UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA
CURSO DE HISTÓRIA MONOGRAFIA
ISABEL CRISTINA MEDEIROS DE MORAES
LETRAS NEGRAS: representações escravas nos jornais maranhenses (1830 - 1841)
São Luís 2013
ISABEL CRISTINA MEDEIROS DE MORAES
LETRAS NEGRAS: representações escravas nos jornais maranhenses (1830 - 1841)
Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão, para obtenção do grau de licenciada em História.
Orientador: Prof. Dr. José Henrique de Paula
Borralho.
São Luís 2013
Moraes. Isabel Cristina Medeiros de.
Letras Negras: representações escravas nos jornais maranhenses
– anos 1830 a 1841/ Isabel Cristina Medeiros de Moraes – São Luís,
2013.
93 fls.
Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade
Estadual do Maranhão, 2013.
Orientador: Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho
1. Escravidão. 2. Jornais. 3. Anúncios. 4. Representações. 5.
Permanências I.Título
CDU: 070. 326.3 (812.1)”1830/1841”
ISABEL CRISTINA MEDEIROS DE MORAES
LETRAS NEGRAS: representações escravas nos jornais maranhenses (1830 -
1841)
Monografia apresentada ao Curso de História, da Universidade Estadual do Maranhão, para obtenção do grau de licenciado em História.
Aprovada em / /
BANCA EXAMINADORA
_______________________________ Prof. José Henrique de Paula Borralho (Orientador)
Doutor em História Universidade Estadual do Maranhão
_______________________________ Prof. Marcelo Cheche Galves
Doutor em História Universidade Estadual do Maranhão
_______________________________ Profa Tatiana Raquel R. Silva
Doutora em Estudos Afro-brasileiros
Universidade Estadual do Maranhão
A Antônio Neres de Morais, Bernardo
Mascarenhas e tia Maria.
Todos in memoriam, mas presentes em
emoções, intuições, lembranças e
saudades constantes...
AGRADECIMENTOS
Como não é possível se realizar um trabalho solitariamente, sempre
teremos alguém a nos auxiliar, agradecemos sinceramente:
A Deus, a Oxalá, a Ogum, aos Pretos-velhos, aos amigos de luz e
mentores espirituais de longas datas, aos familiares que já partiram, agora
transformados em vigilantes atentos. Acredito que todos me sustentam
incondicionalmente, independente da experiência da fé. Obrigada pela presença
constante, especialmente na realização desta tarefa.
À minha querida mãe Izete Féques Medeiros, pela oportunidade que
tenho de proporcionar-lhe esta alegria. À Douglas Medeiros, único irmão de sangue,
à cunhada Marliete, pela paciência durante este período, onde a responsabilidade
com este trabalho falou mais alto. A todos, a gratidão por entenderem as ausências.
Aos pequenos da família, Antônio, Heitor e Sophia, fontes inesgotáveis de
amor e alegrias.
Um agradecimento especial às filhas queridas, Cláudia, Ana e Fernanda,
as quais certamente encerram esta etapa comigo, com o orgulho estampado no
rosto.
A todos os primos queridos, tios(as) e outros familiares. Trago um
reconhecimento maior por alguns, mas prefiro não citá-los diretamente.
Aos amigos do coração, de todas as idades, endereços, crenças,
convicções e opiniões diversas, os quais de alguma forma engrandecem minha
existência e me fazem prosseguir: Sâmara Lima (pelo carinho e amizade),
Mariazinha (pelo incentivo, pelo notebook), Jandira Paiva (pelo carinho), Drª
Bethânia (pela amizade e respeito), Enfª Carla Azevedo (pelos bons momentos),
Rafah Valadão (pela alegria de sempre), Kris Maciel (pelos longos papos) e tantos
outros de Brasília – DF, assim como de Morros-MA.
Aos caríssimos e inesquecíveis amigos da turma 2005.1 da UEMA,
Nayara Meggie, Elizabeth Ferreira, Marcelo Fortaleza, etc. Seus lindos, muito
obrigada pelas alegrias compartilhadas, pela companhia durante a graduação, e
especialmente, nas viagens por este Brasil afora.
Ao irmão de alma, Uslan Mesquita o qual amo incondicionalmente. Pela
companhia, pelo amor, pelo colo, pela paciência, pelas loucuras, pelas gargalhadas,
por enxugar as lágrimas, pelas “ogrices”, pelas “viagens”...
Só um beijo no coração poderá expressar a gratidão a Samira Tércia,
pelo apoio irrestrito ao entregar em minhas mãos a chave da casa, onde pude me
recolher durante meses e conseguir a tranquilidade necessária para esta tarefa. Meu
carinho total à Lacerda Júnior.
Um agradecimento mais que especial à Profª Cirana Porto. Desse
contato, em 2003, que se transformou em amizade sincera e extremo respeito, veio
o incentivo de que eu era capaz de adentrar o seleto mundo da universidade pública,
aos 39 anos. Por se emocionar e comemorar junto comigo todas essas conquistas.
Nossos momentos serão para sempre. Sem esquecer o caro Luis Guilherme.
À Mariza Bezerra, o meu mais irrestrito reconhecimento pela
intelectualidade e disposição, as quais me auxiliaram sobremaneira. Obrigada
mesmo!
Ao querido orientador/amigo/professor Dr. Henrique Borralho (Papai
Urso), pela ajuda indispensável nesta árdua tarefa.
Aos professores do curso de História da Universidade Estadual do
Maranhão, pelo suporte intelectual, pela ampliação do conhecimento e da cultura,
critérios que estarão comigo por toda a vida.
“Pelo bastão de Xangô e o caxangá de
Oxalá, filho Brasil pede a benção de Mãe
África”.
Clara Nunes
RESUMO
Vastas e consistentes pesquisas existentes acerca da escravidão africana no Brasil
demonstram a notoriedade do tema. Nesse contexto, este trabalho analisa as
representações e/ou imagens sobre esse africano submetido ao trabalho
compulsório, contidas nos anúncios de jornais ludovicenses, na primeira metade do
Século XIX, especificamente entre os anos 1830 a 1841. Para tanto, necessário se
torna entender essa “colcha de retalhos” chamada economia maranhense, debater a
situação do escravo e do negro, suas vivências nesta província, assim como a
influência da imprensa – chamada de “quarto poder” – na elaboração dessas
representações e ambiguidades, inclusive a formação do racismo.
Palavras - chave: Escravidão. Jornais. Anúncios. Representações. Permanências.
ABSTRACT
Vast consistent and existing research about African slavery in Brazil demonstrate the
notoriety of the subject. In this context, this paper analyzes the representations and /
or images on this African subjected to compulsory labor, contained in newspaper
advertisements ludovicenses in the first half of the nineteenth century, specifically
between the years 1830 to 1841. Therefore, it becomes necessary to understand this
"patchwork" economy called Maranhão, discuss the situation of slave and black, their
experiences in this province, as well as the influence of the press - called "fourth
estate" - in making such representations and ambiguities, including the formation of
racism.
Keywords: Slavery. Newspapers. Ads. Representations. Stays.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Quantidade de escravos em anúncios entre os anos 1841-1856 ............ 48
Tabela 2 – Incidência nos jornais de avisos sobre a Balaiada .................................. 74
Tabela 3 – Diferentes categorias de anúncios sobre os escravos nos jornais .......... 75
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS .............................................................................................. 11
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 13
2 A ECONOMIA E ESCRAVIDÃO NA PROVÍNCIA MARANHENSE ...................... 19
2.1 O Maranhão na primeira metade do século XIX: uma “colcha de retalhos”
econômica ................................................................................................................. 19
2.2 Conflitos sociais: a Balaiada ................................................................................ 29
2.3 Novos hábitos: importação de luxos, prosperidade econômica e intelectual....... 34
3 ÁFRICA-BRASIL-SÃO LUÍS: aspectos da Escravidão ...................................... 38
3.1 Escravidão em São Luís – anos 1830 – 1841 ..................................................... 41
3.2 Jornais na Província Maranhense ....................................................................... 50
4 A IMPRENSA NO SÉCULO XIX: o “quarto poder” na sociedade e as
representações sobre os escravos ....................................................................... 57
4.1 Imprensa Jornalística no Maranhão .................................................................... 59
4.2 Jornais como fonte histórica ................................................................................ 60
4.3 O escravo e o negro como mercadoria na propaganda brasileira ....................... 62
4.4 Anúncios dos escravos africanos nos jornais maranhenses ............................... 65
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 77
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 82
ANEXOS ................................................................................................................ 88
1. INTRODUÇÃO
Em 13 de maio de 1888, às vésperas da Proclamação da República, no
Brasil, após assinatura da “famosa” Lei Áurea, a princesa Isabel declarou
oficialmente extinta a escravidão no Brasil. Esse ato representou um grande avanço
para o país, mas ocasionou problemas os quais permaneceram até os dias atuais.
Houve uma “Abolição” da escravatura, sem que se pensasse na inserção dos
negros, agora homens livres e cidadãos dessa nação. Ou, como diz Lopes1 (2010, p.
50) “[...] a sociedade brasileira conseguiu um negócio impressionante, que é criar
uma cultura negra sem negros”.
Há que se considerar que, após a instituição dessa lei, os barões do café
incentivaram a imigração de trabalhadores europeus, em detrimento do negro que
continuou a perder seu lugar nas propriedades rurais. E, temos o negro, agora livre,
relegado à própria sorte, às margens da sociedade, alijado de direitos básicos2. Esse
quadro termina por se configurar em preconceito racial e exclusão social. Esse
negro descobre que aquelas lutas pró Abolição, foram apenas os primeiros e
incipientes passos em busca de igualdade, especialmente, a racial.
O estigma da inferioridade do negro foi reforçado no Brasil, com o
advento de ideias europeias, como o darwinismo social, o positivismo, as teorias
evolucionistas de cunho racial, propagadas pela etnografia europeia do século XIX,
que transformava o negro em “subproduto do racialismo europeu” (HERNANDEZ,
2005, p.131).
Desde o século XVIII, filósofos iluministas na busca por uma “ciência geral
do homem”, reforçavam a imagem pejorativa transmitida ao longo do tempo. O
europeu, dito homem branco ocidental, referencial de inteligência, civilidade, pureza
1Palavras de Nei Lopes (Advogado, escritor, militante social e pesquisador da cultura afro-brasileira)
em entrevista concedida aos jornalistas Vivi Fernandes de Lima e Rodrigo Elias, da Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 5, Nº 53, Fev 2010. 2 Além de deixados à própria sorte, ficaram sem o chamado “capital social” – um espécie de conjunto
de relacionamentos ditos sociais, necessários à sua manutenção e reprodução - que Santos nos esclarece como sendo “[...] um conjunto de recursos atuais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de intercâmbio e de inter-reconhecimentos, ou em outros termos, à vinculação de um grupo, como conjuntos de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos) mas também são unidos por ligações permanentes e úteis (BOURDIEU apud SANTOS, 2005, p.21).
e moralidade, viu na escravidão e submissão do homem africano, o caminho para
que o mesmo se salvasse.
Têm-se no século XIX, o pensamento predominante do “culto da raça”,
onde as pessoas eram divididas em raças distintas e desiguais - negra, amarela e
branca - o meio ambiente influenciava a construção de diferenças culturais e a
biologia mostrava uma diferença estrutural no cérebro do branco e do negro levando
consequentemente ao pensamento de que o negro era realmente inferior ao branco.
Em Montelo (1985, p.348) há dois trechos importantes, que convém transcrever para
ajudar a entender os pensamentos que grassava essa época:
A maldição de cor é uma falsidade e uma estupidez. A circunstância de ter nascido com esta pele não exclui a minha condição de homem; sou um ser humano como vocês; tenho uma alma, tenho a consciência de meus direitos e deveres, e também o sentimento de minha dignidade e de minha honra. O cativeiro é um crime e crime que se pratica para com outros homens. Não há nada que justifique a escravidão.
Em outro momento, reitera o autor|:
[...] com o tempo é isso que vai acontecer no Brasil: o brancos comem as negras, os negros comem as brancas, e os filhos dessas benditas trepadas irão desbotando de uma geração para a outra. Em menos tempo do que se pensa, está saindo um tipo novo, bem brasileiro, que nem é preto, nem também é branco e que vai mandar aqui, como hoje mandam os senhores [...] nossos mestiços vão pensar que são brancos e com mais esta novidade: sem ter ódio dos negros, até gostando deles. Um belo dia, vai se ver, não há mais branco para mandar em preto, nem preto para ser mandado e aí, acabou o cativeiro (MONTELO, 1985, p.428).
Mas, saindo do universo de Montelo (1985), têm-se Munanga (1988), a
dizer que esse processo não foi fácil. A sociedade impôs situações ao negro,
impedindo-o, inclusive, de reagir muitas vezes:
[...] colocado à margem da História, da qual nunca é sujeito e sempre objeto, o negro acaba perdendo o hábito de qualquer participação ativa, até o de reclamar. Não desfruta de nacionalidade e cidadania, pois a sua conduta é contestada e sufocada e o colonizador não estende a sua ao colonizado (MUNANGA, 1988, p.23).
Portanto, estava justificada “cientificamente” a situação a qual o negro
estava submetido, incluindo-se aí, sua pouca rentabilidade, preguiça e possível
tendência à marginalização. Para a baixa remuneração, trabalho degradante, falta
de políticas públicas, agressões psicológicas, físicas, ou seja, exclusão social e
miséria foi um pulo. Ideias e mecanismos que perduram até os dias atuais, inclusive
ideológicos de dominação.
Considerando o dinamismo histórico que circunscreve a presença
escrava na formação da estrutura social brasileira, assim como os três séculos que
marcam essa história e suas ambiguidades, a proposta desse trabalho é analisar as
representações sobre o escravo e seus dependentes, a partir dos anúncios dos
jornais ludovicenses, Estrela do Norte do Brasil (1830), Echo do Norte (1834, 1836),
O Publicador Official (1833), O Investigador Maranhense (1836) e Chrônica
Maranhense (1838, 1839, 1840 e 1841). Reafirma-se que esses anúncios continham
uma descrição detalhada do sujeito escravizado, dependendo do objetivo
pretendido: compra/venda/aluguel ou as fugas. Um ponto a ser descerrado e
analisado é a construção das permanências advindas desses anúncios de jornais,
as quais acompanharam o negro até os nossos dias.
Pretende-se verificar de que forma essas descrições fornecem elementos
subjetivos na construção de uma percepção da sociedade em relação aos escravos,
levando-se em consideração que dentro dessa sociedade, mais da metade era
negra. Essa inquietação surge do quadro de contradições de uma sociedade, que
embora profundamente miscigenada, reserva aos descendentes de africanos uma
carga de valores negativos.
Para se chegar aos jornais e consequentemente aos anúncios, foi
necessário efetuar uma pesquisa na Biblioteca Pública Benedito Leite, através de
uma disciplina ministrada na graduação, em 2009. Houve o acesso a esse
instrumento – o jornal Chrônica Maranhense - e abriram-se as possibilidades de se
trabalhar o tema escravidão, quando do trabalho de conclusão de curso.
O recorte temporal da pesquisa (1830 - 1841) foi decidido pelo fato de
que, no primeiro trabalho - em 2009 - as edições do referido jornal do ano de 1838,
foram analisadas e todos os anúncios sobre escravos devidamente transcritos. No
entanto, se percebeu que para uma empreitada maior como um trabalho
monográfico, esse recorte temporal seria insuficiente para abarcar as conjecturas
necessárias.
Outro ponto a ser considerado foi a quantidade de periódicos a serem
analisados: somente o Chrônica Maranhense não daria conta de responder às
inquietações que o tema suscitava. Portanto, foi decidido estender o período e a
quantidade de jornais a se pesquisar.
De início, foram analisados superficialmente 12 periódicos, para
finalmente haver uma concentração específica em cinco jornais, os quais supririam
as necessidades, ao se aproximarem sobremaneira do período escolhido.
Quanto à estrutura, os jornais pesquisados se encontram devidamente
encadernados – alguns microfilmados - e em muito se assemelham: poucas
páginas, linguagem prolixa e rebuscada, ênfase nas críticas, sem uma organização
nítida das sessões. Em se tratando dos assuntos, ali se encontra desde romances e
piadas, passando por ordens do dia, ofícios variados, desagravos, ocorrências de
violência, relatórios da província, além dos avisos/anúncios. Ou como observou
Ferreira:
[...] tratavam das notícias do exterior, da Capital do Império, das outras províncias e do Maranhão, aqui se publicavam ofícios, relatórios, novidades da Câmara Legislativa e da Tesouraria da Fazenda, além das ocorrências policiais, dos obituários, das correspondências, das transcrições [...] [Através desses jornais], podemos perceber em que nível estava o comércio com a Europa, com a chegada constante de navios que traziam tecidos, chapéus, roupas, mobílias e outros acessórios que enchiam os olhos consumidores de uma elite que se espelhava nos moldes europeus. Esta seção nos dá uma noção das transformações pelas quais passava a cidade de São Luís (FERREIRA, 2007, p.22).
Convém lembrar que isso foi possível devido à abertura propiciada pelo
advento da Nova História Cultural. Devido esse tema envolver costumes, relações
de poder entre grupos sociais, representações, além do comportamento humano e
suas vertentes, a Nova História Cultural é apropriadamente eficaz para tal análise. A
partir dos novos interesses que passaram a circundar o objeto de estudo foi possível
substituir também a forma de analisar seu conteúdo. Antes, se compreendia um
documento, enquanto histórico de outra forma. Ele necessitava oferecer
credibilidade, ser “oficial”, passar segurança para que os dados compilados
pudessem ser corroborados a partir de certos critérios. Era necessário haver
exatidão.
Mas, a partir do momento em que houve essas mudanças na concepção
de documento histórico e foi percebida a necessidade de se ampliar os campos de
estudos, as cartas, os escritos de viajantes estrangeiros, os processos judiciais, as
músicas, os panfletos, sermões de pregadores, receitas médicas e gastronômicas,
diários e correspondências oficiais e particulares e até mesmo as tradições orais,
passaram a serem estudados e considerados documentos e/ou herança cultural,
passíveis de reconstruções históricas.
E os jornais se encaixam nessa concepção, pois que se apresentam
como fonte de debates e instrumentos de pesquisas variadas. Sua característica
peculiar de “ideias em movimento”, sua interação e alcance social, os torna um forte
instrumento na divulgação de imagens. “[...] Os impressos, suas ideias e
informações relacionavam-se de forma dinâmica com a sociedade, circulavam, eram
repetidas e podiam ser reapropriadas.” (MOREL apud FERREIRA, 2007, p.44).
Importante se torna entender os olhares da chamada elite acerca do
sujeito escravizado nesses anúncios. Essas visões são baseadas em percepções e
padrões distintos, quase sempre gerando estereótipos, os quais advêm dos
interesses dessa elite. Fica perceptível então, que as chamadas representações são
determinadas pelos grupos. Portanto, as representações escravas geradas a partir
daí se espraiaram pela sociedade ludovicense – e brasileira - fundindo o africano, o
negro e o escravo em um só elemento. Conforme Oliveira (2008, p.49):
[...] essa forma de representar e explicar a condição a que eram submetidos os africanos [...] adquire descomposturas cotidianas muito comuns no Maranhão [...] as representações dos negros escravizados eram reforçadas nos textos jornalísticos, nas memórias, nas propostas dos governantes, a literatura pela força das ideias evolucionistas [...] a manter a representação dos negros, de um modo geral como integrantes de uma espécie num estágio inferior de evolução humana.
Corroborando esse ponto de vista, Ferreira (2007, p.49) relata que essas
representações traduzem a realidade mental dessa elite maranhense, na primeira
metade do século XIX, as quais certamente se fazem presentes nos anúncios dos
jornais pesquisados:
[...] acreditamos que o imaginário ludovicense na primeira metade do século XIX teve sua base concreta de existência na euforia material vivenciada pela cidade de São Luís, adquirido em consequência dos lucros da lavoura agroexportadora sustentada pelo trabalho escravo, e em conjunto com as representações elaboradas pela elite maranhense sobre esse momento e sobre a composição da estrutura social maranhense, que incluía a si própria e os outros estratos sociais.
Esta pesquisa foi organizada em três capítulos distintos, considerando as
especificidades necessárias. No capítulo intitulado “A Economia e a Escravidão na
Província Maranhense”, se busca entender a economia maranhense, essa “colcha
de retalhos”, sua suposta decadência e/ou crises e as exportações no período.
Sempre relacionando à escravização do africano – força motriz, nesse contexto.
Como pano de fundo, as questões sobre a Balaiada e o letramento, o “aumento” da
intelectualidade da elite maranhense.
No capítulo seguinte, “Formação do Racismo - África – Brasil”, a proposta
é debater a situação do negro, sua chegada a este continente, suas vivências diárias
na cidade de São Luis entre os anos 1830 a 1841. Paralelo a isso tudo a formação
do racismo, as teorias raciais, os jornais.
Para encerrar a sequência de capítulos, “A Imprensa no Século XIX: o
“quarto poder” na sociedade e as representações sobre os escravos” trata da
imprensa no Século XIX, as imagens e/ou representações do negro e do escravo
nessa dita imprensa, o detalhamento das características dos mesmos nos anúncios,
obviamente em São Luís, foco desta pesquisa.
2. A ECONOMIA E A ESCRAVIDÃO NA PROVÍNCIA MARANHENSE
Na tentativa de se entender a relação entre desenvolvimento econômico e
escravidão no Maranhão no século XIX, é necessário analisar o cenário econômico
que se esboça em períodos anteriores, especialmente no que diz respeito às
exportações. O Maranhão, enquanto engrenagem de uma estrutura colonial centrou
suas atividades na agricultura mercantil orientada para o mercado internacional,
empregando o trabalho compulsório como força motriz.
A economia maranhense foi se moldando, ao longo do século XVIII, em
função das oscilações do mercado externo, para atender inicialmente às demandas
decorrentes das crises provenientes das guerras de independência das Treze
Colônias e o crescente mercado consumidor de matérias-primas na Europa a partir
da Revolução Industrial.
No entanto, do ponto de vista econômico o Maranhão é tradicionalmente
percebido sob o signo ideológico da decadência. A construção dessa “ideologia”
corresponde a um discurso empregado largamente pelas elites e repetido de forma
acrítica pela imprensa local afim de consolidar uma imagem de dois momentos
díspares e complementares da economia maranhense.
Um primeiro que corresponderia a uma “idade de ouro da lavoura da
província (fins do século XVIII e primeiras décadas do século XIX)” - identificada
como uma fase de prosperidade – reflexo direto das Reformas de Pombal com a
criação de uma companhia comercial e a abundante entrada de escravos africanos
para incrementar a produtividade. Posteriormente, a fase da ruína econômica, social
e cultural provocada pela abolição do sistema escravista (COSTA, 2001, p.81).
2.1 O Maranhão na primeira metade do século XIX: uma “colcha de retalhos”
econômica
Sobre a economia do Brasil em tempos imperiais, Fragoso (apud
ASSUNÇÃO, 2010, p.144), esclarece que existia “[...] um substancial setor da
economia orientado para o mercado interno [...] formado por fazendas escravistas,
unidades camponesas (usando ou não o trabalho escravo) e estâncias utilizando
trabalho livre não assalariado”, sendo que essa produção poderia ser de
subsistência, para exportação e/ou para o mercado interno.
Algo semelhante ocorria na economia da província do Maranhão: algumas
fazendas produziam arroz e algodão para o mercado externo – e alimentos para sua
própria sobrevivência - enquanto as de gado e de mandioca produziam para sua
sobrevivência interna. Por isso, segundo Assunção (2010, p.144) é possível
entender e “[...] diferenciar claramente entre o setor monetário e o setor não
monetário da economia interna e distinguir três setores e não apenas dois, na
economia: a produção de (auto) subsistência (Setor A), a produção para o mercado
interno (Setor B) e a produção para exportação (Setor C)”.
Mas, para Lisboa (apud FARIA, 2003, p.9), antes nenhuma atividade
lucrativa se desenvolveu por aqui e por volta de 1685, São Luís “[...] era uma
cidade pequena e pobre com pouco mais de mil habitantes, residindo em rústicas
casas, umas de madeira cobertas com folhas de palmeiras, outras de taipa ou
adobe com telhado de telhas vãs”.
E assim, a partir do litoral, com pequenas povoações, fazendas de gado e
engenhos quase sempre às margens dos grandes rios maranhenses, ou seja, por
esses “[...] caminhos naturais aventuraram-se senhores de engenho, criadores de
gado, apresadores de índios e coletores de ‘drogas do sertão’ que iam
descortinando o interior do continente [...]” (BERREDO apud FARIA, 2003, p.9).
Importante lembrar que já havia uma frente devassando o sul do
Maranhão, vinda da Bahia, eram os criadores de gado, a partir do rio São
Francisco. Por volta do século XVIII – primeiras décadas – já existiam fazendas de
gado espalhadas por essas áreas. São encontradas algumas roças e currais,
enquanto povoações e engenhos se espalham. São os primeiros cento e quarenta
anos da colonização portuguesa.
Para Galves (2007, p.2), houve uma expansão nas lavouras de arroz e
algodão, desde meados do século XVIII, mas com significativo aumento no início do
século XIX, especialmente no caso do algodão. O autor também ressalta que a
abertura dos portos, oficializou uma imensa movimentação de navios ingleses,
trazendo variados produtos manufaturados e levando daqui, a produção de algodão.
Com base nesses argumentos, o propósito é perceber de quais formas, a
economia maranhense e o fenômeno da escravidão estão intrinsecamente ligados.
Ademais, busca se compreender também como essa relação alterou as
representações produzidas a partir dos anúncios dos jornais desse período.
São Luís – capital da Província e cidade portuária – sempre teve papel
importante nesse contexto, sendo o Maranhão envolvido com a produção mercantil e
escravista. Havia intensa redistribuição de escravos para as várias fazendas
existentes no continente, o que levou Pereira (2001, p.33) a dizer que “[...] a base da
sustentação material da Província esteve assentada, majoritariamente, na
escravidão de povos africanos, entre a segunda metade do século XVIII até os anos
80 do século XIX”.
Nesse período, mais de quarenta produtos eram exportados do
Maranhão, como a cera, couros secos, farinha de mandioca, entre outros. Mas,
principalmente, algodão, arroz e açúcar. Sempre lembrando que essa economia
continuava limítrofe, insuficiente até mesmo pra suprir as necessidades básicas.
Some-se a isso, a falta efetiva de mão de obra e tem–se um quadro de continuação
da pobreza. Encontramos o milho, o feijão e a mandioca como os produtos básicos
da alimentação da província 3. Importante considerar que a mandioca ainda é um
dos produtos mais consumidos pela população pobre do Maranhão.
Mesmo com as oscilações, os altos e baixos do mercado internacional, a
concorrência dos Estados Unidos e da Índia, o algodão foi o principal produto de
exportação durante toda a primeira metade do século XIX, seguido da produção do
arroz. Obviamente, isso requereu um número expressivo de escravos, chegando-se
a realizar grande importação dos mesmos – fator primordial nesse processo.
Apesar da presença de diversos estudos sobre a economia brasileira,
percebem-se as dificuldades para tal análise, pois que “[...] se baseavam em dados
e estatísticas muito pouco confiáveis” (ASSUNÇÃO, 2010, p.145). Como pensar
essas questões em relação ao Maranhão, com suas diferenças regionais, sua mão
de obra escassa e outros fatores, se os trabalhos acerca da economia maranhense
e as suas dificuldades, quase sempre mostram a repetição dos dados já existentes?
Ainda há muito a ser analisado sobre esse cenário local para que se
tenha uma visão mais ampla. Fatores diferenciados certamente interferiram e
ajudaram a compor e/ou desmistificar esse processo. Existem muitas relações
3 “[...] da mandioca fabricava-se a farinha, a tapioca (um tipo de polvilho) um aguardente – a tiquira. A
farinha era o produto mais consumido, acompanhando tanto os alimentos salgados como os doces, costume que foi preservado pelos maranhenses até os dias atuais” (FARIA, 2003, p.14-15).
intrínsecas que compõem essa “colcha de retalhos” chamada economia
maranhense.
E nesse processo é necessário citar Faria (2003) e seus posicionamentos
acerca dessas nuances, já que em meados do século XVIII, há a tentativa de
dinamizar a produção agrícola com a implantação da Companhia de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão pelo Marquês de Pombal. A partir da criação da Companhia,
a qual é “[...] considerada pela historiografia nacional e regional como um marco da
colonização maranhense que aí encerraria a sua primeira fase [...], visava-se
incrementar a economia da Colônia, (FARIA, 2003, p.10). Apesar dessas tentativas
essa fase é considerada de extrema pobreza:
Gaioso, que escreveu sobre o Maranhão no início do século XIX (1813) [...] Dizia esse escritor que a produção da capitania era bastante reduzida, destinada apenas a consumo interno e que o comércio era insignificante. Limitava-se à produção das culturas do arroz vermelho, farinha de mandioca, milho, mamona, algum café, etc. [...] havia uma pequena produção de algodão, que os nativos fiavam transformando em novelos e rolos de pano usados em suas permutações de compra e venda (CABRAL apud FARIA, 2003, p.10).
Outras fontes que atestam a pobreza e a miséria desse período foram as
deixadas pelo Pe. Antonio Vieira, o qual viveu nesta colônia e foi rigoroso em seus
escritos, como diz Faria (2003, p.10). Ele relata a falta de açougues, de hortas, de
locais para comercializar os produtos, que os alimentos se resumiam a peixe e carne
– algumas vezes – e caça, sendo que esta já andava escassa. Descreve a falta de
terras boas para plantação de cana-de-açúcar e tabaco e que mal se tinha a
mandioca por comida diária. Enfim, havia somente uma economia de subsistência,
resultando na falta de gêneros, na escassez de produtos e, consequentemente, o
fantasma da fome a rodar.
Percebe-se que muitos dos trabalhos reafirmam a pobreza da colônia até
a segunda metade do século XVIII, e que seu desenvolvimento viria atrelado à
política mercantil do Marques de Pombal e Companhia Geral do Grão Pará e
Maranhão. Havia toda uma expectativa que esse fosse um dos caminhos para se
solucionar as inúmeras dificuldades econômicas da colônia. Para Sobral (apud
CAMPOS, 2004, p.120), a Companhia de Comércio Grão Pará e Maranhão –
implantada em 1755 – assim como as de Pernambuco e Paraíba, em 1775 - tinha o
propósito de reativar ou mesmo reverter esse quadro “[...] através da introdução de
maiores fornecimentos de mão de obra escrava africana”.
Apesar de se entender que a Companhia pode ter criado condições para
o desenvolvimento da economia gerando produção para “[...] o mercado europeu,
semelhante às demais capitanias do Nordeste e do Sudeste” (ASSUNÇÃO, 2010,
p.147) é importante considerar as consequências disso, visto que “[...] em poucas
outras regiões brasileiras, existia dependência tão grande dos fazendeiros em
relação à burguesia comercial” (ASSUNÇÃO, 2010, p.147).
Por volta de 1780, com a industrialização europeia e a consequente
expansão do mercado de algodão, tem – se o Brasil exportando aproximadamente
75% desse produto, sendo o Maranhão a segunda região exportadora e São Luís, o
quarto porto exportador do Brasil.
A queixa maior dos fazendeiros contra a Companhia eram os juros
abusivos, pois segundo Assunção (2010, p.147) “[...] os lucros dos comerciantes era
de 45% na importação de fazendas secas da Europa, com adicionais de 5% se a
compra fosse a crédito [...] e mais altos na exportação”. Essa situação parece que
não se modificou após o encerramento da atuação da Companhia, já que estudos
sobre São Luís do final do século XVIII ainda fazem alusões a ricos comerciantes
portugueses influentes, com grandes fortunas e levas de escravos, gerando assim,
uma desigualdade social maior que em outras capitanias. Ou seja, não houve
pobreza absoluta e nem opulência e fartura geral, mas sim camadas sociais
estabelecidas.
Outra questão relacionada à exportação, é que os produtos enviados para
a Europa garantiam altos lucros, enquanto as importações mantinham índices
variando entre 12% a 51%. Os lucros dos fazendeiros maranhenses eram aquém do
obtido pelos comerciantes portugueses e os altos preços dos produtos importados
os deixavam sem solidez financeira. Outro fator preponderante nesse processo foi a
aquisição de escravos a altos preços, contribuindo para o endividamento dos
fazendeiros junto a esses comerciantes. Soma-se a esse cenário, o monopólio
criado pelos traficantes e os altos impostos.
Em 1808, houve a abertura dos portos brasileiros ao comércio das nações
europeias, o que parece não ter melhorado a situação dos fazendeiros
maranhenses. Mesmo com os produtos brasileiros chegando ao mercado inglês
através dos Tratados Anglo-portugueses (de 1654 e 1730), o era baseado em baixas
tarifas de importação “[...] ao passo que os produtos brasileiros continuavam a pagar
impostos altos para entrar na Inglaterra” (ASSUNÇÃO, 2010, p.149).
Por volta de 1812, mais da metade das exportações já iam rumo à
Inglaterra e menos da metade (45%), era importado de lá. Por isso, “[...] o Maranhão
constituía assim uma província atípica no Império Brasileiro e mesmo na América
Latina: aqui os negociantes ingleses compravam mais do que vendiam”
(ASSUNÇÃO, 2010, p.150).
Referindo-se a tal fato, Galves (2007, p.2) reafirma que a abertura dos
portos provocou uma movimentação de navios ingleses trazendo produtos
manufaturados e levando daqui a produção de algodão. Esses mesmos ingleses
financiavam lavouras e a compra de mais escravos, provocando assim o
endividamento dos agricultores.
Essa força econômica e monetária inglesa desencadeou a necessidade
de medidas protecionistas para os comerciantes portugueses, visto que “[...] os
ingleses determinavam as taxas de câmbio, os fretes, o valor das moedas e dos
produtos do país. Tinham papel preponderante na importação e na exportação”,
segundo Assunção (2010, p.150).
Essas “desavenças” comerciais e econômicas entre comerciantes
portugueses e ingleses certamente afetaram os fazendeiros maranhenses. Os
ingleses tiravam proveito dessa situação, pois que, provavelmente fizeram “[...]
acordos secretos – monopólio oculto” (ASSUNÇÃO, 2010, p.151) com os
portugueses. Isso sem falar que os ingleses negociavam direto com os fazendeiros,
vendendo-lhes a crédito, estabelecendo a forma de pagamento – moedas de prata
ou ouro e também algodão.
Essa “reorientação” das atividades dos comerciantes portugueses eram
os empréstimos a juros altos – prática então controlada, pois o permitido era 6% ao
ano. Mas os juros cobrados eram de 4 a 6% mensais, o que gerou “[...] execuções
cruéis por parte dos negociantes” (ASSUNÇÃO, 2010, p.152), ou seja, no momento
da cobrança dessas dívidas, não havia respeito da parte dos comerciantes
portugueses em relação aos da Colônia.
Um fato que pode ajudar a entender essa crise da economia maranhense,
é que os fazendeiros “[...] gastavam seus lucros na compra de mais escravos (até
1840) e em importações de luxo [...] seda francesa [...] tecidos de algodão ingleses
[...] o Maranhão exportava, portanto, algodão cru para reimportar, sobretudo, tecidos
de algodão” (ASSUNCÃO, 2010, p.152).
Não houve tentativa de modernização para enfrentar a concorrência
internacional, especialmente os Estados Unidos, cujos investimentos propiciavam
qualidade melhor ao algodão e consequente queda nos custos, o que os levou a
substituir o Maranhão no comércio com a Inglaterra e essa concorrência provocou a
queda nas vendas do dito produto.
Na Europa o preço de algodão já estava em queda entre os anos 1815-
1817 e aqui no Maranhão ainda havia preços altos entre 1817-1819, levando
fazendeiros a adquirirem mais escravos a crédito e os negociantes a comprar
algodão, visando mais lucros. Com a queda dos preços a partir de 1819, ambos
sofreram grandes prejuízos, ficando sem condições de pagar suas contas.
Mais fatores ajudaram a compor o cenário da crise na agricultura: a
Guerra da Independência, a qual desorganizou a produção entre 1822-1823; a
queda da produção local por questões climáticas, entre outros.
Enfim, torna-se relevante analisar a “[...] economia regional, a relação
entre seus diferentes segmentos e os problemas que enfrentavam os agentes
econômicos no Maranhão” (ASSUNÇÃO, 2010, p.156). Aparentemente a prioridade
das autoridades era a exportação, deixando à margem variadas questões internas,
como a comercialização de alimentos - visto que a população era escassa e mal
distribuída - o sistema de transportes precaríssimo e a economia de subsistência
que servia a grande parte da população de escravos e livres pobres.
Desses alimentos, cita-se a carne seca e verde, além da farinha de
mandioca, produtos bastante comercializados. Em outra escala mais limitada,
vinham os produtos lácteos, hortaliças e frutas, peixe, milho, feijão, etc.
Abastecida por Guimarães, Icatu e Alcântara, São Luís era o principal
mercado de alimentos. Itapecuru-Mirim “[...] também chamada simplesmente de ‘a
feira’, era o grande mercado de gado do interior” (ASSUNÇÃO, 2010, p.156) e
Caxias tinha uma importância além do regional, pois que servia de porta para várias
rotas comerciais.
É importante estudar essas crises na economia maranhense a partir de
um dos principais produtos comercializados nesta Província, fonte alimentar para os
maranhenses: a farinha de mandioca. Sua falta no mercado leva os estudiosos a
várias interpretações. É questionável se o desabastecimento teria sido provocado,
em parte, pela preocupação de se produzir para exportação ou pela importação da
mesma por alguns fazendeiros – o que encarecia os preços na capital.
Importante mencionar que as Câmaras Municipais eram responsáveis por
abastecer a população. Por exemplo, a carne verde, cujos contratos previam o abate
e a venda – sempre por preços fixados pela Câmara – deveria ser em quantidade
diária suficiente. Como era previsto, esses fatores levavam ao:
[...] monopólio lucrativos para alguns membros da Câmara ou à sua clientela. Em São Luís, o já referido Antonio José Meireles foi acusado, em 1819, de estar [...] fazendo subir o preço da carne, contra expressa cláusula do contrato [...]. Ainda em 1838, o jornalista Rafael Estevão de Carvalho denunciava as intrigas do chefe informal [...] acusando-o de tentar, outra vez obter lucros ilícitos através do monopólio da carne verde” (ASSUNÇÃO, 2010, p.162).
Para Assunção (2010, p.162), “[...] a prática de arrematar contratos para a
venda de carnes verdes continuou no interior, depois da Independência [...]”,
gerando conflitos, como na chamada Vila do Rosário. E, essas questões estendiam-
se aos campos de Anajatuba e Brejo, onde os grupos envolvidos nesses conflitos
seriam os latifundiários, os fazendeiros de gado, as Câmaras Municipais e o
Governo da Província, todos tentando controlar o mercado local de carne, o que
certamente prejudicava a população e aumentava a insatisfação.
São muitos os fatores que ajudaram a provocar a interiorização da
economia maranhense: a já citada queda do preço do algodão no exterior; a
reorientação da economia da província devido ao crescimento da população pobre e
livre, já na primeira metade do século XIX, entre outros. Grupos de fazendeiros
percebiam e até denominaram esse processo de interiorização da economia de
“decadência” da lavoura, visto a diminuição dos altos lucros anteriores a 1820.
É necessário levar em consideração diferentes elementos que
provavelmente interferiram em todo esse processo. Pereira (2001, p.38), reitera que:
[...] as circunstâncias do mercado externo, as lutas escravas por autonomia e liberdade interferiram nos rumos da vida econômica, política e social da Província maranhense no século XIX [...] outros elementos que impactaram [como a] presença inglesa na atividade comercial de exportação e importação, promovida pela abertura dos portos brasileiros em 1808, o fim do tráfico internacional de escravos.
De qualquer forma, após analisar os pontos de vista desses autores, não
se pode ignorar as considerações acerca da economia maranhense elaboradas por
Faria (2003), Suas observações certamente contribuem, sobremaneira, para
entendimento desta “colcha de retalhos”.
Na historiografia “tradicional”, há discrepâncias acerca da entrada de
escravos africanos nesta província. Autores como Viveiros e Meireles apresentam
estudos com diferentes resultados: 3.000 ou 23.000 escravos africanos entre 1655 e
1755? Essa é uma das questões levantadas por Faria (2003). São diferentes
estudos e compilações, ressaltando-se as dificuldades das fontes.
Mas é provável que a escravidão indígena tenha predominado naqueles
tempos. Afinal, estes estavam disponíveis na própria região sem grandes custos. Até
o momento em que começaram a se dispersar, a se embrenharem na mata,
afastando-se cada vez mais do litoral fugindo dos caçadores, das doenças, do
extermínio iminente. Mas, possivelmente, só com a “proibição” da escravidão
indígena – 1757 - acentuou-se a escravidão africana no Maranhão.
Outra questão analisada por Faria (2003) é a produção de algodão, o qual
inicialmente foi utilizado como moeda, em pequena quantidade, sendo de má
qualidade e com fios grosseiros. Assim como o cultivo do fumo, do couro, das
‘drogas do sertão’4, por exemplo. Esses produtos eram destinados à exportação.
Devido às condições climáticas e geográficas5, a colônia do Maranhão
também desenvolveu economia extrativista, apesar de que essa produção foi mais
intensa no Grão-Pará – inserido no meio da floresta – e, consequentemente, mais
abundante. Essa colônia chegou a exportar volumes bem maiores que o Maranhão.
Continuando a análise sobre a economia maranhense, se percebe que a
pecuária bovina também teve sua fase por aqui6. Consumia-se a carne e exportava-
se o couro, além da venda do boi “em pé” para outras localidades. Para Faria
(2003), a situação do gado bovino foi semelhante ao ocorrido em outras paragens:
4 Drogas do sertão compreendiam “[...] produtos extrativos como cravo, canela, salsaparrilha, âmbar,
urucu, bálsamo, copaíba, anil e madeiras diversas; e outros que eram nativos mas foram cultivados, como a pimenta,a baunilha e o cacau” (FARIA, 2003, p.15). 5 “[...] que por estar situado em uma zona de transição entre as regiões Norte e Nordeste, possui uma
diversidade de vegetação que varia de cerrado (nas proximidades do rio Parnaíba) à floresta equatorial (do centro para o oeste) [...] (FARIA, 2003, p.15). 6 Sobre isso, Faria (2003, p.16) diz: “[...] sua expansão acompanhou o avanço da frente colonizadora
que partiu do litoral espalhando fazendas de criação nas margens dos rios e na baixada maranhense [...] penetrou no Sul do Maranhão como um prolongamento dos rebanhos nordestinos [...] em meados do século XVIII existiam aproximadamente ‘[...] duzentas e três fazendas a criar gado.
chegou para acompanhar o processo da cana de açúcar nos engenhos, como força
de tração e depois se tornou uma atividade independente produzindo o couro e a
carne.
Faria (2003), assim resume a economia do Maranhão, em seus primeiros
cento e quarenta anos de colonização: não havia produção agrícola suficiente para
atender as necessidades locais; era pautada na escravidão indígena; quase
nenhuma transação comercial com a metrópole, somente um navio por ano; sem
necessidade do uso de moedas devido à escassez de negócios e muita pobreza.
Mas, apesar da historiografia oficializar, cristalizar certas informações
sobre esse período econômico do Maranhão, sempre caberão novos estudos e
consequentemente, novas interpretações. Necessário se torna rever alguns
conceitos.
Através de FARIA (2003), se faz a releitura desse período em três
tópicos:
1 – Se Viveiros (apud FARIA, 2003, p.16), afirma que havia falta
constante de algodão e gêneros alimentícios, por que foi necessário que o Senado
da Câmara de São Luís criasse Leis restritivas, regulamentando o comércio desses
produtos para fora da província?7 Segundo esse autor, em várias ocasiões houve
proibição da venda do algodão para fora daqui, já que sua produção não era
suficiente para suprir as necessidades da província e o mesmo era considerado
matéria prima e moeda de troca e negociação. Então essa produção não seria tão
exígua assim? Haveria produção suficiente para suprir a província, a vizinhança e a
Metrópole?
2 – Andrade (apud FARIA, 2003, p.17), pesquisou que uma carta da
época pombalina menciona “[...] a região do rio Mearim produzia açúcar que era
exportado para Portugal, na primeira metade do século XVIII”, ou seja, mais
produtos além dos já citados eram vendidos para o exterior. E Ximendes (apud
FARIA, 2003, p.17), identificou em livros da Câmara de São Luís informações que
mais de seis navios saíam destes portos no começo da segunda metade do século
XVIII, contrariando a informação de, somente um navio por ano. Ressalta-se que
navios de outras nacionalidades – não somente os autorizados pela Coroa –
praticavam contrabando por aqui e negociavam com os colonos.
7 Argumento relatado na obra História do Comércio do Maranhão, segundo esclarece Faria (2003,
p.16).
3 – Pode-se questionar a imagem da São Luis atrasada descrita pelo Pe.
Vieira - 1680 – a qual não possuía sequer açougues, quase nenhum profissional ou
local coberto para se efetuarem pequenos negócios, através das pesquisas de
Ximendes (apud FARIA, 2003, p.18). Esse autor efetuou a pesquisa Livros da
Câmara 8 e descobriu que havia uma cidade e uma economia muito mais dinâmicas
que o retratado anteriormente.
Enfim, acerca da economia maranhense e suas ligações com os escravos
presentes nos anúncios dos jornais, cumpre serem efetuados mais estudos. Mas é
esse um dos papéis do pesquisador: revisar constantemente a historiografia,
acrescentando-lhe novas informações sempre que necessário.
2.2 Conflitos sociais: a Balaiada
Entre 1831 e 1840 houve várias rebeliões, com características, motivos,
ideologias e questões sociais distintas. Em 1838, havia um forte clima de disputas
políticas acontecendo também nesta Província e se tenta compreender de quais
formas isso tudo pode ter interferido na economia, e/ou na questão escravista.
Afinal, os bem-te-vis (considerados liberais) e os cabanos (chamados
conservadores), alternavam entre si o governo provisório.
Com a ascensão da maioria cabana na Assembleia Provincial, os liberais
foram afastados das decisões políticas, inclusive através de fraude e manipulação
nas eleições. Ao se sentirem preteridos e até mesmo marginalizados, os liberais
iniciaram uma forte oposição ao governo provincial.
Ferreira (2007, p.17) reforça essas questões, expressando-se da seguinte
forma:
[...] esses conflitos atingiram seu ápice durante o governo cabano de Vicente Camargo em 1837, quando foram aprovadas duas leis de caráter centralizador pela Assembleia Provincial do Maranhão – a Lei dos Prefeitos e a Lei das Guardas Nacionais – que estendia o poder do presidente da Província por todo o interior do Maranhão, formalizando uma ligação direta do poder policial ao governo e anulando, assim, qualquer participação dos
8 “[...] tendo Corporações de Ofício (alfaiates, tecelões, sapateiros, serralheiros, ferreiros, pedreiros, e
carpinteiros e trabalhadores forros indígenas e negros) [...]” (XIMENDES apud FARIA, 2003, p.18).
fazendeiros do interior, principais colaboradores dos Liberais [...] foi reforçado o recrutamento indiscriminado, de forma sistemática e arbitrária [...] ficou conhecido como popularmente como ‘tempo do pega’.
Tem-se, nesse momento, um motivo suficiente para acirrarem tais
disputas, visto que os fazendeiros aliados dos liberais foram bastante prejudicados e
essas medidas atingiram especialmente as classes populares.
E, como o aporte documental desta pesquisa está fundamentado em
jornais da época, é importante salientar que a imprensa maranhense participou
ativamente desse processo político e dos conflitos que ora aconteciam na província.
Tanto o é, que em 21 de dezembro de 1838, está na seção “Notícias
Extraordinárias” o seguinte anúncio no jornal Chrônica Maranhense:
Consta-nos que há poucos dias uma partida de proletários (ao muito 15 homens) atacaram o quartel de destacamento da Villa da Manga, da qual se apossaram, por haver ali poucos soldados, roubando depois o armamento, soltando os presos, prendendo o ajudante João Onofre e fazendo fugir o sub-prefeito. Até as últimas notícias ficaram ainda estes homens na Villa; mas attento o seu pequeno número, é de crer que sejam facilmente dispersados ou presos [...] um destacamento de 30 homens que saiu em busca delles desta capital no dia 21 do corrente [...] Ainda não sabemos ao certo da occasião e motivos desse desaguisado [...] o descontentamento de uns, a turbulência de outros, a audácia de alguns faccinorosos [...] Depois de havermos escripto o artigo à cima, soubemos que o chefe dos amotinadores da Manga é um tal Raimundo Gomes que foi vaqueiro do Padre Ignacio no Miarim [...] já correm por ahi uns vagos rumores que essa tropa já se eleva a 70 homens e que tem por um de seus cabeças o famoso João Nunes [...] mas ainda insistimos em dizer que não há motivos para grandes receios (CHRÔNICA MARANHENSE, 21.12.1838).
Existia uma clara divisão entre os periódicos maranhenses, de apoio ou
não à Balaiada: enquanto os jornais A Chrônica Maranhense e o Bentevi lideravam a
oposição chamada de liberal, O Investigador Maranhense e A Revista cuidavam de
apoiar o governo provincial.
Para Santos (1983, p.77), “[...] Raimundo Gomes, imediatamente após
tomar de assalto a Vila da Manga e receber as primeiras adesões à causa [...]”
tratou de preparar um manifesto – rapidamente divulgado por toda a província – em
que constavam as principais reivindicações do movimento. Reivindicações essas
que também faziam parte do “repertório” da chamada oposição liberal da província:
respeito às garantias individuais, demissão do Presidente da Província, abolição dos
prefeitos, subprefeitos e comissários devido à inconstitucionalidade da sua criação.
E, se referindo à economia maranhense, convém lembrar que dentre
essas exigências estava a que tratava da expulsão dos comerciantes portugueses9.
Para Santos (1983, p.77), os portugueses eram considerados símbolos de opressão
dos cabanos – grupo político dominante do momento. Estes impediam de certa
forma, a abertura comercial e econômica na província e a essas alturas já havia
interesse em substituir a lavoura do algodão pela cana-de-açúcar.
É importante frisar que, para os moradores de São Luís, os portugueses
eram responsáveis por boa parte dos seus problemas – a alta dos preços,
monopólio de muitas atividades comerciais, especulações – além das questões
nacionalistas: na consciência popular do sertanejo havia as relacionadas à sua
brasilidade.
E continuando sobre a Balaiada, em 1839 tal conflito já contava com a
adesão de Manuel Francisco dos Anjos Ferreira10 e havia se estendido até o Piauí,
alcançando “[...] proporções gigantescas, culminando com a tomada de Caxias, o
maior centro comercial do sertão maranhense” (SANTOS, 1983, p.79). Além de que,
o conflito havia sido ampliado por toda a parte oriental da Província a partir de,
[...] uma via terrestre, atravessando toda a zona, desde o Itapicuru até o Parnaíba, passando pela Chapadinha (Alto Munim) e atingindo a vila do Brejo, era um escoadouro tradicional dos gêneros do sertão maranhense [...] Essa foi a principal área de incidência da Balaiada (SANTOS, 1983, p.79).
Por todas essas análises, com base em teses levantadas por Assunção
(2004) e Santos (1983), fica a dúvida de que formas esse conflito interferiu na
economia maranhense e especialmente no que se refere aos escravos. Afinal, para
Assunção (2004, p. 217) não houve uma aceitação iminente por parte da elite de
que as classes “inferiores” – subalternas – participassem de questões políticas. Por
isso, de certa forma, o caráter político do conflito foi ignorado.
9 Santos (1983, p.77) a partir do “Manifesto Balaio”, cita o artigo referente a expulsão dos portugueses
da Província: “4º Que sejam espulçados empregos portuguezes e dispejarem a província dentro balde 15 dias com exseção dos cazados com famílias brasileiras e os de 60 anos para cima”. 10
Considerado importante líder no conflito, conhecido como Balaio, mal sabia ler, era alto e branco [...] fabricante de balaios. Juntou-se a Raimundo Gomes, pelo fato de ter suas filhas desonradas pelo comandante da força legal [...] retornou à sua vida de roceiro e fabricante de balaios. (SANTOS, 1983, p.85). Apesar de que “[...] Dunshe de Abranches e outros o caracterizam como “pardo”, “índio” ou “de cor” (ASSUNÇÃO, 2004, p.216).
Apesar de que a presença escrava provavelmente, só “[...] foi sentida um
ano depois, em 1839, quando Cosme Bento das Chagas11 iniciou uma insurreição
em algumas fazendas do interior, facilitada pela evasão de famílias inteiras para a
Capital” (FERREIRA, 2007, p.17).
Certamente que os negros encontraram formas de protestar contra suas
condições “sociais”, já que se envolveram – ou foram envolvidos - no conflito. Pode-
se citar que alguns rebeldes mais abastados levaram consigo seus escravos. Alguns
não foram utilizados como soldados e nem combateram, mas serviram nos
acampamentos.
Para Assunção, (2004, p.219), foi formado um verdadeiro exército
paralelo de até três mil escravos rebelados, fugidos ou oriundos de quilombos,
chefiados pelo Cosme Bento das Chagas. Sua ousadia chegou ao ponto do mesmo
estabelecer seu quartel general na fazenda “Lagoa Amarela” e obrigar o antigo
proprietário a alforriar todos os escravos.
[...] não somente prometendo a liberdade, mas de fato extorquindo cartas de alforria ou firmando-as do seu próprio punho, contribuiu para que escravos unir-se ao grupo [...] na sua grande maioria, escravos e escravas das fazendas do Itapecuru. Sobretudo crioulos, congos e angolas, mas também mulatos e africanos de outras nações seguiram o Cosme. Várias fontes atestam a força da sua liderança (ASSUNÇÃO, 2004, p.220).
Sendo este trabalho relacionado às questões dos escravos e às
representações acerca dos mesmos, não se pode deixar de ressaltar a
personalidade de Cosme. Este ultrapassou as expectativas da sociedade
escravocrata da sua época assim como dos representantes políticos, fossem liberais
ou conservadores.
11
Sousa (2004, p.3-6) nos diz que: “[...] 19 de Setembro de 1842 – era executado na Vila de Itapecuru-Mirim, um dos mais valentes homens da História do Maranhão e do Brasil. Refiro-me a Cosme Bento das Chagas, o ‘Negro Cosme’, um dos líderes da maior revolta popular da História do Maranhão, a Balaiada (1838 – 1841) [...] Nascido por volta de 1802, em Sobral no Ceará, Cosme chegou como negro alforriado ao Maranhão, ainda jovem [...] visto por muitos como um bandido sanguinário, um facínora sem escrúpulos e até como feiticeiro chegou a ser tratado. Muitos desconhecem suas qualidades de grande líder. [...] fundou uma pequena escola. Para ele, a leitura poderia oportunizar uma reflexão e uma consciência maior na luta e resistência à escravidão [...] O Negro Cosme foi o último grande líder da Balaiada a ser derrotado, resistiu enquanto pôde. Muitos tiveram o privilégio da anistia, eram considerados inimigos políticos. Agora, ‘um preto, era um preto’. Cosme foi julgado como inimigo social. Claro, nunca uma sociedade escravista deixaria de punir exemplarmente um negro subversivo. Nunca se reconheceria que um “homem de cor” fosse capaz de possuir intuições políticas, sociais e mesmo educacionais”.
O mesmo apresentou a sua visão política, por diversas vezes propôs
alianças com os rebeldes - como atestam cartas - apesar de não ser aceito
inicialmente pelos líderes do movimento. Tanto o é que se apresentava como “Tutor
e Imperador da Liberdade” e “Defensor dos Bem-te-vis”12.
O reconhecimento dos escravos como legítima propriedade era uma das
ideias que grassavam os ideais liberais no período e os rebeldes não intentavam ir
contra essa elite, pois que mantinham o interesse em unir-se a esse grupo. Portanto,
se percebe omissão para com as causas da escravidão, apesar das “[...] aspirações
igualitárias de pelo menos uma parte dos rebeldes. Reivindicavam direitos iguais
para o ‘povo de cor’, tanto ‘cabras’ quanto caboclos” (ASSUNÇÃO, 2004, p.220),
constantes nas cartas e proclamações de Gomes, já na última fase do conflito. Para
este autor, o escravo estava inserido em tudo isso, mas de forma genérica.
Independente disso havia cooperação entre os chamados rebeldes livres
e escravos – inclusive os quilombolas – os quais informavam a movimentação das
tropas legalistas aos rebeldes. Essa proximidade levou o Presidente da Província
Luis Alves de Lima a propor anistia aos rebeldes, mediante a entrega de escravos
fugidos, assim como fomentou discórdia, causando confusão entre os próprios
rebeldes e as tropas. Eram os ex-rebeldes e alguns capitães do mato, agora
transmutados em caçadores de rebeldes e de escravos fugidos – o que certamente,
ajudou a enfraquecer o movimento, apesar de que alguns não se renderam às essas
tentações, continuaram “fiéis” aos seus ideais liberais e não se voltaram contra os
escravos.
Dentro desse contexto, fala-se, em certa animosidade entre Raimundo
Gomes e o negro Cosme. Quando Raimundo Gomes e seu grupo sofreu forte
ataque e refugiou-se junto a Cosme, este o teria mantido preso e quase o executou,
mas não há muitas evidências desse fato, pois tal relato é atribuído a Luis Alves de
Lima13.
Enfim, nesse episódio conhecido como Balaiada torna-se importante
avaliar alguns fatos. Em primeiro lugar, Raimundo Gomes não somente incitava
escravos à sublevação, como os recrutava para o seu exército. Em segundo, o
12
[...] Por obra e graça do sempre lembrado Dom Cosme Bento das Chagas [...] tutor e defensor dos Bem-ti-vis, injustamente enforcado pelo Governo de São Luis (MONTELLO, 1985, p.23). 13
Luis Alves de Lima denotou o episódio dessa forma: “[...] Raimundo Gomes, porém, [...] evadiu-se sem armas, sem bagagem, e indecentemente vestido, foi se oferecer ao negro Cosme, que o reduziu a ser fabricante de pólvora e o tem em guarda; talvez que Raimundo Gomes não se entregue por se reconhecer assaz criminoso e indigno de perdão” (ASSUNÇÃO, 2004, p.222).
Negro Cosme optou pelas tentativas de aliança – campo em que não foi bem
sucedido ao perceber que suas reivindicações na defesa dos escravos passariam
invariavelmente, pelos rebeldes bem-te-vis. Em terceiro, os rebeldes não estavam
preparados para derrubar o governo – talvez nem o pretendessem, tanto que,
sequer investiram contra São Luis, concentrando suas ações somente no interior.
Além de que esperavam a participação da elite liberal, o que não aconteceu.
Assim, se percebe a falta de coesão, a inexperiência em liderança
política, a desunião entre os líderes do movimento, alguns elementos que ajudaram
a provocar o “fracasso” da Balaiada.
2.3 Novos hábitos: importações de luxo, prosperidade econômica e intelectual.
O que se pode constatar é que, certamente essas questões na economia
maranhense provocaram mudanças profundas em várias outras áreas. E a aquisição
de grandes proporções de escravos na produção foi uma delas. Afinal, possuir
muitos escravos era sinal de opulência e prestígio social, como afirma Ferreira (2007
p.15).
Outra forma dos fazendeiros gastarem seus lucros foi com a importação
de artigos de luxo, o que certamente não contribuiu para dinamizar essa economia e
apesar dessas crises e desses momentos de expansão e retração na economia da
Província do Maranhão, o trabalho escravo proporcionou enriquecimento das elites
entre o final do século XVIII e o início do século XIV. Corrêa (apud FERREIRA,
2007, p. 19), “[...] nos fala de dois poderes que se complementam, o material e o
cultural”. Para este autor, os ganhos das lavouras de algodão e arroz foi o
sustentáculo para a formação dos intelectuais maranhenses.
“[...] Entretanto, toda essa prosperidade econômica e cultural só foi
possível graças ao sistema escravista que possibilitou o enriquecimento de uns
poucos à custa da exploração do trabalho de muitos” (FERREIRA, 2007, p.18), ou
seja, se aconteceu uma evolução econômica e cultural, o foi alicerçado na estrutura
escravista.
Houve então um refinamento de hábitos, uma grande assimilação de
costumes europeus. Pode – se falar de um “aumento” da intelectualidade
maranhense e citar igualmente, uma elevação cultural, o que gerou uma espécie de
projeção nacional desta província.
Enfim, essas crises não impediram que essa elite gastasse, investisse os
seus lucros das mais variadas formas, com o intuito de seguir padrões, sempre
ditados pela Europa:
Os anos seguintes até o surgimento e incentivo à empresa açucareira, a partir de meados de 1840, o Maranhão vive um período de transformações econômicas e de redefinição das relações sociais, bem como passa por uma seleção de valores que guiarão essa nova sociedade. O escravo também terá lugar nessas mudanças, visto cada vez mais como símbolo de opulência e prestígio social para quem os possuía. A forma de produção baseada no trabalho escravo do negro é que vai definir as relações sociais no Maranhão oitocentista, as quais eram rigidamente divididas e hierarquizadas de acordo com a condição jurídica e econômica das pessoas. (FERREIRA. 2007, p.15)
Ferreira (2007, p.18), cita que em fins de 1830, há uma espécie de
aprimoramento cultural, um cultivo pelas artes, um modelo de comportamento em
voga – a partir da “euforia econômica da agro-exportação”, elevando esta província
a destaque nacional. “[...] O letramento da elite maranhense foi um destaque na
primeira metade do século XIX [...] o Maranhão passa por um deslumbramento
cultural” (FERREIRA, 2007, p. 18).
Naturalmente, se deve usar de parcimônia ao efetuar a análise dessa
suposta elevação cultural e intelectual maranhense. Afinal, Ferreira (2007, p.17-18)
diz que “[...] Todas essas transformações possibilitaram a projeção da Província no
âmbito intelectual [...] que aos poucos cria o mito da Atenas Maranhense [...]”
assunto devidamente tratado por Maria de Lourdes Lauande Lacroix, em sua obra A
Fundação Francesa de São Luís e seus Mitos.
Assim, segundo Ferreira (2007, p. 19), “[...] os jornais do início do século
XIX foram a arma mais poderosa nas mãos dos intelectuais da elite maranhense” e
certamente, fatores como a escravidão e economia maranhense perpassaram pelas
penas e tipógrafos dessa elite. Ferreira (2007 p.12) ainda reafirma:
Não apenas por se constituir nesse poderoso instrumento de construção e divulgação de ideias e imagens numa dada sociedade, mas também pelo seu poder de manipular interesses e intervir na vida social. Não por menos denominada de ‘o quarto poder’, a imprensa tem o domínio da palavra impressa no século XIX. Os jornais são carregados de discursos e ideologias que expressam o movimento de ideias circulantes numa
determinada época e interagem na complexidade de um contexto histórico e social.
Portanto, a simpatia – ou não – pelas fugas dos escravos e/ou abolição
da escravatura tornam-se assuntos recorrentes na sociedade maranhense, por volta
dos anos 1880. Segundo Soares (1988, p.4), nesse período os anúncios sobre
escravos nos jornais, reduziram-se sobremaneira acompanhando a ascensão do
antiescravismo no seio da sociedade. Por esse tempo, já havia jornais recusando-se
a publicar tais anúncios, no embalo dos abolicionistas ou mesmo receosos dessas
ideias. Já não era de “bom tom” publicar avisos anunciando vendas, compras, trocas
ou aluguel de pessoas. Inclusive porque “[...] sociedades abolicionistas animavam e
favoreciam a fuga de negros e com tal eficiência que se faziam temer pelos
proprietários de diários e não apenas odiar pelos proprietários dos escravos”
(FREYRE apud SOARES, 1988, p.5).
Mas, como se está a discorrer sobre a economia maranhense, dentro do
recorte temporal de 1830 a 1841 e sua ligação com a escravidão, a partir dos avisos
nos jornais, se reafirma que o Maranhão implantou mais tardiamente uma
escravidão agrícola – final do século XVIII - sendo considerada, portanto, uma
sociedade escravista tardia, apesar de que desde o século anterior, escravos
africanos tivessem sido utilizados como mão de obra.
Mas o escravismo maranhense assume, portanto, particularidades que
dizem respeito à sua formação sócio-histórica: inicialmente, os silvícolas foram
bastante utilizados, no sistema de regime escravo, afinal, devia existir cerca de
200.000 índios por estas bandas. Foi a primeira mão de obra utilizada, com direito a
captura, escravização e venda dos mesmos, pois que “[...] era considerado
‘insubstituível’ na coleta de drogas do sertão, pelo conhecimento que possuía da
região e das diferentes espécies vegetais; como remeiro era muito elogiado [...]”
(FARIA, 2003, p.12).
Mas esses indígenas receberam o apoio dos jesuítas, que os queriam
livres para seu projeto de evangelização. Chegou um momento em que os religiosos
foram “radicais”: não aceitaram mais que os mesmos fossem escravizados, nem
mesmo nas chamadas guerras justas – apesar de que no geral, as Ordens
Religiosas se utilizassem do trabalho compulsório do gentio. A sugestão para
resolver tal celeuma, seria a introdução de escravos africanos.
A escravização do africano, a partir do século XVI, portanto, constitui
elemento base do sistema colonial, ao reduzir o escravo à condição de suporte da
empresa comercial explorada pelos portugueses. A escravidão tornou-se viável em
função das condições históricas e econômicas, decorrentes da configuração do
mercado transatlântico. O escravo é apropriado nessa conjuntura, como mercadoria
capaz de gerar riquezas, passando a agregar altos lucros para os agentes
escravocratas.
Todavia, torna-se válido pensar a escravidão para além do aspecto
econômico, considerando para tanto, o dinamismo histórico que circunscreve a
presença escrava na formação social brasileira. Afinal, a partir dessas vivências,
interferências e nuances, houve a construção do racismo no Brasil, o qual
permanece até os dias atuais, segregando, destruindo vidas, dificultando a inserção
do afro descendente na sociedade de forma plena e absoluta, deixando-o a mercê
dos direitos sociais. E essas imagens do negro – geralmente negativas - vinculadas
a partir dos anúncios nos jornais no início do século XIX, certamente contribuíram
para essas (des) construções.
Essas construções histórico/sociais, que forjaram as imagens negativas
sobre os afrodescendentes, continuam inseridas nos seus cotidianos. São
permanências baseadas nos resquícios da escravidão, mas que felizmente tem
levado a sociedade a uma reflexão intermitente sobre o assunto.
3 ÁFRICA – BRASIL – SÃO LUÍS: ASPECTOS DA ESCRAVIDÃO
A década de 1990 e os primeiros anos do terceiro milênio trouxeram e
reavivaram um intenso debate acerca da situação do negro no Brasil. O interesse
pela temática deve-se principalmente, à atuação do movimento negro que mesmo
expressando uma diversidade de interesses e longe de uma convergência
ideológica, conseguiu articular politicamente suas principais bandeiras de luta em
torno do reconhecimento pelo Estado brasileiro, da permanência de uma “chaga”
social difícil de mensurar: o racismo.
Este tem atuado como uma silenciosa máquina de exclusão que está
estruturalmente enraizado através dos tempos e cujo cerne é a escravidão negra.
Somando-se às pressões internas - movimento negro, partidos políticos e/ou
parlamentares engajados, setores da igreja, universidades, movimentos sociais -
tem-se a comunidade internacional exigindo do Estado a construção de mecanismos
de reversão das exclusões econômicas e étnico-raciais.
Esse escravismo – moderno – ajudou a impulsionar as engrenagens
embrionárias do chamado Capitalismo. Essa estrutura político-econômica, mesmo
carregando em si marcas dessa modernidade, surge como agência promotora do
sistema colonial posto em prática, neste contexto pela burguesia europeia.
Escravizar o africano - a partir do século XVI - portanto, constituiu elemento básico
do sistema colonial, já que o reduziu à condição de suporte da empreitada comercial
explorada pelos portugueses.
Percebe-se que a escravidão torna-se viável em função das condições
históricas e econômicas e das características apresentadas pelo mercado
transatlântico. O cativo africano é visto nessa conjuntura, como uma peça, um bem.
Uma mercadoria capaz de gerar riquezas, passando a agregar altos lucros para os
agentes escravocratas.
Mas, é importante tentar compreender porque o africano é retirado do seu
habitat – o continente africano – e passa a ser escravizado, já que:
desde a chegada dos primeiros europeus ao território africano, em meados do século XV, já se encontravam estabelecidos no continente, Estados, política e economicamente organizados e norteados por uma ordem social [...] as estruturas políticas tradicionais africanas se baseavam nas
instituições familiares [...] economicamente a agricultura era tida como a atividade principal (COSTA apud HERNANDEZ, 2005, p.1).
Possivelmente, havia uma estrutura social, cultural e econômica vigente
na África e não indícios de atraso ou “incivilidade”, como disseram os europeus
quando adentraram tal continente. Porque o mesmo foi praticamente demolido em
sua essência e se tornou exportador de mão-de-obra e de riquezas naturais?
Inaugurou-se assim o tráfico de escravos, o qual perdurou por séculos,
sustentando a economia das Américas e os portugueses, pioneiramente inseriram
os escravos africanos numa rota transatlântica, dando impulso à engrenagem
capitalista de compra-transporte-venda-revenda.
Respaldados na vigorosa ideologia cristianizadora dos textos bíblicos -
“tanto católicos quanto protestantes - encontrariam na Bíblia quanto nas tradições
das interpretações cristãs”, argumentos que legitimassem a prática da escravidão,
como em Levítico 25:38, 44/6: “[...] todos os vossos servos e servas que possuirdes,
devem vir dos povos pagãos que vos rodeiam [...] serão vossos servos para sempre”
(BLACKBURN, 2003, p.88).
Os negros podiam ser escravizados de várias formas. Dentre essas havia
maneiras legais (consideradas tradicionais) e os meios ilegais. Robert Conrad (1985)
mostra que, dentre as formas “legais”, estavam: a condenação por juízes locais
africanos por adultério ou roubo; a substituição de familiares por escravos
masculinos e prisioneiros de guerra. Podiam ser consideradas “ilegais”: o rapto e
venda de parentes próximos por chefes de família; grupos africanos que capturavam
cativos injustamente e diziam que eram prisioneiros de guerras justas; e finalmente
portugueses que escravizavam parentes livres de fugitivos.
A chegada do europeu ao continente africano pontuou o chamado modelo
de “civilidade”, o qual deveria ser repassado aos negros. Se existia uma espécie de
estrutura político-histórico-cultural há muito por lá, a mesma foi ignorada e
considerada primitiva, selvagem e o negro, um bárbaro. A partir desses
desdobramentos, passa-se a considerar a raça negra como inferior e a missão do
branco, civilizatória e com o intuito de elevar o nível dos africanos ao da Europa.
A partir dessas percepções - simbolicamente falando - a cor preta passa a
ser relacionada a impurezas, brutalidades e imoralidades, ou seja, a representação
do pecado e maldição divina, enquanto o branco remeteria à inocência, paz.
Portanto, necessário se fazia evangelizar o povo africano, imerso no pecado e
perdição. Necessário salvar das penas eternas esse povo considerado inferior,
mesmo que para isso o homem escravizasse outro homem.
Aliado a esses fatos, se tem no século XIX, a corrente filosófica
evolucionista a permear o seio intelectual, onde se afirmava que o meio ambiente
influenciava nas diferenças culturais. Obviamente, para se possuir superioridade
evolutiva o modelo a ser seguido seria o europeu. Paralela a essa corrente, outra,
fundamentada em estudos biológicos indicava diferenças entre os cérebros do
homem branco e do negro. Pregava-se uma inferioridade nata no homem negro.
Com a disseminação de tais ideias, a inferioridade atribuída ao negro,
deixou de pertencer apenas ao fator biológico e estendeu-se a outros pontos,
conforme Munanga (1988, p.20):
o continente, os países, as instituições, o corpo, a mente, a língua, a música, a arte, etc. Seu continente é quente demais, de clima viciado, malcheiroso, de geografia tão desesperada que o condena à pobreza e à eterna dependência. O ser negro é uma degeneração devida à temperatura excessivamente quente.
Alicerçado nesses aspectos, o próprio africano assume esse discurso do
dominador participando - involuntariamente - da criação de mecanismos de
dominação, especialmente os ideológicos. Isso o leva inclusive, a tentar assimilar a
cultura do outro – o colonizador/dominador.
E o que se vê daí em diante é o negro tentando assimilar a educação do
branco, apreendendo sua história, sua memória, sua geografia, substituindo seus
valores religiosos pelo cristianismo – lembrando que isso também pode ser
considerado estratégias de sobrevivências. Mas ao mesmo tempo, esse negro vai
descobrindo que a internalização dos valores e conceitos da cultura europeia não
acontecera até então. Seus esforços pareciam em vão, não havia sido alcançado o
objetivo, a equiparação com o branco.
Portanto, verifica-se que, praticamente durante todo o século XIX, os
africanos – e sua história - foram considerados inferiores. E logicamente essa
concepção foi disseminada em nosso país. À mercê de teorias raciais, pensava-se
que a mistura do negro com o restante da população poderia comprometer o futuro
do país, já que o ‘correto”, o desejado seria o embranquecimento. Essa forma de
pensar - advinda das teorias raciais - ultrapassava a elite intelectual e espraiava-se
pela população, a qual também se preocupava que essa mistura entre as três raças,
pudesse gerar uma espécie de descendência degenerada.
Esses estudos e debates sobre o negro só foram iniciados no final do
Século XIX e, a partir de 1930, muda-se o panorama: intelectuais passam a ver os
negros como provenientes de uma raça e cultura inferior, mas ao mesmo tempo,
com algo de positivo a agregar. Um desses estudiosos é o sociólogo Gilberto Freyre,
com a obra Casa Grande & Senzala (1999), que revolucionou gerações de cientistas
sociais e pesquisadores não só dentro como fora do país.
Para este sociólogo, havia uma espécie de paternalismo nas relações
senhores/escravos e essa relação era harmônica, sem conflitos. O autor constrói
uma narrativa sociológica na qual tende a diluir os antagonismos de uma sociedade
escravocrata, partindo do pressuposto da evolução social por meio da miscigenação.
Esses estudos formatados por vários pensadores ajudaram a criar o mito
da “democracia racial”: o Brasil passa a ser visto como o local onde várias raças
conviviam em harmonia, onde não se viam preconceitos e/ou discriminações sociais.
O mundo volta os olhos para o Brasil e a sua – suposta – democracia racial,
especialmente após os desastres ocorridos durante a II Guerra Mundial, onde povos
exterminaram povos.
Todavia, torna-se válido pensar a escravidão a partir de uma visão macro,
considerando para tanto o dinamismo histórico que circunscreve a presença escrava
na formação social brasileira. Afinal, três séculos de escravidão marcam a história da
formação do povo brasileiro com ambiguidades em torno das representações sobre
o escravo e seus descendentes.
3. 1 Escravidão em São Luís – anos 1830-1841
É sabido que o Brasil recebeu e abrigou uma enorme quantidade de
africanos durante o período em que o tráfico de escravos prevaleceu – entre os
séculos XVI e XIX, como nos informa Parrone (2004, p. 6-7). Segundo ela, o “Navio
Infame”, “navio negreiro” ou “tumbeiro” – arrastou mais de 11 milhões de africanos
para a América. Em caravelas ou barcos a vapor “[...] os traficados eram em maioria,
homens de 8 a 25 anos”.
Semelhante informação nos fornece Farias (2010, p.18) ao esclarecer que
os negros eram submetidos a condições hostis no momento do transporte “[...]
Espremidos nos porões dos navios negreiros, milhares de homens, mulheres e
crianças [que] suportavam calor, sede, fome, sujeira, ataques de ratos e piolhos,
surtos de sarampo ou escorbutos. Muitos não resistiam e eram jogados ao mar”.
Têm sido constantes as pesquisas e/ou estudos, onde se tenta determinar
– ou pelo menos, aproximar-se – do volume de negros africanos que aqui estiveram,
segundo Pantoja (apud MEIRELES, 2009, p.131). Devido à sua complexidade, não
há um consenso acerca do assunto, mas alguns autores falam de 6 a 11 milhões de
negros desembarcados por aqui.
Os estados de Pernambuco, Rio de Janeiro e a Bahia foram os
precursores da escravidão na América Portuguesa, devido à lavoura da cana-de-
açúcar com a importação de escravos nos séculos XVI e XVII. A mineração no
século XVIII, também sobreviveu a partir da escravidão de maneira semelhante ao
lucrativo ciclo açucareiro do Nordeste.
O desembarque de africanos nos portos de Belém e São Luís está
registrado a partir da segunda metade do século XVIII, com a criação da Companhia
Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão, em 06 de Junho de 1755, pelo
Marques de Pombal. A administração era feita diretamente por Portugal e possuía o
objetivo de fortalecer o comércio com nossos patrícios. A dita Companhia oficializou
e monopolizou o comércio de escravos, inclusive a venda dos mesmos.
Outros estudos referem-se à entrada de africanos nesta Província em
data anterior, já que em 1655, foi instituído o cargo de Juiz da Saúde, antes da
criação da Companhia de Comércio. Esse cargo foi criado para que todos os navios
que chegassem com negros fossem visitados, evitando os surtos de doenças, muito
comu
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