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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA UnB
Programa de Pós-graduação – PPG/IdA
Linha: Processos Composicionais para a Cena
Disciplina: Teoria e História do Teatro
Professora: Marcus Mota
Aluna: Kaise Helena Teixeira Ribeiro
Matrícula: 09/17532
Trabalho 5 – Sobre o Teatro de Marionetes
Em “Sobre o Teatro de Marionetes”, obra do escritor prussiano Heinrich von
Kleist (1777-1811) temos um interessante diálogo entre dois personagens que aborda
questões pertinentes a uma discussão acerca da performance.
A estrutura geral do texto, em princípio, é a de um conto. No entanto, por
apresentar alguns dados que suscitam reflexões importantes que serão aqui tratadas, o
texto pode ser considerado também um ensaio. Uma particularidade que se apresenta
desde o início é a de que cada personagem e lugar é denominado apenas por uma letra,
de modo que o diálogo se dá no lugar M., entre o senhor C e o seu interlocutor, não
identificado. Outros personagens citados também são tratados por letras. Essa opção do
autor pela despersonalização e por um não espaço-tempo específico enfatiza a discussão
que se desenvolve.
A história é o encontro do personagem não identificado, mas claramente
estabelecido como um narrador - participante que interpela o outro personagem, o
senhor C, primeiro bailarino da ópera da cidade, recentemente admitido, mas de grande
sucesso, a partir da assistência a uma função de um teatro de marionetes na praça do
mercado. O teatro de marionetes é o mote do contato que estabelecem.
O texto traz uma série de temas que, pensando no universo do teatro de bonecos,
são relevantes tais como: 1) a aprendizagem do bailarino a partir da observação da
marionete; 2) O controle dos movimentos da marionete tendo como referencial o
mecanismo inerente a ele e a gravidade inerente ao material; 3) a comparação do
movimento do „operador‟ da marionete à uma dança; 4) A conexão de movimentos
entre „operador‟ e a marionete; 5) A alusão à mecanicidade minimizadora da
complexidade na relação entre „operador‟ e a marionete; 6) O hibridismo humano-
máquina; 7) A relação do conhecimento em estruturas mecânicas de objetos e a
construção de marionetes; 8) A „vantagem‟ da marionete sobre o humano no quesito
„afetação‟; 9) As especificidades da matéria (marionete) em relação a gravidade; 10) A
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„afetação‟ causada pelo conhecimento e o exercício do deslocamento de lugar de
„poder‟. Antes de discorrer acerca desses pontos, acrescentarei algumas especificidades
relativas ao teatro de bonecos para evidenciar algumas características que lhe são
inerentes.
No teatro de bonecos, uma das categorias do Teatro de Formas Animadas ou
Teatro de Animação (que envolve bonecos, máscaras, objetos, sombras), há uma
diversidade considerável de técnicas de manipulação e de tipos de bonecos. Temos
bonecos de luva com e sem articulação de boca e de olhos; marotes, bonecos de luva
com articulação de boca, bonecos de vara (de manipulação de baixo para cima),
bonecos de bengala (manipulação de cima para baixo), bonecos de manipulação direta
(com um, dois ou três manipuladores), bonecos de fio (marionetes), enfim, cada técnica
exigindo do ator-manipulador um conjunto de habilidades diferentes e com resultados
em cena também bem distintos. Algumas especificidades da marionete são: o
aparecimento do boneco de corpo inteiro completo1; o comum detalhamento de
proporções e articulações; a exigência de uma espécie de mapeamento dos fios com
articulações; a partituração das ações; a predominância do movimento em relação à fala;
as possibilidades gerais e específicas de cada marionete a partir da sua estrutura física.
Dentre tantas técnicas, a marionete divide com o boneco de manipulação direta uma
maior aproximação de um conjunto de ações mais semelhantes às humanas, sendo a
marionete a que as executa de maneira mais estilizada.
A seguir, então, tratarei dos pontos que destaquei. Considero ainda que a análise
de um ponto possa ser pertinente também a outro.
1) A aprendizagem do bailarino a partir da observação da marionete – o
que liga o trabalho do bailarino à marionete em cena? A ênfase no movimento, dentro
de uma estrutura pré-estabelecida. A comparação que faço se dá não a um „bailarino‟ de
qualquer dança, mas de ballet clássico e uma marionete. Ambos em cena estão
trabalhando dentro de uma prévia definição. Essa apologia a aprendizagem do humano
com um objeto criado, feito em forma humana, remete-nos a uma valorização proposital
por parte do autor do impessoal, do não-personalizado, do não „afetado‟ como veremos
a frente.
1 Refiro-me assim quanto a marionete porque o corpo inteiro de um tipo de boneco, como o de luva por
exemplo, pode não ser „completo‟ – não ter pés, ou mãos às vezes, apenas braços, há traços muitas vezes
mais sintéticos.
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2) O controle dos movimentos da marionete tendo como referenciais o
mecanismo inerente a ele e a gravidade inerente ao material – para a manipulação
de um boneco é preciso ter conhecimento de suas características constitutivas. Essa é
uma construção de relação com o material (pessoa com o objeto - marionete) que está
relacionada a distribuição de peso das partes do boneco e sua conseqüente resposta de
movimento durante o estudo de manipulação e a cena propriamente dita. Se o
marionetista é também o construtor do boneco, essa relação se estabelece durante a sua
confecção. A distribuição do peso do boneco está diretamente relacionada à densidade
de seus movimentos controlados e intencionais, não controlados e intencionais e não
controlados e não intencionais.
3) A comparação do movimento do ‘operador’ da marionete a uma dança e,
4) A conexão de movimentos entre ‘operador’ e a marionete – em uma das raras
escolas do mundo de teatro de bonecos, na China, por exemplo, aprende-se dança
moderna para se aprender a trabalhar com bonecos. É assim porque há a idéia de que o
corpo do ator é uma extensão do corpo do boneco. O ator entra em cena com a mesma
indumentária do boneco que manipula, o ator aparece de corpo inteiro. Se o boneco,
numa cena de luta levanta a perna direita para golpear, o ator faz o mesmo movimento,
com a sua perna direita, causando uma sensação de duplicidade, de mesmo personagem
em „micro‟ e „macro‟ dimensão. Creio que a cena pensada dessa maneira só explicita
uma relação que acontece em maior ou menor escala no momento da manipulação de
um boneco. O corpo do manipulador está em consonância com a movimentação do
boneco – controlado pelo primeiro. E, dentro da musicalidade das ações, intenções,
reações, interações que acontecem em cena com a marionete, o corpo do manipulador
está implicado. Muitas vezes essa implicação é sutil, pouco observável, mas é
invariavelmente refletida na movimentação do boneco.
5) A alusão à mecanicidade minimizadora da complexidade na relação entre
o ‘operador’ e a marionete –
“Entretanto, ele acreditava que este último rasgo de espírito, do qual vinha
falando, podia ser afastado da marionete, que sua dança podia ser completamente
4
transposta para o reino das forças mecânicas, produzindo-se por meio de uma
manivela (...) (p. 15.)2
A mecanicidade do controle de uma marionete onde podemos ter, em lugar do
ser humano, uma fonte diversa de energia é questão que permeia várias áreas de
trabalho e de conhecimento neste campo. No teatro de bonecos, tendo em vista a
necessidade de circulação de espetáculos vinculada à sustentabilidade financeira do
bonequeiro, e/ou a necessidade de experimentação estética e artística, geraram o uso
do mecanismo alimentado a energia elétrica, embora não seja muito comum. Paulo
Nazareno3, por exemplo, desenvolveu um sistema elétrico de manipulação de vários
bonecos, personagens tocadores de capoeira, onde ele aciona um botão e todos tocam,
enquanto ele, sozinho, na frente manipula seu boneco capoeirista, com um sistema
que mistura manipulação direta, de fio e de luva. Mestre Saúba4 é reconhecido pela
construção de bonecos inventivos, com várias técnicas, dentre elas a „casa de farinha‟
que é uma caixa de madeira, por dentro dela todo o mecanismo, por fora, em cima
fica um coletivo de bonecos, em uma cena controlada por uma manivela que está
ligada a todos eles. Não há necessidade de ser acionada exclusivamente por uma
pessoa, as ações dos bonecos podem ser aceleradas ou desacelaradas, mas a cena está
dada. Não há uma grande difusão da mecanização do boneco, da animação por meios
não-humanos. Por um lado creio que isso se dá por um receio, por parte dos artistas
de serem substituídos pela „máquina‟, por outro, a resistência pode ser pela simples
distância atribuída entre a arte e a ciência, questão polêmica, mas que está muito
arraigada nos meios „práticos‟ do teatro como um todo e no teatro de bonecos.
6) O hibridismo humano-máquina; 7) A relação do conhecimento em
estruturas mecânicas de objetos e a construção de marionetes - A idéia do homem-
máquina é antiga e remete a uma abordagem meio mágica da figura humana. No texto, é
citado o caso de um homem que teve sua perna amputada e que passou a andar com
uma recém inventada prótese. O bailarino afirma que ele dança com sua nova perna,
apesar das suas limitações. O corpo do boneco também é limitado. Mas suas limitações
2 Kleist, H. Sobre o teatro de marionetes. Tradução Pedro de Sussekind. 2ª Ed. 7Letras: Rio de Janeiro,
2005. 3 Bonequeiro de Rio do Sul, SC.
4 Mestre de Mamulengo de Carpina, PE.
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são as geradoras da exploração das suas possibilidades de movimento, da síntese
poética.
Ainda hoje o hibridismo humano-máquina gera interesse e curiosidade. A
questão perpassa uma idealização do ser humano onde, conhecidos os seus limites
próprios, poderia se superar por meio da máquina. É a máquina que estende os
potenciais do corpo e da imaginação humana. O papel do humano nessa relação é o do
controle, o da consciência. Os mecanismos devem servir aos interesses do humano. O
conhecimento acerca da de um mecanismo de movimento eficiente é o que caracteriza
um bom artesão do boneco, da marionete.
A marionete, já foi dito antes, é um boneco com muitas articulações. O que
compõe as articulações é uma estrutura conhecida como „alma‟, que funciona de forma
semelhante a uma dobradiça. É o seu perfeito ajuste, associado à habilidade do
marionetista o que permite uma manipulação „dançada‟, conectada a variações de um
determinado andamento de ações pré-determinado.
8) A ‘vantagem’ da marionete sobre o humano no quesito ‘afetação’ – Kleist
responde a uma determinada época, a um determinado estilo de atuação, onde quem
„realiza‟ está sendo considerado em primeiro plano. Havia (ainda há) um tipo de
vaidade muito cultivada nos meios artísticos e isso transparece na atuação em cena, na
dança e no teatro, o „eu‟ importando mais do que a própria arte. No teatro de bonecos,
de certa maneira, abdicar do „eu‟ em favor de uma outra figura que aparece no primeiro
plano da cena já é, em si, o exercício oposto da situação antes descrita. A marionete, por
sua vez, não se afeta como o ator ou o bailarino dessa época. Ela permanece impassível
o que para Kleist parece ser exemplo a ser seguido. A impassividade da marionete não é
a do marionetista, que controla e acompanha/observa a cena, simultaneamente. A
marionete não tem „psicologia‟ em sua atuação de acordo com o que mais convém, se
seu manipulador se afetar ele tem um limite mais estreito para manifestar-se, pois a
destreza do outro (a marionete) depende de seu controle.
Quem manipula o corpo do bailarino? Se for ele mesmo a se guiar por sua
emoção, sua „afetação‟ onde estará sua arte? Kleist assim define a afetação: “A afetação
aparece, (...), quando a alma (vix motrix) encontra-se em qualquer outro ponto que não
seja o centro de gravidade do movimento.” 5 Kleist descreve a afetação como um
5 Idem. p. 20.
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desequilíbrio. Do ponto de vista da emoção no teatro esse desequíbrio é
contraproducente, pois, afasta o performer da situação de controle. Se há descontrole, há
aleatoriedade, há o acidental.
9) As especificidades da matéria (marionete) em relação a gravidade
Primeiramente, a marionete é constituída de partes separadas e compreendidas
dentro de uma observância ao esquema corporal de um ser humano. A relação dos pesos
de cada parte deve, preferencialmente, ter um equilíbrio aproximado para garantir um
„caimento‟ do corpo como um todo ou de partes. O boneco é pensado como um corpo
dentro e fora do que se pensa humano, é um objeto de sentido ampliado.
O boneco oferece em suas limitações uma amplitude de possibilidades que o ser
humano não pode alcançar se grandes aparatos técnicos. Algumas das especificidades
das marionetes são: poder desmontar-se corporalmente em cena; poder multiplicar-se
dentro de uma mesma caracterização ou em caracterizações diferentes; poder variar em
proporções; ser antigravitacional: poder flutuar, voar, ter diversos pontos de apoio no
corpo em relação ao chão (verossímeis ou não), ter diversos pontos de apoio no espaço
físico.
10) A ‘afetação’ causada pelo conhecimento e o exercício do deslocamento
de lugar de ‘poder’ – O autor parece crer que a afetação funciona como uma perda da
inocência que está relacionada ao conhecimento. O encanto preciso que há na
marionete, no manequim, segundo ele, não há no ser humano. Isso é trazido como dois
extremos ligados por um anel. Para exemplificar, o senhor C. narra três histórias em que
exemplifica, em tom breve o que quer dizer. Nas três ele descreve a perda da
„inocência‟ como um problema. A primeira narrativa é acerca de um rapaz „inocente‟
que feriu o pé. Em princípio era como se nada tivesse se modificado nele, mas, diante
dos risos como reação do Senhor C., modificou-se inexplicavelmente perdendo sua
„graciosidade‟ e sua inocência. A segunda narrativa, sobre o encontro com outro jovem
que se julgava bom sabedor em esgrima e que foi vencido por ele, desloca o rapaz,
identificado com o seu lugar de poder de realização auto-suficiente para o Senhor C.,
que é confrontado, portanto numa terceira narrativa. Nesta, ele descreve que foi levado
então, após vencer o rapaz, a confrontar um urso em uma luta. O urso não se deixa iludir
pelos falsos movimentos do Senhor C., defende-se sem esforço de cada golpe e
demonstra exíminio discernimento em reconhecer o movimento intencionalmente
7
„verdadeiro‟. O autor nesse ponto parece sustentar a idéia de até um animal sabe
reconhecer o quanto a „afetação‟ interfere do desempenho do performer. O lugar de
„poder‟ é deslocado do que sabe para o que não sabe.
Nesta obra Kleist, com clareza, evidencia-se a importância do objeto (marionete)
e do animal em relação ao humano. Ele considera exagerada a exaltação do homem, em
especial do que está „afetado‟ por um conhecimento julgado suficiente. O homem, para
Kleist, deveria se igualar ao objeto e ao animal, destituir-se da sua posição de „poder‟,
recuperar a sua inocência, aceitar-se marionete de deus. A árvore do conhecimento
deveria estar de novo a nossa frente, segundo ele, deveríamos comer novamente dela
para recuperar nossa inocência.
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