivado pelo Plenário do CNJ.
10. Em que pese o arquivamento desses procedimentos, a sua mera
instauração de ofício contra magistrados, com fundamento no Provimento nº
71/2018, demonstra que referida norma não tem um caráter de mera
“recomendação”, servindo como, no mínimo, instrumento de pressão.
I.2. MANDADOS DE SEGURANÇA Nº 35.779 E Nº 35.793
11. Contra o Provimento nº 71, foram impetrados 2 (dois) mandados de
segurança perante o STF, ambos de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso: o MS
nº 35.779 e o MS nº 35.793, impetrados, respectivamente, pelo Sindicato dos
Servidores da Justiça do Estado de Minas Gerais – SERJUSMIG, e pela Associação
Nacional dos Magistrados Estaduais – ANAMAGES.
12. Nesses processos se discutem, basicamente, 2 (dois) pontos: (i) se a
Corregedoria Nacional de Justiça, sendo órgão do CNJ, poderia editar ato para
explicitar o conteúdo do artigo 95, parágrafo único, inciso III, da Constituição
Federal, e, caso positivo, (ii) se foi dada interpretação razoável e adequada ao
sentido da Constituição.
13. Importante destacar que o relator deferiu parcialmente o pedido liminar
para afastar as limitações à manifestação político-partidária em relação aos
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servidores substituídos pelos Sindicato impetrante nos autos do MS nº 35.779;
porém, indeferiu o pedido liminar nos autos do MS nº 35.793.1
14. Na decisão proferida no MS nº 35.793, apesar de, numa análise
superficial, ter considerado o Provimento constitucional, o Ministro consignou que a
caracterização de atividade político-partidária depende de uma “permanência’” isto é,
de recorrência. Veja-se:
O objetivo da vedação repousa justamente no imperativo de imparcialidade e
distanciamento crítico do Judiciário em relação a política partidária. Por certo,
nem toda expressão política de magistrado se qualifica como ‘dedicação a
atividade político-partidária’. A limitação constitucional a liberdade de
expressão político-partidária dos Magistrados exige alguma
permanência em ações relacionadas a candidatos ou partidos políticos.
Em outras palavras, a caracterização da restrição constitucional depende
do exame concreto da intensidade da atividade e de sua aptidão para
um resultado eleitoral ou político-partidário especifico. (g.n.)
15. Dessa forma, deu-se, acertadamente, interpretação restritiva à limitação
de direito dos magistrados (proibição de atividade político-partidária), em atenção ao
princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentos (esse ponto será melhor
tratado adiante).
1 Veja-se trecho da decisão:
“Na realidade, em matéria correcional, a Corregedoria Nacional de Justiça não apenas pode veicular norma geral na qual
prevê os parâmetros que utiliza para análise dos casos concretos que lhe são submetidos; é conveniente e desejável que ela
o faca, já que essa providencia confere a sua atuação maior previsibilidade e oferece aos destinatários de seu controle maior
segurança jurídica e convicção de um tratamento isonômico”.
“O Provimento no 71/2018 limita-se a expor aquilo que o CNJ interpreta como atividade vedada aos Magistrados. Não ha
previsão abstrata de transgressão funcional, mas simples enunciação pelo órgão correcional do sentido da proibição de
dedicação a atividade político-partidária, que projeta efeitos concretos sobre os seus destinatários.”
“Não e destituída de razoabilidade, no entanto, a emissão pelo órgão correcional da magistratura de uma orientação que indique que as manifestações em rede sociais de apoio ou reprovação a candidatos e partidos podem configurar atividade político-partidária. O impacto das redes digitais na forma de comunicação e circulação de informação e o peso que essas redes assumiram nas campanhas eleitorais justifica a recomendação de cautela quanto ao que se diz em meio digital”. (doc. 4)
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16. Até o momento, não houve julgamento de mérito ou reforma das decisões
proferidas pelo Ministro relator nos mandados de segurança.
I.3. PROJETO DE RESOLUÇÃO
17. Paralelamente às discussões acerca do Provimento nº 71/2018, tramita no
CNJ, sob o nº 0004450-49.2019.2.00.0000, procedimento administrativo (categoria
“Ato Normativo”), instaurado com fundamento na Portaria nº 69/2019, que instituiu
grupo de trabalho destinado a avaliar os parâmetros para o uso adequado das redes
sociais pelos magistrados.
18. Conforme já exposto, referido grupo de trabalho elaborou projeto de
Resolução que estabelece parâmetros para o uso adequado das redes sociais pelos
membros do Poder Judiciário. Tal projeto foi analisado pelo Plenário do CNJ na 293ª
Sessão Ordinária, ocorrida em 25.6.2019, na qual foi aprovado pelo relator, Ministro
Aloysio Corrêa da Veiga, acompanhado pelo Conselheiro Valdetário Andrade
Monteiro. Em seguida, a análise do projeto foi adiada para a sessão plenária de
6.8.2019.
19. Vossa Excelência, que também é o coordenador do grupo de trabalho,
expediu relatório trazendo a análise do tema no âmbito internacional e o panorama
normativo internacional e nacional, bem como a exposição de motivos para a
elaboração de referida Resolução.
20. Nessa “exposição de motivos”, alega-se que a premissa fundamental
da Resolução “é a de que o juiz não é um cidadão comum”, uma vez que os
magistrados gozam de garantias voltadas a salvaguardar sua independência e
imparcialidade, havendo uma confusão entre o magistrado e o Poder Judiciário.
21. Por essa razão, as percepções da sociedade acerca de um magistrado
impactam na percepção sobre a própria Justiça. Daí a necessidade de, com a
intenção de aumentar a confiabilidade do Poder Judiciário perante a sociedade,
serem formuladas recomendações (“soft law”) sobre como preservar a integridade
do Poder Judiciário.
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22. A partir dessa premissa, afirma que existe “uma zona cinzenta sobre o
modo de proceder dos magistrados no mundo virtual” e que a Resolução “pretende
iluminá-la da melhor forma”.
23. A esse respeito, afirma-se o seguinte:
o presente ato normativo contém, em seu artigo 3º, diversas recomendações
de conduta aos magistrados brasileiros na utilização das redes sociais. O mais
extenso de todos os artigos reúne orientações específicas sobre a presença
dos magistrados nas redes (...), sobre o teor de suas manifestações (...)
e sobre sua privacidade e segurança.
(...)
Por último, o artigo 4º e seus incisos reproduzem as vedações de
comportamento dos magistrados nas redes sociais, já previstas na legislação
vigente: LOMAN, Código de Ética da Magistratura Nacional e Lei nº 7.716/1989.
(grifos no original)
24. Ao final, conclui-se que o projeto de Resolução “...será um passo a
estabelecer o caminho que deve ser seguido com o fim de manter firme a crença da
sociedade no Poder Judiciário.”
25. Feita essa breve contextualização, passa-se à análise do projeto de
Resolução.
II. O PROJETO DE RESOLUÇÃO
26. O projeto de Resolução objeto desta consulta e o Provimento nº 71,
apesar de terem escopos diferentes – o Provimento dispõe sobre o uso do e-mail
institucional pelos membros e servidores do Poder Judiciário e sobre a manifestação
nas redes sociais, enquanto o projeto de Resolução estabelece os parâmetros para
uso das redes sociais pelos membros do Poder Judiciário –, guardam semelhança
entre si.
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27. Isso, porque ambas as normas infralegais fazem recomendações e
impõem aos magistrados restrições relativas ao uso de redes sociais e vedam aquilo
que chamam de atividade político-partidária.
28. Entretanto, independentemente de se tratar ou não de uma soft law, o
projeto de Resolução é ainda mais restritivo de direitos dos Magistrados do que o
Provimento nº 71/2018, já que estabelece censura prévia aos magistrados e impõe
novos deveres funcionais não previstos na legislação.
29. As “recomendações” lançadas no artigo 3º do projeto de Resolução
representam, na verdade, regras de conduta, e, por isso, acabam por invadir a
competência do Poder Legislativo. Importante lembrar que cabe ao Congresso
Nacional criar normas com alto grau de abstração acerca das condutas do ser
humano, em estreita observância ao princípio da reserva legal. Para as resoluções do
CNJ devem ser reservadas as matérias com concretude e individualização próprias de
atos normativos infralegais.
30. Além disso, apesar de se pretender atribuir a natureza de mera
recomendação, o projeto de Resolução cria verdadeiras normas de conduta voltadas
aos membros do Poder Judiciário. Essa intenção extrapola os limites de uma norma
regulamentadora, já que ela deve se ater aos limites previstos na legislação que rege
a magistratura, especialmente a Constituição Federal e a LOMAN.
31. Ainda, o artigo 4º do projeto de Resolução – e aqui não há que se falar
em recomendação, mas sim em proibição –, de nítido caráter repressor, tem impacto
maior nos membros da Magistratura, uma vez que traz limitações para além
daquelas previstas na legislação, podendo implicar sanções disciplinares.
32. Inclusive, alguns dos incisos do artigo 4º do projeto são manifestamente
inconstitucionais, ante a violação do princípio da reserva legal. É o caso, por
exemplo, do inciso II, no qual foi utilizado o termo “engajamento” (mais amplo) para
se referir à vedação do envolvimento do Magistrado com atividades político-
partidárias ao invés do verbo “dedicar-se” (mais restrito) constante no artigo 95,
parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal, além de vedar o apoio ou críticas
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públicos a candidatos, vedação essa que não está prevista nem na Constituição
Federal nem na LOMAN.
33. Vale também destacar que a definição de “mídias sociais”, estabelecida no
artigo 2º, parágrafo único, do projeto de Resolução, vai além do que comumente se
entende dessa expressão, possuindo alcance desproporcional. Isso, porque inclui
aplicativos destinados à comunicação privada (tais como Whatspp, Telegram etc),
relevando-se uma restrição indevida na intimidade e privacidade dos magistrados, o
que viola o artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.2
34. Para que fique mais clara a estrutura da Resolução proposta, veja-se o
quadro abaixo, com resumo de cada um dos artigos:
Art. 1º Define o objeto da Resolução: “Estabelecer os parâmetros para o
uso das redes sociais pelos membros do Poder Judiciário, de modo a
compatibilizar o exercício da liberdade de expressão com os deveres
inerentes ao cargo.”
Art. 2º,
caput
Legislação que deve ser observada pelos magistrados no uso das
redes sociais.
Art. 2º, p.u. Define “redes sociais”.
Art. 3º,
caput
Recomendações para a atuação dos magistrados nas redes
sociais, relativas a: (i) presença nas redes sociais, (ii) teor das
manifestações, e (iii) privacidade e segurança.
Art. 3º, p.u. Define hipóteses nas quais o uso de redes sociais é estimulado.
Art. 4º,
caput
Vedações aos magistrados nas redes sociais.
Art. 4º, §1º Esclarecer aspectos relativos à vedação de atividade político-
partidária.
Art. 4º, §2º Permite a divulgação de obras técnicas de autoria do magistrado.
Art. 5º Define a abrangência das recomendações e vedações (magistrados
ativos, afastados por questões disciplinares ou em disponibilidade).
2 CF, artigo 5º, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito
a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”.
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Art. 6º Exclui dos destinatários da Resolução os magistrados representantes
legais de entidades e associações de classe, durante o exercício do
mandato.
Art. 7º Dispõe sobre a promoção de eventos e cursos, pelas Escolas da
magistratura, para a capacitação de magistrados nos temas “novas
tecnologias” e “ética nas redes sociais”.
Art. 8º Dispõe sobre dever da Comissão de Eficiência Operacional e Gestão
de Pessoas de estabelecer diretrizes para capacitação de âmbito
nacional dos servidores.
Art. 9º Dispões sobre o dever de os Tribunais manterem serviços de
comunicação social para apoio técnico-profissional aos magistrados,
especialmente em casos de ampla repercussão.
Art. 10 Dispõe sobre o dever de adequação, das páginas e perfis de
magistrados já existentes, às exigências da Resolução.
Art. 11 Dispõe sobre o poder-dever da Corregedoria Nacional de Justiça e
das demais corregedorias de acompanharem o cumprimento da
Resolução.
Art. 12 Dispõe sobre a vigência da Resolução (a partir da sua publicação).
III. INCONSTITUCIONALIDADE E ILEGALIDADE DO PROJETO DE
RESOLUÇÃO
35. Passa-se, então, à demonstração das inconstitucionalidades e das
ilegalidades do projeto de Resolução.
III.1 LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE PENSAMENTO
36. Iniciando pela garantia máxima. Os artigos 5º, incisos IV, VI, VIII, IX, XIII
e XIV, e 220, da Constituição Federal,3 explicitam o direito de todos os cidadãos à
3 CF, artigo 5º: “IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...) VI - é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (...) VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
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liberdade de expressão, de informação e de manifestação, sendo vedado o
anonimato. Por óbvio, sendo os magistrados cidadãos, são eles titulares dos
referidos direitos fundamentais.
37. Assim, evidente que o projeto de Resolução é inconstitucional, pois se
trata de uma norma infraconstitucional (e infralegal) que visa tolher direitos
fundamentais assegurados constitucionalmente.
38. Os magistrados são cidadãos antes mesmo de serem magistrados, não
podendo lhes ser negado um direito fundamental. Ora, a premissa estabelecida na
própria exposição de motivos do projeto de Resolução é a de que “o juiz não é um
cidadão comum”. Mas isso não significa que pode ser afastado direito fundamental
garantido a todos os cidadãos. Privar os Juízes do direito à liberdade de expressão é
relegá-los a uma condição inferior, como se fossem cidadãos menos qualificados.
39. Não há como se entender que magistrados possam ter uma liberdade de
opinião restrita ou de menor alcance que outros servidores públicos, como os
militares das Forças Armadas e membros do Ministério Público. Por outro lado, a
Constituição Federal, em seu artigo 95, parágrafo único, 4 impõe certos limites à
conduta dos Magistrados com a finalidade de preservar o Poder Judiciário e o Estado
Democrático de Direito.
40. Conforme se verá adiante, tal vedação, de forma alguma, significa que os
magistrados teriam um direito à liberdade de expressão mais restrito do que o dos
demais cidadãos. Novamente, estar-se-ia dizendo que os Magistrados seriam
cidadãos “inferiores”, eis que não poderiam gozar dos direitos fundamentais,
constitucionalmente garantidos, em toda a sua extensão.
alternativa, fixada em lei; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...) XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;”. 4 CF, art. 95, p.u. “Aos juízes é vedado: I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de
magistério; II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo; III - dedicar-se à atividade político-partidária; IV - receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; V - exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.”.
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41. Com efeito, eventuais limitações a direitos fundamentais, ainda que
constitucionalmente previstas, devem ser interpretadas restritivamente, ou seja, dá-
se aos direitos fundamentais o maior alcance possível, restringindo-se ao máximo as
suas limitações.
42. É evidente que, no caso em análise, a liberdade de expressão deve ser o
“norte”, o vetor de interpretação, restringindo-se tal direito, se for o caso, no mínimo
necessário para o atendimento das vedações.
43. É certo que as liberdades de expressão e de pensamento são direitos
fundamentais também dos magistrados, motivo pelo qual foram, inclusive,
norteadoras dos “considerandos” da Resolução. Não obstante, essas liberdades só
foram tratadas no projeto de maneira restritiva para os magistrados. Curiosamente,
a ênfase restou na menção de que tais garantias constitucionais não são absolutas,
revelando a interpretação constitucional “invertida” na construção do regramento;
ampliou-se a limitação, restringindo-se o direito fundamental.
44. No âmbito da hermenêutica constitucional, prevalecem os princípios da
máxima efetividade e da força normativa da Constituição, isto é, deve-se dar a maior
eficácia possível às normas constitucionais.
45. Nesse sentido, leia-se a lição do Professor (e hoje Ministro do STF)
Alexandre de Moraes:5
Partindo-se da premissa fundamental da supremacia das normas
constitucionais, são os seguintes os princípios e regras interpretativas das
normais constitucionais:
(...)
Da máxima efetividade ou da eficiência: a uma norma constitucional deve
ser atribuído o sentido que maior eficácia conceda-lhe. Consequentemente, todas
as normas constitucionais têm validade, não cabendo ao intérprete optar por
umas em detrimento total do valor de outras;
(...)
5 DE MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9ª Edição. São Paulo: Atlas, 2013.
P. 42.
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Da força normativa da constituição: entre as interpretações possíveis, deve
ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das
normas constitucionais.
46. Como se vê, eventuais normas infralegais, ao concretizarem normas
constitucionais, devem se atentar para os princípios da máxima efetividade e da
força normativa.
47. Por óbvio, é inconstitucional qualquer limitação dos direitos à liberdade de
expressão e de pensamento que não aquelas expressamente previstas na
Constituição Federal, tais como a vedação ao anonimato, a responsabilização por
danos materiais e morais, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e
da imagem etc.
48. No caso do projeto de Resolução, o que se verifica é uma restrição
indevida (e inconstitucional) a direitos fundamentais.
49. Conforme consignou o STF no julgamento da ADPF 130, “não cabe ao
Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não
pode ser dito por indivíduos”.6
50. E não se diga que a Resolução regulamentaria outras normas
constitucionais que autorizariam as limitações aos supracitados direitos
fundamentais, como o artigo 95, parágrafo único.7
51. Isso, porque os direitos fundamentais, dentre eles a liberdade de
expressão e de pensamento, têm posição elevada na Constituição, não podendo ser
limitados, salvo por disposição expressa da própria Constituição, limitação essa que
6 STF. Plenário. ADPF nº 130. Rel. Min. Ayres Britto. J. 30.4.2009.
7 CF, artigo 95: “Parágrafo único. Aos juízes é vedado: I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo
uma de magistério; II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo; III - dedicar-se à atividade político-partidária. IV - receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; V - exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.”
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deve ser interpretada restritivamente, para que se dê a maior efetividade possível
aos direitos fundamentais.
52. Portanto, os direitos à liberdade de expressão e de pensamento têm a
máxima efetividade, devendo ser interpretados ampliativamente, isto é,
extrapolando-se a sua literalidade.
53. De outro lado, as vedações do artigo 95, parágrafo único, da Constituição
Federal, justamente por serem limitações a direitos fundamentais, devem ser
interpretadas restritivamente, ou seja, só são caracterizadas em situações nas quais
não há a menor dúvida de que a vedação foi descumprida.
54. Ao inverter a ordem acima, o projeto de Resolução mostrou-se
flagrantemente inconstitucional, pois dá máxima efetividade à limitação,
restringindo direito fundamental para além das restrições
constitucionalmente previstas.
III.2 LIMITES ESTABELECIDOS PELA LOMAN
55. Outro ponto importante é que as vedações constitucionais já foram
reguladas pela LOMAN, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, cujo artigo
artigo 93 determina que “Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal
Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura”. Veja-se:
Art. 36 - É vedado ao magistrado:
I - exercer o comércio ou participar de sociedade comercial, inclusive de
economia mista, exceto como acionista ou quotista;
II - exercer cargo de direção ou técnico de sociedade civil, associação ou
fundação, de qualquer natureza ou finalidade, salvo de associação de classe, e
sem remuneração;
III - manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo
pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre
despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos
e em obras técnicas ou no exercício do magistério.
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Art. 41 - Salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado
não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor
das decisões que proferir.
56. Verifica-se que a LOMAN não veda ao magistrado a exposição de suas
opiniões, independentemente do meio, salvo na hipótese de opinião sobre processo
pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos,
votos ou sentenças, de órgãos judiciais.
57. Dessa forma, a vedação à manifestação de opinião por magistrados é
restrita a 2 (duas) hipóteses: (a) opinião sobre processo pendente de julgamento,
ou (b) opinião depreciativa sobre despachos e decisões judiciais. E, ainda assim, há
exceção a tais vedações: a crítica nos autos, em obras técnicas ou no exercício do
magistério. De outro lado, não há qualquer vedação na LOMAN à manifestação dos
magistrados nas redes sociais.
58. Nessa seara, também o artigo 41 da LOMAN cuida das manifestações de
opinião dos magistrados, determinando que este não pode ser punido ou prejudicado
pelas opiniões que manifestar, salvo nos casos de impropriedade ou excesso de
linguagem. Novamente, não há qualquer menção às manifestações dos magistrados
em meios públicos; pelo contrário, a norma é clara ao dispor que os magistrados não
podem ser punidos por manifestarem suas opiniões.
59. Aqui, vale dizer que a manifestação de opinião política jamais poderia ser
confundida com atividade político-partidária. Conforme dito, a liberdade de expressão
é um direito fundamental, dotado da máxima efetividade; e a vedação à atividade
político-partidária é uma restrição, dotada da mínima efetividade. Assim, uma opinião
política não pode ser considerada nada além do mero exercício do direito à liberdade
de expressão, eis que seria necessário um “salto hermenêutico” muito grande para
caracterizar opinião política com atividade político-partidária, cuja caracterização já
foi pormenorizadamente exposta em opinião legal anterior.
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60. Aliás, cabe mencionar que o projeto de Estatuto da Magistratura referido
no artigo 93 da Constituição Federal ainda não foi apresentado pelo Supremo
Tribunal Federal, que detém a iniciativa para a proposição dessa Lei Complementar.
61. Apenas uma emenda constitucional ou a Lei Complementar mencionada
no artigo 93 da Constituição Federal poderiam restringir direitos fundamentais de
magistrados, desde que, obviamente, não violem o seu núcleo essencial, sob pena
de inconstitucionalidade.
62. O projeto de Resolução, ao ser mais restritivo que a LOMAN, também se
mostra ilegal, ante a violação do princípio da reserva legal.
III.3 VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA RESERVA LEGAL
63. Nesse sentido, o princípio da legalidade, externado no artigo 5º, inciso II,
da Constituição Federal, estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Logo, as vedações aos indivíduos, sejam
eles magistrados ou não, só podem ser criadas por espécies normativas produzidas
em conformidade com o devido processo legislativo.
64. O que se extrai do artigo 5º, inciso II, é um comando geral e abstrato que
somente a Lei, em sentido formal, poderá criar vedações, estando o Conselho
Nacional de Justiça vinculado aos comandos constitucionais e legais que disciplinam
sua atividade e funcionamento.
65. O princípio da legalidade é uma verdadeira garantia Constitucional na qual
o constituinte procurou proteger os indivíduos contra os arbítrios cometidos pelo
Estado. Assim, os indivíduos, inclusive magistrados, têm ampla liberdade para
fazerem o que quiserem, desde que não seja um ato proibido por lei.
66. Assim, as vedações aplicáveis aos magistrados são exclusivamente
aquelas previstas na Constituição Federal, na LOMAN e em eventuais outros atos
normativos com força de Lei.
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67. Por fim, vale ressaltar que o CNJ, ao tentar editar normas com alto grau
de abstração e generalidade, regulando e restringindo a conduta dos magistrados
(cidadãos antes de tudo), invadiu a competência do Congresso Nacional, podendo
até mesmo se falar em violação do princípio da separação dos Poderes.
III.4 DESNECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DO TEMA
68. Por fim, qualquer regulamentação que tenha por objetivo disciplinar os
limites de utilização das redes sociais pelos magistrados é desnecessária, uma vez
que os dispositivos constitucionais e legais hoje existentes (Constituição Federal e
LOMAN) tratam da conduta dos Juízes e preveem as consequências de eventuais
faltas por eles cometidas.
69. Os incisos IV e IX do artigo 5º da Constituição Federal, que dão assento
aos direitos à liberdade de opinião, de expressão e de pensamento, já encontram
seus contrapesos, suas limitações, nos incisos V8 e X9 do mesmo dispositivo (além da
vedação ao anonimato, no próprio inciso IV).
70. No âmbito infraconstitucional, tem-se o já mencionado artigo 41 da
LOMAN, além dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil (aplicáveis
subsidiariamente), e do artigo 143 do Código de Processo Civil,10 dentre outros.
71. Já em relação às vedações do artigo 95, parágrafo único, da Constituição,
elas já foram reguladas pela própria LOMAN, recepcionada pela Constituição Federal
ante a possibilidade expressa do artigo 93, caput, da Constituição Federal.
72. Evidente que eventuais excessos cometidos por magistrados no exercício
de seu direito de livre expressão devem ser investigados, sendo de rigor a 8 CF, artigo 5º, inciso V: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano
material, moral ou a imagem.” 9 CF, artigo 5º, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito
a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”. 10
CPC, artigo 143, caput: “O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando: I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte.”
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responsabilização civil, administrativa e criminal quando identificado abuso, por meio
de um procedimento com contraditório e ampla defesa que lhe garanta o devido
processo legal.
73. Contudo, tal análise é, obviamente, caso a caso, devendo ser analisado o
conteúdo da manifestação, a intenção, o contexto em que a opinião se inseriu etc. E,
sendo identificado abuso, o ordenamento já prevê diversas ferramentas para a
devida responsabilização, sendo desnecessária a norma infralegal que o CNJ
pretende publicar.
74. A título exemplificativo, se um magistrado cometer o crime de racismo em
uma publicação em rede social, já existem instrumentos para a sua responsabilização
civil e penal, além da repercussão que essa responsabilização tem na esfera
administrativa/disciplinar, por força da própria LOMAN.
75. Ademais, considerando a velocidade com que os meios de comunicação e
mídias sociais evoluem, pode-se concluir que a Resolução, se aprovada pelo CNJ,
ficará defasada em pouco tempo, o que apenas contribui para aumento da
insegurança jurídica. De outro lado, a análise caso a caso, mencionada acima,
revela-se atemporal, pois eventuais alterações no panorama fático-social já serão
consideradas.
76. Não se pode esquecer que a aprovação da proposta de Resolução também
poderá levar à violação do princípio da simetria constitucional, com tratamento mais
gravoso aos magistrados, já que, atualmente, não existem regras de comportamento
em mídias sociais a outros membros dos Poderes Executivo e Legislativo.
77. Não há qualquer dúvida de que os magistrados têm compromisso com a
ética e o decoro, e que eventuais excessos devem ser punidos, mas o projeto de
Resolução aqui tratado é, além de inconstitucional e ilegal, desnecessário.
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IV. CONCLUSÃO
78. Ante o exposto, com o devido respeito, a AJUFE manifesta-se
contrariamente à aprovação da Proposta de Resolução ora discutida no Ato
Normativo 0004450-49.2019.2.00.0000.
Por último, a Associação signatária se coloca à disposição de V. Exa. para
eventuais esclarecimentos necessários.
Brasília/DF, 31 de julho de 2019
Fernando Marcelo Mendes
Presidente da AJUFE
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