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Terrorismo em So Paulo e o iderio poltico-militar da segurana e represso
CLIA COSTA CARDOSO
I INTRODUO
A discusso historiogrfica sobre a forma como se configurou o pensamento
poltico-militar de combate subverso na ditadura civil-militar ps-1964 encontra-se
sistematizado em diversas obras de jornalistas, historiadores e produes
memorialsticas. Como marco de sistematizao da histriado aparato repressivo dos
governos militares, destacou-se a publicaodo jornalista Antonio Carlos Fon, Tortura:
a histria da represso poltica no Brasil, lanado em So Paulo em 1979. Uma obra
reportagem de denncia dos crimes de tortura, que explicita as formas de interveno
dos militares na poltica, a concepo de segurana ea montagem e funcionamento dos
rgos de segurana e represso. O relato do jornalista, em tom memorialstico,
representa parte da histria da luta das organizaes armadas brasileiras, tendo sofrido
priso e torturas nas dependncias da OBAN (Operao Bandeirantes) em 1969.
Na dcada de 70,as relaes polticas foram embasadas nomilitarismo e
autoritarismo, manifestando-se na excessiva centralizao do Poder Executivo nos
nveis federal, estadual e municipal, nas eleies vigiadas,na propagao da ideia de
inimigo interno da Doutrina de Segurana Nacional (DSN), no cerceamento das
Professora Adjunta do Departamento de Histria da Universidade Federal de Sergipe (UFS), graduao e Programa de Ps-graduao em Histria (PROHIS), doutoraem Histria Social pela Universidade de So Paulo (USP), atuante na rea de Histria do Brasil. Coordenadora do PIBID-Histria (Programa Institucional de Iniciao Docncia / CAPES). Lder do grupo de pesquisa - Poder, Cultura e Relaes Sociais na Histria (UFS-CNPq). Participante do grupo de pesquisa Cultura, Memria e Poltica Contempornea (UFRB-CNPq). E-mail para contato: [email protected].
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liberdades e no aniquilamento das guerrilhas urbanas e rurais.Houve, portanto,
mudanas e adaptaes das teorias militares sobre as perseguies aos adversrios
polticos, bem como, uma intensificao da ao dos militares no controle do poder
poltico, atuando em conjunto com governos autoritrios da Amrica Latina (Operao
Condor), na represso aos opositores e na difuso de uma propaganda anticomunista.
Os embates ideolgicosradicalizaram-seampliando as divergncias internas e
externas entre situao e oposio. O descontentamento cresceu com as mobilizaes
em torno das eleies parlamentares de 1974 e denncias de crimes de tortura e
assassinatos. Em contrapartida,aumentou a repressocom a montagem e pleno
funcionamento dos rgos de segurana e represso, atingindo o ncleo das guerrilhas
urbanas e rurais. Nesse cenrio de disputas por projetos polticos distintos, capitalismo
ou socialismo foram os divisores de gua entre as ideologias. Governantes militares e
civis buscaram garantir a ordem para permanecerem no poder, modificando a legislao
repressiva, o funcionamento dos rgos de represso e os ensinamentos doutrinrios de
segurana,que sustentou as aes de militares no combate subverso e a terrorismo.
Essas denominaes no so sinnimos no jargo militar, uma vez que terrorismo no
um mero ato de oposio, traduzindo e justificando a necessidade de uma guerra
contra opositores armados,que almejavam a tomada do poder para a instaurao do
socialismo.
Entre a metade dos anos 60 e o incio da dcada de 70as orientaes das
corporaes militares e civis foram dirigidas para o aprofundamento da compreenso
das circunstncias histricas do presente vivido, com estudos particularizados sobre a
atuao das organizaes armadas, dos personagens envolvidos e a criao deestratgias
de combate aos adversrios polticos.Um estudo particularizado do Estado de So Paulo
revela como a administrao pblica estadual baseou-se nos princpios da segurana
nacional, tendo no comando chefes executivos, como Adhemar de Barros e Abreu
Sodr, que colaboraram de forma explcita para o bom funcionamento dos rgos de
segurana e represso.Desse modo, essa pesquisa amplia os conhecimentos das
operaes militaresconsagradas pelos iderios da DSN, permitindo compreender as
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reformulaes e adaptaes geradas no confronto com realidades regionais e locais.
Empenhados em vencer e aniquilar as organizaes armadas de esquerda, os militares
vinculados aos rgos de segurana e repressono se concentraram apenas na
identificao, mapeamento e atuaode grupos oposicionistas locais. Eles procuraram
criar estratgias parecidas com as das esquerdas, atuando com flexibilidade e
cooperao em reas internas e externas eapropriando-sede conceitos, como guerra
revolucionria, paradifundir o iderio poltico militar do Estado autoritrio e evitar a
disseminao e realizao do projeto revolucionrio dos oposicionistas.
Ao discutir o pensamento militar em alguns pases da Amrica Latina, Jos
Roberto Martins (2009) aponta duas vertentes ideolgicas-polticas-militares: a
primeira, reunida em forma de doutrinade matriz norte-americana, so construes
tericas anticomunistas formadoras da DSN. A outra, de ao prtica integra o iderio
deGuerra, propagada por militares franceses combatentes da guerra contra a
independncia da Arglia em 1954,sendo incorporada ao pensamento militar brasileiro.
Entre as lies aprendidas por militares brasileiros, aps a derrota do exrcito francs na
Arglia, destacam-se a supervalorizao da informao, o conhecimento do espao
fsico e o mapeamento dos grupos descontentes. O emprego de terminologias e
estratgias da luta revolucionria marxista para fundamentar o planejamento e execuo
de combate ao terrorismo, compreendido como a luta armada das organizaes de
esquerda, recorrendo, em alguns casos, a aplicao de novos mtodos de tortura. Nesse
sentido, fica a questo como essas ideias e prticasde combate aos oposicionistas foram
incorporadas por militares e civis a partir de comandos regionais e locais.
O Estado de So Paulo foi o proscniodo desenrolar de muitas dessas batalhas da
Guerra Revolucionria, projetada por diferentes vertentes do pensamento marxista-
leninista, e combatidapor militares e civis para permitir a plena realizao do capital e
da ordem capitalista. Foi a partir do ps-1945, em contexto de Guerra Fria, que alguns
projetos de transformao social dominaram o cenrio poltico e acirraram as disputas
ideolgicas. Estados capitalistas, como Frana e Estados Unidos, influenciaram a
Amrica Latina, com a difuso de produes textuais doutrinrias do iderio militar de
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segurana, substituindo os conceitos de defesa contra um determinado pas por
segurana nacional que atinge diretamente a populao de seu prprio pas. Essas novas
orientaes foram consubstanciadasem uma vasta literatura de cunho militar, formada
quase sempre por textos esparsos, que inspiraramo surgimento de novas produes
textuais em outros pases, como o Brasil. Os pases socialistas foram julgados como
uma ameaa ao modelo liberal do Ocidente, principalmente a URSS, devido ao
crescimento econmico e tecnolgico alcanado por planos quinquenais.
O documento intitulado: A Guerra Revolucionria e a Subverso e o
Terrorismo em So Paulo, produzido pelo Tenente Coronel Waldir Coelho, em 1970,
sistematizaos fundamentos dessa doutrina e mapeia as aes dediversas organizaes
partidrias e/ou armadas.Compartilha desse iderio mais geral de segurana nacional,
embasado nos interesses de preservao do mundocapitalista contra o socialismo em
expanso, demonstrando-se crtico das liberdades abusivas das democracias liberais.
Um ms aps a criao do DOI-CODI em So Paulo pelo major Waldir
Coelho e pelo capito nio Pimentel da Silveira, ambos mortos, Waldir Coelho proferiu
uma longa conferncia para alunos do I Curso Superior de Polcia, em outubro de 1970,
que resultou em um importante registro de anlise da teoria da DSN aplicada prtica
repressiva contra organizaes polticas de oposio atuantes em So Paulo no final dos
anos sessenta, como ALN (Aliana Libertadora Nacional), VPR (Vanguarda Popular
Revolucionria), VARPalmares (Vanguarda Armada Revolucionria Palmares) e AP
(Ao Popular). Esse documentofoi produzido no auge da represso por um dos
expoentes das operaes de combate, permitindo, portanto, conhecer e analisar a viso
de um dos intrpretes da ideologia anticomunista no Brasil.1 Partes desse texto foram
citadas no artigo do delegado de polcia Guido Fonseca (1989: 70-73), que optou por
no mencionar a fonte, bem como no emitiu nenhum comentrio sobre o assunto.
1DAESP, Fundo DEOPS/SP, Srie Dossis, no. Doc.: 50-Z-9-15602. Texto produzido por Waldir Coelho, em outubro de 1970, p. 1 a 56. Ver tambm, Carlos Fico,Como eles agiam. Os subterrneos da Ditadura Militar: espionagem e polcia poltica, 2001, p. 26, para verificar a classificao dos documentos sigilosos produzidos pelo setor pblico em ultrassecretos, secretos, confidenciais e reservados. O texto aqui analisado recebeu o carimbo Secreto, identificao presente em muitos outros documentos que requerem rigorosas medidas de segurana.
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Todavia, o delegado revelou uma informao importante sobre a circulao interna
dessa produo: a de que o documento foi distribudo s foras encarregadas de
reprimir a escalada da violncia. (Fonseca, 1989: 70).
Waldir Coelho foi um importante defensor da
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