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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOISFACULDADE DE EDUCAO
DOUTORADO EM EDUCAO
LUS CSAR DE SOUZA
SOCIEDADE, FUTEBOL, TORCIDAS ORGANIZADAS E EDUCAO:
da violncia explcita s contradies no evidentes
Goinia2014
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LUS CSAR DE SOUZA
SOCIEDADE, FUTEBOL, TORCIDAS ORGANIZADAS E EDUCAO:
da violncia explcita s contradies no evidentes
Tese apresentada ao Curso de Doutorado doPrograma de Ps-Graduao em Educao daFaculdade de Educao da Universidade Federalde Gois, para obteno do ttulo de Doutor emEducao.rea de concentrao: Educao.
Orientadora: Prof. Dr. Slvia Rosa SilvaZanolla.
Goinia
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Bibliotecrio Luismar de Carvalho Junior CRB-1/2698
S719sSouza, Lus Csar de.
Sociedade, futebol, torcidas organizadas e educao: daviolncia explcita s contradies no evidentes. [manuscrito] /Lus Csar de Souza- 2014.
192 f. : il., tabs.
Orientador: Prof. Dr. Slvia Rosa Silva Zanolla.Tese (Doutorado)Universidade Federal de Gois, Faculdade
de Educao, 2014.Bibliografia.
1. Futebol. 2. Sociedade. 3. Torcidas Organizadas. 4.Violncia. 5. Educao.
CDU 796.332:347.471.8+37
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DEDICATRIA
Aos torcedores, simpatizantes, amantes e/ou praticantes do futebol.
Que as reflexes desse trabalho possam auxiliar no entendimento das contradies
do futebol absorvido pelo grande negcio e transformado em espetculo miditico. Que
sirvam tambm para compreender as (im)possibilidades de formao do indivduo por meiodo esporte e, nesse sentido, contribuir com a superao da violncia que se manifesta no
futebol e da barbrie que assombra a humanidade.
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AGRADECIMENTOS
Universidade Federal de Gois (UFG) que, por ser pblica, gratuita e buscar
qualidade, possibilitou a minha formao desde a graduao, a especializao, o mestrado e,
agora, o doutorado.
professora Slvia Rosa Silva Zanolla pelo rigor nas orientaes e pelo respeito
aos limites pessoais e s condies objetivas de realizao do trabalho. A ela devo partesignificativa da minha insero na pesquisa acadmica.
Ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da UFG
que, mesmo diante do predomnio do conhecimento especializado orientado pelo
produtivismo, busca a formao cultural apoiada no esclarecimento e na construo (possvel
e relativa) da autonomia.
Ao Ncleo de Pesquisas e Estudos Sociedade, Subjetividade e Educao (Nupese)
e ao Grupo de Estudos em Teoria Crtica pelo espao de convivncia com novos e velhos
colegas e pelos calorosos debates que se revelaram fundamentais para o entendimento da
teoria crtica frankfurtiana e da teoria marxiana.
Aos professores Nivaldo Nogueira David, Maria do Rosrio Silva Resende e
Domenico Hhng Hur pela leitura criteriosa e pelas contribuies no exame de qualificao. A
eles e, tambm, aos professores Jos Leon Crochk e Fernando Mascarenhas, agradeo
profundamente pela participao na defesa do trabalho e de mais uma importante etapa da
minha formao.
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Aos professores Slvia Rosa Silva Zanolla, Anita Azevedo Rezende, Marlia
Gouveia de Miranda, Maria do Rosrio Silva Resende, Maria Margarida Machado, Nelson
Cardoso do Amaral e Flvio Munhoz Sofiati, pela experincia proporcionada e pelo rigor
com que conduziram suas disciplinas.
Aos colegas de doutorado pelos momentos de convivncia, de angstias e de
descobertas tericas nas aulas, nos grupos, nos corredores da faculdade e fora dela, pelo
estmulo aos estudos e pelos desafios terico-prticos que, cada um a seu modo, estimulava-
me auto-reflexo.
Aos colegas da Coordenao do Curso de Educao Fsica do Campus Jata/UFG
pelo incentivo pessoal e pelo apoio institucional imprescindveis realizao do curso. Com
eles aprimoro, a cada dia, a experincia que os desafios do trabalho coletivo possibilita.
Ao Campus Jata da UFG, pelo apoio financeiro no primeiro ano do doutorado;
Pro-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao (PRPPG/UFG) pela bolsa concedida em perodo
intermedirio; e Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Gois (Fapeg) por conceder
bolsa de estudos nos ltimos dois anos do curso. Um agradecimento especial professora
Ivone Garcia Barbosa por permitir que a pesquisa fosse integrada Rede goiana de pesquisa
sobre formao, perfil e atuao dos professores de cursos de pe dagogia em Gois junto
Fapeg.
s instituies e aos sujeitos que participaram da investigao emprica, em
especial s Torcidas Organizadas Drages Atleticanos, Esquadro Vilanovense, Fora Jovem
Gois e Sangue Colorado que, por intermdio de seus dirigentes e membros, proporcionaram
vivncias e informaes significativas para a compreenso do fenmeno investigado.
Por fim, agradeo minha famlia pelo apoio e pela compreenso dos momentos
de ausncia. Em especial: aos meus pais, pela confiana e carinho acolhedores; s minhas
filhas Luiza e Jlia que, apenas por existirem, proporcionam momentos de renovao e
incentivo vida; e Aurlia pelo carinho, companheirismo e apoio que motivam a busca por
grandes desafios como este e, ainda, pela valiosa leitura e pelas contribuies ao trabalho.
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Hoje, a dominao se perpetua e se estende noapenas atravs da tecnologia, mas comotecnologia, e esta garante a grande legitimao docrescente poder poltico que absorve todas asesferas da cultura.
Herbert Marcuse
A nica fora verdadeira contra o princpio deAuschwitz seria a autonomia, se me for permitidoempregar a expresso kantiana; a fora parareflexo, para a autodeterminao, para o nodeixar-se levar.
Theodor W. Adorno
Os anos se passaram, e com o tempo acabeiassumindo minha identidade: no passo de ummendigo do bom futebol. Ando pelo mundo dechapu na mo, e nos estdios suplico: - Umalinda jogada, pelo amor de Deus!E quandoacontece o bom futebol, agradeo o milagresem me importar com o clube ou o pas que o
oferece.Eduardo Galeano
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RESUMO
A violncia no futebol atribuda s torcidas organizadas tem sido recorrente e amplamentedivulgada pelos meios de comunicao, todavia, esse debate carregado de controvrsiassobre a responsabilidade dos confrontos, suas motivaes e autorias. Diante disso, o tema emtorno do qual as reflexes desta tese se desenvolvem so as mediaes perceptveis e noevidentes que se estabelecem entre as aes de torcedores organizados, a violncia nofutebol espetculo produzido pela indstria cultural e a sociedade contempornea. Nossoobjetivo mais amplo foi compreender algumas motivaes da violncia no futebol a partir dasmanifestaes de torcedores organizados dos trs times de maior destaque em Gois: AtlticoClube Goianiense, Gois Esporte Clube e Vila Nova Futebol Clube. Os principais estudossobre o fenmeno assinalam que a violncia no pode ser considerada como do futebol, masno futebol. Contudo, a partir da teoria crtica da sociedade da Escola de Frankfurt,sobretudo pelas reflexes de H. Marcuse, T. W. Adorno e M. Horkheimer, argumentamos que
se a violncia tem uma causa social, ela encontra correspondncia no indivduo, sendo,portanto, tributria do contexto social objetivo e ressignificada pela dinmica subjetiva. Comoa violncia no futebol e os confrontos entre torcedores organizados constituem a face evidentedo fenmeno, os consideramos como ponto de partida. Recorremos investigao emprica
para acompanhar o papel que as torcidas organizadas desempenham na ampliao daviolncia e entender como os principais sujeitos envolvidos nesse processo percebem ofenmeno. Observamos jogos em competies estadual e nacional dos trs times;entrevistamos presidentes, diretores, membros e ex-membros das torcidas organizadas;dirigentes de clubes; responsveis pela segurana no estdio; profissionais da mdia televisiva;alm do uso de questionrio com os membros mais orgnicos dessas torcidas. Entre as
principais discusses, destacamos, num plano amplo, a intensificao do futebol comomercadoria na era do espetculo miditico, configurando um cenrio de indstria cultural dofutebol, e a formao da individualidade nas sociedades administradas que se mostra maisdisponvel para pertencer a agrupamentos de massa. De modo especfico, ressaltamos osconflitos dos torcedores organizados com a polcia e com a mdia, a manifestao desentimentos supostamente incontrolveis, a revelao de que os confrontos so tolerados sobcertas circunstncias e a nfase no argumento de que a violncia no futebol se deve a umaminoria de criminosos infiltrados nas torcidas, motivo pelo qual a represso e a punio foramas medidas mais lembradas para combat-la em detrimento da formao cultural ou dasdesigualdades estruturais engendradas pelo modo de produo social vigente. Como ponto
de chegada, procuramos pelas contradies que se escondem por trs das motivaes ejustificativas para os confrontos e ressaltamos o papel fundamental da educao comocontraponto violncia e barbrie. Esta tese foi orientada pela Prof. Dr. Slvia Rosa SilvaZanolla e desenvolvida na linha de pesquisa Cultura e Processos Educativos do Doutorado emEducao da Universidade Federal de Gois.
Palavras-chave: futebol, torcidas organizadas, violncia, individualidade, sociedadeadministrada
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ABSTRACT
Attributed to organized fan clubs, the violence in soccer matches has been regularly andwidely broadcasted by the media, however, this debate is laden with controversies about theresponsibility of those scuffles, their motivations and authorships. In view of this, the themewhose reflections of this thesis are developed upon, are the mediationsthe apparent and nonapparent onesthat are established between the actions of organized soccer fans, the violencein football-entertainment produced by the cultural industry and contemporary society. Our
broader objective was to realize some motivations for violence in soccer matches fromorganized football fan clubs demonstrations of the three most prominent teams in the State ofGois: Atltico Clube Goianiense, Gois Esporte Clube e Vila Nova Futebol Clube. Majorstudies on the phenomenon indicate that the violence cant be observed as from soccer, but"in" soccer matches. However, from a critical theory of the Frankfurt School's society,
particularly on the reflections of H. Marcuse, T. W. Adorno e M. Horkheimer, we argue that
violence has a social cause, it finds relations on the individual, therefore, its dependent on thesocial context and gets a new meaning due the subjective dynamics. As violence in soccermatches and scuffles between organized fans are the obvious aspect of this phenomenon, weconsider them as the "starting point". We fell back upon the empirical research to follow upthe role that those organized fan clubs play in the expansion of violence and to understandhow the main subjects involved in this process realize the phenomenon. We have observedmatches of those three teams in state and national competitions; weve interviewed presidents,directors, members and former members of organized fan clubs, club officers, people incharge of the stadium security; television media workers, and a questionnaire was applied to
the more organic members of those fan clubs. Among the main discussion, we highlight, inbroad scenery, the intensification of soccer as an article of trade in the age of media spectacle,shaping a scenario of cultural soccer industry, and the formation of individuality in thoseadministered societies that seem to be more available to belong to clusters of people.Specifically, we highlight the conflicts of organized fan clubs with the police and the media,the manifestation of hypothetically uncontrollable feelings, the revelation that the scuffles aretolerated under certain circumstances and the emphasis on that the violence in soccer matchesis due to a minority of criminals infiltrated in fan clubs, reason why the repression and
punishment were the most remembered actions to fight it to the detriment of culturalbackground or structural inequalities stimulated by the current social production style. As a"finish point", we have sought the contradictions hidden behind the motivations and
justifications for the scuffles and we emphasize the fundamental role of the education as acounterpoint to violence and barbarism. This thesis was supervised by the teacher Ph.D. SlviaRosa Silva Zanolla and developed in the research line of Culture and Educational Processes ofDoctorate in Education at the UFGUniversidade Federal de Gois.
Keywords: soccer matches, football fan clubs, violence, individuality, administered society.
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RESUMEN
La violencia en el ftbol, atribuida a clubes de aficionados, ha sido recurrente y ampliamentedifundida por los medios de comunicacin, sin embargo, el debate est cargado de disputasacerca de la responsabilidad de los enfrentamientos, sus motivaciones y autora. Por lo tanto,
el tema en torno al cual las reflexiones de esta tesis se desarrollan son las mediaciones lasperceptibles y no evidentes - que se establecen entre las acciones de los hinchas de ftbol, laviolencia en el ftbol-espectculo producido por la industria de la cultura y la sociedadcontempornea. Nuestra meta principal era entender algo de las motivaciones de la violenciaen el ftbol desde las manifestaciones de los hinchas de tres equipos ms destacados en Goias:Atltico Clube Goianiense, Gois Esporte Clube e Vila Nova Futebol Clube. Los principalesestudios sobre el fenmeno indican que la violencia no puede considerarse como "del ftbol,
pero "en el" ftbol. Sin embargo, a partir de una teora crtica de la sociedad de la Escuela deFrankfurt, en especial las reflexiones de H. Marcuse , T. W. Adorno y M. Horkheimer
sostenemos que si la violencia tiene una causa social, encuentra correspondencia en elindividuo, y por lo tanto depende del contexto social objetivo y resignificado por dinmicassubjetivas. Como la violencia en el ftbol y los enfrentamientos entre los hinchas son elaspecto evidente del fenmeno, los consideramos como "punto de partida". Recurrimos a lainvestigacin emprica para acompaar el papel que los clubes de aficionados ocupan en laexpansin de la violencia y entender cmo los principales sujetos involucrados en este
proceso se dan cuenta del fenmeno. Observamos los juegos en las competiciones estatales ynacionales de tres equipos, hemos entrevistado a presidentes, oficiales, miembros y exmiembros de los clubes de aficionados, los dirigentes de clubes, los responsables de laseguridad en el estadio, profesionales de los medios de comunicacin televisivos, adems deluso de cuestionario con los miembros ms orgnicos de estos hinchas. Entre la discusin
principal, destacamos, en un plan global, la intensificacin del ftbol como una mercanca enla era del espectculo meditico, un escenario de la industria cultural del ftbol y la formacinde la individualidad en las sociedades administradas que muestra una mayor disponibilidad de
pertenecer a grupos de masa. Especficamente, se destacan los conflictos entre hinchas,polica y los medios de comunicacin, la manifestacin de sentimientos supuestamenteincontrolables, la revelacin de que los enfrentamientos se toleran en determinadascircunstancias y el nfasis en que la violencia en el ftbol se debe a una minora dedelincuentes infiltrados en los clubes de aficionados, razn por la cual se record ms la
represin y el castigo como las medidas para combatirla - a expensas de la formacin culturalo de las desigualdades estructurales engendradas por el modo de produccin social actual.Como "punto de llegada", buscamos las contradicciones que se esconden detrs de lasmotivaciones y justificaciones de los enfrentamientos y hacemos hincapi en el papelfundamental de la educacin como contrapunto a la violencia y la barbarie. Esta tesis fuesurpevisada por la profesora Dr. Slvia Rosa Silva Zanolla y desarrollada en la lnea deinvestigacin Cultura y Procesos Educativos de Doctorado en Educacin de la UniversidadeFederal de GoisUFG.
Palabras clave: ftbol, clubes de aficionados, violencia, individualidad, sociedadadministrada.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ACG Atltico Clube Goianiense
CBD Confederao Brasileira de Desportos
CBF Confederao Brasileira de Futebol
FGF Federao Goiana de Futebol
FIFA Federao Internacional de Futebol
FJG Fora Jovem Gois
GEC Gois Esporte Clube
PM Polcia Militar
TAC Termo de Ajuste de Conduta
TDA Torcida Drages Atleticanos
TEV Torcida Esquadro Vilanovense
TO Torcida Organizada
TOs Torcidas Organizadas
TSC Torcida Sangue Colorado
VNFC Vila Nova Futebol Clube
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1
Escolaridade.................................................................................................................... 127
Tabela 2
Renda .............................................................................................................................. 128
Tabela 3
Consumo de produtos relacionados ao futebol ............................................................... 130
Tabela 4
Sentimento em relao ao time e torcida adversria.................................................... 140
Tabela 5
Principal influncia ao se tornar torcedor de futebol ...................................................... 153
Tabela 6
Principal influncia na adeso torcida organizada ....................................................... 154
Tabela 7Meio de comunicao mais usado para acompanhar jogos e notcias do futebol .......... 156
Tabela 8
Finalidade com que mais usa a internet .......................................................................... 159
LISTA DE QUADROS
Quadro 1
Percepes sobre torcida organizada .............................................................................. 131
Quadro 2
Motivaes e justificativas para os confrontos ............................................................... 137
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SUMRIO
INTRODUO ............................................................................................................. 16
I SOCIEDADE INDUSTRIAL E O POTENCIAL (DE)FORMATIVO DO FUTEBOL
CONTEMPORNEO ............................................................................................................. 22
1.1 O foot-ball pr-moderno ................................................................................................ 22
1.2 Capitalismo ascendente e futebol moderno ................................................................... 28
1.3 Futebol no Brasil: origem, classe social e preconceito .................................................. 34
1.4 Futebol e ditadura militar: ideologia e tutela estatal ...................................................... 451.5 Capitalismo tardio e indstria cultural do futebol ......................................................... 51
II SOCIEDADE ADMINISTRADA E TORCIDAS ORGANIZADAS: ASPECTOS
OBJETIVOS E SUBJETIVOS DA VIOLNCIA ................................................................... 61
2.1 Gnese e caractersticas das torcidas organizadas ......................................................... 61
2.2 Diferentes interpretaes sobre a violncia no futebol e nas torcidas ........................... 69
2.3 Fundamentos de uma perspectiva terico-crtica para anlise da violncia no futebol a
partir das torcidas organizadas ................................................................................................ 80
2.3.1 Da agressividade cultura e violncia social.............................................................. 81
2.3.2 Violncia e coletividade pelo vis da Psicologia de grupo freudiana ............................ 88
2.3.3 (De)formao e integrao do indivduo nas sociedades de capitalismo avanado............ 93
2.3.4 Racionalidade tecnolgica e indstria cultural: novas foras produtivas e novas relaes
de produo............................................................................................................................ 100
III TEORIA CRTICA E INVESTIGAO EMPRICA DA VIOLNCIA NO FUTEBOL
A PARTIR DAS TORCIDAS ORGANIZADAS .................................................................. 111
3.1 Desafios de uma teoria crtica da sociedade ................................................................ 111
3.2 Investigao emprica das torcidas organizadas .......................................................... 116
3.3 Anlise de contedo na perspectiva terico-crtica ..................................................... 123
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IV FUTEBOL E TORCIDAS ORGANIZADAS EM GOIS: DA VIOLNCIA
EVIDENTE S CONTRADIES VELADAS .................................................................. 126
4.1 Perfil majoritrio dos torcedores organizados ............................................................. 126
4.2 Percepes positivas e negativas sobre torcidas organizadas ...................................... 130
4.3 Motivaes e justificativas para os confrontos ............................................................ 136
4.3.1 Supostos sentimentos incontrolveis ........................................................................... 138
4.3.2 Confrontos incitados e justificados .............................................................................. 143
4.3.3 Despreparo policial e necessidade de tutela ................................................................ 145
4.3.4 Criminalizao da torcida e o aparente paradoxo com a mdia e a internet ................ 149
4.3.5 Infiltrao de baderneiros e criminosos e a ideologia das medidas repressivas .......... 160
4.3.6 (De)formao cultural e barbrie: a educao na contramo da violncia .................. 1664.4 Outras controvrsias .................................................................................................... 171
4.4.1 Da ausncia de recursos do clube ao patrocnio do Governo ...................................... 171
4.4.2 Percepes em coliso sobre preveno, represso e punio..................................... 176
CONCLUSO ............................................................................................................. 181
REFERNCIAS........................................................................................................... 185
ANEXOS ..................................................................................................................... 191
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INTRODUO
No h dificuldade em perceber a violncia social no cotidiano, tanto fsica,
relacionada desigualdade estrutural e misria social, quanto moral, como preconceitos de
toda ordem. Se a delimitarmos ao mbito do esporte e do futebol em particular, a percepo
que ela encontrou um ambiente favorvel para se manifestar, pois a partir das dcadas finais
do sculo XX, o nmero de jogos envolvendo violncia de torcedores, muitos terminados em
tragdia, se multiplicou, como por exemplo: o Massacre de Bruxelas(Blgica), em que 39
pessoas morreram e centenas ficaram feridas aps o confronto entre os torcedores da Juventus
de Turin (Itlia) e do Liverpool (Ingls), em maio de 1985. Dez anos mais tarde, transmitia-se
ao vivo a Batalha do Pacaembuem So Paulo, no jogo entre So Paulo e Palmeiras, em queos torcedores utilizaram paus, pedras e outros objetos como armas para se agredirem
mutuamente; o desfecho foi a morte de um torcedor e dezenas de feridos. Em 2009, o empate
no jogo com o Fluminense rebaixou o time do Coritiba para srie B (segunda diviso do
Campeonato Brasileiro) e os torcedores revoltados invadiram o campo, agrediram a equipe e
os torcedores adversrios alm de quem encontraram pela frente, como foi o caso de
numerosos policiais feridos. No jogo entre Gois Esporte Clube (GEC) e Vila Nova Futebol
Clube (VNFC), pelas semifinais do Campeonato Goiano de 2011, houve confronto entretorcedores das duas equipes desta vez motivado por uma confuso iniciada pelos prprios
jogadores e o resultado foi a morte de um jovem rapaz. Para finalizar, afinal a lista
extensa, no jogo entre o Al-Ahly e Al-Masry em Port-Said (Egito) em 2012, o confronto entre
os torcedores dentro do estdio tem sido considerada a mais brutal de todas, pois o resultado
foi a morte de 74 torcedores a maioria por fraturas no rosto e hemorragias internas e mais
de mil feridos1.
Diante disso, a violncia entre torcedores e no caso brasileiro, entre torcidas
organizadas (TOs) tem sido recorrente e amplamente divulgada pelos meios de
comunicao, todavia, esse debate carregado de controvrsias e divergncias sobre a
responsabilidade dos confrontos, suas motivaes e autorias. Isso tem despertado ateno de
diferentes instituies sociais e a investigao acadmica tem buscado compreend-la de reas
e abordagens tericas diferentescom predomnio dos estudos antropolgicos e sociolgicos.
As principais anlises entendem que a violncia difundida pela mdia em busca de audincia
1Confrontos dessa natureza so de domnio pblico e podem ser encontrados em pesquisas simples em sitescomo www.youtube.com e www.organizadasbrasil.com,por meio da combinao de termos como futebol,torcidas organizadas e violncia.
http://www.youtube.com/http://www.youtube.com/http://www.organizadasbrasil.com/http://www.organizadasbrasil.com/http://www.organizadasbrasil.com/http://www.youtube.com/7/23/2019 Tese - Lus Csar de Souza - 2014 - Soc Futebol Torcidas Organizadas e Educao
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no pode ser considerada como do futebol, mas no futebol. Nessa acepo, mesmo
reconhecendo que o futebol em si desenvolve-se dentro de uma dinmica que favorece o
confronto fsico, este deve ser controlado, e no suprimido, a fim de garantir a igualdade ao
jogar. O controle da violncia deve ser realizado pelo juiz, dentro do campo, e pelosresponsveis pelos preparativos e pela organizao do evento esportivo. Nessa perspectiva, se
o comportamento violento encontra no futebol um ambiente frtil para se manifestar, preciso
investigar as suas origens fora dele; da o entendimento de que a violncia se origina no
contexto social mais amplo, a partir de situaes como desigualdade social, desemprego,
concentrao de renda, corrupo e impunidade, alm do consumo de drogas que, se no deve
ser considerado causa da violncia, potencializa sua ocorrncia. No negamos que as
condies objetivas engendram a violncia social e no decorrer do trabalho verificar-se- queconcordamos que esses fatores tm primazia nas determinaes sobre o grau com que a
violncia ocorre na sociedade, no grupo ou no indivduo, isto , se aumenta ou se diminui.
Contudo, a partir da teoria crtica frankfurtiana, argumentamos que se a violncia tem uma
causa social, ela encontra correspondncia no indivduo e sendo a sociedade composta por
indivduos objetivamos compreender como a violncia tributria do contexto social e
ressignificada pela dinmica subjetiva.
O tema em torno do qual as discusses desta tese se desenvolvem apresenta
mediaes perceptveis e no evidentes que se estabelecem entre as manifestaes de
torcedores organizados, a violncia no futebol na era do espetculo miditico e a sociedade
contempornea. Nosso objetivo mais amplo foi compreender algumas motivaes e
justificativas apresentadas por torcedores organizados para os confrontos, e procurar por suas
contradies. Frente a desafios complexos e abrangentes, o estudo exigiu uma perspectiva de
totalidade, uma vez que os confrontos entre os torcedores revelaram ser motivados por fatores
externos relacionados estrutura e ao modo de produo social vigente e, tambm, por fatores
internos e individuais relacionados constituio da identidade, insero na cultura e ao
sentido da violncia atribudo pelo indivduo sobretudo os membros mais orgnicos das
TOs.
O mtodo que norteou o trabalho pode assim ser sintetizado: os confrontos entre
torcedores organizados constituem a face mais visvel do fenmeno e, como tal, os
consideramos como ponto de partida. Em nossa busca, observamos que algumas anlises
argumentam que o futebol democrtico e por meio dele possvel compreender a sociedade
brasileira (DAMATTA, 1982); e se a violncia encontra nesse esporte um lugar privilegiado
para sua manifestao coletiva, suas causas devem ser compreendidas fundamentalmente fora
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administrada, racionalidade instrumental, aparato tecnolgico, dominao, violncia e
barbrie, como tambm esclarecimento, autonomia, liberdade e emancipao humana.
Com o propsito de ampliar o debate terico-metodgico, recorremos
investigao emprica para acompanhar in locoa violncia no futebol, averiguar o papel queas torcidas desempenham na sua ampliao e entender como alguns dos principais sujeitos
envolvidos nesse processo pensam e vivenciam o fenmeno. Para tanto, alm da observao
de jogos do Atltico Clube Goianiense (ACG), Gois Esporte Clube (GEC) e Vila Nova
Futebol Clube (VNFC), tanto no Campeonato Goiano como em competies nacionais,
entrevistamos presidentes, diretores, membros e ex-membros das torcidas Fora Jovem Gois
(FJG), Torcida Drages Atleticanos (TDA) e Torcida Esquadro Vilanovense (TEV);
dirigentes dos clubes, responsveis pela segurana no estdio e suas imediaes, eprofissionais da mdia televisiva ligados ao esporte; e usamos questionrios para obter
informaes sobre o perfil majoritrio, percepes e comportamentos dos membros mais
orgnicos das torcidas.
Estruturamos o trabalho em quatro captulos. No primeiro, contextualizamos o
futebol desde tempos remotos at sua formao moderna e notamos que, embora seja
observvel um processo civilizadorem sua histria, este no garantiu sua democratizao
revelando que a violncia que se manifestava nos jogos pr-modernos no foi eliminada
diante do aprimoramento das regras modernas. Na verdade, o que ocorreu foi sua
institucionalizao pela sociedade burguesa na Inglaterra a partir do sculo XIX e, de l, se
difundindo para diversos pases. No Brasil, a histria do futebol revela conflitos de classe,
preconceitos e, tambm, sua apropriao ideolgica pelo Estado em diferentes momentos
com destaque para o perodo militar de 1964 a 1985. Ainda mostramos o futebol como um
dos produtos mais prsperos da indstria cultural3e do grande negcio4nas dcadas finais do
3 Horkheimer e Adorno (1985), em 1944, elaboram o conceito de indstria cultural para demonstrarem asubordinao da culturaem diferentes aspectos, como na educao, na arte, no esporte, no tempo livre, etc. ainteresses e procedimentos determinados pelo princpio da acumulao capitalista. O mecanismo central comque opera a indstria cultural criar a iluso de que esta sociedade democratiza o acesso s mercadorias pelosindivduos, porm, o que se esconde nesse procedimento a fabricao de gostos e necessidades adaptados aosseus produtos e a intensificao dos mecanismos ideolgicos de dominao mediante a dissimulao dosinteresses de seus proprietrios.4 De igual modo, usamos as expresses grande negcio (MARCUSE, 1999, 1967) e/ou capitalismo tardio(ADORNO, 1993) para caracterizar a atual fase da sociedade industrial e capitalista, marcada pela tendncia aomonoplio de grandes empresas, pela autonomizao e padronizao das foras produtivas e por relaes de
produo que revelam um cenrio de integrao social da conscincia dos indivduos ao aparato (conjunto deequipamentos, maquinaria, tecnologia) nas sociedades em que a administrao e a burocracia se tornaram omodus operandi e ampliaram em grau extremo o fetichismo, denunciado por Marx, em que as mercadoriasganham vida e os homens e suas relaes figuram como coisa.
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sculo XX e incio do sculo XXI, configurando uma espcie de indstria cultural do
futebol em que o megaevento Copa do Mundo de Futebol constitui exemplo paradigmtico.
No segundo captulo, demonstramos que, embora a origem das TOs em seus
formatos atuais remonte dcada de 1970, foi no contexto da indstria cultural do futebol queelas se fortaleceram e suas aes foram mais evidenciadas pelos meios de comunicao.
Observamos que a absoro do futebol pelo grande negcio e sua disseminao como
espetculo miditico ressignificou tambm os gostos e as atitudes dos espectadores, que se
tornaram mais exigentes de um futebol tcnico, eficiente e espetacular. Da a importncia de
refletir sobre as faces ideolgicas e alienantes do esporte e do futebol na atualidade, o que
fizemos por meio de um debate crtico com uma abordagem interpretativo-descritiva da
violncia no futebol e nas TOs. Em seguida, a partir da teoria crtica frankfurtiana,apresentamos fundamentos para o argumento de que a violncia social assenta em bases
objetivas e sociais e, tambm, subjetivas e individuais, pressuposto fundamental no estudo de
fenmenos sociais como o esporte, o futebol, as TOs, a violncia e a barbrie. Diante do
declnio da famlia tradicional como referncia de autoridade, discutimos como a
racionalidade tecnolgica e a indstria cultural influenciam a formao do indivduo e
fornecem o cimento para a constituio de um tipo de individualidade adaptada que se
mostra incapaz de enfrentar as contradies sociais e revela tendncia para pertencer a
agrupamentos de massa.
Como se sabe, a perspectiva de conhecimento cientfico que tem predominado na
sociedade contempornea de cunho positivista, sistmico e funcional ordem social vigente.
Sendo nossa inteno se contrapor a essa concepo, desenvolvemos no terceiro captulo
fundamentos epistemolgicos de uma teoria crtica e negativa dessa sociedade e os desafios
de promover uma investigao emprica submetida aos seus princpios. Alm disso,
detalhamos os instrumentos utilizados e ressaltamos pressupostos que devem ser considerados
na anlise de contedo pelo vis da teoria crtica.
No quarto captulo discutimos os resultados da investigao emprica. Num
primeiro momento, a partir das informaes dos questionrios, apresentamos o perfil
majoritrio de torcedores organizados em Gois com o propsito de auxiliar a discusso das
informaes obtidas pelas entrevistas. Em seguida, luz dos pressupostos tericos
desenvolvidos no decorrer do trabalho, discutimos as percepes dos sujeitos sobre o papel
ideal e real das TOs atualmente, e controvrsias envolvendo a polcia, a mdia, a relao do
clube com as torcidas e, tambm, aes de preveno, represso e punio. A discusso
principal se deu a partir de motivaes e justificativas apresentadas para os confrontos, entre
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as quais duas se destacaram: que o confronto e a briga entre torcedores organizados no so
to indesejadosrevelando coerncia com o estado de barbrie que predomina na sociedade
contempornea, e o discurso de que a violncia no futebol tem ocorrido devido infiltrao
de baderneiros e criminosos nas torcidas, o que levou os entrevistados a sobrevalorizar asmedidas repressivas e punitivas no combate violncia, enquanto problemas
socioeconmicos, culturais e formativos foram colocados em segundo plano; motivo pelo
qual destacamos o papel da educao na luta contra a barbrie. Conclumos com uma breve
sntese em que ressaltamos o carter inconcluso do trabalho e expressamos nossa expectativa
com ele.
Por ltimo, relevante esclarecer que as reflexes aqui desenvolvidas no
representam uma postura contrria e de resistncia ao esporte e ao futebol; muito menosvisam acusaes indiscriminadas sobre a manifestao de torcedores ou das TOs. Seu autor
atua no campo esportivo, praticante de futebol e, tambm, torcedor embora um tipo de
praticante e um tipo de torcedor com caractersticas muito prximas s reveladas pelo escritor
uruguaio Eduardo Galeano: como praticante, as melhores jogadas ocorrem noite, durante os
sonhos, e como torcedor no passo de um mendigo do bom futebol. Ando pelo mundo de
chapu na mo, e nos estdios suplico: - Uma linda jogada, pelo amor de Deus! E quando
acontece o bom futebol, agradeo o milagre sem me importar com o clube ou o pas que o
oferece (GALEANO, 2004, p. 9). Se fosse solicitado a resumir a experincia com esse
trabalho, ressaltaria que possvel se envolver com o esporte, vivenciar o futebol e manifestar
as preferncias pelo time sem que essas atitudes se convertam em fanatismo ou motivaes
para confrontos. o que se espera tambm demonstrar.
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I
SOCIEDADE INDUSTRIAL E O POTENCIAL (DE)FORMATIVO DO FUTEBOL
CONTEMPORNEO
A histria do futebol no deve ser apreendida de modo linear e submetida a uma
periodizao fechada. Nesse sentido, fizemos um mapeamento para auxiliar a compreenso de
dois aspectos principais: a transformao desse esporte em espetculo de massa e as
mediaes entre violncia e futebol, especialmente aquela atribuda aos torcedores e s
torcidas organizadas (TOs). Os registros indicam que o futebol, ou football, tem origens
remotas e significados distintos: como jogo com um objeto praticado com os ps, remonta Antiguidade e Idade Mdia, contudo, no sculo XIX, esse esporte foi influenciado pelas
transformaes da sociedade industrial e capitalista ascendente. Na atualidade, alm de se
manter sem alteraes substanciais em relao s regras institudas pela Football
Association5, o futebol tornou-se um esporte assistido e praticado em todos os continentes. O
propsito desse captulo acompanhar essas transformaes desde suas origens, todavia a
nfase se concentrou no momento em que ele se transformou em esporte moderno na
Inglaterra e de l se difundiu para o mundo sendo o Brasil um pas que se destacou na
aceitao e ressignificao desse esporte e, tambm, a sua apropriao de modo mais
intensivo pela indstria cultural e pelo grande negcio no final do sculo XX. Como prtica
cultural, o problema que se instaura a submisso das dimenses artsticas e culturais ao
espetculo miditico, que por sua vez banaliza sua condio de mercadoria e faz com que
tambm no futebol se objetivem a alienao e a ideologia social.
1.1 O foot-ballpr-moderno
O jogo com um objeto circular praticado com os ps remonta h centenas de anos
a.C. Obviamente esses jogos antigos no eram como o futebol moderno, mas h certo
consenso entre os historiadores de que aqueles so os ancestrais deste. Entre algumas
experincias consideradas antecessoras do futebol moderno destacam-se o Tsu Tsu, oKemary,
5No verbete futebol da Enciclopdia Mirador Internacional (1983) consta que a palavra inglesa footbalol,foot-ball, registra-se pela primeira vez em 1423-1424; um substantivo composto de dois outros foot, 'p', ball,'bola', e significava j naquela poca 'jogo de bola praticado com os ps'. Na segunda metade do sculo XIX,
passa a haver basicamente duas modalidades diferentes de jogar futebol, aparecendo ento as denominaes
footballassociatione rugbyfootball,para cada uma delas. O footballassociationfoi a denominao dada aofutebol moderno no ano de 1863 para marcar as diferenas de suas regras com as do rugby outro tipo defutebolespecialmente no que diz respeito permisso ou no de conduzir a bola com as mos. Ao reportarmoss informaes extradas do verbete futebol desta Enciclopdia indicaremos a fonte pelas iniciais EMI.
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o Tlachtli, o Matanaarti, o Epyskiros, o Harpastum e o Calcio. A discusso de algumas
caractersticas desses jogos possibilita entender que, mesmo diante da riqueza da cultura
ocidental desde a Grcia clssica, preciso lembrar que a cultura oriental igualmente rica
em suas razes histricas, o que implica reconhecer que os elementos da cultura resultam dasrelaes que o homem estabelece com a natureza e com os outros homens no processo de
(re)organizao social.
Na China, o Tsu Tsu era praticado h aproximadamente 2.600 anos a.C. e sua
prtica tinha muito pouco ou quase nada a ver com um jogo esportivo, afinal representava um
ritual de guerra, pois aps os combates, a tribo vencedora jogava um 'futebol' cujas 'bolas'
eram sete cabeas dos derrotados: a do chefe e mais seis dos melhores guerreiros inimigos, os
mais valentes e habilidosos (MURAD, 2012, p. 64).Nesse ritual, se acreditava que o sanguee o despedaar das cabeas em pontaps eram um meio de fertilizar a terra para melhores
plantios e colheitas de alimentos j que a agricultura era a principal atividade econmica
daquela poca.
Tambm no oriente registra-se a prtica do Kemaryno Japo, aproximadamente
h 2.600 anos a.C.. Embora inspirado no jogo dos chineses, dele se diferenciava porque no
tinha objetivos beligerantes e nem se contavam pontos, mas a finalidade era aprimorar a
tcnica de controlar a bola com os ps (EMI, 1983). Marcadamente um jogo em que
predominava a dimenso tcnico-artstica, o Kemary era considerado uma prtica
complementar educao e a busca pela perfeio de seus movimentos auxiliava no
desenvolvimento da disciplina e da concentrao imprescindveis ao aprendizado escolar e
sabedoria para a boa vida. Ainda nos dias de hoje, praticado sob o mesmo silncio que a
milenar cultura japonesa defende para educao de seus alunos; e alm da delicadeza, a
plasticidade do Kemary elegante e artstica, a indumentria refinada e o ritmo e os
movimentos so realizados mediante melodias tpicas do folclore japons (MURAD, 2012).
Em comparao ao Tsu Tsu, oKemaryestaria mais ligado ao chamado futebol artedo que
ao futebol fora, o que sugere que esta ambivalncia histrica e muito anterior ao esporte
moderno.
No continente americano tambm h registros de prtica de jogo envolvendo bola,
ps e mos h aproximadamente 15 sculos a.C.: o Tlachtli, que se desenvolvia com aspectos
semelhantes ao Tsu Tsu chins, com finalidades mticas e beligerantes. Simulando uma
guerra, jogadores da equipe derrotada tinham suas cabeas decapitadas porque se acreditava
que o sangue jorrado divinizaria a terra, e, desse modo, o sagrado tentaria controlar o
excesso de emoes (MURAD, 2012, p. 68). Mais ao sul do continente, os araucanos, no
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Chile, conheciam um jogo parecido com o tlachtli, enquanto os ndios da Patagnia jogavam
o tchoekah,empregando um pedao de rvore para acionar a bola, como no beisebol ou no
hquei (EMI, 1983). Ainda na Amrica do Sul, o Matanaarti remonta tradio de
indgenas brasileiros h pelo menos 1000 anos a.C. e foi um jogo em que a bola era demangabeira (borracha), revestida de caucho (madeira leve). Ps, pernas, costas e ndegas
podiam ser usados para controlar a bola, mas a disputa era quase sempre atravs de
cabeadas (MURAD, 2012, p. 69). Nessa prtica, se o confronto fsico o distancia do estilo
de jogo japons, ao menos em relao ao sentido formativo a experincia dos ndios
brasileiros apresenta semelhana, pois aqui tambm havia preocupaes com aspectos
educativos, especialmente para as crianas e jovens, j que uma das regras principais era o
respeito, pelo jogo e pelos demais, durante a partida: no se podia falar palavres, xingaradversrios, nem pai ou me, tampouco a plateia (Ibid., p. 69). De acordo com esse autor,
essa poderia ser considerada uma forma arcaica das origens do que hoje se conhece comofair
playo respeito s regras, ao adversrio e ao pblico.
Nas civilizaes clssicas da cultura ocidental tambm foram registrados jogos de
bola com os ps. Na Grcia do sculo IV a.C. e em Roma do sculo I a.C. eram praticados
respectivamente o Epyskiros, que chegou a ser modalidade olmpica, e o Harpastum, no
contexto de florescimento mximo das respectivas culturas dessas clssicas civilizaes
(Ibid., p. 70). Esses jogos eram praticados tanto pela nobreza grega os cidados da plise
pela aristocracia romana os patrcios , quanto pelo povo, sendo que neste ltimo caso os
jogos se tornavam mais livres, o que trazia duas consequncias imediatas: mais livre, a
modalidade tornava-se mais bonita, espontnea, mas tambm mais vigorosa e, s vezes mais
violenta (Ibid., p. 70). Todavia, nesses jogos compareciam tambm a elegncia e a disciplina
dos jogadoresos quais eram escolhidos entre os melhores devido ao esprito olmpico grego
que ainda predominava6.
Na Idade Mdia, os jogos de bola com o p foram realizados em diferentes lugares
e com diferentes significados, e boa parte dos que se tem registro indica forte teor violento.
Na cidade de Ashbourne, Inglaterra, por exemplo, foi realizado um jogo considerado
importante precursor do futebol moderno; disputado anualmente durante as chamadas teras-
feiras gordas, cerca de 400 a 500 participantes corriam atrs de uma bola de couro fabricada
pelo sapateiro local, com o objetivo de alcan-la, domin-la e finalmente lev-la at a meta
6Embora haja indcios de que competies esportivas com programas organizados remontem a 15 sculos a.C.,com os jogos pan-helnicos, somente a partir do ano de 776 a.C. que se reconhecem os primeiros JogosOlmpicos, pois os nomes dos vencedores das provas do programa comearam a ser anotados nos registros
pblicos (EMI, 1983).
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adversria, no caso as portas norte e sul da cidade, uma para cada equipe (EMI, 1983).
Embora haja controvrsias sobre as origens desse tipo de jogo, duas explicaes podem
auxiliar a entender a violncia no futebol pr-moderno. Uma das verses era que se tratava
de uma comemorao anual da vitria dos bretes sobre os romanos, numa partida deharpastum efetuada no ano de 217; a outra verso sustenta que as origens desse jogo
estariam
nas lendas surgidas durante ou depois das batalhas entre os habitantes saxes e osinvasores dinamarqueses, j no incio do sculo XI. A primeira dessas partidas teriasido disputada pelos homens de Ashbourne ou de Derby, utilizando como bola ocrnio de um oficial dinamarqus em combate (EMI, 1983).
Seja qual for a origem, o que parece certo que a histria confirma a existncia decomportamentos violentos no futebol pr-moderno e, mais ainda, registra-se nesse perodo
que o jogo em diferentes pases europeusalm da Inglaterra, tambm na Frana e na Itlia
era um jogo primitivo, violento, semibrbaro e, por tudo isso, mal visto. [Motivo pelo qual] o
futebol de ento constitua prtica condenvel (EMI, 1983). To condenvel que autoridades
reais da poca o proibiam com frequncia, alegando que se tratava de um jogo que provocava
vtimas, instaurava o tumulto na cidade, feria os preceitos divinos e, alm disso, poderia
desviar a ateno de soldados e comprometer o xito nas guerras7
. De acordo com Elias eDunning (1992, p. 259), por muito selvagens e turbulentos que fossem os seus jogos de bola,
as pessoas gostavam deles. [Como resultado] os seus conflitos com as autoridades, a
propsito destes passatempos, continuaram durante sculos sem interrupo.
Todavia, no era somente a dimenso violenta que se destacava, mas tambm o
envolvimento e o prazer pelo jogo. Elias e Duning (1992) assinalam que alguns dos principais
participantes desses jogos eram os camponeses que gozavam de certa liberdade e os pequenos
proprietrios de terras locais; e mesmo que ossos se quebrassem ou algum morresse porcausa de ferimentos no jogo, o povo da regio, os camponeses e a pequena nobreza em
conjunto, sentia prazer nele e estava, como pode ver-se, sempre disponvel para o realizar (p.
275). Por despertar o envolvimento do povo, os jogos medievais se tornaram populares na
Gr-Gretannha e em outros pases, e diferentes nomes foram utilizados para design-los,
como football, campball, hurling, knappan (na Gr-Gretanha), la soule (na Frana), gioco
della pugna(na Itlia). Apesar das diferentes denominaes, Murphy et. al.(1994, p. 30-31)
7O futebol era um jogo muito popular no norte da Inglaterra e tambm na Esccia, chegando a se realizaremjogos entre os dois lados, nos espaos entre duas batalhas, o que teria levado o Rei a perceber que os interessesde seus soldados pelo futebol era tanto, que temia que viessem eles a se descuidar de esportes mais adequados aotreinamento para a guerra (arco e flecha, esgrima, arremesso de lanas) (EMI , 1983).
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assinalam que
nestes jogos, a bola era movimentada, atirada e dominada no s com os ps comocom o auxlio de tacos, as partidas disputavam-se tanto nas ruas das cidades como
em campo aberto e o nmero de jogadores era varivel e irrestrito, ultrapassando porvezes os mil. No se atentava igualdade de participantes por cada um dos lados eas regras no existiam sob a forma escrita, nem eram impostas e padronizadas porum qualquer rgo fiscalizador central, antes sendo transmitidas oralmente eespecficas de cada lugar. No entanto, apesar destas variaes locais, os jogostradicionais populares partilhavam pelo menos uma caracterstica comum: eramtodos jogos-luta.
Para ilustrar esse tipo de prtica, os autores se valem de duas situaes permeadas
por extrema violncia. Na Gr-Bretanha do sculo XVII, uma descrio do knappan revela
que os participantes poderiam passar dos dois mil, alguns jogavam montados em cavalosportando tacos e qualquer um que se encontrasse dentro ou prximo da contenda no era
poupado dos cassetetes, socos e pontaps; e ao norte da Itlia, o gioco della pugna, alm da
agresso por socos e pontaps, tambm inclua na disputa a prtica do apedrejamento, o que
teria levado autoridades da poca a tentarem abrandar o derramamento de sangue pela ameaa
de julgar por assassinato aqueles que matassem adversrios (MURPHY et. al., 1994, p. 31ss).
Ocorreu tambm na Itlia o jogo considerado um dos precursores mais
importantes do futebol moderno: o Calcio. Sua importncia se revelou porque foi um jogo
organizado com regras, segundo se sabe, o nico futebol organizado de toda a Idade Mdia e
Renascena (EMI, 1983). Entretanto, mesmo que alguns desses jogos sejam considerados
prticas antigas do football association, a partir dos registros disponibilizados aos
historiadores, sobretudo na Gr-Bretanha, uma compreenso sobre o real significado deles
dependeria de um conhecimento a fundo do contexto econmico e poltico-cultural daquelas
sociedades. No entendimento de Elias e Dunning (1992), as proibies representaram uma
espcie de ajustamento de conduta com o propsito de evitar a baderna, a violncia e o cultivo
de prticas inteis, e esses ajustamentos teriam colaborado para civilizar o futebol8.
Aps diferentes formas de jogos, no ocidente e no oriente, em diferentes contextos
e perodos, o futebol comea a ser praticado de modo mais civilizado no sculo XVII, o que
impulsiona a difuso de sua prtica. Todavia, no sculo XVIII que se registra de modo mais
evidente a transio das prticas primitivas e violentas para sua verso mais civilizada
8 Ainda hoje os Termos de Ajuste de Conduta (TACs) so comuns. Ao mencionar o que se tem feito para
diminuir a violncia no futebol, os entrevistados apontaram os TACs como principal ao conjunta entre TOs,Secretaria de Segurana Pblica, Ministrio Pblico e clubes, como medida para preveni-la. Isso aponta que aviolncia no futebol histrica e recorrente; e as tentativas de controle que se limitam ao mbito especfico dofutebol no atingem o cerne do problema, nem tampouco a totalidade de torcedores. Cf. Captulo IV.
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especialmente por ter sido um dos primeiros jogos inseridos nas escolas pblicas inglesas, que
ganhou fora devido s competies escolares (EMI, 1983). No incio do sculo XIX, h
registros de que autoridades educacionais percebiam o esporte como elemento de canalizao
de energia para as competies que, de outro modo, poderiam ser desperdiadas pelos jovensem atividades condenveis, como no apenas os vcios do jogo e do lcool, mas idias ou
manifestaes polticas de sentido reformista que poderiam pr em risco o conservadorismo
defendido pelos vitorianos (Ibid.). Situao que revela o futebol como atividade
intrinsecamente relacionada aos interesses polticos e econmicos da sociedade ascendente
como se ver no prximo item.
Depois de sua adoo como prtica comum nas escolas e da realizao de muitas
competies em que as regras se diversificavam conforme as normas e costumes dascomunidades, representantes de equipes de escolas e clubes locais se reuniram em Londres no
final de 1863 para definir regras comuns para o futebol. Nesta reunio foi fundada a Football
Association, instituio responsvel pela uniformizao das regras e que tinha como objetivo
tornar o jogo atraente e civilizado, condenando-se, assim, o que quer que estimulasse ou
permitisse o emprego de violncia, como o tranco e o corpo a corpo (Ibid.). Assim, so
formuladas na dcada de 1860 na Inglaterra as bases modernas do futebol tal como o
conhecemos hoje, e como enfatizam Murphy et. al.(1994) essas regras eram muito simples
quando comparadas a outros esportes como ao futebol americano, por exemplo e,
exceo de ajustes perifricos, elas praticamente no se modificaram em sua histria
contempornea9.
Mas o jogo pr-moderno no significava ausncia de regras ou que era praticado
apenas sob a forma ldica, pois, como se demonstrou acima, o jogo podia ser extremamente
srio e tenso, e a sua natureza de incerteza e instabilidade o tornava uma prtica cultural
ambivalente, podendo conter momentos de alegria e/ou tenso:
o jogador pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, e a conscincia de tratar-seapenas de um jogo pode passar para segundo plano. A alegria que estindissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, no s em tenso, mas emarrebatamento. A frivolidade e o xtase so os dois polos que limitam o mbito do
jogo (HUIZINGA, 2000, p. 24).
9 Os autores destacam sete aspectos que diferenciam o futebol moderno de prticas anteriores: igualdade nonmero de jogadores; definio dos papis a serem desempenhados pelos jogadores; uso somente dos ps, peito
e cabea para domnio da bolasomente o goleiro usa as mos; regulamentao de rgos centrais para dirigir eorganizar o jogo em diferentes pases; proibio do uso indiscriminado da fora fsica; punies para os queviolarem as regras; e determinao de responsveis pela fiscalizao do jogo rbitros e auxiliares (MURPHYet. al., 1994, p. 32-33).
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Nesse sentido, quanto mais formal e exagerado o elemento competitivo, mais
apaixonante e tenso o jogo pode se tornar, e esta tenso chega ao extremo nos jogos de azar e
nas competies esportivas (HUIZINGA, 2000, p. 14). Portanto, o futebol pr-moderno era
cercado de alegria, ludicidade, regras, tenses e exaltaes, todavia, na perspectiva deHuizinga, uma caracterstica central sobressai na prtica cultural do jogo: uma atividade
desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual no se pode obter qualquer lucro,
praticada dentro de limites espaciais e temporais prprios, segundo certa ordem e certas
regras (Ibid., p. 16). Na medida em que aumentava sua organizao, o futebol se tornava
uma atividade cada vez mais cercada de interesses polticos e econmicos, e sua dimenso de
jogo espontneo dividia a pauta com a sua organizao moderna. Essa situao remete
relao entre esporte e sociedade e aponta que o futebol no estava imune ebulio poltica eeconmica pela qual passavam as principais naes europeias em especial a inglesa e a
francesa, com suas revolues no modo de produo social e no mbito poltico-ideolgico,
respectivamente, as quais formariam as bases da moderna sociedade industrial e capitalista.
1.2 Capitalismo ascendente e futebol moderno
Embora a prtica de jogos de bola com os ps remonte h centenas de anos, o
futebol moderno, como conhecido e praticado atualmente, tem como marco a segunda
metade do sculo XIX na Inglaterra. Sua histria pode ser interpretada como um fenmeno
que integrou um processo civilizador mais amplo da humanidade, em que a Football
Association representou um marco devido institucionalizao de regras e normas para
controlar ou eliminar a violncia extrema mudanas possveis porque a sociedade inglesa
teria igualmente se civilizado (ELIAS; DUNNING, 1992; MURPHY et. al., 1994). Porm,
tambm possvel analisar o futebol moderno na relao com as transformaes ocorridas no
modo de produo social, especialmente devido intensificao do processo de
industrializao ocorrido na Inglaterra a partir do sculo XVIII. Nessa acepo, no se trata de
limitar a investigao lgica linear de causa e efeito, como se o processo de industrializao
teria causado o (efeito) futebol moderno, mas entender que ele se configura num momento em
que os processos de produo, organizao e administrao tornavam-se mais intensos,
sistemticos e abrangentes por exigncia das foras produtivas que se desenvolviam sob o
princpio da acumulao de capital. Nesse sentido, o futebol moderno tributrio das
mudanas ocorridas nos mbitos econmicos e poltico-ideolgicos nas sociedades industriais
do sculo XIX, especialmente naquelas mais influenciadas pelas revolues do sculo
anterior. Por isso, a compreenso da gnese do futebol moderno na Inglaterra e sua rpida
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expanso para outros pasesentre eles o Brasilexige o estudo de mediaes e contradies
entre futebol e sociedade industrial capitalista ascendente.
A dupla revoluo que explodiu na Inglaterra e na Frana no sculo XVIII, a
Industrial e a Burguesa respectivamente, representou a transformao de uma sociedadepredominantemente colonial, feudal, aristocrtica e monrquica, para uma organizao social
caracterizada pelo progresso da produo e do comrcio, e por uma racionalidade marcada
pela expanso econmica e pelo conhecimento cientfico burgueses. Ao analisar o contexto
econmico e poltico gestado na segunda metade do sculo XVIII e experimentado pelas
principais sociedades europeias no sculo XIX, Hobsbawm (1977, p. 71) assinala que
se a economia do mundo do sculo XIX foi formada principalmente sob a influnciada revoluo industrial britnica, sua poltica e ideologia foram formadasfundamentalmente pela Revoluo Francesa. A Gr-Bretanha forneceu o modelo
para as ferrovias e fbricas, o explosivo econmico que rompeu com as estruturasscio-econmicas tradicionais do mundo no europeu; mas foi a Frana que fez suasrevolues e a elas deu suas idias, a ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou deoutro terem-se tornado o emblema de praticamente todas as naes emergentes, e a
poltica europia (ou mesmo mundial) entre 1789 e 1917 foi em grande parte a luta afavor e contra os princpios de 1789.
OsloganburgusLibert, gualit, Fraternitreflete o iderio poltico-ideolgico
das transformaes do sculo XVIII decorrentes da Revoluo Francesa, que foi,
diferentemente de todas as revolues que a precederam e a seguiram, uma revoluo social
de massa, e incomensuravelmente mais radical do que qualquer levante comparvel (Ibid., p.
72); iderio presente nas disputas moderadas ou radicais daqueles princpios e o seu
ataque por agrupamentos conservadores. Entretanto, se as ebulies poltico-ideolgicas
ocorreram de modo mais incisivo na Frana, o explosivo econmico que rompeu com as
estruturas scio-econmicas tradicionais do mundo ocorreu na Inglaterra, e dela se expandiu
para o mundo10. No entendimento do autor, a Revoluo Industrial significou
que a certa altura da dcada de 1780, e pela primeira vez na histria da humanidade,foram retirados os grilhes do poder produtivo das sociedades humanas, que da emdiante se tornaram capazes da multiplicao rpida, constante, e at o presenteilimitada, de homens, mercadorias e servios (Ibid., p. 44).
10Esta separao no significa que a Inglaterra no tenha influenciado mudanas no iderio poltico e que aFrana no teria influenciado as transformaes no modo de produo. Como pondera Hobsbawm (1977, p. 72),esta diferena entre as influncias britnica e francesa no deve ser levada muito longe. Nenhum dos dois
centros da revoluo dupla confinou sua influncia a qualquer campo da atividade humana, e os dois eram antescomplementares que competitivos. Entretanto, at mesmo quando ambos convergiam mais claramente comono socialismo, que foi quase simultaneamente inventado e batizado nos dois pases , convergiam a partir dedirees um tanto diferentes.
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Todavia, essas mudanas tambm alteraram a estrutura do modo de produo,
ressignificaram as relaes sociais e intensificaram a alienao do trabalhador11. Assim, se o
sculo XIX viveu sobre as sombras da dupla revoluo e o futebol moderno se institucionaliza
e se difunde na segunda metade do sculo XIX na Inglaterra, ento fundamentalcompreender o significado atribudo ao futebol pelas diferentes classes sociais nesse contexto;
isto significa que, se o futebol moderno tem como bero o pas em que ocorreram mudanas
substanciais no modo de produo social, preciso entender sua relao com essas mudanas.
Na Inglaterra do sculo XIX, os conflitos entre classes sociais com origens,
caractersticas e interesses contraditrios, se intensificaram depois das revolues industrial e
burguesa12. Essas tenses se tornaram mais evidentes devido distino de seus membros,
isto , o trabalhador no se confundia com o aristocrata ou o monarca, embora tenha havidoaproximao com a burguesia em alguns momentos como na ecloso da Revoluo
Francesa em 1789 (HOBSBAWM, 1977). Por outra via, a burguesia no poder se distanciava
cada vez mais de suas promessas liberais e libertrias, acirrando o conflito com a outra classe
que se fortaleceu aps as revolues: o proletariado. Com isso, enquanto a burguesia se
firmava como classe dominante e o proletariado se desenvolvia mediante explorao de sua
fora de trabalho, evidenciavam-se cada vez mais as caractersticas dessas classes, bem como
os distintivos de pertencimento a elas.
De um modo geral, os indivduos apresentavam marcas que os identificavam,
desde costumes e tradies, pompa e riqueza at a indumentria do miservel que nada tinha.
Na medida em que avanava a industrializao, a burguesia se legitimava no poder e ascendia
a umstatussuperior que nem sempre era garantido pelo poder econmico. Por isso,
estabelecer critrios identificveis era, portanto, urgente para os ento membros,reais ou virtuais, da burguesia ou da classe mdia e particularmente para aquelescujo dinheiro, por si s, no seria suficiente para a compra de um status seguro de
respeito e privilgio para si e para sua descendncia (HOBSBAWM, 1988, p. 245).
11A alienao resulta da fragmentao e subsuno do trabalhador na diviso mecnica da produo, retirando-lhe a possibilidade de compreender a totalidade do processo. Desse modo, ele impedido de se reconhecer comosujeito e sua produo lhe torna estranha, pois no se v objetivado no produto do seu trabalho. Na perspectivamarxiana, a alienao que se origina no processo produtivo se amplia: do estranhamento em relao ao produto,o homem se aliena de si prprio, dos outros homens e do processo histrico da humanidade situao que otransforma em parte da maquinaria e coisifica seu esprito (Cf. MARX, 1970, p. 89-102).12O conflito de classe, especialmente entre os trabalhadores e a burguesia, foi amplamente analisado por Marx eEngels a partir da segunda metade da dcada de 1840 em estudos sobre a conjuntura poltica, a teoria das lutas de
classes, a teoria revolucionria, o papel do proletariado no Estado burgus. Alguns dos textos em que essasquestes se evidenciam so O manifesto do partido comunista de 1848, As lutas de classe em Frana de 1848a 1850 escrito entre 1848-1849 e O 18 de Brumrio de Louis Bonaparte escrito entre 1848 e 1851. Cf.especialmente Marx e Engels (1982b).
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Em ascenso, a burguesia almejava se aproximar dos hbitos da alta aristocracia,
enquanto aburguesava os costumes aristocrticos; essa dinmica incentivou a inveno de
novas identidades de classe e hierarquias que levaram mobilidade social entre seus
membros. No entendimento do autor, dois aspectos ilustram a transformao de prticassociais em distintivo de classe: a educao e o esporte. A educao formal passou a ser
indicador de um estilo de vida da classe mdia porque importava menos a inteligncia
treinada nos conhecimentos tcnico-cientficos, e mais a demonstrao de que os adolescentes
burgueses tinham condies de adiar a tarefa de ganhar a vida. Assim, a instruo escolar
oferecia, acima de tudo, um bilhete de entrada para as faixas mdias e superiores reconhecidas
da sociedade e um meio de socializar aqueles que eram admitidos, de modo a distingui-los das
ordens inferiores (HOBSBAWM, 1988, p. 247). Por outro lado, o esporte tambm passou aconstituir critrio de identificao e distino de classe porque ofereceu classe mdia um
ambiente oportuno para socializao e construo de novos vnculos.
Inicialmente, como prtica exclusiva da aristocracia, o esporte se restringia a
atividades e exerccios como a caa, o tiro, a pesca, as corridas de cavalos, a esgrima,
enquanto os jogos e as competies fsicas eram considerados meros passatempos. Mas,
medida que o domnio da burguesia se ampliava, ela adotava e transformava os modos de vida
da elite aristocrtica, tornando-os adeptos de novas prticas e novos jogos inaugurados com o
esporte moderno13. Como exemplo, um esporte ainda restrito classe mdia alta como o tnis,
a partir da dcada de 1870 tornou-se o jogo perfeito dos subrbios da classe mdia, em
grande parte por ser bissexual e por conseguinte oferecer um meio para os 'filhos e filhas da
grande classe mdia' encontrarem parceiros no apresentados pela famlia mas certamente de
posio social comparvel deles (Ibid., p. 257). Assim, diante da aceitao do esporte como
meio de convvio social burgus, o futebol encontrou solo frtil para sua institucionalizao e
rpida difuso nas sociedades impulsionadas pelo capitalismo ascendente, ou seja,
a extraordinria rapidez com que todas as formas de esporte organizadoconquistaram a sociedade burguesa, entre 1870 e os primeiros anos de 1900, sugereque o esporte preenchia uma necessidade social consideravelmente maior que a deexerccios ao ar livre. Paradoxalmente, pelo menos na Inglaterra, um proletariadoindustrial e a uma nova burguesia, ou classe mdia, emergiram ao mesmo tempocomo grupos autoconscientes, que se definiam um contra o outro por meio demaneiras e estilos de vida e ao coletiva. O esporte, criao da classe mdiatransformada em duas alas com bvia identificao de classe, constitua um dosmodos mais importantes de realizar aquela definio (HOBSBAWM, 1988, p. 257-258).
13 Confirmando a constatao de Marx e Engels (1982a, p. 109) de que a burguesia no pode existir semrevolucionar permanentemente os instrumentos de produo, por conseguinte as relaes de produo, porconseguinte todas as relaes sociais.
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Na medida em que a burguesia se apropriava do esporte e depositava nele seus
interesses de classe, paulatinamente o esporte moderno, praticado inicialmente pela classe
mdia, se institucionalizava e se tornava cada vez mais praticado tambm pelos trabalhadores,em especial pelo operariado industrial. Essa difuso resultou em uma nova configurao do
esporte, especialmente o futebol: se no incio era uma prtica exclusiva da elite aristocrtica, a
burguesia ascendente dele se apropria, mas tambm os trabalhadores; e a ampliao da prtica
do esporte moderno ps em causa um novo fenmeno: o esporte de massa.
No escopo do que considera a produo em massa de tradies, Hobsbawm (2012)
afirma ser o esporte moderno um exemplo emblemtico de uma tradio inventada no final do
sculo XIX, e em suas anlises, chama a ateno para duas formas de tradies inventadas: asoficiais e as no oficiais. As primeiras se caracterizam por serem polticas, pois so criadas
e organizadas no seio do Estado ou de movimentos sociais e polticos organizados; as
segundas so caracterizadas como sociais porque so geradas por grupos sem organizao
formal e sem objetivos claramente polticos, como clubes e grmios. No entendimento do
autor, a institucionalizao do esporte combinou esses dois elementos: o poltico e o social,
porque por um lado, representava uma tentativa consciente, embora nem sempre oficial, de
formar uma elite dominante baseada no modelo britnico que suplantasse, competisse com os
modelos continentais aristocrtico-militares mais velhos, e por outro, representava uma
tentativa mais espontnea de traar linhas de classe que isolassem as massas, principalmente
pela nfase no amadorismo como critrio do esporte de classe mdia e alta (HOBSBAWM,
2012, p. 371). Como tradio inventada, o esporte servia para representar a nao e, tambm,
para identificar a classe; todavia, aps sua inveno elitista, a absoro pela classe
trabalhadora o transforma em esporte de multides. Nessa nova configurao, o autor observa
que, embora o ciclismo tenha se popularizado tambm como esporte de massa devido a
interesses comerciais de fabricantes e de publicitrios, o futebol foi a modalidade que mais
atraiu as multides e se transformou no emblema de esporte de massa mundial.
Como mencionamos acima, o primeiro movimento de organizao do futebol
ocorreu nas escolas inglesas que o adotaram como prtica comum e nos clubes que buscavam
disciplinar suas regras. At meados do sculo XIX suas regras se confundiam com as do
rugbycriado devido persistncia de parte dos praticantes do futebol em continuar a usar as
mos durante o jogo. Essa primeira separao entre futebol e rugby no significou a
massificao do primeiro, mas apenas mudanas internas na dinmica do prprio jogo. O
futebol jogado com os ps era ainda praticado pela elite, especialmente a burguesia
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ascendente, e uma caracterstica principal era sua condio de esporte amador.
No amadorismo, as pessoas eram contrrias a pagamentos como recompensa pela
prtica esportiva e os participantes no se dedicavam exclusivamente aos treinos, mas
desempenhavam outras atividades nobres na sociedade. Assim, importante observar que osprprios critrios do esporte amador selecionavam os potenciais participantes, privilegiando
as classes mdia e alta e segregando as classes populares que no dispunham de tempo livre
para praticar o esporte dentro dos parmetros do amadorismo, afinal precisavam se submeter a
intensos processos de trabalho para sua subsistncia. Entretanto, essa situao logo se
alteraria, porque mesmo na sociedade burguesa ascendente, o proletariado tambm promoveu
suas transformaes no mbito do esporte, fossem elas moderadas ou radicais, de modo
factual ou intencional. O resultado foi que o futebol, a princpio praticado como esporteamador e modelador do carter pelas classes mdias, foi proletarizado com a mesma rapidez
com que se institucionalizou. E medida que se difundia como prtica comum entre os
trabalhadores, um novo sentido foi a ele agregado: o de trabalho profissionalizado
(HOBSBAWM, 2012).
O futebol profissionalizado representou a sua apropriao como trabalho, e desse
processo observa-se ao menos dois aspectos: por um lado, uma recproca absoro entre o
futebol e as multides, pois ao mesmo tempo em que se transformava em trabalho, atraa para
si um nmero cada vez maior de pessoas com diferentes interesses, entre os quais: jogadores,
espectadores, torcedores e interessados na administrao do novo (negcio) esporte de massa.
Assim, ao contrrio de outros esportes que tambm tm bases proletrias, como rugby e o
crquete em regies onde surgiram por iniciativa da classe proletria,
o futebol funcionava numa escala local e nacional ao mesmo tempo, de forma que otpico das partidas do dia forneceria uma base comum para conversa entre
praticamente qualquer par de operrios do sexo masculino na Inglaterra ou Esccia,
e alguns jogadores artilheiros representavam um ponto de referncia comum a todos(Ibid., p. 358).
Por outro lado, sua transformao em atividade profissional recompensada foi
ampliando sua condio como produto com valor de troca dentro das relaes de produo na
sociedade burguesa emergente:
com a profissionalizao, a maior parte das figuras filantrpicas e moralizadoras daelite nacional afastou-se, deixando a administrao dos clubes nas mos de
negociantes e outros dignitrios locais, que sustentaram uma curiosa caricatura dasrelaes entre classes do capitalismo industrial, como empregadores de uma fora detrabalho predominantemente operria, atrada para a indstria pelos altos salrios,
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pela oportunidade de ganhos extras antes da aposentadoria (partidas beneficentes),mas, acima de tudo pela oportunidade de adquirir prestgio(HOBSBAWM, 2012, p.358).
Submetido aos interesses de negociantes e outros dignatrios locais a fim de
atuarem como empregadores de uma fora de trabalho predominantemente operria, o
futebol moderno, de jogo organizado e praticado pela elite britnica inicialmente nas escolas e
posteriormente nos clubes, passou a ser influenciado por processos e relaes mercantis. Ao
profissional do futebol atribua-se valor sua fora de trabalho, e tal como ocorria com os
operrios na fbrica, a fora de trabalho era comprada e vendida. Essa mercantilizao do
futebol se intensificar no sculo XX, sendo a espetacularizao e a absoro pelas grandes
empresas exemplos paradigmticos. O escritor uruguaio Eduardo Galeano, em prosa suave
mas profunda, sintetiza as transformaes pelas quais passou o futebol moderno mediante sua
absoro no plano dos negcios, e aponta o horizonte em que se deve compreend-lo no
sculo XX:
a histria do futebol uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo emque o esporte se tornou indstria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de
jogar s pelo prazer de jogar. Neste mundo, do fim de sculo, o futebol profissionalcondena o que intil, e intil o que no rentvel. [] O jogo se transformou emespetculo com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol para olhar, e o
espetculo se transformou num dos negcios mais lucrativos do mundo, que no organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue. A tecnocracia do esporte
profissional foi impondo um futebol de pura velocidade e muita fora, que renuncia alegria, atrofia a fantasia e probe a ousadia. Por sorte ainda aparece nos campos,embora muito de vez em quando, algum atrevido que sai do roteiro e comete odisparate de driblar o time adversrio inteirinho, alm do juiz e do pblico dasarquibancadas, pelo puro prazer do corpo que se lana na proibida aventura daliberdade (GALEANO, 2004, p. 10).
Na verdade, a transformao do futebol em esporte de massa indica que a
profissionalizao e a submisso aos interesses mercantis so fatores indissociveis e
indispensveis para se compreender as mediaes e as contradies que circunscrevem o
futebol moderno, inclusive sua histria no Brasil.
1.3 Futebol no Brasil: origem, classe social e preconceito
Como objeto de estudo, a relao entre futebol e sociedade tem sido interpretada
no Brasil ao menos sob trs perspectivas diferentes. Uma delas pressupe o futebol como pio
do povo e os eventos esportivos como espetculos ao modo do po e circo responsvel
por entreter e desviar a ateno do povo de problemas culturais, polticos e econmicos
profundos. Outra perspectiva considera o futebol como dramatizao da sociedade brasileira e
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identifica nesse esporte uma dimenso democrtica que permite ao povo experimentar
momentos de igualdade e liberdade, tornando secundrio o debate sobre classes, cor ou
condio de marginalizao social. Sob outra acepo, o futebol analisado a partir das
condies objetivas que constituram e constituem a sociedade brasileira, procurandodescobrir as mediaes e contradies entre a sua prtica (particular) e a totalidade social14. A
primeira perspectiva destaca-se por uma anlise determinista, a segunda demarca uma
interpretao de cunho antropolgico por meio de procedimentos etnogrficos e o terceiro
modo de investigao adota como princpio a crtica social. Desse ltimo ponto de vista, um
pressuposto para o estudo o reconhecimento de que as transformaes no mbito do futebol
so inseparveis das contradies que constituem a sociedade brasileira no na perspectiva
determinista ou interpretativo-descritiva, mas dialtica. Como a produo sobre o futebol noBrasil se ampliou exponencialmente desde sua chegada ao pas15, optamos por discuti-lo com
base em vertentes que possibilitam compreender suas transformaes a partir de contradies
da sociedade brasileira.
O futebol moderno constitui uma prtica cultural que se desenvolve em compasso
com as determinaes econmicas e poltico-ideolgicas que transformaram a Europa no
sculo XIX. Como vimos, essas transformaes se difundiram para todo o mundo ocidental e
o futebol tambm foi exportado para diferentes pases, como o Brasil. Assim, observam-se na
sociedade brasileira transformaes econmicas e polticas entre uma organizao societria
tradicional em confronto com os modernos princpios burgueses a abolio da escravido
(em 1888) e a Proclamao da Repblica (em 1889) ilustram-nas. Para entender a histria do
futebol na relao com as transformaes sociais brasileiras, reportaremos a quatro momentos
sintetizados por Santos (1981): a gnese e a difuso (1894 a 1920), a popularizao e a
profissionalizao (1920 a 1940), o apogeu (1940 a 1960) e a crise das dcadas de 1970 e
1980. Mesmo se tratando de uma crnica, as preocupaes do autor refletem uma instigante
anlise histrica e poltica do futebol brasileiro.
A maioria dos pesquisadores considera o brasileiro Charles Miller como
responsvel pela difuso do futebol moderno no Brasil em 1894, ainda que registros apontem
que a prtica do futebol no pas anterior a essa data. Alguns desses registros so que: o
futebol teria sido praticado primeiramente nos colgios sob influncia dos padres jesutas; ele
teria sido praticado por marinheiros ingleses ao aportarem em praias brasileiras; que ainda na
14Um exerccio de mapeamento sobre diferentes perspectivas na anlise do futebol foi realizado por Toledo(2001).15Como se verifica no levantamento realizado por Gaspar e Barbosa (2013) publicado sob o ttulo O futebol
brasileiro 1894 a 2013: uma bibliografia.
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dcada de 1870 teriam sido disputados jogos entre operrios de companhias de origem
inglesas (RAMOS, 1984; MELO, 2000). De acordo com Melo (2000, p. 18), desde o incio
de 1880, os colgios de Jesutas da Itlia ofereciam, sob certo controle, o futebol a seus
alunos, esporte j bastante desenvolvido naquele Pas. Como no Brasil os Jesutas foraminfluentes desde os tempos de colnia, o autor considera provvel que tenha sido por meio
deles que as primeiras bolas de futebol tenham chegado por aqui para realizao dos
primeiros jogos. Embora ainda no existissem clubes, campeonatos e entidades, o autor
destaca que o futebol praticado era segundo o modelo ingls. No entendimento de Ramos
(1984, p. 26-27), alguns sustentam que os marinheiros ingleses chegaram ao Rio de Janeiro
em 1872, com uma bola. L teriam realizado as primeiras partidas, por outro lado, outros
insistem que o primeiro jogo ocorreu em So Paulo, em 1894. Ele teria reunido operrios daCompanhia de Gs e os ferrovirios da So Paulo Railway. Todavia, ainda que essas prticas
tenham ocorrido, Charles Miller tem sido apontado como responsvel pela instituio do
futebol no Brasil menos por ser autor original do jogo de bola com os ps no pas, e mais
porque, como conhecedor dos procedimentos sob os quais o futebol moderno era praticado na
Inglaterra, encontrou espao para sua prtica por aqui (SANTOS, 1981).
Miller era filho de pai ingls e me brasileira, nasceu em So Paulo em 1874 e
aps concluir os estudos preliminares foi estudar em Southampton, na Inglaterra. Foi l que
experimentou o jogo de futebol e, uma dcada depois, retornou ao Brasil com o conhecimento
e os instrumentos necessrios para continuar a pratic-lo por aqui. Como assinala Santos
(1981, p. 12), Charles Miller no queria fundar nada. Nem podia imaginar o que ia acontecer
depois. Miller apenas gostava de futebol, como muitos jovens de hoje gostam de surf, ou de
tnis, ou de handeballporque est na moda e confere statusa quem o pratica. Assim, o
futebol trazido da Inglaterra para o Brasil era um esporte burgus praticado especialmente nas
universidades inglesas e sua difuso contou com a participao de Miller nos clubes
frequentados por ingleses para a prtica de outros esportes como o cricketou osquash.Teria
sido a partir desses clubes que Miller encontrou espao para o futebol, fundando em 1895 o
primeiro time de futebol no Brasil: o So Paulo Atletic Club (Ibid.).
Alm disso, a institucionalizao do futebol no Brasil se confunde historicamente
com a expanso da industrializao e o crescimento de cidades como So Paulo e Rio de
Janeiro no final do sculo XIX, o que levou ao aumento exponencial da populao em poucos
anos, pois havia
gente que chegava da roa, principalmente negros que a Abolio 'libertara'; e gente
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pessoas pobres ou de cor (negros e mestios), e um dos acontecimentos mais marcantes nesse
perodo foi a utilizao de p-de-arroz por parte de um jogador do Fluminense para evitar seu
contraste com os demais e garantir sua similitude com os ricos, brancos e gr-finos.
Contudo, a fase branca e inglesa do futebol brasileiro logo deixaria de ser predominante e,como assinala Santos (1981), dois fatores colaboraram para isto: a participao paulatina e
crescente dos operrios seguida de pobres, negros e mulatos para completar os times elitistas
e, tambm, o estilo de jogo danante marcadamente brasileiro sobre o qual trataremos
adiante.
Sobre a participao de operrios em times de futebol, o caso do The Bangu
Athletic Club emblemtico. Apesar de nome nobre e de ter sido um time fundado por altos
funcionrios da Companhia Progresso Industrial, o time sempre teve tendncias proletriasporque se originou em um bairro pobre na periferia da cidade e, alm disso, a empresa
procurava estimular o futebol entre seus executivos como forma de lazer (CALDAS, 1994).
Por no haver nmero suficiente de jogadores entre os funcionrios mais graduados, abriu-se
aos operrios a oportunidade de completar os times; os quais passavam a ter alguns
privilgios, como trabalho mais leve, trmino do turno de trabalho mais cedo e algumas
promoes. No entendimento de Caldas (1994), a experincia do Bangu como time proletrio
teria sido possvel devido a trs fatores: a localizao geogrfica na periferia, a necessidade de
completar o nmero mnimo de jogadores para realizao do jogo e a introduo do futebol
como lazer para os operrios, tendo em vista o retorno no aumento da produo.
Essa situao, em que os trabalhadores passaram a dividir o espao de jogo com a
elite, teria contribudo com o processo de proletarizao do futebol brasileiro. Devido a
experincias dessa natureza, surgiram times de cunho proletrio, como o Corinthians Paulista,
e o resultado foi que ao lado dos gr-finos do S. P. Athletic e do The S. P. Railway havia,
agora, um time do povo. No por acaso que em todas as capitais do pas existem, at hoje,
'times do povo': o Vasco, o Internacional, o Atltico, o Santa Cruz... Luta de classes da boa
(SANTOS, 1981, p. 17)17. Com isso, se ampliava a apropriao do futebol por operrios,
outros trabalhadores e, tambm, por pessoas sem ocupao e que dispunham de mais tempo
para dedicar a ele. A exemplo do que ocorre na sociedade em geral, as tenses no mbito do
17Em Gois tambm se observam distintivos de classe e os resqucios de preconceito na origem de dois dosprincipais times do estado: o Gois Esporte Clube (GEC) e o Vila Nova Futebol Clube (VNFC). De ac
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