UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
Felipe dos Santos Almeida
TRANSTEXTUALIDADE ENTRE SFOCLES E OVDIO:
virtude e ira na caracterizao de jax
Joo Pessoa 2017
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Felipe dos Santos Almeida
TRANSTEXTUALIDADE ENTRE SFOCLES E OVDIO:
virtude e ira na caracterizao de jax
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Letras, da Universidade Federal da Paraba, como requisito para obteno do ttulo de Doutor em Letras. rea de concentrao: Linguagens e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Milton Marques Jnior
Joo Pessoa 2017
A447t Almeida, Felipe dos Santos. Transtextualidade entre Sfocles e Ovdio: virtude e ira na caracterizao de jax / Felipe dos Santos Almeida. - Joo Pessoa, 2017. 210 f. : il.
Orientao: Milton Marques Jnior. Tese (Doutorado) - UFPB/CCHLA.
1. Literatura comparada. 2. Literatura clssica. 3. Ovdio-Sfocles. I. Marques Jnior, Milton. II. Ttulo.
UFPB/BC
Catalogao na publicaoSeo de Catalogao e Classificao
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Felipe dos Santos Almeida
TRANSTEXTUALIDADE ENTRE SFOCLES E OVDIO:
virtude e ira na caracterizao de jax
Tese submetida ao Programa de Ps-graduao em Letras, da Universidade Federal da Paraba, como requisito para obteno do ttulo de Doutor em Letras, e aprovada pela seguinte banca examinadora:
____________________________________________________________
Prof. Dr. Milton Marques Jnior (Orientador) Universidade Federal da Paraba
____________________________________________________________
Prof. Dr. Juvino Alves Maia Jnior Universidade Federal da Paraba
____________________________________________________________
Prof. Dr. Marco Valrio Classe Colonnelli Universidade Federal da Paraba
____________________________________________________________
Prof. Dr. Johnni Langer Universidade Federal da Paraba
____________________________________________________________
Prof. Dr. David Pessoa de Lira Universidade Federal de Pernambuco
Joo Pessoa 2017
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Dedico este trabalho aos meus pais, responsveis maiores pela minha educao.
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AGRADECIMENTOS
Aos meus amados pais, por toda dedicao, afeto, esforo e pacincia.
minha Preta, Rara, pela companhia, amizade, apoio, carinho e amor, e especialmente por Rebeca.
Aos professores Milton e Juvino, pela confiana, pela orientao em minha vida profissional e pessoal, e pela amizade.
s minhas queridas irms, pela boa ris.
A Andr, Cassiano, Diego, Fbios (Cabea e Xuxa), Falco, Guigo, Gregrio, Jorge, Jlio, Vitor, Joffison, Bela, Magno, Dudu e Paulinho pela longa amizade construda nesses anos e pelos domingos compartilhados.
A Moacir, Digenes, Hermes, Marco, Alcione e Anderson pela amizade.
Aos demais familiares, amigos e professores por terem me ajudado e orientado na construo de meus conhecimentos profissionais e pessoais.
A Gary Gygax e Dave Arneson, pela imaginao e pela inspirao.
Aos deuses, pela vida.
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RESUMO
O objetivo deste trabalho estudar a intertextualidade entre a obra Metamorfoses, de Ovdio,
autor latino, e a pea Aias, de Sfocles, tragedigrafo grego. Esse estudo de Literatura
Comparada tem como foco a caracterizao do personagem jax. Entretanto, a nossa anlise
restringe tal caracterizao a dois elementos recorrentes em heris da Literatura Clssica: a
virtude, sobretudo, guerreira, e o sentimento de ira. Para alcanar tais objetivos,
primeiramente, apontamos como tais elementos esto presentes na tradio da literatura grega
arcaica do heri em questo, em especial, nos poemas homricos, os quais j apresentam, de
forma pioneira, uma caracterizao singular. Nessas obras homricas, esse personagem j
notvel pela sua virtude guerreira e pela sua grave clera. Em seguida, analisamos
isoladamente as obras de Ovdio e Sfocles com o objetivo de reconhecer a importncia
desses dois elementos na composio do carter desse personagem e no propsito semntico
dos episdios de cada uma delas. Por fim, apresentamos a teoria de Genette sobre
intertextualidade, a qual nomeia de transtextualidade, e na qual delimita uma tipologia a fim
de precisar suas variadas prticas. Baseados nessa teoria, apontamos as operaes realizadas
pelo autor latino que comprovam o aspecto transtextual de sua obra, particularmente, em
relao ao tragedigrafo grego, contudo, restritas forma pela qual tais transformaes so
utilizadas para delinear o carter guerreiro e iracundo do heri jax. Para melhor
compreenso das obras estudadas e da consequente anlise, dispomos uma traduo
instrumental do corpus citado no trabalho.
Palavras-chave: Literatura Comparada; Literatura Clssica; Ovdio; Sfocles; caracterizao
literria; jax.
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ABSTRACT
This work aims at studying the intertextuality between Ovids Metamorphosis and
Sophocless play, Aias. This work of Comparative Literature focus on the characterization of
the hero Ajax. However, our analysis limits this characterization to two issues, present on
Classical Literature heroes: the virtue, especially, belligerent, and the wrath. To achieving
such purpose, firstly, we point how those issues are present on the archaic Greek literature
tradition of the studied hero, particularly, in Homeric poems, which introduce, in a pioneer
way, a singular characterization. In these Homeric works, this character is already remarkable
by his warrior virtue and by his intense wrath. Secondly, we analyze Ovid and Sophocles
literary works separately aiming at understanding the consequence of those two issues in the
characterization of such hero and in the semantic purpose of episodes in each work. At last,
we introduce Genettes theory about intertextuality, which he names transtextuality, and in
which he bounds a tipology to restrict its many types of operations. Based on that theory, we
present the operations, fulfilled by the latin author, that verify such transtextual issue in his
epic poem, specially, related to Sophocles play. Nevertheless, they are restricted to the way
such operations act to compose the characterization of the belligerent and fiery hero Ajax. To
understanding the literary works and the following analysis better, we present a general
translation from the corpus mentioned on the present work.
Keywords: Comparative Literature; Classical Literature; Ovid; Sophocles; literary
characterization; Ajax.
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SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................ 8
1 A TRADIO LITERRIA DO MITO DE JAX .......... ............................................ 12
1. 1 A TRADIO ARCAICA E OS POEMAS HOMRICOS ....................................................... 12
1. 2 A TRADIO CLSSICA .................................................................................................. 34
1. 2. 1 Aias de Sfocles .......................................................................................................... 35
1. 2. 2 Metamorfoses de Ovdio ............................................................................................ 45
2 ESTUDO ISOLADO DA CARACTERIZAO DO HERI ..... ................................ 59
2. 1 A VERSO DE SFOCLES ................................................................................................ 60
2. 1. 1 : a virtude do heri na perspectiva grega ..................................................... 62
2. 1. 2 : a ira do heri na perspectiva grega ............................................................. 78
2. 2 A VERSO DE OVDIO ................................................................................................... 104
2. 2. 1 Virtus: a virtude do heri na perspectiva latina ................................................... 107
2. 2. 2 Ira : a ira do heri na perspectiva latina ................................................................ 125
3. ESTUDO TRANSTEXTUAL DA CARACTERIZAO DO HERI . ..................... 143
3. 1 TRANSTEXTUALIDADE: A CONCEPO DE GENETTE .................................................... 143
3. 1. 1 Prticas hipertextuais: transformaes quantitativas, pragmticas e modais .. 148
3. 2 O EPISDIO TRANSTEXTUAL DE OVDIO ...................................................................... 164
3. 2. 1 A virtude transtextual do heri .............................................................................. 169
3. 2. 2 A ira transtextual do heri ...................................................................................... 182
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 199
REFERNCIAS ................................................................................................................... 204
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INTRODUO
H muito se procura por um conceito que defina Mito, mas todas as tentativas
convergem eventualmente para uma mesma particularidade, a narrativa, no sentido de histria
elaborada pelo ato de narrar. Mrio Vegetti nos mostra ao menos um parmetro para discernir
as narrativas mticas dos gneros literrios como pica, lrica e tragdia entre os povos
antigos, ainda, que, atualmente, tal perspectiva seja considerada dentro de certos limites. Para
este autor, as narrativas mticas em torno das divindades e das foras invisveis e
sobrenaturais, que esto presentes no universo e que tambm o governam, so relatos
annimos, repetidos, passados de gerao em gerao que funcionam como "uma espcie de
catlogo do imaginrio religioso" (1994, p. 37), ganhando fora exatamente devido ao seu
aspecto coletivo e impessoal, que, de carter sagrado, remonta s origens de seu povo
atravessando o tempo e o espao. Com efeito, devemos ainda evidenciar que o mito uma
narrativa aplicada como verbalizao de dados complexos, supra-individuais, coletivamente
importantes (BURKERT, 1991, p. 18), e isso significa dizer que ele o saber atravs de
histrias. Esse conhecimento guardado nas narrativas era fundamental, sobretudo, para os
gregos e romanos da Antiguidade, no entanto, o imaginrio que o detinha era, de certa
maneira, desordenado e catico. a interveno da literatura, sobretudo da pica, que produz
uma seleo e um ordenamento capaz de reforar a conservao do carter fundamental
desses relatos, o modo narrativo com o qual um determinado povo comunica e transmite o
conhecimento presente em sua cultura (VEGETTI, 1994, p. 37).
Naturalmente dessas narrativas mticas se desdobra, em seu mbito literrio, uma
transcendncia textual, nomeada costumeiramente de intertextualidade, no sentido de que os
poetas se referem aos anteriores articulando um texto, uma trama, ora respondendo-lhes, ora
acrescentando-lhes, mas permanecendo sempre a ideia de um dilogo com as geraes
anteriores. Isso tem como consequncia a percepo de que Homero o texto matriz absoluto
(GRAF, 2006, p. 110), especialmente acerca da mitologia greco-latina, pois evidente a sua
forte presena nas literaturas grega e latina. Com efeito, por mais que sejam variadas as
verses de autores acerca de determinados mitos, h para os poetas uma liberdade limitada.
Recorre-se tradio mtica, ao menos para se evitar causar um grande estranhamento ao
pblico, cujo imaginrio mitolgico lhe serve como base para a compreenso da literatura e
da arte em geral (VERNANT, 2006, p. 25).
Inseridas nessa realidade de transcendncia textual, as narrativas acerca do mito do
heri grego jax se convergem nas literaturas grega e latina clssicas, na tragdia Aias, de
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Sfocles, e no Livro XIII da obra de Ovdio, Metamorfoses. Se estabelecemos como as
primeiras obras que tm registro dos relatos sobre esse heri de Salamina, a Ilada e a
Odisseia de Homero, podemos indicar essa intertextualidade de Sfocles e Ovdio
respondendo a Homero. Contudo, seria possvel um dilogo mais slido entre a obras de
Sfocles e de Ovdio, no que diz respeito ao mito desse personagem? Certamente, o
argumento de suas obras remonta a um episdio importante da lenda desse heri: a contenda
pelas armas de Aquiles, presente em Metamorfoses, cujo desdobramento natural, aps a
vitria de Odisseu, a ira e o suicdio do heri derrotado, presente na tragdia daquele. A
partir dessa relao evidente, at que ponto a obra de Ovdio se articula com a de Sfocles,
que lhe anterior. Quais elementos literrios de Sfocles so reforados e reiterados por
Ovdio em sua obra? At onde a obra de Ovdio possibilita uma nova leitura da tragdia de
Sfocles ou uma leitura conjunta?
Diante de todos esses questionamentos, tentamos chegar a uma concluso a partir de
uma categoria analtica que se afigura inerente literatura greco-latina: a intertextualidade.
Contudo, nosso objetivo guiado sob a perspectiva da caracterizao desse heri grego que
parece ganhar nfase no corpus por ns definido: os 1.420 versos da obra de Sfocles e os
versos 1 a 398 do Livro XIII da obra de Ovdio. Em nosso recorte, podemos observar a
relevncia das concepes de virtude e de ira, pois parecem alicerar de algum modo o carter
desse personagem dentro das obras escolhidas. Assim, de forma mais especfica, convm-nos
analisar como atravs desses dois traos do heri as obras em questo se relacionam entre si.
Dessa forma, tentaremos reconhecer at que ponto a caracterizao de jax, desenvolvida
pelo autor grego, retomada pelo latino. Para isso, h de se considerar duas coisas. A
primeira considerar como base dos traos do personagem marcas que remetam s noes de
virtude e de ira, presentes na sua imagem lendria, sobretudo em Homero que figura a
iniciao disso na tradio literria. A segunda comparar tambm ponderando o papel
estrutural dessas duas noes ao argumento e unidade tanto de Aias quanto do Livro XIII, de
Metamorfoses.
Devido a tal finalidade, a intertextualidade, tomada como categoria analtica do nosso
estudo, considerada fundamental em nossa metodologia, e por isso, a ela est reservada uma
seo prpria, no ltimo captulo. O marco terico que guia esse trabalho sobretudo a teoria
de Grard Genette sobre tal concepo, nas quais esse estudioso dispe ordenadamente toda
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uma tipologia de variados nveis de referncia intertextual, unidos entre si sob uma
perspectiva mais geral e abrangente, nomeada transtextualidade1 pelo autor.
Para alcanarmos esse fim de forma vlida, analisamos as obras individualmente e
comparadas, considerando diretamente a lngua original de cada uma: o grego e o latim
clssicos. Em decorrncia disso, so imprescindveis para a nossa metodologia algumas
disposies, especialmente tericas, as quais, no constituindo diretamente a categoria
proposta no trabalho, no exercem o mesmo papel no nosso estudo como a intertextualidade,
e, por isso, so apresentadas de forma sinttica ou em notas explicativas e de rodap.
Tentamos dessa maneira evitar a sobrecarga textual, sobretudo a terica, que tanto interrompa
a sequncia lgica da leitura quanto tangencie nosso objetivo, de forma digressiva, com
contedo de relevncia indireta aos nossos propsitos. As principais informaes dispostas
dessa maneira so trs, mas outras minoritrias, seguem os mesmos critrios.
A primeira a caracterizao, para a qual vrios estudos especficos sobre o carter do
personagem so dispostos suprindo tal escolha mencionada acima. Com efeito, segundo esse
procedimento, utilizamos o lato entendimento da concepo de Carlos Reis e de Ana Cristina
Lopes acerca de caracterizao, ou seja: ela representa, dentro do um plano narrativo, os
atributos fundamentais de um personagem, que, estruturados em um conjunto de unidade
identificvel e entrelaados a outros componentes diegticos, executam um papel saliente no
desenvolver da trama e reforam o eixo semntico do argumento do texto (1988, p. 193-195).
Considera-se tambm que a proficuidade desse elemento no estudo de uma obra depende
frequentemente da posio relativa que um determinado personagem ocupe na composio do
enredo. Mencionamos tambm alguns elementos literrios oriundos da Potica de Aristteles,
os quais auxiliam grandemente as anlises de caracteres.
A segunda disposio a ser considerada o esclarecimento de determinados valores
religiosos, ticos, morais, sociais etc., constantes no lxico e no vocabulrio dessas obras,
uma vez que trataremos de textos que remontam uma cultura antiga, e que, por isso,
pressupem uma mnima contextualizao histrica. Autores que abordem tais assuntos como
Jean-Pierre Vernant, mile Benveniste, Marcel Detienne etc. so fundamentais.
A terceira, uma traduo instrumental que vise auxiliar a leitura do texto original,
fornecendo para isso um reflexo morfossinttico, e por vezes etimolgico, uma vez que o
contedo dos fragmentos estudados e suas nuances significativas para o estudo sero expostos
1 Ressaltamos que por todo o trabalho tambm usaremos a grafia em itlico para identificar quaisquer
terminologias tericas, com o propsito, por exemplo, de distinguir o sentido mais abrangente de uma palavra, como em intertextualidade, do sentido especfico fomentado ou no por um determinado autor, como em intextextualidade, a qual se refere a um tipo determinado da transtextualidade formulada por Genette.
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atravs da prpria anlise que segue s citaes. Por isso, seu tratamento menos semntico e
mais sinttico. Atentamos para esse propsito as reflexes de Paulo Rnai, John Milton e
Susan Bassnett, Umberto Eco entre outros, os quais ponderam os objetivos de uma traduo.
Alm disso, destacamos que os textos originais das obras Metamorfoses, de Ovdio, e Aias, de
Sfocles, utilizados em nosso trabalho, foram estabelecidos de forma filolgica,
respectivamente, por Georges Lafaye e por Paul Mazon em edies da Les Belles Lettres, e
esto presentes nas referncias.
De acordo com todos esses critrios, estruturamos esse trabalho em trs captulos. O
primeiro, sob a perspectiva da caracterizao do mito de jax, contextualiza e apresenta a
tradio arcaica, centrada em Homero, bem como as obras que compem o nosso corpus.
Com essa contextualizao das obras, fornecemos subsdios para delimitar os seus limites e
para discernir na obra de Ovdio o que dilogo com Homero e o que referncia a Sfocles,
se a ela houver. Autores como Maria Helena da Rocha Pereira, Jacqueline de Romilly, Robert
Aubreton etc. e alguns estudos especficos, acompanhados de nossas observaes compem
essa primeira parte. O segundo captulo dispe uma anlise per se das obras do corpus,
considerando-se o papel exercido pela caracterizao do heri na unidade e no argumento das
mesmas, percebendo-a sob o ponto de vista das noes de virtude e de ira. Estudos especficos
e tradutores das obras em questo tambm so considerados em nossa anlise. O terceiro
expe os princpios intertextuais de Grard Genette, os quais nomeia transtextualidade, e
pelos quais comparamos, ainda neste momento, os resultados obtidos, a partir do captulo
anterior, para chegarmos a alguma concluso acerca dos nveis de influncia de Sfocles em
Ovdio. importante ressaltar que a teoria desse crtico francs aborda em especial aspectos
temticos e estilsticos, e ns tentaremos adequar tais premissas ao estudo da caracterizao.
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1 A TRADIO LITERRIA DO MITO DE JAX
Propomo-nos, aqui, a contextualizar as obras Aias, de Sfocles e Metamorfoses, de
Ovdio, sobretudo seu Livro XIII, convergindo os estudos deste captulo para a caracterizao
do personagem jax, sob o vis das noes de ira e de virtude, e considerando a influncia da
tradio arcaica da literatura grega, sobretudo nas obras dos autores aqui estudados. Com
efeito, para estudarmos mais validamente a intertextualidade entre a caracterizao desse
heri nas obras de Ovdio e de Sfocles, que figuram uma tradio clssica, devemos
reconhecer quando, no processo de retomada do mito, h uma influncia de autores que lhe
so anteriores e que consolidaram a imagem que temos dessas figuras mitolgicas.
Entendemos como base de representao dessa tradio arcaica as epopeias homricas, Ilada
e Odisseia, uma vez que seus modelos influenciam diretamente toda a cultura literria greco-
latina posterior.
Neste captulo, observando-se a composio estrutural das obras estudadas,
ressaltaremos os procedimentos literrios e os traos estilsticos que contribuam para a nossa
anlise e possibilitem uma melhor contemplao do nosso objetivo. Para isso, servimo-nos de
vrios estudos que tanto estabelecem linhas gerais de interpretao das obras,
contextualizando-as, quanto, dentro do possvel, apresentam material relacionado ao tema
proposto por ns como base para intertextualidade, situando-o sob a perspectiva do nosso
objetivo. Contudo, vejamos antes a caracterizao do personagem escolhido para estudo,
dentro das obras arcaicas.
1. 1 A TRADIO ARCAICA E OS POEMAS HOMRICOS
Homero o herdeiro da memria de um povo de cultura oral e teria elaborado suas
narrativas a partir de antigos mitos de base religiosa (AUBRETON, 1968, p. 154-155). Essa
mitologia grega contribui acima de tudo para uma longa tradio artstica da Grcia arcaica,
da qual, com exceo de Homero, utilizaremos nesta seo, de maneira pontual apenas
Pndaro, poeta lrico grego do perodo arcaico, por contribuir para o nosso propsito.
Com efeito, a partir de informaes centradas nas obras de Homero, dispostas aqui,
tentaremos ressaltar como vrios elementos constituintes do estilo e da linguagem homricos
contribuem para a profcua caracterizao de seus personagens, tornando pertinente um
estudo mais profundo dos mesmos, sobretudo em poetas posteriores, os quais retomam essa
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tradio arcaica. Assim, ser possvel compreender como se apresenta o contorno das vrias
figuras dos heris mticos presentes nessas epopeias, e entre estes a de jax, foco deste
estudo. Para isso, tambm recorreremos a anlises e estudos de alguns crticos que subsidiaro
a complexidade das caracterizaes homricas, delineando o perfil desses heris, atestada pela
conscincia de linguagem do autor e pela sua maturidade artstica, prprias de toda grande
literatura.
Antes, contudo, importante justificar, mesmo que brevemente, essa preferncia por
Homero, determinante do objetivo desta seo. Para alcanarmos tal finalidade, deve-se
reconhecer a enorme influncia da tradio literria da Grcia arcaica na literatura clssica,
seja grega ou latina, sobretudo da homrica. A influncia das epopeias homricas sobre os
gregos est presente desde o sculo VII a. C., tornando-se literariamente preponderante no
sculo V a. C. (AUBRETON, 1968, p. 328), a exemplo maior dos tragedigrafos, e da
concepo aristotlica de literatura, contida na Potica, que representa primeira teorizao
literria manifestada no Ocidente.
Homero, que se torna o grande educador grego devido ao alcance de sua obra, nos
sculos que lhe so posteriores, marcadamente imitado, seu vocabulrio fixado como lngua,
e sua obra se torna base para o aprendizado de vrios contedos, sejam morais, sociais,
histricos etc. Sua concepo divina ainda exerce autoridade, inclusive, sobre a religio
helnica, o que faz por exemplo, Plato, fomentando uma nova reflexo sobre as divindades,
censurar, na Repblica, alguns de seus episdios. Esse prestgio o faz at mesmo inaugurar a
literatura latina atravs da traduo da Odisseia por Lvio Andrnico, transformando-se em
obra base para o aprendizado da leitura das crianas romanas (Ibidem, p. 329). Esse fato de
tal forma contundente que favorece a compreenso da fora que essas epopeias exercem
diretamente na literatura latina, cuja maior expresso pica a Eneida de Virglio, reflexo
direto dos moldes homricos. Disso tambm podemos conjecturar a fora exercida dentro da
prpria literatura grega.
Tal influncia, manifestada pelo dilogo constante de uma gerao com as que lhe so
anteriores, ora concordante de ideias, ora divergente, no se revela apenas na evoluo
literria, e por isso entendemos todas renovaes de contedo, de forma, etc., que se
desenvolvem ao longo do tempo. Apesar de sua natureza predominantemente pica, podemos
citar, por exemplo, elementos literrios, mesmo que de forma embrionria, presentes nessas
obras, os quais posteriormente sero desenvolvidos e atribudos por vrios estudiosos aos
gneros lrico e trgico como suas marcas distintivas. No entanto, afastando-nos dessas
disposies mais gerais, ns frisamos, aqui, um elemento mais especfico e adequado ao
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nosso estudo de caso: a evoluo dos mitos que apresentam a figura dos heris lendrios da
Grcia.
Para entender melhor a evoluo desses mitos e sobretudo o papel de Homero sobre
ela, necessrio entender que a construo individual de um poeta acerca de uma figura
mtica no uma elaborao completamente livre da tradio. Segundo Jean-Pierre Vernant,
as mais variadas verses dos mitos apresentam uma determinada limitao, pois por mais
inovadoras que sejam, elas esto inscritas em uma tradio na qual se apoiam e qual se
referem, sobretudo se considerarmos o pleno entendimento pelo pblico (2006, p. 25). Louis
Gernet sobre isso j havia afirmado que os poetas respeitavam uma espcie de imaginao
lendria, e isso implicava uma coerncia estrutural e funcional, qual os autores de alguma
maneira se submetiam (apud VERNANT, 2006, p. 25).
Para o nosso trabalho, as obras homricas so essenciais, especialmente por dois
motivos. O primeiro devido a seu carter literrio inicitico dos caracteres desses heris
mticos contidos no ciclo da guerra de Troia, ou seja, essas epopeias representam o ponto de
partida literrio dos traos distintivos dos personagens includos nessas narrativas. O segundo
motivo devido ao seu papel fundamental no entendimento dos vrios contornos que esses
personagens da mitologia grega recebem na literatura clssica, a partir do dilogo com os
textos homricos, comprovadamente atestado por vrios estudos. Em ambos os motivos, isso
inclui jax, foco de nosso estudo, e sua concepo pelos autores posteriores a Homero. A
Ilada e a Odisseia nos revelam, assim, os pontos significativos das qualidades individuais do
heri em questo, tanto no mito, de uma forma geral, quanto no episdio que envolve a
disputa pelas armas de Aquiles, evento indispensvel na fabulao da obra Aias, de Sfocles,
e da Metamorfoses, de Ovdio.
Colocando de lado questes de justificativa, passemos a observar as obras homricas a
partir de informaes pertinentes ao estudo da caracterizao, que o cerne da nossa
comparao intertextual proposta.
Os heris das obras homricas so frequentemente reis de linhagem divina. E apesar
da presena de outras figuras mais simples, especialmente na Odisseia, estas orbitam o
universo de personagens pertencentes a uma espcie de nobreza, a priori, composta de
homens superiores. Explicando melhor esse contexto, Jacqueline de Romilly afirma que a
epopeia homrica reflete ento um mundo aristocrtico, cujas virtudes so igualmente
aristocrticas (1984, p. 37). E a moral heroica presente nas obras, assegura Claude Moss,
tem como base valores que correspondem aos de uma aristocracia guerreira, os quais se
manifestam em combates, representativos de um mundo de guerras da Grcia arcaica, o que
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justifica a constante busca pela glria guerreira que tornar heri imortal (1989, p. 46).
Inserido em uma civilizao de natureza guerreira, esse representante aristocrtico impelido
por dois aspectos da glria: o kdos () e a klos (). O primeiro, de origem divina,
representa um favorecimento momentneo dos deuses, com o qual os heris executam seus
grandes feitos; o segundo, de origem humana, a fama que desenvolve de boca em boca
atravs de vrias geraes, o que destaca sobretudo, no papel do poeta para a cultura arcaica, a
sustentao dessa glria alcanada (DETIENNE, 2013, p. 21)
Contudo, salutar destacar, esses ainda so marcadamente homens, ou seja, embora
tais personagens possuam uma estirpe particular e, por meio de atributos decorrentes dessa
origem, executem muitas vezes proezas fora do comum, eles ainda cultivam virtudes
essencialmente humanas (ROMILLY, 1984, p. 37). Por isso manifestam emoes
impulsionadas pelas tenses internas do enredo, decorrentes das situaes de conflito nas
quais esto inseridos, desse modo, revelando-nos e lhes conferindo uma identidade
inerentemente humana.
Os personagens homricos no so analisados pelo autor, mas so mostrados em plena
ao, na guerra, nos rituais, no mar, no mago do ambiente familiar. Tambm a esses Homero
concede a palavra, por meio do discurso direto, um recurso extremamente recorrente em sua
obra (Ibidem, p. 40). Essa mescla de estilos compe tanto a Ilada quanto a Odisseia, ora de
base oratria, ora narrativa, ora descritiva, servindo para se ressaltarem marcadamente tais
aes dos personagens. E isso parece ter como consequncia um reforo no delineamento do
carter dessas figuras, fato evidente nas obras em questo.
Segundo Walter Donlan, a construo de personagens mais reais um ndice de
maturidade artstica, e uma literatura madura se faz quando a mesma capaz de produzir
caracterizaes complexas dessa maneira (1970, p. 259). A Ilada, por exemplo, mesmo
representando o marco inicial da literatura ocidental, no pode ser vista de maneira alguma
como um trabalho primitivo. Sua genialidade no tratamento da caracterizao distinta dos
personagens um dos motivos que lhe concede o grau de grande obra literria, inserindo a
produo literria da Grcia arcaica dentro dessa concepo de literatura madura. Isso parece
ocorrer, conforme Donlan, contrariamente ao modelo que se estrutura em uma determinada
quantidade de arqutipos, como o grande guerreiro, o venervel rei ou o velho sbio,
dispostos em uma tipologia variada de situaes, como o combate singular, a jornada para
casa etc., muito evidentes tambm nos mitos e contos folclricos de quaisquer culturas,
sobretudo, as orais. Com efeito, os marcadamente personagens principais por esse autor, a
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saber, Aquiles, Agammnon e Heitor, esto bastante longe de ser um estoque de arqutipos
em um estoque de situaes (Ibidem, p. 261).
Evidentemente, h personagens que acabam se tornando mais prximos a esses
arqutipos, de maneira que no crescem, e, em contrapartida, s cumprem uma funo
determinada, embora, afirma Donlan, seja possvel observar ainda uma sofisticada variao
desses modelos nos heris homricos, quando da representao dessas figuras menores.
Contudo, mais ou menos elaborados, os personagens de Homero so bem delineados e
consistentes, afastando de si a tipologia primria e se mostrando indivduos distintos entre si
(Ibidem, p. 263).
Com efeito, a caracterizao homrica faz com que determinados traos de
personalidade emerjam, quando os personagens so dispostos em situaes de conflito que
demandem uma ao consonante com suas caractersticas individuais. Isso permite que eles
desenvolvam entidades psicolgicas, e alguns com elaborao extremamente singular. Na
Ilada, como exemplo destes ltimos, Aquiles sofre, aprende, toma decises dolorosas e,
assim, mostra-se possuidor de uma verdadeira personalidade. Outros, menos elaborados
devido a uma participao mais funcional na obra, tm ainda a caracterizao plenamente
formada e potencialmente desenvolvida, mas no manifestada e evoluda dentre de
circunstncias propcias para os vermos crescer, tal qual, exemplifica Donlan, Odisseu e jax,
os quais s concretizaro tal potencial, como comum a muitos personagens homricos, em
outras obras, respectivamente, a Odisseia, do mesmo autor, e Aias, de Sfocles (Ibidem, p.
265-266).
Por isso, a psicologia elaborada entre vrios heris , ento, completamente distinta, e,
corroborando o que foi exposto acima, s vezes em plena evoluo (AUBRETON, 1968, p.
289). Ainda segundo Robert Aubreton, por meio de todos esses recursos, Homero teria
vivificado os personagens de forma particular, tornando-os profundamente humanos e dotados
de uma personalidade prpria (Ibidem, p. 289).
Para este autor, um estudo pertinente dos caracteres homricos deve recorrer ao jogo
de correspondncias promovidos dentro das obras. Dois pontos so notadamente pontuados
dentro dessa perspectiva. O primeiro corresponde oposio de carter, pelo qual possvel,
de forma antittica, delinear o que pode ser atribudo preponderantemente a um e a outro
personagem. O segundo, recorrncia de traos reiterados por toda a obra, os quais formam
uma coerente unidade de caracterizao dos vrios heris (Ibidem, p. 258).
Dentro do estilo homrico, como j dissemos, ora narrativo, ora descritivo, vasto o
nmero de recursos oratrios e outros lingusticos que reforam esse jogo de
17
correspondncias. Segundo Maria Helena da Rocha Pereira (2012, p. 72-73), entres eles, a
analepse, a apstrofe, a anfora, a metfora, o smile, o epteto, e outras. Convm
evidenciarmos os ltimos dois, pois parecem-nos as mais aparentemente profcuas
ferramentas pelas quais Homero salienta e refora as marcas que delineiam o carter dos
personagens, sobretudo, segundo o pensamento supracitado de Robert Aubreton.
O primeiro, o smile, segundo Geoffrey Kirk, uma das glrias da Ilada, deixando o
contedo mais perto do entendimento do ouvinte (apud Ibidem, p. 73), ou segundo Hermann
Frnkel, refreia de maneira significativa a ao em curso, para intercalar uma imagem de
conjunto da situao (apud Ibidem, p. 74). Com efeito, esse recurso marca mais
propriamente o contorno dos personagens, uma vez que, tendo geralmente como origem
fenmenos e elementos da natureza, vrias atividades humanas e dos animais, sobretudo a do
pastor e dos animais de rapina, acaba por atribuir traos recorrentes e singulares aos heris,
permitindo-nos perceber determinadas unidades na sua caracterizao. Esse recurso to
eficiente na Ilada que no houve epopeia posterior que no a imitasse, afirma Rocha Pereira
(Ibidem, p. 76).
O segundo, o epteto, converge para o mesmo propsito, intensificando-se quando, a
partir da diviso de Milman Parry (apud Idem, 1984, p. 4), reconhecemos os nomeados
genricos, aplicveis a qualquer heri; e os distintivos, aplicveis a poucos ou a somente um.
Por mais que o epteto seja uma frmula de mecanismo mnemnico das culturas orais, e por
isso revelando uma relao intrnseca com o esquema mtrico da epopeia, ora ocupando um
hemistquio, ora, mais complexo, compreendendo vrios versos, para Rocha Pereira estes
ltimos, os distintivos, vo alm disso, pois contribuem sob um vis literrio para a melhor
caracterizao do personagem, adequando-se, assim, ao contexto uma qualidade especfica, e
permitindo-se uma melhor compreenso do momento no qual esto inseridos (Ibidem, p. 5).
Vejamos agora como estes elementos contribuem para o estudo de caso desta seo: a
caracterizao do personagem jax dentro das obras homricas.
No fugindo regra, o heri em questo pertence aristocracia: filho de Tlamon, o
rei de Salamina e descendente de Zeus, segundo a mitologia grega que constitui as narrativas
do ciclo da guerra de Troia (GRIMAL, 2005, p. 16). Com efeito, seguindo os parmetros de
Robert Aubreton, mencionados acima, esse personagem tende a ser visto sob duas
perspectivas mais gerais, que se estabelecem a partir da dinmica de correspondncias: a
primeira definida a partir de uma relao comparativa com Aquiles e com Odisseu, conduzida
especialmente tanto pela Ilada e quando pela Odisseia, e a segunda, igualmente importante
18
para o nosso estudo, a partir de suas reiteradas caractersticas prprias, marcadamente
reconhecidas nessas obras.
Comecemos pela primeira viso mais geral acerca da caracterizao desse
personagem. Essa apreciao tende sempre a destacar traos desse heri a partir da
comparao com outro heri grego, Aquiles, especialmente porque esse procedimento ocorre
inclusive dentro da obra homrica. Se por um lado o Pelida considerado o melhor dos
Aqueus, por outro o Telamnio tratado como o melhor depois de Aquiles. Isso se reala no
Canto II da Ilada, sobretudo devido retirada da batalha por este, ainda no Canto I. Quatro
menes a essa denominao so vistas nas obras homricas: duas na Ilada, uma no Canto II
e outra no XVII; e duas na Odisseia, ambas no Canto XI; alm de pelo menos uma outra
aparecer, ainda na considerada tradio arcaica, nas Odes Nemeias, VII, de Pndaro.
Especialmente na primeira obra, essas menes parecem ser bem significativas, enquanto
frmulas homricas, para o nosso estudo. Por serem precisamente os eptetos distintivos, j
elucidado anteriormente, contextualizando o momento e contribuindo para o argumento do
Canto, tornam-se essenciais para nossa exposio.
No Canto II, trata-se do catlogo das naus. Esse momento tem como argumento a
enumerao dos heris gregos que foram guerra de Troia. neste ponto em que se faz a
primeira referncia a primazia do heri.
' 760 ' ' , ' .
[...] ' ' , ' .2 770
(Ilada, II, v. 760-763;768-770)
importante ressaltar que todos, inclusive os mortos e o momentaneamente ausente
Aquiles so descritos, contudo, o narrador invoca a musa para lhe revelar quem seria o melhor
guerreiro dos Aqueus: naquele momento , nomeadamente, jax. Essa uma frmula
bastante repetida, a qual apresenta a superioridade desse heri relacionada ausncia de
Aquiles, quando do episdio de sua desonra e consequente retirada. Ocupando um verso e
meio, em uma clara disposio formular, o epteto se concentra no sintagma formado por 2 Estes eram dos Dnaos os condutores e chefes (v. 760) / Tu, musa, dize-me qual era o melhor deles /os quais
seguiram os Atridas, como tambm o de seus cavalos. [...] O melhor dos heris era o ingente jax Telamnio, / enquanto Aquiles se enfurecia: pois este era o mais bravo / e tambm [eram] os cavalos que carregavam o excelente Pelida (v. 770).
19
superlativo, melhor dos heris, , que distingue sua superioridade dos demais.
Tambm bvio apontar que isso se assemelha ao epteto atribudo ao Pelida, pois tem como
base o mesmo superlativo.
O Canto XVII se refere ao episdio da morte de Ptrocles. A cena disposta abaixo,
extremamente relevante para compreendermos a figura de jax, encontra-se logo aps a
morte daquele heri. o episdio dos combates pelo seu cadver.
[...] ' , , ' ' .3
(Ilada, XVII, v. 277-279)
Nesse ponto, mais uma vez se atribui ao heri a primazia guerreira, devido ausncia
de Aquiles. Uma vez que este no pode proteger o corpo do amigo dileto, o Telamnio que
o cumpre, inclusive liderando os gregos para o retornar aos combates em defesa do cadver
do grego morto. A frmula dessa passagem, de estrutura menos bvia, abrange dois versos
inteiros. Concentra seu significado no verbo techo, , que sobretudo na obra homrica
tem o sentido de elevar-se. Esse epteto aparecer outra vez na Odisseia, como veremos mais
frente, tal qual disposto nesses versos.
A Odisseia tambm faz duas referncias a essa qualidade distinta do heri. As duas
esto inseridas no Canto XI, quando da descida de Odisseu ao Hades. Os fragmentos abaixo
referem-se ao encontro de Odisseu com as sobras de Agammnon, de Aquiles e do prprio
personagem estudado. Como esse Canto compe a analepse do narrador autodiegtico,
necessrio entender que, diferentemente da Ilada, aqui, os eptetos no so mencionados pelo
narrador externo, mas pelo prprio Odisseu, fato que corrobora marcadamente o
reconhecimento pelos demais gregos do valor do heri.
' ', ' .4 470
(Odisseia, XI, v. 467-470)
3 Pois, muito rapidamente os [gregos] fez voltar / jax, que em relao tanto ao aspecto quanto aos trabalhos
eleva-se / dos outros Dnaos, depois do excelente Pelida. 4 Chegou, a seguir, a alma do Pelida Aquiles / e de Ptrocles, e do excelente Antloco / e tambm a de jax, que
era o melhor, em relao tanto ao aspecto quanto ao porte, / dos outros Dnaos depois do excelente Aquiles (v. 470).
20
Nesse fragmento, a frmula ocupa dois versos inteiros, em uma variao j apontada
no recorte anterior. Novamente, o epteto se fortalece com o superlativo melhor, ,
reiterado significativamente para salientar a qualidade distintiva do heri. A frmula
atributiva deste de alguma maneira se contrape expressivamente ao resultado da disputa
pelas armas de Aquiles. Pois, uma vez que jax no recebe como prmio as armas do Pelida,
mesmo ressaltando-se ser ele o melhor entre os dnaos, depois de Aquiles, isso parece gerar
uma aparente contradio e at provocar ou exigir nos ouvintes ou leitores da obra a simpatia
do Telamnio, intensificando-se o teor lrico e trgico da passagem, uma vez que seu
profundo rancor no s justificvel, mas tambm coerente, sobretudo se considerando o
reconhecimento elevado do prprio valor do heri, como veremos mais frente.
Vejamos mais uma passagem significativa, ainda presente no Canto XI da Odisseia.
' , ', , ' 550 ' .5
(Odisseia, XI, v. 549-551)
Nesses versos, vemos o mesmo epteto presente no Canto XVII da Ilada. Mais uma
vez a primazia do heri referida pelo verbo . Esse o momento em que Odisseu
encontra a alma de jax, e este lhe recusa a reconciliao. Mais uma oposio se faz: o
epteto se contrape imagem do heri. Esta ltima descrevendo o personagem coberto pela
terra, referncia ao seu suicdio, morte indigna na perspectiva guerreira do heri grego. A
oposio se constri sobretudo pela distino superior de sua aparncia e de seu aspecto,
, referidos no epteto, imagem suja e maculada pela qual se apresenta. Com efeito, uma
sugesto bvia, ao menos na perspectiva do heri, de sua honra manchada e conspurcada.
Logo, mais uma vez se adensa sua supremacia guerreira de sua figura mtica, contrastando-se
a isso o potencial lrico e trgico da passagem.
Na sua Ode Nemeia VII, Pndaro, poeta lrico inserido no fim o perodo arcaico grego,
retrata o heri de acordo com essa mesma concepo, configurada por eptetos claramente
homricos. A narrativa mtica inserida nesse epincio, segundo um dos traos do prprio
poeta, ou seja, no constituindo o prprio cerne das odes, mas visando dar sustentao aos
elogios aos vencedores nelas celebrados, frequentemente, apoiando as mximas, exigentes de
um modelo moral e religioso adequado, nas quais o poeta alicera admoestaes dirigidas aos
5 Pois, por causa destas, terra cobria sua cabea, / jax, que em relao tanto ao aspecto quanto aos trabalhos
eleva-se (v. 550) / dos outros Dnaos, depois do excelente Pelida.
21
interlocutores do eu-lrico (RAGUSA, 2013, p. 243). Com efeito, a supremacia guerreira do
personagem, para alm da adequao na ode de Pndaro, serve-nos para reforar essa
recorrente caracterstica do heri.
[...] ' . 25 , 6 30
(Nemeias, VII, v. 24-30)
Notadamente, a concepo dessa primazia retomada pelo sintagma, o melhor no
combate, com exceo de Aquiles, . Primeiramente, podemos
ver que se reitera a sua supremacia relativa ao Pelida, segundo os moldes homricos. Em
segundo lugar, sobretudo, a retomada da forma do superlativo , que remonta a
Homero, apesar de manifestar um termo distinto, funciona tambm como superlativo de
, da mesma forma que (RAGON, 2012, p. 59).
A partir de todos esses qualificativos, expressos pelos superlativos , ,
ou pelo verbo , vlido instituir figura de jax a concepo de segundo heri
supremo entre os Aqueus, ou como visto nas obras gregas, o melhor ou o mais forte depois
de Aquiles, uma vez que repetidamente a tradio arcaica refora esse perfil mtico do
personagem.
Contudo, h quem aponte uma proeminncia guerreira de Diomedes, filho de Tideu,
sobre aquele heri, apesar de todos os eptetos supracitados, como o caso da anlise de Van
der Valk. Este convm ser aqui disposto, pois ajudar grandemente a esclarecer a
compreenso corrente de uma virtude defensiva do Telamnio, como ser vista no decorrer da
seo.
Segundo Van der Valk, um estudo cuidadoso da Ilada apresentaria como resultado a
supremacia guerreira de Diomedes, filho de Tideu, e no do heri de Salamina, quando da
retirada de Aquiles. O primeiro se torna o heri mais relevante nos Cantos V, VI e VII, e o
segundo nos VII, que trata do combate singular com Heitor, e nos XIII, XIV e XV, quando da
retirada dos Aqueus diante do avano Troiano. O autor esclarece seu pensamento 6 Tem cego / o corao a numerosa tropa dos homens. Pois, se lhe fosse (v. 25) / possvel ver a verdade, no
teria, encolerizado por causa das armas, / o firme jax cravado no corao / a afiada espada: que, sendo o mais forte no combate, com exceo a Aquiles, / levariam com o loiro Menelau para trazer a esposa em ligeiras / naus os impulsos do bom condutor Zfiro (v. 30).
22
evidenciando que o Tidida combate os deuses, pe em perigo a posio de Troia, rejeita o
conselho de Agammnon em deixar lion e reagrupa os chefes gregos feridos (VAN DER
VALK, 1952, p. 269).
Acrescenta a isso sobretudo os jogos fnebres do Canto XXIII, dos quais participam
ambos os heris a contender entre si. O combate armado entre os dois no gera resultado
decisivo, contudo, Diomedes parece receber um prmio distintivo, o que para o autor revela o
favorecimento de Homero a este heri em detrimento do Telamnio. Isso lhe parece ilustrar a
proeminncia do primeiro. Tal fato seria um eco da ideia de parcialidade dada aos heris de
origem jnica ou que a essa regio se relacione, pois, essa a origem de Homero, e assim, os
personagens oriundos das tribos da Grcia Central majoritariamente seriam colocados em
posies menos importantes. Contudo, h ressalvas nessa tendncia observada, entre estas,
obviamente o caso do heri estudado por ns, apesar de ainda inferior a Diomedes (Ibidem, p.
270).
Essa tendncia, por exemplo, justificaria, a liderana de jax na retirada dos Aqueus.
Vista como uma atitude inglria, no foi atribuda a um dos heris favorecidos na obra, uma
vez que estavam feridos, ou, como no caso de Diomedes, foi impelida por augrios de Zeus.
Comparando-se o Tidida e o Telamnio, ao primeiro se relacionam aes em momentos nos
quais os gregos so vitoriosos, j ao segundo, aes de heroica defesa (Ibidem, p. 271-277),
para ns, inseridas em momentos crticos de avano dos troianos, devido precisamente
ausncia de Aquiles. Evidentemente, esse contexto das aes dos heris deve ser pesado na
comparao de ambos, contudo, a viso de Van der Valk nos serve para configurar uma
imagem muito comum associada a jax, a sua predisposio defensiva, que ser salientada
ainda nessa seo.
Prossigamos, ento, ainda tratando dessa mesma perspectiva de caracterizao do
heri em questo, ou seja, a compreenso de seus atributos a partir da comparao com outro
heri, mas agora, em relao a Odisseu, nomeado Ulisses na tradio latina.
Nessa concepo, contrapem-se o Telamnio e Odisseu. De tal oposio, temos o
primeiro associado ideia de homem do qual se sobrelevam as aes, e o segundo, marcado
pela proeminncia dos discursos. Um estudo sob tal perspectiva j foi desenvolvido por
Werner Jaeger em sua obra Paideia, a propor a seguinte atribuio a tais heris: Odisseu e
jax seriam, respectivamente, mestre da palavra, e [...] o homem da ao (2003, p. 29-30),
corroborando o que dissemos.
Para chegar a essa concluso, que destaca uma ntida oposio entre as caractersticas
desses personagens mticos, esse estudioso se utiliza especialmente do discurso de Fnix,
23
quando da embaixada a Aquiles, no canto IX da Ilada. A passagem serve especialmente para
alicerar a base dupla do conceito de aret, , a virtude grega. Vejamos os versos
correspondentes ao discurso direto de Fnix.
[...] ' ' ' 540 ' , ' . , ' .7
(Ilada, IX, v. 538-543)
A partir desses versos, Jaeger pde afirmar que tais noes, ao e palavra, conjugadas
representavam o verdadeiro objetivo da educao da nobreza grega primitiva, e logo, ambas
estariam, ento, em um patamar de igualdade. Assim, ele pde concluir que, ao lado da ao,
o domnio da palavra legitimava a nobreza do esprito (Ibidem, p. 29-30). Ainda em sua obra,
esse autor tenta reforar que essa seria a viso dos gregos.
Com efeito, junto a Fnix na embaixada que objetivava demover Aquiles, estavam
Odisseu e jax. Para Jaeger, isso fundamental para a estrutura do Canto IX, pois a prpria
presena destes ilustrava um, a ao, e o outro, a palavra, de modo que a delegao enviada
reflete precisamente essa dupla virtude grega apresentada pelo tutor de Aquiles. As palavras
de Fnix, segundo esse estudioso, contrapem os dois conselheiros com o propsito
especfico de delinear a figura de Aquiles, pois se um personifica a ao, e o outro, a
palavra; a ambos, ento, ope-se o Pelida, uma vez que s se unem ambas em Aquiles, que
realiza em si a autntica harmonia do mais alto vigor de esprito e ao (Ibidem, p. 50).
Isso nos serve para observar os traos peculiares do heri em questo, partindo-se de
uma perspectiva comparativa, na qual Odisseu elemento imprescindvel. Contudo, esse
episdio ainda nos d outros indcios dessa caracterizao.
Homero expe os discursos de Odisseu, de Fnix e de jax, nessa respectiva ordem,
sem sucesso para comover Aquiles a retornar guerra. No entanto, pode-se observar, de
forma clara, um elemento significativamente diferente entre os discursos de jax e de
Odisseu: a extenso. Para o primeiro, Homero dedicou oitenta dois (82) versos (v. 225-306),
para o segundo, dezenove (19) versos (v. 642-642). Isso nos mostra que, na verso homrica,
7 O velho Peleu, condutor de cavalos enviou-me a ti / no dia em que enviava para Agammnon, / jovem ainda
no conhecedor igualmente da guerra (v. 540)/ e das assembleias, uma vez que nisto os homens so notveis. / Por essa razo enviou-me antecipadamente para instruir tudo isso, / a ser tanto orador de discursos quanto executor de aes.
24
o discurso de Odisseu ao menos quatro vezes maior do que o de jax, caracterizando aquele
como no mnimo mais prolixo e este, mais direto.
Com efeito, essa diferena evidenciada por Jaeger parece salutar na tradio arcaica,
seja oriunda do mito ou das obras homricas. Pndaro, por exemplo, na Ode Nemeia VIII,
apresenta, textualmente, esse heri caracterizado como fraco orador por um lado, mas bravo
por outro. Compondo as narrativas mticas que formam a base do argumento do poeta, jax
chamado de sem-lngua, aglosso (, v. 24), cujo desdobramento figurado de sentido
expressa precisamente a falta de eloquncia. Mas, ao mesmo tempo, seu corao bravo
( ' , v. 24). Esse adjetivo lkimos expressa, segundo mile Benveniste, a
coragem de enfrentar o perigo sem nunca recuar, no ceder aos assaltos, manter-se com
firmeza nos combates (1995, v. 2, p. 73). Esse atributo referido na Ilada a vrios
personagens, inclusive a este heri, contudo, nessa passagem da ode, faz-se evidente a
contraposio de virtude e fraqueza, ou seja, a enaltecida bravura do heri, prpria da
associao ao; e sobretudo a eloquncia diminuda, conforme o modelo comparativo dele
e de Odisseu, apregoado por Jaeger anteriormente.
A partir desse entendimento do Canto IX da Ilada, reforado pela ode pindrica,
coerente instituir caracterizao do Telamnio a imagem de um heri que se sobressai pelas
aes, nitidamente guerreiras, mas a quem escasseia a eloquncia excedente em Odisseu.
A segunda perspectiva, de certa tradio crtica, e aparentemente reiterada nos estudos
da obra homrica, compreende o personagem como caracterizado pela robusta compleio
fsica e pelo fraco intelecto, segundo dispem e rebatem os estudos de Richard Trapp (1961,
p. 271). Corroborando essa premissa, Rocha Pereira o descreve da seguinte maneira:
guerreiro forte e persistente, mas que s vale pela fora fsica; o prprio escudo que traz, alto como uma torre, o singulariza como um homem de armas primitivo; o baluarte do Aqueus, que caminha para a luta com um sorriso no seu rosto aterrorizador (2012, p. 76).
Essa interpretao corrente se faz porque na tradio homrica, esse heri
caracterizado sobretudo pela sua virtude guerreira, que abrange desde seu porte fsico, pois
representado como enorme e gigantesco, at a sua habilidade blica. No por menos ele
referido na obra como o melhor dos aqueus, depois de Aquiles. No entanto, dois aspectos
dessa virtude guerreira do heri parecem patentes: a rudeza intelectual e a qualidade
defensiva, depreendidas dos episdios homricos que evidenciam sua preponderncia fsica.
O primeiro aspecto, j exposto acima, parece evidente, segundo Rocha Pereira e
muitos estudiosos (apud TRAPP, 1961, p. 271). O segundo j foi pontuado por Agatha
25
Bacelar (2004) e tambm por Trapp, ainda que com algumas reservas (1961, p. 273). Na
Ilada, o personagem se torna mais proeminente no primeiro aspecto, devido tanto
constituio especfica de seu escudo, que sugere um valor mais primitivo, de origem
marcadamente arcaica e micnica (PEREIRA, 2012, p. 76; VAN DER VALK, 1951, p. 273),
quanto s interpretaes de alguns smiles que caracterizam o personagem (TRAPP, 1961, p.
272); e, mais marcante quanto ao segundo, a princpio, porque a retirada de Aquiles da guerra
acarreta o seu grande, mas no nico, papel de defensor dos gregos, contendo os troianos e
sobretudo Heitor, quando do combate singular no Canto VII da Ilada, e quando da batalha
junto s naus nos Cantos XIII, XIV e XV.
Novamente, as frmulas picas homricas parecem convergir especialmente para esse
atributo defensivo e protetor, por meio de eptetos e traos caractersticos, que jax possui
para conter os ataques dos inimigos. Nos Cantos e mais propriamente nas passagens em que
esto inseridos, conforme os ditames de Rocha Pereira (1984, p. 5), os seus eptetos
apresentam uma adequao ao contexto e uma melhor caracterizao do heri, indo alm da
relao com o esquema mtrico e com decorrente hemistquio.
O primeiro epteto significativo que coaduna essa qualidade muralha dos aqueus,
, referido, por exemplo, quando Helena ao longe dispe os heris gregos para
Pramo (Ilada, III, v. 229), ou, sobretudo, quando do combate singular com Heitor (Ilada,
VII, v. 211). A palavra pode apresentar sentidos concretos, como barreira, muralha, e
abstratos, como defesa, mas que se inserem dentro de um mesmo campo semntico. Na
relao com esse heri, tal epteto parece salientar a sua virtude defensiva, uma vez que,
momentaneamente, para os gregos ele a proteo contra o Heitor que causa inmeras mortes
ao aqueus.
Essa caracterstica se faz perceber no texto homrico tambm pelas suas armas das
quais se sobressai o seu escudo, que se relaciona mais uma vez ao prprio epteto supracitado.
Seu escudo assemelha-se a uma torre, (Ilada, VII, v. 219; XI, v. 485;
XVII, v. 128). A comparao no se d apenas para apresentar a arma de jax com um
formato diferente, ela refora a sua potncia defensiva e, pela sua singularidade, o seu
possvel valor primitivo. A tradio homrica pe uma caracterstica essencial ao escudo do
heri, pois h nele bronze e sete camadas, (Ilada, VII, v. 220), e essas
camadas so de couro taurino, (Ilada, VII, v. 222-223). Essa
singularidade do escudo parece acentuar os dois aspectos comuns atribudos virtude
guerreira de jax, tanto o seu valor primitivo, configurando o personagem como brusco, e da
26
inculto; quanto sua excelncia defensiva e protetora, ambos salientados pela constituio
robusta e nica de seu escudo.
Essa compreenso validade ao considerarmos o que diz Jean-Pierre Vernant, quando
aponta o papel executado pelas armas na figura do heri: em combate, o personagem se faz
distinto pelas armas, uma vez que o esplendor que dimana do corpo do heri no resulta
tanto do cativante fascnio da sua juventude, vem antes do fulgor do bronze de que se reveste,
do seu capacete (apud MOSS, 1989, p. 48). Assim, torna-se bvio que toda a descrio
singular do escudo de jax reaa seu valor guerreiro, ademais sua opulncia fsica e sua
qualidade defensiva na conteno dos troianos.
O epteto de muralha dos aqueus tambm frequentemente vem acompanhado de um
outro qualificador, que lhe acentua o valor primitivo e defensivo. , ou seja, ingente,
monstruoso em tamanho (Ilada, III, v. 229; VII, v. 211), corroborando, assim, um segundo
epteto significativo para isso. Essa qualidade do heri que geralmente acompanha o epteto
de muralha, transfere-lhe tambm essa propriedade, construindo a imagem de uma magna
muralha. E tanto quanto o heri imenso, robusto seu escudo: coaduna-se, assim, a partir do
exposto, o carter defensivo, da, protetor; e o primitivo, da, brusco.
Um episdio significativo que ope fora bruta e inteligncia est inserido no Canto
XXIII da Ilada: a disputa entre o personagem em questo e Odisseu. Inserida nos jogos
fnebres em honra a Ptrocles, a contenda realizada em uma luta sem armas, e sobretudo
relevante, no apenas por contrastar duas noes opostas, mas por evidenci-las a partir de
seus maiores representantes. Exatamente por isso o Telamnio caracterizado por enorme,
mgas (, v. 708; 722) e o Laertida, seu adversrio, por muito inteligente, polmetis
(, v.709) e por muito artificioso, polymchanos (, v. 723). A contenda
termina em empate, pela preocupao de Aquiles de que ambos possam acabar machucados,
prejudicando a expedio grega. Contudo, Odisseu parece ter se sobreposto
momentaneamente ao seu adversrio, como aponta Hopkinson (2000, p. 12), pois mesmo em
se tratando de uma disputa fsica, somente Odisseu foi capaz de derrubar o seu oponente. E
isso foi alcanado atravs de uma astcia, dlos (, v. 725), de um golpe atrs do joelho
que fez o adversrio ingente se dobrar e cair. Esse fato parece, por um lado, realar a
soberania da inteligncia sobre a fora, e por outro antecipar at a vitria de Odisseu sobre seu
adversrio na disputa pelas armas de Aquiles. Ento, ao relacionarem o Telamnio pura
fora fsica, e considerando-se outros elementos j mencionados, muitos crticos acabam
atribuindo a este a imagem de brusco ou de primitivo.
27
Em relao a essa ideia, Trapp discorda veementemente, pelo menos quanto
interpretao dos smiles evidenciados por alguns estudiosos como determinantes da rudeza
intelectual do heri. Esse autor em seu estudo elenca quatro crticos literrios que seguem esse
pensamento: C. M. Bowra, que afirmou jax ser nada mais que um homem de ao, com
inteligncia abaixo do padro heroico; Gilbert Highet que declarou Homero ter atribudo a
este personagem a comicidade; Sidney Hook que acredita existir um espao reservado no
circo para esse heri; e M. W. Mansur que o caracterizou como fraco acima dos ombros
(1961, p. 271).
Os dois smiles mais ressaltados por esses estudiosos para tal conjuntura se encontra
no Canto XI, versos 540-574, da Ilada, quando do recuo do heri frente aos troianos,
promovido por ao de Zeus. Esse chefe grego de Salamina, quando atacado pelos troianos
nesse episdio, comparado a um leo afugentado por fazendeiros e ces, e a um asno
teimoso acossado por crianas que dano algum conseguem infligir. Desses smiles, no
atentando ao contexto, ao menos dois dos quatro autores depreendem a mesma interpretao
acerca da caracterizao do personagem em questo: bravo como um leo e estpido como
um asno. Preferimos concordar com a anlise de Trapp, sobretudo quanto ao segundo smile.
A imagem do asno destaca um trao peculiar do heri: a resistncia na batalha, inclusive,
porque os troianos no conseguem feri-lo de forma efetiva, mesmo quando ele est s frente
dos gregos (Ibidem, p. 272). Permitimo-nos desdobrar esse sentido. Parece-nos que essa
caracterizao tambm serve para contribuir para a qualidade defensiva, exposta por ns
anteriormente, pois para uma efetiva conteno dos troianos, Homero conferiu ao heri a
resistncia e a coragem singulares de manter-se firme em combate. O prprio papel do escudo
dentro desse episdio reitera esse entendimento, o qual, mencionado duas vezes no fragmento
(v. 565; 572), impede as lanas troianas de encontrarem seu objetivo, e resguardam seu corpo,
ileso. Diferentemente de vrios importantes heris, jax no chega a ser ferido por nenhum
troiano.
Ademais, esse trao defensivo se adensa a partir de uma perspectiva coletiva,
observado em seu discurso proferido a Aquiles no Canto IX da Ilada. No episdio em
questo, o Telamnio tenta convencer o Pelida, comovendo-o por argumentos baseados na
philtes, , na amizade grega, tanto aos outros gregos, (v. 630),
quanto em relao aos membros da embaixada, marcadamente mais estimados, (v.
642). Isso fica claro, segundo Benveniste, que define esse sentimento como as relaes
interpessoais de parentes, aliados, amigos e todos os que esto imbudos, de maneira
indissocivel, de disposies recprocas vinculados ao respeito, ou ao pudor, ou reverncia,
28
ados, , e ou at ao afeto, que se tornam singulares dentro de um grupo especfico, como
na famlia, ou no exrcito, ou em uma comunidade maior, quer na relao entre pares ou entre
superiores e inferiores, inspirando sentimentos de misericrdia, piedade, lealdade, decoro
coletivo etc. (1995, v. 1, p. 46). Esse sentimento do heri, expresso nesse episdio, parece-nos
genuno, sobretudo ao considerarmos seus esforos em defesa das naus gregas quando, do
cadver de Patrcles, assim, sob o ponto de vista dos que lhe so iguais e tambm inferiores.
Marcadamente podemos coadunar a isso, sob as devidas circunstncias, uma qualidade
defensiva.
Com efeito, possvel conferir caracterizao de jax a imagem de um heri
defensivo, considerando outras circunstncias presentes na Ilada. Os relevantes episdios,
como o combate singular com Heitor (Canto VII), a defesa das naus gregas (Cantos XII-XV),
a proteo ao corpo de Ptrocles (Canto XVII), parecem evidenciar aes defensivas,
sobretudo, se considerarmos seu estatuto de melhor depois de Aquiles, o que acarreta um
papel proeminente na conteno dos avanos troianos, quando da ausncia do Pelida. No
entanto, entenda-se que essa percepo no deve reduzir o personagem a um papel
exclusivamente protetor, mas que, a partir do desenlace dos episdios, isso corrobore para
uma visvel predisposio de virtude defensiva, proeminente para um heri que mais se faz
valer, quando do avano ininterrupto dos troianos.
Contudo, quando tratamos o personagem dentro da perspectiva do episdio da disputa
pelas armas de Aquiles, alm do que foi mencionado, podemos evidenciar um trao essencial
na sua caracterizao: a ira. Esse elemento recorrente na tradio de mito do Telamnio,
pois apesar de referido brevemente na Odisseia, retomado por Pndaro, e sobretudo por
Sfocles e Ovdio, cerne do estudo de caso a que nos propomos. Tal marcada caracterstica,
inserida no contexto do episdio em questo, exerce nele um papel crucial, pois impulsiona
todas as aes do heri, como veremos nas sees seguintes.
A ira de jax se estrutura coerentemente dentro do contexto agonstico das obras
homricas, uma vez que emula de forma ntida e sob circunstncias semelhantes a prpria
fria de Aquiles, argumento maior da Ilada. No caso do Pelida, a honra lhe conspurcada a
partir da tomada de Briseida por Agammnon, o que representava a sua desvalorizao como
heri devido privao de sua honraria. No caso do heri de Salamina, o texto homrico
parece sugerir uma situao semelhante, mesmo no apresentando o lxico preciso, com a
exceo de que a honraria representada pelas armas de Aquiles e que no lhe foi tomada,
mas lhe foi negada, o que na perspectiva do heri deprecia seu valor guerreiro.
29
Contudo, essa interpretao parece vlida, uma vez que essa ser a perspectiva de
alguns autores ps-homricos. Ao associar-se a situao do heri de Aquiles temos que
entender como a ira se manifesta a partir de uma honra tida como conspurcada. Esta ltima se
alicera em conjunto de outros fatores8, mas, no caso em questo, sobretudo na reconhecida e
patente virtude guerreira do heri, constituda de todos os atributos estudados e mencionados
anteriormente.
Observemos, ento, o seguinte: a concepo de honra para os gregos do perodo
arcaico ainda estruturada sobre duas noes: a honraria, gras (), e a honra, tim
(). Acerca disso nos esclarece Benveniste: a primeira, mais restrita epopeia, representa
uma vantagem material atribuda pelos homens, tanto como privilgio de uma condio
social, quanto como recompensa de um grande feito; a segunda, utilizada abundantemente em
vrias pocas distintas, representa a dignidade de uma determinada condio social, de origem
divina e conferida ao acaso, constitutiva de seu quinho pessoal concedido pelo destino (1995,
v. 2, p. 43-52). Tudo isso nos permite depreender o seguinte entendimento: inserido no
contexto da Ilada, o ato de reconhecer o valor de um heri, seja por meio de honrarias e
recompensas, ou dos prprios respeito e reverncia, legitimar a sua honra e as virtudes
constitutivas dela. Assim, ferir a honra de um heri significa desprezar o seu valor, e
sobretudo na obra homrica, isso significa negar-lhe a sua condio inata, conferida pelos
deuses. Aristteles nos abona tal ideia, a desonra algo de desmedido, e o desonrante
desestima, pois o que tem nenhum valor possui nenhuma honra ( , '
, Retrica, 1378b, 29-30).
Como ser melhor explicado adiante, ao nosso ver, o episdio da disputa pelas armas
de Aquiles parece se estruturar em dois elementos-base, virtude e ira, em que aquela sustenta
a honra. Estes se articulam de forma a no deixar possvel a apreciao de um sem a
compreenso do outro, e, por decorrncia, a apreenso de sua unidade textual. Contudo, a
disposio dos componentes virtude e ira parece ainda se desdobrar, a partir dos mesmos, em
outras duas noes complementares, de dor e de sofrimento, que constroem com aquelas a
organicidade semntica do texto.
Trataremos agora da ira uma vez que juntamente com o elemento, virtude, est
presente na caracterizao do personagem estudado, na tradio do mito que trata do episdio 8 Segundo Vernant, a honra, a tim grega, designa o valor que reconhecido a um indivduo, ou seja, ao
mesmo tempo, as marcas sociais de sua identidade: seu nome, sua filiao, sua origem, seu estatuto no grupo com as honras que lhe so ligadas, os privilgios e a considerao que tem direito de exigir, a sua excelncia pessoal, o conjunto das qualidades e dos mritos beleza, vigor, coragem, nobreza do comportamento, domnio sobre si que, em seu rosto, em suas vestimentas, em seu comportamento, manifestam aos olhos de todos seu pertenciamento elite dos kalo kagatho, os belos-e-bons, dos ristoi, os excelentes (2009, p. 184).
30
da disputa pelas armas de Aquiles. Sobre a virtude, tudo o que foi mencionado anteriormente
j se mostra suficiente para a nossa elucidao.
Prossigamos com a ira. Esse sentimento evidente tanto no lxico expresso nos textos,
e em seus correlatos semnticos, quanto no comportamento do personagem, disposto nos
prprios temas desenvolvidos, quando da caracterizao de jax nas obras apontadas por ns
como referncia da tradio, Pndaro e sobretudo Homero.
Com efeito, Homero j o representava tomado de ira. Ainda no Canto XI da Odisseia,
quando da narrativa de Odisseu que descreve o seu encontro com jax no Hades, podemos
observar esse sentimento representado explicitamente pelo verbo . Esse verbo que
significa excitar a bile, encolerizar, por duas vezes usado para se referir a jax, por meio de
seu particpio perfeito na voz mdia, ao nosso ver, e no passiva. Faz-se necessrio ressaltar
que a voz mdia traz uma nova carga semntica ao verbo, e por consequncia em sua forma
nominal, revelando que aquele que pratica a ao, pratica-a para si mesmo, em seu interesse,
ou a ao se exerce na esfera do sujeito, que est envolvido subjetivamente nela, (RAGON,
2011, p. 206). A relao desse verbo com , bile, e por extenso clera, ira, ressalta o
aspecto fsico do ato de irar-se, e a voz mdia enfatiza que o heri se encoleriza para si
mesmo, ou a partir de si, desenvolvendo-se em seu interesse, uma vez que o faz a partir de um
julgamento sobre seu valor, um pensamento que lhe prprio. Vejamos a primeira passagem.
' , , 545 ' , .9
(Odisseia, XI, v. 543-547)
O primeiro particpio aparece no verso 544, referindo-se a alma de jax,
, encolerizada por causa da vitria. Isso nos revela tambm o motivo pelo qual a
clera se desenvolve, a vitria de Odisseu sobre o Telamnio, injusta na perspectiva do
ltimo, justificando a voz mdia devido participao do derrotado na ao de se enfurecer.
Assim, tal entendimento nos impede de retirar da ao o seu envolvimento pessoal, e o seu
possvel julgamento acerca de tal resultado em oposio ao dos juzes referidos por Odisseu,
entre os quais figura a deusa Atena. Isso significa dizer que jax se encoleriza, uma vez que
9 Somente a alma de jax Telamnio /ficara ao longe afastada, encolerizada por causa da vitria, que eu
conquistei sendo julgado junto aos navios, (v. 545) / por causa das armas de Aquiles: a me veneranda disps, / julgaram os filhos dos Troas e Palas Atena.
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reconhece atribuir a si a supremacia guerreira, expressa textualmente no seu recorrente epteto
de melhor do Aqueus, depois de Aquiles. Seu julgamento seria considerar a honraria, as armas
do Pelida, como constituinte de sua honra. Isso fica mais evidente quando agregamos isso aos
versos de Pndaro que descrevem as armas de Aquiles como a maior honraria (
, Nemeias, VIII, v. 25), uma vez que provm do melhor guerreiro. Certamente, h uma
coerncia no pensamento de jax em se ver desonrado, pois o superlativo que define a
grandeza das armas se adequa aos superlativos e que retratam a excelncia
do heri. Evidentemente que o ultraje lhe percebido ao no se reconhecer seu valor
condizente honraria, e dessa forma, depreciando-o, o que justifica seu estado colrico.
Vejamos a segunda meno a esse estado:
, , ' 555 ' , , ' . 560 ' , , ' . , ' , ' . ' , 565 .10
(Odisseia, XI, v. 553-567)
O segundo particpio aparece no verso 565, referindo-se a jax, ,
evidenciando seu estado, quando se dirige ao rebo, depois da investida de Odisseu, negando
a este a reconciliao. Essa ira, que se apresenta como um rancor profundo, um trao to
marcante na caracterizao de jax, que at Odisseu, nos versos 554 e 555, ressalta-o como
capaz de permanecer no heri, mesmo aps a sua prpria morte. Para isso, evidencia-se o
estado do heri reiterando junto ao particpio, encolerizado, o termo, ira ( v. 554). Mais
10
jax, filho do excelente Tlamon, no estavas disposto, / nem tendo morrido, a haver de esquecer-te do rancor por mim por causa das armas / funestas: os deuses impuseram as desgraas aos Argivos (v. 555), pois, tu, torre para estes, pereceste. Os Acaios por ti, / tal qual por Aquiles Pelida, / tendo morrido, afligiram-se completamente. Nenhum outro / responsvel, seno Zeus que detestou o exrcito dos Dnaos /lanceiros, terrivelmente, e imps sobre ti [tal] destino (v. 560). / Mas avana at aqui, chefe, a fim de que palavra e nossa histria / escutes, doma o esprito e a o mpeto muito viril. / Assim falava, e a mim nada respondeu, caminhou entre as outras / almas em direo ao rebo de corpos mortos. / E ali, mesmo que encolerizado, dirigiria a palavra, ou eu a ele (v. 565). Mas para mim o corao no peito querido desejou / ver as almas de outros mortos.
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uma vez podemos reforar tal caracterstica ao compararmos esses fragmentos ao verso 25 da
Ode Nemeia, de Pndaro, que tambm delineia o estado colrico com um particpio do mesmo
verbo , contudo, no aspecto aoristo: encolerizado por causa das armas (
) (Cf. p. 20). Agrega-se a isso, o apelo de Odisseu ao heri de Salamina, no verso
562, que reitera essa noo e amplifica as caractersticas da ndole de jax, delineando-o
possivelmente at como orgulhoso de sua supremacia guerreira uma vez que na expresso,
traduzida de forma mais etimolgica, mpeto muito viril, agnora thymn ( ), o
adjetivo pode se relacionar tambm, por extenso de sentido, s noes de orgulho, altivez e
arrogncia. Essa presuno de uma virtude reconhecidamente superior, na perspectiva do
personagem, acarreta exatamente o sentimento de ira, que decorre da percepo da aparente
injustia no julgamento das armas de Aquiles.
No descabido observar esse orgulho sugerido, pois alguns episdios parecem
reiterar tal possibilidade de ndole ao Telamnio. Trapp (1961, p. 4) aponta como uma das
suas proeminentes caractersticas a confiana em si mesmo, observada tanto em sua
declarao de coragem e de esperada vitria sobre Heitor (Ilada, VII, v. 191-199), quanto em
seu sorriso diante do adversrio, expresso durante o combate singular com Heitor (Ibidem,
VII, v. 211-213). A isso acrescenta-se o fato que de sua virtude guerreira o permitiu muitas
vezes combater sozinho, sobretudo, na defesa dos gregos, o que corrobora a ideia,
disseminada por muitos escoliastas, de que jax fosse inclusive pouco ajudado pelos deuses,
se o compararmos a Diomedes, por exemplo, um dos grandes heris cuja excelncia
tambm desenvolvida na Ilada (VAN DER VALK, 1952, p. 271)
O aspecto trgico do episdio homrico se faz valer especialmente a partir da funo
complementar ocupada pelos sentimentos de dor e de sofrimento que depreendemos sentir o
heri. A ligao entre ira e dor no incomum, ao menos se tomamos como referncia o caso
de Aquiles, em sua querela com Agammnon no Canto I da Ilada, e a compreenso de
Aristteles quanto s emoes, na Retrica. Vejamos nos versos abaixo a descrio dos
sentimentos de Aquiles, fundamental para nosso estudo, uma vez que a situao desse heri
perante a deciso de Agammnon modelo, como j percebemos, para o caso de Telamnio:
: , , 190 , , . ,
33
, [...] 11 (Ilada, I, v. 188-194)
A primeira coisa a se observar a participao do sentimento de dor, (v. 188),
como emoo inicial e desencadeadora das aes que a sucedem. por meio da dor que
Aquiles internamente se agita. Esse conflito interno o faz cogitar executar duas aes
distintas: a primeira a de levantar as armas e matar Agammnon; a segunda, a de cessar a
ira e dominar o seu mpeto. A princpio essas aes esto no mbito da possibilidade,
primeiro, por estarem sinttica e semanticamente ligadas ao verbo , ponderar,
segundo, pelo prprio modo expresso, o optativo. V-se a relao direta, na passagem, entre
e , pois a dor nasceu e, por consequncia, agora, o heri pensa em suster a ira.
Assim, a dor, se no for tomada junta ira como componente de um mesmo conjunto, implica
esse prprio sentimento de clera. O texto parece estruturar esse sentido coadunando esses
dois elementos.
Um outro ponto convm ser aprofundado. Se antes tnhamos o ato de erguer as armas
e matar Atrida como um fato possvel, ponderado por Aquiles, nos versos seguintes vemos
sua realizao parcial a partir do modo indicativo do verbo . Pois durante o ato de sacar
ainda inacabado que Atena chega at Aquiles para impedi-lo de executar aquilo sobre o qual
ele havia refletido. A deusa mesma revela essa informao, eu cheguei, havendo de cessar
teu mpeto ( , v. 207). Um mesmo verbo usado na
ponderao de Aquiles e nas palavras de Atena, o verbo , que tem o sentido de reter,
fazer cessar, usado na primeira meno no optativo, e na segunda em sua forma nominal do
particpio futuro.
Assim, no caso de Aquiles, ele mesmo no conteve a ira gerada pela dor, e que
resultaria em uma ao violenta e significativa, prpria do heri: erguer as armas e utiliz-las
para seu propsito primeiro. Em especial ao caso de Aquiles, a deusa que o contm,
evitando-se que o heri cometesse um erro. Como sabemos pelo contedo do Canto XIX da
Ilada, o erro, em verdade, ser atribudo a Agammnon e, em parte, admitido por ele,
referindo-se privao dos prmios do Pelida (v. 89-89, XIX). No entanto, o chefe dos gregos
confere esse ato interferncia de uma divindade grega que personifica o prprio erro: te
(). Como divindade responsvel pela ao contra o Pelida, ela referida ao menos uma
11
Assim falou. A dor nasceu no Pelida, e dentro dele o corao, / no peito hirsuto, pesou duas coisas, / ou, precisamente, tendo retirado sua aguda espada de junto da / coxa, ergueria as armas e mataria o Atrida, / ou cessaria a ira e conteria o nimo. / Enquanto pensava em tudo no esprito e no nimo / E sacava da bainha a grande espada, Atena chegou [...]
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vez no discurso de Agammon (, v. 91, XIX). Como um ato de erro, ela referida outra
vez (, v. 88). Com efeito, para a literatura grega do perodo arcaico, a te definida,
segundo Richard Doyle, como uma espcie de cegueira, paixo ou desatino que prejudica o
bom senso e a racionalidade (1970, p. 295). Certamente, Atena impede o Pelida de cometer
um potencial erro do heri, impulsionado por uma paixo que sustenta a relao significativa
e clara que existe entre dor e ira, as quais agem como desencadeadores das aes dos
personagens.
Aristteles novamente nos abona esse entendimento, especialmente se considerarmos
a retomada desse episdio das armas de Aquiles pela posterior literatura clssica. Mesmo que
Aristteles se utilize de outro lxico, que, contudo, est ainda inserido no campo semntico
dos vocbulos homricos, podemos ver um paralelismo traado entre dor e ira: ira um
desejo de vingana explcita com a participao do sentimento de dor por causa de explcita
desestima ( [] ,
Retrica, 1378a, 30-31).
Validamente, pudemos observar a relevncia dessa ira manifestada na figura de jax,
dentro do contexto da Odisseia, que em seu Canto XI trata brevemente do episdio da disputa
pelas armas de Aquiles. Essa caracterizao do heri exige o entendimento de honra
vinculada virtude grega arcaica. Desta ltima, jax se sobressai pelas qualidades de um
heri defensivo, sob certas circunstncias, servindo-lhe para isso sua singular resistncia e
firmeza em combate, e tambm de uma primazia guerreira entre os gregos superada apenas
por Aquiles.
1. 2 A TRADIO CLSSICA
Nesta seo, contextualizaremos as obras Aias, de Sfocles e Metamorfoses, de
Ovdio, sobretudo seu Livro XIII, com o objetivo de reconhecer na caracterizao do
personagem jax, sob a perspectiva das noes de ira e de virtude, elementos tanto novos
quanto retomados da tradio arcaica. Com essa finalidade, apresentaremos estudos que
exponham as linhas gerais de interpretao das obras, especialmente, aqueles que de alguma
maneira contribuam para a nossa pesquisa com assunto relacionado caracterizao do
personagem estudado, ou intertextualidade entre as obras analisadas e a tradio arcaica.
35
1. 2. 1 Aias de Sfocles
A pea, Aias, foi escrita por Sfocles no perodo Clssico da literatura grega, que
ocorre entre os sculos V e IV a. C, ou mais precisamente no primeiro destes, o chamado
sculo de Pricles. Isso implica dizer que nessa poca se insere o maior nvel da produo
artstica e intelectual da cultura grega dentro da nomeada Antiguidade Clssica. nesse
momento em que: a escrita encontra seu apogeu, exercendo fora sobre oralidade arcaica; a
tirania d lugar democracia; a filosofia desenvolveu-se iniciando uma nova era; a literatura
de ento encontra seu auge no teatro trgico; e a cidade grega, a , se torna o palco dessas
transformaes, e a mais proeminente delas foi, sobretudo, Atenas (MARQUES JNIOR,
2008, p. 12).
Com efeito, a literatura dessa poca parece direcionada para a cidade, especialmente
devido ao estabelecimento de uma vida poltica organizada e assentada aps a vitria sobre os
persas (ROMILLY, 1984, p. 73). A participao na vida poltica, crescente desde meados do
perodo arcaico, cristaliza-se aps o confronto entre gregos e persas, e acaba fomentando nos
poetas uma maior conscincia do seu lugar na cidade A influncia desse fato pode ser
ilustrada pelos grandes gneros produzidos na poca: na lrica, os muitos poemas de
Simnides, considerado cantor nacional; na tragdia, Os Persas, de squilo; na histria,
Histrias, de Herdoto.
Essa conscincia poltica, no sentido estritamente grego, ou seja, ligada cidade,
tambm preponderante na tragdia, acima de tudo porque as peas que compunham esse
gnero eram encenadas em concursos que ocorriam durante os festivais dionisacos, logo,
inserindo-se em um rol de cerimnias de carter religioso e tambm cvico. Em decorrncia
de todos esses fatos, R. Janko afirma que o teatro tambm seria um lugar, onde os cidados
podiam refletir sobre questes polticas, e no qual muitos poetas problematizavam modelos de
cunho moral, social e religioso, atualizando-os ao seu tempo (apud PEREIRA, 2012, p. 394-
395). Ao trazer cena um heri mtico, que encarna as tradies de um passado, no qual se
insere, diante de novas formas de pensamento, a tragdia questiona e pe em discusso os
valores heroicos e suas representaes religiosas antigas a partir do evidente contraste que se
eleva desse confronto entre o passado e o presente (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2011, p.
4-10).
Contudo, acima de seu carter religioso e cvico, sobressai-se seu valor literrio cuja
base se sustenta principalmente na carga esttica que a obra executa. A tragdia grega,
segundo Aristteles (Potica), teria como finalidade primeira causar catarse, , uma
36
ideia de purgao ou purificao esttica, por meio de duas emoes necessrias para isso: a
piedade ou compaixo, leos (), e o temor, phbos (). Ainda prossegue em sua
obra expondo que isso seria efetivamente alcanado a partir de alguns recursos desenvolvidos
pelo prprio autor, entre os mais relevantes, quando a ao representada fosse completa, de
unidade estruturada e desenvolvida por personagens que passariam, sobretudo, da felicidade
infelicidade, atravs de um erro, hamarta (), que decorre no de um vcio de carter,
mas, segundo a interpretao de alguns estudiosos (PEREIRA, 2012, p. 402), de um
desconhecimento, agnia ().
Coerente com muito desses conceitos aristotlicos que lhes so posteriores, os autores
trgicos que mais obtiveram xito nas apresentaes desses festivais, e por isso mais
renomados, so squilo, Sfocles e Eurpides, de quem detemos obras ainda completas. Alm
desse fato, seu talento permite discernir seus estilos prprios que nos ajuda a contrastar a
forma como compunham suas obras. Dentre esses, interessa-nos Sfocles, objeto de estudo
desta seo.
Apesar de esse autor ter produzido vrias peas das quais temos apenas fragmentos ou
ttulos mencionados em obras de outrem, sobreviveram apenas sete peas trgicas inteiras, e
nas quais, inclusive, possvel reconhecer um padro estilstico recorrente: jax (),
aparentemente a mais antiga, Antgona (), As Traqunias (), dipo Tirano
( ), eleita a tragdia mais bela por Aristteles, segundo os seus critrios
adotados, Electra (), Filoctetes () e dipo em Colono (
).
Apesar de muitos serem os tratamentos literrios prprios de Sfocles, a predisposio
a uma construo mais marcante do carter dos personagens geralmente ressaltada por
vrios estudiosos. Junito de Souza Brando, por exemplo, afirma que enquanto squilo
elabora suas personagens em funo da fbula, Sfocles elabora a fbula em funo das
personagens, de modo especial da personagem central, o protagonists (2007, p. 43). Na
perspectiva desse estudioso isso demonstra o papel significativo da caracterizao das figuras
na compreenso das obras desse autor. A isso Rocha Pereira acrescenta que contrariamente ao
que faz squilo, por exemplo, que prefere apresentar situaes trgicas, Sfocles o autor que
concen
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